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A CONSTRUÇÃO DA EUROPA NA ALTA IDADE MÉDIA1

1. Depois do Império Romano do Ocidente: o novo mapa político (sécs. V-VI), a


Europa ‘bárbara’ e o papel da Igreja

A Alta Idade Média, designação que os historiadores ocidentais atribuem ao período


compreendido entre os meados do séc. V e os inícios do séc. X (grosso modo: de 450 a 900
d.C.) foi um período fulcral para a construção da Europa que hoje conhecemos.
Este tempo de génese e fermentação de um novo Mundo (e não de retrocesso e
indigência, como pretenderam os historiadores do Renascimento, que apelidaram a Idade
Média, em especial a sua etapa inicial, de “Dark Ages”) começou com a derrocada do Império
Romano do Ocidente, no ano de 476 d.C. (uma data simbólica, porque na realidade o fim do
mundo romano pode ser situado muitas décadas antes).
Ou seja, a Alta Idade Média começou com as (impropriamente) chamadas ‘invasões
bárbaras’ (séc. V), que entregaram o domínio político e militar desse imenso espaço a que hoje
chamamos Europa a um conjunto de povos com características civilizacionais (tradições,
costumes, religião, economia, linguagem, formas de vida e cultura) profundamente diferentes
das dos Romanos. Curiosamente, a Alta Idade Média terminaria igualmente sob o signo das
‘invasões’, desta feita as dos Normandos, dos Sarracenos e dos Magiares, que podemos
grosseiramente situar entre finais do séc. VIII e finais do séc. IX.
Entre uma data e outra, a ‘Idade Média’ instalou-se na Europa, podendo dizer-se que a
Gália, em especial as regiões situadas a norte do rio Loire, ou entre o Loire e o Reno, constituiu
o coração desse novo mundo, muito diferente do anterior, que era profundamente urbanizado e
comercial, politicamente sofisticado e muito centrado em torno do Mediterrâneo – o mare
nostrum de todos os Romanos. É, portanto, na Gália, ao tempo das dinastias merovíngia (481-
751) e carolíngia (751-987), que centraremos a nossa atenção e o nosso discurso.

É sabido como, ao empurrar os incómodos Godos para Ocidente, o Império Romano do


Oriente ajudou a cavar a sepultura do seu congénere ocidental. Em 410, os Visigodos chefiados
por Alarico saqueavam Roma, enquanto a pressão dos Hunos do temível Atila contribuiu
fortemente para provocar a penetração dos povos bárbaros no Ocidente, num efeito a que se tem

1
A partir, sobretudo, de Claude Gauvard, La France au Moyen Âge, du Vème au XVème siècle , 3ème édition,
corrigée, Paris, P.U.F., 1999 (ed. orig : 1996). Com contributos relevantes de: Bernard Bachrach, Early
Carolingian Warfare. Prelude to Empire, Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 2001; de Hans-
Henning Kortüm, in The Oxford Encyclopedia of Medieval Warfare and Military Technology, ed.
Clifford Rogers, Oxford University Press, 2010 (3 vols.); e de Jacques Paul, Histoire intellectuelle de
l’Occident médiéval, 2.ª ed., Paris, Armand Colin, 1998. N.B.: Este texto procura respeitar as principais
normas do Novo Acordo Ortográfico para a Língua Portuguesa.
chamado de ‘bola de bilhar’ e que acelerou a entrada dos bárbaros no exército romano e
consumou a ruína do que ainda restava do crédito político do imperador romano do Ocidente e
da sua outrora tão eficiente máquina militar e administrativa.
Uma segunda vaga de invasores surgiu pouco depois, vinda do Norte. Reunia Francos e
Alamanos (no continente) e Anglos e Saxões (nas Ilhas Britânicas, de onde expulsaram
parcialmente os Celtas ali instalados, de tal maneira que os Bretões começaram a emigrar para o
continente, em especial para a Armórica, a futura Bretanha). Na Gália, registou-se a progressão
dos Francos, que se encontravam divididos em dois grandes grupos: os Sálios (a norte) e os
Renanos (mais a leste, nas proximidades do rio Reno).
Mas foram muitos os povos que, ao longo do séc. V, aproveitaram a derrocada do
Império Romano do Ocidente para penetrarem livremente na Europa e circularem à vontade
pela sua metade poente. Recordemos, sucintamente, os mais famosos de entre eles:
 os Godos, vindos da Escandinávia (ou, segundo alguns autores recentes, do
Sul da Alemanha), instalaram-se primeiro na Ucrânia (nas estepes do Mar
Negro), e, depois de terem derrotado os Romanos (em 270), habitaram a
Dácia, a atual Roménia. A partir de então, pressionaram a região fronteiriça
do Danúbio, estando na altura divididos em Ostrogodos (i.é, os “brilhantes”),
a oeste, e os Visigodos (ou seja, os “sensatos”), mais a leste. Tratava-se de
cavaleiros semi-nómadas, convertidos ao Arianismo por Ulfila, o seu primeiro
bispo. Por volta do ano 370, foram afetados pela chegada dos Hunos (o que
levou mesmo ao suicídio do seu rei), tendo-se então dirigido para poente,
arrastando consigo outros povos (como os Alanos). Depois de saquearem
Roma, acabaram por se instalar no sudoeste da Gália e na Península Ibérica
(no caso dos Visigodos) e na Itália (os Ostrogodos);
 os Vândalos, um povo que veio do Norte e que, depois de passar o Reno,
atravessou uma parte da atual Espanha e, através da Andaluzia, chegou à
África do Norte, onde se fixou. O seu rei mais famoso foi Genserico, um
ariano. Aos Vândalos se deve o famoso saque de Roma, em 455;
 os Alamanos, designação que reúne diversos povos (“all man”), os quais
estacionaram nas proximidades do rio Main (na região de Frankfurt);
 os Suevos, um povo de grande capacidade guerreira (leia-se em Júlio César a
admiração que as tribos gaulesas tinham por eles) e que, sendo próximos dos
Alamanos, se fixaram na Europa Central, mas foram depois arrastados para
ocidente pelos Vândalos, tendo acabado por se estabelecer no noroeste da
Península Ibérica (nas atuais Galiza e Portugal);
 os Burgúndios, que vieram da Escandinávia e se instalaram na Renânia, de
onde foram desalojados por Flávio Écio (o representante do imperador

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romano na Gália em meados do séc. V) e pelos Hunos (facto que pode ter
dado origem à famosa lenda dos Nibelungos). Em meados do séc. V, o seu
território estendia-se desde a Champagne até à Durance (região Provença-
Alpes-Côte d’Azur, no sudeste da França);
 os Francos, um povo que absorveu muitos outros, como os Sicambros, os
Chamaves, os Bructeros e os Chatos, tendo formado dois grupos principais: os
Sálios (instalados na foz do Reno) e os Renanos (instalados numa das
margens do Reno, entre Bona e Colónia, ou, a partir do séc. VII, confinados
às duas margens deste rio, sendo por isso também chamados de “Ripuários”).
Eram todos povos pagãos;
 os Anglos, os Jutos e os Saxões, todos eles povos germânicos e também
pagãos, os quais se instalaram no norte da atual Alemanha mas que
realizavam incursões pela costa da Bretanha romana (a atual Inglaterra), onde
se fixaram a partir do séc. V, apesar da resistência de alguns chefes bretões,
como Ambrósio Aureliano (facto que pode ter dado origem à lenda do Rei
Artur). Alguns dos Saxões estabeleceram-se nas costas da Gália, até à foz do
rio Loire;
 os Pictos e os Scots/Escotos, povos que ficaram famosos pelos seus raids e
pilhagens. Os Scots/Escotos, vindos da Irlanda, atacaram a costa oeste da
Escócia e fundaram aí um reino (a atual Escócia);
 e os Lombardos, um povo ariano e cuja migração em direção à Itália se
verificou mais tarde, sobretudo nos sécs. VI e VII. No séc. VIII, chegaram a
ameaçar Roma e o Papado, que seriam salvos pelos reis carolíngios.

Em 476 (a tal data que os historiadores europeus convencionaram utilizar para situar no
tempo a queda do Império Romano do Ocidente), um rei bárbaro chamado Odoacro (chefe dos
Hérulos e, provavelmente, um homem de origem turco-mongol) apoderou-se do poder em
Roma: confiscou as insígnias imperiais a Rómulo Augústulo (por isso considerado o último
imperador romano do Ocidente) e enviou-as para Bizâncio/Constantinopla, a capital do Império
Romano do Oriente.
Abria-se, formalmente, uma nova página na história da Europa. Mas, durante algum
tempo ainda, essa página permaneceu por definir, pois as migrações continuavam, como no caso
dos Vândalos, que já sabemos terem acabado por passar para o Norte de África. Os Visigodos e
os Burgúndios, porém, acabaram por se estabelecer na Gália (onde já se encontravam os
Francos) e ali formaram reinos próprios desde meados do séc. V, coabitando de forma
relativamente pacífica com os habitantes indígenas (ou seja, com a população galo-romana, que
tinha perdido a sua principal referência política: o Império Romano do Ocidente).

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Como é evidente, e embora os historiadores tendam hoje a suavizar um pouco a
oposição entre o ‘mundo romano’ e o ‘mundo bárbaro’, as diferenças eram significativas. O
primeiro fora, como já vimos, um mundo centrado no Mediterrâneo, com um comércio intenso
servido por vias de comunicação próprias, com um Direito uniformizado pelo imperador
Teodósio I (373-395), com um Estado centralizado e com uma capital política (Roma), um
mundo urbanizado e onde pontificava uma classe senatorial que assumia o comando político e
militar de um território bem demarcado por uma fronteira precisa: o “limes”.
Já o ‘mundo bárbaro’, dizia respeito a povos semi-nómadas que praticavam a agro-
pastorícia, num mundo sem unidade política real, construído à base de agrupamentos de tipo
tribal, a que estava associada uma cultura oral, com um peso muito forte da tradição e com uma
coesão social baseada na palavra e no gesto, em juramentos e em testemunhos, e na prática de
uma justiça assente no direito de vingança privada. No entanto, devemos evitar ver este ‘mundo
bárbaro’ como um mundo anárquico e propício à violência ilimitada: era sem dúvida um mundo
guerreiro, liderado por um chefe militar que era simultaneamente o chefe político, mas onde a
honra e a tradição temperavam a desordem social.
Claro que Romanos e Bárbaros há muito que se conheciam, pois as invasões do séc. V
foram precedidas por um longo período de concentração de povos germânicos nas fronteiras do
Império Romano do Ocidente. E a verdade é que as dificuldades sentidas pelo Império a partir
do séc. III d.C. (fala-se mesmo na “Crise do Século III”) acabaram por aproximar esses dois
mundos, estimulando os contactos entre Romanos e Bárbaros, em especial nas zonas
fronteiriças, onde se assistiu a um progressivo esbatimento da rigidez do limes e, com
frequência, à integração e romanização de Bárbaros das regiões raianas, acolhidos como
soldados. É certo que sobreviveu sempre uma marca romana muito forte (vias de comunicação,
moeda, campesinato de pequenos e médios proprietários, fiscalidade pública, etc.), mas é
irrecusável reconhecer-se que, entre o séc. III e o séc. V ou VI, a civilização romana evoluiu no
sentido de uma maior ruralidade. Por isso, autores como Karl-Ferdinand Werner defendem hoje
que as ‘invasões bárbaras’ não são mais do que um prolongamento insensível da história
romana, prolongamento esse que, na Gália, conduziu mais a uma mudança de regime do que
propriamente a uma conquista.

Um dos fatores mais importantes da fusão entre Galo-Romanos e Bárbaros, na Gália, foi
sem dúvida a religião. Foi o Cristianismo quem melhor preservou a herança romana e, nesse
sentido, a conversão do imperador Constantino (em 312-313), assim como a decisão do
imperador Teodósio I (379-395) de tornar o Cristianismo na religião oficial do Império, tiveram
uma importância extraordinária, multiplicando os bispos e as civitas. No Baixo-Império
Romano, haveria umas 114 cidades galo-romanas e foi justamente em Arles (uma cidade com

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uma marca romana fortíssima) que se realizou o primeiro concílio da história do Cristianismo:
foi em 314 e a assembleia tratou da organização da Igreja da Gália no seio do Império Romano.
Mas qual era a religião que os povos bárbaros da Gália do séc. V professavam? Os
Francos eram pagãos, mas tanto os Visigodos como os Ostrogodos e os Burgúndios eram
“arianos”, ou seja, tinham-se convertido a uma ‘variante’ do Cristianismo fundada por Arius
(padre em Alexandria cerca de 320) e que negava a natureza divina de Cristo, defendendo que,
na Santíssima Trindade, só o Pai era Deus. A mesma religião era, aliás, professada também
pelos Vândalos e pelos Lombardos. Esta doutrina foi duramente contestada e condenada como
‘heresia’ durante o concílio de Niceia de 325, que se ocupou da definição essencial do dogma
católico, do Credo da Igreja e da afirmação da igualdade entre as três pessoas da Santíssima
Trindade.
Curiosamente, foram os Francos que, na sequência do batismo de Clóvis (o fundador do
dinastia merovíngia), em 496 ou 499, salvaram o Cristianismo e a herança romana, tarefa a que
grandes nomes da Igreja como o papa Gregório Magno (590-604), ou o monge Columbano (o
mais representativo dos monges irlandeses, nascido cerca de 540), ou reformas como a de S.
Bento de Núrsia (o criador da Regra Beneditina, no séc. VI, em Itália) ou a da congregação de
Cluny (em 910, no sudeste da França) deram continuidade. De tudo isto falaremos um pouco
mais adiante.
Certo é que, a partir de Clóvis, existiu uma aliança entre os soberanos da Gália e a
Igreja Católica que se revelaria de enorme importância para compreender a história da
construção da Europa durante a Alta Idade Média. A partir dos reis carolíngios (o primeiro foi
Pepino-o-Breve, 751-768), os monarcas dos Francos foram sagrados, tornando-se herdeiros do
bíblico rei David. Nasceu, assim, uma nova Cristandade, ‘nórdica’, e os chefes políticos
encontraram na Igreja a fonte do seu poder legítimo2.

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Entre as principais (e também raras e difíceis, porque redigidas num latim complexo) fontes para a
história do Ocidente na Alta Idade Média, estão justamente diversas obras de dignitários da Igreja, em
especial Gregório (m. 594), bispo de Tours em 573 e autor de uma preciosa Historia Francorum (uma
“história dos Francos”). É a fonte mais importante e detalhada para o período merovíngio (481-751), mas
também é bastante tendenciosa e exagerada, por exemplo na reconstituição dos eventos militares (com
números de guerreiros muito elevado, combates estilizados e segundo padrões bíblicos, etc.). O relato de
Gregório de Tours termina em 591. A sua narrativa é completada pela Crónica de Fredegário um autor
anónimo do séc. VII (também chamado Pseudo-Fredegário), cuja obra é essencial para se conhecer o
reinado de Dagoberto I (623-639). Esta crónica foi escrita c. 658 ou 660. É uma fonte preciosa para os
aspetos militares e é a melhor para os eventos posteirores a Gregório de Tours. Existe também o Liber
historiae Francorum, escrito por volta de 726/7: trata-se do nosso melhor guia para o período entre 643 e
a década de 720, com a ascensão dos primeiros Pipínidas-Carolíngios nos anos 650 e 680, a batalha de
Tertry-687 e os sucessos de Carlos Martel após a morte do pai (Pepino II), em 714. O autor é um
legitimista merovíngio (mas com alguma simpatia por Martel) que devia viver no Ocidente, perto de
Soissons. Existe também a chamada Continuação de Fredegário, da autoria de dois membros da família
carolíngia: o conde Childebrando (m. após 751, meio-irmão de Carlos Martel) e seu filho Nibelungo (m.
após 768); esta crónica, apesar do seu nome, é independente da de Fredegário, pelo que se tem proposto
chamar-lhe “Historia vel gesta Francorum” (“história ou gesta dos Francos”). Mas muitas outras figuras
(quase todas da Igreja), como Cassiodoro (que fundou em 555, em Squillace, na Calábria, o mosteiro de
Vivarium, um importantíssimo centro de cultura cristã), ou o bispo Isidoro de Sevilha (560-636), ou o

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Apesar dessa aliança, a cultura bárbara tendeu a impor-se no Ocidente europeu, em
especial nas regiões mais distantes do Mediterrâneo, logo menos romanizadas. Ao nível do
Direito, por exemplo, os três principais povos que ocupavam a Gália regeram-se por três leis
distintas: os Francos adotaram a Lei Sálica, de c. 508-511 (mas conhecida apenas por cópias do
séc. VII em diante); quanto aos Visigodos, dispunham do Breviário de Alarico, de 506,
compilado na sequência do Código de Eurico (de 470-480) mas largamente devedor do Direito
Romano (em especial do Código de Teodósio); já os Burgúndios tinham a Lei Gombette, de
515, promulgada por ordem do rei Gondebaud. Curiosamente, na Gália dos inícios da Alta
Idade Média começou por vigorar o chamado regime da ‘personalidade das leis’, que fazia com
que cada indivíduo fosse julgado em função da sua origem étnica. No entanto, depressa se
impôs um outro regime, o da ‘territorialidade das leis’, que aplicava a justiça de acordo com as
leis vigentes no território onde tinha sido cometido o delito. A partir dos finais do reinado de
Clóvis (m. 511), quando os Francos já tinham tomado conta de grande parte da Gália, todos os
Bárbaros passaram a ser julgados pela Lei Sálica; sob os Carolíngios (a partir de 751) esta lei
(que, convém que se diga, não era propriamente ‘bárbara’, pois estava impregnada do perfume
do direito imperial romano e a sua redação, quando teve lugar, até foi feita diretamente em
latim) passou a ser aplicada a todos os homens livres, fossem eles de origem franca ou galo-
romana.
Apesar desta variabilidade – que a geografia e o diferente grau de romanização ajudam
a explicar3 – o mundo bárbaro trouxe consigo um novo “código social”: representou o fim da
ideia romana de Estado e de “res publica”; acentuou a confusão entre o ‘público’ e o ‘privado’;
impôs a ‘faida’ (i.é, a prática da guerra privada) e o wergeld (o ‘preço do sangue’) como
actividades correntes; afirmou um conjunto de valores morais e comportamentais muito
próprios, baseados na honra, na dádiva, no gesto e na palavra (p.ex., no juramento); e impôs um

monge anglo-saxónico Beda-o-Venerável (675-735), ou ainda Paulo Diácono (740-801, um lombardo que
foi monge em Monte Cassino mas que passou pela corte franca ao tempo de Carlos Magno e que escreveu
obras escolares e gramaticais, para além de textos em verso, muito úteis na época) nos deixaram escritos
que ajudam a compreender o Ocidente da Alta Idade Média. Do mesmo modo, as histórias de milagres e
as Vidas de Santos (p.ex., a vida de Géraud d’Aurillac, escrita no séc. X pelo abade Odão de Cluny), que
em geral são biografias douradas de santos heróis que eram nobres com formação militar (cf. a “Passio
Leudegarii”, sobre o bispo de Autun, Leodegar, c. 662-677/79; ou a “Vita Genovefae”, com detalhes
sobre o cerco de Paris pelos Francos, após 486) são fontes importantes, que o historiador não deve
desprezar. A par delas, devemos colocar a célebre Vida de Carlos Magno (uma biografia do fundador do
Império Carolíngio, escrita por Eginhardo no reinado do seu sucessor, Luís-o-Pio) e, claro, os
documentos administrativos respeitantes à época: entre 600 e 750, apenas 40 diplomas régios e 10 cartas
privadas; com Carlos Magno (768-814), umas 56 capitulares (ou ‘decretos régios’). Há ainda os Anais do
Reino nos Francos e os Anais do Reino dos Francos Revistos (talvez pelo mesmo Eginhardo) e, claro,
algumas fontes arqueológicas, como p.ex. túmulos (embora se trate aqui mais de uma luta por prestígio e
poder, i.é, de meros símbolos de riqueza e autoridade).
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Por exemplo, a norte do rio Loire, que quase divide a Gália ao meio (no sentido norte-sul), os invasores
impuseram mais facilmente a sua identidade e os nomes germânicos predominavam, enquanto nos
territórios a sul desse rio os Francos eram muito pouco numerosos e tenderam a adotar os hábitos
romanos, o latim e os nomes romanos.

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estilo de vida aristocrático assente na acumulação de riqueza através da posse da terra, na
prática da caça e da guerra, nos banquetes e na distribuição de bens obtidos em guerras privadas,
na construção de redes de fiéis e obrigados, enfim, na glória de ‘ser nobre’.
Este ‘código social’ consagrava, além disso, o prolongamento da oposição entre homens
livres e não-livres herdada do Baixo Império Romano, mediante a continuação da existência de
escravos (ainda que numa condição um pouco mais favorável), a par de colonos (ou tenentes) e
de camponeses livres que detinham a chamada ‘propriedade alodial’.
Do ponto de vista da educação e da cultura, até cerca de 650 temos registo de alguma
sobrevivência da cultura antiga (p. ex., das artes liberais, ensinadas nas escolas do gramático e
do retórico), isto sem prejuízo de um claro desaparecimento do grego e da filosofia, mau-grado
a exceção protagonizada por Boécio, o autor da “Consolação da Filosofia” (uma obra de enorme
prestígio até aos finais da Idade Média, escrita na prisão imediatamente antes da execução do
seu autor, em 524, no contexto de uma alegada conspiração contra o rei ostrogodo, Teodorico).
Aos poucos, porém, foi-se afirmando uma cultura monástica pouco propensa ao estudo
convencional, de tal maneira que um notável bispo de Arles, Cesário (470-543), grande
promotor do monaquismo, comparava as sete artes liberais (gramática, retórica, dialéctica;
aritmética, astronomia, geometria e música) às sete pragas do Egito, ao mesmo tempo que
Sidónio Apolinário (poeta e perfeito de Roma em 468), homem de formação erudita da
Antiguidade Tardia, decidia, ao tornar-se bispo, pôr de lado a leitura dos autores profanos…
É verdade que, com os Carolíngios, em especial na corte de Carlos Magno (768-814)
assistiremos a uma certa ressurgência da cultura antiga tradicional, mas foi um fenómeno
pontual e sem grande continuidade, resultado do empenho do imperador na contratação de
monges letrados de grande valor, na sua maioria anglo-saxónicos e lombardos. No seu conjunto,
foi a cultura bárbara que dominou na Gália a partir de meados do séc. VII, uma cultura em que a
ourivesaria (e em particular o cloisonné) desempenhou um papel importante e onde a escrita,
reservada a uma elite, adquiriu uma veneração quase mágica. De alguma forma, a produção dos
manuscritos iluminados nos mosteiros do centro e norte da Gália (como em Corbie ou em
Luxeuil) simboliza esse encontro entre o decorativo e o acto escrito, que, sobretudo nos meios
políticos e culturais mais favorecidos, conservara um certo prestígio.

Do ponto de vista do ambiente económico e da capacidade produtiva, também podemos


identificar algumas mudanças relevantes, na transição do mundo romano para o mundo bárbaro
dos inícios da Idade Média. É certo que, hoje em dia, não se dá grande crédito à velha tese de
Henri Pirenne sobre o declínio acentuado do comércio após a penetração dos Árabes no
Ocidente (a partir do sécs. VII); sabemos já que o Mediterrâneo nunca chegou a tornar-se num
‘lago muçulmano’ e nunca se viu inteiramente privado de trocas. No entanto, não podemos
deixar de acentuar o quadro desfavorável e primitivo da economia dos primeiros séculos da Alta

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Idade Média e, consequentemente, a vida difícil que os Bárbaros (que, note-se bem,
representavam apenas 2 a 3% da população da Gália!) tiveram no seu seio.
Os séculos V a VII foram um tempo de fome e de doença, com a peste a grassar no séc.
VI, nas regiões mediterrânicas e em especial no sul da Gália. A agricultura era ainda muito
limitada, predominando a cultura de cereais e obtendo-se rendimentos muito fracos devido à
ausência quase total de charruas, ao reduzido número de moinhos e à escassez dos instrumentos
em ferro; os arados eram ainda muito frustres (geralmente um simples eixo de bois munido de
uma relha) e, neste quadro, a criação de animais acabava por adquirir uma grande importância.
Ao mesmo tempo, registaram-se alguns avanços do mar, as chamadas ‘transgressões marinhas’
(com movimentos costeiros ligados às oscilações climatéricas, mas também às modificações do
solo e do tapete vegetal), enquanto o curso caprichoso dos rios contribuiu para a má drenagem
de algumas terras. O clima também não ajudou, permanecendo frio e húmido, pelo menos até ao
séc. VII.
Neste contexto, as cidades eram ainda muito pequenas, com uma média de 1.500
habitantes (Paris, com cerca de 20.000, constituía uma exceção), e dependiam muito do clero
(das catedrais, das basílicas, dos mosteiros e das peregrinações). De algum modo, pode dizer-se
que o bispo era o protetor e o ‘guia’ das cidades, que eram sobretudo centros de artesanato e de
trocas ainda relativamente incipientes. Não se sabe bem quanto terão aparecido as ‘aldeias’, pois
não existiu uma continuidade sistemática entre os lugares habitados no período do Império
Romano e na Idade Média; no entanto, Claude Gauvard admite que elas tenham nascido a meio
caminho entre aquilo que é defendido por K. F. Werner (logo no séc. V) e por Robert Fossier
(apenas no séc. X).
Entretanto, no decurso do séc. VII, é provável que se tenha iniciado já alguma
recuperação económica, em especial na Gália do Norte e do Centro. Há mesmo quem (como
Claude Gauvard) situe já nesta época o início de um take off, com algum crescimento
demográfico, o início dos arroteamentos, uma certa melhoria do clima (com aquecimento
progressivo, na sequência da ‘segunda transgressão dunquerquiana’) e o consequente recuo dos
pântanos. Isto deve ter estimulado o ressurgimento de um comércio mais ativo, agora
localizado, não no Mediterrâneo, mas sim na Europa do Norte: na Frísia (os Frisões foram
excelentes mercadores), no Mar do Norte e nas regiões entre os rios Loire e Reno. Nesta altura,
passou-se também do papiro ao pergaminho, enquanto a moeda de ouro começou a dar lugar ao
‘denário’ de prata. Difundiram-se as habitações em pedra e as tradicionais necrópoles
começaram a dar lugar aos primitivos cemitérios, geralmente situados nas proximidades das
igrejas paroquiais.
Enquanto isso, a Gália tornara-se, definitivamente, na ‘casa dos Francos’, ajudando a
tornar irreversível a afirmação dos reinos bárbaros no Ocidente europeu. Claro que as fronteiras
eram ainda vagas e instáveis, devido à instalação de novos povos, às conquistas (p.ex., as de

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Clóvis) e às partilhas sucessórias. Mas, com os Carolíngios, dar-se-ia a consolidação territorial,
que – devido à construção do ‘Império Carolíngio’ – acabaria aliás por conduzir à integração do
‘reino dos Francos’ num mundo político muito alargado, como veremos mais adiante.
Certo é que o eixo civilizacional se deslocara do Mediterrâneo para a região do Reno, a
que devemos associar Aix-la-Chapelle (a futura capital carolíngia), o Mar do Norte e o Mar
Báltico. Foi aqui que a história do Ocidente teve o seu centro de gravidade entre os finais do
séc. V e os finais do séc. IX, e não restam dúvidas de que três personagens tiveram uma
importância muito especial nessa construção: Clóvis, Carlos Martel e Carlos Magno,
curiosamente o primeiro e o último de algum modo ligados ao passado romano – Clóvis foi
‘cônsul’ e ‘augusto’, e Carlos Magno ‘imperador’ e ‘augusto’… Com eles, graças a eles e
através deles, a ‘França’ da Alta Idade Média ficaria para sempre marcada por um triplo selo:
Romanidade, Germanidade e Cristianismo…

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2. A unificação da Gália sob os Merovíngios

2.1. A Gália à época da ascensão de Clóvis:


Existem diversas explicações para a origem dos Francos, umas de caráter mítico, outras
assentes na realidade histórica. Entre as primeiras incluem-se as teses sobre a alegada
proveniência dos Francos do reino mítico da Sicâmbria (nos planaltos da Panónia, atual
Hungria), a que se teria seguido uma instalação nos pântanos nórdicos da Toxandria, na margem
esquerda do rio Mosa (no Norte da Gália). Também se defendeu que os Francos descenderiam
da ilustre cidade de Tróia, tendo sido levados para ocidente, até às margens do Reno, por um
parente do rei Príamo, chamado ‘Francion’, que seria, portanto, o seu antepassado epónimo4.
Muito mais verosímil é a existência de testemunhos da presença dos Francos na Europa
do Norte desde o séc. III. Da região das Ardennes (no nordeste da França, próximo da
Champagne) passaram depois para as regiões pantanosas da foz do Reno, nos confins da Gália
do Norte. Formavam então um conjunto de tribos ‘ousadas’ e ‘livres’ (Sicambros, Sálios, etc.) e
ficaram ligados ao Império Romano do Ocidente após a derrota sofrida às mãos de Juliano, em
358. Tornaram-se então “lètes”, i.é, uma espécie de camponeses-soldados, instalados em terras
cedidas pelos Romanos a título hereditário, nas proximidades da fronteira romana, com
obrigação de integrar o exército imperial em caso de ataque.
Como seria de esperar, o serviço militar acabou por romanizar bastante os Francos. Em
meados do séc. V, passaram de “lètes” a “federados” e foram formalmente integrados no
Império por meio de um tratado. Nessa época, apoiaram Flávio Écio, general e patrício romano,
a norte do Loire, contra os Hunos (célebre batalha dos Campos Cataláunicos, em 451, na
região de Châlons-sur-Marne, no nordeste da Gália). Os Francos progrediram então para sul,
formando dois grandes grupos: os Francos Renanos, a leste, em torno de Colónia, com o
estatuto de federados e compondo um só reino; e os Francos Sálios, a norte do rio Somme, com
o estatuto de federados a partir de 438 mas formando vários pequenos reinos guerreiros, cujos
chefes eram eleitos em vida do seu antecessor.
Entre as principais personalidades dos Francos Sálios, no séc. V, incluem-se Clodion,
Meroveu (que se dizia ser deus do mar) e Childerico (o único cuja existência real está
comprovada). Foi justamente este Childerico que levou a cabo o alargamento do pequeno reino
dos Francos Sálios situado na região de Tournai (na atual Bélgica), que dominava por volta do
ano 460, até ao rio Somme (curso de água que passa em Amiens, entre Cambrai e Rouen).
Childerico transmitiria este território a seu filho Clóvis, em 481. Tratava-se de um reino
simultaneamente bárbaro (p.ex., o monarca era inumado com as suas armas e cavalos, um

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Epónimo: personagem de quem a cidade, na Grécia, adotava o nome.

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costume próprio de um reino militar) e romano (a veste fúnebre era de cor púrpura, fechada por
uma fíbula cruciforme em ouro, havia um anel para selar os actos, Childerico ostentava o título
de “Childericus rex”, etc.). Talvez Childerico tenha mesmo recebido o seu poder dos Romanos,
de uma forma oficial, mas não é possível afirmar isto com segurança.
Devemos destacar também o apoio concedido por Childerico a Egídio, um general
romano que esculpiu para si próprio uma espécie de reino no desaparecido Império Romano do
Ocidente, tendo lutado a seu lado contra os Visigodos. Isto ajuda a compreender a entrega
oficial da administração da província de Reims a Childerico. Em síntese, tratou-se de um chefe
federado bem sucedido, rico e com prestígio internacional, que morreu em 481, numa altura em
que os Francos eram ainda muito débeis face aos outros reinos bárbaros da Gália. Que outros
reinos? Nesta altura, na Gália, os cinco mais fortes concorrentes eram os seguintes:
i) os Francos dominando a norte do rio Somme, em zona de forte implantação
germânica. Porém, como vimos, nesta época ainda não estavam unidos;
ii) o reino de Siágrio (o filho de Egídio, que sucedeu ao pai como magister
militum, i.é, como ‘mestre das milícias’ ou ‘chefe’ do exército romano da
Gália do Norte, com comando em Soissons), situado entre o rios Somme e
Loire, onde havia ainda poucos Germanos instalados. Siágrio detinha um
género de reino independente, que devia sobretudo a sua força a uma
guarda militar pessoal composta por Bárbaros. Segundo Patrick Geary,
Siágrio era um “rei romano barbarizado”;
iii) os Visigodos, entre o rio Loire e o sul de Espanha. Formavam um reino
poderoso, dirigido por Eurico (466-484) e, a seguir, por Alarico II (484-
507);
iv) os Burgúndios, nos vales do Saône e do Ródano. O seu rei, à data da
ascensão de Clóvis, era Gondebaud (480-516).
v) e os Alamanos, recentemente entrados na Gália, ocupando o que é hoje a
Alsácia e a Lorena, tal como o sudoeste da Alemanha.

Quanto aos ‘concorrentes menores’, basta dizer que, mais a oeste, os Bretões eram
demasiado fracos para entrar na competição territorial.
Vale também a pena sublinhar a diversidade religiosa existente no seio destes povos:
alguns eram católicos (os galo-romanos, que obviamente subsistiam em todo o lado), outros
eram arianos (caso dos Visigodos e Burgúndios), outros ainda eram pagãos (como os
Alamanos e os Francos).
Convém ainda recordar a presença, no norte da Península Itálica, dos ‘vizinhos’
Ostrogodos, chefiados por Teodorico, que eliminou Odoacro em 493. É que os Ostrogodos
tinham a ambição de serem os continuadores do Império Romano do Ocidente (também por

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isso, Teodorico, que estabelecera a sua capital em Ravena, sendo um chefe bárbaro,
protegeu Cassiodoro e, durante algum tempo, o filósofo Boécio). Pelo seu lado, os
Visigodos e os Francos almejavam controlar o Mediterrâneo, o que, no caso dos Francos,
implicava conseguir primeiro aceder a esse velho ‘lago romano’. Ora, é justamente dessa
expansão para sul que vamos falar já a seguir.

2.2. O reinado de Clóvis (481-511) – o grande construtor:


É difícil estabelecer uma cronologia rigorosa para os diversos aspetos relativos ao
reinado de Clóvis, uma vez que as fontes datam os acontecimentos com intervalos amplos
(p.ex., de cinco em cinco anos). Mas sabemos que deve ter subido ao trono de um dos ramos
dos Francos Sálios logo aos 15 anos de idade. Nessa altura, passou a dispor do “mund” (i.é,
do poder mágico próprio do chefe guerreiro) e a ostentar a cabeleira comprida que, entre os
bárbaros, constituía o símbolo do poder. O nome “Clóvis” (ou “Clodevicus”, que depois deu
“Luís”) significava “combate de glória”, e o primeiro rei merovíngio bem fez por merecê-lo.
Porém, ele não herdou apenas os costumes francos, mas também – como é natural dado o
percurso do seu pai Childerico e a ligação deste a Egídio – a administração fiscal e judicial
de Roma.
Como já sugerimos, o grande projeto político de Clóvis era … rumar ao sul. Para isso,
começou por construir uma aliança com os Francos Renanos, que na altura se encontravam
pressionados pelos Alamanos, aliança essa que seria selada pelo casamento do próprio
Clóvis com uma princesa renana. Depois, Clóvis conseguiu impor-se (não se sabe bem por
que forma exatamente) no seio dos restantes reis dos Francos Sálios (nomeadamente entre
os de Cambrai). Com isso, obteve a supremacia na chamada “Bélgica segunda” (região de
Reims, a nordeste de Paris) e o apoio do próprio bispo de Reims. Depois destes primeiros
sucessos, Clóvis ficou com as mãos livres para conduzir a sua política de expansão
territorial a sul do rio Somme e enfrentar Siágrio, que conseguiu derrotar logo em 486,
numa batalha travada perto de Soissons (na atual Picardia).
Com este sucesso, que reforçou a sua imagem de chefe guerreiro e temido, e
beneficiando de uma ligação precoce ao episcopado, Clóvis logrou estender a fronteira até
ao rio Loire, tendo conquistado a região oeste (a Armórica), entre os rios Sena e Loire, até
494. Ficava assim face a face com os Visigodos, que como já sabemos eram arianos, facto
que lhe valeu o reforço do apoio clerical. Por esta época, Clóvis negociou alianças com os
poderes dominantes no norte de Itália: primeiro com Odoacro e, depois, com Teodorico, rei
dos Ostrogodos. E terá também requerido o batismo católico e suscitado a admiração do
basileus (nome dado ao imperador bizantino) Anastácio, que via no líder dos Francos Sálios
um potencial apoiante no Mediterrâneo oriental, contra Teodorico e a heresia ariana.

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Em 507, Clóvis conseguiria um novo grande sucesso militar, ao vencer os Visigodos na
batalha de Vouillé, nas proximidades de Poitiers. Na sequência desta vitória, os Francos
(Sálios e Renanos) aliaram-se aos Burgúndios para fazer a guerra contra os Visigodos de
Alarico II, curiosamente o mesmo chefe bárbaro que, em 502, no decurso dos combates
entrecortados por períodos de tréguas que haviam oposto os Francos aos Visigodos antes da
batalha decisiva de Vouillé, havia entregue Siágrio (que encontrara refúgio em Toulouse,
junto dos Visigodos, depois da derrota de Soissons) nas mãos de Clóvis…
Esta onda de sucessos permitiu ainda a Clóvis as conquistas de Bordéus (a grande
capital da Aquitânia, junto ao rio Garonne) e de Toulouse (importante cidade visigoda, já
bem próxima do Mediterrâneo). Com isto, a situação político-militar no Midi (o Sul de
França) conheceu alterações importantes, tanto mais que, em 508, os Ostrogodos de
Teodorico conseguiram recuperar a Provença (no sudeste da atual França). Ainda assim,
todo o baixo Languedoc (ou seja, a região central do extremo sul da França, entre Narbonne
e Arles) permanecia nas mãos dos Visigodos, formando a chamada Septimânia.
Desta época data também o célebre episódio da peregrinação de Clóvis à cidade de
Tours, onde recebeu as insígnias consulares que lhe foram enviadas por Anastácio, o
imperador romano do Oriente, num gesto de grande significado simbólico e que legitimava
o poder do grande rei dos Francos na Gália. Clóvis pôde, assim, entrar triunfalmente na
cidade, à maneira dos Romanos, e foi aclamado pelo povo como “cônsul” e “augusto”.
Estreitavam-se, portanto, os laços com o passado…
Em 509, apenas dois anos antes do seu decesso, Clóvis conseguiria ainda eliminar os
pequenos reinos sálicos que subsistiam e impor-se em definitivo aos seus pares, sendo eleito
como rei de todos os Francos, incluindo dos Francos Renanos. Resta referir um outro feito
decisivo, ocorrido na fronteira nordeste, mas para o qual a cronologia é especialmente
incerta: a vitória de Clóvis sobre os Alamanos na batalha de Tolbiac, ferida em 496 ou em
506, nas proximidades de Colónia.
Os historiadores têm-se também interrogado acerca do significado do batismo de
Clóvis, que parece ter sido decisivo para o sucesso da sua carreira. Tratar-se-ia de uma
tradição familiar? De fascínio pelo fausto litúrgico? Sabemos que o segundo casamento de
Clóvis o uniu a uma princesa burgúndia, mas católica, chamada Clotilde. E há quem
defenda que Clóvis, antes de se tornar católico, teria sido ariano, mas não parece provável.
Mais razoável será relacionar o seu batismo com o casamento com Clotilde, ainda que a
reconstrução histórica seja muito difícil de concretizar.
O batismo terá tido lugar no Natal, na catedral de Reims (construída por Valentiniano I,
no séc. IV), em ano desconhecido. Provavelmente com alguma preparação prévia (o que
terá tornado Clóvis catecúmeno, à maneira cristã coeva) e com possível influência da rainha
Clotilde. O ritual praticado deve ter consistido na imersão por três vezes do líder franco

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numa cuba a que se acedia através de três degraus (o número ‘três’ recordava, obviamente, a
Santíssima Trindade), seguindo-se a unção com o creme e a missa bispal. Clóvis terá
abandonado então os seus amuletos de trazer ao pescoço (as insígnias características do
paganismo).
A conversão de Clóvis teve o efeito de arrastar a conversão do conjunto dos Francos. Na
Burgúndia, o rei Gondebaud resistiu, mas o seu filho Sigismundo converteu-se cerca de
505, levando o seu povo a fazer o mesmo após a sua ascensão ao trono, em 516. Entretanto,
o Arianismo subsistiu na Septimânia e na Provença, que escapavam ainda à dominação
franca, embora temperado pela ação do bispo de Arles, Cesário, homem de origem
burgúndia e formado no mosteiro de Lérins, um dos primeiros cenóbios de todo o Ocidente
medieval. Em 537, dar-se-ia a conversão da Provença, finalmente ocupada pelos Francos, e,
em 589, a conversão do rei visigodo, Recaredo, e, por arrastamento, a conversão do
conjunto da Septimânia. Diga-se, no entanto, que subsistia ainda muito sincretismo
religioso, ou seja, muita mistura de cultos religiosos, com a prática comum da deposição de
oferendas e outros rituais caracteristicamente pagãos.

2.3. Os primeiros sucessores de Clóvis e o legado do fundador:


Clóvis, falecido em 511, foi um verdadeiro ‘fundador’ e legou aos seus descendentes
um poder político cuja natureza era já bem diferente daquela que herdara do seu pai
Childerico. Devemos, no entanto, frisar que os sucessores de Clóvis, isto é, os “reis dos
Francos”, administravam diretamente apenas 2% da Gália, estando sobretudo instalados ao
norte do rio Sena! Para controlar as regiões conquistadas ao sul do Sena, enviavam-se
administradores, condes e outros delegados do rei.
Convém também ter presente a existência de uma outra distinção, de natureza jurídica: a
norte do Loire prevalecia ainda, numa primeira fase, a Lei Sálica (de tradição bárbara),
enquanto, a sul do Loire, a marca visigoda se fazia sentir através do Breviário de Alarico
(muito mais próximo da tradição jurídica romana). Para compensar esta divisão, havia agora
a unidade religiosa, que acabou por se tornar indispensável. Neste contexto, separaram-se
mais claramente os Judeus dos Cristãos, e o poder dos bispos cresceu de tal maneira que o
rei Chilperico I (561-584) se queixava de que “ninguém reina mais do que os bispos”…
Clóvis, o primeiro monarca merovíngio, foi senhor de um território que, grosso modo,
se estendia do Reno aos Pirenéus, mas desta geografia devemos excetuar a presença dos
Bascos (a sudoeste), a dos Bretões (a oeste: nos reinos celtas da Armórica, que se viriam a
tornar na ‘Bretanha’ francesa), a dos Frisões (mais a norte, no delta do Reno) e, claro, a
presença (muito mais reduzida, mas ainda forte) dos Visigodos (a sul, na Septimânia).

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Coube aos filhos de Clóvis (Thierry I5, Clodomiro, Childeberto I e Clotário I) tentar
alargar este território, o que efetivamente conseguiram fazer, sobretudo ao anexarem o reino
dos Burgúndios (em 534, após várias tentativas) e a Provença (que lhes foi vendida em
537). Entretanto, Paris, a capital de Clóvis, afirmou-se como a grande cidade dos Francos,
devido à sua posição estratégica. Clóvis quis, aliás, ser enterrado aqui, com Clotilde, e para
o efeito imitou a capela imperial de Constantino (em Bizâncio) e a de Teodorico (em
Ravena).
A primeira partilha do reino franco teve lugar em 511, à morte de Clóvis, e cada um dos
seus filhos recebeu um território:
 Thierry [Teodorico] ficou com os territórios [‘belgas’] de origem dos Francos,
mais a Auvergne e a Champagne, tendo situado a sua capital em Reims;
 a Clodomiro coube um território com capital em Orleães;
 Childeberto I recebeu um reino com capital em Paris, junto ao rio Loire;
 e Clotário I foi estabelecido numa posição intermédia, com capital em
Soissons, a sede do antigo reino galo-romano de Siágrio.

Curiosamente, todos residiam entre o rio Loire e o rio Reno (região a que se chamava
“Francia”) e todos os filhos de Clóvis se intitulavam “rei dos Francos”. É que o regnum
Francorum era divisível (pois o património era deixado em herança aos filhos do monarca
defunto, cada qual recebendo o ‘seu’ reino como um bem patrimonial), mas, ao mesmo
tempo, era uno, já que subsistia a ideia de um conjunto único! O poder régio não era,
portanto, entendido como simplesmente territorial.
Esta conciliação um pouco bizarra era possibilitada, por um lado, pelo princípio
dinástico (uma vez que eram os Grandes que escolhiam o rei, mas faziam-no de entre os
descendentes masculinos do rei anterior) e, por outro, pelos estreitos laços de sangue que
uniam os vários monarcas irmãos. O resultado disto, segundo Claude Gauvard, era um
“equilíbrio harmonioso”, expresso, p.ex., na grande proximidade geográfica das várias
capitais. Não havia, portanto, anarquia, mas sim um método de governo entre vários homens
distintos ligados entre si pelo sangue. A unidade do ‘regnum’ fundava-se, pois, no
parentesco e, por isso, dependia do bom entendimento entre os diversos monarcas-irmãos.
Dentro deste quadro político, assistiu-se, durante o séc. VI, à prossecução da expansão
franca, agora também para leste. Neste particular, podemos identificar sete movimentos
principais:
i) o protagonizado por Thierry (primeiro sozinho, depois com Childeberto e com
Clotário I) contra os Turíngios. Em 531, travou uma batalha decisiva junto ao

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Ou Teodorico I, se assim o preferirmos. Este era filho de Clóvis e da sua primeira mulher (a princesa
renana), enquanto os outros três (Clodomiro, Childeberto e Clotário) eram filhos de Clotilde.

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rio Unstrut e o rei Hermanfredo da Turíngia teve de começar a pagar um
tributo (tendo sido assassinado em 534). Os Saxões (velhos adversários dos
Turíngios) ajudaram os Francos nesta batalha e, por isso, foram recompensados
com uma doação de terras a norte do rio Unstrut;
ii) o interpretado por Teodoberto (o filho de Thierry, rei desde 534) contra a
Alamânia e a Baviera (em 539);
iii) a luta dos reis francos, mais a norte (com o apoio dos reis ingleses) contra os
Saxões, com o fito de lhes impor um tributo;
iv) a realização, a sul da Gália, de expedições contra os Visigodos. Em 531-532,
Thierry e Childeberto conquistaram a região entre o rio Garona e os Pirenéus (a
“Novempopulana”), dominada pelos Visigodos, que assim perderam a sua
última zona de influência na Gália (para além da Septimânia, a tal pequena
região costeira do Mediterrâneo, entre Narbonne e Arles);
v) a tentativa de Teodoberto de tirar partido da guerra na Itália entre os Ostrogodos
e os Bizantinos (famoso general Narsés, m. 574), no que configurou o ponto
mais alto da expansão merovíngia. No entanto, depois da morte de Teodoberto,
em 547, o seu filho Teodobaldo (Reims, 547/8-555) foi forçado a retirar de
Itália;
vi) os ataques contra a Burgúndia (região atraente, no sul do território de Clóvis),
desde os anos 520. Em 523, o rei burgúndio, Sigismundo, foi morto, mas foi
rapidamente substituído pelo seu irmão, o eficiente Godomar. Em 524, os
Francos e os Burgúndios travaram a batalha de Vézeronce, perto de Viena, na
qual morreu Clodomiro, um dos filhos de Clóvis. Finalmente, em 532-534, os
irmãos Clotário e Childeberto reuniram forças e conseguiram conquistar toda a
Burgúndia e matar o rei Godomar;
vii) por fim, numa cronologia um pouco mais ampla, salientemos a luta paciente dos
herdeiros de Clóvis contra três ameaças: a dos Lombardos, os quais, vindos da
Panónia, travaram a expansão franca e bizantina e se espalharam a partir de
Pavia; a dos Ávaros, um povo de origem mongol, vindo do Mar Cáspio e que,
sob pressão dos Turcos, se instalou na Panónia, no lugar dos Lombardos, e,
durante a segunda metade do séc. VI, dominou os Eslavos, pondo em risco a
Itália e também a fronteira oriental dos Francos; e ainda a ameaça dos Eslavos,
os quais, com a ajuda de um antigo mercador franco (Samo), se libertaram do
jugo dos Ávaros, tentaram cercar Constantinopla em 626, conquistaram a
Boémia e a Morávia e ameaçaram a Itália do Norte, sendo travados em 631 por
Dagoberto I (descendente de Clotário I) aliado aos Lombardos e beneficiando
do apoio do basileus Heráclio.

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A observação deste simples quadro-resumo basta para confirmar as ambições políticas
externas dos primeiros Merovíngios e para, nesse sentido, os considerar como legítimos
continuadores do projeto de Clóvis. Entretanto, dois perigos ameaçavam a harmonia do sistema
político merovíngio: a ambição pessoal dos monarcas-irmãos; e a eventual superioridade de um
dos territórios sobre os outros…
Thierry I (511-534) e seu filho Teodoberto I (534-548) parecem ter começado por levar
vantagem e este último até chegou a cunhar uma moeda de ouro, rival da de Bizâncio. Porém, o
ramo mais velho dos filhos de Clóvis desapareceria com a morte de Teodobaldo (filho de
Teodoberto I), logo em 555. Nessa altura, Clotário I (511-561) aproveitou para usurpar a
herança dos seus sobrinhos e reinou sozinho entre 558 (data da morte de Childeberto I) e 561,
ano em que faleceu6.
À morte de Clotário I, houve lugar a uma nova partilha do reino franco, entre os quatro
filhos deste monarca. O procedimento adotado em 561 inspirou-se no que tinha sido utilizado
50 anos antes, na altura da morte de Clóvis, pelo que o reino dos Francos foi dividido entre os
quatro filhos de Clotário I: Sigeberto I (561-575, cujo reino teve capital em Reims); Gontran
(561-592, com capital em Orleães); Cariberto (561-567, com capital em Paris); e Chilperico I
(561-584, com capital em Soissons).
Em 567, Cariberto, que detinha a parte mais ocidental do reino dos Francos, morreu sem
deixar descendentes, passando a restar apenas três dos quatro filhos de Clotário I. Ora, estes três
monarcas dividiram entre si o território que pertencera a Cariberto e ficaram a dominar três
grandes regiões, também chamadas “pátrias”:
i) a Austrásia (a Frância renana, a Champagne e a Aquitânia), sob a tutela de
Sigeberto;
ii) a Nêustria (a região oeste, que compreendia a zona de Tournai, a do Mans, a
Normandia e a Île-de-France), sob o comando de Chilperico I;
iii) e a Burgúndia (mais ao centro, formada pelo antigo reino dos Burgúndios e pelo
reino de Orleães), sob a liderança de Gontran.

De certa maneira, isto representava um regresso ao passado, à época dos Francos Renanos,
dos Francos Sálios e dos Burgúndios! Contudo, esta divisão do “regnum Francorum” em três
grandes regiões com identidade própria e já claramente diferenciadas, não estava ainda
consumada e Paris (a cidade de referência do falecido Cariberto) até foi, com alguma lógica

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Recorde-se que Clodomiro fora o primeiro dos filhos de Clóvis a falecer, logo em 524, na já referida
batalha de Vézeronce, tendo Childeberto e Clotário aproveitado então para assassinar os dois filhos do
irmão falecido e para repartir entre si a parte que coubera a Clodomiro. Deste modo, Clotário I ficou
sozinho a partir de 558 e tornou-se no único “rex Francorum” durante os três últimos anos da sua vida.

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(política e simbólica) declarada como sendo a ‘capital comum’ das três ‘pátrias’ e dos três
governantes.
No entanto, este denominador comum não foi suficiente para impedir a explosão da “faida”,
assistindo-se a cerca de 30 anos de lutas fratricidas entre os filhos sobrevivos de Clotário I, com
um envolvimento peculiar das respetivas esposas e filhos. Neste quadro, destaque-se o facto de
Sigeberto (a quem calhara em sorte a parte mais oriental do território que Clotário I dominara)
ter estado quase sempre em guerra com o seu irmão Chiperico I, rei da Nêustria. Na verdade, o
antagonismo entre a Austrásia e a Nêustria tornou-se numa constante ao longo do período em
apreço.
Em 575, após ter conseguido obter superioridade militar sobre Chilperico I, Sigeberto I foi
inesperadamente assassinado, possivelmente por instigação de Fredegunda, a terceira mulher de
Chilperico I, já acusada pela sua rival Brunilda (esposa de Sigeberto I) de ter mandado matar a
segunda mulher de Chilperico I7…
Deste modo, entre 575 e 584, Chilperico I pôde desfrutar de uma certa superioridade militar
e política, e aproveitou para forjar uma aliança entre a ‘sua’ Nêustria e a Austrásia, contra o
irmão Gontran, que governava a Burgúndia. Porém, o plano – que teria tornado Chilperico I
dono e senhor das três grandes regiões ou ‘pátrias’ – não resultou, pois em 584 Chilperico I foi,
por sua vez, assassinado! Tratou-se, provavelmente, de um ato de retaliação de Brunilda, que
assim terá vingado a morte do marido Sigeberto I, nove anos antes.
Com isto, Gontran, o único filho sobrevivo de Clotário I, sem se ter metido em grandes
polémicas e disputas com os seus irmãos acabou por se tornar, a partir de 584, na figura
dominante na Gália merovíngia. Curiosamente, em 577, Gontran adotara como seu filho o
sobrinho Childeberto II, que à morte do pai (Sigeberto I da Austrásia, em 575) contava apenas
cinco anos de idade. Tratou-se de uma decisão política inteligente, pois isso contribuiu
fortemente para preservar o reino da Austrásia e, à morte de Chilperico I (em 584), veio a
facilitar uma governação mais consensual de Gontran sobre as três grandes regiões merovíngias
até à data da sua morte, em 592.
É essencial sublinhar que, durante este período, se registou o crescimento de influentes
grupos de nobres de elevada condição, muitas vezes com a figura do prefeito do palácio à
cabeça. Estes grupos forjavam alianças, pelo que os reis já não eram os únicos players em
campo. Por exemplo, alguns nobres austrasianos e burgúndios tinham favorecido a citada
adoção de Childeberto II por Gontran, esperando desse modo abrir caminho a uma possível
aliança entre as suas duas regiões contra a Nêustria de Chilperico I… Nessa época, na Austrásia,
dada a menoridade de Childerico II à morte do pai Sigeberto, era o prefeito do palácio, Gogo,
quem governava, juntamente com a viúva Brunilda. Entre 581 (data da morte de Gogo) e 583,

7
Galeswintha, que era irmã de Brunilda.

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tivera também lugar uma nova tentativa de coligação dos nobres, mas desta vez de austrasianos
e neustrianos contra a Burgúndia de Gontran. Isso deve ter-se ficado a dever ao facto de, na
Austrásia, haver então um novo prefeito, chamado Wandaleno, que era favorável a Chilperico I
da Nêustria. Porém, esta coligação não chegou a vingar, uma vez que o minor populus do
exército austrasiano se revoltou contra ela. Assim se refez a aliança entre a Austrásia e a
Burgúndia contra a Nêustria, aliança essa que acabaria por se extinguir naturalmente com o já
referido assassinato de Chilperico I, em 584.
Tudo isto serve para demonstrar duas coisas: primeiro, a rivalidade terrível entre as três
grandes ‘pátrias’ constituídas na sequência do acerto de partilhas entre os descendentes de
Clotário I que se seguiu à morte do infeliz Cariberto; segundo, a força das conspirações da
nobreza e o poder dos prefeitos do palácio, uns e outros ultrapassando muitas vezes os
respetivos ‘reis’ e colocando-os perante dilemas políticos de difícil resolução.
Entretanto, no plano da política externa, vale a pena recordar que, entre 584 e 588, Gontran
tentou conquistar a Septimânia aos Visigodos, alegando como pretexto o desejo de vingar o
assassinato de uma sobrinha (filha do seu irmão Sigeberto I) que casara com um filho do rei
Visigodo. No entanto, esta campanha militar de Gontran na zona central do sul da Gália não foi
bem sucedida. Também o jovem rei austrasiano, Childeberto II (o menino que Gontran adotara),
fracassou na guerra levada a cabo contra os Lombardos, no Norte da Itália, entre 588 e 590. No
meio destes insucessos, há, ainda assim, um êxito a salientar: em 585, em Saint-Bertrand-de-
Comminges, na Gasconha (sudoeste da Gália), Gontran conseguiu livrar-se de um perigoso
rival – Gundovaldo, um homem que dizia ser filho ilegítimo de Clotário I e que vivera na corte
bizantina. Ao que parece, Gundovaldo tinha pretensões a controlar o jovem Clotário II, um filho
póstumo de Chilperico I (e de Fredegunda).
Como seria de esperar, com a morte de Gontran, em 592, rebentaram lutas severas nos
diversos reinos merovíngios, em especial na Austrásia. Childeberto II, claro, tentou tirar partido
da morte do tio e pai adotivo para se tornar rei da Burgúndia, título que passou a acumular com
o de rei da Austrásia. Porém, morreu muito novo, em 596 (tinha apenas 26 anos), e, por isso, foi
a sua mãe Brunilda (a resistente viúva de Sigeberto I) quem assumiu a governação, em nome
dos seus dois netos, Teodoberto II da Austrásia e Thierry II da Burgúndia.
Em 600, estes dois jovens uniram-se e venceram com estrondo os Neustrianos de Clotário II
na batalha de Dornelles. Porém, em 605, a guerra estalou entre os dois jovens irmãos,
certamente por instigação de grupos de nobres instalados nas duas cortes (a da Austrásia, em
Metz, e a da Burgúndia, em Châlons). Desfazia-se assim a velha aliança entre a Austrásia e a
Burgúndia. Entre 610 e 612, Thierry II da Burgúndia ganhou vantagem e conseguiu matar o
irmão Teodoberto II da Austrásia e o sobrinho Merovech. Todavia, não teve tempo para
saborear o seu sucesso, pois faleceu logo em 612 ou em 613, antes de iniciar uma guerra contra

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Clotário II da Nêustria que, sendo bem sucedida, lhe poderia ter garantido o domínio global
sobre as três grandes regiões da Gália merovíngia.
Neste contexto, Brunilda tentou assumir novamente o controlo da Austrásia e da Burgúndia,
desta feita em nome dos seus bisnetos (!). Porém, tentando a todo o custo dominar a aristocracia
austrasiana – que tinha outros planos – acabou por se tornar impopular… Os nobres
oposicionistas austrasianos, liderados por Arnulfo de Metz e por Pepino de Landen (os
antepassados dos Carolíngios), conspiraram a sua morte, que paradoxalmente contou com a
colaboração ativa de Clotário II da Nêustria, a quem os revoltosos tinham apelado para vencer a
‘dama de ferro’ e os seus apoiantes…
Desta forma (veja-se como o ódio passava de geração em geração, como é próprio da
‘faida’ dos Bárbaros), em 613, Clotário II vingou a sua mãe Fredegunda (morta em 597), e pode
bem dizer-se que a vingança foi terrível: mandou matar os pequenos príncipes (os filhos de
Thierry II: Sigeberto II e o seu irmão mais novo, Corbo, herdeiros da linhagem adversa) e
torturou Brunilda com três dias de suplício, a que se seguiu o seu arrastamento pelos cabelos, na
cauda de um cavalo fogoso…
Feito isto, Clotário II (cujo futuro político teria sido bastantes sombrio caso os irmãos
Thierry II e Teodoberto II, ambos filho do seu primo Childeberto II, não se tivessem
desentendido, despedaçando a unidade da aliança austraso-burgúndia) pôde governar como rei
único dos Francos!
O reinado de Clotário II (613-629) foi relativamente calmo, sem guerras. Porém, sob o seu
filho Dagoberto I (629-639) eclodiram alguns problemas na fronteira leste da Austrásia. Como
recompensa pela luta dos Austrasianos contra a tribo eslava dos Wends, Dagoberto instalou o
seu próprio filho, Sigeberto III (m. c. 656) como rei da Austrásia, em 633 ou 634. Sigeberto era
demasiado jovem para lutar, mas tratou-se de um sinal de respeito de Dagoberto pela relativa
independência da Austrásia e da sua nobreza. Dagoberto tinha seguramente noção de como as
décadas de lutas e tragédias que resumimos mais atrás haviam cavado divisões profundas entre
as três grandes ‘pátrias’ – a Austrásia, a Burgúndia e a Nêustria. E sabia também que a guerra
favorecera as forças locais e a aristocracia, em prejuízo da autoridade real, que ele desejava
restaurar. Justamente por isto, alguns historiadores consideram Dagoberto I como o último
monarca merovíngio ‘a sério’...

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3. A Gália merovíngia no séc. VII – aspetos políticos e religiosos

3.1. O exercício do poder:


Os reis merovíngios exerciam um poder pessoal: o “mund”, de fundo mágico e forte
conotação marcial. A guerra era prática corrente, sendo financiada, em grande medida, pelo
tesouro régio. Os donativos e dádivas em que os monarcas eram pródigos geravam amigos e
‘obrigados’, ou seja criavam ‘beneficiários’, os quais compunham o grupo da aristocracia dos
chamados “leudes” (os ‘íntimos e leais’). As recompensas régias podiam traduzir-se na outorga
de cargos, mas também na doação de terras ou na própria autorização para partilha da mesa do
rei (a “comensalidade”).
No seio da aristocracia franca, e devido justamente ao caráter guerreiro desta, devemos
destacar a presença dos “antrustiões”, a guarda militar do monarca, prevista aliás na própria Lei
Sálica. Os antrustiões estavam obrigados à prestação de um juramento e, como elite que eram
da aristocracia franca, o seu wergeld era o mais alto de todos os homens livres. Seguiam-se-lhes
os ‘convivas do rei’, i.é., a clientela do Palácio Real, situado em grandes domínios distribuídos
por zonas de abundante caça. Alguns desses ‘clientes’ chegavam muito novos à corte régia e a
sua educação ficava à responsabilidade de um alto funcionário – o prefeito do palácio.
Temos, assim, que o poder se apresentava sobretudo sob a forma de ‘capacidade de dar’
e de, com isso, gerar laços pessoais mais ou menos sólidos. Os rendimentos régios eram então
uma mistura de público e de privado. O antigo fisco romano era entendido como constituindo
um conjunto de bens próprios do monarca; cobravam-se os tonlieux, ou seja, impostos indiretos
sobre a circulação de mercadorias; aplicavam-se multas; acumulavam-se tesouros de guerra
obtidos como despojos… Um sistema simples e escorreito, mas que se podia tornar assaz
insuficiente quando as conquistas se restringiam e as fidelidades não podiam continuar a ser
alimentadas com novas dádivas sem com isso se correr o risco de delapidação do património
régio…
Em termos de administração régia, podemos dizer que o poder central estava, para além
do monarca, nas mãos do condestável (o comes stabuli, literalmente o ‘conde dos estábulos’,
peça-chave na condução da guerra e antepassado do ‘condestável’), do marechal, do prefeito do
palácio e, a partir do séc. VII, do capelão. Todos eles pertenciam à categoria dos “leudes”,
sendo a corte encarada como uma etapa do cursus honorum desses aristocratas de primeira
água. Quanto ao poder local, repousava sobretudo nas mãos do “conde” (também ele recrutado
entre os “leudes”), o qual se achava à cabeça de um território chamado civitas, ou de uma
subdivisão deste (o pagus, ou pays). O conde detinha, em nome do rei, todos os poderes
militares, judiciais, administrativos e financeiros, e presidia ao mallus, que era a assembleia de
todos os homens livres, os quais compunham o tribunal público. Tais homens livres eram

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guerreiros que podiam ser chamados todos os anos ao ‘Campo de Março’ para partirem em
campanha militar.
A nível da organização administrativa, devemos destacar o papel do ‘referendário’, o
oficial que garantia o envio das ordens do rei, segundo fórmulas herdadas da Antiguidade. Nesta
época, houve lugar ao envio de numerosos ‘breves’ (primeiro em papiro, depois em
pergaminho), hoje inexoravelmente perdidos.
Deve sublinhar-se também que o rei dispunha do direito de vida e de morte sobre os
seus súbditos. Os ordálios (ou ‘juízos de Deus’, pela água a ferver, pelo ferro em brasa ou pelo
duelo) eram um dos recursos utilizados nos tribunais merovíngios, quando não havia
possibilidade de julgar a culpabilidade ou a inocência de um réu através da confissão ou de
testemunhos oculares; eram procedimentos espetaculares, mas relativamente raros. De uma
forma geral, o rei agia como justiceiro e garantia a paz entre as parentelas rivais.
Convém também ter presente que, no reino franco ao tempo dos Merovíngios, os laços
diretos entre os homens e o monarca eram muito ténues (quando existiam). E havia uma
propriedade camponesa, pequena ou média, p.ex. na região da Auvergne (no centro-sul da
Gália), embora não se saiba em que proporção. Parece que o número dos escravos tendeu a
diminuir e que estes dependiam apenas do seu senhor. Já os homens livres, prestavam um
juramento de fidelidade ao rei, através do conde da sua região. Em princípio, todos eles deviam
o serviço militar, sob pena de pagarem uma pesada multa de 60 soldos: o chamado hériban.
Tanto os camponeses como os habitantes das (pequenas) cidades gaulesas, sujeitos às
inclemências de uma natureza adversa, procuravam soluções de proteção. Com esse objetivo,
podiam acordar contratos nos termos dos quais se declaravam sob o “maimbour” de alguém. Ou
seja, sujeitavam-se a um patronato económico ou militar exercido por homens poderosos sobre
outros mais frágeis do que eles. Havia mesmo a possibilidade de alguém se ‘encomendar’ a um
mosteiro ou a uma igreja, trocando serviços por alimentação e/ou por vestuário. Como resulta
evidente, os laços pessoais desenvolviam-se a todos os níveis e, claro está, a aristocracia tirava
bom partido disso para se desenvolver.

3.2. O poder da aristocracia:


Ainda que largamente devedora da generosidade real, uma vez que muitos dos seus
rendimentos decorriam diretamente dos cargos ou honores que lhes eram confiados pelo
monarca, a aristocracia franca da época merovíngia escapava em grande medida às exigências
dessa fidelidade, já que possuía bens a título privado e porque, tal como o soberano, sabia tecer
redes de clientelismo que se reforçavam através da vassalidade ou do parentesco.
Quanto à vassalidade, devemos explicar que o poder da aristocracia tinha, desde o séc.
VI, uma forte base territorial, i.é, assentava na posse da terra. A riqueza dos poderosos permitia-
lhes, pelo seu lado, manter uma clientela de protegidos. Os membros mais ricos da aristocracia

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protegiam os menos ricos, os quais lhes prometiam obediência e serviço a título vitalício, em
troca de um beneficium em terra ou em ouro. O cliente ou fiel recebia então o nome de vassus.
Não se trata ainda, exatamente, da feudalidade, mas sim da criação de ‘laços de vassalidade’. A
articulação entre o beneficium e o vassus gerou essa vassalidade (e o serviço vassálico), abrindo
uma autêntica antecâmara para o feudalismo.
No que diz respeito ao parentesco, há que ter noção dos casamentos endogâmicos
praticados no seio das famílias aristocráticas: os seus membros casavam-se entre si, constituindo
células conjugais (ainda que às esposas legítimas se associasse um elevado número de
concubinas). No mundo bárbaro, era importante dispor de uma parentela muito ampla para
poder recolher apoios na hora do exercício da vingança privada e das cerimónias de fraternidade
ou de fidelidade, e para poder reproduzir mais facilmente a condição social através de novos
casamentos endogâmicos. O parentesco ajudava a reforçar a fama dos poderosos. Fundava-se no
sangue e na aliança, mas a Igreja – com a difusão do batismo católico – também contribuía para
tecer alguns laços espirituais, os quais criavam, através do sistema dos padrinhos e das
madrinhas, uma espécie de ‘parentela artificial’. Do mesmo modo, o armamento de um jovem
como cavaleiro criava uma relação estreita entre este e a personagem que lhe concedia as
primeiras armas. Ora, sabemos como a fraternidade de armas era importante para selar a relação
entre companheiros e para reforçar a proximidade entre jovens da mesma idade e da mesma
condição social. É a isto que os historiadores costumam chamar as ‘solidariedades horizontais’,
que nesta época (sécs. VI e VII) são ainda mais importantes do que os laços de ‘solidariedade
vertical’ (i.é, familiar, inter-geracional) para compreendermos os grupos que se formavam no
seio da aristocracia merovíngia.
Devemos ainda ter presente que a aristocracia franca desenvolveu estratégias
complementares de afirmação social. O ‘caminho laico’ e o ‘caminho religioso’ podiam
articular-se no seio de uma mesma linhagem. Veja-se o caso das célebres ‘precárias’, isto é, das
concessões temporárias de bens a laicos (às vezes da mesma família) por parte de eclesiásticos
que detinham grandes riquezas temporais associadas aos respetivos cargos! No fundo, também
os bispos e os abades tratavam de gerar verdadeiros ‘fiéis’, de tecer redes de clientelismo, como
se fossem laicos.
Claro que, para o monarca, o crescimento desmesurado da aristocracia (em particular
dos condes) constituía um risco. Esse crescendo fomentava a autonomia progressiva de tais
elementos-chave da administração local, que já de si tinham tendência para misturar o público
com o privado. Por outro lado, os condes viviam também o seu dilema, tendo de optar entre o
reforço do seu poder pessoal, por um lado, e a fidelidade ao rei, a quem deviam o honor e o
rendimento que lhe estava associado, por outro…
Neste ponto, vale a pena acautelar uma distinção de conceitos, nem sempre fácil de
assimilar: ‘aristocracia’ e ‘nobreza’ não são exatamente a mesma coisa. O conceito de

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aristocracia está associado a um grupo de indivíduos que constitui a elite da sociedade em
resultado da sua riqueza, do exercício de determinadas funções e da receção de certos
privilégios. Já a condição de membro da nobreza é algo que se transmite apenas pelo sangue;
aliás, o termo ‘nobre’ não aparece ainda na Lei Sálica, surgindo apenas com as Vidas de Santos.
Aos poucos, no Norte da Gália, de entre os “leudes” (os fiéis do monarca) começou a destacar-
se um grupo restrito, la crème de la crème, que depois transmitia o seu poder através do sangue.
Ou seja, começou a desenhar-se uma certa hierarquia no seio da aristocracia que rodeava o
monarca, que fazia a guerra com ele e que levava um mesmo estilo de vida. Começou a perfilar-
se uma ‘nobreza’, um processo que aos poucos se fez acompanhar da consciência de uma
genealogia. O exemplo veio de cima e as primeiras genealogias régias apareceram com Clotário
II (m. 629). Mais tarde, as famílias condais tenderam a imitar este modelo. Os ‘nobres’ faziam-
se enterrar em edifícios funerários particulares, os seus túmulos eram colocados ao abrigo de
uma capela, beneficiavam de um funeral especial. Muitas vezes, estas necrópoles surgem
mesmo diretamente ligadas à posse de um determinado domínio ou de um cargo.
Em síntese, a transmissão do sangue começou a completar-se com a do património. Os
nobres são então aqueles poderosos que exercem localmente prerrogativas públicas; a sua
riqueza baseia-se sobretudo na terra e transmitem uma grande parte do seu poder através do
sangue. Todos os nobres são aristocratas, mas nem todos os aristocratas são nobres: o
aparecimento, no séc. VII, da ‘nobreza’ implicou – insistimos – o desenvolvimento de uma
hierarquia no seio da aristocracia bárbara.

3.3. A Gália cristianizada:


Muitos autores têm sublinhado a importância do papel desempenhado pelo Cristianismo
na Gália alto-medieval: face às coligações aristocráticas, que não raro configuravam o germe da
desunião, a religião cristã afirmou-se como um verdadeiro cimento de unidade do reino.
Evitemos, porém, as simplificações. Apesar do poder do Cristianismo e da importância
do papel que lhe esteve historicamente reservado, devemos frisar que, na Gália do séc. VII, o
paganismo continuava a ser forte, beneficiando de uma cristianização superficial em muitas
regiões, especialmente a norte e a leste. As paróquias rurais eram ainda pouco numerosas e
mesmo a fronteira entre o clero secular e o clero regular (i.é, o clero que vivia segundo uma
‘regra’ monástica) era ainda ténue, ao ponto de muitos homens passarem de uma condição a
outra.
Neste contexto, adquire especial importância o papel desempenhado por Gregório
Magno (590-604), um dos homens mais importantes em toda a história da Igreja Católica. Antes
de ser papa, Gregório foi funcionário e, talvez, prefeito de Roma. Aos 34 anos, transformou em
mosteiro a sua casa do Monte Caelius, em Roma. Praticou a ascese, sendo depois chamado pelo
papa Pelágio para junto dele. A certa altura, foi enviado para oriente como embaixador do papa

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junto do basileus Tibério II. Gregório persistiu sempre nos seus estudos bíblicos, até que, em
590, a morte do papa, a ameaça lombarda que pesava sobre Roma, o alastramento da peste e as
inundações do rio Tibre levaram a multidão a clamar por ele. Gregório tornou-se então papa,
sem contudo deixar inteiramente de ser monge.
Durante o pontificado de Gregório Magno, intensificou-se a luta contra o paganismo e o
Arianismo. Mas de uma forma muito mais subtil e inteligente: o monge Agostinho, por
exemplo, enviado para as Ilhas britânicas, converteu o rei de Kent (no sudeste de Inglaterra)
sem contudo destruir os templos e as festas dos pagãos, mas apenas os seus ídolos e símbolos
religiosos, que ‘trocou’ pelos do Cristianiamo! Deu-se também um forte desenvolvimento do
canto litúrgico, embora se deva dizer que, em bom rigor, o chamado “canto gregoriano” foi
copiado da Igreja bizantina (provavelmente na sequência da estadia de Gregório na capital do
Império Romano do Oriente, como embaixador do papa). Ao mesmo tempo, Gregório favoreceu
a circulação de manuscritos e a formação de bibliotecas, de entre as quais a de Latrão, em
Roma, é decerto uma das mais majestosas.
Gregório foi também um dos primeiros papas a conceber a unidade de um Ocidente
cristão. E tinha uma ideia elevada acerca do episcopado, a quem ditou uma regra de vida: o
Liber regulae pastoralis, um autêntico vade-mecum [guia] do clero secular. Mas Gregório
também apoiou os monges, mantendo contactos com o irlandês S. Columbano e favorecendo a
difusão da Regra de S. Bento de Núrsia. Dedicou, aliás, aos monges as suas reflexões morais,
redigidas sob a forma de alegorias: as Moralia in Job.
Gregório Magno tentou unificar o Ocidente cristão e construir uma hierarquia com base
em Roma. E distinguiu com clareza entre as preocupações dos clérigos e as dos laicos.
Infelizmente, o seu legado foi de alguma forma colocado em risco pela ameaça lombarda, pelo
avanço dos muçulmanos na Península Ibérica e pelos interesses divergentes da aristocracia e da
realeza na Gália.

Vale ainda a pena olhar um pouco mais de perto para a realidade do clero secular e do
clero regular na Gália merovíngia.
Na época que estamos a considerar, os bispos eram nomeados pelo rei e eram
verdadeiros servidores da monarquia. Por isso, a distinção entre clérigos e laicos permanecia
pouco nítida. O bispo merovíngio era um homem de intervenção política, conforme se vê pelo
exemplo de Saint Léger, o bispo de Autun que acabou martirizado pelo prefeito do palácio da
Nêustria, Ebroïn, por defender os interesses da sua ‘pátria’, a Burgúndia. Neste tempo, os bispos
tinham mais gosto pela política do que pelos grandes debates teológicos. No séc. VI, reuniam-se
em concílios nacionais e, nos finais do séc. VII, sabemos que muitos foram criticados pela
prática de simonia, ou seja, pela compra e venda de cargos ou de bens sagrados.

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Quanto aos monges, devemos começar por evocar as origens orientais do monaquismo:
o Egito, a Palestina e a Síria foram os territórios de eleição dos eremitas e dos anacoretas, que
praticavam com zelo a ascese e a mortificação. Grutas, gaiolas, túmulos e até colunas (como,
p.ex., a de Simão, na Síria) serviam-lhes de habitação. Um exemplo emblemático, evocado na
Vida dos Santos, é o de S. António (ou S. Antão), que resistiu a diversas tentações em pleno
deserto.
Entretanto, os perigos do isolamento conduziram a um primeiro agrupamento de
eremitas, que começaram a trabalhar lado a lado e a encontrar-se numa igreja comum. Estava
assim aberto o caminho para o cenobitismo (i.é, para o monaquismo). Segundo se sabe, o
mosteiro mais antigo foi o de S. Pacómio, fundado cerca de 320, no Egito (no delta do Nilo).
Herdeiro da tradição eremítica, o monaquismo oriental incitava o monge a preferir a experiência
individual à obediência, e a experiência espiritual à teologia.
Mas quando é que os mosteiros chegaram ao Ocidente? Os primeiros centros
monásticos europeus devem ter surgido na Gália e testemunham a preferência ocidental pela
mortificação corporal como forma de penitência. A actividade missionária deve ter sido bastante
intensa. Concretizando, o primeiro centro monástico na Gália surgiu em finais do séc. IV, por
iniciativa de S. Martinho (c. 315-397), que começou por viver na solidão, com alguns
discípulos, em Ligugé (perto de Poitiers), tendo depois fundado uma comunidade em
Marmoutier, nas proximidades de Tours, onde se alojou numa cabana sem contudo impor uma
regra aos seus discípulos; mais tarde, S. Martinho tornar-se-ia bispo de Tours. Pelo seu lado, em
410, nas ilhas de Lérins (perto de Marselha), S. Honorato fundou uma pequena comunidade
monástica, cujos costumes foram retomados em numerosos mosteiros da Provença e do Jura
(Franche-Comté, no centro-leste da França). S. Cesário (470-542), personagem que já aqui
referimos várias vezes, aproveitou e introduziu esses costumes em Arles (no Midi), onde fundou
um mosteiro, tornando-se assim numa espécie de protótipo do bispo-monge. Com tudo isto,
bem pode dizer-se que nascera um novo ideal de santidade.
Neste ponto, é obrigatório destacar também a experiência do monaquismo irlandês. A
Irlanda foi convertida por S. Patrício, um gaulês, e conheceu mosteiros logo a partir de 460.
Nestes, desenvolveram-se tradições e rituais próprios, devido aos costumes religiosos celtas,
que se exprimiam, entre outras coisas, numa cerimónia de batismo distinta, no uso de uma
tonsura8 especial e até numa data de Páscoa diferente, pois os monges irlandeses não seguiam o
calendário reformado no séc. VI (o ‘calendário gregoriano’). Era também um monaquismo mais
próximo do estilo oriental. Talvez os Bretões tenham servido de intermediários entre esses dois
mundos, difundindo a já citada Vida de Santo António/Antão, escrita em Alexandria por
Atanásio, e inspirando-se nas práticas desenvolvidas em Lérins. Mas subsistia o mesmo ideal

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Tonsura: corte do cabelo da cabeça de modo que fique uma coroa rapada, que é a coroa do clérigo.

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ascético, reservando-se um lugar especial para a penitência (daí o uso de manuais ou de
‘penitenciais’).
S. Columbano foi decerto o mais representativo dos monges irlandeses. Nasceu c. 540 e
fundou diversos mosteiros na Irlanda, tendo vindo depois para o continente acompanhado por
uma dúzia de companheiros. Em 590, fundou o cenóbio de Luxeuil, nos Vosges (centro-leste da
Gália, próximo da atual fronteira franco-suíça). Aqui, impôs uma regra ascética, com bastante
peso dos trabalhos manuais. Na zona do Lago de Constança, S. Columbano fundaria depois
Bregenz, a partir do qual o seu principal discípulo, chamado Gall, fundaria a famosa abadia de
Saint-Gall. Mais tarde, S. Columbano foi para Bobbio (na Itália, a nordeste de Génova), onde
morreria em 615. Este monge e missionário irlandês contribuiu para a conversão dos Germanos
e dos Lombardos e a sua influência foi muito forte, tendo tido bastante repercussão na própria
corte merovíngia.
Com tudo isto, assistimos a um rosário de mosteiros e de missões no Ocidente europeu.
Na Gália de inícios do séc. VII já havia 220 mosteiros, que eram importantes centros de
evangelização. Contudo, não dispunham ainda de uma regra coerente. O ideal monástico
hesitava entre o ascetismo e o serviço da comunidade, e a diversidade reinante gerava alguma
instabilidade, enquanto, pelo seu lado, o excesso de ascetismo restringia a difusão do modelo
monástico. Por isso, pouco a pouco, no decurso do séc. VII, acabou por se desenvolver um
monaquismo mais adaptado às exigências ocidentais, com o acento a ser colocado sobre a
penitência e a humilhação, sobre o equilíbrio entre a oração e o trabalho, sobre o papel
missionário dos monges e sobre a sua ação moralizadora junto do poder.
Neste contexto, cerca de 550 apareceu um escrito anónimo, a «Regra do Senhor» onde
se exigia a estabilidade e a obediência dos monges. Mas já algum tempo antes, por volta de 523,
S. Bento de Núrsia redigira no Monte Cassino, perto de Roma, uma Regra destinada a uma
população de camponeses e contendo preceitos semelhantes: oração, trabalho e repouso,
repartidos de forma harmoniosa; amplo lugar para a leitura bíblica e para os estudos; etc. A
Regra de S. Bento (a conhecida ‘regra beneditina’, com a sua famosa divisa: “ora et labora”,
‘reza e trabalha’) começou por ter fraca divulgação no séc. VI. De Itália, foi exportada para
Inglaterra (através do monge Agostinho e no tempo do papa Gregório Magno, como já
explicámos), regressando mais tarde ao continente europeu, em especial pela mão de S.
Bonifácio, nos inícios do séc. VIII. O primeiro mosteiro beneditino na Gália surgiu ainda na
década de 620, no Albi (sul de França); depois, outras comunidades se seguiram, de entre as
quais a célebre abadia de Fleury-sur-Loire (perto de Orleães, no centro da Gália). É curioso
notar que, nos primeiros tempos, a regra beneditina foi muitas vezes acompanhada pela de S.
Columbano e que, nesta fase de transição, os monges adotaram alguns compromissos: p.ex., em
Luxueil, seguia-se a Regra de S. Bento “à la façon de Luxeuil”… Aos poucos, a humanização
dos mosteiros fazia o seu caminho. Nos finais do séc. VIII – inícios do séc. IX, surgiria ainda a

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reforma de Bento de Aniana, com o encerramento das escolas externas dos mosteiros. O
monaquismo beneditino impunha-se de forma massiva no Ocidente, estruturando-se e
adquirindo uma extraordinária importância.
Em resultado desta evolução religiosa, assistiu-se ao desenvolvimento das paróquias
rurais (com igrejas, com capelas, etc.). Difundiu-se o culto das relíquias de santos, as sepulturas
e os batistérios. Vulgarizaram-se as penitências públicas e privadas. A religião, de alguma
forma, tornou-se camponesa, e a circulação de monges acabou por gerar uma espécie de ‘rota
cultural monástica’. Os mosteiros tornaram-se focos culturais onde se desenvolvia a educação
medieval. Mas a cristianização fez-se igualmente acompanhar de uma reflexão acerca da
natureza do poder real. Esta reflexão deixava claro que o rei também tinha deveres,
nomeadamente o de proteger os bispos, os monges e os pobres; em troca, a Igreja devia garantir
o cumprimento das decisões régias e, em conformidade, no ano de 626, ameaçou mesmo
excomungar os que desobedecessem a um édito de Clotário II. A mistura entre o sagrado e o
profano tornara-se inevitável…

3.4. A ascensão vitoriosa dos Pipínidas – de Pepino de Landen, ‘O Antigo’ (m. 639), a
Carlos Martel (m. 641):
Como sugerimos mais atrás, o reinado de Dagoberto I (629-639) constituiu um canto de
cisne na história da realeza merovíngia. Uma canção do séc. XVIII faz alusão ao ‘bom rei’
Dagoberto, mas a boa fama deste monarca deve-se, não tanto à sua ação política, mas sobretudo
à sua ligação à abadia de Saint-Denis, onde se forjou a sua lenda. Aliás, desse encontro entre S.
Denis e Dagoberto nasceria mesmo um elo privilegiado, que acabaria por tornar Dinis no santo
protetor de todo o reino da França.
A ligação de Dagoberto à Igreja acarretou diversos benefícios políticos e económicos,
tendo conduzido ao envio de administradores-evangelizadores para o Norte, de onde vieram
mercadores (Frisões e Saxões) que foram essenciais para a retoma económica, para além de ter
dado origem à célebre feira de Saint-Denis (mais tarde chamada “de Lendit”), onde eram
cobrados tonlieux que revertiam a favor da abadia de Saint-Denis.
Com Dagoberto, pela primeira vez houve filhos da aristocracia meridional que rumaram
ao Norte para serem criados na corte régia. E, para corresponder aos fiéis que o procuravam,
Dagoberto associou ao fisco bens que, na realidade, pertenciam aos Grandes ou à Igreja. Essa
foi uma das razões pelas quais alguns contemporâneos compararam este monarca a um leão
‘ardente’ e ‘temível’...
À morte de Dagoberto (em 639), a Gália entrou em crise, por três motivos principais.
Primeiro, devido à continuação das disputas entre as três grandes regiões ou ‘pátrias’ (Austrásia,
Nêustria e Burgúndia). Em segundo lugar, devido ao crescimento da aristocracia (laica e
esclesiástica) e das suas clientelas. Em terceiro lugar, por causa da afirmação política (em

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proveito próprio) dos prefeitos do palácio, circunstância que marcou todo o período
compreendido entre os anos 639 e 680. Tratou-se de um período tremendamente agitado, com
conflitos e guerras permanentes entre a Austrásia, a Nêustria e a Burgúndia, agravadas pelas
guerrilhas de fações dentro de cada um destes reinos.
Na Austrásia, os problemas começaram após a morte do filho de Dagoberto, Sigeberto
III, em 656. Provavelmente no mesmo ano, Grimoaldo, prefeito do palácio e filho do já referido
Pepino de Landen (ou Pepino I), depois de – muito simbolicamente – ter mandado cortar os
cabelos (um dos principais símbolos do poder real) ao herdeiro dos Merovíngios, tentou instalar
no trono o seu próprio filho Childeberto (que Sigeberto III adotara, aliás, com um nome típico
da realeza merovíngia: Childebertus Adoptivus). Repare-se que estamos aqui perante um facto
político relevante: um Pipínida (os fundadores da dinastia carolíngia) considerado como sendo
legítimo herdeiro do trono em resultado da sua adoção por um rei merovíngio!
Neste ponto, convém explicar melhor quem foi Pepino de Landen, também chamado
Pepino I ou Pepino, ‘O Antigo’, e falecido precisamente no mesmo ano de Dagoberto I, ou seja,
em 639. Foi ele quem deu início à saga dos Pipínidas. Oriundo de uma grande família com
imensos domínios na região média do rio Mosa e com sólidas alianças no eixo cultural e
comercial deste curso de água, Pepino de Landen foi nomeado prefeito do palácio da Austrásia,
tendo-lhe sido confiada a educação de Dagoberto I. Astuto, depressa construiu um partido
aristocrático, através de alianças matrimoniais e com o apoio de novos mosteiros. A sua filha
Gertrudes fundou, com S. Amândio, o mosteiro de Nivelles (na atual Bélgica), onde se tornou
abadessa; no séc. VII, este mosteiro incluía 17 villae, cobrindo perto de 16.000 hectares! Uma
outra filha de Pepino de Landen, de seu nome Begge, casou com Angésisèle, o herdeiro de
Arnulfo de Metz, um homem que possuía numerosos domínios entre os rios Mosela e Mosa, no
coração da Austrásia e que chegou a ser bispo de Metz. Como já sabemos, tanto Pepino I como
Arnulfo de Metz, que a História ligou por laços familiares bastante estreitos, estiveram
diretamente envolvidos na conspiração de 613 que levou à morte de Brunilda da Austrásia e dos
descendentes de Thierry II da Austrásia e que entregou o poder em toda a Gália merovíngia a
Clotário II da Nêustria. No clima de tensão e disputa quase permanente que marcou o período
final da dinastia merovíngia, pontuado por assassinatos, exílios e saneamentos de pessoal, o
cargo de prefeito do palácio acabou por ser absorvido por grandes famílias como a dos Pipínidas
e começou a tornar-se hereditário. Daí a facilidade com que Grimoaldo sucedeu ao pai como
prefeito da Austrásia…
Todavia, o golpe de Grimoaldo a favor do seu filho Childeberto não foi bem sucedido.
Como era de esperar, os Neustrianos, liderados pelo rei Clotário III (657-673) e pelo seu
poderoso prefeito do palácio, Ebroïn, não consentiram na manobra e Grimoaldo e o seu filho
foram provavelmente executados em 657 (ou, o mais tardar, em 662). Na sequência deste revés,

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a poderosa família dos Pipínidas perdeu a sua influência na Austrásia até ao início da década de
680.
Entretanto, na Nêustria e na Burgúndia, durante o reinado formal de Clóvis II (639-
657), filho de Dagoberto I, os problemas também se fizeram sentir. Como o novo monarca só
tinha quatro anos, os prefeitos assumiram um papel de destaque. A Burgúndia exigia respeito
pela sua autonomia, pelo que o governo da Nêustria (a rainha Nantilde e o seu prefeito
Erquinoaldo) nomearam um nobre franco (Flacoaldo) como prefeito da Burgúndia, tendo este
sido obrigado a jurar respeito pela independência da nobreza da região. Apesar disso, cedo
deflagrou a guerra entre Flacoaldo e alguns poderosos nobres burgúndios. Em 642, Flacoaldo
venceu uma batalha feroz (em que, curiosamente, o prefeito da Nêustria não o apoiou), mas
morreu pouco depois e a situação permaneceu em aberto. Infelizmente, sabemos muito pouco
sobre o que aconteceu a seguir, pois a nossa principal fonte para este período, Fredegário (ou
Pseudo-Fredegário), termina a sua narrativa em 642…
Seja como for, a partir de finais dos anos 650 sabemos que se verificou uma situação
clara de domínio do prefeito da Nêustria, Ebroïn, pelo menos a partir de 658 e sob o reinado
formal de Clotário III (657-673). No entanto, é seguro que a nobreza burgúndia não aceitou o
domínio de Ebroïn, que tentou dominá-la, assim como à nobreza austrasiana. Este panorama
deu lugar a revoltas com desenlaces cruéis (como, p.ex., em 660). Em 663, foi o bispo de
Autun, Leodegar, quem, curiosamente, organizou na Burgúndia a resistência contra Ebroïn.
Quando morreu o rei Clotário III, em 673, Ebroïn viu-se mesmo obrigado a refugiar-se no
mosteiro de Luxeuil, pois o rei da Austrásia, Childerico II (662-675), fora convidado a ir para a
Nêustria pelos próprios opositores de Ebroïn…
Os historiadores modernos têm tendência para ver Childerico II como o último monarca
merovíngio, mas a verdade é que ele tinha a seu lado um prefeito dominador: Wulfoaldo, que
chegara à Nêustria vindo da Austrásia com o seu rei. Ambos queriam reunificar a Austrásia com
a Nêustria e a Burgúndia, no fundo, o velho plano de todos os figurantes que temos destacado
ao longo destas lutas sem quartel. Porém, as duas últimas regiões resistiram, especialmente a
Burgúndia, graças à ação do referido bispo Leodegar, que de resto acabou por ser exilado no
mosteiro de Luxeuil, acusado de traição. Em 675, Childerico II foi assassinado e Wulfoaldo teve
de fugir de volta para a Austrásia.
Entretanto, tanto Ebroïn como Leodegar lograram fugir de Luxeuil, por volta do ano
675. Eram rivais e, de início, o bispo pareceu levar vantagem e promoveu, com alguns nobres, a
ascensão de Thierry III, irmão de Childerico II, a rei (da Nêustria e da Burgúndia em 673/75-
691; da Austrásia em 687-691). Foi também empossado um novo prefeito para a Nêustria,
chamado Leudésio. Porém, Ebroïn conseguiu persuadir Thierry III a renomeá-lo como prefeito
do palácio da Nêustria, após Leudésio ter sido assassinado, e, na Burgúndia, o bispo Leodegar
seria preso, cego e executado cerca do ano 680. Quanto à Austrásia, ainda aí dominava o antigo

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prefeito do palácio, Wulfoaldo. Ele e alguns nobres escolheram um rei ao seu gosto: Dagoberto
II (676-679), filho de Sigeberto III, que acabou por ser assassinado em 679.
Neste cenário favorável, Ebroïn pôde prosseguir a sua estratégia centralizadora,
tentando ser reconhecido como prefeito do palácio nos três reinos merovíngios, em simultâneo.
Nesse sentido, recusou aos Austrasianos o direito a terem um prefeito próprio, mas os nobres
desta região, com o dux Martim e com Pepino II, “O Médio”, ou Pepino de Herstal (o neto
comum de Pepino I e de Arnulfo de Metz, uma vez que era filho de Angésisèle e de Begge) à
cabeça, recusaram a ideia. O conflito deu lugar à batalha de Lucofao, perto de Laon, travada
em 680. Ebroïn e Thierry III saíram vencedores deste combate, em que Martim perdeu a vida.
Porém, Pepino II conseguiu escapar e organizou depois (ainda em 680 ou já em 681) o
assassinato de Ebroïn… O sucessor deste como prefeito da Nêustria seria Warato, com quem
Pepino II acabou por fazer a paz.
Entrava-se, assim, numa fase crucial, marcada, desde logo, pelo regresso ao poder da
influente e rica família dos Pipínidas, através de Pepino II, que se tornou prefeito do palácio da
Austrásia por volta do ano 680, sucedendo a Wulfoaldo. Este período, na verdade, acaba por ser
já mais pipínida-carolíngio do que merovíngio, pois a marca principal é a do sucesso da família
de Pepino de Herstal, que se conseguiu sobrepor e eliminar os restantes prefeitos do palácio
seus rivais. A partir desta altura, o cargo de prefeito foi monopolizado pelos Pipínidas e
imposto, definitivamente, como um cargo hereditário.
O primeiro grande passo para a afirmação política dos Pipínidas foi o êxito obtido na
batalha de Tertry (na Picardia, no norte da França), travada em 687. Neste combate, Pepino II
derrotou o prefeito da Nêustria, Berchar (genro de Warato), e os seus aliados burgúndios. De
uma assentada, Pepino II vingava a morte do seu tio Grimoaldo e apoderava-se do tesouro do rei
da Nêustria, Thierry III. Berchar morreria logo em 688 ou 689, posto o que Pepino II
reivindicou a Nêustria e instalou aí o seu agente Nordeberto. Depois da demissão deste (c. 695),
Pepino nomeou o seu próprio filho Grimoaldo como prefeito do palácio da Nêustria, enquanto o
seu outro filho, Drogo, recebeu o ducatus (ofício de dux) na região da Burgúndia.
Ainda assim, Pepino II, inteligentemente, manteve o rei merovíngio (Thierry III) no
poder e este passou a governar um reino, em teoria, novamente unificado (Austrásia- Nêustria-
Burgúndia). No entanto, o monarca apenas conservava a auctoritas formal, pois a potestas real
passara para os prefeitos do palácio da Nêustria e da Austrásia, que pertenciam à família
Pipínida. Os prefeitos tomaram então o título de princeps e, com isso, entramos no período a
que os Carolíngios chamaram dos ‘rois fainéants’ (“reis fantoches”) merovíngios – a expressão
é do biógrafo de Carlos Magno, Eginhardo, e tem obviamente um sentido de propaganda
política, destinada a justificar a usurpação do trono pelos Pipínidas em 751…
Os últimos reis merovíngios não foram, portanto, mais do que ‘uma família entre
outras’. No fundo, foram vítimas da linhagem aristocrática dos Pipínidas e eram uns reis

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realmente empobrecidos. Ao seu lado, a força dos Pipínidas não cessava de aumentar:
acumulação de riquezas em domínios de ponta no eixo do Mosa; apoio de um clero dinâmico; e
controlo do cargo oficial de ‘prefeito do palácio’, que lhes permitia dominar a vida política,
diretamente ou por intermédio dos seus filhos.
Drogo (m. 708) e Grimoaldo (assassinado em 714) desapareceriam um pouco antes do
seu pai, Pepino II (falecido em 16 de Dezembro de 714), circunstância que abriria um período
de crise sucessória, com alguns anos de instabilidade. A viúva de Pepino II, Plectrude, queria o
neto Arnulfo como prefeito da Austrásia e o neto Teodoaldo (filho do falecido Grimoaldo)
como prefeito do palácio da Nêustria. Contudo, em 715, a oposição neustriana, que ambicionava
tornar-se independente politicamente, aclamou Raganfredo, um influente magnate local! Valeu
aos Pipínidas a grande capacidade de Carlos Martel, filho de Pepino II e de Alpaida (sua
segunda mulher), mau-grado a contestação de que foi alvo por parte de um forte sector da
aristocracia austrasiana. A carreira de Carlos Martel é de tal forma extraordinária e tem tanta
relevância política (no fundo, ele acaba por ser o elo de ligação entre os Pipínidas e a dinastia
dos Carolíngios) que justifica uma atenção muito especial.

Inicialmente detido na prisão pela madrasta Plectrude, Carlos Martel, logo que
conseguiu fugir do cárcere, iniciou uma guerra civil para suceder ao pai e desenvolveu uma
estratégia que passou por constituir uma clientela forte, com o apoio da aristocracia da região de
Maastricht-Liège, dominada pela família de Alpaida. Carlos esforçou-se para ligar o ‘benefício’
(uma concessão temporária, geralmente uma terra, obtida através da Igreja por via da redução
das autonomias e das imunidades) ao serviço militar prestado com equipamento pesado.
Segundo a tradição historiográfica, que Claude Gauvard perpetua mas que já é hoje posta em
causa por diversos autores, este laço entre ‘benefício’ e ‘fidelidade’ (que transformava o
beneficiário em ‘vassalo’), associado à obrigação de prestação de um auxílio militar, anunciava
a feudalidade9.
Carlos Martel começou por conseguir o controlo da Austrásia. Depois, à frente de uma
parte substancial do muito eficiente exército que o pai desenvolvera, derrotou em Vinchy as
forças rebeldes da Nêustria, que contavam com apoios inesperados.
Neste ponto, convém recuar um pouco e explicar que os problemas da Nêustria tinham
começado ainda quando Carlos estava preso. Raganfredo conduzira uma hoste contra o jovem

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Heinrich Brunner viu um nexo entre o uso de tropas montadas carolíngias e a introdução do sistema
feudal, mas isso, na verdade, só aconteceu bastante mais tarde (nos sécs. XI ou XII, como mostrou Susan
Reynolds). Lynn T. White, pelo seu lado, relacionou os ataques da cavalaria pesada com a emergência do
estribo, mas Bernard Bachrach e outros travaram esta relação direta, evitando os exageros: é que a adoção
do estribo pelos cavaleiros carolíngios foi um processo que se prolongou por mais de um século!
Entretanto, ainda quanto à questão da eventual ‘feudalidade’: é claro que era o rendimento da terra que
sustentava a elite social, pelo que quanto mais terras Carlos doava, mais vontade os seus seguidores
tinham de o apoiar na guerra…

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Teodoaldo (o sobrinho de Carlos), derrotando os Austrasianos perto de Compiègne. Na
sequência deste sucesso, Raganfredo tornara-se prefeito da Nêustria e lançara alguns raids em
direção ao coração da Austrásia, até ao vale do rio Mosa.
Enquanto as forças dos Pipínidas lutavam contra Raganfredo a ocidente, o duque dos
Frisões, Radbod, tomara Utrecht e lançara um grande ataque naval contra a Austrásia, com um
exército formidável e que subiu 150 km pelo rio Reno, até Colónia, cidade que era a capital de
Plectrude e onde se abrigava o tesouro dos Pipínidas!
Raganfredo e Radbod aliaram-se, com o objetivo de dividir a Austrásia entre si. Nesse
contexto dramático, Plectrude mostrou-se incapaz de mobilizar o velho exército de Pepino II
para defender a ‘pátria’ austrasiana: muitos magnates apoiavam Carlos Martel, assim como o
influente bispo Willibrord (que, na Frísia, defendia os interesses austrasianos).
Estava-se então no ano de 716 e tanto Raganfredo como Radbod queriam tomar
Colónia. Sabendo disso, Carlos Martel tentou evitá-lo e atacou Radbod antes de os dois
exércitos aliados de juntarem. Porém, foi derrotado e sofreu muitas baixas. Por isso, Raganfredo
e Radbod puderam unir as suas forças, mas hesitaram diante do ataque à importante cidade
renana. Plectrude aproveitou a hesitação e pagou um resgate para eles se irem embora. Os
coligados partiram então, na direção de Malmédy (na citada região de Maastricht-Liège, a base
do poder de Carlos Martel). Carlos não se fez rogado e aproveitou a ocasião para os atacar de
surpresa em Amblève, enquanto os adversários descansavam, a meio do dia. Os Neustrianos e
os Frisões foram obrigados a fugir, sofrendo baixas pesadas. Estava minada a aliança entre
Raganfredo e Radbod.
Carlos ainda conseguiu recuperar uma parte do resgate pago por Plectrude e, em Março
de 717, avançou para ocidente, na direção da Nêustria. A 21 de Março, e depois de tentar
negociar a paz, derrotou Raganfredo numa batalha decisiva, travada em Vinchy (nos arredores
de Cambrai). Como se não bastasse, Martel ainda perseguiu o adversário até aos arredores de
Paris, cerca de 150 km a sudoeste.
No regresso de Paris, Carlos devastou o vale do rio Oise e conduziu as suas forças pelo
vale do rio Sambre, até Colónia. Aqui, Plectrude recusou render-se, mas Carlos fomentou uma
revolta dentro da cidade e conseguiu entrar na velha fortaleza romana. Após muita luta nas ruas
da cidade, Plectrude rendeu-se ao enteado e entregou a Carlos o tesouro pipínida.
Depois de Vinchy, e terminada também a guerra civil austrasiana, a aristocracia da
Burgúndia esqueceu quaisquer aspirações independentistas e apoiou Carlos Martel. E os
Alamanos (cujo ducado não deve ter sido totalmente submetido no governo de Pepino II) e os
Turíngios (que nunca haviam rompido com Pepino II) também não se apressaram a apoiar os
adversários de Carlos. No final de 717, o duque da Turíngia, Hedin II, expressou mesmo o seu
apoio a Carlos, ao conceder muitos recursos ao bispo Willibrord (o encarregado de missão na
Frísia). No Hesse (no centro-oeste da atual Alemanha, com capital em Frankfurt) é que as coisas

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estavam mais complicadas, com os Saxões a desestabilizarem a região através de raids dirigidos
contra a Austrásia, desde 715.
Mas Carlos ainda tinha primeiro de ultrapassar os restos da resistência frísia e
neustriana. Em 718, conduziu um exército até à Frísia e derrotou de vez Radbod, que viria a
morrer no ano seguinte. Nunca mais a Frísia incomodou Carlos, que recuperou o controlo de
Utrecht, de Durstede e de toda a ‘Fresia citerior’. Carlos apoiou o mais possível o arcebispo
Willibrord, talvez o primeiro oficial carolíngio encarregado da administração da Frísia.
Após a sua vitória sobre Radbod, em 718, Carlos pôde então conduzir o seu exército
contra a Saxónia. Já em 715, ainda Carlos estava preso e era o seu sobrinho Arnulfo quem
governava nominalmente, um raid saxão atacara a região austrasiana da Chatuária. Esses
Saxões eram da zona compreendida entre a região leste do Hesse e a zona a poente do rio Weser
(i.é, das regiões das águas quentes do Lippe).
Entretanto, Raganfredo da Nêustria, o derrotado de Vinchy, atraiu o duque Eudo da
Aquitânia para uma aliança contra Carlos. Tratou-se de uma mudança radical da parte de Eudo,
pois nem ele nem os seus antecessores haviam hostilizado Pepino II. Só que Carlos estava ainda
numa posição difícil e o duque da Aquitânia tentou aproveitar a situação. Em 718, Eudo e
Raganfredo confirmaram um tratado pelo qual seria dado o regnum da Nêustria a Eudo… Em
719, o duque da Aquitânia cruzou o rio Loire com um grande exército de mercenários gascões e
foi até à Nêustria para apoiar Raganfredo. Carlos, encorajado pelos sucessos obtidos desde
Amblève-716, reagiu com um formidável exército austrasiano. A leste de Paris, não longe de
Soisssons, quando os dois exércitos manobravam para se posicionarem para o combate, Eudo
fugiu subitamente para sul com o seu exército mercenário, com o rei Chilperico II e com o
tesouro real neustriano! Carlos Martel perseguiu-o na zona de Paris, mas Eudo atravessou o
Loire perto de Orleães e Carlos permitiu que ele escapasse para a cidade fortificada romana de
Angers, na fronteira bretã.
No ano seguinte (720), Martel enviou embaixadores a Eudo, muito pressionado pelo
poderio militar austrasiano. Intimado por Carlos, o duque entregou-lhe o ‘rei fantoche’ da
Nêustria (Chilperico II) e o tesouro régio neustriano, enviando também muitos presentes… Os
embaixadores de Carlos negociaram ainda um tratado entre este e Eudo. Nessa altura, Martel
deve ter prometido auxílio a Eudo caso os Muçulmanos do sul da Gália avançassem até ao raio
de ação do exército de Carlos; e Eudo deve ter prometido renunciar ao envolvimento nos
assuntos da Nêustria, e talvez também desencorajar qualquer oposição a Martel no baixo Loire,
a poente de Orleães. Na circunstância, Martel tratou Eudo como um ‘igual’ e não exigiu
qualquer supremacia austrasiana sobre a Aquitânia.
Com tudo isto, Carlos ficou numa situação política já comparável à de Pepino II,
quando este falecera. Mas sabia que, para acabar de ‘pôr a casa em ordem’, ainda tinha de
sossegar os Saxões na região do Hesse. Assim, em 720 fez uma nova incursão punitiva e, depois

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(a partir de 722), tratou de cristianizar a região através de Bonifácio, que ligou a si por
juramentos de fidelidade e laços de patrocininum (uma encomendação de tipo vassálico). A
estratégia surtiu efeito, com a criação de novos mosteiros (ex: Fulda), de uma nova sede
episcopal (em Buraburg), com novas posições fortificadas (como Christianberg), etc. Com a
proteção espiritual providenciada pela ampla organização eclesiástica de Bonifácio e com o
apoio militar de Carlos e dos seus sucessores, os Carolíngios garantiriam gradualmente o
controlo firme desta região.
Entretanto, depois de muito tempo acantonado em Angers, Raganfredo fez as pazes com
Carlos Martel, que lhe permitiu, provavelmente, permanecer como conde de Anjou, com
responsabilidades na proteção da fronteira com a Bretanha. Em conformidade com isto,
Raganfredo viria a ser leal para com Carlos até morrer, de causas naturais, em 731. O problema
neustriano estava também resolvido.
Em 723, Martel adoeceu gravemente e os Saxões do Hesse aproveitaram para novas
incursões. Recuperado, em 724 Carlos conduziria uma terceira campanha em seis anos contra os
Saxões, tendo-os punido severamente, ao ponto de eles não mais o incomodarem até 738.
Depois, mas ainda em 724, Carlos decidiu testar o seu controlo sobre o ducado da
Alamânia. A operação correu bem, pois Carlos teve o apoio do duque Lantfrid, que
inclusivamente o acompanhou até à fronteira com a Baviera (que Pepino II não tivera tido
tempo de dominar). Junto ao Lago Constança, fundaram o mosteiro de Reichenau, com o
objetivo de promover a cristianização da região sob controlo de Pirmin, um homem de origem
visigoda. Tal era a política típica dos Pipínidas: cristianizar regiões acabadas de controlar e
recrutar não-Francos para o desempenho de papéis-chave neste processo. A campanha de Carlos
Martel na Alamânia foi, assim, mais uma tournée para inspeção (nomeadamente de recursos
militares) do que uma invasão. Lembra, talvez, uma campanha que fizera Arnulfo de Metz para
o jovem rei Dagoberto I (629-639), na Turíngia. Aliás, Dagoberto instalara colónias militares
francas na zona sul da Alamânia, o que viria a ser muito útil aos projetos bávaros de Martel.
Carlos atravessou depois o rio Danúbio com o seu forte exército e penetrou no ducado
da Baviera. Não deve ter encontrado grande oposição. O Continuador de Fredegário diz que ele
impôs o controlo da região pelos Francos. A vitória fácil deveu-se, talvez, à morte do duque
Teodoberto e ao facto de o sucessor deste, o seu irmão Grimoaldo, não contarem com um apoio
total na Baviera. A oposição a Grimoaldo concentrar-se-ia em torno de Hucberto (filho de
Teodoberto), mas este era ainda menor… Nesta operação, Carlos contou com o apoio do rei dos
Lombardos, Liutprando, que avançou desde Itália. Tal foi o primeiro exemplo de colaboração
militar entre Pipínidas e Lombardos! Também Abbo, o Reitor de St. Maurienne e de Susa, que
controlava o desfiladeiro do Monte Cenis, se tornou num aliado de Martel.
Carlos regressou à Austrásia com uma grande parte do tesouro ducal bávaro, embora a
região não tivesse sido pilhada pelas suas tropas, pois a ausência de resistência levara a um

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tratamento benévolo (tal como fizera Pepino II na Aquitânia, em 709). Carlos trazia também
consigo dois reféns muito valiosos: a mulher de Grimoaldo (Peletrudes) e a irmã de Hucberto
(Sunnichildis, também sobrinha de Peletrude).
Entre 725 e 730, Carlos Martel só teve de mobilizar os seus exércitos uma vez, o que é
absolutamente raro e um sinal da incapacidade dos magnates para lhe fazerem frente! Neste
período, também não parece ter havido conspirações contra a sua pessoa. Note-se que o controlo
que Carlos tinha sobre o seu exército não dependia dos despojos gerados pelas campanhas
anuais. A sua segunda invasão da Baviera, em 728 (mera demonstração de força perante
Hucberto, o novo duque após a morte de Grimoaldo) não gerou despojos, tal como sucederia na
incursão menor levada a cabo por Martel, por motivos desconhecidos, a sul do rio Loire, em
731. Deste modo, entre a devastação da Saxónia na primavera de 724 e o botim tomado aos
Muçulmanos em Poitiers (Outubro de 732), o exército de Carlos não foi alimentado com
despojos de guerra.
Na estação normal da guerra (primavera-verão) de 732, Carlos não mobilizou o seu
exército. Aparentemente, ainda não estava pronto para reduzir o seu ‘aliado’ Eudo da Aquitânia
à ditio (dominação) pipínida, ou para atacar os magnates provençais que, em coligação com
vários príncipes muçulmanos, mantinham a sua independência no extremo sul do regnum
Francorum. Carlos Martel estaria, talvez, a planear a conquista do norte e do leste da Frísia (a
chamada ‘Fresia ulterior’). Todavia, os seus planos foram subitamente alterados: o duque Eudo,
em pânico, rogou-lhe auxílio contra os Muçulmanos, que tinham invadido a Aquitânia com
muito sucesso, sob o comando de Abd al-Rahman, o governador do al-Andalus!
A movimentação dos Muçulmanos na Gália, na primeira metade do séc. VIII, tem de ser
relacionada com a sua conquista da Península Ibérica. Em julho de 710, o governador
muçulmano de África e do Magrebe, Musa ibn Nusayr, ordenou a um seu oficial que procedesse
a um reconhecimento do território ibérico, dominado pelos Visigodos. Feito isso, Musa
encarregou o seu lugar-tenente, Tariq ibn Ziyad, governador de Tânger, de organizar um
exército e de avançar para a Península.
Tariq assim fez e, na primavera ou no verão de 711, tiveram lugar as primeiras
conquistas muçulmanas na Hispânia. Destas operações veio a resultar, em julho de 711, a
batalha de Guadalete, ou de Janda-Barbate, em que os Muçulmanos, chefiados por Tariq,
derrotaram os Visigodos e mataram o seu rei Rodrigo. No verão ou outono de 712, foi a vez de
Musa entrar na Península, tendo conquistado Sevilha, Málaga e Granada. A conquista total da
Hispânia pelos Muçulmanos prolongar-se-ia até 716.
Entretanto, as aspirações árabes de conquista territorial não se confinavam à Península.
A partir daqui, os Muçulmanos dirigiram também as suas atenções para a região meridional da
vizinha Gália. Em 721, um exército muçulmano chefiado por Al-Sahm cercou e capturou
Narbonne e depois sitiou Toulouse, mas Eudo, com uma força de Aquitanos e de seguidores

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Francos (talvez descendentes dos magnates outrora exilados por Ebroïn), derrotou o líder árabe
e repeliu-o da Gália. Al-Sahm foi morto mas o seu sucessor, Anbasa ibn Suhaim al-Kalbi, foi
mais bem sucedido: cercou Carcassonne e Nîmes, na Septimânia, e fez raids para norte, até
Autun ou Luxeuil.
Enquanto a força de Al-Kalbi estava concentrada na Burgúndia, um outro grupo,
comandado por Abd al-Rahman ibn Abd Allah al-Ghafiqi, que o califa omíada renomeara em
729-730 como governador do al-Andalus, atravessou os Pirenéus com um exército que reunia
tropas recrutadas na Hispânia e em África, muito forte em cavalaria e composto essencialmente
por Árabes e por Berberes. Em 731, Abd al-Rahman eliminou o seu rival Munnus, um Berbere
que comandava as tropas muçulmanas no sudeste dos Pirenéus e que se tinha aliado ao duque
Eudo. No verão de 732, Abd al-Rahman avançou contra Bordéus.
Eudo enfrentou Al-Rahman na confluência do rio Dordonha com o Garona, mas, ao
contrário do que acontecera em 721, altura em que defrontara um exército muçulmano
composto sobretudo por infantaria ligeira, desta vez Eudo foi pesadamente derrotado. A seguir,
os Árabes, movidos mais pela intenção de devastar a região aquitana do que de a conquistar,
avançaram para Poitiers, que incendiaram e onde saquearam a igreja de S. Hilário. Tomaram
depois a estrada de Tours, talvez com a intenção de saquear a cidade, que conservava a memória
sagrada do bispo S. Martinho.
Alarmado, o duque Eudo não teve outro remédio senão fugir e pedir socorro a um seu
velho inimigo: Carlos Martel, o poderoso dux dos Francos, que ainda há pouco tempo tinha
invadido a Aquitânia para a sujeitar à sua obediência… Consciente da necessidade de travar os
Muçulmanos, Carlos Martel correspondeu ao apelo e preparou um exército capaz de enfrentar
os invasores. As duas hostes acabariam por se encontrar algures no trajeto entre Poitiers e
Tours, provavelmente mais próximo da primeira do que da segunda daquelas cidades.
Carlos Martel venceu estrondosamente os Muçulmanos na batalha de Poitiers em 25-
26 de Outubro de 73210, e com isso desestabilizou a posição muçulmana no sul, até porque
Abd al-Rahman morreu no combate e grande parte da sua hoste foi chacinada. Mas Martel não
avançou para o saque na Hispânia (onde decerto sabia que Childeberto I e Clotário I haviam
atuado com sucesso e com algum lucro). Carlos não se desviava do seu objetivo estratégico:

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Para além da Continuação de Fredegário, a fonte mais detalhada para o estudo da batalha de Poitiers
(732) é uma fonte hispânica coeva (ou seja, da mesma época do evento), chamada Continuatio Hispana,
que prolonga a História dos Godos do bispo Isidoro de Sevilha. Curiosamente, nesta fonte os Francos são
referidos como “nortistas” (septentrionales). Esta crónica deve ter sido escrita em Toledo ou em Córdova
no ano 754, pelo que também é conhecida por Crónica de 754. O seu relato cobre eventos situados entre
610 e 754, sendo uma das nossas melhores fontes para o conhecimento do período pós-visigótico na
Hispânia e, portanto, para o estudo das conquistas muçulmanas na Península Ibérica e no sul da França. O
seu autor permanece anónimo, devendo ter sido um cristão moçárabe – nome dado aos cristãos ibéricos
que viviam sob o jugo muçulmano tendo adotado elementos da língua e da cultura árabes, mas sem que
isso implicasse a sua conversão ao Islão. Durante muito tempo este autor foi identificado com um suposto
(mas falso) Isidorus Pacencis (Isidoro de Beja).

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conseguir o controlo dos Pipínidas sobre todo o regnum Francorum. Ora, a Península Ibérica
nunca tinha feito parte do reino dos Francos…
Mais extraordinário ainda: Carlos não aproveitou o êxito na batalha de Poitiers (um dos
combates mais relevantes de toda a Alta Idade Média europeia), assim como a sua presença na
Aquitânia (Poitiers), para rever a seu favor a aliança com o quase-independente duque Eudo! As
tropas de Martel foram proibidas de pilhar a região e contentaram-se com os despojos dos
Muçulmanos… Assim, ao evitar um envolvimento na Hispânia distante (de Colónia a Saragoza
distam c. 1.500 km), Carlos mostrou o sentido estratégico dos Pipínidas. E, ao respeitar o
tratado com Eudo, mostrou também o seu bom juízo diplomático, pois não queria ser visto por
terceiros como um aliado pouco fiável…
Entretanto, ainda em 732, Carlos atuou energicamente contra o bispo de Orleães
(Euquério), que ele próprio indicara, porque este não cumprira as suas obrigações de auxílio
militar no contexto da batalha de Poitiers (apesar de Orleães estar bem perto de Tours). O bispo
foi deposto, exilado e expropriado. E Martel fez o mesmo com os magnates burgúndios do
Lyonnais, que, apesar dos seus juramentos de fidelidade, não o tinham apoiado com armas:
tornaram-se infideles e foram destituídos e substituídos por novos comandantes militares da
total confiança de Carlos (ou seja, por “leudes”). Estes contratos militares (foedera) tinham
existência jurídica, à boa maneira imperial romana. Já os magnates urbanos da cidade de Lyon
não foram incluídos nestas purgas exemplares, pois devem ter marcado presença em Poitiers,
entre os muitos Burgúndios que ali estiveram ao serviço dos Francos.
Em 733 e 734 tiveram lugar duas campanhas de Carlos Martel na Frísia ‘ulterior’, que
foi absorvida pelo reino Franco. Os pagãos frísios foram destruídos, a região foi pilhada e os
Frisões nunca mais incomodaram os primeiros Carolíngios.
Logo que o duque Eudo morreu (antes de começar a ‘estação da guerra’ de 735), Carlos
reuniu o conselho dos seus magnates (proceres), reuniu um grande exército e invadiu a
Aquitânia. Numa marcha de sete ou oito semanas (entre Colónia e Bordéus distam mais de
1.000 km) atravessou a Aquitânia desde o Loire até à costa atlântica, sem todavia encontrar
grande oposição, nem sequer da parte dos filhos de Eudo, Hunoaldo e Hatto. Carlos não queria
destruir e pilhar, mas sim alterar a situação constitucional do ducado, quase autónoma em
relação ao regnum Francorum. Ou seja, queria impor ali o regnum carolíngio, numa altura em
que a Aquitânia estava fragilizada, devido à morte do seu duque… Submeteu velhas cidades
fortificadas romanas (como Bordéus, cujo azeite era exportado para Rouen e, provavelmente,
depois para o vale do Sena), mas também alguns castra e suburbia, entre os quais o castrum de
Blaye, que desfrutava de uma posição estratégica de domínio de um ponto crítico do Garona, na
região de Bordéus. Carlos Martel deve ter sido visto como um potencial melhor protetor da
Aquitânia do que o tinha sido Eudo, que falhara face aos Muçulmanos, e do que poderiam vir a
ser Hunoaldo e Hatto.

38
A campanha aquitana de Martel mostra a atenção dispensada ao cerco de velhas cidades
romanas fortificadas e de fortalezas menos importantes. O mesmo sucederia mais tarde, durante
a campanha de Martel na Provença e na Septimânia, e também com Pepino-o-Breve em Itália
(nos anos 750) e na Aquitânia (nos anos 760).
A ideia de Carlos Martel não era excluir Hunoaldo e Hatto do ofício de dux, que se
encontrava nas mãos da família há várias gerações. Martel queria é que o dux Aquitanorum lhe
ficasse submetido. Uma das fontes de que dispomos (os Annales mettenses priores, ou “Anais
de Metz”) explica que Martel deu o ducatus a Hunoaldo e que tratou de garantir a promessa de
fidelidade deste aos filhos de Carlos, Pepino e Carlomano.
Carlos foi inteligente ao não saquear a Aquitânia, que lhe não resistira. Fez como
Pepino II na Alamânia (em 709) e como ele próprio fizera na Baviera, em 725. Em ambos os
casos, também as operações militares tinham sido realizadas na sequência imediata da morte do
respetivos duques. Martel sabia aproveitar todas as boas oportunidades que se lhe deparavam…
No caso da Alamânia, logo no ano a seguir os rebeldes tinham-se revoltado contra o
acordo de submissão imposto por Pepino II. Ora, em 736, Hunoaldo e Hatto fizeram o mesmo
na Aquitânia, contra Carlos Martel. Por esse motivo, este invadiu de novo o território e venceu
os irmãos, capturando Hatto, que foi entregue ao bispo de Auxerre (Ainmar), um aliado de
Carlos e um seu forte apoiante em Poitiers. Mas Hatto fugiu da prisão e Carlos castigou o bispo
com a deposição e a cadeia! Mais tarde, parece que tentou fugir, mas os homens de Carlos
mataram-no. Quanto a Hatto, foi atraído pelo seu próprio irmão a um encontro, onde acabou por
ser preso e cego: tal deve ter sido o preço a pagar por Hunoaldo a Carlos para poder continuar
como dux depois da revolta de 736… A partir daqui, tudo correu bem entre o prefeito
austrasiano (Carlos) e o duque da Aquitânia. Se assim não fosse, Martel não teria conseguido
fazer campanha na Septimânia, pois teria tido as suas linhas de abastecimento cortadas, entre
outras dificuldades. Hunoaldo deve, portanto, passado a servir como legatus de Carlos Martel
na região.
Em 737, Carlos levou de novo o seu exército para Lyon, para submeter os magnates da
cidade ao seu domínio. Eles consideravam-se súbditos do rei merovíngio Thierry IV (721-737).
Porém, após a morte deste ‘rei-fantoche’, Carlos não o substituíra por outro, pelo que os
‘maiores’ de Lyon reconheceram a supremacia de Carlos, não sendo nem exilados nem
expropriados. Carlos deve então ter nomeado o seu irmão Childebrando como dux da
Burgúndia, com total responsabilidade no supervisionamento da mobilização das suas forças
expedicionárias.
Dominada a Burgúndia, Carlos avançou, ainda em 737, para o extremo sul da Gália:
para a Provença e a Septimânia. Na Provença, havia duas famílias que há décadas lutavam pelo
domínio da região: a de Abbo, que tinha distintos antepassados na Burgúndia e que controlava o
desfiladeiro do Monte Cenis e, de um modo geral, os passos alpinos e também a fortaleza

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romana de Susa, juntamente com vastas extensões territoriais; e a família de Mauronto, com
base em Marselha e raízes em grandes famílias da aristocracia neustriana subjugadas por Pepino
II. Com o auxílio de Abbo, Carlos Martel subjugou a Provença (de Arles a Marselha, incluindo
Avinhão) em 737 ou em inícios de 738.
No entanto, o controlo do baixo Ródano não estava assegurado, pois algumas unidades
militares do novo governador muçulmano da Hispânia, Yussuf ibn Abd al-Rahman, avançavam
pela região no fito de estender o seu domínio para leste da Septimânia. Os Muçulmanos tinham
tomado a fortaleza romana de Avinhão, talvez com a ajuda de Mauronto, ansioso por
restabelecer a sua posição no sul da Provença com o apoio muçulmano! Então, Carlos Martel
reagiu e organizou um grande exército com Francos, Burgúndios e, provavelmente, Alamanos e
Bávaros. Tendo conseguido quebrar a colaboração entre a nobreza local e os Sarracenos,
expulsou os Muçulmanos de Avinhão. A seguir, cruzou o rio Ródano e cercou Narbonne (737),
uma importante fortaleza que estava nas mãos dos Muçulmanos desde 719 e que Carlos
conseguiu capturar, não sem antes derrotar um exército de socorro enviado da Península Ibérica,
por via marítima11.
Com tudo isto, o reino dos Francos atingia de novo o Mediterrâneo! O objetivo fora, no
entanto, alcançado à custa de muito sangue, suor e lágrimas, ao ponto de Carlos ter ficado a
dever o seu sobrenome, “Martel”, às repressões e pilhagens a que sujeitou as regiões
meridionais da Gália, já castigadas por uma recessão forte. Tanto para ele como para os seus
adversários, a guerra era, de facto, uma … razia.
Entretanto, no final de 736 (estava Carlos a lidar com a oposição na Burgúndia), o
duque Hucberto da Baviera falecera. Martel fê-lo substituir por um tal Odilo, que nem sequer
pertencia à casta da família bávara dos Angilolfos, os duques da Baviera há várias gerações.
Odilo era apenas um parente colateral de um ramo suábio da família, pelo que a sua nomeação
constituiu um sinal do poder de Martel, que chamou a si a prerrogativa da escolha do novo dux.
Este facto em muito se ficou a dever ao trabalho do bispo Bonifácio, que no outono de 739 já
tinha a Baviera dividida em quatro sés episcopais, com muitos padres consagrados, muitos
bispos locais fidelizados, etc…
Temos assim que, entre 731 e 737, com exceção do final de 733 e da campanha sazonal
de 734, Carlos esteve sempre a liderar operações militares na Aquitânia, na Burgúndia, na
Provença e na Septimânia! Contudo, Martel continava sem poder descansar: enquanto ele
cercava Narbonne (em 737), os Saxões do Hesse oriental, que se tinham mantido calmos desde
a campanha de 724, começaram a atacar alvos dos Francos a oeste do rio Reno…
Os historiadores ainda hoje se perguntam por que razão aconteceu isto. Possivelmente,
não tanto em resultado das punições outrora inflingidas por Martel, mas mais devido à

11
Segundo Claude Gauvard, a fama dos êxitos de Carlos Martel perto de Narbonne transmitiu-se ao ponto
de dar origem, no séc. XII, às célebres canções de gesta de ‘Guilherme de Orange’.

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construção, pelos Dinamarqueses, de um dique defensivo (o Danevirke) que isolava a península
da Jutlândia do continente, com isso impedindo os raids dos Saxões (sempre ávidos de
despojos) para norte, já que os Saxões não tinham meios navais para contornar aquela estrutura
defensiva. Assim, os Saxões, direcionaram de novo os seus raids para o interior do regnum
Francorum, aproveitando também as campanhas de Carlos Martel no Sul da França.
Mas, como sempre, Carlos reagiu depressa: reuniu um exército, atravessou o Reno perto
de Wesel e devastou a colónia saxónica. Nenhum exército saxão ousou enfrentá-lo em batalha.
Depois, Martel impôs um tributo aos Saxões e talvez aí tenha deixado soldados para os vigiar…
Após dominar os Saxões, Carlos organizou uma nova campanha no Sul, pois os
Muçulmanos tinham recuperado Avinhão e havia que dominar Marselha e o seu território.
Carlos reuniu um exército enorme, incluindo Burgúndios e contando também com a promessa
de apoio de Liutprando (rei dos Lombardos). A campanha foi um sucesso, tanto na versão do
cronista de corte coevo (o Continuador de Fredegário) com na dos Anais de Metz. Esta última
fonte indica mesmo que Carlos “subjugou a região inteira ao imperium dos Francos”.
Em síntese, quando chegamos a 739, verificamos que Carlos tinha já estabelecido a sua
ditio sobre virtualmente todo o regnum Francorum e sobre os povos que viviam dentro das suas
fronteiras. Reinava agora sobre um espaço comparável ao de Dagoberto I (um século antes) ou
ao de Clotário I (à morte deste, em 561). A ocidente, a Austrásia, a Nêustria a Aquitânia e a
Burgúndia; mais a leste, a Frísia, o Hesse, a Alamânia, a Turíngia e a Baviera: todas
reconheciam o regnum de Carlos, embora nem todas estivessem formalmente integradas no
principatus que ele podia legar aos seus herdeiros (caso dos ducados da Baviera e da Aquitânia).
Como se vê, Carlos Martel foi um (grande) chefe de guerra, muito mais do que um
governante. E quando o último rei merovíngio (Thierry IV) morreu, em 737, não foi substituído,
pois Carlos permaneceu sempre como prefeito e nunca quis (ou nunca precisou) de ser rei, tal
era a sua independência e autonomia. Deste modo, entre 737 e 741 não existiu nenhum “rex
Francorum”! A supremacia de Carlos era, de qualquer modo, reconhecida pelo papa Gregório
III, que lhe chamava subregulus. O papa propôs mesmo um pactus a Carlos: a Igreja transferia a
sua obediência ao imperador para ele (e até enviou ao princeps franco as chaves do túmulo de S.
Pedro e as correntes que tinham segurado o primeiro bispo de Roma) e, em troca, Carlos
prometia proteger a Igreja dos ataques dos Lombardos. A Santa Sé enviou duas embaixadas a
Carlos Martel e até lhe ofereceu o título, muito atrativo, de patricius. Porém, Carlos, sempre fiel
à sua ‘estratégia gaulesa’, optou por não se imniscuir nos assuntos italianos.
No seu último ano de vida (740-741), sentindo a morte aproximar-se, Carlos Martel
tratou da sucessão e, na boa tradição franca e sob consilium dos seus optimates, fez uma partilha
dos seus vários reinos pelos três filhos: Carlomano (filho de Crotrude), Pepino (filho de
Swanahilda) e Grifo (filho de Sunnichildis, a refém da família dos Angilolfos da Baviera, com
quem Carlos veio a casar também). Grifo recebeu uma região intermédia, com territórios na

41
Nêustria, Austrásia e Burgúndia; Pepino recebeu as partes da Burgúndia, Nêustria e Provença
que não foram legadas a Grifo; e a Carlomano coube em sorte as partes da Austrásia não
atribuídas a Grifo, mais a Aquitânia e a Turíngia12.
Não existe nenhum mapa com esta divisão da herança de Carlos Martel, mas a parte de
Grifo parece ter uma superfície territorial mais diminuta. Isto revela que uma divisão ‘justa’ não
tinha em conta apenas a área, mas também os recursos económicos: a população que pagava
imposto, as terras produtivas, as unidades de fisco, etc.
Para uma tal partilha, Carlos já deve ter disposto de ‘informação especializada’, de
descriptiones, i.é, de listas de inventários, públicos e privados. Poucos documentos deste género
sobreviveram, mas sabemos que, em 751, Pepino dispôs de uma descriptio da res ecclesiarum
(uma espécie de inventário dos bens eclesiásticos), a qual precedeu uma partilha dos recursos da
Igreja.
Quando, depois desta fabulosa carreira militar que aqui recordámos, o dux Francorum
Carlos Martel faleceu, em 22 de Outubro de 741, já ninguém duvidava de que a sua dinastia se
tinha imposto de facto. A unidade cultural e económica do Ocidente estava em marcha, só
faltava mesmo a unidade política, que chegaria em breve, com os Carolíngios (ou seja, com os
descendentes de Carlos Martel)!

Como comenta Hans-Henning Kortüm, depois desta viagem de mais de 250 anos pela
história merovíngia (numa reconstituição que coloca tremendas dificuldades ao investigador),
após Dagoberto I (m. 639) ou, numa hipótese mais generosa, após Childerico II (m. 672), já não
havia reis merovíngios ativos política e militarmente. Cabia agora a poderosas famílias nobres o
papel dominante. Por vezes, uma dessas famílias conseguia apoderar-se do ofício de ‘prefeito do
palácio’, o oficial que organizava as campanhas militares contando com os guerreiros da sua
família e com os das famílias dos seus amigos. Prevaleceu uma rede de famílias nobres
distribuídas pelas várias regiões dos reinos merovíngios. Estas famílias não precisavam do rei
para lutar, mas convinha-lhes que ele existisse, porque sempre era mais fácil fazer a guerra em
nome de um assunto de Estado e com acesso ao thesaurus real…
O ofício de prefeito, em especial a partir de meados do séc. VII, estava profundamente
enraizado nos três grandes ‘reinos’ (Austrásia, Nêustria e Burgúndia). Os conflitos desta época
foram ações de resistência contra os prefeitos centralizadores, que não respeitavam as tradições
locais (como, p.ex., Ebroïn da Nêustria). Cada reino possuía a sua própria consciência e
identidade, que cabia ao monarca salvaguardar. Assim sendo, não havia grande possibilidade de
um monarca unificar realmente os três reinos sob a sua tutela. Repare-se nas guerras entre
Sigeberto I, Chilperico I e Gontran, os filhos de Clotário I (netos de Clóvis), nas décadas de 570

12
Note-se que, para este efeito, a Frísia e a região do Hesse devem ter sido consideradas como fazendo
parte da Austrásia.

42
e 580. E veja-se como, ao adotar o filho de Sigeberto I (o seu sobrinho Childeberto II), Gontran
da Burgúndia mostrou respeito pelo sentimento da nobreza austrasiana, que não queria os
Burgúndios, ou os Neustrianos de Chilperico, a dominá-la…
Como é que os Carolíngios, que subirão formalmente ao trono em 751, transformaram
esta ‘massa’, esta herança histórica num Império poderoso e unificado que ainda hoje
impressiona pela sua dimensão e eficácia político-militar, eis o que trataremos de explicar já a
seguir…

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4. No Império Carolíngio

4.1. Um fundador: Pepino-o-Breve (751-768):


À morte de Carlos Martel (em Outubro de 741), os Grandes torceram o nariz ao acesso
de Grifo (ainda adolescente) à sua parte da herança paterna. Carlomano e Pepino aproveitaram o
facto para deserdar o irmão e Grifo refugiou-se em Laon, mas foi cercado pelos irmãos e
rendeu-se. Ficaria preso em Chèvremont (Liège), sob o controlo de Carlomano. Quanto à sua
mãe, Sunnichildis, foi encerrada num convento na Nêustria (em Chelles) pelos enteados,
ficando sob a vigilância de Pepino… Repare-se que tudo isto ocorreu logo entre a morte de
Carlos Martel e o início da campanha anual de 742!
Entre 741 e 747, Carlomano exerceu o cargo de prefeito do palácio da Austrásia,
enquanto Pepino se tornou prefeito da Nêustria. Não foram fáceis os primeiros anos da
governação de Pepino-o-Breve. A oposição da aristocracia franca, muito arreigada ao poder
mágico dos reis cabeludos, era forte e, em 743, os príncipes germânicos e aquitanos, revoltados,
até decidiram restabelecer no trono um rei merovíngio – Childerico III (743-751). Mas Pepino
soube tirar partido do sistema ‘vassálico’ preparado por Carlos Martel e, em aliança com o
irmão Carlomano, obteve vitórias militares na Baviera, na Aquitânia e na Alamânia (ducado que
transformou então em dois condados, que foram ligados ao reino).
A aliança entre Pepino e a Igreja revelar-se-ia essencial para a consolidação do percurso
político do terceiro Pipínida. Juntamente com o bispo Bonifácio, Pepino encontrou uma solução
para os bens da Igreja confiscados por Carlos Martel e entregues aos laicos por imperativos
militares. Essa solução passou por um compromisso chamado “precária”, que pressupunha o
pagamento por parte dos detentores desses bens de uma renda perpétua à Igreja, ou de uma
renda anual de 10 denários.
Em 747, Carlomano entrou para a abadia de Monte Cassino e Pepino-o-Breve (assim
chamado devido à sua baixa estatura) ficou com as mãos livres para exercer o poder, embora
tenha ainda sido obrigado a sufocar as revoltas do sobrinho Drogon (filho de Carlomano) e do
seu próprio irmão Grifo, que contavam com o apoio dos Bávaros e dos Saxões. Vitorioso,
Pepino viu então completamente aberto o caminho para a conquista do título real!
O exemplo visigodo e as teorias de Isidoro de Sevilha apontavam no sentido da
sagração dos reis. E esse objetivo também aproximou Pepino-o-Breve da Igreja. O rei
Childerico III (formalmente, o último rei da França merovíngia) foi afastado com a caução do
papa Zacarias e, em Soissons, em novembro de 751, Pepino III foi eleito rei e ungido e coroado
pelo bispo Bonifácio. O poder da unção (a deposição dos óleos sagrados sobre o corpo do
monarca) tinha uma natureza sobrenatural e, através dela, o monarca ficava responsável, não
apenas perante os homens, mas também perante Deus. Deste modo, Pepino imitava Saul e,

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sobretudo, o rei David. Em 754, teria lugar uma nova sagração do primeiro rei carolíngio, desta
feita pelo papa Estêvão II [ou III, segundo outros], completada pela unção de Carlos Magno e de
seu irmão Carlomano, filhos de Pepino-o-Breve e de sua esposa Bertrade. Com isto, estava
estabelecida a hereditariedade real dinástica, ao mesmo tempo que se firmava a união das duas
monarquias: a eclesiástica e a régia. Em conformidade, Pepino III foi designado “patrício dos
Romanos” e tornou-se no protetor do papado, ameaçado pelas ambições dos Lombardos.
No desempenho deste papel de ‘campeão’ da Igreja Católica, Pepino-o-Breve levou a
cabo duas campanhas contra os Lombardos do rei Aistulfo, em 755 e em 756. No decurso
dessas campanhas, tomou Pavia e protagonizou uma entrada triunfal em Roma. Durante a
segunda campanha, Pepino entregou ao papado as terras conquistadas: o ducado de Roma, o
exarcado de Ravena, a região de Emília (no norte de Itália), a ‘Pentápole italiana’ (agrupamento
de cinco cidades na costa do Adriático: Rimini, Pesaro, Fano, Sinigaglia e Ancona) e grande
parte do vale do Tibre. Em 757, Didier tornou-se rei dos Lombardos e prometeu respeitar as
conquistas francas.
Os Carolíngios contribuíram, portanto, para fundar o património de S. Pedro em torno
de dois pólos: Ravena e Roma. Note-se que este ‘Estado de S. Pedro’, ou ‘Estado pontifical’
subsistiria até à unificação italiana de 1870!
Também é importante destacar a campanha militar levada cabo por Pepino III na
Aquitânia revoltada: tratou-se de uma operação dificílima, devido à força das tradições galo-
romanas na região, mas Pepino acabou por conseguir impor a vontade dos Francos. Para além
disso, o primeiro monarca carolíngio assegurou a submissão dos Saxões e a fidelidade da
Baviera (tendo o príncipe bávaro Tassilo sido compelido a vir jurar fidelidade a Pepino) e
garantiu também a neutralidade dos Bretões. Em 752-759, Pepino operou no sul de França e
tirou partido da fraqueza do emir de Córdova para retomar Narbonne aos Muçulmanos.
Noutro plano, Pepino III levou a cabo uma importante reforma religiosa, com o auxílio
de Chrodegang, bispo de Metz. Essa reforma passou pela uniformização da liturgia, pela
preparação de regulamentos para os clérigos, pelo reforço do poder dos bispos, por recolhas
litúrgicas ou sacramentais que difundiam as orações e as fórmulas vindas de Roma, pela
imposição generalizada do já referido sistema das ‘precárias’, pela instituição da ‘dízima’ a
favor do clero e, finalmente, por uma inventariação rigorosa dos bens do clero.
No plano económico, destacamos a reforma monetária de Pepino-o-Breve em 755: ele
foi o 1.º rei dos Francos a editar uma regra monetária. Impôs também o monopólio da cunhagem
régia e o denário com um monograma real e um peso uniforme (1,22 gramas de prata).
Com Pepino III, o primeiro rei carolíngio, o reino franco tornou-se no espaço político da
Cristandade no Ocidente, face a uma Península Ibérica ocupada pelos Muçulmanos (apenas
subsistiam minúsculos reinos cristãos no sopé dos Pirenéus) e face a Bizâncio, centrado mais
sobre a Ásia Menor e sacudido pela questão religiosa das imagens. Neste cenário, ainda que

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estivesse longe de ser o mais brilhante do ponto de vista cultural, o reino dos Francos impunha-
se a Ocidente pela sua unidade, pela sua aliança com a Igreja e pelo seu controlo de um espaço
nórdico em progressiva expansão.

4.2. Carlos Magno, o conquistador (768-814):


Em 768 morreu Pepino-o-Breve e teve lugar uma partilha de poderes entre Carlos
Magno (recebeu o que o pai conquistara) e seu irmão Carlomano (ficou com a parte do tio).
Porém, logo em 771 Carlos Magno ficou sozinho, devido à morte de Carlomano (na sequência
de conflitos vários e com exílio da viúva de Carlomano na corte lombarda do rei Desidério…).
As fontes históricas para o conhecimento do reinado de Carlos Magno são bastante mais
abundantes: recapitulando, desde logo, a biografia feita por Eginhardo (Vita Karoli), mas
também os anais régios (Anais do Reino dos Francos e Anais do Reino dos Francos Revistos),
os poemas históricos e ainda 80 decretos ou capitulares e 160 diplomas autênticos, entre outras
fontes. A lenda de Carlos Magno ficou muito associada à famosa Canção de Rolando (de finais
do séc. IX), mas também à Crónica do Pseudo-Turpin (dos meados do séc. XII). Em 1165, teve
mesmo lugar a canonização de Carlos Magno, por iniciativa de Frederico I Barba-Roxa, titular
do Sacro Império Romano-Germânico. Poucos anos mais tarde, Filipe II ‘Augusto’ (1180-1223,
um dos monarcas mais carismáticos da França Capetíngia) declarou descender de Carlos
Magno, considerado como um dos ‘nove bravos’ do reino…
É conhecido o retrato físico de Carlos Magno ‘desenhado’ por Eginhardo: homem largo
e robusto, com cerca de 1,85 m de estatura (o que seria descomunal para a época, e altamente
improvável tendo em conta que descendia de um homem de baixa estatura), nariz comprido,
belos cabelos brancos e fisionomia alegre… Tinha 21 anos à morte do pai, Pepino-o-Breve, e é
apresentado como uma autêntica força da natureza: comilão, bom nadador, bom caçador, etc.
Carlos Magno teve sucessivas esposas, mas só Hildegarda lhe deu filhos (e muitas filhas, que
não casou). À boa maneira bárbara, teve igualmente muitas concubinas. Talvez soubesse ler e
escrever e é certo que apreciava muito os relatos antigos. A sua cultura foi, pelo menos,
suficiente para alimentar um projeto político que consistia em restaurar o Estado e em dotá-lo de
uma aura inequívoca de ‘romanidade’.
Entretanto, tal como os seus antecessores, Carlos Magno foi um chefe guerreiro e
praticou a guerra em praticamente todos os anos, a partir da primavera, altura em que se iniciava
a ‘estação guerreira’, que requeria bons pastos, estradas transitáveis e campos com colheitas
abundantes. Em Maio, tinha lugar a convocação dos homens livres de que o rei necessitava para
uma campanha com duração de cerca de três meses. Segundo Claude Gauvard, Carlos Magno
podia geralmente contar com 50.000 cavaleiros e com muita infantaria, mas trata-se de um
exagero da Autora, pois raramente os melhores exércitos carolíngios excederiam os 10.000 a, no

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máximo (guerras de Carlos Magno contra os Ávaros), 20.000 efetivos. O equipamento dos
cavaleiros era o seguinte: cavalo, espada, lança, machado, francisca (machado de arremesso),
scramasax (faca longa), escudo, capacete e cota de malha ou couraça. Estima-se que o conjunto
deste equipamento custasse o equivalente a 20 bois ou 40 vacas!
Devemos acentuar que Carlos não era adepto de exércitos volumosos, difíceis de
abastecer e de comandar e muito desiguais em equipamento e destreza marcial. Carlos preferiu
uma cavalaria selecionada (colhida entre os homens livres mais ricos) mas boa, eficiente,
bastante móvel e fiel (até porque se tratava geralmente de vassalos que tinham recebido
benefícios do rei). O monarca criou também uma espécie de comandos ou de ‘brigadas ligeiras’
(as scarae), formada por profissionais da guerra ligados ao rei que estavam sempre disponíveis
para o combate e que eram muito móveis. Tal como no passado, os grandes saques e despojos
permitiam dar grandes recompensas aos homens livres que serviam o rei na guerra.

O programa político e ideológico do segundo monarca carolíngio passava por proteger o


reino e por difundir a fé. E não há dúvida de que foi cumprido, pois o reino dos Francos
duplicou até 814 (o ano da morte de Carlos Magno)! Logo a partir de 768, Carlos empenhou-se
na submissão definitiva da Aquitânia; e, desde 772, na obtenção de uma vitória decisiva sobre o
rei Didier, dos Lombardos, na sequência de um apelo do papa Adriano I. Bem sucedido, Carlos
Magno fez-se coroar ‘rei dos Lombardos’ no ano de 774. Entretanto, como explica Eginhardo,
as campanhas mais assanhadas foram as dirigidas contra os Saxões: foi organizada nada menos
do que uma vintena de expedições sangrentas, ao longo de 33 anos consecutivos, contra estes
pagãos, acompanhadas por pilhagens terríveis, pela punição severa da felonia (o que incluiu a
decapitação de 4.500 Saxões no local do combate e a deportação de 10.000 famílias para a Gália
e a Germânia) e por uma tentativa de cristianização forçada dos Saxões. Só nos finais do séc.
VIII é que Carlos Magno (que só em dois anos não comandou pessoalmente estas campanhas)
conseguiria obter a rendição e a conversão dos Saxões, o mesmo tendo sucedido com os Frisões.
Também a conquista da Baviera absorveu muita da atenção de Carlos Magno, que
ambicionava dominar toda a Germânia. Por prudência, o grande rei carolíngio foi igualmente
implantando ‘marcas’ nas fronteiras territoriais com os adversários mais propícios à revolta: os
Muçulmanos, a sul dos Pirenéus; os Ávaros, a leste; e os Bretões, a oeste. Como se sabe, a
intervenção militar carolíngia na Península Ibérica está ligada à história do combate trágico de
Roncesvales, segundo a tradição travado em 778, mas que provavelmente terá ocorrido apenas
em 808. Este combate ficaria imortalizado na Canção de Rolando, um cantar de gesta de finais
do séc. IX que constitui13 uma das primeiras obras-primas da literatura francesa.

13
O epitáfio de um senescal chamado Eginhardo, assim como os Anais do Reino dos Francos Revistos e a
Vida de Carlos Magno (composta por esse outro Eginhardo de que temos falado) atestam a realização de
um combate em 15 de Agosto de 778, na parte sul dos Pirenéus (no alto de Ibañeta, região de Valcarlos).

47
Através de uma capitular que ficou célebre (a Capitular de Herstal, de 779), Carlos
Magno procurou restabelecer a ordem na Igreja e no Estado. Por essa época, o rei procurava
igualmente assegurar a fidelidade dos países periféricos meridionais, pelo que os filhos de
Carlos Magno foram colocados ao comando das regiões fronteiriças do sul: Luís (o mais velho)
foi feito rei da Aquitânia em 781; Pepino tornou-se rei da Itália; e um cunhado do rei, Gérold,
foi nomeado prefeito da Baviera.
O sistema não evitou, todavia, a eclosão de uma grave crise em 793-794. Esta crise foi o
resultado de dificuldades militares em diversas frentes: os Muçulmanos cruzaram de novo os
Pirenéus; em Itália, deu-se uma sublevação em Benevente; a norte, os Saxões revoltaram-se de
novo; e, como se não bastasse, a própria aristocracia franca, manobrada por um bastardo de
Carlos Magno (Pepino-o-Corcunda), aproveitou o contexto para conspirar contra o monarca…
As dificuldades foram superadas, mas tudo isto fez com que, em 794, Carlos Magno tratasse de
restaurar o seu poder: um sínodo reunido em Frankfurt procurou organizar melhor a vida da
Igreja e do Estado, dando continuidade à Capitular de Herstal; e o rei passou a instalar-se em
Aix-la-Chapelle14. Era o início da caminhada rumo ao Império.

4.3. À cabeça do Império – coroação, governação, poder local e vassalidade:


No extremo final do séc. VIII, reuniram-se as condições para Carlos Magno poder
concretizar o seu sonho imperial. Por um lado, a fraqueza do papa Leão III, eleito em 795 e
vítima da aristocracia romana [caiu numa emboscada e foi torturado e preso, tendo fugido],
tornava-o mais maleável aos interesses carolíngios. Por outro, os incidentes em Bizâncio, com a
imperatriz Irene a mandar cegar o seu filho Constantino VI para lhe usurpar o trono, levaram os
ocidentais a considerar já não existir verdadeiramente um imperador no Oriente.
O clima tornou-se, portanto, propício à coroação de Carlos Magno pelo papa. A
cerimónia viria a ocorrer no Natal de 800, na Basílica de S. Pedro, em Roma, e “Carlos
Augusto”, foi “coroado por Deus, grande e pacífico imperador dos Romanos”, desejando-se-lhe
“vida e vitória!”. Ao que parece, Carlos ficou algo descontente com a cerimónia: teria talvez
preferido o ritual bizantino, com a sequência ‘aclamação, coroação e adoração’, em vez da

Aqui terão morrido não só o referido senescal, mas também um conde da ‘marca’ da Bretanha, chamado
Rolando, e um alto oficial da corte carolíngia: Anselmo, o ‘conde do palácio’. Tem-se feito corresponder
esta batalha ao combate de Roncesvales narrado na Canção de Rolando. Mas este só deve ter ocorrido em
15/16 de Junho de 808, no lado norte dos Pirenéus, no lugar – agora sim – de Roncesvales. Foi aqui que
morreu o célebre Rolando sobrinho de Carlos Magno, numa emboscada às mãos dos Bascos, entre os
quais Bernardo del Carpio, paladino da independência asturiana, possivelmente apoiado por um
contingente muçulmano com interesses anti-carolíngios convergentes. Aliás, a Canção de Rolando refere
que os atacantes eram Muçulmanos, embora de facto devessem ser, na sua maioria, Bascos, um povo
cristão mal submetido aos Francos e propenso a alianças com os Aquitanos revoltados. Cf. Vicente José
González García, Bernardo del Carpio y la batalla de Roncesvalles, Oviedo, Fundación Gustavo Bueno,
2007.
14
Aix-la-Chapelle: hoje Aachen, no centro-leste da Alemanha, perto de Colónia, a escassos 5 km da
junção das fronteiras da Alemanha, da Holanda e da Bélgica

48
coroação pelo papa, seguida da aclamação. Como quer que seja, foi um êxito político (e
ideológico) tremendo, que em muito se ficou a dever ao bom trabalho prévio dos letrados ao
serviço de Carlos Magno: sobretudo o anglo-saxónico Alcuíno, o lombardo Paulo Diácono e
Teodulfo (curiosamente, um hispano-visigodo). O papa Adriano I chamaria ao rei carolíngio
“magnus rex”, de onde veio a resultar … “Carlos Magno”.
Entretanto, Carlos tratara também de acautelar uma residência compatível com a sua
elevada dignidade. A partir de 788, começou a erguer o faustoso palácio de Aix-la-Chapelle,
que seria terminado uns 10 anos mais tarde, embora Carlos, ansioso, se tenha começado a
instalar ali desde 794. Trata-se de um programa arquitectónico monumental e que mostra bem
como Carlos Magno desejava edificar a ‘cidade de Deus’ na terra.
Assistimos, com tudo isto, a um restauro do velho conceito romano de ‘Império’: Esta
ideia de retorno e de tempo cíclico é, aliás, típica do pensamento religioso e político da Idade
Média. Mas não bastava ao novo imperador governar, ele deveria ‘governar bem’. Para isso, aos
poucos, os capelães ganharam cada vez mais importância no séquito real. Ao mesmo tempo,
Carlos Magno esforçou-se (com um sucesso apenas parcial) por ser reconhecido em Bizâncio
como o novo imperador do Ocidente, ou seja, como um ‘igual’, uma vez que encarnava a
renovação da tradição antiga. E, em 813, Carlos tratou de associar Luís-o-Pio (o seu filho e
sucessor) ao Império, transmitindo-lhe o título de “imperador e augusto”.

Apesar de todos os títulos e sucessos, não seria nada fácil governar um império da
dimensão daquele que Carlos Magno havia construído, a partir da herança merovíngia. Estima-
se que existissem perto de 3.000 funcionários para 5 milhões de habitantes [B. Bachrach fala em
7 a 8 milhões a norte dos Alpes] distribuídos por um espaço imenso, onde hoje poderíamos
incluir dúzia e meia de países da Europa ocidental e central! De resto, os itinerários de Carlos
foram bastante limitados: o imperador nunca foi à Borgonha, nem às regiões ocidentais do
Império, e só as paisagens da Austrásia lhe seriam familiares.
Carlos Magno era, de qualquer modo, um chefe com grande carisma, servido por uma
boa rede de fiéis. Teve o cuidado de chamar para junto de si sobretudo homens da Austrásia e
da Nêustria, muitos deles seus familiares, e tentou uniformizar e exercer em toda a parte o ‘ban’
(i.é, o direito bárbaro de origem pública que consistia em comandar, em punir e em
constranger). Para isso, recorria a meios diversos, tanto a laços pessoais e diretos como a
poderes delegados. Impôs também a prática do juramento ao imperador por parte de todos os
homens livres com mais de 12 anos. E começaram a tornar-se mais frequentes as capitulares,
redigidas na bela letra carolina. Os temas destes ‘decretos’ eram variados: exército, justiça,
igreja, etc. De entre as capitulares mais célebres, destacam-se a Admonitio generalis de 789,
dirigida aos condes, e a capitular De villis (com data desconhecida), relativa à administração dos
grandes domínios que compunham o ‘fisco’. Do mesmo modo, devemos evocar a capitular

49
(emitida em 802) sobre os famosos missi dominici (literalmente, os ‘enviados do senhor’), esses
agentes plenipotenciários conhecidos como ‘os olhos e os ouvidos do imperador’ e que
formavam pequenas brigadas mistas (geralmente dois laicos e dois clérigos) a quem eram
atribuídas determinadas regiões que deveriam fiscalizar trimestralmente, fazendo sobre isso
relatórios circunstanciados ao imperador e garantindo regionalmente a aplicação dos seus éditos.
No plano local, os Carolíngios retomaram o sistema merovíngio dos condados, com
tudo o que ele tinha de eficiente mas também de perigoso. O império de Carlos Magno estaria
dividido em 200 condados (pagus, i) e a nomeação dos comites era feita pelo imperador. Na sua
circunscrição, o comes exercia funções públicas de juiz, de chefe militar e de recebedor de
impostos. Em princípio, era auxiliado por todos os homens livres do condado, que deveria
reunir periodicamente em assembleia: o mallus publicus. Na primavera, o conde devia convocar
a hoste, colaborando assim na preparação das campanhas militares da realeza.
Os condados subdividiam-se em “vigueries” (no Midi) e em “centaines” (no Norte) e
todos os condes dispunham de uma ‘honra’ (i.é, de um conjunto de bens e de rendimentos que
estavam associados à sua função) e ficavam com uma percentagem das multas que aplicavam. A
estrutura, no seu conjunto, parece ter-se revelado demasiado pesada, sendo também prejudicada
por algum absentismo dos condes (p.ex., em relação à prestação do serviço militar efetivo).
Muitas das dificuldades concretas da governação eram superadas pela política de apoio
de Carlos Magno à Igreja e de apoio desta ao rei: a Igreja beneficiava de imunidades, mas
também garantia a obediência do clero ao monarca e este conseguia controlar a nomeação dos
bispos e dos abades.
Ao mesmo tempo, a origem bárbara que se escondia (mal) por baixo do rótulo e do
verniz imperiais, fazia com que, entre o ‘público’ e o ‘privado’, existisse uma fronteira muito
fluida. Os escravos seriam, à partida, os únicos excluídos do serviço militar e da administração.
Mas não sejamos ingénuos: entre os homens livres, só os mais ricos (ou os profissionais com
conhecimentos de Direito) é que intervinham realmente nas assembleias públicas.
Paralelamente, tal como no passado merovíngio, crescia a tendência para a autonomia local,
através da ação dos condes e da constituição das clientelas e das fidelidades próprias desta
época. O trabalho dos missi dominici era precioso, no sentido da vigilância regular da
administração local por parte de delegados pessoais do imperador, mas não podia travar o
inevitável…

Um dos grandes segredos do sucesso carolíngio teve que ver com a forma como Carlos
Magno desenvolveu os laços privados criados pela vassalidade. A encomendação já era comum
na época romana e generalizou-se sob os Merovíngios, unindo as clientelas aristocráticas mas
permanecendo privada. A sua utilização pública só surgiu posteriormente: Carlos Martel,

50
alegadamente, instituiu a vassalidade para formar o seu exército; já Pepino-o-Breve e,
sobretudo, Carlos Magno ampliaram-na até fazer dela um meio de governo!
É seguro que o soberano tinha os seus próprios vassalos, os vassi dominici, que de resto
recordam os antrustiões merovíngios. Tratava-se não só de cavaleiros do seu exército (a ‘ponta
de lança’ das suas conquistas), mas também de responsáveis pela administração, como por
exemplo duques, condes, bispos ou abades.
A relação do soberano com os homens livres dotados de uma certa fortuna desdobrava-
se, assim, através do jogo dos juramentos. Eles prestavam ao soberano um juramento público e,
pela vassalidade, prestavam também um juramento privado. O caso da aristocracia que
frequentava o palácio do rei (os nourris do rei, um autêntico viveiro de funcionários e de
vassalos) é particularmente sugestivo.
Por outro lado, a encomendação, encorajada por Carlos Magno, dos pequenos
proprietários aos seus vizinhos mais poderosos (os condes e os abades), também foi importante.
A fidelidade afirmava-se, um pouco por todo o império, como o fundamento da ordem.
Aos poucos, a distribuição de benefícios aos vassalos instalados ou ‘chasés’ (i.é,
casatus, investidos de um bem/feudo) foi cumprindo o seu papel e o ritual da vassalidade foi-se
precisando: colocação das mãos entre as mãos do senhor, prestação de juramento de fidelidade
sobre as relíquias, etc., tudo isto contribuindo para a criação de uma espécie de parentesco que
envolvia os dois homens implicados e os comprometia a prestarem serviços recíprocos até à sua
morte.
Pode, naturalmente, perguntar-se se a vassalidade privada reforçou ou se, pelo contrário,
foi um sinal de fraqueza da autoridade central? É possível que ela tenha servido para limitar o
poder da aristocracia nos países periféricos, como na Aquitânia ou na Baviera, criando laços
diretos entre os nobres dessas regiões rebeldes e o imperador. Mas, por outro lado, a vassalidade
fomentou um cenário que permitia aos membros mais poderosos da aristocracia (os condes)
aumentar a sua autoridade sobre os mais fracos.
Associada às reformas administrativas, a vassalidade acelerou o processo de
hierarquização social entre os homens livres mas, sobretudo, no seio da própria aristocracia. Em
todo o caso, nos inícios do séc. IX a repartição dos poderes permanecia ainda suficientemente
equilibrada para convir ao imperador e, simultaneamente, aos Grandes.
Em conclusão, sendo, mau-grado a sua aura de ‘romanidade’, um chefe guerreiro
bárbaro (a sua última luta foi contra os Normandos de Godofredo, que devastavam as costas da
Gália e da Germânia, tendo Carlos organizado uma frota para os combater), Carlos Magno não
baseou o seu poder num aparelho de Estado. Tratou-se de um poder pessoal, asente na palavra,
no gesto e na(s) fidelidade(s). Tudo em nome do povo dos Francos, um povo eleito por Deus!

4.4. A economia carolíngia – do estremecimento à retoma:

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Avaliar as virtudes e/ou fragilidades da economia carolíngia constitui ainda hoje um
assunto polémico. Terá havido crescimento ou, pelo contrário, desaceleração?
Podemos começar por olhar para as propriedades diretamente sob a tutela de Carlos
Magno e para a sua gestão. Falamos de cerca de 600 domínios situados entre o rio Reno e o rio
Loire. Sabemos que existiu uma regulamentação sobre o aprovisionamento das colheitas e sobre
a comercialização dos excedentes (vide a já citada capitular De villis, cuja data exata se ignora).
E sabemos também que os intendentes detinham nas suas mãos os domínios do ‘fisco’, com a
respetiva gestão a servir, provavelmente, de modelo às pequenas explorações. Nos meados do
séc. IX, houve lugar à elaboração de inventários (Brevium exempla), por ordem do poder.
Quanto às grandes abadias, começaram a redigir polípticos (inventários em cadernos de
diversas folhas) que nos dão uma ideia acerca da organização dos grandes domínios e dos
encargos que pesavam sobre os respetivos habitantes: predomínio das culturas cerealíferas;
precariedade acentuada, com uma utensilagem rudimentar (pouco ferro) e raros moinhos; fracos
rendimentos (não mais do que dois ou três grãos de colheita por cada semente); e uma mão-de-
obra rara. As fomes foram endémicas e atingiram mesmo alguns picos, como parece ter
acontecido nos anos de 793 e 794. Os primeiros sinais de uma renovação seriam dados a norte
do rio Loire, designadamente com a multiplicação dos essarts, i.é, dos terrenos roçados e
preparados para cultivar, numa palavra, dos arroteamentos.
No período carolíngio, deve ter havido um grande desenvolvimento das villae. Mas
devemos reconhecer que o conhecimento disponível sobre as pequenas propriedades (os alódios
e as tenências ou colonatos) é muito escasso. Existiam grandes domínios, nomeadamente
eclesiásticos; p. ex., só Saint-Germain-des-Prés dispunha de 25 domínios, i.é, de cerca de
75.000 hectares de terra repartidos pela região parisiense!
A origem desta grande propriedade é controversa. Virá da Antiguidade galo-romana
(como pretende Ch. E. Perrin) ou, como hoje defendem alguns historiadores, terá surgido
apenas na charneira dos sécs. VII-VIII (cf. A. Verhulst)? Sabemos que as villae já existiam na
época merovíngia, mas a sua aparência era diferente: havia mais bosque, menos camponeses
investidos de bens (casati), mais escravos e menos corveias. Parece que o loteamento desses
grandes domínios merovíngios, sob a forma de ‘mansos’ confiados a camponeses, terá
aumentado no decurso do séc. VII. Uma parte da propriedade era reservada ao senhor, enquanto
a outra parte era loteada entre camponeses.
Ao que se sabe, o sistema apareceu a norte do ‘Bassin parisien’. Mas a sua
disseminação geográfica teve os seus limites e também nunca constituiu um modo de
exploração exclusivo (mesmo para a aristocracia): nesta forma repartida (‘reserva’ / ‘mansos’),
ela nunca existiu, por exemplo, na Aquitânia ou na Auvergne, onde as villae eram sobretudo
constituídas por tenências agrupadas, cujos colonos não estavam sujeitos às corveias (prestação
de trabalhos a favor do senhor).

52
Os Carolíngios difundiram a villa bipartida, cuja base era o manso, em princípio
indivisível. À reserva também se chamava, aliás, o ‘manso do senhor’. São conhecidas algumas
variantes jurídicas do manso – ‘livre’, ‘servil’ ou ‘liberto’ – conforme a categoria social do
respetivo detentor.
A parte intitulada ‘reserva’ era explorada por escravos domésticos e pelas corveias, que
podiam assumir formas diversas: realização de tarefas (p.ex., transportes) em prol do senhor;
prestação de dias de trabalho semanal a favor do senhor (i.é, nas terras dele); ou cultivo direto
de uma determinada parte da reserva. Quanto às rendas ou censos, eram geralmente pagas em
géneros: cabeças de gado, ovos, aves de capoeira, cereais ou vinho, muitas vezes em datas
coincidentes com os ciclos agrícolas.
Devemos, entretanto, sublinhar que, dentro deste panorama geral, existiam também
muitas situações híbridas, muitas misturas ou interpenetrações de modelos: p.ex., mansos
fracionados, casamentos entre homens livres e não-livres, desempenho de cargos
administrativos por habitantes da villa (feitor, monteiro, guarda dos rebanhos), etc. A realidade
é sempre mais diversa do que os nossos esquemas e não se deixa aprisionar facilmente pelo
historiador…
As vantagens dos grandes domínios tinham que ver, sobretudo, com o facto de
assegurarem uma repartição do solo que orientava os excedentes de modo a que uma pequena
elite (os detentores das ‘reservas’) pudesse viver à vontade. O sistema tendia para a autarcia,
não obstante, permitia desenvolver (com a mão-de-obra servil e os respetivos censos ou rendas)
investimentos pesados, como por exemplo os moinhos de água, os lagares e os fornos. Em todo
o caso, o essencial das iniciativas agrícolas provinha dos mansos, o que atesta o dinamismo da
pequena exploração (fosse ela um manso ou um alódio). Neste ambiente, deve salientar-se a
importância da célula conjugal e da paróquia.

Também são conhecidos os estímulos dados por Pepino-o-Breve e por Carlos Magno ao
comércio: moralização das vendas; interdição da usura; trocas em lugares públicos e durante o
dia; fixação de preços de alguns produtos (p.ex, cereais) de modo a limitar os abusos em caso de
fome; criação de alfândegas para controlo do comércio; regulamentação severa do comércio das
armas francas (com proibição de as vender fora do reino); construção ou restauro de pontes e de
estradas; etc.
Carlos Magno, em particular, apoiou muito o comércio: cunhou um denário de prata
mais forte (1,60 gramas); adotou uma unidade de peso (a libra, de montante superior à libra
romana); e articulou a libra e o denário entre si (1 libra = 20 ‘soldos’; 1 soldo = 12 denários; 1
libra = 240 denários). Repare-se que se tratou de equivalências que vigoraram por toda a Idade
Média!

53
Como é sabido, o monometalismo da prata era próprio, sobretudo, dos países do Norte
da Europa (em Itália, p.ex., continuava a cunhar-se a moeda de ouro). De onde vinha essa prata?
Decerto, da exploração de minas no Ocidente e de algumas exportações.
Neste ponto, vale a pena recordar as trocas com o mundo muçulmano, onde circulava o
dirhem, a moeda de prata muçulmana (que equivalia a 2/3 do denário franco). Na linha do seu
pai, Carlos Magno afirmou claramente o monopólio régio da cunhagem de moeda.
Naturalmente, houve exceções que conseguiram sobreviveram: p.ex., diversos abusos,
trocas diretas (mercadorias contra mercadorias ou produtos), etc. Mas o resultado geral foi bom:
mais mercados, mais mercadores, mais produtos, sobretudo no Norte e entre o Reno e o Loire,
mas também com os países meridionais. Produtos como o azeite, as especiarias, o vinho, ou
então escravos mas também cristais, metais preciosos e sedas transitavam nesta época pelo vale
do Ródano ou pelo vale do Danúbio. Em Itália, as cidades de Amalfi e de Veneza conheceram
um novo fôlego que as foi ligando ao Oriente e o seu desabrochar não deixou o mundo
carolíngio indiferente…

4.5. De Luís-o-Pio (814-840) à partilha do Império (Tratado de Verdun, 843):


A sucessão de Carlos Magno (falecido de uma forte febre em Janeiro de 814, aos 72
anos, após reinar durante 46 anos!) não foi problemática, pois um único filho (Luís) sobreviveu
ao pai. Os problemas surgiram, isso sim, no final do reinado seguinte, ou seja, no momento da
sucessão de Luís-o-Pio (814-840). Em especial, colocava-se a questão da sobrevivência do
título de ‘imperador’, uma vez que Luís deixara vários herdeiros.
A Ordinatio imperii, de 817 (preparada com o apoio de alguns clérigos, como Bento de
Aniana, o bispo Agobardo de Lyon ou o arcebispo Ebbon de Reims), transformara as regras
dinásticas fundadas sobre o património, a fim de salvaguardar a unidade do Império. De acordo
com os seus termos, apenas o filho mais velho de Luís e Hermengarda, Lotário, herdaria o título
imperial, recebendo uma autoridade superior à dos seus irmãos, Pepino da Aquitânia e Luís da
Baviera (dito ‘O Germânico’). Como veremos, a solução não seria bem aceite e acabaria por ser
subvertida a curto prazo.
Luís (que não por acaso recebeu o cognome de “O Pio”) fora um monarca
profundamente convicto da sua missão religiosa, tal qual ela era descrita pelos clérigos em
pequenos tratados teóricos, os célebres miroirs au prince (espelhos de príncipes), como por
exemplo o do bispo Jonas de Orleães (780-843). O filho herdeiro de Carlos Magno praticou a
autocrítica (confessando publicamente os seus erros, p.ex. em relação ao sobrinho rebelde,
Bernardo de Itália, a quem mandara arrancar os olhos), convidou a aristocracia a adotar um
procedimento semelhante (apesar de ela considerar este comportamento do rei como um sinal da
sua fraqueza) e mostrou-se sempre muito piedoso e generoso para com a Igreja, a quem tentou
devolver bens que tinham sido entregues aos laicos. Durante o seu reinado, o serviço das rezas e

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as esmolas substituíram o serviço das armas, que tinha predominado largamente no tempo de
Carlos Magno.
Entretanto, em 823, o nascimento de Carlos-o-Calvo (filho de um segundo casamento
de Luís-o-Pio, com Judite) tinha vindo alterar profundamente o quadro político e provocara a
revolta dos seus meio-irmãos! Luís chegou mesmo a abdicar do trono, em 833, sendo
substituído pelo filho mais velho (Lotário), mas acabou por regressar em 835, com o apoio dos
bispos. Todavia, a partir desta data e até à sua morte (em 840), tornou-se numa espécie de ‘rei
fantoche’…
Assim, compreendemos facilmente que, à morte de Luís-o-Pio, tenha eclodido a guerra
civil. Lotário depressa se viu isolado pela aliança entre Luís-o-Germânico e Carlos-o-Calvo
(quanto a Pepino da Aquitânia, já morrera em 838). Em 841, Lotário foi derrotado na batalha
de Fontenoy-en-Puisaye, às mãos dos seus próprios irmãos. A aliança entre estes seria ainda
reforçada no ‘juramento de Estrasburgo’, selado por Luís-o-Germânico e Carlos-o-Calvo em
842: um juramento de assistência mútua, curiosamente firmado em latim e em alemão.
No ano seguinte (843), seria assinado o importantíssimo Tratado de Verdun: Lotário,
isolado, foi forçado a aceitar a partilha do Império Carolíngio em três reinos. É verdade que
Lotário conservou o título imperial, mas agora sem preeminência sobre os seus irmãos. Em
termos territoriais, Luís-o-Germânico recebeu a parte oriental do Império (a leste do Reno e a
norte dos Alpes); Lotário ficou com a parte central (uma longa faixa de terra que se estendia
entre as partes dos seus irmãos, desde o Mar do Norte até ao sul de Roma, incluindo Aix-la-
Chapelle, Pavia e Roma); e a Carlos II ‘o Calvo’ coube a parte ocidental, limitada a leste por
quatro importantes rios (o Escaut, o Mosa, o Saône e o Ródano) e englobando o território-berço
merovíngio, incluindo Tournai e a capital de Clóvis, Paris.
Em Verdun, o Império Carolíngio deixava de existir enquanto território, ao mesmo
tempo que se assistia ao nascimento da Frância ocidental (grosso modo, a fatia que coube a
Carlos-o-Calvo governar)!

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5. O fim dos Carolíngios

5.1. As novas invasões – Normandos, Sarracenos e Magiares:


O século final da dinastia carolíngia (que sobreviveu, com algumas intermitências, até
987, ou seja, bem para além do desmembramento do Império no Tratado de Verdun-843) ficou
profundamente marcado por uma nova vaga de invasões do Ocidente europeu. Falamos dos
ataques dos Normandos, dos Sarracenos e dos Húngaros ou Magiares.
Os problemas mais dramáticos foram colocados pelos “homens do Norte”: os Nordmen,
ou seja, os Normandos. Tratava-se de Noruegueses, de Dinamarqueses e de Suecos, que já no
seu tempo Carlos Magno havia receado. Ignoram-se as causas exatas destas invasões dos
Vikings: alguns autores referem a sede de ouro, outros a paixão pela aventura ou pela glória.
Tudo isso é verdadeiro mas insuficiente. As explicações demográficas, algumas vezes
adiantadas, também não colhem, pois aqueles países (em especial a Suécia) estavam longe de se
encontrar superpovoados. Possivelmente, algumas mutações económicas e sociais, ainda mal
conhecidas, terão empurrado certas camadas da sociedade normanda (em particular os membros
da aristocracia) para a conquista.
Repare-se que os invasores não eram, nem numerosos (os bandos maiores incluíam
apenas algumas centenas de homens), nem estavam mais bem equipados do que os guerreiros
francos: usavam uma espada longa de dois gumes, um machado ou acha-de-armas, um dardo ou
lança curta, um escudo redondo de madeira, um casco metálico e uma cota semelhante à
‘brogne’. O que tinham era excelentes barcos, muito ligeiros e rápidos, entre os quais o famoso
drakkar, ostentando um dragão a ornamentar a proa. Esses barcos mediam 20 a 25 metros e
podiam levar 40 a 100 remadores. Mas os Vikings também se serviam de cavalos para os seus
raids terrestres. Os seus principais trunfos militares eram, sem dúvida, a surpresa e o ardil.
Ora, sucedeu que a estratégia tradicional dos Francos se revelou pouco apta para lidar
com este tipo de adversários. Essa estratégia militar fundava-se mais na ofensiva de um exército
bem equipado e na defesa de fronteiras estáticas, organizadas em ‘marcas’. Face aos
Normandos, isso era ineficaz. Para mais, o comando sofreu bastante com as divergências entre
os vários soberanos e os seus descendentes. Só os pontos fortificados ou as paliçadas de madeira
construídas sobre as motas conseguiam resistir, pois, de início, os invasores não eram assim tão
experientes na guerra de cerco.
Em 864, Carlos-o-Calvo exigiu que os condes construíssem e vigiassem as fortalezas,
mas a defesa organizou-se sobretudo ao sabor de iniciativas locais. Os territórios mais tocados
foram os que bordejavam o Mar do Norte e a Mancha (a partir de onde os invasores subiam os
vales do Escaut, do Saône e do Sena), assim como os da fachada atlântica (desde os quais
atacavam os vales do Loire e do Garonne).

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A repetição dos raids provocava a insegurança. Atraídos pelo ouro e pela prata, os
Vikings pilhavam as abadias ricas (p.ex: Jumièges e Saint-Wandrille, na Normandia) e
massacravam os bispos (como o de Nantes, cuja capital foi incendiada). A população, tomada
de pânico, fugia.
Notou-se igualmente uma certa evolução na graduação das expedições: do simples raid
(com repartição imediata do despojo), os Vikings passaram à conquista e ocupação do território.
Foi assim que os Varègues, um ramo oriental dos Normandos, impuseram a sua autoridade aos
povos eslavos, fundando o primeiro Estado russo, com capital em Kiev. A ocidente, os Vikings
ocuparam em parte o Norte da Inglaterra, a Escócia e a Irlanda. E chegaram mesmo à Islândia, à
Gronelândia e até ao Canadá!
A Frância ocidental resistiu o melhor que pôde aos assaltos normandos, mas, instalados
nas embocaduras dos rios, os Vikings conseguiram penetrar até ao coração do reino de Carlos-
o-Calvo. Paris foi atacada quatro vezes em menos de um século. Em 857, os Normandos
incendiaram a cidade e exigiram pesadas somas de prata à abadia de Saint-Denis. Mais tarde,
seguiram-se outros tributos. Os reis de França acederam, de modo a tentar limitar a expansão
dos Normandos.
Em finais do séc. IX, os ataques multiplicaram-se, tirando partido da crise interna na
Frância ocidental (à morte de Luís-o-Gago, filho de Carlos-o-Calvo). Chegaram novos reforços
aos invasores, recentemente desembarcados em Inglaterra. Os Normandos penetravam cada vez
mais profundamente em terras longe do mar, onde tentavam estabelecer as suas bases. A região
do Escaut foi duramente pilhada.
Em 885, a situação tornou-se mesmo muito grave. As forças normandas concentraram-
se no Baixo-Sena para atacar Paris. A cidade resistiu estoicamente durante mais de um ano,
defendida pelo conde de Paris, Eudo, filho de Roberto-o-Forte. Carlos-o-Gordo, subido ao trono
em 884, interveio, mas viu-se obrigado a comprar a partida dos Normandos através de um
tributo. Ainda assim, os Vikings ficaram no Baixo-Sena, perpetuando a ameaça…
Finalmente, em 911, pelo Tratado de Saint-Clair-sur-Epte, o rei da Frância (Carlos-o-
Simples, 898-929) reconheceu a um dos chefes vikings de origem norueguesa, Rolf (exilado por
Harold Fairhair, rei da Noruega em 900-933), o direito a ocupar o território no qual ele se
instalara: o condado da Normandia, uma das regiões mais ricas de toda a França!
Entretanto, a sul, pontificava a ameaça protagonizada pelos Sarracenos (Muçulmanos
vindos de África, de Espanha e da Sicília, onde se tinham estabelecido em 827). Estes novos
invasores realizaram diversos raids sobre as costas do Mediterrâneo ocidental. Chegaram ao
coração de Itália e pilharam Roma em 846. Atacaram também as costas provençais e pilharam
as abadias e cidades de Marselha e de Arles. A povoação costeira de La Garde-Freinet (a leste
de Marselha) servia-lhes de base para as suas razias no Ródano, prolongadas até 972-973 por
corsários e montanheses. Só naquela data foram expulsos e obrigados a abandonar essa base.

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Finalmente, do leste, vinha a ameaça dos Magiares, que sob o efeito da pressão turca se
instalaram na Panónia (atual Hungria), de onde lançaram expedições para realização de
pilhagens ou para obtenção de resgates. Os Magiares devastaram sobretudo a Germânia, mas os
seus raids atingiram Bremen, Roma e a Frância ocidental (tendo penetrado até Orleães).
Finalmente, em 955, os Magiares foram esmagados na batalha de Lechfeld por Otão I, rei da
Germânia. Na sequência disso, fixaram-se de vez na Panónia. Três décadas mais tarde, o rei
Vjak (c. 975-1038) converteu-se ao Cristianismo e tornou-se S. Estêvão, ainda hoje uma das
figuras mais célebres da história da Hungria, de que é considerado como tendo sido o primeiro
monarca. A partir daí, os Húngaros guardaram a Europa de novas invasões orientais, sendo bem
conhecido o papel decisivo que desempenharam na travagem da ameaça otomana, em finais do
séc. XVII.
Apesar de todos os sobressaltos que provocaram, as invasões não foram, porém, a
(principal) causa da queda do Império Carolíngio, ou do que restava dele após 843. Por
exemplo, na Picardia (província do Norte da França) os danos foram relativamente limitados.
As principais vítimas acabaram por ser as abadias (p.ex., Noirmoutier; ou Cluny, cujo abade
Mayeul foi resgatado por bom dinheiro, em 972).
Hoje em dia, os historiadores tendem a enfatizar o lado positivo destas invasões, tendo
em conta diversos aspetos: o estabelecimento de relações comerciais entre Francos e
Normandos (que adquiriam cavalos, armas e produtos de subsistência); a assimilação fácil dos
Normandos e a sua rápida conversão ao Cristianismo; a circulação do metal precioso
entesourado nas igrejas assaltadas; e a dinamização das defesas e forças locais, pois a evolução
das forças políticas centrífugas ajudou a aplanar o caminho para o senhorio. Em síntese, longe
de terem sido uma catástrofe, as invasões podem até ter acabado por contribuir para a
démarrage do Ocidente a partir do séc. X (cf. A. d’Haenens).

5.2. A evolução do poder régio: confraternidade e título imperial; a alternância entre


Carolíngios e Robertianos; o poder da aristocracia:
Entre 843 (data da assinatura do Tratado de Verdun) e 987 (data da mudança da dinastia
carolíngia para a dinastia capetíngia) assistiu-se a um enfraquecimento visível do poder real
(sobretudo se o nosso termo de comparação for os primeiros dois monarcas carolíngios: Pepino-
o-Breve e Carlos Magno). Os reis morriam cedo e deixavam herdeiros muito novos e deram-se
lutas internas para tentar restabelecer a situação vigente antes de Verdun… A confraternidade
sonhada pelos clérigos de Luís-o-Pio entre os irmãos herdeiros do trono foi completamente
envenenada pela ambição imperial.
Carlos-o-Calvo (843-877), o filho tardio de Luís que recebeu a Frância ocidental, foi um
dos monarcas mais impregnado da ideologia imperial (veja-se a carta que enviou ao papa, em
872). O facto decorreu também, certamente, da cumplicidade do poderoso bispo Hincmar de

58
Reims (c. 806-882). Mas Carlos sentiu muitas dificuldades na Frância ocidental, em todas as
frentes, sobretudo devido ao desejo das regiões periféricas de se emanciparem: os Bretões, a
oeste; e o sobrinho Pepino II, conde da Aquitânia, a sudoeste, suscitando de resto alianças
perigosas com Lotário e com Luís-o-Germânico. Além disso, Carlos teve de suportar a luta
contra os Normandos.
Uma outra dificuldade tinha que ver com a questão (permanente) da repartição de
honores entre os Grandes e com as rivalidades entre eles. Isso suscitava coligações constantes e
movediças, que provocavam uma inquietude permanente. Ainda assim, toda a política de
Carlos-o-Calvo se dirigiu para leste: para Aix-la-Chapelle e para o título imperial.
Em 855, à morte de Lotário I, abriu-se a ‘crise imperial’. Luís II, o mais velho dos filhos
de Lotário, herdou o título mas, confinado à Itália, não possuía território nenhum a norte dos
Alpes. Lotário II obteve a Lotaríngia (truncada da fatia italiana), mas a sua situação complicou-
se devido a um divórcio recusado pelos clérigos (nomeadamente por Hincmar de Reims). O
terceiro filho de Lotário I, Carlos, doente (morreu logo em 863), não se mostrou sequer capaz de
governar a Provença, território que lhe coube em sorte.
Em 869, Carlos-o-Calvo anexou a Lotaríngia e foi sagrado em Metz (onde Luís-o-Pio
havia recebido a dignidade imperial). O bispo Hincmar preparou sabiamente a cerimónia,
explicando utilizar o mesmo óleo sagrado que servira no batismo de Clóvis… Carlos-o-Calvo
faz-se então intitular “imperador” e “augusto”.
A saga de Carlos-o-Calvo e de seus filhos (a partir de 877) foi notável, mas acabaram
por não conseguir impor-se e a dignidade imperial escapou-se-lhes por pouco. É que, lá em
Itália, Luís II permanecia vivo e continuava a usar o disputado título. Enquanto isso, Luís-o-
Germânico fomentava coligações aristocráticas contra Carlos-o-Calvo (seu antigo aliado), e este
chegou ao ponto de tirar os olhos ao seu próprio filho, Carlomano, que se mostrava rebelde.
Para reconstruir o Império Carolíngio, como era seu desejo, Carlos-o-Calvo, neto de
Carlos Magno, precisava de tomar Aix-la-Chapelle e Roma. À morte de Luís II, em 875, Carlos
ainda conseguiu chegar a Roma e fazer-se coroar imperador, tirando partido da necessidade do
papa em ter um aliado contra os Árabes. Mas Luís-o-Germânico, receoso (e invejoso) do
crescimento do poder de seu meio-irmão, respondeu à letra invadindo a Lotaríngia; e, após a sua
morte (em 876), o seu filho Luís-o-Jovem prosseguiu a luta contra as pretensões de Carlos-o-
Calvo.
Em 876, na batalha de Andernach, Carlos-o-Calvo foi derrotado pelo seu jovem
sobrinho Luís e não conseguiu, portanto, impor-se pelas armas e anexar Aix-la-Chapelle. Em
877, reuniu os Grandes e seguiu para Roma, para uma nova campanha, mas acabou por morrer
pelo caminho. O seu filho mais velho, Luís-o-Gago (877-879), e depois Luís III (879-882),
suceder-lhe-iam como reis da Frância ocidental. Mas o título imperial escapou-se-lhes também a

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eles: foram vítimas de reinados muito curtos, das reivindicações dos Grandes e, claro, da
pressão dos Normandos.
Entretanto, no ‘ramo germânico’, à morte de Luís-o-Jovem, em 882, Carlos-o-Gordo (o
filho mais novo de Luís-o-Germânico), assumiu-se como o novo imperador e depressa se tornou
no único príncipe suscetível de reinar também na Frância ocidental: em Dezembro de 884, tendo
falecido Carlomano e com o alarme provocado pelas invasões normandas, os Grandes da
Frância ocidental apelaram para ele. Então, Carlos-o-Gordo começou a reinar sobre o conjunto
do Império Carolíngio. Por um momento, a situação vigente nas vésperas de Verdun parecia
recriada!
Porém, Carlos-o-Gordo não conseguiu restaurar o poder político, nem conter a ameaça
normanda. Assim sendo, os Grandes consideraram-no incapaz e depuseram-no pouco antes da
sua morte, em 888. Nessa altura, elegeram o conde de Paris, Eudo (filho de Roberto-o-Forte), o
mesmo homem que defendera Paris do cerco normando. Eis a primeira experiência ‘robertiana’
no trono da flor-de-lis!
No entanto, seria o herdeiro legítimo, o carolíngio Carlos III ‘O Simples’, a suceder a
Eudo, entre 898 e 922. Nesta data, os Grandes depuseram de novo o carolíngio e elegeram
Roberto I da Nêustria, irmão de Eudo, que todavia faleceu um ano mais tarde… Sucedeu-lhe o
seu cunhado Raul da Borgonha.
Em 936, os Grandes apelaram ao filho de Carlos-o-Simples, que estava refugiado em
Inglaterra e que se tornou no rei Luís IV ‘d’Outremer’. Esta ‘restauração carolíngia’ durou
meio-século: em 954, Lotário III sucedeu ao seu pai (Luís IV) e, depois, foi a vez de Luís V
suceder a Lotário III, em 986. Como se percebe, a realeza tinha-se tornado eletiva.
À morte de Luís V, em 987, os Grandes fizeram de novo apelo a um robertiano: Roberto
Hugo Capeto, o primeiro monarca ‘capetíngio’. Estava definitivamente consumada a mudança
de dinastia.
Assim, e como se viu, durante um século os Robertianos e os Carolíngios alternaram no
trono15. No entanto, não se tratou de uma luta sangrenta entre estas duas dinastias.
Frequentemente, foi um robertiano quem escolheu como seu sucessor um carolíngio: foi o que
fez Eudo, em 896-897, relativamente a Carlos III ‘o Simples’ (com quem firmou um acordo de
sucessão); e foi também o que aconteceu em 936: após os reinados de Roberto I da Nêustria e de
Raul da Borgonha, foi o robertiano Hugo-o-Grande, o homem mais poderoso do reino, quem

15
Recapitulando, a sequência foi: Carlos-o-Gordo, carolíngio (884-888) > Eudo, da família robertiana
(888-898) > Carlos III ‘O Simples’, carolíngio (898-922) > Roberto I da Nêustria, robertiano e irmão de
Eudo (922-923) > Raul da Borgonha, robertiano, cunhado do anterior (923-936) > Luís IV ‘d’Outremer’,
carolíngio, filho de Carlos III ‘O Simples’ (936-954) > Lotário III, carolíngio, filho do anterior (954-986)
> Luís V, carolíngio, filho do anterior (986-987) e, finalmente, Roberto Hugo Capeto, robertiano (987-
996).

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decidiu escolher Luís IV ‘d’ Outremer’ (um carolíngio, filho de um anterior monarca: Carlos III
‘o Simples’) para rei e lhe prestou menagem!
Em qualquer dos casos, o rei (carolíngio ou robertiano) havia guardado intacto o valor
moral que lhe era conferido pela sagração (o bispo Hincmar de Reims havia, aliás, desenvolvido
o respetivo ritual). A alternância das famílias reais no poder não representara realmente o sinal
de um enfraquecimento do poder régio, mas antes a sua adaptação às novas exigências de um
reino, onde era essencial reforçar os poderes locais nas mãos da aristocracia. Enquanto isso,
emergira uma família que se havia tornado incontornável: os Robertianos.
A prova de como a realeza precisava do apoio da aristocracia, laica ou eclesiástica, é a
reunião dos Grandes realizada em Coulaines, cerca de 843, na sequência da qual foi firmado um
tratado com o rei Carlos-o-Calvo, que teve de garantir a integridade dos bens eclesiásticos e
que, aos laicos, prometeu não os despojar injustamente dos cargos públicos associados às suas
honores. Em troca, a aristocracia prometeu ao monarca auxílio, conselho e fidelidade. A partir
de então, este contrato constituiu a base do poder real.
Em princípio, o rei continuava livre para destituir os seus vassalos infiéis; mas, de facto,
o benefício perdera a sua mobilidade, enfraquecendo a realeza. A situação ficou como que
bloqueada. Para continuar a fazer mostras de generosidade, o rei tinha agora de lançar mão das
suas reservas fiscais, uma vez que já não podia contar com a mobilidade dos cargos e dos
bens…
Um dos marcos históricos desta evolução no relacionamento entre o poder régio e a
aristocracia é a capitular de Quierzy-sur-Oise, emitida em 877, num momento em que Carlos-o-
Calvo estava de partida para Itália: nesse contexto, o monarca concedeu autorização para que os
cargos públicos e os honores dos condes que viessem a falecer durante a sua ausência pudessem
ser transmitidos de forma hereditária! Por essa altura, já os célebres missi dominici tinham
desaparecido. Em resumo, os condes tinham-se tornado inamovíveis.
Mas, ainda assim, a aristocracia revoltava-se de vez em quando, embora, durante o
reinado de Carlos-o-Calvo, os Grandes, orgulhosos da sua origem franca, tenham permanecido
fiéis ao seu monarca e este pudesse também contar com um partido eclesiástico sólido, com
intelectuais de primeira água (como Hincmar em Reims, Loup de Ferrières em Auxerre ou
Prudêncio em Troyes), os quais contribuíram largamente para definir a ideologia real.

5.3. O nascimento dos principados territoriais – os grandes comandos; o enraizamento


local da autoridade; o principado capetíngio (de Eudo-882 a Roberto Hugo Capeto-987). A
mudança de dinastia:
O nascimento dos principados territoriais ocorreu, grosso modo, entre 888 (o ano da
morte de Carlos-o-Gordo) e 987 (data da morte de Luís V). Neste intervalo de tempo, o Estado
ainda centralizado de Carlos-o-Calvo acabou por se transformar num mosaico de principados

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territoriais, onde o rei não intervinha a não ser por intermédio dos príncipes. Só a figura-
referência do rei unia esses principados entre si.
Ao longo dessa centúria (que corresponde quase exatamente ao séc. X), os
intermediários entre o reino e os principados territoriais foram, na prática, os grandes comandos
militares. A Frância ocidental era um território vasto, que incluía a Frância propriamente dita
(do Mosa ao Sena), a Nêustria (entre Sena e Loire), a Aquitânia (até às marcas de Espanha) e
uma parte da Borgonha. Ora, o rei tinha muita dificuldade em fazer aplicar as suas ordens, em
especial nas fronteiras. E os invasores (Vikings, Magiares e Sarracenos) pressionavam, ao
mesmo tempo que os particularismos locais incitavam as populações a desobedecer (p.ex., na
Aquitânia e na Borgonha). A solução adotada por Carlos-o-Calvo e pelos seus sucessores para
minimizar este problema consistiu em confiar o comando de grandes territórios a príncipes,
nomeadamente a condes e a marqueses (sem que existisse propriamente uma hierarquia entre
estes).
Ora, são evidentes os vastos poderes militares e administrativos desses príncipes, que
ficaram a controlar diversos condados, em geral uma meia-dúzia, na maior parte dos casos
situados nas proximidades de uma fronteira ameaçada. A acumulação de honores por parte dos
príncipes tornou-se inevitável. Não se tratou, em si mesmo, de um fator de desagregação, mas –
insistimos – de um ‘meio de administração’. De resto, os príncipes estavam ligados ao monarca
por uma espécie de confraternidade e a maioria deles era parente dos Carolíngios. Em teoria, o
rei podia transferir os príncipes, que aliás nem sequer deveriam ser originários da região que
comandavam. As intenções eram, portanto, as melhores e não se poupava nas cautelas. Todavia,
no decurso do séc. X, o sistema enraizou-se inexoravelmente e os principados adquiriram uma
independência quase total, também em resultado da pressão que vinha de baixo, das forças vivas
locais.
De facto, nesta fase, entre os homens livres só os que podiam servir a cavalo
começaram a ser chamados para o exército. Tornaram-se fiéis e vassalos e detinham benefícios.
Pelo seu lado, estes vassalos tinham os seus próprios vassalos, criando-se assim verdadeiras
clientelas. Alguns possuíam castelos, que lhes eram confiados para administrar ou para defender
o principado.
Deste modo, as aristocracias locais, constituídas em fações, empurraram os seus
príncipes para a independência. Então, esses príncipes deixaram pouco a pouco de ser
funcionários reais e começaram a exercer o poder por sua própria conta. A seguir, através da
realização de conquistas, aumentaram o seu poder inicial fazendo entrar na sua fidelidade um
certo número de condados suplementares. A evolução só não foi mais radicalmente
desfavorável ao poder régio porque, apesar de tudo, subsistiu alguma coesão, por imperativos
éticos ou ideológicos (p.ex., na Bretanha, na Gasconha, na Flandres ou na Borgonha). De
qualquer modo, aos poucos, a turbulência dos Grandes foi cavando a derrocada carolíngia.

62
Neste quadro, o enraizamento do poder local e a transmissão hereditária das dignidades
e dos bens que lhes estavam associados acentuou-se. Registou-se uma evolução das
solidariedades horizontais rumo às solidariedades verticais (unindo pais e filhos primogénitos).
Houve lugar à constituição de linhagens e de genealogias, traduzindo a sede de riquezas e de
poderes locais transmitidos por via hereditária. A prazo, as forças centrífugas assentes na
linhagem acabaram por implodir a organização aristocrática tradicional, de matriz horizontal.
O nascimento dos principados territoriais ocorreu um pouco por toda a França, sob
formas e com nuances diversas de região para região: na Normandia, na Flandres, na Aquitânia,
na Borgonha, na Septimânia, na antiga Lotaríngia16… Em geral, foi uma evolução tranquila e
até consentida pelo próprio rei! O monarca continuava a ser uma referência, no entanto, o
príncipe local é que governava. Entre estes, e acima de todos os outros, destacavam-se os
robertianos.

A origem dos Robertianos remonta aos meados do séc. IX: Roberto-o-Forte foi um dos
missi dominici de Carlos-o-Calvo, que lhe confiou o condado de Tours e um comando militar
contra os Normandos. Os dois filhos de Roberto, Eudo e Roberto, herdariam mais tarde um
pequeno património pessoal na Nêustria.
Em 882, Eudo obteve o condado de Paris. Como já sabemos, coube-lhe organizar a
resistência da cidade aos Normandos, em 885. As recompensas de Carlos-o-Gordo não se
fizeram esperar: o monarca capetíngio deu a Eudo uma série de condados, que constituiriam a
base do seu principado. Eudo tomou então o título de ‘duque dos Francos’, o que anunciava já a
realeza… Em 888, os Grandes escolheram-no, como vimos, para suceder a Carlos-o-Gordo.
Apesar disso, Eudo apenas controlava a região entre o Sena e o Loire.
Com Hugo-o-Grande, filho de Eudo, registou-se um crescimento considerável do
principado capetíngio, sobretudo do lado de Sens e Auxerre, reunindo uma vintena de condados
situados sobretudo na Nêustria e na Frância (Tours, Autun, Blois, Paris, etc.). O duque geria
diretamente uma dezena desses condados, enquanto os outros eram administrados através dos
seus vassalos. Alguns bispados e abadias históricas (como Marmoutier, perto de Tours, Fleury-
sur-Loire ou Saint-Denis) dependiam do príncipe robertiano, que era também conde-abade da
poderosa colegiada de Saint-Martin de Tours, onde Hugo-o-Grande foi aliás buscar o seu nome
de “Capeto” (do nome da cappa, ou ‘manto curto’, de S. Martinho, ali conservado como uma
relíquia).
O principado capetíngio afirmou-se, assim, como um património estratégico, rico,
sossegado e em crescimento acelerado. Mas Hugo (923-956) não quis ser rei e a Coroa voltou,
como sabemos, aos Carolíngios, com a eleição de Luís IV d’Outremer, que tornou Hugo em

16
Enquanto isso, a Provença tornou-se parte do Sacro Império Romano-Germânico.

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‘dux Francorum’, ou seja, “o segundo depois de nós em todos os nossos reinos”. Também o
papa reconheceria Hugo como ‘glorioso príncipe dos Francos’. Como observou K. F. Werner,
tratou-se de uma excelente estratégia por parte de Hugo, que, ao negociar com o Carolíngio para
lhe deixar a dignidade real, aumentou a solidez do seu próprio principado. O seu poder tornou-
se então incontornável. Aliás, o rei carolíngio já era então bem menos poderoso do que o duque
robertiano, cuja vitória se anunciava inevitável…
A disputa de poder entre Hugo-o-Grande e Luís IV acabou por ser de certa maneira
mediada pelo imperador Otão I, cuja irmã (Hadwige) casara com Hugo, enquanto outra irmã
(Gerberge) veio a casar com Luís IV d’Outremer. Em 954, à morte de Luís IV, teve lugar a
ascensão de seu filho, o carolíngio Lotário III. Dois anos mais tarde (956) deu-se a morte de
Hugo, que deixava um filho com 15 anos: Roberto Hugo Capeto. Os Otões aproveitaram o
contexto e aumentaram então a sua influência na Frância.
O rei Lotário III bem se esforçou por garantir e alargar o seu espaço, apoiando-se
nalguns bispos fiéis e nalguns príncipes territoriais que desconfiavam dos Robertianos. Lotário
olhou sobretudo para nordeste, para a Lorena, tendo tentado apoderar-se de Aix-la-Chapelle e
expulsar daí Otão II. Mas a situação permaneceu indecisa, tanto mais que o irmão de Lotário III,
Carlos, se tornou duque da Lorena e passou a constituir uma ameaça para o monarca da flor-de-
lis. Este, para assegurar a sua sucessão, associou o filho Luís ao poder, sagrando-o em 979
como Luís V. Em 985, tirando partido da menoridade do novo imperador (Otão III), Lotário III
apoderou-se de Verdun. Claro que toda esta atividade do rei carolíngio gerava um desequilíbrio
que podia parecer perigoso aos olhos dos defensores da ideia de Império.
De qualquer modo, Lotário III faleceu em 986 e, tragicamente para as aspirações de
sobrevivência política carolíngias, o seu filho Luís V morreu logo em 987. Neste contexto, deu-
se então a eleição (mais do que lógica) de Roberto Hugo Capeto, em 987. Tanto mais que Luís
V fora pouco bem sucedido, ao tentar retomar o poder dos bispos de Laon e de Reims, fiéis aos
Otões, ao mesmo tempo que o único sucessor carolíngio, Carlos da Lorena, poderia vir a tornar-
se numa ameaça aos Otões… Neste cenário, o próprio arcebispo Adalberão de Laon optou por
apoiar Hugo Capeto e desequilibrou definitivamente a balança a favor da nova dinastia,
‘robertiana-capetíngia’.
No fundo, tratou-se de uma transição quase natural, no quadro de um reino muito
dividido entre principados rivais (repare-se que os príncipes do Midi nem sequer vieram
participar na eleição do novo monarca). O primeiro Capetíngio, Roberto Hugo Capeto, apenas
ficou a dever o seu poder aos seus mais próximos e à Igreja (aliás, o arcebispo de Reims tratou
de lhe garantir um caráter sagrado ainda mais intenso). Tal como Lotário III havia feito, Hugo
Capeto aplicou à realeza os princípios da transmissão linhagística: no Natal de 987, associou o
filho mais velho, Roberto (o futuro Roberto II ‘O Pio’), ao poder, sagrando-o em Sainte-Croix
d’Orléans, no coração do principado capetíngio. As tentativas do carolíngio Carlos da Lorena

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para tomar o trono seriam mal sucedidas: em 991, traído pelo bispo de Laon (Adalberão), foi
entregue ao Capetíngio e acabou os seus dias na prisão. Uma nova dinastia – a capetíngia –
tinha triunfado!

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6. O ‘Renascimento carolíngio’

6.1. A força da Igreja:


Durante o período correspondente à dinastia carolíngia (751-987) a Igreja evidenciou ter
bastante força, em diversos momentos politicamente decisivos e também do ponto de vista
económico e, claro, espiritual. No entanto, também se verificou uma certa laicização da Igreja,
com o mergulhar dos bispos e dos abades nos assuntos políticos e em resultado do
comportamento ‘senhorial’ de muitos deles na gestão dos seus bens económicos.
Do ponto de vista da organização do clero regular, foi um tempo de afirmação da regra
beneditina, sobretudo a partir da já citada reforma de Bento de Aniana (em 817). Em 910, em
Cluny (região do Mâconnais, Borgonha, no centro-leste de França) foi fundada por Guilherme-
o-Piedoso, duque da Aquitânia, uma abadia a que o futuro reservaria um sucesso extraordinário.
O ‘monge negro’ de Cluny interpretava uma variante da regra beneditina que valorizava, não
tanto o trabalho manual, mas sobretudo a leitura dos textos sagrados e, em especial, a sua
exaltação através do canto gregoriano, que conheceu então um desenvolvimento formidável. A
grande longevidade dos abades Bernon (910-926), Odão (926-942) e Mayeul (948-994) ajudou
a congregação a triunfar, ao ponto de, em 1100, já existirem 1450 casas cluniacenses espalhadas
por todo o Ocidente, 800 das quais em França! Com o triunfo de Cluny, deu-se um recuo
acentuado da cultura clássica (era considerado supérfluo tudo aquilo que não vinha na Bíblia) e,
consequentemente, as ‘artes liberais’ ficaram reduzidas praticamente a duas: a gramática (que
era indispensável para ler os textos sagrados, redigidos em latim, na Vulgata de S. Jerónimo) e a
música (que alimentava o cantochão papal com que se celebrava a “opus Dei”). Já no nordeste
de França, nos mosteiros da Lorena (como Brogne ou Gorze) praticava-se uma pastoral mais
exigente.
No que diz respeito ao clero secular, multiplicaram-se os capítulos catedralícios e as
colegiadas, podendo bem dizer-se que, apesar da sua participação na política, o clero carolíngio
teve uma vida espiritual intensa. O poder episcopal mostrou-se forte e de qualidade assinalável,
tendo sabido resistir às pressões e às forças centrífugas. Longe vão os tempos em que se
reputava de deplorável a condição do clero secular carolíngio!
Vale também a pena recordar a realização, em 989, na Aquitânia (Poitiers), do concílio
de Charroux, que lançou o movimento da ‘Paz de Deus’, destinado a limitar a prática da guerra
a certas pessoas e bens (excluindo dela os idosos, as mulheres, as crianças, os clérigos e as
pessoas desprotegidas, e sujeitando os vassalos mais turbulentos à prestação de juramentos de
proteção dos clérigos, dos mercadores e dos camponeses). Este movimento foi intensificado no
concílio de Puy, em 990, e seria objeto de codificações importantes (como as ‘Tréguas de
Deus’) ao longo do séc. XI, designadamente no concílio de Toulouges (perto de Perpignan, na

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‘Catalunha francesa’), em 1027, onde se estipulou a proibição da prática da guerra nos períodos
santos, designadamente ao domingo e durante a quadra da Quaresma.
Tudo isto atesta o crescimento e a intensidade da vida religiosa, assim como o desejo de
a Igreja reservar para si um espaço de intervenção próprio no seio de uma sociedade que os
bispos do ano mil (como Adalberão de Laon ou Gerardo de Cambrai) representavam,
estrategicamente, como estando dividida em três ordens: os que rezam (oratores), os que fazem
a guerra (bellatores) e os que trabalham (laboratores)17…
Esta etapa foi também pródiga em doações dos laicos à Igreja, no culto de relíquias dos
santos (a que estava quase sempre associada a prática de um milagre) e na animação da vida
paroquial, com a multiplicação de ritos e de sacramentos e com a organização de purificações e
de peregrinações (a Roma, a Jerusalém, a Santiago de Compostela ou a Tours).
Apesar da eclosão das primeiras heresias de caráter ‘popular’ (reivindicando um
encontro mais estreito e mais humanizado dos fiéis com o divino e anunciando um primeiro
deslize das consciências na direção do Novo Testamento e da figura de Jesus Cristo e de sua
Mãe), a Igreja configurava, nos alvores do feudalismo, um fator inequívoco de hierarquia e de
unidade social.

6.2. A vitalidade da economia:


O crescimento económico dos sécs. VIII, IX e X traduziu-se em crescimento
demográfico, na diminuição dos escravos e num primeiro progresso das técnicas agrícolas, com
os moinhos de água, as charruas, a rotação trienal introduzindo o cereal de primavera, etc.
As trocas comerciais multiplicaram-se, em especial entre o rio Loire e o rio Reno. E o
vale do Sena adquiriu então uma importância económica extraordinária.
Na base deste progresso parece ter estado o já referido sistema dominial
(reserva/manso) consolidado desde finais do período carolíngio. No entanto, este panorama
otimista tinha também o seu lado lunar: é que faltava o investimento; continuava a verificar-se
um excessivo entesouramento de verbas e de metais preciosos nas igrejas; e perdurava uma
grande desigualdade social, agravada por surtos de fome que eram capazes de dizimar
populações ao sabor dos caprichos meteorológicos.

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Curiosamente, esta representação trifuncional da sociedade medieva, que nada tinha de inocente do
ponto de vista ideológico (como demonstrou Georges Duby em “As Três Ordens ou o Imaginário do
Feudalismo”) perdurou até aos nossos dias: ainda hoje as crianças das nossas escolas aprendem que a
sociedade medieval estava dividida em três ‘classes’: o clero, a nobreza e o povo! Os bispos do ano mil
preocupados em garantir um lugar próprio para a igreja numa sociedade em acelerado processo de
feudalização, não imaginariam, decerto, vir a ter um tamanho sucesso…

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6.3. O renascimento intelectual:
É sabido que Carlos Magno (768-814) acarinhou bastante as escolas catedrais e as
escolas monásticas (designadamente o ensino da gramática e da música). E, desejoso de revestir
o seu exercício do poder (‘imperial’) de uma aura cultural romanizante, chamou para junto de si
letrados anglo-saxónicos, francos, lombardos e até hispânicos de enorme gabarito. A chamada
‘Escola do Palácio’ não deve ter existido, mas muitos letrados bons a trabalhar na corte
carolíngia ao tempo do grande conquistador, isso sim, existiu certamente: Alcuíno, Paulo
Diácono, Paulino (que veio a ser patriarca de Aquileia), Teodulfo (que seria nomeado bispo de
Orleães), o franco Angilberto (que foi abade de Saint-Riquier), todos estes homens ajudaram a
concretizar a estratégia carolíngia, um pouco paradoxal, de ‘latinização de uma corte bárbara’.
Após a morte de Carlos Magno, e com a reforma de Bento de Aniana (817), as escolas
monásticas passaram a estar reservadas aos membros da comunidade monástica, mas as escolas
catedrais permaneceram abertas ao conjunto dos clérigos. E isso asseguraria um certo sucesso
ao chamado (com algum exagero) ‘Renascimento carolíngio’.
Entretanto, as bibliotecas dos mosteiros floresceram, graças à atividade dos monges
copistas nos seus scriptoria. Grandes abadias carolíngias atingiram um nível notável, em
especial Corbie (perto de Cambrai), Saint-Riquier (na costa normanda), Fleury-sur-Loire (a leste
de Orleães, sobre o rio Loire) e Saint-Denis (ligeiramente a norte de Paris).
Ao mesmo tempo, afirmaram-se algumas grandes escolas catedrais, sobretudo as
localizadas em Auxerre (entre Paris e Cluny), em Laon (a nordeste de Reims, com João Escoto
Erígena) e em Reims (na Champagne, a norte de Troyes, com os nossos já conhecidos Hincmar,
Gerberto e Adalberão). Algumas querelas teológicas ocorreram então, primeiro com Rábano
Mauro (discípulo de Alcuíno em Tours, depois mestre na escola da abadia de Fulda e,
finalmente, arcebispo de Mayence) e depois com o bispo Hincmar de Reims, condenando as
doutrinas sobre a predestinação do homem ou animando a controvérsia acerca da presença real
de Cristo na Eucaristia. Mas nem por isso se pode falar num ‘renascimento humanista’, pois
tratava-se sobretudo da glorificação de Deus e do rei. Loup de Ferrières (abade de Ferrières
entre 841 e 862, data da sua morte, e o mais avisado bibliófilo da sua época) configurou,
manifestamente, uma exceção a esta regra.
Foi um tempo, isso sim, de belos manuscritos e iluminuras, com a famosa minúscula
carolina a vir justamente dos ateliês monásticos de Corbie e de Tours para a reforma da liturgia
e do ensino. Na verdade, estes monges eram bem mais reformadores do que humanistas…

6.4. As artes:
A arquitectura, no período carolíngio, conheceu algum fulgor, mas infelizmente
sobreviveram poucos vestígios dela: as igrejas de Saint-Germain-des-Prés (perto de Orleães) e

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de Saint-Philbert-de-Grandlieu (perto de Nantes, na Bretanha), ambas do séc. IX, encontram-se
entre os mais belos desses testemunhos.
Claro que houve lugar à construção de muitos mosteiros beneditinos. Segundo parece,
seguindo sobretudo um modelo: o da reconstrução da abadia de Saint-Gall, feita nos inícios do
séc. IX e inspirada por princípios de grande simetria e geometria.
Nos prelúdios da arte românica, as criptas tenderam a tornar-se absides, em geral
abobadadas; e as cabeceiras conheceram uma planta mais complexa.
Também ganharam destaque a pintura mural, a escultura em marfim e, claro, a
ourivesaria (de forte tradição bárbara, como sabemos); neste particular, registou-se uma
evolução interessante, do folheado e do ‘cloisonné’ rumo ao esmaltado.
Curiosamente, a arte no interior das igrejas funcionava um pouco como ‘a literatura dos
analfabetos’. Porque, na realidade, a cultura convencional era privilégio de uma minoria, e só
esta acedia à Vulgata de S. Jerónimo, uma tradução da Bíblia para latim feita no séc. IV. A
grande massa da população era formada por iletrados que desconheciam o latim, fossem eles
gente do povo ou membros da aristocracia laica. A cultura escrita estava nas mãos dos clérigos
e, por isso mesmo, o termo ‘leigo’ (i.é, ‘não letrado’) era geralmente sinónimo de ‘laico’ (ou
seja, de ‘não clérigo)…
Para a grande massa do povo e para a nobreza, outras formas de cultura, não letrada, se
impuseram, e nelas a música (p.ex., a interpretada pelos jograis nos castelos dos senhores), a
dança, a palavra dita (p.ex., pelos pregadores que atraíam multidões emocionadas), a arte e a
própria guerra (com os seus costumes e rituais) ocuparam um lugar de destaque.

João Gouveia Monteiro


(Verão de 2011)

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