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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS ​ ​Ana Maria Varela

Justiça e Direito suprapositivo 


 
JUSTIÇA
A Idade Média concebeu o direito enquanto função da justiça.

● Justiça universal
A justiça foi para os homens desta época o fundamento da vida social. Sem ela, seria
impossível uma convivência organizada, a manutenção da comunidade política, a
conceção como ovo e um grupo humano. A sociedade traduzia o resultado do múltiplo e
diversificado operar humano tendente à realização da perfeição individual.
A ordem social representava a projeção comunitária da condição dos seus
membros. Sendo os homens justos, justa seria a sociedade.
O homem, para atingir a lei divina e a lei natural, deverá realizar um trabalho intelectual
de conhecimento do respetivo conteúdo e uma tarefa volitiva respeitante à sua observância.
A justiça traduzia-se numa virtude​: ​o hábito bom orientado para a ação ​(​habitus
operativus bonus​). A prática de atos virtuosos por parte do homem fortalece-lhe a possibilidade
de caminhar virtuosamente, que tanto vale dizer tornar-se perfeito.

→ A justiça é um valor do Direito. Tendemos para ela, mas não conseguimos aceder -
perfeição -, porque é a síntese de todas as virtudes. ​Considera o mundo intrasubjetivo.

● Justiça particular
A justiça particular ​considera o campo das relações intersubjetivas​.
Depende se for concebida numa ​perspetiva subjetiva (entre sujeitos relacionáveis -
constante e perpétua vontade de atribuir a um o ​seu direito​) ou numa ​perspetiva
objetiva​.
Justiça é o hábito da alma que atenta a utilidade comum, atribui a cada um o próprio da
sua dignidade​.
O que é a justiça senão a virtude que dá a cada um o quanto lhe é devido?

- determinação do seu​: ​algo ordenado aos fins de alguém (S. Tomás de


Aquino); deve pensar-se em função da adaptação de cada ente ao competente
fim e da existência de múltiplas pessoas com interesses próprios, individual ou
coletivamente consideradas. → ​alguém não pode ser privado de quanto for
necessário à realização do seu fim
O ​seu individual deve submeter-se ao ​seu coletivo, desde que seja devidamente
compensado. O conteúdo da justiça subjetiva depende dos sujeitos que a preenchem.

MODALIDADES DA JUSTIÇA
Determinada a natureza da justiça - vontade constante - e o propósito dela - atribuição
do ​seu - impunha-se ainda uma determinação quantitativa do operar humano, sob pena de não
haver ​consideração casuística ​da ação a desenvolver consoante as circunstâncias. Ela
processou-se pela ponderação das diferentes modalidades da justiça.

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● Justiça subjetiva

➔ Siete Partidas​, Afonso X de Castela


- justiça espiritual​: ​atribuição a Deus do quando Lhe é devido pelo homem
(os sujeitos são Deus e o Homem - relação que não é puramente igualitária)
- justiça política​: ​identifica-se com a atribuição pela comunidade aos
respetivos membros de quanto lhes cabe e por estes àquela (relaciona o
todo - Estado - e as partes - cidadão; os sujeitos não estão em pé de igualdade)
- justiça contenciosa​: ​aplica-se nos pleitos ​(relaciona as partes entre si,
aplicando-se nas contendas; os sujeitos estão em igualdade absoluta)

➔ Álvaro Pais
- Latria:​ ​justiça para com Deus​ (​justiça espiritual)
- Dulia​: ​justiça para com as criaturas merecedoras de honra e consideração
- Obediência​: ​justiça para com os superiores hierárquicos
- Disciplina​: ​justiça para com os inferiores hierárquicos
- Equidade​: ​justiça para com os iguais

➔ S. Tomás de Aquino
- justiça comutativa​: diz respeito às ​relações entre iguais​; requer-se absoluta
igualdade entre o que se dá e o que se recebe, havendo o dever de restituir
quando assim não ocorre
- justiça distributiva​: diz respeito às ​relações da comunidade com os seus
membros​; o seu campo de aplicação é o das relações do conjunto político com as
pessoas individualmente consideradas; ela impõe que os representantes da
comunidade repartam os encargos segundo a ​capacidade de resistência de cada
membro e os bens públicos e prémios de acordo com a respetiva ​dignidade e
mérito​; não exige uma igualdade absoluta - rejeita-a, pois ​tratar igualmente
desigual traduzir-se-ia numa desigualdade​; requer, contudo, que a relação
entre o mérito e a recompensa, a capacidade e o encargo, seja a mesma e igual
para todos
- justiça geral (social ou legal)

➔ Aristóteles
Chamou ​geométrica ​à igualdade da justiça distributiva e
aritmética​ à igualdade da justiça comutativa.

● Justiça objetiva
Ao lado das conceções subjetivas, encontramos nos juristas da época a ideia de uma
justiça objetiva, ​forma de retidão plena e normativa​. A justiça, na sua forma pura,
identificava-se com o próprio Deus, assim como Ele se identificava com o direito natural.
Sendo Deus o modelo dos Homens, feitos à sua imagem e semelhança, seguia-se a
consequência de uma justiça humana objetiva​, embora não perfeita, e apenas reflexo da justiça
divina.

A justiça objetiva difere da justiça subjetiva no que toca à respetiva constância.

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JUSTIÇA SUBJETIVA JUSTIÇA OBJETIVA


Permite em si mesma variações. Entende-se como inalterada e inalterável, postulante
sempre das mesmas condutas.

Qual o paradigma de conduta justa que se impõe objetivamente na vida em sociedade?


Sob a influência romana do ​bonus pater familias​, a jurisprudência medieval
determinou o conteúdo da justiça humana objetiva com ​recurso à ideia de homem médio​.
Este, na racionalidade do seu atuar, constitui o exemplo a seguir - e é, portanto, normativo.

JUSTIÇA E DIREITO
O pensamento medieval concebeu ​a justiça como causa do direito​. ​O direito está para a
justiça como o filho para a mãe.​
De tal figuração decorre a consequência de ​justiça e direito possuírem a mesma
natureza​. Isto é, justiça e direito identificam-se.

Diferença entre direito e justiça:


- O direito traduzia a justiça mediante preceitos
autoritariamente fixados. Era apenas um instrumento
de revelação da justiça.
A lei apresenta-se como demonstração simultânea do direito e
da justiça. A lei injusta não é, como explica a ideia medieval,
direito - ou seria direito nulo.

DIREITO SUPRAPOSITIVO E DIREITO HUMANO

DIREITO DIVINO
Para o Homem medieval, existia uma ​pluralidade normativa​, uma normatividade
complexa.
O direito situa-se, não apenas no plano humano, mas decorre da realidade que
ultrapassa o Homem - Deus. Daí que se fale em direito divino - que representa o escalão último
do jurídico.
Na Idade Média, aludiu-se diferentemente a ​direito divino​ e a ​direito natural​.

● Da lei eterna ao direito natural


➔ Santo Agostinho
- lei eterna é a razão e vontade de Deus que manda conservar a ordem natural e
proíbe que ela seja perturbada
- lei natural​ foi inscrita por Deus no coração do Homem

➔ Doutor Angélico
- lei eterna é a própria razão de Deus, governadora e ordenadora de todas as
coisas; dela procedem a lei natural e a lei divina
- lei natural​*

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- lei divina​* *
- lei humana

➔ S. Tomás de Aquino
- lei natural​* ​é uma participação da lei eterna na criatura racional que lhe
permite distinguir o bom e o mau
- lei divina​* * ​constituída pelo Antigo e pelo Novo Testamento, foi revelada
expressamente por Deus para que o Homem pudesse sem vacilações nem
dúvidas ordenar-se em relação ao seu fim sobrenatural, que é a
bem-aventurança eterna
A realidade a que S. Tomás chama ​lei eterna aparece também designada por ​lei divina​. Então,
distingue-se entre ​lei divina natural e ​lei divina positiva​. Estas correspondem à ​lei natural e à ​lei
divina​ do pensamento tomista.

● Pluralidade de entendimentos quanto ao direito natural


O direito natural não se apresenta como um conceito unívoco.
Na Idade Média, assiste-se, em volta do direito natural, a uma pluralidade de noções e
fundamentações por vezes dificilmente conciliáveis e contraditórias entre si.

➔ Gaio
- direito natural​: eminentemente racional

➔ Ulpiano
- direito natural​: teria como base o instinto, comum a seres racionais e
irracionais

Há uma grande problemática em torno do carácter racional ou não do direito natural,


pela sua restrição apenas ao homem ou pelo seu alargamento aos animais. Esta não deve ser
confundida com uma outra centrada nos debates entre racionalistas e voluntaristas.

➔ Santo Agostinho
- direito natural​: síntese entre a consciência e a graça, foi dado por Deus desde a
criação do Homem

➔ Alain de Lille
- direito natural​: deriva-se da natureza, conceito vago e fluido que, de qualquer
forma, acaba ligado a Deus

● Importância da lei divina e da lei natural no quadro normativo medieval


Estes conceitos assumem no pensamento medievo um valor de salientar, pois
condicionam todo o setor jurídico e político.
A necessidade da ordem jurídica ser respeitada pelos governantes representava mesmo
um dado axiomático e indiscutível. Os governantes não estavam apenas subordinados à lei
divina, mas também à lei natural. Por sobre os debates acerca da fonte e especificidade do
direito natural, ele configura-se como algo de transcendente em relação aos titulares do poder e
como verdadeira ordem normativa, obrigatória ou vinculatória. ​Tratava-se de um setor

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jurídico que se sobrepunha à vontade dos governantes e dos súbditos, de todo e qualquer
membro de uma comunidade​ por anterior ao próprio poder político e à coletividade.
Era da necessidade de sujeição da ordem jurídica humana ao direito anterior ao
governante que resultavam a inviolabilidade do direito subjetivo para quantos entendiam o
príncipe como fonte única e exclusiva da ordem positiva.

● O princípio da imutabilidade e inderrogabilidade do direito divino e do direito


natural
A imobilidade e eternidade - e, como consequência, a irrevogabilidade - do direito divino
e do direito natural conduziria a uma ​petrificação​, estagnamento. Por isso, os intérpretes
(teólogos e canonistas) foram obrigados a procurar ​vias de flexibilidade ​e acomodação.
- os teólogos estabeleciam, a respeito do direito divino, uma distinção entre
preceitos móveis​ e ​imóveis
- os canonistas distinguiam, relativamente às normas jusnaturalísticas, entre as
que ​preceituam ou ditam, as que ​proíbem ou interdizem, e as que ​demonstram​,
aconselham ou permitem (apenas a norma imperativa que ordena ou impede
seria intocável)

Outra separação tinha lugar, quanto ao direito natural:


- preceitos primários
- preceitos secundários​ (reconhecidos como suscetíveis de certa variação)

➔ S. Tomás de Aquino
- princípios gerais​: auto evidentes para todos
- princípios primários​: auto evidentes mas não imediatamente para todos
- princípios secundários​: definidos pela congnoscibilidade, como conclusões em
relação aos preceitos primários; há uma certa possibilidade de variação

Interessa considerar que se admitiu a variabilidade de uma parte do direito natural,


embora meramente aparente ou superficial, o que permite compreender e justifica a
possibilidade de determinada ação ser considerada num momento conforme e noutro contrária
àquele direito.

DIREITO SUPRAPOSITIVO E SUPRALEGAL


O estudo histórico do direito implica, assim, a consideração de uma ordem jurídica que
ultrapassa os governantes, de uma ordem suprapositiva que se estende a todos.

● Ius gentium
Situa-se entre os dois planos, na medida em que, consequência ou extensão do direito
natural, é já direito humano, mas universal ou para-universal.
Era concebido como ​direito costumeiro - o costume da humanidade -, posterior ao
direito natural e anterior a toda e qualquer lei escrita.
Se o direito natural existe desde os primórdios do género humano, o ​direito das gentes
aparece depois do pecado original e em consequência dele.

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Direito positivo ‘’supra regna’’. 


O direito canónico e o direito romano 
Entre os ordenamentos jurídicos que importa estudar nesta primeira época, o direito
canónico tem lugar de relevo. Trata-se de um direito que podemos designar por ​supra estatal
(algo que se encontra num plano superior ao dos reinos ou áreas políticas diferenciadas
existentes).
No primeiro período da História do Direito em Portugal, encontramo-nos ainda longe da figura
jurídico-política do Estado.

DIREITO CANÓNICO
Conjunto de normas jurídicas relativas à Igreja. ​Complexo de cânones ou leis
estabelecidas, propugnadas ou aprovadas pela autoridade eclesiástica, para reta instituição da
sociedade eclesiástica.

- cânone​: norma ou regra - quer em sentido físico quer moral; na Idade Média
entendiam-se por cânones, consoante a lição de Graciano, os ​decretos do Sumo
Pontífice​ e as ​estatuições dos concílios

FONTES DO DIREITO CANÓNICO


Modos de formação e revelação deste direito​.
→ MODOS DE FORMAÇÃO: origem ou autoria das normas (​fontes ​essendi,​ ​existendi o
​ u
materiales​)
→ MODOS DE REVELAÇÃO: conhecimento dos monumentos ou coleções de monumentos de que
consta o direito (​fontes ​cognoscendi​, ​notitiae​ ou ​formales​)

FONS PRIMARIUS IURIS ​- PRINCIPAIS FONTES DE DIREITO


● SAGRADA ESCRITURA​: abrange o ​Antigo e o ​Novo Testamento​; o primeiro contém
preceitos cerimoniais (respeitantes ao culto), preceitos judiciais (concernentes ao povo
de Israel enquanto sociedade) e preceitos morais; no segundo, há preceitos de direito
divino (estatuições obrigatórias dos Evangelhos), de direito divino-apostólico
(desenvolvimentos dos preceitos de direito divino levados a cabo pelos apóstolos) e de
direito apostólico (ditados pelos apóstolos na sua atividade evangelizadora); ​preceitos
revelados por Deus ao Homem, que transcendem a sua vontade

● TRADIÇÃO​: ​conhecimento translatício, escrito ou oral, de um ato de autoridade​:


- inhesiva:​ a mensagem que se transmite verbalmente é exatamente aquela que se
encontra nos textos sagrados
- declarativa​: a mensagem não está expressa, mas implícita nos textos sagrados
- constitutiva​: o saber geracional não traz matéria nem expressa nem implícita
nas escrituras

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NORMA RESULTANTE DO USO DA PRÓPRIA COMUNIDADE


● COSTUME​: ​prática reiterada (elemento objetivo) com convicção de obrigatoriedade
(elemento subjetivo); tem de ser ​conforme à fé​, ​à verdade ​e ​à Razão​; tem de seguir a
antiguidade - ​ser observado há 10 ou 20 anos​; para além disso, a ​consensualidade
também é um dos requisitos do costume (aceitação da comunidade)

FONTES CANÓNICAS DE DIREITO HUMANO


● CÂNONES​: determinações concliares; identifica-se com a ​determinação dos ​Concílios
(assembleia eminentemente religiosa, uma reunião do Clero​; podiam ser concílios à
escala universal - concílios ecuménicos -, à escala nacional ou à escala regional; a
autoridade conciliar foi enorme, a ponto de os seus partidários - os ​conciliaristas -, por
vezes, terem declarado o poder do Concílio superior ao do Papa; contra esta tendência
se ergueram os ​curialistas​, que sustentaram a supremacia da ​Cúria - mistura de
elementos laicos e não laicos - ou do Papa sobre o Concílio)
CONCÍLIOS ECUMÉNICOS no Oriente e CONCÍLIOS NACIONAIS na Península CÚRIAS OU CONCÍLIOS
no Ocidente Ibérica - de Leão (1017-1020 a 1091)
- Lateranense I (1123), II (1139), - Toledo (sob a dominação - de Coiança (1055)
III (1179), IV (1215) visigótica) - de Oviedo (1115)
- Lugudense I (1245) e II (1274) - Braga (séc. V e VII, no tempo
- Vienense (1311-1312) dos Suevos)
- Constantinense (1414-1418)
As determinações conciliares receberam as designações de: ​constituição sinodal​, de
estatuto​, de ​edicto​ e ​sanção

● DECRETOS​: ​legislação pontifícia​; estatuições do Papa sem consulta de ninguém

● DECRETAIS​: ​legislação pontifícia​; normas que o Papa estatui sozinho ou com os seus
cardeais a consulta de algué

À medida que o Papa vai legislando e que o Concílio cria as suas determinações, há necessidade
de compilar. → com o renascimento do direito romano, nos séculos XII e seguintes,
desenvolve-se a atividade compilatória dos cânones e decretais
➢ AS CINCO COMPILAÇÕES ANTIGAS encontram-se em grande parte na
origem de uma compilação posterior, em cinco livros
➢ CORPUS JURIS CANONICI​ ​integra:
- Decreto de Graciano
coligido pelo monge Graciano em 1140
- Decretais devidas ao Papa Gregório IX
conjunto de decretos pontifícios dos séculos XII e XIII, reunidas sob o pontificado de
Gregório IX, em 1234, e recolhidos em texto oficial por S. Raimundo de Peñafort (podem
aparecer designadas por ​Decretales Novas)​
- Sexto​ (Livro sexto das Decretais)
coleção de decretais posteriores a 1234 e promulgadas por Bonifácio VIII
- Sétimo o ​ u ​Clementinas (Livro sétimo das Decretais)
recolha de decretais subsequentes, publicada por pelo Papa Clemente V, em 1313

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- Extravagantes (Extravagantes de João XXII ​e ​Extravagantes


Comuns)

● DOUTRINA​: é fonte imediata de Direito; é a opinião e obra científica dos juristas, que
assumiu um papel de muita importância, pois podia resolver casos da vida, depois da
aliança entre a lei canónica e a lei secular; a formação dos juristas é com base nos dois
Direitos (há um tronco comum que associa estes dois Direitos em simbiose)

Os canonistas dividem-se em dois grupos:


DECRETISTAS DECRETALISTAS
escreveram sobre o Decreto de Graciano escreveram sobre as Decretais

Durante toda a Idade Média, distinguem-se, no campo do direito canónico, à


semelhança do que acontece no campo do direito romano, duas grandes escolas:
GLOSADORES COMENTADORES
iniciada por Irnério, que terá o seu apogeu com a ​Glosa a partir do século XIV, iniciada por Cino de Pistóia,
Ordinária ​de Acúrsio, obra de recolha e sistematização de também chamada de ​bartolista,​ d​ o nome do seu maior
dezenas e dezenas de milhares de glosas representante, Bártolo de Sassoferrato

A influência do direito canónico e da ciência jurídica dos canonistas no direito em


geral e para a formação do direito moderno apresenta-se como fundamental. ​Certas zona
dos juridico receberam importante contributo da Igreja e do respetivo ordenamento.

● CONCÓRDIAS​: ​acordos que têm o Papa como outorgante​; acordo celebrado entre o
rei e o Clero nacional, tentando definir os direitos de ambas as partes

● CONCORDATAS​: ​acordos que têm o Papa como outorgante​; acordo celebrado entre o
Papa e o Estado português (rei), tentando definir os direitos de ambas as partes

RECEÇÃO DO DIREITO CANÓNICO EM PORTUGAL


O direito canónico penetrou e foi recebido na Península Ibérica desde os seus alvores.1
Em várias bibliotecas medievais portuguesas figuravam exemplares de coleções de
cânones anteriores à fundação da nacionalidade.2

A penetração do direito canónico era tal, que nas cortes ou cúria alargada de 1211
houve necessidade de hierarquizá-lo em relação ao direito do rei. ​A ordenação
estabeleceu-se, segundo o entendimento geral, com a relevância daquele. Estamos face a um

1
​Nos tempos imediatamente anteriores à fundação da nacionalidade, podemos assinalar mais de um
documento em que se refere o direito canónico na fase pré-gracianeia: numa doação de D. Maurício, bispo
de Coimbra, ao presbítero Afonso; num documento de 12 de março de 1112; numa carta de couto
outorgada pelo conde D. Henrique contém-se alusão aos ‘’decretos dos santos cânones sobre as ordens
eclesiásticas e as liberdades das igrejas’’.
2
​O bispo Crescónio legou à sua igreja, a Sé de Coimbra, um ​librum canonum​, em 1094, e em 1139 faleceu
uma tal Frandine, que, com o seu marido Alvito Recamondiz, legou à mesma uns ​canones veteres.​

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reconhecimento de supremacia eclesiástica​, traduzida na ​superioridade das normas jurídicas da


Igreja​.

Não foram apenas os monarcas a oporem forte resistência à penetração do direito


canónico. O anticlericalismo de parte da população, por um lado, e, por outro, a existência de
numerosas heresias em relação ao credo religioso constituíram também obstáculo de relevo.

-Cúria régia​: ​órgão de aconselhamento do rei que remonta à monarquia


visigótica, que funcionava como o mais alto ​tribunal​ do país.
Não há separação de poderes. O rei legisla, administra, governa e julga. Mas ele pode governar
aconselhado. Portanto, reúne na sua cúria membros da sua família, membros do Alto Clero e
membros da Nobreza. Não há Terceiro estado presente. A cúria régia podia funcionar em
sessões restritas e em permanência ou, em ​situações extraordinárias​, para acorrer decisões
de urgência.
- Beneplácito régio​: rei D. Pedro I; determinação do monarca que impõe que as
letras apostólicas só podem ser publicadas em Portugal depois de serem
aprovadas pelo rei; foi aplicado nos Tribunais da Igreja e nos Tribunais do reino.

APLICAÇÃO DO DIREITO CANÓNICO NOS TRIBUNAIS


APLICAÇÃO NOS TRIBUNAIS ECLESIÁSTICOS, EM RAZÃO DA MATÉRIA E EM
RAZÃO DA PESSOA
Quando é que os Tribunais da Igreja intervêm?
O direito canónico foi aplicado em Portugal, não apenas nos tribunais civis ou seculares,
mas também em tribunais eclesiásticos. Paralelamente com a organização judiciária civil ​existiu
uma organização judiciária eclesiástica​, ou seja, ​de tribunais da Igreja.

Os tribunais eclesiásticos conheciam as causas em ​função da matéria ou em ​função da


pessoa​.
CRITÉRIO DA MATÉRIA
Certas matérias devem ser obrigatoriamente julgadas nos Tribunais da Igreja - matérias do foro
espiritual. ​São consideradas da competência especial da jurisdição eclesiástica.

CRITÉRIO DA PESSOA
Certas pessoas devem ser julgadas nos Tribunais da Igreja - membros do Clero (os monarcas criaram a
regra de foro do réu​: mesmo que uma das partes seja membro do Clero, há que seguir o foro do réu → se o réu
for membro do Clero deve dirimir o conflito/se o réu for alguém que não pertence à Igreja, deve julgar-se num
Tribunal comum) ​e quem tem privilégio de foro ​(pessoas miseráveis: viúvas e órfãos; professores e
estudantes universitários: o ensino é sediado em Igrejas e mosteiros).

APLICAÇÃO NOS TRIBUNAIS CIVIS


ENQUANTO DIREITO PREFERENCIAL OU COMO DIREITO SUBSIDIÁRIO
O CRITÉRIO DO PECADO
Num primeiro momento, os monarcas legislam pouco.

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS ​ ​Ana Maria Varela

Se existir uma lei do rei que rege determinada matéria e existir uma fonte de Direito
Canónico que também a disciplina, nos Tribunais do rei, qual é que se deve aplicar em primeiro
lugar? ​Nos tribunais civis, o direito canónico aplicou-se, primeiramente, como direito
preferencial. ​Seria o próprio monarca que assim o determinaria. Com efeito, na cúria de
Coimbra de 1211, decidiu Afonso II que ​as suas leis não valessem se feitas ou estabelecidas
contra os direitos da Santa Igreja de Roma​.
Mais tarde, o direito canónico foi relegado para a posição de direito subsidiário, isto é,
apenas aplicável quando faltasse o direito nacional. Aqui iria, aliás, entrar em concorrência com
o direito romano ou imperial. ​O critério de ordenação relativa do ordenamento canónico
seria o ​critério do pecado - se, nos tribunais do rei, a aplicação de uma norma de Direito
Romano ou de uma lei régia redundasse em pecado (obrigasse alguém a pecar), não devia
aplicar-se essa norma e devia aplicar-se a regra de Direito Canónico ​(critério criado para
aplicação do Direito Canónico preferencialmente ao Direito Romano e do Direito Régio se, em
segunda instância, se concluísse que a aplicação redundaria em pecado).

Direito prudencial 
É uma fonte relevante a partir de meados do século XII na Idade Média em Portugal. ​O
direito prudencial trata-se da ordem normativa criada pelos ​prudentes (aqueles que têm a
capacidade de distinguir o justo do injusto, o devido do indevido, têm ​auctoritas​, a sua opinião
pode ser utilizada para os casos da vida)​, pelos que conhecem o direito, o justo e o injusto;
por aqueles cuja ​autoridade lhes permitis declarar a verdade jurídica dos casos
concretos.
A ​iurisprudentia baseia-se na ​auctoritas​, no saber socialmente reconhecido, mas
desprovido de poder (​potestas)​ .3
O direito prudencial fica afastado do que hoje designamos por jurisprudência - o resultado da
atividade do juiz enquanto magistrado que dita a solução dos casos litigiosos munido do direito de
império do Estado. Compreende-isto isto claramente tendo presente a diferença entre o juiz atual,
funcionário do poder, e o juiz romano clássico, que era um privado.

PROCESSO DE RENASCENÇA DO DIREITO ROMANO


É nesta conjuntura que em Itália se ​redescobre o direito justinianeu e que sobre ele os
juristas medievais erguerão um vasto labor exegético de adaptação e criação, com vista a
ministrarem à sociedade do tempo os instrumentos jurídicos adequados.

Motivaram o facto razões de diversa ordem: políticas, religiosas, económicas, culturais,...

1. recriação do Império na pessoa de Carlos Magno (Natal do ano 800) e a sua


transferência para a linhagem dos Francos

3
​JURISPRUDÊNCIA: decisão dos Tribunais (​potestas); IURISPRUDENTIA​: opinião justa daquele que tem
reconhecimento para o emitir (​auctoritas)​ .

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS ​ ​Ana Maria Varela

2. desenvolvimento da estrutura eclesial e do respetivo direito - canónico -


que encontrará na ordem jurídica romano-justinianeia rico manancial técnico e
conceptual de que poderia abastecer-se
3. emergência da realidade política representada pelas cidades-estados em
Itália e a que importava dotar de uma armadura normativa e constitucional que
os direitos locais por si só não podiam fornecer
4. movimento geral da cultura​, no sentido de um alargamento de horizontes, e a
inerente ânsia de saber e descoberta

O Direito Romano teria sido alvo de uma descoberta no século XII. Na Idade Média, o
Digesto​ encontra-se disposto nas edições medievais dividido em três volumes:
● DIGESTO​ VELHO​: ​abrange os livros I a XXIV
● DIGESTO​ NOVO​: ​abrange os livro XXXIX a L
● DIGESTO​ ESFORÇADO​: ​XXV a XXXVIII
As partes do ​Digesto corresponderiam não à sua descoberta, mas à ordem de elaboração e de
estabelecimento.

AS ESCOLAS JURISPRUDENCIAIS NA IDADE MÉDIA


É costume apresentar a jurisprudência medieval como duas escolas sucessivas:
GLOSADORES COMENTADORES
ter-se-ia iniciado com Irnério (princípios do século XII) e inícios radicar-se-iam nas obras de Jacques de Révigny e
terminado com Acúrsio, cuja obra máxima - ​Magna Glosa - de Pierre de Bélaperche, haveria atingido o apogeu nos
elaborada entre 1220 e 1234, se poderia tomar como séculos XIV, entrando em declínio com a crítica dos
respetivo termo humanistas (séculos XV e XVI)

Esta visão tem sido, contudo, acusada de excessivo esquematismo, com a sua pretensão
de apresentar as duas escolas medievais como separadas uma da outra por um fosso bem
demarcado, quando é certo não se encontrar facto a que se possa atribuir tal virtualidade,
existirem inúmeros pontos de contacto entre elas e só ser viável o estabelecimento de
contrastes entre ambas quando se lhes referenciem estádios bem separados cronologicamente.

Cumpre acentuar a revaloração pela historiografia moderna do evento tomado como


elemento separador das duas escolas - a ​Magna Glosa​.
- tem-se visto nessa obra de Acúrsio um trabalho de mera compilação, possível
apenas numa altura já de fixação de resultados e, portanto, de perda de
capacidade criadora
- há autores que, em vez de nela encontrarem esse signo de decadência,
esgotamento e ocaso, a encaram como um minuto de apogeu cujos efeitos hão de
ter perdurado
A ​Glosa terá representado uma ​função de continuidade​. Por isso, se contrapõe a
divisão ‘’glosadores-comentadores’’ o agrupamento dos prudentes medievais em ​glosadores​,
pós-acursianos​ e ​comentadores​.

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS ​ ​Ana Maria Varela

GLOSADORES - PRINCIPAIS REPRESENTANTES


A escola dos glosadores teve como fundador ​Irnério​. Foi ele a quem que se atribui o
mérito de haver emancipado o ​estudo do direito do ensino da dialética e da retórica​. Virtude sua
terá sido a de centrar a atenção no direito romano. Cabe-lhe a glória de, pela primeira vez, haver
tomado o ​conjunto da obra justinianeia​.
- Búlgaro
- Jacobo
- Rogério
Acúrsio realizou uma das obras capitais da história da jurisprudência - a ​Magna Glosa -
, formidável trabalho de compendiação das glosas dos seus professores dos seus predecessores
ao ​Corpus Iuris Civilis ​que se estima compreender 96 000 delas, num acompanhamento do
texto justinianeu.

PÓS-ACURSIANOS
Odofredo​, autor de um comentário ao ​Digesto Velho​ e de diversificadas obras.
- Guilherme Durante
- Martim de Fano
- Alberico de Rosate ​(autor de um comentário ao ​Digesto)​

COMENTADORES
A escola dos comentadores apresenta como figuras iniciais as dos doutores franceses
Jacques de Révigny e Pierre de Belleperche, ambos creditados pela larga e sistemática
apropriação dos métodos dialéticos cultivados pelos teólogos escolásticos.
- Cino de Pistóia (a sua obra jurídica principal foi um notável comentário ao
Código​)
Bártolo​, o maior dos juristas medievais e, talvez, aquele mais influência exerceu, tem
uma vastíssima obra elaborada no curto espaço de uma vida de quarenta anos.
- Baldo
- Bartolomeu de Saliceto
- Fulgósio
- Paulo de Castro
- Alexandre Tartagna

ARS INVENIENDI​ - ​METODOLOGIA DO OPERAR DAS ESCOLAS MEDIEVAIS


A metodologia dos glosadores e pós-glosadores apresenta-se-nos
predominantemente ​analítico-problemática​.
● ANALÍTICA​: o jurista medieval aproximou-se da lei com o intuito essencial de
determinar os preceitos não pela consideração da globalidade do ordenamento
jurídico (através do qual e mediante processos de dedução lógica e pressupostos
de coerência, correlativos à ideia de sistema, se chegaria à delimitação dos
diferentes comandos), ​mas vendo nestes algo de imediato, dotado de
individualidade, a apreender em si mesmo​; ​não sistemático - a base é o ​preceito
que parte da norma (o jurista medieval aproxima-se do texto).

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS ​ ​Ana Maria Varela

● PROBLEMÁTICA​: o jurista medieve parte sempre de um ​problema da vida, seja real


ou ficcionado; para o jurista a solução não se obtinha a partir da subsunção do facto à
norma legal, mas pela ponderação das soluções possíveis e em função destas era
achada a norma aplicável, determinado o seu âmbito.

Elementos da ​ars inveniendi:


● LEGES:​ a ciência jurídica medieval é uma ciência de textos - ​o preceito encontra a sua
expressão num texto, ou seja, tem uma forma escrita (só se pode apreender o respetivo
significado mediante o significante): a ​lex constitui apenas um elemento alcançável
mediatamente; ​base para fundamentar opinião
● RATIONES​: não encontram o seu apoio num texto de lei humana e divina; para
Lombardi, as ​rationes estão frequentemente ​inerentes à argumentação espontânea dos
juristas
O pensamento clássico-medieval teorizou duas vias: a ​retórica ​(é a arte de persuasão;
formalmente apresenta-se sob a forma de discurso) e a ​dialética ​(consiste na arte de discussão,
traduzindo-se no debate controversístico; formalmente reveste um enunciado de proposições
breves destinadas a conseguir a adesão do interlocutor para uma conclusão prática).
● AUCTORITATES:​ a ​opinião traduzia o ponto de vista de todos os homens, da maioria
deles ou dos mais sábios; ​o pensamento por opiniões traduz um pensamento de
peritos

‘’Ius regni’’ 
Direito que se faz no reino. Direito legislado 
Direito dos povos que se estabeleceram na Península Ibérica​:
1. POVOS PRIMITIVOS DA PENÍNSULA​ - Íberos, Tartéssios, Lusitanos
2. LEIS GERMÂNICAS ​- Lei ​Salica​, dos Francos Sálios, a ​Lex Ribuaria​, dos Bávaros,...
3. LEIS DOS VISIGODOS (povo que dominou a Península durante séculos e cujo Império
apenas terminou com as invasões muçulmanas) - aos Visigodos se ficaram devendo
alguns famosos momentos jurídicos:
- CÓDIGO DE EURICO (476)​: atribuído ao rei Eurico e de que se conhece apenas
um fragmento, o chamado ​Palimpesto de Corbie,​ tendo sido este objeto de
reconstituição: nele se vÊ a influência do direito romano vulgar
- BREVIÁRIO DE ALARICO (506)​: devido a Alarico, não é já direito romano
vulgar, mas direito romano; teve por fontes constituições imperiais retiradas dos
Códigos Teodosiano, Hermogeniano e Gregoriano e de novelas de vários
imperadores, bem como escritos de juristas romanos (opiniões doutrinárias de
Gaio, Paulo e Papiniano)
- CÓDIGO DE LEOVIGILDO​/​Codex Revisus ​(576 - 586)​: hoje desaparecido,
atribuído ao rei Leovigildo e foi objeto de investigação de Rafael Gibert
- CÓDIGO VISIGÓTICO (654)​: publicado pelo rei Recesvindo, após correção, ao
que se supõe de S. Bráulio, e com a aprovação do VIII Concílio de Toledo (633);
foi sujeito a uma revisão de pendor oficial (680-687) - ​Fórmula Ervigiana - e

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS ​ ​Ana Maria Varela

encontra-se dividido por doze livros, que se repartem em títulos e estes em leis;
foi sujeito a uma segunda revisão, sem carácter oficial - ​Fórmula de Vulgata​.

O primeiro grande monumento legislativo visigótico foi o ​Código de Eurico​. Nele


transparece a influência jurídica de Roma, pelo que as suas normas estão muito longe de
representarem direito germânico puro - antes pelo contrário, é qualificado por Álvaro d’Ors
como ​direito romano vulgar​.

Uma tese antiga sustentava que este ​Código​, como as restantes leis visigóticas, era de
aplicação territorial - que se aplicava a todas as populações senhoriadas por Eurico e
sucessores. Esta tese permaneceu durante longo tempo esquecida.
Generalizou-se a ​doutrina da dualidade de direitos​, segundo a qual o ​Código de Eurico
seria aplicado apenas às populações visigodas, ao passo que as populações romanas se regeriam
pelo ​Breviário de Alarico​.
Paulo Merêa aceita a ​tese da territorialidade​, que traduz que todos os monumentos
jurídicos dos godos se aplicam a todos - godos e não godos.
O Breviário vigorou em simultâneo com o de Eurico, tendo sido revogado pelo ​Revisus​.

APLICAÇÃO DO ​CÓDIGO VISIGÓTICO​ EM PORTUGAL


O Código Visigótico é aplicável quando Portugal nasce como reino, no séc. XII?
Sim, ​são inúmeros os testemunhos de aplicação do Código Visigótico.
- o Código Visigótico é fortemente influenciado pelo Direito Romano, por isso (como a
partir do séc. XII começa a discutir-se a aplicação do direito romano justinianeu, que se
começa efetivamente a aplicar), faz-se entrar em ​desuso a aplicação do Código Visigótico
(se há acesso ao ​Corpus Iuris Civilis,​ torna-se menos necessária a aplicação de direito
romano vulgar)
- Lei de Afonso II (proibição de legislação de um prior [Soeiro Pereira Gomes]
dominicano, que terá legislado sobre matéria que importava ao rei - remete para lei do
Código Visigótico)

Quanto à aplicação do Código Visigótico em Portugal, existem duas teses distintas:


- Uma que afirma que até ao século XII existem várias referências ao Código Visigótico, mas que a partir
do século XIII se assiste a um corte profundo e brusco na aplicação do direito visigótico;
- A segunda tese afirma que até o século XII foi frequentemente invocado, nem que seja só de forma
translactícia, tendo no século XIII perdido lentamente a importância visto surgirem as leis régias e uma
renovação do direito romano Justiniano. Prova deste processo serão os decretos de Soeiro Gomes.

LEI DO REI (FONTE)


● Lei​: comando emanado de autoridade competente (rei) com natureza geral e abstrata
A força vinculante da lei é a vontade do rei. Não há separação de poderes. Esta vontade
não é livre e arbitrária. A lei tem de ser conforme à justiça, ao direito natural e ao direito divino.
Se não, será corrupção de lei.
Uma lei, depois de produzida, tem de ser levada ao conhecimento dos seus destinatários
para ser cumprida.

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS ​ ​Ana Maria Varela

Que regras se tem para publicação da lei?


- uma lei, antes de ser publicada, não pode ser exigível
- a forma de publicação da lei é a leitura da lei (durante período que poderia atingir um
ano, uma vez por semana) que o rei havia aprovado, junto ao tribunal do Conselho; este
era um mecanismo falível
Depois se ser publicada, entra imediatamente em vigor.

➔ APLICAÇÃO NO TEMPO
◆ a lei não é retroativa, por regra: ​só dispõe para o futuro
◆ somente o órgão que cria a lei é que pode clarificar em definitivo o
sentido da lei (​é uma obrigação - se a lei não é clara, o rei deve intervir
através de uma lei e tornando claro aquilo que é obscuro)

Direito outorgado e pactuado 


 
Carta de privilégio​: documento que estatui direitos, isenções, regalias; em sentido estrito:
documento que traçam estatuto jurídico de determinada povoação​. As cartas de privilégio
possuem âmbito delimitado que possibilita diferenciá-las da lei, a qual contém uma
regulamentação geral e abstrata.

1. CARTA DE POVOAÇÃO
Durante o período de reconquista, havia necessidade de atrair população para zonas
menos povoadas. ​A carta de povoação visava atrair habitantes para certas zonas
escassamente povoadas ou despovoadas, para garantir a sua defesa​. ​O monarca, um senhor
ou a entidade que exercia a autoridade sobre território nessas condições ​fixava na carta de
povoação conjunto de normas definindo o estatuto dos futuros colonos, especialmente quanto
às condições de exploração da terra​. Estabeleciam-se as prestações patrimoniais - ​cânones - ou
pessoas a que os povoadores ficavam obrigados, e os modos de detenção e ligação à terra.
Têm natureza pactícia/contratual​?​ Para determinados autores sim.
- Há quem entenda que são ​contratos agrários coletivos​ (Eduardo de Hinojosa).
- Outros consideram que ​têm conteúdo normativo (Tomás y Valiente): primeiro,
porque as cartas de povoação em geral não costumam adotar a forma contratual​,
representando antes um ​ato unilateral do senhor (os colonos/povoadores não estipulam
as suas condições, antes são outorgadas pelo senhor); segundo, ​de qualquer forma,
estando perante figura de direito público, quer-se vínculos entre o senhor da terra
e os que a vão explorar, não tem natureza estritamente privada​; terceiro, ​cria
regras para o futuro e mantém-se durante toda a sua vigência.
Nenhum destes argumentos colide com a natureza pactícia das cartas, por isso faz sentido
considerá-las como contratos: têm, do ponto de vista histórico, a natureza de um ​contrato de
adesão (os povoadores não têm possibilidade de dizer ao senhor que não concordam com
determinada definição) e os povoadores não podem estipular, mas têm liberdade de celebração.
São contratos com natureza especial, índole que aproxima de um contrato normativo, propósito de atrair

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS ​ ​Ana Maria Varela

habitantes para garantir defesa do território, conteúdo estritamente agrário.


As cartas de povoação assumem carácter simultâneo dos contratos de adesão e dos contratos normativos.

2. CARTA DE FORAL
Em regra, os forais são mais extensos que as cartas de povoação: ​definem o conteúdo
jurídico aplicável a uma determinada comunidade e, portanto, um maior número de
matérias. Integram regras de direito processual, direito militar, direito penal, direito
administrativo e algumas de direito privado (direito da família e direito das sucessões)..
Na conceção de Alexandre Herculano, é um documento criador de um
concelho/município. No entanto, não foi para isso que serviram, sabendo-se que há cartas de
foral que foram atribuídas a localidades que já eram concelho e a outras que nunca o chegaram a
ser.
Têm mais matérias do que as cartas de povoação. Não fazem propósito de elevar localidade a concelho.

Numa primeira fase estão escritos em latim vulgarizado, depois em galaico português.
Os forais eram outorgados quer pelo monarca, quer pelo senhor eclesiástico.
Os senhores que outorgam os forais podem ser ​laicos​ ou ​eclesiásticos​.

Se o foral define o estatuto de uma localidade, qual o valor que pode ser atribuído a uma
regra que não se destina a reger aquela população mas, por exemplo, outras terras do reino ou
mesmo todo o reino?
Se o senhor não pode disciplinar para todo o reino, exceto se for o rei (se apenas
pretende disciplinar a vida em termos jurídicos naquela população), ​esta norma tem de ser
reduzida, apenas aplicada àquela terra​: ou se restringe o conteúdo geral àquela terra, ou aquela
regra pode vigorar para outras terras que fossem do mesmo senhor.
Se o senhor fosse o rei, , poderiam ter uma norma geral e abstrata que se aplicaria a todo
o reino. ​Porquê? Há forais que são originais, criados para aquela terra para que foram
outorgados. Havia ​famílias de forais​: havia muitos que não eram pensados ​ex novo -
aproveitava-se o trabalho que já estava feito (aproveitava-se a carta de foral anterior).
- forais ampliativos​ face ao anterior
- forais confirmativos​ limitam-se a reproduzir o conteúdo de outras cartas de foral

3. FOROS, COSTUMES OU ESTATUTOS MUNICIPAIS


Separam-se dos forais pela sua extensão ou dimensão, e distinguem-se também pelo seu
conteúdo. ​Abarcam mais matéria do que os forais​, alinhando-se, por vezes, em centenas de
rubricas distribuídas por capítulos.
A ​presença do direito privado​ aparece nítida nestes documentos.
Os foros eram constituídos pelas próprias autoridades locais, pelos próprios concelhos.
Podem ser chamados de ​foros extensos porque têm muitas matérias. A sua composição é mais
recente, mas as fontes que lhe servem de inspiração são antigas (costume, forais).
Também para os foros municipais, por causa do parentesco entre alguns deles, se fala de
famílias​, resultantes, em grande parte, da ​comunicação dos costumes ou levando a tal
comunicação entre territórios diversos.

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS ​ ​Ana Maria Varela

→ ​Foros de Cima ou Ribacoa (família de foros) - de Castelo Bom, de Alfaiates, de Castelo


Rodrigo, de Castelo Melhor.

COSTUME E DIREITO JUDICIAL


COSTUME EM SENTIDO ESTRITO​: ​repetição habitual de uma conduta havida por
juridicamente vinculante - ​com dois elementos: objetivo (uso) e subjetivo (convicção de que é
juridicamente vinculante atuar daquela forma).
É a primeira fonte de direito. A lei é extraordinariamente lacunosa e dá margem para o
aparecimento do costume.
A doutrina apontou determinados ​requisitos para o costume valer como fonte de
direito:
- tem de ser ​antigo (o tempo que é apontado pela doutrina é 10/20 anos para se
observar costume e ser suscetível de resolver casos da vida)
- tem de ser ​racional​ (conformidade do costume com a razão)
- consenso da comunidade (o costume é introduzido pelo povo - S. Raimundo de
Peñafort -, pelo que se requer o consentimento da maioria)

COSTUME JUDICIAL/ESTILO​: ​é introduzido pelos tribunais (que podem criar regras de


organização e funcionamento do tribunal - quantas testemunhas vão ser ouvidas, como se
comportam as partes através do tribunal - e que podem criar regras de conteúdo processual;
também podem criar matérias em âmbito de regime substantivo).
É uma prática reiterada dos tribunais quando são chamados a resolver casos da
vida, criando preceitos de direito processual e de direito substantivo​. Também tem de ser
antigo e racional.

→ Cino de Pistóia + Bártolo: o estilo era uma espécie do direito não escrito, introduzido
pelo uso de determinado pretório, diferindo do costume consagrado pela generalidade das
pessoas ou pela sua maioria. O fundamento do costume identificava-se, pois, com a conduta da
comunidade. O do estilo com a prática de um tribunal (juízo).

A doutrina disputou sobre os requisitos e atributos do estilo​: número de atos


necessários para se poder ter por consagrado; qualidade e poderes do agente; eficácia
obrigatória.

FAÇANHAS​: é direito judicial, mas não é costume - é direito não escrito. ​É um julgamento sobre
uma ação fora do comum que funciona como padrão normativo de exemplo para o futuro​.
Fica como padrão normativo para o futuro: ou ​porque o juiz é particularmente notável​,
ou ​porque a própria ação é de contornos excecionais​, ou houve muita discussão no tribunal
acerca de como o caso deveria ser solucionado e, por isso, ​o julgamento funcionará como
precedente para casos futuro​.

ALVIDROS​: ​decisões de tribunais arbitrais​.


Do ponto de vista histórico, são juízes árbitros - designados pelas partes - que julgam
livremente no âmbito dos poderes que por elas são conferidos. Da decisão destes juízes alvidros,
havia possibilidade de recorrer à cúria régia (ou seja, a justiça ficava feita em primeira
instância).

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