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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL REI

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

UMA ANÁLISE DA IDEOLOGIA PRESENTE NOS QUADRINHOS DO CAPITÃO


AMÉRICA.

Hugo Faccion Guimarães


Professor: Danilo José Zioni Ferreti

São João Del Rei


2019
UMA ANÁLISE DA IDEOLOGIA PRESENTE NOS QUADRINHOS DO CAPITÃO
AMÉRICA.

RESUMO: Levando em conta todo alcance que as mídias audiovisuais de massa obtiveram
a partir dos anos 2000, o artigo pretende fazer uma análise do percurso das histórias em
quadrinhos (HQ) do Capitão América e sua representação ideológica. Para isso será feita
uma explanação dos conceitos de ideologia e representação, ressaltando os devidos
cuidados no uso de tais conceitos, além de uma breve apresentação de outras mídias
audiovisuais de massa e suas relações.

PALAVRAS-CHAVE: ideologia – representação – histórias em quadrinhos – capitão


américa
INTRODUÇÃO

Com o advento das mídias audiovisuais de massa e sua atual demanda se faz
necessária uma análise conceitual das mudanças ocorridas nas histórias em quadrinhos
(HQ) do Capitão América. Mudança a qual pode parecer superficial para olhos menos
interessados, mas que passa uma mensagem que é um espelho de uma representação social
coletiva ou individual.

O objetivo do artigo é demonstrar que diversos processos e demandas sociais


podem influenciar na criação das HQ e que isso não é compreensível em um primeiro
momento. Serão usados os conceitos de ideologia e representação na análise do objeto. O
que é ideologia? O que ela representa? As mídias audiovisuais de massa, são responsáveis
pela difusão da ideologia? É possível negar a ideologia?

A começar pela definição de ideologia é necessário visitar alguns autores que já


conseguiram delimitar o conceito, Terry Eagleton define como:

A palavra “ideologia” é, por assim dizer, um texto, tecido com


uma trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por
divergentes histórias, e mais importante, provavelmente, do que
forçar essas linhagens a reunir-se em alguma Grande Teoria
Global é determinar o que há de valioso em cada uma delas e o
que pode ser descartado. (EAGLETON, 1997, p.15)

Já Paul Ricoeur, define alguns traços do fenômeno ideológico, o primeiro deles


“está ligado à necessidade, para um grupo social, de conferir-se uma imagem de si mesmo,
de representar-se no sentido teatral do termo, de representar e encenar” (RICOEUR, 1990,
p.68). Um segundo traço é o dinamismo “a ideologia depende daquilo que poderíamos
chamar de uma teoria da motivação social” (Ibidem, p.68). O terceiro traço “remete a uma
terminologia freudiana, é o momento da racionalização”, que é definido por meio de
máximas e slogans (Ibidem, p.69). No quarto traço, Ricoeur elenca que “o código
interpretativo de uma ideologia é mais algo em que os homens habitam e pensam do que
uma concepção que possam expressar” (Ibidem, p.70). Por fim o quinto traço trabalha o
aspecto temporal, onde o “novo só pode ser recebido a partir do típico, também oriundo da
sedimentação da experiência social”, um caráter de intolerância a marginalização, a
novidade quando ameaça ao grupo de reconhecer-se e reencontrar-se, é intolerada (Ibidem,
p.70).
É interessante perceber que as definições de ideologia são parecidas nos dois
autores, apesar de sua amplitude conceitual. Segundo Eagleton, não existe pensamento livre
de pressupostos, logo qualquer ideia nossa poderia ser tida como ideológica. Essas são as
definições atuais do que seria ideologia:

a) o processo de produção de significados, signos e valores na


vida social;
b) um corpo de ideias característico de um determinado grupo ou
classe social;
c) ideias que ajudam a legitimar um poder político dominante;
d) ideias falsas que ajudam a legitimar um poder político
dominante;
e) comunicação sistematicamente distorcida;
f) aquilo que confere certa posição a um sujeito;
g) formas de pensamento motivadas por interesses sociais;
h) pensamento de identidade;
i) ilusão socialmente necessária;
j) a conjuntura de discurso e poder;
k) o veículo pelo qual atores sociais conscientes entendem o seu
mundo;
l) conjunto de crenças orientadas para a ação;
m) a confusão entre realidade linguística e realidade fenomenal;
n) oclusão semiótica;
o) o meio pelo qual os indivíduos vivenciam suas relações com
uma estrutura social;
p) o processo pelo qual a vida social é convertida em uma
realidade natural. (EAGLETON, 1997, p.15-16)

Ao analisar as diversas definições de ideologia, Eagleton delimita seis significados


do que é ideologia. Compreende-se a importância dos seis significados delimitados pelo
autor, mas para nortear de forma sintética e objetiva o restante do debate proposto no artigo
será utilizado o quinto significado que: “na qual ideologia significa as ideias e crenças que
ajudam a legitimai-os interesses de um grupo ou classe dominante, mediante sobretudo a
distorção e a dissimulação”. (EAGLETON, 1997, p.39)

Michel Vovelle também contribuiu ao analisar a obra de Louis Althusser e sua


definição de ideologia como “o conjunto de representações, mas também de práticas e
comportamentos conscientes ou inconscientes” (VOVELLE, 1991, p.11). É possível
identificar nas definições dos diversos autores que ideologia e representação são conceitos
intimamente ligados.

Adentrando o conceito de representação, Roger Chartier é taxativo no seguinte


trecho:

As definições antigas do termo (por exemplo, a do dicionário de


Furetière) manifestam a tensão entre duas famílias de sentidos:
por um lado, a representação como dando a ver uma coisa
ausente, o que supõe uma distinc.ao radical entre aquilo que
representa e aquilo que é representado; por outro, a
representação como exibição de uma presença, como
apresentação pública de algo ou de alguém. (CHARTIER, 1988,
p.20)

Ainda no conceito de representação, tem-se em “Carlo Ginsburg, seguindo Roger


Chartier, destaca a ambiguidade do termo ‘representação’, que ora ‘faz as vezes da
realidade representada’, evocando a ausência; ora a torna visível, sugerindo sua presença”.
(SANTOS, 2011, p.30)

Todas essas assertivas são claras quanto ao conceito de representação, assim como o
conceito de ideologia, têm significados bastante fluidos e amplos podendo gerar
ambiguidades e generalizações. Contudo é necessário tomar esses conceitos como
ferramenta de inteligibilidade do artigo e seu objeto, apesar de todas as ressalvas que isso
possa gerar.

As mídias audiovisuais de massa são os meios que possibilitam a disseminação de


informação, entretenimento, educação, ideias etc. Existem diversas mídias audiovisuais,
porém este artigo se atenta para as histórias em quadrinhos (HQ). As HQs começaram suas
tiragens em 1895 com o artista americano Richard Outcault. A linguagem das HQs, tal qual
conhecemos hoje com personagens fixos, ações fragmentadas e diálogos dispostos em
balõezinhos de texto, foi inaugurada nos jornais sensacionalistas de Nova York. A tirinha
de Outcault chamada The Yellow Kid fez tanto sucesso que acabou sendo disputada por
jornais de renome. (SILVA, Cíntia Cristina da. Quem inventou as histórias em
quadrinhos?)1.

Nesse primeiro momento das HQs é possível notar seu uso como entretenimento,
apesar de também ser comercial. Esse momento inicial é crucial para entender toda
dinâmica das HQs, uma vez que sua demanda só aumentou, consequentemente, o público
que teria contato direto com as informações e ideias ali contidas. Ao levar em consideração
as informações supracitadas, as HQs tiveram como incubadora outra grande mídia de
massa, os jornais da época. Sendo assim, os jornais que também trazem informações e
ideias foram agentes estruturantes do que as HQs viriam a se tornar.

Assim como os jornais, as HQs são dotadas de ideologias e representações. De


forma lúdica, elas podem não só promover dissimulação como serem simulacros da
realidade social. Por maior que possa ser o conflito dialético gerado nesse debate, é possível
vislumbrar minimamente o pano de fundo por trás desse conflito, algo que será
demonstrado mais adiante.

1
Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quem-inventou-as-historias-em-quadrinhos.
Acesso em 22 de agosto de 2019.)
2
Capa da primeira revista em quadrinhos. The Yellow Kid de 1895 por Richard Oultcault.
ANÁLISE DAS HQs

As revistas do super-soldado foram criadas por Joe Simon e Jack Kirby, sua
primeira aparição foi em Captain America Comics 01, em março de 1941, numa revista de
60 páginas, com quatro histórias pela editora Marvel.

O pano de fundo dessa primeira revista é bastante evidente, a Segunda Guerra


Mundial. É possível perceber em sua capa a figura do super-soldado socando o rosto do
então líder alemão Adolf Hitler. A revista foi um sucesso, gerando ainda mais engajamento
político e social que mais tarde seria concretizado por meio da entrada dos EUA na
Segunda Guerra em dezembro de 1941. Pode-se observar além da dinâmica econômica das
HQs que é muito importante toda a representação da realidade.

A origem do Capitão América é uma das mais definitivas dos


quadrinhos, não tendo sido alterada desde então. Apenas
ampliada ou detalhada. Na trama, o franzino e doente Steve
Rogers tenta de alistar no exército dos EUA, mas é negado por
causa de sua condição física. Mas ele insiste, devido ao
seu espírito patriótico. Um general assiste a cena e convida o
jovem para se submeter a um experimento científico e, assim,
servir o seu país. Rogers aceita.
Então, ele é apresentado ao doutor Reinstein – uma clara alusão
a Albert Einstein, o maior físico da época – que o submete
à fórmula do super-soldado, com o objetivo de melhorar o corpo
do recruta à perfeição. O experimento é bem-sucedido, mas um

3
Capa da primeira revista em quadrinhos do Capitão América. Captain America Comics 01, disponível em:
(MARVEL.COM Acesso em: 22 de agosto de 2019)
espião nazista infiltrado no teste consegue assassinar o doutor,
perdendo-se o segredo da fórmula para sempre.
Com isso, Steve Rogers é o único super-soldado criado e se
transforma no Capitão América para defender a democracia e
deter os nazistas. Ao mesmo tempo, Rogers é disfarçado como
um recruta em um acampamento militar. (PEIXOTO, Irapuan.
Capitão América faz 70 anos)4
A própria criação dos personagens perpassa as representações da realidade COMO,
POR EXEMPLO, o doutor Reinstein que é uma alusão à Albert Einstein. A disposição
ideológica em defesa da democracia face a tirania do Eixo, o que viria a se tornar um
pressuposto para as políticas de guerra dos EUA, sempre em nome da democracia,
resultando em dissimulações e crenças orientadas para tais ações.

Com o passar do tempo, chega-se em 1969 e acontece a estreia do Falcão Negro nas
revistas do Capitão América, primeiro herói negro norte-americano, onde o pano de fundo é
toda a discussão sobre os direitos civis dos negros norte-americanos. O artista Gene Colan
inaugura a capa da revista Captain America 117, juntamente com Sam Wilson (Falcão).

4
Publicado por Irapuan Peixoto, disponível em: (https://hqrock.com.br/2011/03/22/capitao-america-faz-70-
anos/ Acesso em: 22 de agosto de 2019)
5
Capa da primeira revista em quadrinhos de um herói negro norte-americano. Captain America 117,
disponível em: (MARVEL.COM Acesso em: 22 de agosto de 2019). É na Ilha dos Exilados que o Capitão
América conhece Sam Wilson, o Falcão, que se tornaria o primeiro super-herói afrodescendente dos
quadrinhos, em Captain America 117, de 1969, nas mãos de Stan Lee e Gene Colan. A Marvel (leia-se Stan
Lee) já havia sido pioneira em criar o primeiro super-herói negro – o Pantera Negra, em 1966 – mas o Falcão
é um herói negro norte-americano (o Pantera Negra é africano). Disponível em:
(https://hqrock.com.br/2011/03/22/capitao-america-faz-70-anos/ Acesso em: 22 de agosto de 2019)
É importante lembrar que em 1964 o presidente norte-americano Lyndon Baines
Johnson implantou uma série de medidas de seguridade social, entre elas a “eliminação” da
injustiça racial, incluindo a conhecida Lei dos Direitos Civis de 1964, que pós fim aos
diversos sistemas estaduais de segregação chamadas de Leis Jim Crow. Toda essa
discussão inflamou setores da sociedade norte-americana, principalmente os negros nas
figuras como Martin Luther King, Whitney Young, Malcolm X, Rosa Parks, entre outros
grupos da sociedade norte-americana como LGBTs, Hipsters etc. Seguidamente em 1965, o
ainda presidente sancionou a Lei dos Direitos de Voto, o que daria ainda mais força para os
grupos supracitados.

Já com J.M. DeMatteis (texto) e Michael Zeck (desenhos), as HQs do Capitão


tomaram outro rumo a partir de 1981, abordando temas mais delicados como alusão a
homossexualidade e minorias étnicas (já abordado em um outro contexto na versão de
1969).

Deve-se levar em conta que toda repercussão das demandas sociais, exige uma
representação em mídias audiovisuais de massa. É bastante evidente uma apropriação
mercadológica dessa repercussão e uma capitalização perante tais temas. Porém é

6
Capa da revista em quadrinhos. Captain America 261. Disponível em: (MARVEL.COM Acesso em: 22 de
agosto de 2019). J.M. DeMatteis retomou a bola alta do personagem em aventuras repletas de abordagens
psicológicas e temas delicados, como envelhecimento/morte, perseguição de minorias étnicas (negros por
meio do Falcão; judeus por meio de Bernie) e homossexualidade (por meio de Arnie Roth, um amigo de
infância de Steve Rogers). Disponível em: (https://hqrock.com.br/2011/03/22/capitao-america-faz-70-anos/
Acesso em: 22 de agosto de 2019)
igualmente claro um esforço dos autores/artistas dessas HQs em difundir assuntos em voga
na sociedade.

Por fim, temos a HQ Guerra Civil de Mark Millar e Steven McNiven. Essa lançada
em 2006 e serviu como crítica ao Ato Patriota7 na Era Bush.

Todo o debate da HQ fica em torno da criação de uma lei de registro, onde os heróis
deveriam revelar suas verdadeiras identidades. Essa é uma HQ onde o pano de fundo tem
como cerne as liberdades individuais e o patriotismo que foi muito debatido durante os
governos do então presidente George Walker Bush no período de 2001 a 2009.

Na trama, o grupo de heróis Novos Guerreiros causa, sem querer,


a morte de 600 pessoas, a maioria crianças, o que leva o
Congresso Americano a votar a Lei de Registro de
Superhumanos, que obriga aos superseres revelar suas
identidades e passarem a agir como encarregados do
Governo. Tony Stark, o Homem de Ferro, é o Secretário de
Defesa dos EUA e se torna o grande defensor da Lei; mas
inesperadamente, uma facção de heróis liderada pelo Capitão
América se ergue contra o Registro, por julgá-lo contra os

7
USA Patriot Act (inglês). A Lei Patriota foi promulgada após os atentados do 11 de setembro de 2001 e
ampliou o poder do governo americano para obter documentos privados, promover escutas telefônicas e
buscas (sem necessidade de qualquer autorização da justiça, seja estrangeira ou americana). Disponível em:
(http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI902197-EI789,00-
EUA+aprovam+definitivamente+a+Lei+Patriota.html Acesso: 22 de agosto de 2019)
8
Capa da HQ de 2006, Civil War dos autores Mark Millar e Steven McNiven. Disponível em:
(MARVEL.COM Acesso em: 22 de agosto de 2019)
Direitos Humanos. (PEIXOTO, Irapuan. Capitão América faz
70 anos)

São diversas as temáticas abordadas nas HQs do Capitão América, porém é evidente
que todo processo de criação do herói se faz permeado de uma aura patriótica e libertária.
Essas HQs mantiveram essa aura (que é clichê nas HQs de super-heróis) durante o tempo e
foram englobando debates que dizem respeito a diversas realidades sociais. Assim, existe a
possibilidade de analisar o que é representado nessas HQs, qual o discurso adotado, o que é
omitido ou dissimulado. A começar pela Captain America Comics 01, onde foi
minimamente retratada a Segunda Guerra. É possível identificar o discurso de
representação dos EUA por seu herói (Capitão América), que é retratado de forma ufanista
e tratado como bastião da liberdade, democracia e patriotismo. Logo se atribui aos EUA
esses mesmos adjetivos. Porém, esse discurso não permite verificar a atuação dos EUA
durante a Segunda Guerra em sua completude, uma vez que o mesmo país que se alto
atribuía esses adjetivos, segregava os negros em suas forças armadas e japoneses em
campos de concentração após os ataques de Pearl Harbor.

É muito interessante de se verificar o contexto da Segunda Guerra Mundial nas HQs


do Capitão América, POIS o país que foi a guerra como a figura do Capitão em suas
histórias, cometeria atos anteriormente condenáveis. Seja a criação dos campos de
concentração dos sino-americanos ou dos ataques em Hiroshima e Nagasaki, servindo de
comparação com os campos de “concentração” de judeus na Alemanha e o ataque de Pearl
Harbor. Enquanto nas HQs só eram retratados os valores de uma nação livre, corajosa e
justa.

Na HQ Captain America 117 temos o marco da primeira aparição de um herói afro-


americano. É possível identificar nas efervescências das demandas dos negros por direitos
civis na década de 60 e 70. Como foi anteriormente mostrado, os negros viviam sob o
estigma do racismo e normatizados pelas Leis Jim Crow. Ao levar em conta os anos de
criação das Leis do Direito Civil e do Voto, a concepção dos heróis negros veio tarde, o que
suscitaria uma ideia de captação de grupos para uma lógica de mercado das HQs, se
aproveitando de um novo nicho por meio de sua representação.

Na HQ Captain America 261 os autores provocaram reflexões ainda mais delicadas


para a sociedade norte-americana da época. Relembrando o contexto do final dos anos 70
nos EUA, houve a primeira marcha LGBT em Washington (1979) e os debates sobre os
direitos civis da comunidade LGBT, os quais atravessaram toda década seguinte. É possível
apontar uma reviravolta na forma como as HQs começaram a abordar certos assuntos, pois
ao comparar com os períodos anteriores somente após algum marco legal que os autores
começaram a adentrar e representar novos grupos sociais e assuntos nas revistas, mesmo
que timidamente.

As decisões da Suprema Corte ao longo do tempo refletem o


avanço das causas LGBT e as mudanças de percepção da
sociedade sobre esses indivíduos. Ainda em 1986, os juízes
sustentavam a legalidade de leis que criminalizavam a sodomia.
Dez anos mais tarde, ao ser novamente provocada, a Suprema
Corte começou a derrubar leis que discriminavam homossexuais,
como leis anti-sodomia; reconheceu os direitos civis de casais
homossexuais legalmente casados em seus respectivos estados:
securidade social, benefícios a veteranos das Forças Armadas,
plano de saúde, aposentadoria; e, numa das conquistas mais
significativas, legalizou o casamento entre pessoas do mesmo
sexo a nível nacional. (MORRIS, Bonnie J. História: da
invisibilidade ao orgulho LGBT)9

O debate gerado pela HQ Civil War, apesar de um pouco atrasado já que o Ato
Patriota foi decretado em 2001, ocorreu somente nos anos de 2006 quando os autores foram
contratados e tiveram a possibilidade de criar toda a trama da HQ. Esse debate coloca em
contraposição duas Emendas da Constituição norte-americana (Primeira e a Quarta)10,
frente as possíveis arbitrariedades do Ato Patriota. Lembrando que a figura do Capitão
América, por conseguinte os EUA, sempre pregou a liberdade, seja ela coletiva ou
individual. Na HQ o registro dos heróis é tido pelo Capitão América como um atentado à
liberdade individual e de sigilo, guardados nas duas Emendas. Isso demonstra que os
valores norte-americanos, quando colocados em xeque podem ser relativizados ao extremo,
assim como foi feito pelo Ato Patriota no caso da HQ por meio da Lei de Registro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aparentemente o uso das HQs apenas para o entretenimento ficou no passado. As


HQs do Capitão América são um bom exemplo de como a mudança dos paradigmas da

9
Disponível em: https://declaracao1948.com.br/2018/04/12/historia-lgbt-eua/ Acesso: 22 de agosto de 2019.
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Primeira Emenda: Diz respeito a buscas e apreensões arbitrarias.
Quarta Emenda: Diz respeito a liberdades de expressão, religiosa, imprensa, associação pacífica, etc.
sociedade, seus debates, suas demandas, seus grupos, seus conflitos, nortearam a criação
das histórias contidas nas revistas.

As vendas são pautadas pelos temas em voga, seus processos e seus possíveis
desdobramentos. A possibilidade de representação e de falseamento da realidade é
intrínseco a natureza das HQs como mídias audiovisuais de massa. Pode-se fazer algumas
relativizações quanto a “fidedignidade” dessas representações, ou da literalidade dos
falseamentos. Fica muito claro que as HQs são fontes de disseminação de ideologia, mas
levando em conta o debate feito no início do artigo, o que não seria fonte de disseminação
de ideologia? Tudo é ideológico e as HQs não seriam diferentes.

Essa ideologia representa os mais diversos aspectos da sociedade, seja ela norte-
americana ou não. Compreendendo não ser possível negar a ideologia, do contrário não
existiria possibilidade de criação ou apropriação de pressupostos, salvo que as ideias são
por definição ideológicas. Permitindo que a representação use sua capacidade de trazer
elementos simbólicos da realidade para ser racionalizados, ou seja, a ideologia como
conjunto de ideias e valores que dão sentindo a realidade.

Conclui-se que ambos os conceitos de ideologia e representação tratam de assuntos


socialmente exigidos e debatidos. Esses conceitos são ferramentas que possibilitam uma
análise aproximada da realidade, suas falsificações, suas contradições, suas aspirações etc.
Ao usá-las sobre as HQs, foi possível demonstrar não só uma dinâmica mercadológica (que
não foi o foco), mas o pano de fundo por trás de suas criações, as disputas de diversos
grupos por direitos, a ação política e sua representação ufanista, até mesmo a discussão da
interpretação jurídica de direitos básicos.
REFERÊNCIAS

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria


Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editorial, 1988.

EAGLETON, Terry. Ideologia: Uma introdução; Trad. Silvana Vieira, Luís Carlos
Borges. - São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997.

MORRIS, Bonnie J. História: da invisibilidade ao orgulho LGBT. Disponível em:


https://declaracao1948.com.br/2018/04/12/historia-lgbt-eua Acesso: 22 de agosto de 2019.

PEIXOTO, Irapuan. Capitão América faz 70 anos. Disponível em:


https://hqrock.com.br/2011/03/22/capitao-america-faz-70-anos/ Acesso: 22 de agosto de
2019

RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias; Organização, tradução e apresentação de


Hilton Japiassu. Rio de Janeiro, F. Alves, 1990.

SANTOS, Dominique V. C. dos. Acerca do conceito de representação. Revista de Teoria da


História Ano 3, Número 6, dez/2011

SILVA, Cíntia Cristina da. Quem inventou as histórias em quadrinhos? Super Interessante.
Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quem-inventou-as-historias-em-
quadrinhos. Acesso: 22 de agosto de 2019.

VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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