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caráter; da tribo: superstições, paixões; da praça: as inter-relações humanas,

IDEOLOGIA principalmente através da linguagem; e os ídolos do teatro: a transmissão das


tradições e doutrinas dogmáticas e autoritárias, através do teatro, que seriam,
hoje, os meios de comunicação social.
Pedrinho A. Guareschi A crescente importância da ideologia deve-se hoje, certamente, ao fato de
nossa sociedade e nosso mundo tornarem-se, a cada dia, mais “imateriais”,
sempre mais sustentados numa comunicação verbal e simbólica.
A ideologia nem era mencionada, ao se falar em psicologia social, pelos A primeira coisa a que precisamos prestar atenção, ao querer penetrar nessa
autores que pretenderam tomar conta da psicologia social, transformando-a realidade da ideologia, é que existem hoje inúmeros enfoques teóricos, que dão
numa disciplina individualizante e experimental. Farr (1996) mostra muito bem ao conceito de ideologia diferentes significados e funções. Não é tarefa fácil
como a psicologia social americana, com pretensões de se tomar hegemônica, tratar esse assunto de maneira clara e inteligível. Vamos nos arriscar por esse
descartou totalmente a dimensão social e a dimensão crítica da psicologia terreno acidentado, minado, mostrando, quanto possível, as semelhanças,
social. Essa dimensão mais relacional permaneceu, tenuemente, nos escritos de diferenças, sobreposições e relações dos vários aspectos presentes, em geral,
George Herbert Mead, nos inícios do século. E a dimensão crítica surgiu a partir na realidade da ideologia.
da década de 1930, com os teóricos da Escola de Frankfurt, cuja escola se Para melhor esclarecer e compreender os muitos significados de ideologia,
chamou especificamente “Crítica da Ideologia” (Ideologiekritik) (GEUSS 1988, & vamos tentar traçar duas linhas divisórias, em forma de cruz, formando quatro
FREITAG, 1992). O conceito e a teoria da ideologia se fizeram mais presentes na planos, quatro quadrantes, e discutir, a partir daí, as diversas acepções de
psicologia social a partir da década de 1970, quando muitos autores, ideologia.
principalmente da Europa e América Latina, começaram a incorporar o tema em
seus estudos e pesquisa. Moscovici, por exemplo, chega a afirmar que “o objeto Primeira linha: horizontal – ideologia como algo positivo ou algo negativo.
central e exclusivo da Psicologia Social deve ser o estudo de tudo o que se refere à Vamos inicialmente traçar uma linha horizontal, onde faremos uma primeira
ideologia e à comunicação do ponto de vista de sua estrutura, sua gênese e sua distinção central, onde a ideologia vai ser localizada em dois grandes planos: a
função” (1972, p. 55). dimensão positiva e a dimensão negativa (Quadro 1):
Ideologia: domando um conceito amplo e complexo
Talvez não exista conceito mais complexo, escorregadio e sujeito a equívocos, Dimensão positiva
no campo das ciências sociais, do que o de ideologia. Embora o nome como tal –
“ideologia” – somente tenha aparecido há pouco mais de um século, sua
realidade já estava presente desde que se começou a pensar a vida social, com
diferentes nomes, mas querendo designar a mesma realidade. Dimensão negativa

Assim, por exemplo, a ideologia já era discutida nas culturas gregas e


romanas. Mas foi sobretudo a partir do século XV e XVI que estudos mais Ideologia no sentido positivo, ou neutro, é entendida como sendo uma
pertinentes começaram a ser feitos sobre o assunto, apesar de ainda não cosmovisão, isto é, um conjunto de valores, ideias, ideais, filosofias de uma
empregarem o nome. Machiavelli (in CRICK, 1970), ao discutir as práticas dos pessoa ou grupo. Nesse sentido, todas as pessoas, ou grupos sociais, possuem
príncipes, principalmente o uso da força e da fraude, para conseguir o poder, sua ideologia, pois é impossível alguém não ter suas ideias, ideais ou valores
refere-se a estratégias que não se diferenciam das usadas hoje pelos poderes próprios.
dominantes para se legitimarem. Já ideologia no sentido negativo, ou crítico (alguns falam até em sentido
Mas é principalmente Bacon (in PIEST, 1960) quem desenvolve um estudo “pejorativo”), seria constituída pelas ideias distorcidas, enganadoras,
extremamente próximo ao que hoje se costuma entender por ideologia, através mistificadoras; seriam as meias-mentiras, algo que ajuda a obscurecer a
de sua teoria sobre as quatro classes de ídolos, que nos dificultam chegar mais realidade e a enganar as pessoas. Ela se apresenta como algo abstrato ou
próximos da verdade. Esses ídolos são os da caverna: nossas idiossincrasias, impraticável; como algo ilusório ou errôneo, expressando interesses dominantes
e como que sustentando relações de dominação. dominante”. Isto é, as ideias da classe dominante, pelo simples fato de serem da
classe dominante, já seriam ideologia. A ideologia se concretiza nessas ideias.
Na faixa de cima, numa concepção positiva ou neutra, poderiam ser colocados
Outro exemplo desse tipo de ideologia é a acepção empregada por Althusser
autores como o próprio criador do termo, Destutt De Tracy (1803): ideologia é o
(1972), onde ele define ideologia como sendo “aparelhos ideológicos de estado”.
estudo das ideias, que por sua vez são uma emanação do cérebro; de Lenin
Esses aparelhos são as instituições que são criadas no desenrolar da história, e
(1969), e Lukács (1971), como as ideias de um grupo revolucionário; e a
que são frutos de tensões que se dão nas relações entre os homens, como por
formulação geral da concepção total de Mannheim (1954), que afirma que tudo o
exemplo a escola, a família, as igrejas, os meios de comunicação social, as
que nós pensamos é ideológico, pois é impossível não se deixar contaminar pela
entidades assistenciais, etc. Para Althusser a ideologia está materializada nessas
situação social em que alguém nasce e vive; em outras palavras, Mannheim
instituições, elas constituem a ideologia.
identifica aqui ideologia com conhecimento: como todo conhecimento é
condicionado, assim toda ideologia é condicionada. Mas nisso não há nada de Na sua dimensão dinâmica, porém, a ideologia é vista como uma determinada
errado. prática, um modo de agir, uma maneira de se criar, produzir ou manter
Entre as concepções crítico-negativas poderiam ser colocadas as três determinadas relações sociais. A função da ideologia seria também a produção,
concepções de Marx (cf. THOMPSON, 1995): ideias puras como autônomas e reprodução e transformação das experiências vitais, na construção de
eficazes, conforme defendiam os hegelianos, sem ligação com a realidade subjetividades. Therborn, ao definir ideologia, diz que “a operação da ideologia na
(1989); as ideias da classe dominante (1989); e um sistema de representações vida humana envolve, fundamentalmente, a constituição e a padronização de como
que serve para sustentar relações de dominação (1968). Também estaria aqui a os seres humanos vivem suas vidas como iniciadores conscientes e reflexivos de
concepção restrita de ideologia de Mannheim (1954), isto é, as ideias dominantes ações num universo de significados... Nesse sentido, ideologia constitui os seres
de um grupo sobre outro (dominação de classe). humanos como sujeitos” (1980, p. 2). E, logo após, ele afirma que estudar o
aspecto ideológico duma prática é “deter-se na maneira pela qual ela opera na
Segunda linha: vertical – ideologia como algo materializado, corporificado, ou formação e transformação da subjetividade humana”.
como prática.
Na tentativa de compreensão das diversas acepções de ideologia podemos Juntando as duas linhas
agora traçar uma segunda linha, agora vertical, onde distinguiremos outros dois
grandes conjuntos de ideologias: ideologias como sendo algo materializado, Até aqui analisamos dois eixos, onde sempre aparece uma dicotomia, com
onde a ideologia está corporificada na própria ideia, na forma simbólica, ou dimensões opostas de ideologia. Na junção dos dois eixos, formam-se quatro
mesmo concretizada numa instituição, como a escola ou a família; e ideologia amplos campos, que servem para visualizar, identificar e relacionar quatro
como modo e estratégia, onde a ideologia é vista como uma prática, uma grandes concepções de ideologia (Quadro 3):
maneira como as formas simbólicas servem para criar e manter as relações
sociais entre pessoas (Quadro 2):
1 2

Dimensão Dimensão
3 4
material dinâmica
Cada um desses campos possui, também, seus teóricos. Assim, no quadrante
1, há autores que definem ideologia no sentido positivo e como algo material. É
concreta prática o caso, por exemplo, de Mannheim (1954), para quem a ideologia é algo positivo
e concreto, como as cosmovisões das pessoas. Já no quadrante 2, temos
Essa dimensão material, concreta, é exemplificada pela concepção descrita ideologia como algo positivo, mas como uma prática: é a visão de Therborn
por Marx (1989), onde ideologia é definida como sendo “as ideias da classe (1980), e muitos outros, que veem a ideologia como uma maneira de se criar e
manter as relações sociais, sejam elas de que tipo forem. No quadrante 3
ideologia passa a ser algo negativo, mas algo concreto, como, por exemplo, “as uma, ou outra, dessas dimensões. Cada pesquisador tratará de fazer sua opção
ideias da classe dominante”, de Marx (1989). No caso de Althusser (1972), por uma delas, e nessa opção os critérios escolhidos serão os que, conforme o
ideologia abrangeria tanto o 1 como o 3, pois uma escola, por exemplo, autor em questão, possam ajudar a investigar e compreender mais claramente
materializa a ideologia, mas pode ser tanto positiva, como negativa. Finalmente, os fenômenos concretos e os que possam ser úteis aos propósitos de cada
no quadrante 4 teríamos ideologia como uma prática, mas não uma prática investigador. É o que pretendemos fazer a seguir. Arriscamos sugerir um modo
qualquer; deve ser uma prática que serve para criar, ou manter, relações que julgamos prático e eficaz no tratamento dessa realidade complexa e
assimétricas, desiguais, injustas. É essa exatamente a definição de John B. provocante, dentro de uma perspectiva histórico-crítica.
Thompson (1995), que, no nosso modo de ver, é o autor que melhor trata a
problemática da ideologia. Vamos nos deter especificamente nesse autor e Um modo prático de se tratar a ideologia
nesse quadrante, daqui para a frente.
Muitos talvez estejam se perguntando por que fazer todas essas distinções. Em anos bem recentes, principalmente a partir dos estudos de Thompson
Pois há muitas razões para isso. Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que o (1995), uma nova aproximação ao estudo da ideologia começou a ser
termo ideologia possui, como acabamos de ver, muitos sentidos diferentes. desenvolvido, como vimos, em parte, no item anterior. A grande diferença nesse
Toda vez que formos empregar tal conceito, devemos, pois, dizer qual o sentido estudo é que se começa a deixar de lado a preocupação com a verdade ou
que damos a esse termo. Isso é fundamental para podermos estabelecer uma falsidade de um conceito (p. ex. o entendimento da ideologia como as ideias da
comunicação honesta e correta. Ao mesmo tempo sempre que formos ler, ou classe dominante); ou a preocupação com a constituição específica de uma
escutar, alguém empregando esse termo, devemos ver de imediato qual o instituição que seja ideológica (p. ex. os “aparelhos ideológicos de estado” de
sentido que esse autor ou locutor está dando à palavra. Somente assim é Althusser); ou a preocupação com a concepção de uma ideologia reificada (p.
possível progredir no diálogo e na investigação. ex., ideologia como um “ismo”, por exemplo, socialismo, comunismo). Ideologia
assume a dimensão de uma prática, de um modo de operação, de uma
Em segundo lugar, podemos, a partir dessas distinções, vermos qual é o estratégia de ação.
melhor enfoque para podermos fazer uma boa pesquisa e podermos realizar um
trabalho que seja prático e útil à ciência e à sociedade. É nosso entendimento, A concepção e o emprego da ideologia dentro dessa perspectiva evita a difícil
por exemplo, que tomar ideologia no sentido negativo é bem mais interessante e ingente tarefa de se verificar, em cada caso, a validade ou falsidade dos
que simplesmente empregá-lo como sendo um conjunto de ideias. Ideias, conceitos já estabelecidos.
cosmovisões, todos nós temos, e não há como ser diferente. O importante, Essa concepção já pode ser visualizada em Marx, não de maneira clara, mas
porém, é saber se essas ideias são falsas, enganadoras, se elas podem trazer implícita, quando ele emprega ideologia como sendo um sistema de
prejuízos aos nossos colegas. representações que servem para sustentar relações existentes de dominação
Finalmente, é sempre mais honesto, diríamos, empregar ideologia como uma através da orientação das pessoas para o passado, ou para imagens ou ideias
prática, pois se a tomamos como materializada em alguma instituição, ou ideia, que desviam da busca de mudança social. Essa teria sido a legitimação do golpe
é arriscado, cremos, afirmar que ela é automaticamente negativa. O que vai de estado de Luís Napoleão Bonaparte (MARX, 1968). É uma concepção bem
mostrar se uma ideia, ou uma instituição, possui uma dimensão negativa é a distinta da que é apresentada na Ideologia alemã (1989), onde a ideologia é
maneira como é empregada, isto é, sua função, se ela serve, ou não, para criar tomada como sendo as “ideias da classe dominante”.
ou reproduzir relações que chamaremos, daqui para a frente, de relações de Essa nova concepção de ideologia afasta nossa atenção de ideias abstratas de
dominação. Nenhuma ideia, mesmo que seja da classe dominante, é, por doutrinas filosóficas e teóricas, concentrando, em vez disso, nossa atenção nas
definição, mistificadora ou falsa. Precisamos ver, caso a caso, se ela está maneiras como as formas simbólicas são usadas e transformadas em contextos
enganando ou não. Se ela de fato ilude e esconde a realidade, então diz-se que é sociais específicos. É uma concepção que nos obriga a examinar as maneiras
uma ideologia. Do mesmo modo com as instituições. Uma instituição, por si como as relações sociais são criadas e sustentadas por formas simbólicas que
mesma, como a escola, por exemplo, não se constitui numa ideologia negativa. circulam na vida social, aprisionando as pessoas e orientando-as para certas
Só é negativa quando se consegue mostrar que ela ajuda a criar, ou reproduzir, direções.
relações de dominação, assimétricas, desiguais. Apesar disso, contudo, é
De acordo com esse enfoque, “estudar a ideologia é estudar as maneiras como o
importante deixar claro que não há critérios intrínsecos que forcem a adoção de
sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação” (THOMPSON,
1995, p. 76). Assim, um fenômeno ideológico só é ideológico se ele serve, em convencional – a produção, construção, emprego e interpretação das formas
circunstâncias específicas, para estabelecer e sustentar relações de dominação. simbólicas são processos que envolvem a aplicação de regras ou convenções de
Isso quer dizer que os fenômenos não são ideológicos em si mesmos; não se vários tipos; a dimensão estrutural – as formas simbólicas são construções que
pode retirar o caráter ideológico dos próprios fenômenos como tais, mas exibem uma estrutura articulada; a dimensão referencial – são construções que
somente quando os situamos em contextos sócio-históricos onde eles passam a representam algo de modo específico, referem-se a algo, dizem algo sobre
estabelecer e sustentar relações de dominação. E a questão de se dizer se essas alguma coisa; finalmente, a mais importante, a dimensão contextual, isto é, as
relações estabelecem ou sustentam relações de dominação só pode ser formas simbólicas estão sempre inseridas em processos e contextos sócio-
respondida quando se examina a interação entre sentido e poder em hitóricos determinados, dentro dos quais e por meio dos quais elas são
circunstâncias particulares. produzidas, transmitidas e recebidas.
Analisamos a seguir algumas implicações derivadas dessa concepção:
c) O conceito de dominação
a) Ideologia como uma concepção crítica É importante e estratégico distinguir aqui dois conceitos: o conceito de poder e
o conceito de dominação. Essa distinção não é ainda muito comum nas ciências
Concepção crítica contrapõe-se aqui a concepção neutra. Concepção neutra é
sociais.
a que caracteriza fenômenos como ideológicos, sem implicar que esses
fenômenos sejam necessariamente enganadores, ilusórios ou ligados a Poder é definido aqui como sendo uma capacidade de produzir algo,
interesses de algum grupo particular. Ideologia seria um aspecto da vida social, capacidade essa específica de cada prática (GUARESCHI, 1992). Todo tipo de
entre outros. Pode servir para a revolução, restauração, reforma ou perpetuação prática envolve, assim, certa quantidade de poder. Além disso, toda pessoa
de qualquer ordem social. Exemplos de concepções neutras de ideologia seriam situada dentro de um contexto socialmente estruturado tem, em virtude de sua
concepções que veem ideologia como puro e simples estudo das ideias; a como localização, diferentes quantidades e diferentes graus de acesso a recursos
um conhecimento que é socialmente condicionado; ou mesmo a concepção de disponíveis. Isso significa que tal localização e as qualificações associadas a
ideologia como uma plataforma de análise e de luta do proletariado. essas posições, nas instituições e na sociedade, fornecem a esses indivíduos
diferentes graus de “poder”.
Já a concepção crítica possui um sentido negativo, ou até certo ponto
pejorativo. Implica que o fenômeno caraterizado como ideológico é enganador, Já a dominação é uma relação, e se dá quando determinada pessoa expropria
ilusório ou parcial e a própria caracterização do fenômeno como ideologia poder (capacidades) de outro, ou quando relações estabelecidas de poder são
carrega consigo a própria condenação desses fenômenos. sistematicamente assimétricas, fazendo com que determinados agentes, ou
grupos de agentes, não possam participar de determinados benefícios, sendo
b) Sentido e formas simbólicas assim injustamente deles privados, independentemente da base sobre a qual tal
exclusão é levada a efeito.
Vimos acima que, dentro de uma perspectiva crítica, estudar ideologia é a
maneira pela qual o sentido se serve para sustentar relações de dominação. O d) Modos e estratégias como o sentido pode servir para estabelecer e sustentar
“sentido” de que se fala aqui é o sentido das formas simbólicas. E por “formas relações de dominação
simbólicas” se entende o amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que
são produzidos por pessoas e reconhecidos por elas como contendo um Esse é, certamente, o ponto mais prático e útil para quem quer se arriscar
significado. Essas formas são principalmente as falas e expressões linguísticas, numa análise da ideologia. Quais os modos e estratégias empregados na criação
faladas ou não, mas podem ser também formas não linguísticas, ou quase- e manutenção das relações de dominação? Ou: como o sentido pode servir para
linguísticas, como uma imagem visual ou um construto que combine imagens e estabelecer e sustentar tais relações?
palavras.
Evidentemente, as maneiras são muitíssimas. Cada pesquisa vem contribuir
O caráter significativo das formas simbólicas pode ser analisado através de para que se descubram novas e diferentes maneiras. Melhor discutir isso
quatro dimensões específicas, que são: a dimensão intencional – as formas através de alguns exemplos:
simbólicas são expressões de um sujeito e para um sujeito; a dimensão
– Suponhamos um político pronunciando um discurso em que afirma que a construção simbólica associadas a cada modo geral. Remetemos a seu texto
competição em âmbito mundial e o processo de globalização são condições para a descrição e exemplificação tanto dos modos como das estratégias.
indispensáveis que vêm favorecer o progresso e o desenvolvimento de todas as
Esses mecanismos não são as únicas maneiras de operação da ideologia.
nações. Que está afirmado, ou suposto, aqui? Estamos diante de uma estratégia
Várias outras estratégias já foram identificadas em diversas pesquisas, que
ideológica que poderíamos chamar de universalização. Esses processos irão, de
poderiam se somar às descritas acima, tais como a rotulação ou estigmatização,
fato, favorecer, e são indispensáveis a todos os países, ou só a alguns? Na
onde se ligam determinados estereótipos a um sujeito ou instituição,
verdade, eles vêm favorecer apenas aos mais desenvolvidos, pois como mostrou
propiciando, com isso, que relações de dominação se criem ou se perpetuem; a
muito bem Nelson W. Sodré (1995) globalização é simplesmente um novo nome
sacralização, ou divinização, através das quais caraterísticas sobrenaturais são
para colonização. O que os países colonizadores faziam com os colonizados é o
referendadas a acontecimentos ou pessoas, criando-se com isso situações onde
que fazem hoje os países com mais tecnologia e recursos com respeito aos
relações assimétricas de poder são instituídas, com o prejuízo de diversas
menos desenvolvidos. Primeiro afirmam que a competição é o fator essencial a
pessoas ou grupos; e ainda outras possibilidades (GUARESCHI, 1996).
todo progresso e desenvolvimento. Depois a transportam a nível mundial. Nessa
competição globalizada os mais fracos saem, fica claro, fortemente Além do mais, esses modos e estratégias podem se sobrepor e se reforçar, ou
prejudicados. É o mesmo que dizer que um atleta que ao iniciar uma corrida está se legitimar mutuamente.
muitos metros à frente, e que possui muito mais recursos e preparo físico, tem
as mesmas chances de vencer que seu parceiro colocado atrás e com menos e) A valorização das formas simbólicas
recursos. Como não fica bem falar em colonização hoje, fala-se em globalização.
Há ainda um último ponto que merece ser assinalado, que se mostrou
– Ou vejamos a atitude de uma mãe solícita ao descobrir que sua filha está
extremamente útil na análise da ideologia. Como vimos, as formas simbólicas
namorando vários rapazes. A reação imediata é: “Minha filha, isso não é natural!
possuem diversas características. Elas têm um caráter intencional, convencional,
Isso nunca foi assim!” Mal sabe essa santa mãe que as tibetanas possuem
estrutural, referencial e contextual. O caráter contextual significa que elas estão
muitos maridos. E que os árabes possuem muitas mulheres. Que estratégia é
sempre inseridas num contexto sociocultural específico. São produzidas por
usada aqui? A estratégia da naturalização, ou da eternalização, que consiste em
sujeitos historicamente situados que possuem recursos e capacidades
tirar dos fenômenos seu caráter histórico, relativo e transformá-los em eternos,
específicas. Ao mesmo tempo, elas são recebidas por sujeitos que estão
imutáveis, naturais.
inseridos em contextos sócio-históricos particulares. Esses fatos fazem com que
– Ou senão escutemos a fala daquela empregada que ao ser perguntada por as formas simbólicas carreguem consigo diferentes particularidades a partir
que há pessoas ricas, responde absolutamente convicta: “Rico é quem poupa!” desses sujeitos. São essas especificidades que Bourdieu (1977) discute ao
Que se esconde por detrás dessa fala? Uma enorme legitimação e justificação analisar os diferentes campos de interação. E a esses recursos e capacidades
de uma situação desigual e muitas vezes injusta. Na verdade grande número de Bourdieu chama de “capital”; e um desses tipos é o capital simbólico.
pessoas ricas assim o são, em geral, por explorarem o trabalho dos outros.
Em tais circunstâncias, as formas simbólicas podem ser valorizadas de
Quando digo, por isso, que rico é quem poupa, estou mistificando a realidade,
diferentes maneiras. Quando se conectam as posições que determinada pessoa
propiciando uma explicação distorcida do fenômeno, legitimando a riqueza de
ocupa dentro de certo campo de interação a diversos processos de valorização
uns, por um lado, e explicando por que alguns (no caso, a empregada) são
simbólica, podemos identificar diferentes graus de “poder” que passam a ser
pobres, por outro lado. Eles explicam a si mesmos que são pobres porque não
atribuídos a diferentes atores. “Poder” é entendido aqui como a capacidade de
pouparam, quando, na grande maioria das vezes, são pobres porque foram
agir para conseguir diferentes objetivos: poder de fazer algo, ou de agir de
explorados. E mais: quando, por acaso, sobrarem alguns tostões, eles irão
determinada maneira. Ao agir, a pessoa emprega recursos disponíveis (capital).
correndo colocá-los na “poupança”, propiciando, indiretamente, mais lucros
Ora, o fato de uma pessoa ocupar determinada posição, num campo de
ainda aos que fazem uso dessa poupança para empregá-la em investimentos
interação (como nas instituições, por exemplo), “possibilita”, “capacita” a essa
muito mais lucrativos.
pessoa a conseguir determinados fins, realizar seus objetivos, tomar tais
Os exemplos poderiam assim ser multiplicados. Thompson (1995) enumera decisões. E, pelo fato de possuir graus diferentes de “poder”, relaciona-se
cinco modos gerais de operação da ideologia (legitimação, dissimulação, diferentemente com os outros. Surgem assim, dessas interações, diferentes
unificação, fragmentação, reificação), junto com inúmeras estratégias típicas de “relações”, que, ao se constituírem como sistematicamente assimétricas
(desiguais), transformam-se em relações de dominação. Retornamos, então, ao plural, eticamente solidária.
campo da ideologia, entendida como maneira de criar e manter relações de
dominação. A “dominação” dentro de tais situações é uma dominação mais Leituras complementares
estável, que não depende de circunstâncias que podem ser facilmente mudadas
e transformadas, mas que por se situarem em instituições (e até mesmo na Em estudo abrangente, bastante completo e crítico do conceito e da teoria da
estrutura social) possuem caraterísticas mais estáveis e cristalizadas. ideologia pode ser encontrado no livro de John B. Thompson, Ideologia e cultura
Surgem daqui outros tipos de estratégias típicas de valorização simbólica, que moderna, Petrópolis: Vozes, 1995. Além do histórico do conceito, ele mostra os
podem servir, dependendo das circunstâncias, para criar ou manter relações de diversos sentidos em que ideologia foi tomada e sugere maneiras de se poder
dominação, isto é, prestam-se a ser recurso ideológico dentro da definição por analisá-la. Um outro livro do mesmo autor, Studies in the Theory of Ideology,
ele defendida. Londres, Polity Press, 1984, traz também excelente material para compreender e
criticar a ideologia.
Exemplificando, pode-se dizer que uma pessoa, ao ocupar uma posição
dominante dentro de um campo de interação, pode apelar a estratégias de O livro de Marilena Chauí, O que é Ideologia, São Paulo: Brasiliense, 1983, é
valorização simbólica como a de “distinção” (o uso de vestimentas que também um ótimo tratado introdutório e mais simples para quem quiser se
materializam situações de prestígio, como o uso de gravata etc.), de familiarizar com o que seja ideologia.
menosprezo, de condescendência, e assim por diante. Tais estratégias permitem
às pessoas que estão em posição dominante reafirmar sua dominação, sem Bibliografia
necessitar de demonstrações mais claras e específicas.
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. Lisboa: Presença, 1972.
Já quem está numa posição intermediária pode empregar estratégias de
moderação (valorização dos bens à sua disposição), pretensão (fingindo ser o BOURDIEU, P. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University
que de fato não é e buscando assemelhar-se aos de cima) ou desvalorização Press, 1977.
(depreciando as produções dos dominantes).
CRICK, B. (ed.). Machiavelli. Discourses. Nova Iorque: Penguin, 1970.
E quem ocupa uma posição subordinada pode empregar estratégias de
praticidade (em vez de buscar requintes, dá valor a coisas práticas e baratas), de DE TRACY, D. Éléments d’Idéologie. Vol. 1. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin,
resignação respeitosa (aceita sua posição como inevitável), ou de rejeição (não 1803 [reimpresso em 1970].
aceita e ridiculariza o que é produzido pelos dominantes, rotulando muitas vezes
tais produções como “intelectuais” ou “efeminadas”). FARR, R. The roots of modern social psychology: 1872-1954. Oxford: Blackwell, 1996.

Conclusão FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1992.

Tentamos mostrar, de um lado, como o conceito de ideologia é complexo e GEUSS, R. Teoria crítica: Habermas e a Escola de Frankfurt. São Paulo: Papirus,
multifacetado, tomado em acepções bem diversas; de outro lado, 1988.
argumentamos que, quando tomado no sentido negativo e crítico, e como uma
prática, isto é, como o uso de formas simbólicas para criar ou manter relações GUARESCHI, P. A ideologia: um terreno minado. Psicologia Social & Sociedade.
de dominação, ele se presta para fazer com que os estudos e pesquisas se 8(2): p. 82-94; jul./dez., 1996.
tornem mais úteis e frutíferos, é realmente o que torna os estudos e pesquisas
______. Sociologia da prática social. Petrópolis: Vozes, 1992.
frutíferos. Mais que identificar cosmovisões gerais de pessoas ou grupos, o que
na verdade cremos ser importante e necessário é revelar como as pessoas LENIN, Vladimir I. The state and revolution. In: Selected works. Londres: Lawrence
sofrem e são prejudicadas, na sua vida cotidiana, devido a relações que são and Wishart, 1969.
estabelecidas de maneira desigual e injusta. Com isso nosso trabalho poderá
contribuir, de maneira iluminadora e emancipatória, na construção de uma LUKÁCS, G. History and class consciousness: studies in marxist dialectics. Londres:
sociedade economicamente justa, politicamente democrática, culturalmente

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