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Análise Psicológica (2000), 4 (XVIII): 529-543

Tecnologia e individualismo: Um estudo


de uma das relações contemporâneas
entre ideologia e personalidade

JOSÉ LEON CROCHÍK (*)

A relação entre a constituição do indivíduo e a estabelece para o indivíduo uma forma de esca-
cultura, representada pela ideologia religiosa, par da neurose individual através da neurose co-
moral e política, é discutida pela psicologia des- letiva. Assim, o pai da psicanálise denunciava a
de o início deste século. Freud (1943), através da cultura, de um lado, por gerar, ainda que não di-
reflexão sobre a sua experiência clínica e sobre a retamente, a neurose individual, ao exigir que os
cultura, já indicava que a formação das neuroses indivíduos renunciem à sua felicidade e, de outro
associa-se com a repressão sexual e propunha lado, por oferecer, no lugar dessa felicidade, uma
para a educação a transmissão de conhecimentos ilusão coletiva.
sobre a sexualidade humana e a discussão sobre Reich (1981), estabelecendo relações entre o
a moral vigente. Ao final da década de 20, Freud marxismo e a psicanálise, trabalhou em sentido
(1986) defende a tese de que a base individual de próximo. Segundo esse autor, à repressão políti-
sustentação do ideário religioso são as necessida- co-econômica junta-se a repressão sexual, de tal
des psíquicas, sobretudo a de um pai protetor, de forma que não basta a consciência das contradi-
tal sorte que se a religião insiste já nos primeiros ções sociais para que a crítica social possa esta-
anos de vida dos indivíduos nos seus preceitos, belecer-se no nível individual. Em outras pala-
vras, consciência psíquica e consciência social
não coincidem, ainda que se relacionem.
Na década de 40, nos Estados Unidos da
(*) Docente do Instituto de Psicologia da Universi- América, é desenvolvido o estudo sobre a perso-
dade de São Paulo; do Programa de Pós-Graduação nalidade autoritária, que é um prosseguimento
em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Cató- dos estudos sobre autoritarismo e família do
lica de São Paulo, do Programa de Pós-Graduação em
Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Instituto de Pesquisa Social, fundado na Alema-
Universidade Católica de São Paulo. Pesquisador do nha, tendo na sua condução, entre outros, Theo-
Conselho do Desenvolvimento Nacional de Pesquisa e dor W. Adorno, um imigrante desse instituto.
Tecnologia (CNPq). Esse estudo mostrou haver relações significantes
Endereço profissional: Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, Av. Prof. Mello Moraes,
entre configurações psíquicas e adesão a diver-
1721, Caixa Postal 66.261, CEP 05508-900 – São sos tipos de ideologia: indivíduos não autoritá-
Paulo – SP – Brasil. rios tenderam a defender a ideologia liberal, tal

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como definida na época, e indivíduos autoritá- subjacente às ideologias examinadas: a conser-
rios, a ideologia conservadora. Como as correla- vadora e a liberal. Ela se apresenta em ambas.
ções entre as escalas que mediam essas duas va- Foi descrita também por Marcuse (1981 e 1982)
riáveis, ainda que positivas e significantes, ti- e por Habermas (1983). A distinção entre a
nham magnitudes medianas, os autores indica- ideologia da racionalidade tecnológica e essas
ram a existência de outros dois tipos de persona- outras reside no mascaramento que impõe a
lidade: o falso liberal – que defenderia o ideário qualquer propósito político presente no desen-
liberal não pela sua racionalidade, mas por moti- volvimento social, possibilitado pela aplicação
vação pessoal contrária à liberdade dos outros – da tecnologia. Dessa maneira, quer a perspectiva
e o conservador genuíno – que sustentaria o que apoie uma sociedade mais justa, quer aquela
ideário conservador pela sua racionalidade, não que insiste em manter a atual estrutura social não
apresentando características autoritárias. refletem sobre a não neutralidade da tecnologia.
O estudo de Adorno et al. (1950) gerou nas A idéia de progresso passa a ser inquestionável,
décadas seguintes muitos outros trabalhos, mas não importando que esse progresso não esteja
que, segundo Carone (S/D) e Vagostello (1997), voltado predominantemente para interesses uni-
não se atinham, em boa parte, à sua hipótese versais. O progresso e a tecnologia tornam-se
central, derivada não só da psicanálise, mas fins em si mesmos.
também da teoria da sociedade, e, sim, ao em- Como na ideologia da racionalidade tecnoló-
prego das escalas e às críticas à análise dos re- gica apresenta-se a naturalização do mundo hu-
sultados encontrados por esses autores. Algumas mano, as outras ideologias, mediadas por ela,
pesquisas recentes (Vala et al., 1999; Pettigrew, têm os seus fins também naturalizados. A pers-
1999) mostraram que as variáveis estudadas pe- pectiva que vê a história determinada unica-
lo grupo de Berkeley continuam sendo determi- mente pela estrutura social e não também pelo
nantes como preditores do racismo. Como a ideo- que a nega, que se converte em dogmática, e a
A ideologia e a logia, segundo Horkheimer e Adorno (1978), e a perspectiva que não considera a história impor-
constituição da constituição da personalidade, conforme Adorno tante para balizar os valores, que se nutre do re-
personalidade
mudam ao (1991), são variáveis que mudam ao longo do lativismo, auxiliam, segundo Horkheimer
longo do tempo tempo, e não obstante a atualidade do estudo so- (1976), a perpetuar, na consciência humana, a
bre a personalidade autoritária, há que se supor, petrificação do indivíduo e da sociedade. Ambos
nos nossos dias, a relação entre outro tipo de – indivíduo e sociedade –, para a ideologia da
ideologia e outro tipo de configuração psíquica. racionalidade tecnológica, só são passíveis de
Dentro de uma perspectiva histórica, contudo, aperfeiçoamento técnico, mas não de alterações
as diferenças sociais e psíquicas, entre a nossa substanciais, o que caracteriza, segundo Adorno
época e a do estudo da personalidade autoritária, (1995a), a consciência reificada, resultante da
não implicam novas configurações social e psí- introjeção individual dessa ideologia.
quica, mas o desenvolvimento das que esses Essa ideologia não é independente do movi-
autores analisaram e criticaram, pois a sociedade mento do esclarecimento, discutido por Horkhei-
se autonomiza cada vez mais em relação aos mer e Adorno (1985), antes é produto desse mo-
seus membros e o indivíduo vive uma regressão vimento. Significa a vitória, talvez temporária,
psíquica maior. Essa afirmação encontra a sua da razão autoconservadora sobre a emancipató-
base na leitura de Lasch (1983), e, de certa for- ria, ou melhor, a distinção entre elas com o pre-
ma, já fora sublinhada por Horkheimer e Adorno domínio da primeira. Se a autoconservação é ne-
(1985), no prefácio à segunda edição de seu livro cessária para a manutenção do indivíduo e da
Dialética do Esclarecimento, em 1969. Assim, sociedade, quando ela se esgota em si mesma,
pressupomos que a ideologia substituta das ideo- retira a possibilidade de uma vida que não se cal-
logias liberal e conservadora e a configuração que em sacrifícios. Assim, os frankfurtianos re-
psíquica substituta da personalidade autoritária tomam o princípio freudiano de que a civilização
deveriam estar, em germe, presentes naquela se funda na renúncia dos desejos pulsionais, e,
pesquisa. tal como Freud, denunciaram que o sacrifício
Um tipo de ideologia, o da racionalidade exigido não foi compensado pela possibilidade
tecnológica, é apontada naquele estudo, embora de uma vida digna e feliz.

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Se, no século passado, era possível pensar a ção do qual se movimenta a dialética so-
contradição entre relações de produção e forças cial.» (p. 70)
produtivas, na defesa da tese que o avanço des-
As forças produtivas, entre elas a tecnologia,
sas últimas transformaria as relações de produ-
reproduzem as relações de produção também
ção, neste século, tornou-se visível que esse
servindo como um ‘véu tecnológico’, na expres-
avanço reproduz as contradições sociais, quase
são de Horkheimer e Adorno (1978). Reduzindo
que se fundindo às relações de produção, tornan-
a percepção do mundo através da expansão de
do-as invisíveis. A pergunta se atualmente existe
sua racionalidade, a visão tecnológica tende,
o capitalismo tardio ou a sociedade industrial é
nas diversas esferas da vida em que se apresenta,
respondida por Adorno (1986), que diz que a
a dotar essas esferas daquela racionalidade. Co-
atual sociedade não é menos capitalista que
mo o saber técnico utiliza procedimentos opera-
aquela examinada por Marx no século passado,
cionais na resolução de tarefas, tudo deve ser
ou seja, as classes sociais mantêm o seu antago-
alvo da operacionalização. A política, a educa-
nismo interno, contudo, a produção industrial, ção, a comunicação, a sexualidade, a família, o
que dá um ar de semelhança a tudo, não é menos trabalho, são entendidos através de uma única di-
notável: mensão: a da realidade existente e não através da
«...a atual sociedade é, de acordo com o história de sua constituição.
estádio de suas forças produtivas, plena- A ideologia da racionalidade tecnológica, po-
mente, uma sociedade industrial. Por toda rém, é mais do que um conjunto de idéias, cren- Signf. IRT
parte e para além de todas as fronteiras ças e valores, mas já se configura, segundo Mar-
dos sistemas políticos, o trabalho indus- cuse (1982), como uma tendência a analisar to-
trial tornou-se o modelo de sociedade. dos os fenômenos através da razão instrumental,
Evolui para uma totalidade, porque mo- ou razão subjetiva, não se atendo às suas especi-
Escolas adotam tais dos de procedimento que se assemelham ficidades; o predomínio é a lógica do sujeito e
procedimentos
semelhantes ao modo industrial necessariamente se não a do objeto, o que significa que a realidade
ao modo industrial.
Procedimentos expandem, por exigência econômica, tam- não é entendida em seus próprios termos, mas
de gestão, controle,
bém para setores da produção material, nos do sujeito (ver Horkheimer, 1976; Adorno,
mensuração, eficiência,
eficácia, produtividade,
para a administração, para a esfera da 1995b). Na sua pretensa neutralidade não se dá
custo-benefício. Se busca
uma racionalidade para a
distribuição e para aquela que se denomi- conta da ‘natureza não conquistada’ que a acom-
produção. Uma formação
para atender à sociedade na cultura. Por outro lado, a sociedade é panha: a necessidade da dominação sobre a natu-
industrial.
capitalismo em suas relações de produ- reza, sobre o outro e sobre si mesmo.
A racionalidade tecnológica, não obstante,
ção» (pp. 67-68).
não é só ideologia, e, segundo Marcuse (1982) e
Apesar das diferenças em relação ao século Habermas (1983), auxilia a consolidar a base do
passado, continua-se a viver em uma sociedade progresso atrelado à emancipação. A crítica ro-
capitalista: mântica a ela lhe serve de complemento, pois se
nela se apresenta a compulsão a classificar e ana-
«Através de remendos e medidas particu- lisar todos os fenômenos pelo mesmo método, Apositivista
análise do mundo pela ciência
anula a experiência do
lares, as relações de produção, apenas particular, ditando o que é o
valorizando o universal em detrimento do parti- objeto, inibindo a experiência.
para a sua autoconservação, continuaram cular, a ideologia romântica faz o contrário, cri- Constrói a partir do olhar
subjetivo a realidade.
a submeter a si as forças produtivas dei- tica o universal e, assim, o próprio pensamento.
Como experimentar a realidade
xadas à solta. Característica marcante Enquanto uma anula a experiência, algo próprio despido dos valores morais,
culturais que ela trás? Apenas
de nossa época é a preponderância das da «premonição» dos preconceituosos, a outra podendo ter contato com a crítica
relações de produção sobre as forças pro- anula a reflexão, que é a ação necessária para aexperimentar
esses valores e em seguida
/por em prática
dutivas, que, porém, há muito desdenham que o indivíduo possa se diferenciar; se a ideo- esses novos valores.
as relações. Que o braço estendido da hu- logia romântica tem um ímpeto libertador, enca-
manidade alcance planetas distantes e minha-se no sentido contrário.
vazios, mas que ela, em seu próprio pla- Se a ideologia básica se alterou, a configura-
neta, não seja capaz de fundar uma paz ção básica de personalidade que lhe dá susten-
duradoura, manifesta o absurdo na dire- tação individual também deve ter se alterado, e é

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Aquele que se sente
Estamos mais narcisistas inadequado em qualquer
grupo, se sente não
pertencido, é pq criou um
hipótese deste trabalho que se calca em caracte- superego. No caso da melancolia, o ideal de ego ideal de eu (ego) que não é
ele, esse eu idealizado, seria
rísticas narcisistas, mais fortemente do que no assumiria o lugar do ego, e esse seria convertido aquele que chama a atenção
passado. Essas características estão presentes no objeto, o que seria propício para explicar o que é reverenciado,
admirado, que tem todas as
no tipo manipulador, descrito por Adorno et al. sentimento de inadequação presente no narcisis- suas necessidades saciadas.

(1950) no estudo sobre a personalidade autori- mo, conforme discutiremos a seguir.


tária, e em outros de seus textos (1991 e 1995a). Um problema presente na discussão sobre o
Dizem respeito, conforme Adorno (1991), à ten- narcisismo aparece nos estudos psicométricos
dência regressiva à qual alguns indivíduos se en- sobre escalas construídas para mensurá-lo: a
Marcuse já havia
denunciado que o
caminham para poder sobreviver. O narcisista, distinção de alguns fatores do narcisismo rela-
indivíduo autonomo contrariando o ideal de indivíduo autônomo, de- cionados ao desajustamento individual de outros
proposto pelo
liberalismo morreu nas fendido pelo liberalismo, deixa de ser dono de fatores associados ao ajustamento. Watson e Bi-
mãos do próprio
liberalismo econômico, seu destino, embora à sua consciência lhe pareça derman (1993) apresentam alguns dados: «Cor-
quando teve que se
submeter a fazer
o contrário: relations with numerous measures including de-
coisas que não pression have led to the conclusion that Autho-
gostaria para «La configuración de la energía pulsional
sobreviver. A conseq. rity, Self-Sufficiency, Superiority, and Vanity
do liberalismo foi a en que se apoya el yo – según el tipo ana-
retenção de riqueza are less maladjusted, whereas Entitlement, Ex-
nas mãos de poucos lítico freudiano – quando llega a dar el
obrigando os outros a ploitativeness, and Exhibitionism are more
se submeterem a
paso hasta el sumo sacrificio, el de la
pathological» (p. 44). Esses fatores pertencem ao
trabalhar para eles. conciencia misma, es el narcisismo. Apun-
Narcissistic Personality Inventory (NPI), cons-
tan a él con una fuerza probatoria incon-
truído por Raskin e Hall (1979), que afirmam,
trovertible todos los hallazgos de la Psi-
assim como Mullins e Kopelman (1988), calca-
cología social referentes a las regresiones
dos em Freud, que há um contínuo entre norma-
predominantes en la actualidad, en las
lidade e anormalidade.
que el yo se niega y al mismo tiempo se
Uma outra questão associada a essa é discu-
endurece de una forma irracional y fal-
tida por Mullins e Kopelman (1988) que, ao fa-
sa.» (1991, pp. 183-184)
zerem uma análise de correlações e uma análise
Em seu texto Tipos Libidinais (1974b), Freud fatorial considerando quatro escalas sobre o nar-
apresenta as seguintes caracteristícas do narci- cisismo, entre elas a citada acima – NPI –, veri-
sista: 1- Não apresenta tensão entre o ego e o su- ficaram que essa escala não se correlaciona com
perego, obstando o surgimento do sentimento de as outras três, o que é confirmado por terem en-
culpa; 2- Tende a assumir a posição de líder; 3- contrado o primeiro fator composto unicamente
O seu interesse principal é o da autoconservação, por itens dela. Outro dos fatores, avaliado pelas
não apresentando preponderância de necessida- outras três escalas, intitulado de «Sentimento de
des eróticas; 4- Apresenta independência, não inadequação, infelicidade e preocupação», não
submetendo-se à intimidação; possui grande se encontrava na definição dada ao narcisismo
quantidade de agressividade à sua disposição e pela American Psychiatric Association, em
gosta de impressionar os outros como «persona- 1980, e nem entre os fatores do NPI. Assim, na
lidade». A retirada de seu interesse, relacionado área dos estudos psicométricos do narcisismo, a
à libido, do mundo, voltando-o para o próprio tendência é se considerar que, embora univer-
eu, impede-o de estabelecer relações amorosas sais, os fatores subjacentes ao narcisismo podem
com outras pessoas. estar mais ou menos presentes nos indivíduos, e
Dos três agentes psíquicos, segundo Freud que alguns desses fatores associam-se ao mau
(1974b), o ego teria maior relêvo nesse quadro. ajustamento, mas ainda parece não haver acordo
Descreveu dois outros tipos psicológicos, além sobre quais seriam os fatores que compõem esse
do narcisista: em um deles os desejos do id são fenômeno.
predominantes, em outro, há a predominância do Como para Freud, o narcisismo é delimitado
superego. O tipo ideal, segundo o pai da psicaná- pelo movimento da libido, o que o caracterizaria
lise, seria uma combinação desses três tipos. As- é a predominância do ego como objeto de amor
sim, poderíamos caracterizar o narcisista pela em relação aos demais objetos. Dessa forma,
predominância do ego que se submeteria como quer as características de engrandecimento do
objeto de desejo ao id e não sofreria sanções do eu, quer as de sentimentos de inadequação se-

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riam universais, mas para delimitarem o narci- próprio destino, que por sua vez pode ser com-
sismo, devem ser interpretadas à luz daquele mo- pensado pelas defesas narcisistas. Essas visariam
vimento. Assim, a predominância dessas caracte- responder à sensação de incapacidade de os ho-
rísticas poderia delimitar uma personalidade co- mens poderem modificar a sociedade que lhes
mo narcisista ou não. Mais do que isso, seria a gera sofrimento, ao exigir a renúncia pulsional
combinação desses elementos com outros da di- sem oferecer nenhuma compensação para a feli-
nâmica psíquica que poderia configurar esse cidade individual.
quadro. Se o progresso, permeado pelo desenvolvi-
Diversas características do narcisista arroladas mento da tecnologia, não tem se voltado para in-
por Raskin e Terry (1988) – orientação defensi- teresses universais, mas aos interesses do capital,
va, considerar-se privilegiado, onipotência, into- as exigências para a autoconservação individual
lerância à crítica, entre outras – são comuns a al- continuam a estar presentes, obrigando ainda a
guns dos tipos de personalidade autoritária, des- renúncias individuais, quando seria de se esperar
critos por Adorno et al. (1950); além disso, deve- que à medida que a tecnologia avançasse a vida
se acentuar a relação que Adorno (1991) estabe- se tornasse mais fácil, exigisse menos sacrifícios.
lece entre o narcisismo, como qualquer outra Frente a essas exigências e ao sofrimento por
configuração psíquica, com as necessidades so- elas acarretado, o indivíduo tenderia a se voltar,
ciais. Nesse sentido, o trabalho de Lasch (1983) cada vez mais, para si, tentando mitigar o seu
evidencia, com detalhes, a relação entre a socie- sentimento de impotência. Assim, um dos objeti-
dade consumista, especular, e o tipo narcisista. vos desta pesquisa é o de verificar empiricamen-
Falta a essa caracterização, contudo, a distinção te se há relação significante entre a adesão à
feita por Green (1988) entre narcisismo de vida e ideologia da racionalidade tecnológica e caracte-
narcisismo de morte; o primeiro refere-se à rísticas narcisistas de personalidade, tendo como
constituição do eu, o último, à busca da ausência pressuposto que essa relação seja o aprofunda-
de tensão, na sua terminologia, a busca do neu- mento da obtida por Adorno et al. (1950), em
tro: «O Neutro ergue-se então de toda sua altura, seu estudo sobre a personalidade autoritária, en-
desafiando o pensamento. Tudo se complica tre a adesão à ideologia política-econômica con-
quando temos que tomar consciência de que o servadora e tendências fascistas de personalida-
Neutro é também a realidade indiferente à agita- de, avaliadas pela escala F.
ção das paixões humanas.» (pp. 26-27). O sen- Se esse pressuposto for verdadeiro, aliado ao
tido do Neutro contrapõe-se à busca do Um, do progresso obtido no tempo que separa esta pes-
eu idêntico. Neste, aparece o desejo do eu; no quisa da realizada por Adorno et al. (1950) –
Neutro, o desejo do nada, da ausência de vida. quase meio século –, foram geradas também
A busca, no narcisismo, de um estado inde- regressões aos níveis social e psíquico. A socie-
pendente das paixões, sublinhado por Green dade, permeada pela ideologia da racionalidade
(1988), e anteriormente enfatizado por Freud tecnológica, que oculta o aprisionamento das
(1986), parece se associar com a neutralidade su- forças produtivas às relações de produção exis-
posta pela ideologia da racionalidade tecnológi- tentes, exige cada vez mais sacrifícios indivi-
ca. Dessa forma, esse tipo de pensamento, que duais, quando seria de se esperar o contrário, ou
tenta iludir o sofrimento e as contradições da seja, que pudesse haver mais tempo livre para
realidade, pode contemplar o desejo narcisista de viver a vida como um fim em si mesmo, como
se julgar independente do mundo, e assim do defende Marcuse (1981), e não dedicada a um
sofrimento que esse provoca. Isso sugere que o trabalho sem sentido para o indivíduo. O narci-
fenômeno do narcisismo não pode ser examina- sismo, por sua vez, é uma configuração psíquica
do somente pela perspectiva psicanalítica e nem mais regredida do que a do sadomasoquista - que
tampouco prescindir dela. segundo Rouanet (1989) corresponde ao pseudo-
O aperfeiçoamento técnico, cada vez maior, conservador avaliado pela escala F – pela tenta-
da sociedade industrial e a sua crescente autono- tiva de romper com as relações objetais. Se essa
mização em relação aos interesses individuais dupla regressão ocorreu, deve-se esperar rela-
têm gerado o sentimento de impotência indivi- ções entre, de um lado, as características sado-
dual frente à possibilidade de ser dono de seu masoquistas, avaliadas pela escala F e, de outro,

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a adesão à ideologia da racionalidade tecnológi- kert: a escala da ideologia da racionalidade
ca e as características narcisistas de personalida- tecnológica (escala I) e a escala de característi-
de, e que essas relações sejam de menor magni- cas narcisistas de personalidade (escala N); cada
tude que a existente entre a adesão à ideologia da item tem seis alternativas de resposta – discor-
racionalidade tecnológica e as características dância total (1 ponto), discordância moderada (2
narcisistas de personalidade, pois temos como pontos), leve discordância (3 pontos), leve con-
hipótese que essas últimas têm substituído aque- cordância (5 pontos), concordância moderada (6
las estudadas por Adorno et al. (1950). Verificar pontos) e concordância total (7 pontos); quanto
essas relações constitui-se em outro objetivo maior for a pontuação, maior, respectivamente, a
desta pesquisa. adesão à ideologia da racionalidade tecnológica
Como se pressupõe que as variáveis – ideo- e maior o número de características narcisistas
logia da racionalidade tecnológica e narcisismo – de personalidade. Inicialmente a escala da ideo-
tenham, cada uma, diversos fatores, um terceiro logia da racionalidade tecnológica tinha 46 itens
objetivo deste estudo é o de analisar cada uma e a escala de características narcisistas de perso-
delas quanto à sua estrutura fatorial. nalidade, 42 itens. Após serem aplicadas aos su-
jeitos, selecionamos 20 itens de cada uma delas
que melhor seguiram os seguintes critérios: 1-
1. MÉTODO média entre 2,0 e 6,0 pontos; 2- desvio padrão
superior a um ponto; 3- correlações significan-
tes, ao nível de 0,01, entre o item e o escore total
1.1. Sujeitos da escala. Todos os itens escolhidos para este es-
tudo seguiram esses critérios, além disso, mos-
Os sujeitos desta pesquisa são primeiro-anis- traram ter estabilidade temporal, verificada em
tas de cursos da Universidade de São Paulo. Fo- duas aplicações feitas a 49 sujeitos, no intervalo
ram feitas duas coletas de dados dos alunos do de três semanas, nas quais os itens escolhidos
curso de enfermagem, uma em 1996 e outra em para a presente pesquisa obtiveram correlações
1997, obtendo-se respectivamente amostras de significantes, ao nível de 0,01, entre os escores
39 e 43 sujeitos. Outras duas amostras foram ob- obtidos nessas duas aplicações. Para as escalas,
tidas, em 1997, no curso de Psicologia – 62 su- com o número de itens original, obtivemos os se-
jeitos – e no curso de Fonoaudiologia – 18 su- guintes resultados relativos à estabilidade tem-
jeitos. Ao todo, fizeram parte da pesquisa 162 poral: escala I: 0.90; escala N: 0,94. No que se
sujeitos. A idade média dos sujeitos foi a de 21 refere às medidas de coerência interna, avaliadas
anos, com desvio padrão de 2 anos. Com exce- pelo Alpha de Cronbach, os resultados foram:
ção da amostra da psicologia, que continha su- escala I: 0,92; e escala N: 0,91.
jeitos de ambos os sexos (20 sujeitos do sexo O conceito de ideologia da racionalidade
masculino e 42 sujeitos do sexo feminino), as tecnológica e a elaboração dos itens da escala
demais eram compostas unicamente de sujeitos que avaliou a adesão a essa ideologia tiveram co-
do sexo feminino. Nessa amostra, não houve di- mo base os textos de Adorno (1972, 1991, 1995a
ferenças significantes entre os dois sexos em e 1995c), Horkheimer e Adorno (1985), Marcuse
relação aos escores obtidos nas duas escalas (1981 e 1982) e Habermas (1983). Já o conceito
construídas (que serão descritas mais à frente): de narcisismo baseou-se em alguns trabalhos dos
escala da ideologia da racionalidade tecnológica frankfurtianos (Adorno, 1969, 1991; Marcuse,
(t = 0,51, 60 g. l. e p <0,01) e escala de caracte- 1981 e 1982), em alguns textos de Freud (1974a,
rísticas narcisistas de personalidade (t= 0,95, 60 1974b, 1986), nos textos de Lasch (1983), de
g. l. e p< 0,01), razão pela qual foi possível ana- Green (1988) e de Costa (1984).
lisá-los conjuntamente. A ideologia da racionalidade tecnológica traz
como paradigma a razão subjetiva ou instrumen-
1.2. Material e Procedimento tal, tal como a define Horkheimer (1976), e se
expressa na ciência positivista e na técnica, que
Para verificar os objetivos desta pesquisa, fo- desde o século passado, segundo Marx (1984),
ram construídas duas escalas com itens tipo Li- já contribuíam para a substituição de mão-de-

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obra viva pelas máquinas. O que rege essa ideo- Para o cumprimento dos objetivos desta pes-
logia é a lógica formal ou lógica da identidade, quisa utilizamos também a escala F. Foi aplicada
que abstrai de diversos particulares os seus ele- à amostra da psicologia (62 sujeitos) e a uma das
mentos comuns em busca da classificação, orde- amostras da enfermagem (43 sujeitos). Os dados
nação, quantificação etc. A ausência das contra- de precisão e validade sobre a Escala F são
dições e a tendência a sistematizar os fatos são apresentados no estudo sobre a personalidade au-
características dessa ideologia. A realidade tal toritária. Pesquisas das últimas décadas (Rofé &
como pode ser captada é tida como o referente Weller, 1981; Stankov, 1977) têm utilizado essa
último, sem se perguntar pela sua gênese e po- escala, ampliando a sua validade.
tencialidades de transformação; ela é naturaliza- Adotamos a última configuração da Escala F
da e eternizada; disso resulta um hiper-realismo (forma 40/45) formulada e testada por seus auto- Posso dizer q a escla I
foi pouco adaptada
que se alia com a busca pragmática dos resul- res. Ela foi traduzida para o português, mas não pois todos os seus
tados, e a percepção imediata passa a se destacar precisou ser adaptada, pois quase todos os seus itens continuam a
fazer sentido, só se
da realidade como a sua verdade. A ênfase na itens fazem sentido para a nossa cultura. O item adaptou a linguagem
competência e, portanto, na solução dos proble- 22 ‘It is best to use some prewar authorities in e os exemplos para o
mas imediatos, passa a ser a tônica para a adap- Germany to keep order and prevent chaos’ não publico específico

tação ao mundo atual. Assim, os problemas po- foi utilizado por requerer conhecimento histórico
líticos tornam-se problemas administrativos; os que lhe dê sentido. Assim, a escala compôs-se de
problemas sexuais disfunções que apontam para 28 itens.
falhas do desempenho individual; as questões
educacionais tornam-se falhas do sistema de en-
sino ou do aprendiz; os problemas econômicos 2. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
convertem-se em falhas do sistema; os proble-
mas familiares são reduzidos à psicologia; os va- Para se conhecer a estrutura fatorial das esca-
lores se conformam à realidade estabelecida, las utilizou-se a análise fatorial em compontentes
não são refletidos, a não ser pelo grau de adapta- principais, com rotação Varimax. O número de
ção que permitem; o lazer e o trabalho devem ser fatores extraído seguiu o critério da magnitude
organizados tendo em vista a perpetuação do dos ‘eigenvalues’, que foram sempre maiores do
existente. que 1,0. A carga fatorial foi considerada signifi-
Para a construção da escala de características cante de acordo com o tamanho da amostra
narcisistas da personalidade, elaborada em con- (Hair et al., 1995, p. 385), no caso, igual ou
Pq o msm n foi junto com Maria de Fátima Severiano, os itens maior do que 0,45. As matrizes iniciais das aná-
feito com a E-I? foram apresentados na primeira pessoa do lises fatoriais foram compostas pelos coeficien-
singular, para que os sujeitos pudessem se po- tes de correlação de Pearson. Para se saber a re-
sicionar mais diretamente frente a eles. Algumas lação entre os escores das escalas, empregou-se
questões apresentam a idéia do tempo; se o nar- também o coeficiente de correlação de Pearson.
cisismo tende a abolir a noção do tempo, o pre- A análise e discussão dos resultados serão ex-
sente deve ser mais valorizado do que o passado postas na seguinte ordem: análise fatorial da es-
e o futuro; de forma similar, a morte deve ser ne- cala I; análise fatorial da escala N; e análise das
gada, assim como a velhice ou tudo aquilo que correlações entre as escalas.
possa implicar mudança. Outras questões apre-
sentam a valorização do corpo saudável, a afir- 2.1. Análise Fatorial da Escala da Ideologia
mação da aparência, posto que para o narcisista a da Racionalidade Tecnológica (Escala I)
apreciação dos outros é importante. Outras di-
zem respeito aos seguintes temas: relaciona- A análise fatorial dos 20 itens dessa escala
mentos superficiais; o consumo desenfreado, (KMO=0.74 e Teste de esfericidade de Bart-
que indica uma tentativa de resposta ao senti- lett=423,28, p<0,001) resultou em cinco fatores
mento de vazio interior; a necessidade de mode- que congregaram 14 itens, pois um deles foi re-
los, ensejada pela ausência de um eu bem esta- tirado pela medida de adequação da amostra,
belecido; e sentimentos de inadequação e insatis- quatro por terem baixa comunalidade e um por
fação. ser o único a representar o que seria o sexto fa-

535
TABELA 1
Média, desvio padrão, correlação entre o fator e a escala I, alpha de Cronbach e porcentagem
da variância explicada dos fatores da escala I

Fator Média Desvio Correlação Alpha % Variância

Pragmatismo 3.64 1.50 .79** .70 24.0


Normalização 3.58 1.60 .69** .53 10.5
Sistematização 5.09 1.44 .56** .39 7.9
Aparência 3.62 1.35 .64** .43 7.4
Moralismo 4.45 1.71 .58** .41 6.9
Escala I 3.95 1.01 – .76 56.7

**p<0.01

tor. Estabelecidos os escores para cada um dos menor correlação entre um item e o escore da
cinco fatores, através da soma dos escores obti- escala, composta pelos fatores, foi 0,37 e a
dos nos itens que obtiveram carga fatorial satis- maior 0,61, sendo que todos as correlações item-
fatória de acordo com o tamanho da amostra teste foram significantes ao nível de 0,01.
(igual ou maior a 0,45), aplicamos outra análise A seguir descreveremos cada um dos fatores Não explica o
procedimento do
fatorial que resultou em um único fator, do que obtidos, considerando o conteúdo que expres- pq nomeou
deduzimos que todos eles avaliam uma mesma sam; a análise será feita tendo em vista o signifi- assim os 5
medida: a ideologia da racionalidade tecnoló- cado da concordância dos sujeitos com os itens, fatores e como
compôs as
gica. deixando implícito o significado da discordância. perguntas. Onde
A Tabela 1 apresenta em relação a cada fator Todos os itens tiveram carga fatorial significante tá isso?
obtido: a média, o desvio padrão, a correlação em um único fator.
com o escore obtido na escala composta por es- O primeiro fator foi denominado de ‘pragma- Pq foi denominado
ses fatores (14 itens), o alpha de Cronbach e a tismo’ e é constituído pelos seguintes itens, com pragmatismo? Na
porcentagem da variância total. a respectiva carga fatorial, explicitada entre pa- escla F tem
Pragmatismo?
Lembrando-se que o escore varia de um a sete rêntesis: ‘Com os recursos científicos e tecnoló- Tem
pontos e que quanto maior o escore maior a ade- gicos de hoje somos mais livres que antigamen- Convencionalismo
são à ideologia da racionalidade tecnológica, po- te.’ (0,84); ‘Com os recursos científicos e tecno- e não foi exposto,
pq?
de-se verificar pela Tabela 1 que o escore total lógicos de hoje somos mais felizes que antiga-
foi próximo ao ponto médio da escala, e que o mente.’ (0,71); ‘A realização profissional deve
fator denominado ‘sistematização’ foi o que apre- ser avaliada, principalmente, pela produtivida-
sentou maior escore seguido pelo de ‘moralis- de.’ (0,59); e ‘Se a pena de morte diminuir a cri-
mo’, os outros três ficaram com médias abaixo minalidade, ela deve ser aprovada’ (0,49). O pro-
do ponto médio da escala. As correlações entre gresso, representado pela ciência e pela técnica,
os escores fatoriais e a escala foram todas signi- não parece ser questionado em relação aos cus-
ficantes ao nível de 0,01. O alpha de Cronbach tos sociais e à desigualdade social, ou seja, não
obtido pelos fatores ‘sistematização’, ‘aparência’ se considera que o progresso das relações sociais
e ‘moralismo’ estão abaixo do que seria desejá- não acompanhou, como deveria, o progresso
vel. O total de variância explicada foi de 56,7%. técnico e científico, tal como discutimos na in-
Ainda que não apresentados na tabela, deve-se trodução deste trabalho, à luz do pensamento de
ressaltar que, entre os 14 itens examinados, a Adorno. A desvalorização da satisfação pessoal
menor média obtida foi 2,86 e a maior 5,68; o e da determinação social sobre o comportamento
menor desvio padrão foi 1,75 e o maior 2,07; a individual, presente nos dois outros itens, parece

536
confirmar a idéia de que o progresso de meio se está em questão é a eliminação daquele que de-
converteu em fim e a de que é o resultado que linqüiu, ou seja, não se conformou às normas.
importa, independente dos sacrifícios necessá- Enfim é pensado o funcionamento normal, usual,
rios para alcançá-lo. Na realização profissional, das pessoas, mas não as dificuldades individuais
a satisfação gerada pela própria atividade e por de adaptação a uma sociedade contraditória. O
anseios pessoais é desvalorizada frente à produ- que as leva a agir de maneira ‘anormal’ parece
ção, além do que parece não importar o que se não estar em questão, ou não são perceptíveis à
está produzindo, lembrando o operário que consciência.
constrói o trem que levará as vítimas para Aus- O terceiro fator, composto de dois itens, foi
chwitz, sem se importar com isso, mas apenas denominado ‘sistematização’: ‘O político deve
com a tarefa bem realizada (ver Adorno, 1995a). ter boa formação escolar para representar nossos
No último item, o pragmatismo se evidencia; não ideais culturais.’ (0,79); e ‘A violência atual de-
importam as injustiças que possam ser feitas corre, principalmente, do fato da impunidade ser
através da pena de morte, mas a sua eficácia. Em muito grande.’ (0,57). A sociedade atual parece
suma, o progresso, o trabalho, o combate à vio- ser concebida como a melhor possível, mas pas-
lência devem ser avaliados, principalmente, por sível de aprimoração, tal como apregoava o
seus resultados, não importando se acarretam, ou ideário liberal. Ela é entendida como um siste-
Gostaria de
não, mais desenvolvimento e justiça sociais e as ma, o que permite atribuir a especificação e ver a
conseqüências sobre os indivíduos. Claro que a funcionamento de cada uma de suas partes e uma justificativa da
concordância com os dois primeiros itens pode- visão imediatista. Se cada parte do sistema social escolha de
cada fator
ria ter outros significados, mas analisada em deve funcionar adequadamente, o político deve
conjunto com os dois últimos itens levou-nos a ser preparado pela escola, atrelando a ele a idéia
pensar que é a produtividade associada à reso- da competência, sendo que a idéia de represen-
lução de problemas imediatos que está em ques- tante de interesses de setores sociais aos quais se
tão. vincula parece ser menos importante; a violência
O segundo fator, nomeado de ‘normalização’, é falha da instituição policial e da justiça e não
constitui-se de três itens: ‘Seria importante que o parece ser devida a problemas sociais. A impuni-
homossexual tivesse um acompanhamento psico- dade é percebida como causa e não como efeito
lógico para poder rever a sua escolha sexual.’ que retroage sobre a causa. A sistematização pa-
(0,69); ‘Um filho de pais separados terá mais rece associada com a normalização, presente no
problemas emocionais, que um filho que tem fator anterior, ainda que a correlação obtida entre
pais que vivem juntos.’ (0,68); e ‘Os lincha- eles seja a de 0,20, significante a 0,01, mas de
mentos devem ser entendidos, principalmente, baixa magnitude. Pode-se diferenciar os dois fa-
pelo descrédito da polícia e da justiça.’ (0,61). O tores, argumentando-se que o referente à norma-
conteúdo de seus itens, sobretudo o dos dois pri- lização dá ênfase ao que seria necessário para
meiros, parece estar associado com uma visão evitar os desajustes individuais e o da sistemati-
normal de diversos fenômenos. Assim, o homos- zação, às falhas institucionais. Deve-se lembrar
sexualismo é um problema de desvio psicológi- também que o terceiro fator teve um alpha de
co, a família tradicional permitiria melhores Cronbach baixo.
condições para o desenvolvimento emocional do O quarto fator – ‘aparência’ – é composto dos
indivíduo e a justiça imediata – presente nos lin- seguintes itens: ‘As telenovelas são boas quando
chamentos – seria devida a falhas de instituições apresentam personagens que são facilmente
sociais, sem alusão às características individuais identificáveis no cotidiano.’ (0,71); ‘Seria um
presentes na nossa sociedade de massas, que per- ato de benevolência se a nossa cultura pensasse
mitem a satisfação de desejos regredidos como a meios de execução indolor para os criminosos’
crueldade por exemplo, e sem pensar que as (0,61); e ‘Os pais devem mostrar carinho pelos
falhas da justiça e da polícia são próprias de uma filhos, mesmo que não seja espontâneo.’ (0,55).
sociedade contraditória; quase que se poderia A dificuldade de pensar além do visível, o falso
afirmar que a concordância com esse último humanismo, que não pensa na injustiça da pena
item seria uma defesa do linchamento, se assim de morte, e a concordância com a falsa demons-
for, menos do que falhas das instituições o que tração de afeto parecem corresponder a uma

537
atitude de preservação do existente, sem nenhu- com elas não se identifiquem, segundo Adorno
humanismo
x
ma visualização de alteração social possível, (1991).
capitalismo tendo um cariz de humanismo, humanismo esse
que, segundo Marx (1978), é contraditório à es- 2.2. Análise fatorial da escala de caracterís-
trutura do capitalismo. Se o mundo existente é ticas narcisistas de personalidade (Esca-
considerado inevitável, cabe, ao que parece, dar- la N)
lhe uma melhor aparência. É uma atitude pró-
xima ao cinismo. Da análise fatorial dos 20 itens da escala de
O último fator é composto por dois itens e foi características narcisistas de personalidade
Aqui trouxe o nomeado de ‘moralismo’. Os itens que o compõe (KMO=0.77 e Teste de esfericidade de Bart-
moralismo
relacionado à são: ‘O adultério mostra a imaturidade do adúl- lett=662,23; p<0.001), foram obtidos seis fato-
sexualidade.
Por certo, tb poderia tero.’ (0,75); e ‘As prostitutas deveriam ter aten- res. Dois itens foram eliminados por terem bai-
dar outros exemplos xas comunalidades, um por não apresentar carga
tb relacionados à dimento psicológico e reeducação para terem
sexualidade, mas tb,
poderia estar ligado a melhor encaminhamento na vida.’ (0,63). As fatorial considerada adequada em nenhum fator e
não sexualidade.
‘escolhas’ sexuais são pensadas à luz da imatu- um outro por ser o único a representar o que se-
Dúvida: pq relacionou
a isso? ridade, mas, nesse caso, diferentemente do fator ria o sétimo fator. O terceiro item do fator 2 teve
Será que eu em normalização, parecem mais associadas às falhas carga fatorial significante também no fator 1
primeira instância eu (0,46), ainda que menor do que a obtida no fator
não deveria fazer morais do que psicológicas. O fato de o item so-
uma pesquisa com os
bre a homossexualidade, formulado de maneira 2 (0,57); optamos por preservá-lo e interpretá-lo
jovens para entender
o que está em pauta
semelhante ao das prostitutas, não pertencer a somente nesse último fator. Os seis fatores obti-
em seu universo para
utilizar exemplos do
esse fator, levou a pensar que está mais associa- dos foram submetidos a outra análise fatorial,
seu contexto? Não
resultando em um único fator de segunda ordem,
deveria emergir por do à percepção de problemas de desenvolvi-
uma ou mais que supomos ser referente às características nar-
semanas na escola mento individual do que de julgamento moral.
para descobrir o que cisistas da personalidade.
está em pauta no seu Isto é, os problemas referentes ao homossexua-
dia a dia? Ou aplicar A Tabela 2 apresenta em relação a cada fator
uma pesquisa prévia lismo parecem ser entendidos, principalmente,
para descobrir tais obtido: a média, o desvio padrão, a correlação
temas que os como de ordem emocional, afetiva, e os de in-
circundam? E aí usar com o escore obtido na escala composta por es-
fidelidade e prostituição, como de ordem moral.
esses temas para a s ses fatores (16 itens), o alpha de Cronbach e a
minhas perguntas. Um e outro, não obstante, não consideram as de-
porcentagem da variância total.
Ex. Poderia perguntar terminações sociais sobre os comportamentos in- Como pode se verificar pelos dados da Tabela
se acham que o
Neymar deveria ser dividuais. 2, o escore médio da escala esteve abaixo do
punido no futebol
caso seja provado Em síntese, os cinco fatores da escala da ponto médio (4 pontos). A pontuação mais baixa
que não pagou
imposto ou acham ideologia da racionalidade tecnológica caracteri- foi obtida nos fatores nomeados de ‘ausência de
que não tem nada a
ver, ou se não se
zam-na pelo pragmatismo, pela normalização projetos’ e no de ‘inadequação’. Todas as corre-
deve misturar futebol
com política - neste
dos comportamentos individuais, pela crítica às lações entre os fatores e o escore total da escala
sentido, tô falhas sistemáticas das instituições, pela aparên- N foram significantes ao nível de 0,01. Os alphas
considerando que o
futebol está no cia e pelo moralismo. Todos fazem abstração de Cronbach obtidos são, em geral, razoáveis
contexto deles
quer das contradições sociais, quer dos conflitos tendo em vista o número de itens de cada fator.
e necessidades individuais. Os fatores aparência A porcentagem de variância explicada pelos seis
e pragmatismo evocam a adaptação imediata à fatores é de 59,1%. Ainda que não apresentados
sociedade existente, sem críticas, ou seja, na tabela, deve-se ressaltar que para esses 16
Então, a RT está
composta evoca a
implicam o conformismo; os fatores sistemati- itens a menor média foi 2,30 e a maior 4,60; o
adaptação imediata
s/ críticas e
zação, normalização e moralismo apontam para menor desvio padrão foi 1,50 e o maior 2,25; e
conformismo. Assim, falhas nas instituições e nos indivíduos, ou seja, que as correlações entre cada item e o escore
poderia-se chamar
um fator de à má adaptação desses. Segundo essa visão, ao composto pela soma dos itens variaram entre
Conformismo
que parece, se as instituições fossem aperfeiçoa- 0,33 e 0,61, sendo todas significantes ao nível de
das e os indivíduos bem formados por elas, os 0,01. A seguir analisaremos o conteúdo de cada
problemas individuais e sociais seriam corrigi- um dos fatores da escala N.
Conflitos e
desajustes
dos; não há a crítica às contradições sociais e O primeiro fator, denominado de ‘prestígio’, é
individuais são nem a compreensão que os conflitos, os desajus- composto de três itens: ‘Para alcançar prestígio e
derivados das
contradições sociais tes, individuais são derivados delas, ainda que sucesso social trato de minha aparência física de

538
TABELA 2
Média, desvio padrão, correlação entre o fator e a escala N, alpha de Cronbach e porcentagem
da variância explicada dos fatores da escala N

Fator Média Desvio Correlação Alpha % Variância

Prestígio 3.40 1.32 .69** .57 22.8


Imagem 3.91 1.51 .69** .57 10.0
Autopreservação 3.68 1.52 .71** .58 7.2
Individualismo 4.07 1.38 .66** .49 7.0
Inadequação 3.27 1.68 .48** .52 6.5
Ausência de Projetos 2.86 1.59 .47** .50 5.6
Escala N 3.59 0.93 – .79 59.1

**p<0.01

acordo com a última moda.’ (0,75); ‘Sinto-me pulsões agressivas e a relacionada à fase oral de
bem na companhia de pessoas influentes.’ incorporação sem limites dos objetos de desejo.
(0,68); e ‘Não suporto receber críticas.’ (0,49). O Ao mesmo tempo, o conteúdo desses itens pare-
conteúdo dos três itens parece indicar a neces- ce indicar a manutenção de uma imagem de
sidade de ser valorizado pelos outros. As idéias pessoa forte que não corresponde necessaria-
de uma sociedade hierárquica e de não poder co- mente ao que se é; além disso, parece revelar
meter falhas parecem também estar presentes. também a dificuldade de reflexão tanto em rela-
Procura-se seguir as normas e os valores estabe- ção a si mesmo quanto aos outros, o que levaria
lecidos, o que configura um certo conformismo; à submissão ao mundo existente. Tal como o
contudo, o receio de ser avaliado pode indicar outro fator, implicaria certa fragilidade egóica.
uma certa fragilidade do eu que não parece ter O terceiro fator foi denominado de ‘autopre-
condições de avaliar a crítica alheia, o que abri- servação’ e é representado pelos seguintes itens:
garia também, possivelmente, a fragilidade da ‘Geralmente, sinto-me frustrado(a) por não con-
auto-reflexão. O conteúdo desse fator parece seguir o controle de minha forma física.’ (0,75);
estar associado com o que foi denominado de ‘Considero prioritário cuidar bem do meu corpo
‘authority’, no Narcissistic Personality Inventory através de exercícios físicos.’ (0,70); e ‘Pensar
(ver Raskin & Terry, 1988). que um dia envelhecerei me causa pavor.’ (0,49).
O fator seguinte – ‘imagem’ – contém os se- São itens relacionados ao controle do corpo e à
guintes itens: ‘Tenho dificuldades em expressar tentativa de preservar-se jovem e saudável. Tal
sentimentos que envolvam meus conflitos e so- como Lasch (1983) acentua, com base em Kern-
frimentos.’ (0,73); ‘Tenho uma admiração incon- berg, para o narcisista, o tempo deve ser evitado
dicional pelos meus superiores.’ (0,66); e ‘Sinto- e a idéia de manutenção de um corpo bonito e
me verdadeiramente livre quando posso gastar saudável parece colaborar com isso. Em suas pa-
comprando as coisas que desejo.’ (0,57). Os lavras: «Em uma sociedade que tem horror à ve-
itens parecem indicar a necessidade de manuten- lhice e à morte, o envelhecimento implica um
ção de uma ordem hierárquica sem conflitos e a terror especial para os que temem a dependência
possibilidade de o indivíduo receber do mundo o e cuja auto-estima requer a admiração geralmen-
que deseja através do consumo. Parecem se unir, te reservada à juventude, à beleza, à celebridade
nesse fator, a necessidade ligada à fase anal, des- ou ao encanto pessoal» (p. 66). Menos que ao fa-
crita por Freud (1973), de preservar o mundo das tor vaidade, presente no NPI, o apego ao corpo

539
parece estar associado ao desespero relacionado A presença do desejo de ‘aprisionar’ o tempo e
a ter de depender dos outros e não poder ser mais de auto-suficiência – presentes em outros fatores
admirado pela beleza e jovialidade. descritos – talvez se unam neste.
O quarto fator – ‘individualismo’ – é compos- Em síntese, o narcisismo avaliado por essa es-
to dos seguintes itens: ‘Considero-me, geral- cala se expressa pela necessidade de prestígio, de
mente, auto-suficiente.’ (0,81); ‘Busco incansa- autopreservação, pela superficialidade da vida
velmente o sucesso.’ (0,59); e ‘Considero que al- (avaliada pelos fatores ‘imagem’ e ‘ausência de
guns produtos evidenciam mais a minha perso- projetos’), pelo individualismo, e, ao mesmo
nalidade.’ (0,48). Os itens parecem apontar a tempo, pela sensação de inadequação. As feridas
idéia de independência e força pessoal, a neces- narcísicas descritas por Freud (1959) e enfatiza-
sidade de se destacar dos outros, não necessaria- das por Costa (1984) seriam compensadas pela
mente por características próprias, mas pelo que tentativa de se obter prestígio. O sofrimento seria
é valorizado socialmente – o sucesso. Tal como iludido pela tentativa de auto-suficiência, contro-
no fator anterior, a idéia de negar a dependência le do tempo e do corpo e pela superficialidade
dos outros e poder se bastar a si mesmo – a inde- das relações com os outros e consigo próprio.
pendência do sofrimento provocado pelo mundo, Mas essas tentativas não evitariam o sentimento
segundo Freud (1986) – parece estar presente, de inadequação.
mas enquanto aquele se referia ao tempo, esse se Poder-se-ia pensar que os fatores das duas es-
refere à força pessoal. Esse fator tem conteúdo calas fossem dependentes entre si, ou seja, que
similar ao denominado de ‘auto-suficiência’ no avaliassem a mesma variável. Para termos dados
NPI. Parece, contudo, indicar também o desejo para responder a essa questão, fizemos uma aná-
de ser único, que descreve Green (1988), e, as- lise fatorial em componentes principais com ro-
sim, além da auto-suficiência, tem-se o indivi- tação Varimax, envolvendo os fatores das duas
dualismo. escalas, delimitando a extração a dois fatores. Os
O penúltimo fator – ‘inadequação’ – apresenta fatores da escala I agruparam-se no fator 1 e os
dois itens: ‘É difícil eu encontrar satisfação.’ da escala N, no fator 2, com exceção do sexto
(0,85); e ‘Freqüentemente sinto-me estranha- fator dessa última, que não obteve carga fatorial
mente inadequado como se não pertencesse a acima de 0,45 em nenhum dos dois fatores.
lugar ou grupo algum.’ (0,61). O conteúdo des- Dessa forma, com alguma segurança, podemos
ses itens parece significar um sentimento de es- afirmar que as duas escalas mensuram variáveis
tranhamento, de não estar nunca bem. Parece distintas.
ilustrar o narcisismo de morte descrito por Green
(1988), mas também as queixas do melancólico 2.3. Análise das Correlações entre as escalas
que, segundo Freud (1974a), lamenta-se constan- I, N e F
temente pela perda de um objeto que não sabe
muito bem qual é. Lembra igualmente a sensa- Não apresentaremos, devido aos limites desta
ção de vazio, explicitada por Lasch (1983). Pare- exposição, as correlações obtidas entre os fatores
ce se associar com o fator de ‘sentimento de in- das escalas I e N, descritos anteriormente, mas
felicidade, inadequação e ansiedade’, descrito destacamos que todos os fatores de cada uma das
por Mullins e Kopelman (1988). escalas correlacionaram-se significantemente
O último fator – ‘ausência de projetos’ – é (p<0.01) com o total da outra escala, com exce-
composto dos seguintes itens: ‘Não nutro espe- ção do fator ‘moralismo’ da escala I e o fator
ranças de um tempo melhor no futuro. O pre- ‘inadequação’, da escala N; além disso, obtive-
sente é o que realmente importa.’ (0,79); e ‘Pre- mos correlações significantes, ao nível de 0.01,
firo me relacionar bem com várias pessoas do entre os escores de todos os fatores da escala I e
que ter um relacionamento emocional profundo da escala N com o escore da Escala F. A média
com alguém.’ (0,73). O conteúdo de seus itens dos escores dos sujeitos na escala F foi de 3,34,
parece se associar com uma certa superficialida- e o desvio padrão 0,92.
de de relações e falta de projeto de vida, ou seja, O coeficiente de correlação de Pearson encon-
a dificuldade de se relacionar profundamente trado entre os escores dos sujeitos nas escalas I e
com alguém e com o próprio desenvolvimento. N foi igual a 0,47, significante ao nível de 0,01,

540
Posso dizer
na minha
pesquisa q o que indica que quanto maior a adesão à ideolo- econômico, desenvolvida por Adorno et al. Se verifico que há gde
embora não adesão a IRT posso dizer
tenha se gia da racionalidade tecnológica, maior o núme- (1950), contudo, a correlação obtida parece in- que há gde potencial
aplicado a ro de características narcisistas de personalidade dicar que, se estamos nas últimas décadas estu- antidemocrático por ela
E-N, cf mesmo? E gde potencial
demonsrado e vice-versa. Quanto mais o indivíduo percebe o dando bastante o narcisismo, precisaríamos aten-
autoritário? Ou devo
por Leon, mundo como um sistema criado e mantido pela tar mais para o sadomasoquismo, ou autoritaris- justificar este, explicando
qto > a
adesão na
intervenção da técnica mais apresenta caracterís- mo, avaliado pela escala F e, segundo os dados que cf Leon verifica-se
correlação entre a escala
E-I > é na ticas narcisistas de personalidade, que revelam, desta pesquisa, para a sua relação com a ideolo- IRT e a escala F.
E-N. entre outros significados, a necessidade de se gia da racionalidade tecnológica. Como a corre-
tornar independente dos sofrimentos existentes. lação entre a escala I e a escala F foi maior do
Já o coeficiente de correlação de Pearson que a encontrada por Adorno et al. (1950) entre
obtido entre os escores dos sujeitos na escala da essa escala e a do conservadorismo político-eco-
ideologia da racionalidade tecnológica e na nômico, podemos pressupor que a ideologia da
escala F foi igual a 0,62, significante ao nível de racionalidade tecnológica se associa mais com
0,01, evidenciando que quanto maior é a adesão tendências psíquicas regredidas do que a ideo-
à ideologia da racionalidade tecnológica, maior é logia política conservadora. Mais do que isso,
Por isso, caberia tb a
a tendência ao autoritarismo e vice-versa. Assim, caberia pensar se ela não envolve aspectos que aplicação de uma escala
não só os aspectos narcisistas de personalidade seriam comuns às ideologias políticas de direita de ideologia política.
estariam associados à ideologia da racionalidade e de esquerda, conforme postulamos no início
tecnológica, mas também os do sadomasoquis- deste trabalho, e por isso seria mais associada à
mo. Por trás da aparência da neutralidade da tendência fascista de personalidade do que aque-
técnica podem estar presentes desejos de destrui- las ideologias políticas. Em síntese, o apreço ir-
ção; a tecnologia permitiria a sua expressão e refletido pela tecnologia se vincula mais ao sa-
manifestação, o que pode ser entendido como domasoquismo do que ao narcisismo, ainda que
uma forma sutil de violência, disfarçada até também se associe a esse último, esse apreço pa-
mesmo para o sujeito que a pratica. rece também estar mais relacionado com o que
Os escores dos sujeitos na escala F e na esca- mede a escala F, do que com a ideologia política
la de características narcisistas de personalidade conservadora. Certamente, são necessários novos
também se correlacionaram significantemente estudos para confirmar ou não os resultados
A E-F mede o
autoritarismo, entre si, ao nível de 0,01; o coeficiente de corre- obtidos nesta pesquisa.
o
sadomasoquismo lação de Pearson obtido foi igual a 0,54. Isso
ou a tendência ao indica que quanto maior o número de traços nar-
fascismo?
cisistas, maior a tendência ao sadomasoquismo e 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
vice-versa. O alheamento do mundo, presente no
narcisista, tal como a neutralidade da técnica, A forma de socialização contemporânea me-
Se irei utilizar a E-I é
não seria, necessariamente, desvinculado de im- diada pela formação predominantemente técnica, incorreto eu modificar os
pulsos sadomasoquistas. Deve-se lembrar que a defendida pela necessidade de profissionais fatores. Tenho que
explicar que isso foi
descrição do tipo manipulador feita por Adorno competentes para a solução de problemas ime- validado por X pesquisas
et al. (1950) associa essa configuração autoritá- diatos, parece corresponder, em parte, à necessi- feitas pelo Leon e, por
isso, vou adotar, mas, em
ria com o narcisismo e que o NPI, desenvolvido dade de vazão de desejos narcisistas e sadoma- razão do público ser
por Raskin e Hall (1979), traz entre os seus fa- soquistas. O pragmatismo, o hiper-realismo, a vi- diferente e estarmos em
tores um que avalia a manipulação e exploração são normalizadora e naturalizadora de todas as uma outra época com
outros acontecimentos,
dos outros. esferas de vida parecem nos afastar, de um lado, cabe algumas
Como a magnitude da correlação entre a esca- da percepção das contradições sociais, de outro modificações.
la I e a escala N foi menor do que as encontradas lado, da percepção dos conflitos individuais. Os
entre cada uma dessas escalas com a escala F, a sentimentos e o sofrimento do indivíduo, pro-
hipótese da existência de maior regressão psí- porcionado pelas duras exigências sociais, são
quica e social atualmente do que na época do es- aparentemente negados sob a forma do narcisis-
tudo da personalidade autoritária não se confir- mo ou pela adesão à ideologia da racionalidade
mou. Claro que essa hipótese não foi testada di- tecnológica. Mais do que isso, a neutralidade
retamente, pois para isso deveríamos ter aplicado aparente de um e de outro parece estar permea-
também a escala de conservadorismo político- da, por vezes, por impulsos destrutivos.
Verificar essa escala!
541
Tal como Freud (1986), Horkheimer e Adorno são necessárias novas pesquisas com maior nú-
(1985) perceberam a dialética do desenvolvi- mero de sujeitos e com características distintas
mento social. A tecnologia é fundamental para a daqueles que participaram deste estudo, e o
emancipação da miséria humana, ela dá a base aperfeiçoamento de alguns fatores da escala I pa-
dessa emancipação; não obstante, na sociedade ra que sejam mais precisos, para que os resulta-
da autoconservação, ela favorece a regressão in- dos desta pesquisa possam ser confirmados e se
dividual e social, por exigir sacrifícios indivi- possa ter idéia da extensão do problema aqui dis-
duais, que não são compensados socialmente. O cutido.
sentido da vida é expropriado quando a vida é
atrelada ao trabalho e a relações sociais e indi-
viduais, que servem à reprodução e manutenção REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
da ordem social e à autoconservação individual.
Certamente, a sociedade como organização entre Adorno, T. W. (1969). Opinión, Locura, Sociedad. In T.
os homens e para os homens, assim como a au- W. Adorno, Intervenciones (pp. 137-160). Caracas:
toconservação, são fundamentais, mas se a vida Monte Ávila ed..
Adorno, T. W. (1972). Teoría de la seudocultura. In T.
individual se restringe a essa última, não nos W. Adorno, Filosofía y superstición (pp. 141-
afastamos muito da reprodução da vida dos ou- 174). Madrid: Alianza Editorial.
tros animais. A sociedade, no estágio em que se Adorno, T. W. (1986). Capitalismo tardio ou sociedade
encontra, deveria se voltar para a felicidade e li- industrial? In T. W. Adorno, Sociologia (pp. 62-
berdade individuais, exigindo menos sacrifícios 75). São Paulo: Ática.
dos indivíduos. Adorno, T. W. (1991). De la relación entre sociología y
psicología. In T. W. Adorno, Actualidad de la
Poder-se-ia pensar que uma formação indivi-
filosofia (pp. 135-204). Barcelona: Ediciones Pai-
dual – não restrita à escola – que fosse um fim dós.
em si mesmo pudesse se contrapor à educação Adorno, T. W. (1995a). Educação após Auschwitz. In
voltada imediatamente para o trabalho, e portan- T. W. Adorno, Palavras e sinais (pp. 104-123). Pe-
to para a técnica, mas, segundo Adorno (1972), trópolis: Vozes.
ela é igualmente deformadora, pois quando a Adorno, T. W. (1995b). Sobre sujeito e objeto. In T. W.
cultura se estabelece como um fim em si mesmo, Adorno, Palavras e sinais (pp. 181-201). Petrópo-
lis: Vozes.
o seu objetivo de resolver os problemas humanos Adorno, T. W. (1995c). Notas marginais sobre teoria e
e de criar uma sociedade verdadeiramente hu- práxis. In T. W. Adorno, Palavras e sinais (pp.
mana é ocultado. Esse autor não deixou de men- 202-229). Petrópolis: Vozes.
cionar que durante o fascismo alemão, pessoas Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., Levison, D. J., &
cultas defenderam a violência praticada. Não se Sanford, R. N. (1950). The authoritarian persona-
deve, também, abandonar a educação associada à lity. Nova Iorque: Harper and Row.
Carone, I. (s.d.). Teoria crítica e psicologia social. São
técnica, pois ela é importante para mitigar o so-
Paulo: EDUC.
frimento humano. Ao que parece, seria desejável Costa, J. F. (1984). Violência e psicanálise. Rio de Ja-
uma educação que pudesse pensar a tecnologia e neiro: Graal.
seu desenvolvimento tendo como fim a pacifica- Freud, S. (1943). La moral sexual «cultural» y la ner-
ção entre os homens e não o progresso como um viosidad moderna. Buenos Aires: Editorial Ame-
fim em si mesmo ou a adaptação imediata ao ricana.
mercado de trabalho. Freud, S. (1959). Introdução ao narcisismo. In Obras
Completas de Freud, Vol VII. Rio de Janeiro:
Claro, os dados obtidos nesta pesquisa indi- Delta.
cam que a adesão à ideologia da racionalidade Freud, S. (1973). Três ensaios sobre a teoria da sexua-
tecnológica não é plena, que os escores obtidos lidade. Rio de Janeiro: Imago.
nas escalas N e F não são elevados, contudo, de- Freud, S. (1974a). Luto e melancolia. In Obras Com-
vemos lembrar que os sujeitos pesquisados são pletas de Freud, Vol. XI. Rio de Janeiro: Imago.
estudantes universitários e que é provável que os Freud, S. (1974b). Tipos libidinais. In Obras Completas
de Freud, Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago.
escores obtidos com sujeitos menos escolariza- Freud, S. (1986). El malestar en la cultura. In N. A.
dos e de menos posses sejam maiores, tal como Braustein (org.), A medio siglo de el malestar en la
aconteceu com os escores da escala F na pesqui- cultura de Sigmund Freud. México: Siglo Veintiu-
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RESUMO
São Paulo: Abril Cultural.
Horkheimer, M. (1976). A eclipse da razão. Rio de A pesquisa relatada neste artigo teve como objetivo
Janeiro: Editorial Labor. verificar a existência da relação entre a ideologia da
Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1978). Temas racionalidade tecnológica e características narcisistas
básicos de sociologia. São Paulo: Editora Cultrix. de personalidade. Esse tipo de ideologia e esse tipo de
Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). Dialética do personalidade foram considerados como substitutos
esclarecimento. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar parciais das ideologias e configurações psíquicas ana-
Editor. lisadas no estudo de Adorno et al. sobre a personali-
Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo. Rio de Ja- dade autoritária. Foram construídas 2 escalas com
neiro: Imago. itens tipo Likert – a escala da ideologia da racionalida-
Marcuse, H. (1981). Eros e civilização. Rio de Janeiro: de tecnológica e a escala de características narcisistas
Zahar. de personalidade –, que foram aplicadas em conjunto
Marcuse, H. (1982). A ideologia da sociedade indus-
com a escala F a 162 alunos da Universidade de São
trial. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
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Marx, K. (1984). O Capital: Crítica da economia polí- tação Varimax; a escala da ideologia da racionalidade
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Mullins, L. S., & Kopelman, R. E. (1988). Toward an outra escala, por 6 fatores. Encontramos correlações
assessment of the construct validity of four mea- significantes entre as três escalas aplicadas. Conclui-
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