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Resultados e discussão.
Buscando um ponto de partida epistemológico acerca da caracterização de cultura,
bem como suas relações com a noção de sujeito psíquico nas obras de Freud, um
paradigma se apresenta mediante uma leitura sistemática dos textos. É possível perceber
que a divisão entre escritos eminentemente psicológicos/clínicos e textos culturais não
obedece a critérios orgânicos de separação. O próprio autor não faz distinções dessa
natureza, imbricando a realidade psíquica na realidade social de forma indissociável.
Um exemplo significativo dessa intersecção está presente na exposição sobre a
formação do Super-eu, onde Freud (2010 [1932], p.205) afirma: “[…] De modo que o
Super-eu da criança é construído não segundo o modelo dos pais, mas do Super-eu dos
pais; preenche-se com o mesmo conteúdo, torna-se veículo da tradição, de todos os
constantes valores que assim se propagaram de geração a geração.”. Essa posição
aponta que a estruturação do Super-eu se dá a partir dos valores socialmente
transmitidos ao longo das gerações, e não de posições e preferências individuais
daqueles que ocupam posições de autoridade como instâncias parentais da criança. Não
obstante, a dimensão subjetiva inerente ao jogo de forças afetivas do desenvolvimento
humano também se insere como elemento basilar na constituição do Super-eu, sendo
apontados como fundamentais questões como os processos identificatórios, as escolhas
objetais e o destino das relações edipianas para sua consolidação (Freud, 2010 [1932]).
Assim, analisando a consciência moral, pode-se observar as dinâmicas da
realidade social, os tabus, formas de repressão, os modos autorizados de expressão
dos desejos e os objetos substitutivos de satisfação, plasmados na tradição. Pensar a
realidade psíquica e social, a partir de uma perspectiva psicanalítica, implica na
impossibilidade de cindir a humanidade de seu universo de cultura, seu espaço de
desenvolvimento, de significação e de reprodução da vida.
Uma vez estabelecida a noção de que, em psicanálise, a dimensão social se funde
com a dimensão subjetiva, embora a relação entre ambas seja de tensão, pode-se definir
cultura como:
[...] a soma total das realizações e dos dispositivos através dos quais a nossa vida
se distancia da de nossos antepassados animais e que servem a duas finalidades:
a proteção do ser humano contra a natureza e a regulamentação das relações dos
seres humanos entre si. (Freud, 2020 [1930], p.337)
Mas é à segunda função que ela deve a maior parte de sua influência. Quando
alivia a angústia das pessoas ante os perigos e as contingências da vida,
assegura-lhes um final feliz, proporciona-lhes consolo no infortúnio, a ciência não
pode se medir com ela. (Freud, 2010 [1932], p.327)
Com isso, a religião ganha um novo status. Ela não é mais uma prática comunitária
que faz sentido apenas para comunidade que a originou, ela é agora uma ferramenta de
imperialismo, que tem por objetivo servir como um instrumento de dominação simbólica a
outros povos, levando não só os mitos fundadores e deidades para outros povos, mas
principalmente legislando sobre outras comunidades.
Devido aos movimentos políticos do Egito antigo, esse modo de produção de
religião não prosperou. O peso do politeísmo e a força política dos sacerdotes revogaram
o monoteísmo, apagando os registros históricos de sua presença. Entretanto, ainda que
em estado germinal, a tradição do monoteísmo e suas idiossincrasias sobreviveram com
Moisés e os sacerdotes que o seguiram. (Freud, 1939)
As tradições do monoteísmo, incorporadas na religião mosaica e transmitidas para
o povo hebreu, se caracterizou pela amplificação das características universalizantes do
culto a Aton, em um rebaixamento do status das cerimónias e uma hipertrofia dos
mandamentos divinos. As regras de conduta eram agora mais importantes para agradar a
divindade do que os rituais e a magia, algo que não foi aceito em um primeiro momento
pelo povo hebreu, mas que posteriormente, com as mudanças nas condições materiais e
desenvolvimento histórico daquele povo, deu origem ao que hoje se conhece como as
religiões abraâmicas. (Freud, 1939)
Após viver durante séculos como um grupo sem grande expressividade diante o
domínio das potências que se sucederam no domínio do mundo conhecido, os judeus,
sucessores do antigo povo hebreu, especificamente em sua vertente cristã, encontrou no
império romano decadente um veículo para um reavivamento do império das tradições
monoteístas. Seu poder cresceu de forma tão contundente, que o cristianismo católico se
tornou a força hegemônica durante toda idade média, em par com a outra vertente das
religiões abraâmicas no oriênte médio, o islamismo.
Com o fim da idade média e a ascensão da racionalidade, o poder incontestável
das instituições que detinham o poder divino começa a ruir. Paradigmaticamente, o
racionalismo não rompe com os princípios morais da doutrina religiosa, sendo os tabus e
as sanções para suas violações, nas civilizações modernas, diretamente originadas das
tradições religiosas.
Ademais, a própria noção de liberdade e soberania está diretamente vinculada à
noção de livre-arbítrio. Se tudo é lícito para os homens, mas nem tudo a eles convém,
tem-se aí a noção de que nominalmente todos são livres para fazer aquilo que quiserem,
mas que, violando as regras sociais, não há liberdade para escolher ou não sofrer as
sanções.
O equilíbrio entre ser titular da liberdade e soberano para suas escolhas é
condição sine qua non do sistema capitalista, bem como a aplicação da lei é um
imperativo para sua manutenção, tornando apenas nominal sua liberdade.
Conclusão.
Os elementos da visão de mundo da religião estão profundamente vinculados à
moralidade na sociedade contemporânea. As ideias de liberdade e soberania, apesar de
associadas a movimentos de ruptura com antigas tradições, ainda são produtos de um
mundo forjado no contexto normativo do pensamento religioso, carregando, com isso,
uma herança que se torna mais evidente, ou mais velada, a partir das condições materiais
vividas por um povo.
O paradigma das leis das religiões abraâmicas, representadas pelos mandamentos
e ampliadas pelos profetas, se amalgamou com as tradições greco-romanas do final do
império romano, atingindo um poder de hegemonia durante o período da idade média,
deixando uma marca indelével das normas de conduta contemporânea.
Com o advento do iluminismo, o mundo moderno emerge com um racionalismo
que, se opondo ao mundo da religião, não abandona seus pressupostos, tampouco abole
seus princípios éticos e suas produções simbólicas.
Nesse sentido, Nietzsche elabora uma crítica contundente a essa lógica:
Deus está morto. Deus permanece morto. E nós o matamos. Como nos consolar,
nós, os assassinos dos assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até
então possuíra sangrou até a morte sob nossas lâminas. Quem nos limpará desse
sangue? Com que água poderíamos nos purificar? Que festivais de expiação, que
jogos sagrados vamos inventar? A grandiosidade desse ato não é demasiado
grande para nós? Não devemos nós mesmos nos tornar deuses simplesmente
para parecer dignos disso? Não há nunca houve um ato tão grandioso; e quem
quer que nasça depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história
mais elevada do que toda história até agora. (Nietzsche, 2006 [1882], p.129)
[...] Seja como for, a situação é tal que hoje em dia as democracias conservadoras
se tornaram guardiãs do avanço cultural e, de modo curioso, justamente a
instituição da Igreja católica se opõe energicamente à expansão desse perigo
cultural — ela, que até agora foi inimiga implacável da liberdade de pensamento e
do avanço no conhecimento da verdade! (Freud, 2018 [1939], p. 47)
Referências Bibliográficas.
FREUD, S. O mal-estar na Cultura. In: Cultura, Sociedade, Religião. O Mal-estar na
cultura e outros escritos. Editora Autêntica, 2020.
FREUD, S. Por que a guerra? . In: Cultura, Sociedade, Religião. O Mal-estar na cultura e
outros escritos. Editora Autêntica, 2020.
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