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Título: Freud e sua análise crítica da religião: a busca de mediações importantes para a

compreensão da constituição da consciência moral e da ideia de liberdade e soberania na


modernidade - uma análise dos textos culturais de 1929 a 1939.

Igor Alves Prado Barcelos Mendonça1, Renata Leite Soares2


1
Estudante, Faculdade de Educação, igor.alves@discente.ufg.br
2
Orientadora,Faculdade de Educação, @renata_leite_soares@ufg.br
Resumo.
O presente trabalho tem por objetivo explorar, em uma seleção de textos da obra
de Freud publicados entre o período de 1929 a 1939, os conceitos que apontam o papel
desempenhado pela visão de mundo da religião no interior da formação de uma
consciência moral contemporânea. Pretende-se, também, elaborar uma possível
vinculação entre esses conceitos e a noção de racionalidade como forma específica
contida em uma ética da modernidade, estabelecendo um diálogo com as ideias de
liberdade e soberania.
Apresentação.
A psicanálise elaborada por Freud apresenta um conjunto de hipóteses que fazem
convergir, embora sem uma síntese entre ambas, a dimensão da vida social humana e a
vida subjetiva, desenvolvendo uma teoria onde as demandas psíquicas dos sujeitos estão
plasmadas nos modos de organização da sociedade, em suas tradições transmitidas
através das gerações, e na visão de mundo que orienta as leis internas e externas de
uma comunidade, bem como as formas de repressão socialmente legitimadas para punir
a infração aos tabus.
No bojo dessas elaborações, a noção de uma consciência moral contida na visão
de mundo da sociedade ocidental contemporânea está diretamente atrelada a sua
tradição religiosa, com o acréscimo da racionalidade advinda do iluminismo e da noção de
indivíduo consolidada pelo modo de produção capitalista, apresentando-se como uma
visão de mundo sui generis na história da humanidade, ainda que não abandone sua
herança referente a um “passado que se recusa a passar”.
Compreender a articulação entre a visão de mundo religiosa e a formação da
consciência moral é um importante passo na direção de tornar clara as forças
inconscientes que operam na produção dos sentidos do discurso religioso, apontando as
contradições internas de um movimento que se apresenta como novo, mas que possui
raízes profundas em uma tradição deixada em segundo plano pelo pensamento científico.
Trazer a tona essas relações ocultas significa, em última análise, apresentar as
possibilidades de colocar em cenas as contradições experimentadas na
contemporaneidade.
Metodologia.
Este trabalho de iniciação científica está contido na pesquisa conduzida pela
orientadora sob o título de “(I)racionalidade objetiva e subjetiva na esfera pública: o caso
dos movimentos neopentecostais”. A seleção do recorte temporal dos textos culturais de
Freud, cobrindo o período de 1929 até 1939, foi pensado para trabalhar de forma conjunta
com a iniciação científica executada pela discente Jullyana Silva Rosa, que investigou os
textos culturais de Freud do período de 1908 à 1929.
A pesquisa qualitativa teve por base uma metodologia de análise temática
separada em três estágios. No primeiro, com o objetivo inicial de conhecer e organizar as
fontes primárias, foi conduzida uma leitura sistemática dos textos, empregando uma
técnica de fichamentos onde buscou-se classificar as fichas em três categorias:
1) Passagens diretamente vinculadas aos objetivos do trabalho.
2) Passagens que se vinculam tangencialmente aos objetivos do trabalho, dialogando
com outras obras do autor e/ou com outros autores.
3) Passagens sem vinculação direta com os objetivos do trabalho.
Após a leitura e fichamento dos textos, deu-se um segundo estágio, com
discussões teóricas e temáticas semanais conduzidas pela orientadora do trabalho em
conjunto com a discente Jullyana Silva Rosa. Partindo do material elaborado nos
fichamentos, as reuniões tinham como propósito viabilizar a formulação de sínteses que
dialogassem com o conjunto da obra de Freud e seus comentadores, buscando uma
compreensão longitudinal e contextualizada da teoria psicanalítica freudiana.
No oitavo mês de trabalho, quando a etapa de conhecimento e discussão dos
textos se encontrava em um estágio avançado, foi definido um eixo de categorias
conceituais para formar uma intersecção entre o material base investigado e os objetivos
da pesquisa. Na especificidade deste plano de trabalho em articulação com os textos
trabalhados, consciência moral, consciência religiosa, visão de mundo, religião,
autoridade, ética, racionalidade e desamparo, foram categorias conceituais que se
mostraram centrais para realizar inferências em um estudo qualitativo da obra.
Doravante, privilegiou-se identificar a evolução dessas categorias conceituais no
percurso cronológico das obras, assim como sua participação nas questões centrais das
elaborações de Freud acerca da vida social do homem na modernidade, demarcando os
temas recorrentes em sua produção como forma de expressar coerentemente os pontos
de vista do autor, evitando uma fragmentação entre a estrutura da sua análise topológica
do “aparelho psíquico” e suas considerações acerca da cultura.

Resultados e discussão.
Buscando um ponto de partida epistemológico acerca da caracterização de cultura,
bem como suas relações com a noção de sujeito psíquico nas obras de Freud, um
paradigma se apresenta mediante uma leitura sistemática dos textos. É possível perceber
que a divisão entre escritos eminentemente psicológicos/clínicos e textos culturais não
obedece a critérios orgânicos de separação. O próprio autor não faz distinções dessa
natureza, imbricando a realidade psíquica na realidade social de forma indissociável.
Um exemplo significativo dessa intersecção está presente na exposição sobre a
formação do Super-eu, onde Freud (2010 [1932], p.205) afirma: “[…] De modo que o
Super-eu da criança é construído não segundo o modelo dos pais, mas do Super-eu dos
pais; preenche-se com o mesmo conteúdo, torna-se veículo da tradição, de todos os
constantes valores que assim se propagaram de geração a geração.”. Essa posição
aponta que a estruturação do Super-eu se dá a partir dos valores socialmente
transmitidos ao longo das gerações, e não de posições e preferências individuais
daqueles que ocupam posições de autoridade como instâncias parentais da criança. Não
obstante, a dimensão subjetiva inerente ao jogo de forças afetivas do desenvolvimento
humano também se insere como elemento basilar na constituição do Super-eu, sendo
apontados como fundamentais questões como os processos identificatórios, as escolhas
objetais e o destino das relações edipianas para sua consolidação (Freud, 2010 [1932]).
Assim, analisando a consciência moral, pode-se observar as dinâmicas da
realidade social, os tabus, formas de repressão, os modos autorizados de expressão
dos desejos e os objetos substitutivos de satisfação, plasmados na tradição. Pensar a
realidade psíquica e social, a partir de uma perspectiva psicanalítica, implica na
impossibilidade de cindir a humanidade de seu universo de cultura, seu espaço de
desenvolvimento, de significação e de reprodução da vida.
Uma vez estabelecida a noção de que, em psicanálise, a dimensão social se funde
com a dimensão subjetiva, embora a relação entre ambas seja de tensão, pode-se definir
cultura como:
[...] a soma total das realizações e dos dispositivos através dos quais a nossa vida
se distancia da de nossos antepassados animais e que servem a duas finalidades:
a proteção do ser humano contra a natureza e a regulamentação das relações dos
seres humanos entre si. (Freud, 2020 [1930], p.337)

Partindo desta definição, observa-se que na formação das dinâmicas internas da


cultura, as demandas subjetivas participam diretamente dos contornos que as produções
culturais assumem para mediar a existência humana em um ambiente idiossincrático.
Para Freud, a demanda por proteção e a necessidade de regulação da vida em
sociedade são os dois grandes responsáveis para existência da cultura, sendo tópicos
centrais em diversas discussões do autor, como no debate com Romain Rolland acerca
da religiosidade, e nas cartas trocadas com Einstein sobre a guerra e seus possíveis
caminhos para sua superação. Trata-se, de forma geral, de uma questão recorrente em
sua obra a partir de diferentes recortes que dizem respeito de forma ampla, a relação
entre o individual e o social.
Abordando a demanda por proteção contra um mundo hostil, decorrente da
condição de vulnerabilidade e desamparo, um aspecto filogenético conecta a humanidade
ao longo de todas as gerações. Comparadas a outras espécies, o período de
desenvolvimento humano até chegar à idade adulta é consideravelmente ampliado, a
maturação neuronal, o aprendizado das habilidades essenciais para sobrevivência, a
coordenação motora fina, exigem um longo período para atingir suas formas finais. Desse
modo, a demanda por cuidados e a experiência da dor deixam marcas profundas na
ontogênese dos sujeitos, de tal modo que ao se atingir a maturidade, a dinâmica do
desamparo e do medo permanecem produzindo efeitos.
Para lidar com a faceta hostil do ambiente, a humanidade elaborou diversas
ferramentas para lidar com as dores. As satisfações substitutivas como a arte e sua
inesgotável capacidade de induzir a fantasia e permitir o gozo no imaginário, a filosofia
com suas formulações éticas para uma boa vida, a ciência com seu prazer da descoberta,
os entorpecentes com sua capacidade de dessensibilizar as dores e ampliar o prazer, e a
religião, uma ferramenta sui generis da cultura cujas raízes se estendem para além da
função de consolar as dores (Freud, 2010 [1930]).
Sobre a religião, Freud alerta para sua posição privilegiada entre as diversas
visões de mundo:

Mas é à segunda função que ela deve a maior parte de sua influência. Quando
alivia a angústia das pessoas ante os perigos e as contingências da vida,
assegura-lhes um final feliz, proporciona-lhes consolo no infortúnio, a ciência não
pode se medir com ela. (Freud, 2010 [1932], p.327)

Na medida em que a religião se apresenta como um caminho para obtenção da


felicidade e consolo para as adversidades da vida, ela se torna uma herdeira dos papéis
representados pela instância parental. Entretanto, a instância parental não é somente
aquela que proporciona proteção, Goldenberg comenta que:

[...]Tornado apelo pela resposta recebida, o grito introduz a dimensão da


alteridade. Freud nunca perderá esta intuição inicial, a saber, que o único
elemento comum às experiências originais da dor e da satisfação no
recém-nascido é o grito enquanto fonia.
Sinal do desamparo radical da criança, o grito instaura ao mesmo tempo a
onipotência do Outro absoluto de quem ela depende. […] (Goldenberg, 1994 ,
p.44)

Assim, ao se oferecer como objeto de prazer e proteção, a instância parental se


torna concorrentemente uma fonte de angústia e medo, bastando sua ausência para que
a dor se torne uma certeza. Assim, a religião carrega a mesma dimensão de
ambiguidade e onipotência, sendo aquela supostamente capaz de cuidar do destino da
humanidade, mas também de punir aqueles que a aborrecem.
A lógica da punição exige um retorno para o segundo motivo que fundamenta a
existência da cultura, a necessidade de regulação das relações humanas em um contexto
de convivência. A lógica da alteridade também se encontra presente nas relações dos
sujeitos com a dimensão coletiva. Ao se pressupor que obtenção da satisfação na relação
com os objetos de desejo necessitam de um outro, aqueles desejos que implicam na
destruição deste outro devem ser reprimidos, sob pena de um desamparo futuro, com a
consequente perda do objeto desejado e a possibilidade de perda de si enquanto objeto
de desejo.
Aqui, a cultura aparece como uma mediadora necessária dos conflitos da
humanidade, sendo dotada de elementos coercitivos que tem por função impor a
repressão daquilo que é incompatível com os valores sociais, viabilizando um modo de
vida onde o medo de ser dominado pelo mais forte não se torne uma regra.
No entanto, se por um lado a sociedade exige renúncia para se perpetuar, os
limites que delimitam os tabus não são como fronteiras estáveis, os conflitos que a cultura
busca dirimir continuam a persistir na sociedade, e a barbárie acompanha a civilização.
Freud, movido pela constatação desse jogo de forças, aprofunda sua crítica ao
afirmar que:
“[...] na realidade as coisas se complicam pelo fato de que desde o princípio a
comunidade abrange elementos de poder desigual, homens e mulheres, pais e
filhos e, em consequência de guerras e conquistas, vencedores e vencidos, que
se transformam em senhores e escravos. Então o direito da comunidade se torna
expressão das desiguais relações de poder em seu interior, as leis são feitas por e
para os que dominam, reservando poucos direitos para os dominados.” (Freud,
2020 [1933], p. 422)

Assim, um conjunto de dinâmicas tenciona a sociedade para um caminho de maior


coesão e cooperação, e outro, para a deflagração de conflitos. Nesse contexto, a visão de
mundo da religião se coloca como um poder legislador arrebatador sobre a humanidade,
ocupando um lugar privilegiado na prescrição de regras de conduta, tendo sua autoridade
garantida pela potência inexorável da divindade, enfrentando pouca ou nenhuma
resistência de opositores.
Para compreender a fonte deste poder, é necessário recuar para a teoria freudiana
da topologia psíquica, e como certos elementos da religião se configuram como
expressões mitológicas das funções superegóicas.
A introdução do Super-eu na segunda tópica foi uma grande revolução para
compreender as dinâmicas das forças psíquicas e sua vinculação com o processo de
desenvolvimento, sobre ele, Freud postula:

[…] A influência dos pais governa a criança concedendo-lhe provas de amor e


ameaças de castigo, que atestam a perda do amor e são temidos por si mesmos.
Essa angústia realista é precursora da posterior angústia moral; enquanto ela
vigora, não precisamos falar de Super-eu e de consciência moral. Apenas mais
tarde se cria a situação secundária que nos dispomos demasiado prontamente a
ver como normal, em que o obstáculo externo é internalizado, em que o Super-eu
toma o lugar da instância parental e então observa, dirige e ameaça o Eu,
exatamente como os pais faziam com a criança. (Freud, 2010 [1933], p.199)

Assim, ao se referir a repressão, ao tabu, a tentativa de controle das forças


pulsionais, a instância do Super-eu ocupa um papel central como um dos senhores do
Ego, sendo seu conteúdo preenchido pela tradição e pela história das escolhas objetais
do sujeito durante o período edipiano.
Comentando a relação do Super-eu com a consciência moral, é apontado que “O
Super-eu aplica o mais rigoroso critério moral ao Eu abandonado à sua mercê, representa
mesmo as exigências da moralidade, e logo notamos que o nosso sentimento de culpa é
expressão da tensão entre Eu e Super-eu.” (Freud, 2010 [1933], p.198)
Uma vez estabelecidas as bases para compreender o papel que a religião
desempenha como visão de mundo, as forças morais que operam na regulação entre os
sujeitos, e de que forma os movimentos de representação se articulam para formar a
experiência humana, é possível analisar o modo como a consciência moral da religião
está presente nas estruturas de pensamento e nas formas de organização social.
Quando Freud analisa o modo como a divindade e a religião estão presentes como
figuras que substituem as instâncias parentais, ele afirma:

O destino é considerado um substituto da instância parental, quando passamos


por infortúnio, isso significa que não somos mais amados por essa força suprema,
e, ameaçados por essas perda do amor, curvamo-nos novamente diante da
representação parental do Supereu, aquela que queríamos desprezar quando
éramos felizes. Isso se torna particularmente claro quando reconhecemos no
destino apenas a expressão da vontade divina, no sentido estritamente religioso.
(Freud, 2020 [1930], p.381)

Aqui, Freud vincula uma “ferramenta” da cultura, a religião, ao modo como a


função superegóica se apresenta, modulada pelas condições materiais a qual um povo é
submetido, tendendo a se tornar proporcionalmente mais rígida à medida em que as
circunstâncias externas se tornam hostis. A mesma inflexibilidade do Supereu diante de
um ambiente rigoroso é emprestada às doutrinas da religião, tornando seus
mandamentos tão mais eficazes quanto maior a dependência do Ego, marcado pela culpa
e pela esperança, aos desígnios de um destino incógnito.
Deve-se, contudo, compreender que a religião para Freud não é um elemento
estático e atemporal, assim como a humanidade se desenvolveu através de um longo
processo de avanços e retrocessos, a manifestação da religião acompanhou a marcha
destes movimentos.
Primeiramente, em sua forma de horda, onde um membro mais forte dominava os
demais o poder e a soberania eram exercidas pelo império da força, porém, com a
organização social dos mais fracos, uma nova forma se consuma dando luz às
sociedades Totêmicas, que ao mesmo tempo devoram o pai mais forte, também
incorporam sua lei como tabu inviolável. Quanto a esse segundo estágio, Freud diz:

[...] A primeira forma de organização social surgiu com a renúncia instintual, o


reconhecimento de obrigações mútuas, o estabelecimento de instituições ditas
invioláveis (sagradas), ou seja, os primórdios da moral e do direito. Cada indivíduo
renunciou ao ideal de conquistar a posição do pai, à posse da mãe e das irmãs.
Com isso iniciou-se o tabu do incesto e o mandamento da exogamia. (Freud, 2018
[1939], p.114)

Em sequência, é afirmado que o totemismo pode ser considerado uma


manifestação de religião nesse estágio da humanidade, inaugurando os ritos e as
sanções à transgressões, além de introduzir a adoração a símbolos, que podiam ser
representação de animais ou figuras antropomórficas. Além disso, nesse período, um
grande panteão de deidades foi elaborado, constituindo uma hierarquia de Deuses e
Deusas e mitos fundadores que se harmonizam com a história de suas comunidades
originárias (Freud, 2018 [1939]).
Neste período já estão presentes todas as características próprias das religiões,
fornecer os mitos fundadores que explicam o mundo, apaziguando a angústia do
desconhecido, a “proteção” mediada pela figura das divindades que estão para além das
forças do mundo natural, e por fim, outorga os tabus e suas respectivas sanções que
regulamentam a vida na comunidade.
Um episódio disruptivo inaugura um novo modo de se produzir religião, ainda que
contenha todas as funções típicas das religiões totêmicas, é acrescida um novo elemento:
servir a um império. O contexto é o apogeu do império egipcio, no reinado de Amenófis IV
e seu culto ao deus único Aton:

[...] Esse imperialismo refletia-se na religião como universalismo e monoteísmo.


Como a atenção do faraó se voltava agora, além do Egito, para a Núbia e a Síria,
também a divindade devia abandonar sua limitação nacional, e, tal como o faraó
era o senhor único e ilimitado do mundo conhecido dos egípcios, assim também a
nova divindade dos egípcios devia ser. (Freud, 2018 [1939], p. 23)

Com isso, a religião ganha um novo status. Ela não é mais uma prática comunitária
que faz sentido apenas para comunidade que a originou, ela é agora uma ferramenta de
imperialismo, que tem por objetivo servir como um instrumento de dominação simbólica a
outros povos, levando não só os mitos fundadores e deidades para outros povos, mas
principalmente legislando sobre outras comunidades.
Devido aos movimentos políticos do Egito antigo, esse modo de produção de
religião não prosperou. O peso do politeísmo e a força política dos sacerdotes revogaram
o monoteísmo, apagando os registros históricos de sua presença. Entretanto, ainda que
em estado germinal, a tradição do monoteísmo e suas idiossincrasias sobreviveram com
Moisés e os sacerdotes que o seguiram. (Freud, 1939)
As tradições do monoteísmo, incorporadas na religião mosaica e transmitidas para
o povo hebreu, se caracterizou pela amplificação das características universalizantes do
culto a Aton, em um rebaixamento do status das cerimónias e uma hipertrofia dos
mandamentos divinos. As regras de conduta eram agora mais importantes para agradar a
divindade do que os rituais e a magia, algo que não foi aceito em um primeiro momento
pelo povo hebreu, mas que posteriormente, com as mudanças nas condições materiais e
desenvolvimento histórico daquele povo, deu origem ao que hoje se conhece como as
religiões abraâmicas. (Freud, 1939)
Após viver durante séculos como um grupo sem grande expressividade diante o
domínio das potências que se sucederam no domínio do mundo conhecido, os judeus,
sucessores do antigo povo hebreu, especificamente em sua vertente cristã, encontrou no
império romano decadente um veículo para um reavivamento do império das tradições
monoteístas. Seu poder cresceu de forma tão contundente, que o cristianismo católico se
tornou a força hegemônica durante toda idade média, em par com a outra vertente das
religiões abraâmicas no oriênte médio, o islamismo.
Com o fim da idade média e a ascensão da racionalidade, o poder incontestável
das instituições que detinham o poder divino começa a ruir. Paradigmaticamente, o
racionalismo não rompe com os princípios morais da doutrina religiosa, sendo os tabus e
as sanções para suas violações, nas civilizações modernas, diretamente originadas das
tradições religiosas.
Ademais, a própria noção de liberdade e soberania está diretamente vinculada à
noção de livre-arbítrio. Se tudo é lícito para os homens, mas nem tudo a eles convém,
tem-se aí a noção de que nominalmente todos são livres para fazer aquilo que quiserem,
mas que, violando as regras sociais, não há liberdade para escolher ou não sofrer as
sanções.
O equilíbrio entre ser titular da liberdade e soberano para suas escolhas é
condição sine qua non do sistema capitalista, bem como a aplicação da lei é um
imperativo para sua manutenção, tornando apenas nominal sua liberdade.

Conclusão.
Os elementos da visão de mundo da religião estão profundamente vinculados à
moralidade na sociedade contemporânea. As ideias de liberdade e soberania, apesar de
associadas a movimentos de ruptura com antigas tradições, ainda são produtos de um
mundo forjado no contexto normativo do pensamento religioso, carregando, com isso,
uma herança que se torna mais evidente, ou mais velada, a partir das condições materiais
vividas por um povo.
O paradigma das leis das religiões abraâmicas, representadas pelos mandamentos
e ampliadas pelos profetas, se amalgamou com as tradições greco-romanas do final do
império romano, atingindo um poder de hegemonia durante o período da idade média,
deixando uma marca indelével das normas de conduta contemporânea.
Com o advento do iluminismo, o mundo moderno emerge com um racionalismo
que, se opondo ao mundo da religião, não abandona seus pressupostos, tampouco abole
seus princípios éticos e suas produções simbólicas.
Nesse sentido, Nietzsche elabora uma crítica contundente a essa lógica:

Deus está morto. Deus permanece morto. E nós o matamos. Como nos consolar,
nós, os assassinos dos assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até
então possuíra sangrou até a morte sob nossas lâminas. Quem nos limpará desse
sangue? Com que água poderíamos nos purificar? Que festivais de expiação, que
jogos sagrados vamos inventar? A grandiosidade desse ato não é demasiado
grande para nós? Não devemos nós mesmos nos tornar deuses simplesmente
para parecer dignos disso? Não há nunca houve um ato tão grandioso; e quem
quer que nasça depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história
mais elevada do que toda história até agora. (Nietzsche, 2006 [1882], p.129)

Ainda que o mundo moderno seja caracterizado pela lógica do racionalismo


científico, “destronando” Deus e o pensamento religioso, e promulgando a liberdade e
soberania dos sujeitos com a consolidação do capitalismo, a humanidade contemporânea
ainda está “embebida” no sangue das tradições religiosas. Os elementos que pautam a
ética da modernidade ocidental ainda são fundamentalmente aqueles erigidos pelas
tradições judaico-cristãs, fato que não desabona seu papel na regulação da vida em
sociedade, funcionando, inclusive, como um elemento que se contrapôs a barbárie em
diversos momentos históricos.
Nesse sentido, Freud testemunha que:

[...] Seja como for, a situação é tal que hoje em dia as democracias conservadoras
se tornaram guardiãs do avanço cultural e, de modo curioso, justamente a
instituição da Igreja católica se opõe energicamente à expansão desse perigo
cultural — ela, que até agora foi inimiga implacável da liberdade de pensamento e
do avanço no conhecimento da verdade! (Freud, 2018 [1939], p. 47)

É possível concluir, portanto, que a consciência moral da religião ainda está


presente na fundamentação da ética na contemporaneidade. Ainda que os elementos
relativos à racionalidade e a soberania dos sujeitos sejam próprios de nossa época,
diferenciando-nos das experiências do passado, esse passado ainda se faz presente no
modo como os juízos de valor sobre o bem e mal são formulados, e como o conteúdo da
moralidade do Supereu é herdada pelas tradições que estendem suas raízes na direção
deste passado de imperativos emanados pelas esferas divinas.

Referências Bibliográficas.
FREUD, S. O mal-estar na Cultura. In: Cultura, Sociedade, Religião. O Mal-estar na
cultura e outros escritos. Editora Autêntica, 2020.

FREUD, S. Por que a guerra? . In: Cultura, Sociedade, Religião. O Mal-estar na cultura e
outros escritos. Editora Autêntica, 2020.

FREUD, S. Novas conferências introdutórias à psicanálise. A dissecção da


personalidade psíquica. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à
psicanálise e outros textos (1930-1936)/ Sigmund Freud; tradução Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FREUD, S. Novas conferências introdutórias à psicanálise. Acerca de uma visão de


mundo. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros
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Companhia das Letras, 2010.

FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. Moisés e o monoteísmo, Compêndio de psicanálise


e outros textos. (1937 - 1939)/ Sigmund Freud; tradução Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das letras, 2018.

GOLDENBERG, Ricardo. Ensaio sobre a moral em Freud. Salvador: Editora Ágalma,


1994.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. (Tradução de Antonio Carlos Braga) São Paulo -
SP: Editora Escala, 2006.

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