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Carlos Fiolhais
Abstract: The Jesuit Manuel Antunes followed attentively the historical evolution that
happened in his lifetime, an evolution due in large part to the acceleration of science and
technology. Drawing on his Obra Completa, I analyse his outlook on science and
technology. In the text «Ciência e cultura hoje», he wrote about science: «the spirit
which it promotes – a spirit of exactitude and rigor, a spirit of justice and truth towards
the elements of reality, a spirit of discovery, of innovation and of liberation from routine
– that spirit is good, in principle» (Antunes, 2005: 292). He recognized in science a
source of progress: «Humanity learns and accumulates “as one man”. It accumulates
instruments, science and experience» (Antunes, 2007: 368). However, he stressed the
need to reconcile modern humanism, based on science, with classical humanism,
containing Christian values. The homo mechanicus, the man of science, has to be
reconciled with the homo misericors, the merciful man.
O Padre Manuel Antunes reconhece a grande influência que a nossa sociedade recebe
da ciência. Escreveu no texto intitulado «Ciência e cultura, hoje» (Antunes, 2005: 287-
299), de 1968, sobre a ciência:
Um pouco mais adiante, acrescenta: «A ciência é, hoje, um facto que ninguém nega ou
pensa sequer em negar» (Antunes, 2005: 287). E fornece razões:
Para muitos dos nossos contemporâneos, que não apenas para os cientistas
profissionais, a Ciência apresenta-se como o sistema absoluto de todas as referências,
como o verdadeiro englobante de todas as disciplinas do espírito, como o motor mais
potente do prodigioso dinamismo humano, como a síntese de tudo quanto é válido no
mundo e na história, como o vetor, por excelência, de todos os grandes ideais, como o
campo de forças em que se jogam o tempo e o destino da Humanidade, como o espaço,
acima da terra, em que se projetam desejos e aspirações, esperanças e temores,
angústias e certezas, discutem todas as descrições, esperanças, temores, angústias e
incertezas. É isto que entendemos pela expressão: «a ciência como mito». (Antunes,
2005: 291-292)
Ele tem razão: esperamos mais da ciência do que aquilo que a ciência oferece, apesar de
ela oferecer muito. Habituámo-nos a esperar demais da ciência. É evidente que nunca se
pode esperar que os mitos se concretizem plenamente, pela própria definição de mito.
Podemos e devemos esperar da ciência como facto, inclusivamente a continuação da
ciência como facto, mas parece uma quimera alcançar um «sistema absoluto de todas as
referências». Assim, o Padre Manuel Antunes diz que a ciência triunfou, mas que se
trata de um triunfo ambíguo, «como aliás todos os triunfos», acrescenta ele, com uma
ironia muito fina. E explicita de onde vem a ambiguidade:
Pode conduzir a uma real promoção da humanidade nos vários planos em que a sua
vida se desenvolve, e é um bem. Pode conduzir à sua total destruição ou, se essa
hipótese, menos provável, não se der, pode conduzir a um estancamento das suas
energias criadoras, a uma atitude de extrapolação, tomando como ciência aquilo que
não é ciência, e então é um mal. (Antunes, 2005: 292)
Mas, vistas as coisas globalmente, o «triunfo da ciência» ou, em sentido mais amplo, a
«ciência como mito» é mais um bem do que um mal. Na verdade, embora a ciência não
seja ainda, de facto, nem deva ser, de direito, a esperança única do homem, contudo o
espírito que ela promove – espírito de exatidão e de rigor, o espírito de justiça e de
verdade para com os elementos do real, espírito de descoberta, de inovação e de
libertação da rotina – esse espírito é bom, em princípio. (Antunes, 2005: 292)
E eu não podia estar mais de acordo. O problema do mundo não é a exactidão, nem o
rigor, a justiça, a verdade, a descoberta, a inovação, a libertação da rotina, mas
precisamente a falta dessas virtudes.
Depois de ter apresentado esta apologia da ciência do Padre Manuel Antunes – que é
moderada, pois a moderação é necessária em todos os conceitos associados a mitos, de
modo a evitar totalitarismos –, vou ser mais concreto quanto ao seu pensamento sobre a
ciência. Vou considerar três questões: a questão do progresso, que é um facto, mas
também é mito; a questão do humanismo, que é um facto, mas também pode ser um
mito; e, finalmente, a questão da irracionalidade, para a qual chamarei a atenção: o
Padre Manuel Antunes pode ser visto como um «profeta» porque, sendo atual a crise da
humanidade, patente por exemplo no avanço da irracionalidade e na generalização da
falta de valores, ele tomou consciência de sinais que, na altura, embora apenas latentes,
já estavam bem nítidos: a irracionalidade, a desinformação estavam lá, só faltava a
Internet. Havia a imprensa, a rádio e a televisão, mas ainda não havia a Internet e as
redes sociais.
O progresso
O progresso é um tema muito debatido e que vai continuar a ser debatido porque é
interminável. Há cem anos, o alemão Oswald Spengler, no fim da Primeira Guerra
Mundial, falou do declínio do Ocidente, significando o fim da civilização que tinha
dado origem à guerra (Spengler, 1923). Hoje, após a continuação do progresso nesse
pós-guerra, assim como no período após a Segunda Guerra Mundial, continuamos
confrontados com a ideia de progresso. É um facto, mas também é um mito.
Interiorizámos a ideia de progresso com a nossa experiência histórica, mas é uma ideia
em relação à qual sentimos uma certa frustração, por vezes mesmo um certo receio, por
termos uma ideia mitificada de progresso. O Padre Manuel Antunes era um pensador
que tinha fontes muito ecléticas, gostando, por exemplo, de citar o alemão Karl Marx.
Não sendo marxista, concordava com Marx quando este dizia que «as sociedades
apenas pensam as questões para as quais têm solução, ou julgam que têm solução». A
questão do progresso era pensada na segunda metade do século xx – e, de resto, ainda o
é hoje – porque a sociedade tinha uma solução, ou pensava que tinha, baseada na
ciência e tecnologia. Um livro publicado entre nós nessa época, O Progresso (Dunham
et al., 1965), compila textos de vários autores que tentavam explicitar o que é o
progresso. Um dos autores nesta antologia era muito querido do Padre Manuel Antunes,
ou não fosse ele também jesuíta e pensador: o padre francês Teilhard de Chardin. Ele
acredita no progresso humano que se insere num progresso cósmico: «o homem é o eixo
e a seta da evolução». O padre Teilhard de Chardin escreve ainda, num texto intitulado
«Reflexões sobre o progresso», lido na Embaixada de França em Pequim, em 1941,
portanto durante a Segunda Guerra Mundial:
[…] por muito amargas que tenham sido, de algum tempo a esta parte, as nossas
deceções, há, não obstante, noções científicas mais fortes que nunca para pensar que
realmente avançamos e que ainda nos é dado avançar muito, contanto que definamos
corretamente o sentido da progressão e nos resolvamos enveredar pelo bom caminho.
(Dunham et al., 1965: 72)
Muito longe da Europa e durante uma guerra cruel, Chardin acreditava no progresso.
Para ele, paleontologista, o passado poderia significar, porém, milhões de anos, de
modo que um conflito mundial na atualidade nada significava, quando comparado com
a grande escala do tempo paleontológico e cósmico. O seu passado ia até bastante longe
e o seu futuro também estava projetado para muito longe.
O Padre Manuel Antunes definiu o progresso num texto muito sintético (tinha de ser,
porque era uma entrada para a Enciclopédia Verbo) inserido no referido tomo i, vol. iv,
da Obra Completa (Antunes, 2007: 366-369), começando por esclarecer a origem da
ideia. Ele, que conhecia bem o pensamento grego, diz que entre os antigos gregos o
conceito de «progresso» não era muito visível por eles acreditarem no mito da «idade de
ouro», uma idade de esplendor que tinha ficado para trás. A ideia, diz ele, é mais
romana do que grega: o progresso consiste em ir de uma cidade, Roma, a um império, o
Império Romano. Cita um autor latino do século ii d.C., Gélio, que traduz um autor
grego não identificado, segundo o qual «a verdade é filha do tempo: Veritas filia
temporis». Aqui está uma ideia de progresso muito cara à ciência de hoje, muito
influenciada pela visão popperiana: se porfiarmos, acabaremos não tanto por alcançar a
verdade, mas sim por nos afastarmos do erro, isto é, com o tempo, os erros vão
diminuindo. Mas o Padre Manuel Antunes informa que a ideia de progresso, não sendo
muito greco-romana, é principalmente judaico-cristã: «É, porém, com a revelação
judeo-cristã que a ideia de Progresso verdadeiramente desabrocha» (Antunes, 2007:
366). E explica as razões: primeiro, como há no texto bíblico do Génesis uma criação a
partir do nada (ex nihilo), existe portanto um vazio muito atrás a partir do qual surge o
ser, e a seta do tempo inscreve-se a priori na história cósmica. Em segundo lugar: a
História não é vista «como ciclo ou repetição do idêntico, mas como projeto e caminho
para o Messias libertador» (Antunes, 2007: 366). De facto, na visão teológico-cósmica
de Chardin, Deus está no princípio e no final de tudo, é o alfa e o ómega, mas, de algum
modo, o mesmo se passa na teologia mais canónica: não é preciso aceitar a cosmologia
um pouco heterodoxa do jesuíta francês, uma vez que se encontra muito clara, no
projeto cristão, a ideia do Messias libertador: cada um após a morte vai encontrar Cristo.
E o Padre Manuel Antunes acrescenta algo que não tem sido suficientemente
enfatizado: fala das «coisas vistas, não como dominadoras do homem mas como
devendo ser por direito e progressivamente sujeitas ao mesmo homem» (Antunes, 2007:
366). Quando se fala hoje da destruição da Terra e dos problemas ecológicos associados
ao progresso tecnológico, convém recordar que, de acordo com a mensagem cristã, a
Terra é do homem. Se o homem é de Deus, a Terra é do homem, pois Deus deu a Terra
ao homem de modo a que o homem pudesse atuar na Terra a seu bel-prazer. Muitas das
modificações na Terra associadas à ideia de progresso têm por trás a mensagem de que
a Terra pode ser dominada pelo homem de acordo com um direito de origem divina.
Para conhecer a posição moderna da Igreja Católica, uma posição bem fundada na
ciência, veja-se a recente encíclica do papa Francisco sobre as alterações climáticas
globais (Francisco, 2015). Podemos, portanto, falar de uma origem religiosa do
progresso. Além do mais, foi na comunidade europeia e cristã que nasceu a ideia
moderna do progresso que nós ligamos inequivocamente à ciência. E, a este respeito, o
Padre Manuel Antunes acrescenta que:
No fundo, diz que há mesmo progresso, que ficamos sempre mais ricos do que
estávamos.
O humanismo
Portanto, ele afirma que o humanismo moderno, que assenta na ciência, é fator de
cultura (lembre-se a este respeito a questão das «duas culturas» do inglês C. P. Snow,
que surgiu em Cambridge em 1959 [cf. Snow, 1996], e que o Padre Manuel Antunes
abordou noutros escritos). E não tem dúvidas em afirmar que a ciência é um fator de
humanismo. E, defendendo a união no progresso, cita mais à frente o padre Teilhard de
Chardin, que disse «Tout ce qui monte converge». Explica o Padre Antunes:
O que é então preciso? Uma síntese. O Padre Manuel Antunes vai buscar a Terêncio a
famosa frase: «Homem sou e nada do que é humano julgo me seja estranho». E cita
Gaston Berger, um futurista francês de avó senegalesa, que morreu de acidente
automóvel em 1960 (o Padre Manuel Antunes gostava muito dos futuristas, que aliás
estavam na moda: uma outra sua referência foi outro futurista francês, Jean Fourastié),
que disse: «Tout commence par la poésie, rien ne se faît sans la technique». Será
possível a complementaridade e quiçá convergência das duas formas de humanismo? O
Padre Manuel Antunes responde com extraordinário estilo literário:
Para conjugar as duas formas de humanismo, a sua base cristã fá-lo falar do homo
mechanicus, o homem capacitado pela técnica, e do homo misericors, o homem que
ajuda o outro, que vale ao outro (no eu-outro, o eu é o outro e o outro é o eu; a solução
para a dicotomia consiste no reconhecimento de que os dois são o mesmo homem). O
homo mechanicus às vezes não parece ser o homo misericors, mas o homo mechanicus
tem de ser sempre o homo misericors. Escreve o nosso autor num texto inserto no tomo
ii da Obra Completa (Antunes, 2005: 72-82) e antes publicado em Indicadores da
Civilização:
Estaríamos a assistir ao limite do homo mechanicus, para dar lugar ao que denomina
«um processo de inversão de recuperação e humanização». Continua o Padre Manuel
Antunes mais adiante:
Pegando na misericórdia como uma das heranças do humanismo antigo, o nosso autor
considera que tinha chegado um tempo de mudança. Se calhar estamos nesse tempo,
num tempo em que se multiplicam os sinais de dúvida e de inquietação, num tempo em
que algo está a mudar, mas não sabendo bem nós ao certo o quê.
A invasão da irracionalidade
Termino com uma «profecia», muito curiosa, que o Padre Manuel Antunes fez sobre a
questão da irracionalidade. Nos anos 70, falou da invasão da irracionalidade no texto
«Maré de irracionalidade», de 22 de fevereiro de 1970 (a data poderia ser a de hoje, pois
um grande pensador consegue escrever textos que resistem ao tempo). O texto, que
começa com um tom algo violento, é provocador e literário (se há necessidade de
provocação, que ao menos tenha estilo, e este texto, tal como os outros, tem-no).
Escreve o Padre Manuel Antunes, em dois textos publicados na Brotéria (Antunes, 1970
e 1973a):
O que ele diz é que a fortaleza da racionalidade está a ser varrida por um tsunami, que
leva todas as coisas que pareciam seguras. Lembro que esse era um tempo muito
marcado pela revolta do Maio de 1968 em França e, em Portugal, pela Crise
Académica, em Coimbra, do ano seguinte. O nosso autor é claro:
«Todas as formas de racionalidade são atacadas. Não apenas a eclesial, a estatal, ou,
mais genericamente ainda, a social, mas a racionalidade filosófica, as científicas e
tecnológicas se encontram hoje sob o impacto da negação». Que não se pense que a
ciência e a tecnologia estão do lado do invasor: não, elas estão do lado dos invadidos,
porque o humanismo moderno é, para o Padre Manuel Antunes, a ciência e a tecnologia.
Logo a seguir (Antunes, 2005: 194-195), encontra-se um texto curto, datado de 19 de
outubro de 1970, intitulado «Informação – Deformação», que tem o mesmo histórico de
publicação que o anterior, no qual o Padre Manuel Antunes diz algo que nos ressoa
hoje, neste tempo de fake news, de mentiras, fraudes e manipulações:
E termina o texto afirmando que, apesar de muitos sinais alarmantes, havia lugar para
alguma esperança. Ele é um otimista tal como os cientistas são: o mundo parece perdido
e, por isso, haja alguém que o salve. Diz ele:
Em conclusão
A propósito de «ave rara», termino com uma pequena história chinesa, talvez oportuna
numa altura em que o desenvolvimento do mundo está a passar do Ocidente para o
Oriente, da Europa para a China, onde viveu o padre Teilhard de Chardin. Havia um
grande fogo numa grande floresta e umas pequenas aves iam a um lago, traziam água no
seu bico — esta história traz, portanto, literalmente água no bico — e depositavam
aquelas gotas de água no fogo. Surgiu-lhes um génio da floresta que, vendo-as,
perguntou às avezinhas: «Então não veem que essas poucas gotas de nada servem?».
Respondeu então uma ave, ainda mais sábia do que o génio: «Sim, vemos, mas é a única
coisa que podemos fazer».
Bibliografia
Francisco, P. (2015). Laudato Si’. Sobre o Cuidado da Casa Comum. Lisboa: Paulinas.
Spengler, O. (1923). Der Untergang des Abendlandes. Umrisse einer Morphologie der
Weltgeschichte. München: Beck.
Notas
1.O autor agradece a Ana Bela Nobre e José Lopes a cuidadosa revisão deste texto
2. Apesar de o autor não seguir o novo acordo ortográfico, aceitou que o mesmo fosse
aplicado ao seu texto, dado que é a norma seguida pela Imprensa da Universidade de
Coimbra.