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Ângelo
É uma das obras menos conhecidas do mestre do Renascimento, mas, passados 500
anos, mantém todo o seu poder de inquietação. Vai estar em Londres a partir de 15 de
Março, numa exposição que volta a juntar Miguel Ângelo e Sebastiano del Piombo. Por
que terá o artista desistido desta escultura?
Lucinda Canelas
1 de Março de 2017, 16:35
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Miguel Ângelo abandonou esta primeira versão do seu Cristo ressuscitado em 1516,
deixando a cabeça por fazer Alessandro Vasari/The Nationl Gallery, Londres
Estamos habituados a ver deuses e heróis clássicos sem roupa, mas uma escultura em
que Cristo surge nu em adulto, pensada para figurar numa igreja, é, no mínimo, pouco
comum. É por isso que não devemos estranhar que Jonathan Jones, crítico de arte do
diário britânico The Guardian, comece assim o texto que escreveu recentemente sobre a
primeira versão do Cristo della Minerva, de Miguel Ângelo: “Vi finalmente o pénis de
Jesus Cristo.”
O tom irónico e provocador é uma marca de Jones, que parte da escultura que o mestre
italiano terá começado por volta de 1515, para falar das suas versões que dela fez, em
especial da que ainda hoje mantém à vista os genitais do filho de Deus e que fará parte
da próxima exposição que a National Gallery de Londres dedica ao Renascimento,
Michelangelo & Sebastiano (15 de Março a 25 de Junho). Uma “obra-prima” com quase
uma tonelada.
Na segunda versão, a que está na basílica de Santa Maria sopra Minerva, uma das
principais igrejas dos dominicanos em Roma, Cristo é representado de pé, com a cabeça
voltada para o seu lado esquerdo, tem as duas mãos sobre a cruz, e numa delas segura
dois dos instrumentos do seu martírio, a vara e a esponja embebida em vinagre.
Inicialmente, também esta estátua tinha os genitais à vista mas, durante o barroco, foram
cobertos com um panejamento de bronze, um púdico véu de metal a que o crítico do
Guardian chama “bizarro” e que ainda hoje mantém. Isto porque “a crença de Miguel
Ângelo na exposição total da humanidade de Cristo é ainda demasiado moderna para a
Igreja do século XXI”, escreve Jonathan Jones.
O contrato para uma escultura em tamanho natural representando Cristo nu, com a cruz
nos braços, foi celebrado com o artista em Junho de 1514, e previa que a peça fosse
terminada num prazo de quatro anos. A obra nasceria da encomenda de Metello Vari,
que deixou o restante programa a cargo do mestre (muitas fontes referem, também, que
por trás desta escultura estão outros três mecenas, Bernardo Cencio, Mario Scappucci e
Pietro Paolo Castellano).
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A segunda versão que está ainda hoje com os genitais tapados na Igreja Santa Maria
Sopra Minerva, em Roma DR
Miguel Ângelo (1475-1564) começou, então, a trabalhar na obra, mas terá abandonado
a primeira versão quando trocou Roma por Florença, em 1516, porque o mármore de
Carrara que estava a esculpir tinha um veio negro que apanhava precisamente o rosto da
figura.
No ano seguinte, e porque Metello Vari o pressionava para que entregasse a peça, o
mestre pediu um adiantamento ao cliente e encomendou um novo bloco de pedra, que
chegaria a Florença em 1518 e em que trabalharia entre 1519 e 1520.
Dada por terminada em Março de 1521, quando Miguel Ângelo tinha 46 anos, esta
segunda versão foi apresentada ao público em Dezembro, tomando o artista a decisão de
oferecer a Metello Vari, principal encomendador, a primeira escultura (com dois metros
de altura), ainda inacabada. Vari terá ficado radiante e instalou-a nos jardins do seu
palácio romano, próximo da igreja onde estava o segundo Cristo della Minerva.
A primeira das duas esculturas, abandonada por um artista que parecia não tolerar se
não a perfeição, terá sido vendida no início do século XVII e, segundo o jornal britânico
The Telegraph, está no Mosteiro de São Vicente, em Bassano Romano, na província de
Viterbo, desde 1644. Foi aí que, em finais dos anos 1990, a historiadora de arte italiana
Irene Baldriga a localizou e a atribuiu ao mestre, escrevendo sobre a descoberta na
revista da especialidade The Burlington Magazine, em Dezembro de 2000 (The First
Version of Michelangelo's Christ for S. Maria Sopra Minerva).
Como o David
A exposição que abre a meio de Março em Londres dará agora a esta escultura pouco
conhecida – o mosteiro não é muito visitado – o palco internacional que merece.
Ao diário norte-americano The New York Times, Cleto Tuderti, padre no mosteiro
italiano, reconheceu que, ao longo de séculos, “certamente ninguém pensou que fosse
um Miguel Ângelo”, o que é bem capaz de ter garantido a sua salvaguarda (as tropas de
Napoleão saquearam a cidade no final do século XVIII, mas não tocaram nesta
escultura).
Não há como não sentir que durante anos a obra esteve esquecida, perdida, mesmo que
a atribuição ao mestre da Pietá e de Moisés pareça hoje, aos olhos dos especialistas,
evidente. Como pode a sua autoria ter sido posta em causa? Talvez por causa dos
elementos que foram feitos por outros artistas, já que a escultura foi intensamente
retrabalhada no século XVII – a maior parte da cruz e toda a cabeça, incluindo a cara,
não foram feitas pelo mestre.
Para Jonathan Jones estes elementos não são, no entanto, suficientes para desacreditar
este Cristo. A imaginação única de Miguel Ângelo está toda lá, defende, naquela nudez
rigorosa, inflexível, numa obra notável que só deixou de parte porque, ao desbastar o
mármore para esculpir a cabeça, se terá deparado com o veio negro que plantaria uma
cicatriz no rosto da figura (por regra, Miguel Ângelo começava a trabalhar as suas
esculturas a partir da base).
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O artista começou a trabalhar no seu David quando tinha 26 anos Tony
Gentile/REUTERS
Garante o crítico que o pénis e os testículos deste primeiro Cristo della Minerva fazem
lembrar os de David (1501-1504), a célebre e monumental escultura de Miguel Ângelo
que evoca o herói bíblico e que hoje faz parte da colecção da Galeria da Academia, em
Florença.
O seu corpo, como o do David que o artista começou a esculpir aos 26 anos, é um
tratado de perfeição: “Enquanto se mostra ressuscitado, Cristo exibe a dignidade e a
força de um herói clássico. Este naco sagrado tem músculos poderosos electrizando os
seus braços pujantes. O seu tronco vibra com energia e força. Ele regressou da morte
triunfante e essa vitória é visível no imenso poder do seu físico.”
Miguel Ângelo, um cristão convicto, não teria qualquer intenção de desrespeitar a figura
de Cristo ao representá-lo nu, garante Jones, muito pelo contrário. O artista tinha
grandes preocupações teológicas e terá certamente boas razões para ter decidido fazê-lo,
embora hoje não as conheçamos.
É bem provável que a apresentação da segunda versão desta escultura tenha causado
algum espanto, mas o artista, já na época um dos mais celebrados do mundo, não terá
sofrido represálias. Lembra o crítico do Guardian, aliás, que na pintura da Renascença –
época de uma “cultura livre e experimental formidável” – é frequente Jesus aparecer nu
como prova da sua humanidade. Qual é então a diferença? É que na pintura estas
representações tendem a ser de Cristo ainda bebé. Retratá-Lo “ressuscitado em toda a
sua masculinidade é mais ameaçador e, por isso, mais raro”.