Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Com efeito, Molder rejeita liminarmente a ideia do auto-retrato como motivo para a
auto-descoberta ou o auto-conhecimento. A sua arte é, fundamentalmente, uma arte da
carnação. Isto é, uma arte que encontra no ‘medium’ corpo uma maneira de produzir um
qualquer efeito de desfasamento identitário. É o próprio Molder que confidencia, em
entrevista realizada pelo fotógrafo John Coplans, publicada no livro “Luxury Bound”,
que muitas vezes não se reconhece nas suas imagens. Este não-reconhecimento lembra
um episódio de infância recordado por Delfim Sardo no seu ensaio publicado no livro
“Jorge Molder: O Espelho Duplo”: “Molder conta [num texto de 1993] que, na sua
infância, costumava mexer rapidamente os braços e as mãos em frente ao espelho,
procurando surpreender um desfasamento entre si e o seu reflexo.”
Através do corpo, da imagem do seu corpo, Molder constrói a expectativa de uma cisão,
de um corte identitário, entre o eu e o outro. É essa a potência estranha que o lugar do
corpo encerra para o filósofo francês Jean-Luc Nancy, no ensaio “Corpus”: “[o] corpo é
o estrangeiro que está ‘acolá’ (o lugar de qualquer estrangeiro) porque ele está aqui.”
Diria até que, desde a sua infância – a da sua vida como da sua arte – o corpo é sempre
um outro em Jorge Molder. Lugar de encontro e potência de desencontro. Escreve ainda
Nancy: “Um corpo é sempre ob-jectado de fora, a ‘mim’ e a outrem. Os corpos são
sempre e antes de tudo outros – assim como os outros são sempre e antes de tudo
corpos.”
“Não, não acho que um espelho possa determinar a minha singularidade. Isso é outra
questão. Mas a verdade é que produz um efeito estranho, porque descubro alguém que,
em certa medida, é um duplo. Reconheço-o. Reconheço certos traços que tenho a
certeza que me pertencem mas, ao mesmo tempo, não me reconheço no espelho ou, se
quiseres, nas imagens que produzo”, observa Molder a Coplans. Nas fotografias de
Molder, várias são as encenações em que o corpo estilhaça como vidro, partindo-se em
dois. A fotografia é duplicação, imagem de uma imagem, mas Molder aprofunda este
abismo quando constrói duplicidades no seio dessa duplicidade imanente. Constrói
personagens ante a câmara que vivem acossadas com a sua realidade de duplos. Elas
confrontam-se com reflexos em espelhos e mesmo em fotografias.
Nele, o rosto e o corpo são arenas desse combate entre a identidade e a outridade, entre
o conhecido e o desconhecido, entre a aparição e a desaparição, entre a vida e a morte.
O “corpo como arena da transformação” (Delfim Sardo em “O Espelho Duplo”). O
corpo é um outro e o outro é um lugar estranho habitado por uma inquietude de morte.
O corpo é existir para a morte, acrescenta Jean-Luc Nancy. A solenidade das
personagens de Molder é muitas vezes funérea. Elas arranjam-se para uma espécie de
aparição última, dentro da pouca luz que ainda as vai salvando das trevas absolutas.