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Nasceu, estudou Medicina e exerce-a em São Paulo, no Brasil. Ana Cláudia Quintana
Arantes tem 50 anos e há mais de 20 que se dedica à especialidade de cuidados
paliativos, sendo também médica geriatra e gerontologista. É uma das pioneiras em
paliativos no Brasil, disciplina que lecciona como professora universitária.
Em 2016, lançou no Brasil o livro A Morte É Um Dia Que Vale a Pena Viver, que
depressa se tornou best-seller, e que agora foi lançado em Portugal, pela Oficina do
Livro/Leya, e será apresentado, no Hospital da Luz, em Lisboa, na quarta-feira, dia 23
de Janeiro, por Isabel Galriça Neto, que faz o prefácio à edição portuguesa. Além de
estar na apresentação do livro, Ana Cláudia Quintana Arantes fez e fará, entre os dias 18
e 30 de Janeiro, palestras em Braga, Porto, Castelo Branco, Ponta Delgada, Faro e
Lisboa.
No seu livro e nesta entrevista ao P2, a médica apresenta a sua visão sobre cuidados
paliativos e como os ocidentais devem perder o medo da morte e quebrar o tabu sobre
ela, que impera ainda na sociedade e na própria medicina. Aponta a necessidade de os
médicos abrirem espaço no seu conhecimento para saberem acompanhar e ajudar quem
vive o seu fim de vida e não se limitarem a centrar-se apenas na cura de doenças.
Assumindo que aprendeu com a filosofia budista a ver a morte como um momento da
vida, defende a prática da compaixão, do respeito pelo outro, como base do que devem
ser os cuidados paliativos. Defensora da morte natural, rejeita o recurso a meios
artificiais de prolongamento de vida, pelo sofrimento que infligem, a não ser que seja
para cumprir um desejo explícito de quem morre. Mas, embora não pratique, não exclui
o direito à eutanásia, antes vê esta decisão como a perda da “experiência humana da
morte”, enquanto momento intenso, amoroso e apaziguador quer para quem morre quer
para as suas famílias.
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Ana Cláudia Quintana Arantes
O título do livro que agora lança em Portugal, A Morte É Um Dia Que Vale a Pena
Viver, é uma provocação deliberada?
Esse título veio a partir da última fala de uma palestra que fiz no TEDxFMUSP, onde
disse que estava muito feliz em saber que havia mais pessoas no mundo que
acreditavam que a morte era um dia que vale a pena viver. Quis que essa frase ficasse
como título do livro porque funciona como se fosse uma triagem. Só quem é capaz de
ver os dias antes da morte com felicidade, com amor, com paixão, consegue ver que a
morte faz parte desse tempo. Quem não é capaz não abre o livro.
A sua defesa do respeito pela morte parte do princípio de que saber viver é saber
morrer. Não é apenas nos últimos dias, mas deve ser uma aprendizagem. Por que
diz isso?
Porque há uma ilusão de que não falar da morte faz com que ela não aconteça. É um
medo, é um tabu, uma vergonha a respeito de algo que faz absolutamente parte da
natureza humana. Então eu digo que, se você não falar da morte, não tem problema, vai
morrer também. Mas se você falar dela nos dias que antecedem a sua morte, desde o dia
em que começou a falar dela, são dias muito mais valiosos. Você começa a olhar para
esses dias com muita importância, muito valor.
"Hoje temos uma espécie de balcanização a ocidente"
No seu livro fica perceptível, porque até é assumido, que o seu pensamento e as
suas reflexões têm influência da filosofia budista. Como chegou ao budismo?
Comecei a praticar meditação desde muito jovem. Entendi que esse estado de presença
traz essa percepção muito valiosa de vida. O estudo da medicina tibetana e chinesa traz,
para mim, muita clareza sobre o que é o processo de morte. Coisa que a medicina
ocidental não traz. O processo activo de morte é algo que é misterioso para a medicina
ocidental. O primeiro artigo que foi publicado a respeito disso é de há dois ou três anos.
Aliás, diz no livro, que durante a sua formação médica aprendeu a lidar com
doenças, não com a vida nem com a morte.
Exactamente.
Portanto, considera mesmo que a filosofia budista ensina a viver a morte de uma
forma mais consciente, mais sábia?
Penso que a filosofia budista traz essa serenidade, que o pensamento ocidental não tem.
O ocidental entra em desespero quando entra no tema da morte ou na evidência da
morte de alguém que ama. Ou, quando alguém que está gravemente doente na família,
entra em desespero. Não consegue perceber que esse espaço do adoecimento é uma
jornada, é um pedaço do caminho. Na filosofia oriental e budista, isso é parte de um
processo de entendimento do que é a vida. É um caminho de lucidez, de aprendizagem.
O Ocidente não encara isso. Tem a questão da guerra contra a doença, a guerra contra o
cancro, a guerra contra a diabetes — é sempre uma guerra. Não é possível através da
guerra ter alguém que ganha e vence. Todos perdem. Temos de encarar a morte como
um pedaço da vida e trilhar isso de uma maneira honesta, inteira, acolhida, cuidada.
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"A compaixão é um caminho natural de respeito pelo outro. Eu não o invado com a
minha perspectiva do que é uma vida boa; você diz-me como que é e eu te ajudo a viver
a vida que você quer levar"
Ana Cláudia Quintana Arantes
Muito presente na defesa que faz de cuidados paliativos está o conceito budista de
compaixão, que não é o conceito católico de compaixão. É o reconhecimento de que
os outros são movidos, como nós, pela busca de felicidade e de que é preciso
respeitar e dar espaço a essas aspirações e individuais de todos. Como é possível
fazer uma medicina paliativa, baseada neste respeito do outro, nos hospitais do
Brasil, de Portugal, do mundo ocidental?
O mundo ocidental tem uma compreensão bastante sensível, muito bonita a respeito da
compaixão. Mesmo que não acreditemos na filosofia budista, na nossa cultura, o
respeito pelo outro é o respeito pelo espaço que Deus habita; se somos todos feitos à
imagem e semelhança de Deus, o meu paciente é-o também. E o que tenho de sagrado
ofereço ao sagrado dele. A compaixão é um caminho natural de respeito pelo outro. Eu
não o invado com a minha perspectiva do que é uma vida boa, você diz-me como é e eu
te ajudo a viver a vida que você quer levar. Aí, tudo o que tenho de sagrado para te
respeitar é oferecido para que você possa se sentir bem dentro da vida que você tem e
completar a sua história. Até no contexto ocidental, o espaço da compaixão, o espaço
pelo respeito da vontade do outro é sagrado e é bem-vindo. Mas, muitas vezes, é
esquecido.
No livro, afirma que, durante a sua formação como médica no Brasil, não teve
qualquer preparação para lidar com a morte, só com a doença. Hoje, sente que a
situação mudou? Ou o seu trabalho ainda é uma gota no oceano?
Já somos uma piscininha. Nas 330 faculdades de Medicina do Brasil, cerca de 50 têm
cuidados paliativos. Existe um movimento maravilhoso dos alunos sobre paliativos. Sou
muito convidada. Quase todas as semanas vou a uma faculdade para dar uma aula a
pedido dos alunos. Vejo, com muita alegria, que o futuro nos reserva algo muito
melhor. Porque quem está estudando quer aprender. O que ainda não há é muitas
pessoas que ensinem.
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"Quando comecei a fazer cuidados paliativos há vinte e tal anos, disseram-me: 'Isso é
um jeito romântico de fracassar, porque o paciente vai morrer.' Respondi: 'Não, não é
fracasso, porque eu sei o que fazer até ao último dia de vida dele'"
Ana Cláudia Quintana Arantes
Já fiz diálise para um doente de cancro de próstata avançado, porque ele queria
conhecer a neta. Ela tinha mais três semanas de gestação e ele faleceria. Tinha um
sentido, ele queria conhecer a neta. Ele conheceu-a, o primeiro sorriso dela foi para ele
e, depois, ele disse: “Agora a minha vida está plena, não quero mais fazer diálise.”
No livro percebe-se que também é contra a sedação na fase terminal. Mas ela não é
feita porque há dor?
Na nossa medicina ocidental, a aprendizagem de intolerância ao sofrimento é muito,
muito forte. É insuportável, para o médico, a enfermeira, toda a equipa de saúde, e para
a família, ver o paciente lúcido naquela condição. Às vezes, está bem magrinho, às
vezes amarelinho, às vezes com a barriga aumentada de tamanho. Mas ele não é aquela
doença. Ele é mais do que aquilo. E se eu pergunto para o paciente: “Está tudo bem?”
Ele responde: “Estou bem Ana Cláudia, estou um pouco cansado mas estou me sentindo
bem.” Mas a filha pede: “Dr. Ana, sede o meu pai, eu não aguento ver ele assim.” Ou
então um outro médico pode dizer: “Está na hora de sedar, porque ele está a sofrer
muito.” Mas você pergunta para o paciente e ele não está a sofrer.
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A sua aposta é garantir uma morte assistida, tranquila, bem vivida. Como vê a
eutanásia?
Respeito muito quem deseja a eutanásia, porque precisamos de ter a clareza de que não
somos capazes de avaliar o fardo do que não carregamos. Se você diz que o seu
sofrimento é intolerável, eu não posso dizer que não é. Tenho de respeitar quem pede. E
respeito também quem faz. Mas eu não faço. Não sei se um dia também não vou pedir,
porque não sei como vai ser o meu processo. Não posso dizer “não, de jeito nenhum”.
Mas a eutanásia eu vejo como uma grande perda, uma grande perda de oportunidade de
você viver a sua história. Porque quando você fala da eutanásia está a falar de controlo.
Diz: “Quero morrer na minha casa, perto dos meus filhos, dos meus netos, com o
cachorro, num dia de sol maravilhoso, que seja domingo, quero que tenha passarinhos
por perto.” Eu monto a cena, construo a cena, decido que aquela cena é a correcta para a
minha morte. Mas quando você tem a morte que faz parte da sua história, você tem
oportunidade de ter a morte que faz sentido na sua vida.
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Mas quem opta pela eutanásia, a partir do momento em que é uma decisão do
próprio, individual, passa a fazer parte dessa história, não é?
A decisão faz parte da sua história, mas aquele processo é construído. Ele não aconteceu
porque ia acontecer, aconteceu porque você decidiu.
É antecipado.
É antecipado. Pode ser até que a pessoa falecesse na semana seguinte. Mas quando você
decide que é aqui e agora, está a decidir com o que sabe que é o agora. Perde a
oportunidade, perde a experiência humana da morte, que é uma experiência muito
valiosa. A experiência de saber como é. Claro, cuidado, que não é para ter dores ou falta
de ar, isso é desrespeito. Mas penso que a morte natural é uma morte que pertence à
história de todos os envolvidos, não só da pessoa que morre, que decidiu que tem de ser
assim. Morrer é um grande exercício de entrega, é o nosso maior exercício de entrega. É
uma entrega que também nos proporciona a oportunidade de também oferecer.
Começamos a vida a inspirar, recebemos o ar. E terminamos a nossa vida dando, é o
último suspiro. É uma experiência de entrega e de doação, ao mesmo tempo. Você vai e
deixa aos outros a sua história.
tp.ocilbup@adiemla.esoj.oas