Você está na página 1de 4

Agustina

Os livros de Agustina são um alimento difícil porque a transgressão sistemática dos


nossos conceitos racionais é metodicamente eficaz, substituindo- -os por uma espécie de
nudez primordial. E sai-se dos romances como de um pesadelo implacável, irónico,
terno, violento, doce, obscuro e evidente
Agustina vem cair de súbito, como uma pedra imensa e estranha, em pleno charco
neorealista.

A partir dos anos trinta as pessoas que escreviam em português, quase todas ligadas ao
Partido Comunista ou mais ou menos simpatizantes dele, inauguraram uma fase, muito
influenciada por escritores franceses e italianos sobretudo, de romance que se queria
social, iniciada talvez por Alves Redol (por quem tenho muito respeito) e Soeiro Pereira
Gomes, a que se foram juntando uma imensa quantidade de nomes como por exemplo
Fernando Namora, Manuel da Fonseca, Garibaldino de Andrade, Vergílio Ferreira,
Mário Braga, Urbano Tavares Rodrigues, Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, José
Saramago, Antunes da Silva, Augusto Abelaira, etc. porque a lista é infindável, que
escreviam histórias de operários bons e patrões maus, como resumia por troça Fernando
Assis Pacheco, que a mim, em geral, não me interessavam nada mas que interessavam
uns aos outros e eu, adolescente de treze ou catorze anos lia numa aplicação
decepcionada

(havia também José Cardoso Pires mas José Cardoso Pires, que viria a ser o meu melhor
amigo, era outra loiça)

e, paralelamente a esses, o que existia era outra corrente, protofascista ou, no mínimo,
não agressiva para a Ditadura, como por exemplo Joaquim Paço d’Arcos, Francisco
Costa, Manuel Frederico Pressler e nomes assim que o tempo varreu também, que me
interessavam ainda menos. Não era nada daquilo que eu queria, nem de uns nem de
outros, mas não existia muito mais, o que deixava a criança que fui na aflição de
encontrar uma voz diferente para a qual não tinha preparação nem experiência, na triste
necessidade de construir, de raiz, outro mundo.

O tempo foi varrendo estes autores se bem que um ou outro livro continue ainda (o
“Barranco de Cegos”, meia dúzia de contos de Manuel da Fonseca, também bom amigo
meu, pouco mais) e julgo que deles quase nada ficará. Mas nos anos 40 e 50 eram
extremamente populares, apoiados numa crítica simpatizante do Partido Comunista, ou
no mínimo não hostil, que os incensava com exuberância. E eis que de súbito surge no
meio disto o primeiro livro de uma mulher chamada Agustina Bessa-Luís, que nada
tinha a ver com nenhum destes grupos. Alimentada por Camilo (de quem não sou
entusiasta) que por sua vez bebeu em Filinto Elísio (conheço mal mas o grande Bocage
apreciava-o muito) aparece com uma prosa completamente diferente, completamente
nova, rica, quase barroca, inteiramente inovadora, aguda, inteligente, irónica,
riquíssima, surgida do nada (tirando o seu bocadinho de Camilo), de um talento
desmedido. Claro que isto não se perdoa, os dois melhores críticos da época, Óscar
Lopes hesitou e António José Saraiva leu com entusiasmo, e Agustina foi aumentando a
sua obra, segundo regras que não existiam antes dela. As suas personagens não eram
bonecos vestidos de ideias que em lugar de pensarem os sentimentos eram pensadas por
eles, usava nexos afectivos, não racionais, as suas obras não obedeciam a uma
ordenação lógico-discursiva, obedeciam a uma tumultuosa ordenação do caos, a
inteligência não era apanágio do autor, era uma característica da escrita, no sentido em
que as palavras solucionavam a tessitura de acordo com uma implacável lógica interna,
não nos conduzia a parte nenhuma, mergulhava-nos em nós mesmos dando-nos a
conhecer o nosso caos interior, descodificando-o e mostrando-nos a sua complexa
simplicidade

(parece um paradoxo mas não é)

e construiu uma obra única de catalogação do mundo, uma aprendizagem das luzes e
das trevas da qual saímos como quem desperta de um sonho, devorados pela prosa,
reduzidos às cinzas de um fogo que nos devolve inteiros a nós mesmos. Aprende-se
com ela como as trevas são claras e como tudo é excepcional. Os livros de Agustina são
um alimento difícil porque a transgressão sistemática dos nossos conceitos racionais é
metodicamente eficaz, substituindo-os por uma espécie de nudez primordial. E sai-se
dos romances como de um pesadelo implacável, irónico, terno, violento, doce, obscuro
e evidente. Ou seja estivemos a ler uma escritora do tamanho de George Eliot ou Jane
Austen. E podemos dar graças a Deus de o seu idioma ser o nosso.

E agora meia dúzia de palavras apenas acerca da Mulher. Gostávamos muito um do


outro, eu adorava o seu humor, a ironia da sua lucidez, a sua divertida sabedoria, os seus
julgamentos implacáveis.

Uma ocasião disse-me:

– Dou-me tão bem com o meu marido que nos deviam chamar Casal Garcia. Mas tu és
lindo, miúdo, e eu devia-me ter casado contigo ou com o Camilo.

Claro que estava a brincar: ela adorava ser metade do Casal Garcia, e a harmonia dessas
duas metades comovia-me sempre, como me comoveu uma carta em que, comentando
um livro meu, escreveu: “se eu usasse chapéu alto, e devia usar, tirava-o num rasgado
gesto”.

E como sabia o que valia não atacava ninguém. Uma grande Senhora. Uma grande
Escritora. Agustina, sabe, não sei de qual das duas gosto mais. Se pudesse escolher
ficava com ambas. E os seus livros estão vivos: que mais pode desejar? Deixe-me tornar
a beijar, como sempre fazia ao encontrá-la, a sua mão

(Crónica publicada na VISÃO 1265, de 1 de junho de 2017)

Você também pode gostar