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O deus míope de Sloterdijk

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Discernir as muitas vozes e se decidir por Jesus final



30 Novembro 2018

Peter Sloterdijk ficou famoso na Alemanha em 1983, quando publicou a “Crítica da


razão cínica” [...]. Sua obra foi objeto de polêmicas, especialmente depois de uma
conferência em 1999, em que ele parecia sustentar que as manipulações genéticas, no
futuro, poderão, talvez, ser o melhor modo para alcançar os resultados que o humanismo
tradicional remetia aos frutos da educação.

O comentário é de Marco Rizzi, publicada no caderno La Lettura, do jornal Corriere


della Sera, 14-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Em termos gerais, a intenção fundamental de Sloterdijk consiste em uma revisitação do


itinerário filosófico do Ocidente, a cuja metafísica ele atribui uma natureza
substancialmente totalitária e globalizante. Segundo ele, o projeto emancipatório da
modernidade e, em particular, do Iluminismo também se resolve, em evidente
contradição consigo mesmo, na exaltação de um progresso cuja única mensurabilidade
se reduziu ao lucro econômico.

Em tal projeto, a análise crítica da religião esteve no centro de inúmeros escritos de


Sloterdijk, em particular “O furor de Deus” (2008). Agora, aparece pela editora
Cortina uma coletânea de outros artigos, escritos entre 1993 e 2017, que, desde o título,
Dopo Dio [Depois de Deus], giram em torno do célebre diagnóstico nietzschiano
segundo o qual “Deus está morto”.
Mas, para Sloterdijk, o crepúsculo dos deuses celebrado por Richard Wagner no
rastro de Friedrich Nietzsche se transforma necessariamente no crepúsculo da
civilização, pelo menos como a conhecemos: nos últimos três séculos, a criatividade
humana foi capaz de mudar o mundo mais do que aconteceu em milhões de anos de
evolução natural, secularizando, assim o mundo, não mais criado por Deus.

Em particular, as ciências cognitivas e a inteligência artificial determinaram o declínio


da “alma” – entendida como a mente, a inteligência ou como quer que se queira indicar
a subjetividade criadora do ser humano – em favor de um processo em que o
desempenho do espírito se transfere para as máquinas e a inteligência artificial.

Porém, a visão de Sloterdijk não parece determinista ou acrítica. Naquele que talvez
seja o capítulo mais intrigante do livro, “O bastardo de Deus: o corte de Jesus”, relê-
se a paradoxal condição deste último: seu nascimento particular, se quisermos, a sua
condição de filho ilegítimo sobre esta Terra, coloca-o fora da lógica de pertencimento
própria da descendência humana, em favor de uma liberdade radical.

A anulação dos pais terrestres (Mt 10, 37: “Quem ama seu pai ou mãe mais do que a
mim, não é digno de mim”), em nome de um Pai celeste totalmente estranho às lógicas
deste mundo (Mt 12, 50: “Todo aquele que faz a vontade do meu Pai que está no céu,
esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”), no tempo da secularização completa,
torna-se para Sloterdijk a figura da irreprimível dignidade individual: “Na época
‘depois de Cristo’, a nenhum ser humano pode-se negar o direito de viver a própria vida
como bastardo de Jesus. Um Jordão se encontra por toda a parte. Em um lugar qualquer,
um ser humano pode, ao sair da água, ouvir uma voz que vem do alto e que diz que este
é o seu filho predileto, no qual ele mesmo, o Altíssimo, se comprouve”.

Não faltam no livro os diagnósticos sobre a condição atual das religiões históricas. Em
geral, Sloterdijk considera que elas têm um caráter residual; os fenômenos mais
vistosos de retorno ao sagrado, como as diversas formas de integralismo, também estão
destinados a desaparecer. Assim como o Novo se adicionou ao Antigo Testamento e o
superou, agora é necessário – ou talvez inevitável, alinhando-se à visão de Sloterdijk –
redigir o “Testamento Mais Novo”, que assuma e confirme aspectos dos anteriores,
mas, ao mesmo tempo, oblitere outros. Nele, deve-se recolher aquilo que o conjunto das
diversas culturas não deve se esquecer, se pretende prosseguir sob o signo de uma
civilização superior.

Mas, para além do aparente ecumenismo, a imagem revela a sua matriz cristã,
drasticamente secularizada pelo processo histórico dos últimos dois séculos: por trás da
já tênue superfície religiosa que o reveste, o “Testamento Mais Novo” não narra mais
Deus e a sua revelação, mas sim os direitos humanos, a ciência e as artes que constituem
o produto mais alto de uma comunidade que não se define mais como Igreja, mas se
abre a todos aqueles que estão dispostos a criar, conhecer e aprender.

Um exemplo significativo para entender o que Sloterdijk quer dizer, é dado pela sua
análise do protestantismo (na realidade, ele se refere às Igrejas históricas luteranas), que
representou o início da modernidade, mas já se esgotou na sua parábola e está
impossibilitado de entrar “em relação com a atmosfera fundamental dos sentimentos
atuais ligados ao mundo e à vida”.
Emerge aqui o limite da perspectiva de Sloterdijk sobre o objeto específico e, mais em
geral, do seu esforço intelectual: a compreensão ocidental, europeia, senão até alemã, da
história da humanidade (e do presente, que seria o seu inevitável produto) traz
necessariamente consigo uma capacidade preditiva à prova de negação?

Certamente, Sloterdijk não confia ingenuamente nos “destinos magníficos e


progressivos”, mas justamente as histórias das metamorfoses mais vitais da tradição
protestante, as Igrejas e os grupos pentecostais e evangélicos, a sua difusão e o seu
sucesso em nível global sugerem que se olha para o mundo também a partir de
horizontes mais descentralizados: no fundo, o Jordão do batismo de Jesus encontrava-
se às margens da primeira globalização, a do Império Romano.

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