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30 Novembro 2018
Porém, a visão de Sloterdijk não parece determinista ou acrítica. Naquele que talvez
seja o capítulo mais intrigante do livro, “O bastardo de Deus: o corte de Jesus”, relê-
se a paradoxal condição deste último: seu nascimento particular, se quisermos, a sua
condição de filho ilegítimo sobre esta Terra, coloca-o fora da lógica de pertencimento
própria da descendência humana, em favor de uma liberdade radical.
A anulação dos pais terrestres (Mt 10, 37: “Quem ama seu pai ou mãe mais do que a
mim, não é digno de mim”), em nome de um Pai celeste totalmente estranho às lógicas
deste mundo (Mt 12, 50: “Todo aquele que faz a vontade do meu Pai que está no céu,
esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”), no tempo da secularização completa,
torna-se para Sloterdijk a figura da irreprimível dignidade individual: “Na época
‘depois de Cristo’, a nenhum ser humano pode-se negar o direito de viver a própria vida
como bastardo de Jesus. Um Jordão se encontra por toda a parte. Em um lugar qualquer,
um ser humano pode, ao sair da água, ouvir uma voz que vem do alto e que diz que este
é o seu filho predileto, no qual ele mesmo, o Altíssimo, se comprouve”.
Não faltam no livro os diagnósticos sobre a condição atual das religiões históricas. Em
geral, Sloterdijk considera que elas têm um caráter residual; os fenômenos mais
vistosos de retorno ao sagrado, como as diversas formas de integralismo, também estão
destinados a desaparecer. Assim como o Novo se adicionou ao Antigo Testamento e o
superou, agora é necessário – ou talvez inevitável, alinhando-se à visão de Sloterdijk –
redigir o “Testamento Mais Novo”, que assuma e confirme aspectos dos anteriores,
mas, ao mesmo tempo, oblitere outros. Nele, deve-se recolher aquilo que o conjunto das
diversas culturas não deve se esquecer, se pretende prosseguir sob o signo de uma
civilização superior.
Mas, para além do aparente ecumenismo, a imagem revela a sua matriz cristã,
drasticamente secularizada pelo processo histórico dos últimos dois séculos: por trás da
já tênue superfície religiosa que o reveste, o “Testamento Mais Novo” não narra mais
Deus e a sua revelação, mas sim os direitos humanos, a ciência e as artes que constituem
o produto mais alto de uma comunidade que não se define mais como Igreja, mas se
abre a todos aqueles que estão dispostos a criar, conhecer e aprender.
Um exemplo significativo para entender o que Sloterdijk quer dizer, é dado pela sua
análise do protestantismo (na realidade, ele se refere às Igrejas históricas luteranas), que
representou o início da modernidade, mas já se esgotou na sua parábola e está
impossibilitado de entrar “em relação com a atmosfera fundamental dos sentimentos
atuais ligados ao mundo e à vida”.
Emerge aqui o limite da perspectiva de Sloterdijk sobre o objeto específico e, mais em
geral, do seu esforço intelectual: a compreensão ocidental, europeia, senão até alemã, da
história da humanidade (e do presente, que seria o seu inevitável produto) traz
necessariamente consigo uma capacidade preditiva à prova de negação?