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A dimensão ética na educação para a saúde 1

The ethical dimension in health education

Patrick Paul
Professor associado – HDR (Habilitado a Dirigir Pesquisa em Ter-
Resumo
ceiro Ciclo) em Ciências da Educação, Universidade François A ética, como julgamento de apreciação das condutas
Rabelais, Tours-França.
positivas e negativas, tanto no que diz respeito ao usu-
E-mail: docppaul@wanadoo.fr
ário como ao profissional, coloca de início a proble-
1 Tradução: Aparecida Magali de Souza Alvarez, Mestre e Douto- mática do desejo e do conhecimento. A educação para
ra em Saúde Pública, Pós- doutoranda da Faculdade de Saúde a saúde, através dos três modelos classicamente refe-
Pública/USP. E-mail: apmagali@terra.com.br ridos da saúde positiva, da saúde negativa e da saúde
Revisão da tradução: Américo Sommerman, Mestre em Ciências
global, vai interrogar de variadas maneiras o posicio-
da Educação pela Universidade Nova de Lisboa, Coordenador
Adjunto de Publicação do Centro de Educação Transdisciplinar namento ético em função dos pontos de vista diferen-
- CETRANS. E-mail: americo@cetrans.com.br tes fortemente ligados às representações sociais.
Além disso, o questionamento ético da saúde inscre-
ve-se também naquele, mais largo, da filosofia da edu-
cação entre praxis e poïesis. Mas ele impõe também a
aceitação do acidente como imperativo que valoriza o
erro, com a introdução da complexidade vindo quebrar
o dogma das certezas. Reunir as diferentes facetas da
saúde e de sua educação sugere então, finalmente, que
tomar cuidado é viver o mais autenticamente possí-
vel, com o educar para a saúde significando formar e
formar-se para a autenticidade.
Palavras-chave: Saúde; Epistemologia da Saúde; Edu-
cação para a saúde; Filosofia da Saúde; Saúde Global;
A Saúde como autenticidade.

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Abstract Abordar o tema da ética no vasto campo da educação
para a saúde, que, além do mais, está fora das aborda-
Ethics, as a value judgement about positive and nega- gens concretas mas, por vezes divergentes, que assen-
tive attitudes regarding the users as well as the pro- tam suas práticas, não é coisa fácil. Desenvolveremos,
fessional, raises at the onset the issue of desire and portanto, a seguir, alguns esboços que demandarão
knowledge. Through the three models traditionally eventualmente desdobramentos em quadros mais es-
referred to - positive health, negative health and glo- pecíficos.
bal health - health education will question the ethical Como falar de ética? Essa palavra, que para Pascal
position in differing ways, according to points of view exprime o “trabalhar para o bem pensar”, poderia su-
which vary with and are closely linked to socially mariamente definir-se como “julgamento da aprecia-
biased representations. Moreover, the ethical ques- ção sobre o bem e o mal”. Esta definição coloca imedi-
tioning on health also falls within the broader scope atamente, ao menos na cultura ocidental, uma dupla
of education philosophy, between praxis and poiesis. problemática. Mais precisamente, as noções do bem
But it also implies accepting the accident as a necessity e do mal – da referência bíblica – evocam o fruto da
that gives value to error, the introduction of comple- árvore do conhecimento. Ademais, sabemos das rela-
xity then breaking the dogma of certainty. Putting ções desse fruto proibido – e no entanto consumido –
together the various dimensions of health and health com o desejo e a tentação, manifestados sob a forma
education seems to imply that, all things considered, da serpente e instaurando, em suas consequências, a
taking care means living as authentically as possible, manifestação de diferentes lugares no ser, aqueles do
health education thus meaning training others and paraíso e do exílio existencial, por exemplo. Ética,
oneself to authenticity. problemáticas da cognição e do desejo aparecem aqui
Keywords: Health, Epistemology of Health; Health associados : a questão da ética tornando-se aquela do
Education; Philosophy of Health; Global Health; conhecimento e do desejo de si, em vários níveis, e do
Health as authenticity encaminhamento que permite lá chegar que aponta,
ao menos nesse mito, o agente ativo sob a figura de
Eva que nós poderíamos compreender2 como o outro
“lado” do si-mesmo – de alguma forma nosso lado som-
bra – mas, também, nossa relação com a alteridade,
com o desejo do outro, esses dois aspectos aparecen-
do como indispensáveis para o processo cognitivo. Daí
decorrem diferentes interrogações: aquela dos alimen-
tos aptos à dinamizar cada um desses lugares, neces-
sariamente em contradição uns com os outros, de on-
de se constroi a ontologia, com o bem e o mal tornan-
do-se categorias identificáveis mas submetidas à va-
riabilidade segundo o nível concernido; aquela ainda,
sob a aparência de Adão e Eva, que interpela as rela-
ções do Mesmo e do Outro. O conjunto desses pontos
deverá participar, ao menos indiretamente, de nosso
questionamento ético sobre a saúde e a problemática
de sua educação, cujas finalidades - nós o colocamos
de saída - reenviam à elaboração de um “caminhar em
direção a si-mesmo”. Se todo ato de conhecimento, sob
as duas faces do bem-estar e da doença, sugere de iní-
cio um posicionamento ético, talvez importe menos

2 Pela etimologia interposta.

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saber que compreender, menos compreender que se los, muitas vezes diferentes, que nos permitem pro-
deixar surpreender afim de reconhecer o outro em sua blematizar as situações difíceis mas que não repou-
singularidade e de reconhecer-se - a si - em sua alteri- sam sobre os mesmos valores (por exemplo, o modelo
dade3. Não se trata mais, então, de reproduzir o mes- da saúde comunitária)? Como limites e insucessos
mo pela imitação dos valores socialmente validados, podem interrogar a legitimidade das intervenções se
mas sim de reconhecer aquilo que, para cada um, em nós refutamos todo questionamento? Entre injunções
sua singularidade, constitui seu “bem” e seu “mal”, muito ligadas à realização e ao acompanhamento de
indissociáveis de seu vir a ser. O bem, desde então, programas de educação de um lado e do outro as difi-
não é mais categoria universal, mas interação não- culdades inerentes aos não-ditos, ao encontro do ínti-
dual entre universalidade e singularidade4 no reconhe- mo, da sombra, do tabu, ou ainda, face a outras repre-
cimento de si. Quanto ao mal, ele não é mais o inimi- sentações da vida e de seu sentido instala-se uma de-
go à ser caçado ou a ser aniquilado mas o indicador fasagem que importa reconhecer para poder desenvol-
inverso do caminho para si. ver um sistema de educação para a saúde que seja o
A educação para a saúde faz referência, desde 1986 mais adequado possível às populações concernidas.
e a carta de Ottawa, às ações que, na vida de um indi- O acidente, como imperativo cognitivo, deve ser reco-
víduo, de um grupo ou de uma coletividade podem mo- nhecido se desejamos evitar as armadilhas do meca-
dificar as crenças, as atitudes e os comportamentos à nicismo humano, que interroga, por sua vez, a rela-
respeito de saúde. Esta definição, ainda que simples e ção com a autenticidade.
compreensível, também não deixa de colocar proble-
mas. O primeiro está ligado à definição da palavra
Como Definir a Saúde?
saúde. Voltaremos a essa questão. O segundo, no qua-
dro largo de uma filosofia da educação, diz respeito - A educação para a saúde, como instrumento a serviço
no postulado enunciado - à questão das representa- da saúde, comporta duas subdivisões: a prevenção das
ções sociais: o indivíduo ou o grupo possuem crenças doenças e a promoção da saúde. Ao caminho de pre-
e comportamentos suscetíveis de prejudicar sua saú- venção da patologia associa-se, no eixo da doença, a
de e, no caso afirmativo, a partir de qual posiciona- educação terapêutica do paciente. A promoção da saú-
mento podemos confirmar essa afirmação? A partir de sugere também, mas no eixo da saúde, uma educa-
de qual direito podemos querer modificar as atitudes ção postulando que a manutenção de uma boa saúde
e as maneiras de ser de uma pessoa que, geralmente, não é uma coisa que ocorre por si só. Três modelos,
nada nos pede? Da mesma forma e por efeito espelho, associados a três abordagens diferentes da saúde, hoje
como podemos estar certos de não estarmos enunci- se justapõem: o da saúde positiva, referindo-se ao bem
ando um certo número de opiniões ou de condiciona- estar que importa preservar; o da saúde negativa, para
mentos socioculturais ligados, certamente, a valores o qual a referência é a doença que convém evitar; por
comunitários que se proclamam como científicos mas fim, o modelo da saúde global, que constata a comple-
que não correspondem necessariamente aos proble- xidade dos determinantes biológicos, psicológicos,
mas levantados? Como, particularmente, estar livre socioculturais interferindo na saúde ou na doença.
das pressões político-econômicas e ideológicas que, Devemos observar, ainda, que o modelo da saúde ne-
através de imperativos por vezes obscuros, tentam gativa, muito ligado ao paradigma biomédico, é domi-
intervir sobre o comportamento das populações? Em nante em nossa cultura. Primeiramente, conforme os
particular, a orientação normativa, inicialmente de- valores estabelecidos na pós-modernidade, retomados
finida pelo paradigma bio-medical dominante e pelos pela definição da OMS, a busca de uma boa saúde é
que decidem é a expressão de um conhecimento fun- sinônimo de busca de bem-estar (Leselbaum, 1998).
damentado, a manifestação de um poder, a valoriza- Esta definição pode aparecer conjuntural, em corres-
ção de uma solidariedade? Não existem outros mode- pondência com certos tipos de sociedade valorizando

3 Ver, por exemplo, a esse propósito, os trabalhos de Ricoeur ou de Lévinas.


4 Esta interação, no entanto, não é uma atitude natural. Ela se inscreve no imperativo de uma mudança paradigmática, impondo sair do
Mesmo (holismo) como do Outro (dualismo) a fim de inscrever-se em uma epistemologia das pontes e das relações.

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o individualimo e o consumo. Para Fassin (2001) ela sitivos pela pessoa, mesmo se há marginalização
corresponde à versão sanitária da busca da felicida- (sickness). A postura intelectual própria da antropo-
de, da qual sabemos a importância cultural em nos- logia médica e de alguns campos das ciências da edu-
sas sociedades modernas. A saúde, tornando-se um cação aparece aqui de suma importância, com a for-
objeto socialmente elaborado, afirma-se então como mação devendo permitir a definição de um novo pa-
“analisador do social”, tornando-se uma “linguagem pel do educador para a saúde, muito mais largo e que
social” que nos interroga sobre a noção de normas e transformaria a função de “expert” em função de
de normalidade e sobre os fundamentos das medidas acompanhamento sem perder responsabilidades e
tomadas em seu nome. O bem-estar - como definição competências em caso de impasses das intervenções
da saúde - não é, no entanto, o critério absoluto: fu- ou extravios sanitários graves. De maneira ampla, a
mar, beber, comer, ter relações sexuais plenas, traba- descoberta da complexidade dos fatos sociais e das
lhar, repousar, podem ser analisados como indicado- representações nas quais o atores sociais se inscre-
res do prazer e da felicidade. Os mesmos atos, nós o vem deveria ajudar a tomar distância, o perigo resi-
sabemos, também podem destruir. A gestão racional dindo nas formações muito fragmentadas e muito dis-
dos riscos (Massé, 2001) supõe, portanto, uma refle- ciplinares. Esta última visão, demasiadamente unila-
xão situada além das normas coletivas sobre a felici- teral e simplificada, torna difícil a compreensão dos
dade, a fim de determinar o que pode operar como fa- comportamentos e das possibilidades de transforma-
tores de resiliência ou de patogenia, com essas cate- ção das populações (Benoist, 2003).
gorias não apresentando nenhuma fronteira estável Nós assistimos, portanto, hoje, a uma mudança de
entre elas, ainda mais que nós não somos todos iguais direção atestada por uma tentativa de transformação
face aos mesmos riscos ( Saldmann, 1997). paradigmática da noção de saúde. Na medida em que
Por outro lado, a responsabilidade do educador existe hoje uma grande dificuldade para definir-se a
para a saúde consiste apenas em combater o mal – atu- saúde, com seus indicadores operando de modo com-
al ou potencial – ou, sob forma de prevenção, em valo- plexo, paradoxal, dialético, impõe-se a abertura às
rizar a saúde como ausência de doença? Afirmar tal abordagens não reducionistas das quais é testemunha
papel presumiria uma boa apreensão das questões de o conceito de saúde global. O praticante da educação
saúde e de doença, o que não é simples na prática, a para a saúde encontra-se aqui face à situação parado-
complexidade crescente do mundo que nos envolve xal de dever respeitar os discursos oficiais, que visam
nos faz relembrar disso a cada instante. a promover uma certa moralidade protegendo os va-
Ademais, se a saúde opõe-se à doença, na medida lores coletivos, apoiando-se sobre o modelo da saúde
em que esta última se declina, segundo a antropolo- negativa originário do paradigma biomédico, e, ao
gia médica, em três categorias (Massé, 1995) - a doen- mesmo tempo, de reconhecer os fatores individuais e
ça biológica (disease), subjetiva e pessoal (illness), coletivos que engajam a singularidade das populações
enfim social (sickness) - podemos daí deduzir que o concernidas como, por exemplo, o modelo de saúde
estado de saúde corresponde às mesmas três catego- comunitária pode testemunhá-lo. Mas a essa dificul-
rias consideradas segundo sua contra-face positiva. dade se acrescenta a realidade dos fatores ambientais,
Portanto, a saúde é tanto física quanto moral ou soci- das diversas poluições, particularmente bem desen-
al, essa pluralidade - que temos que levar em conta - volvida nos modelos ecológicos. Daí então a importân-
devendo ser respeitada nos desafios ligados à educa- cia de uma metodologia dos cruzamentos, da comple-
ção para a saúde. Assim, tal conduta aditiva pode re- xidade e dos paradoxos tal como nós desenvolvemos
velar-se negativa para a saúde biológica (disease), mas graças à transdisciplinaridade (Paul, 2003; Note de
ela pode ser vivida positivamente em termos de synthèse H.D.R, 2005). Um aprofundamento epistemo-
vivência pessoal, abrindo, por exemplo, o quadro da lógico e uma mudança paradigmática se impõem se
subjetividade pessoal para uma visão ampliada desejamos poder articular e hierarquizar as interven-
(illness), como ela pode, certamente, estigmatizar, ções, colocando em paralelo a questão da ontologia
mas significar também a adesão a um grupo de per- que nós introduzimos – na seqüência de Platão ou
tencimento portador de valores percebidos como po- Buber - em vários níveis, supondo a noção de percur-

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so cognitivo e de transformação5. Se a saúde se concebe mais como recurso que como
Por outro lado, se a saúde se define em sua relação meta, em relação com um projeto de vida, todo o pro-
à doença, como sendo sua ausência, instaura-se na- blema reside no sentido que damos à própria vida e,
turalmente uma dialética do bem e do mal, que não é portanto, à definição dos desejos associados, em pri-
sem relação com a noção de ética. Esta última, nós já meiro lugar, às representações que temos dela. Há aí
vimos, poderia com efeito definir-se como a ciência que desejo de si, de conhecer a si-mesmo, desejo de reco-
tem como objeto o julgamento da apreciação, uma vez nhecimento do outro ou desejo de posse, de consumo
que ele se aplica à distinção do bem e do mal. O cami- de objetos? Para retomar Platão no Banquete (185b-
nho ético se empenha em garantir, nos diz R. Misrahi, 186d), nós somos animados por um eros uraniano,
a maior alegria possível para o maior número possível celeste e essencial, ou por um eros pandemiano, po-
de indivíduos. A saúde participa dessa felicidade - dife- pular e existencial? A ética torna-se, então, retoman-
rente em nossa apreciação do bem-estar abordado pre- do Lévinas, o que permite a avaliação da relação com
viamente - sob certas condições. Se isto é assim, é em o outro e com as coisas apontando - pelo pretexto das
razão da própria estrutura do ser humano como unida- representações - as interações do Mesmo e do Outro
de viva tanto corporal como espiritual. Esta, como or- por intermédio do bem e do mal.
ganização biológica complexa e determinada deixa
transparecer um sujeito potencialmente livre e
indeterminado. A ética sugere, então, em sua relação
Ética, Representações Sociais e In-
com a felicidade, a capacidade dada ao sujeito de ir em teracionismo
direção à sua própria satisfação, com essa realização
do desejo essencial impondo uma reflexão e uma tem- A questão da educação para a saúde levanta a questão
perança entre dois polos contraditórios afim de tornar das representações sociais, que lhe são necessaria-
compatíveis o seu próprio desejo, o desejo do outro e mente associadas. Estas, em psicologia social, são
todas as necessidades e condições da vida humana. definidas como a resultante de dois imperativos mui-
O que a prática persegue não é tanto a saúde como tas vezes opostos ligados às espontaneidades indivi-
a alegria, ou a saúde em vista da plenitude6. Esse duais e às imposições contextuais e ambientais. Es-
questionamento está na base das dificuldades encon- sas idéias são, portanto, ao mesmo tempo partilhadas
tradas no acompanhamento e na educação terapêuti- - porque coletivas e sociais - mas, também, vividas em
ca: para que serve o cuidar-se, o restringir-se, se não um modo particular e singular devido às diferenças
há nenhuma alegria nessas finalidades? O percurso individuais. Essas representações são, certamente,
normalizador deve tornar-se a condição à felicidade. compostas de informações ligadas, por exemplo, ao
Ele não pode ser um objetivo em si-mesmo, nós esque- saber científico, mas elas repousam também sobre os
cemos disso constantemente. Inversamente e parado- julgamentos, as opiniões, as crenças ligadas à cultu-
xalmente, a doença não impede sempre a alegria de ra. Além do seu interesse como códigos que permitem
viver. A intenção do cuidado e da prevenção consiste, classificar, designar, comunicar, põe-se a questão de
então, no final das contas, em dar ou devolver ao sujei- seu papel como sistema de expectativa do comporta-
to sua capacidade de dispor de forças que o definem mento dos outros: toda resposta do outro é filtrada
como sujeito e que lhe permitem desdobrar-se, por si em relação à correspondência com o esquema espera-
mesmo, numa existência significativa. Se a saúde fos- do, com a adequação classificando a resposta como
se uma meta, o indivíduo seria reduzido ao estatuto “normal”, a inadequação qualificando-a como “anor-
de objeto mecânico. Mas o humano não é uma coisa, mal”. Essas representações são, portanto, ao mesmo
com a saúde tornando-se o meio de organizar sua vida tempo normalisadoras e justificadoras, havendo o
da maneira mais otimizada possível para atender aos problema que as referências que lhes servem de base
projetos desejados. não podem pretender à verdade, inclusive ao saber

5 Nós não podemos dissociar o ato da educação para a saúde ou de cuidado da questão do sentido, intimamente correlacionada à ques-
tão identitária e ao tema visado dentro de uma abordagem hermenêutica, sobre vários níveis.
6 Haveria aqui conformidade com a carta de Ottawa que apreende a saúde como recurso, possibilidade, e não como fim em si mesma

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científico. Desde que são atribuídas aos outros as con- reconsiderar o laço social que constrói as relações
dutas esperadas, obriga-se a um papel imposto ante- entre profissional e particular, a fim de entrever um
cipadamente e atribui-se ao desvio todo o afastamen- acompanhamento que modifica o exercício do cuida-
to da atitude desejada, legitimando-se a informação do e sua educação.
que possuímos sem recolocá-la em questão. A exclu- Todo ser humano possui personalidades múltiplas
são social apresenta, portanto, uma eficácia social que e contraditórias. Se a complexidade faz parte da rea-
consiste em manter a coesão de um grupo estigmati- lidade sanitária ou educativa, todo discurso formata-
zando a diferença daqueles que dele não fazem parte: do ou normalizador torna-se redutor. É importante,
a fratura social é o agente de sua coesão (Rouzel, portanto, reconhecer a polissemia humana, variável
2002). Paralelamente, a corrente do interacionismo de uma cultura ou de uma pessoa a outra, de um mo-
simbólico, saído da Escola de Chicago, empenhou-se mento a outro, e encontrar nossas contradiçõe, com a
em demonstrar como os excluídos recompõem para fecundidade das brechas cognitivas postulando a
eles mesmos ¯ através da decomposição social ¯ atitu- emergência de um “entre-dois” (espaço entre dois ex-
des de desvio que poderão, eventualmente, constituir tremos) além das oposiões.
uma nova ordem social alternativa e invisível exterior-
mente, mas que vai apontar a estigmatização e, por
Ética e Filosofia da Educação
falta de organisação legal, a anomia.
Reconhecer no outro suas próprias competência e O questionamento ético da educação para a saúde se
seu próprio saber, como ato de parceria, supõe ao inscreve, naturalmente, no questionamento da filoso-
mesmo tempo reconhecer-se, reconhecer o outro em fia da educação que impõe, em primeiro lugar, um ir
sua singularidade mas, também, de maneira mais além do quadro da opinião, da legitimidade, da ideo-
indutiva, determinar o projeto e definir o contrato - logia do tipo cientificista, tecnicista, espiritualista.
tácito ou efetivo - que liga as partes. Esse processo A coisas não são verdadeiras porque elas são legiti-
visa a aceitar o outro em sua diferença como ator au- madas pela opinião, a ciência, a técnica ou a religião.
tônomo e não como caso a normalisar. Isso supõe as- O questionamento ético começa quando nos interro-
sumir o risco da relação. gamos sobre essas supostas legitimidades. Esse ques-
Se são as interações (Queiroz et cols., 1994) que tionamento dos valores que nos fundamentam permi-
constroem os fatos sociais como as atitudes desvian- te ultrapassar o quadro redutor e deformado das opi-
tes, a exclusão ou os fracassos escolares, é na dinâmi- niões e faz avançar o conhecimento.
ca das trocas entre os diferentes atores que o sentido A exigência filosófica em educação significa a
dado às diversas ações pode modificar-se e que os pon- manutenção da abertura do sentido em relação aos
tos de vista recíprocos vão modificar o conjunto dos saberes especialistas, como ela implica no questiona-
comportamentos, incluindo-se aí os saberes eruditos. mento da prática automatizada. Suas funções de elu-
Assim Goffman (1975) compreende por interação um cidação e de axiologia repousam sobre uma aborda-
face à face pelo qual a influência recíproca dos parcei- gem “indutiva” dos fatos centrada na pessoa e não nu-
ros se exerce sobre suas ações respectivas o que, regu- ma tomada de posição ou de comportamentos que con-
larmente, conduz a saber reconhecer e a respeitar o sistiria em dever dizer a verdade sobre os objetos
jogo dos atores com o sistema dominante, com o afas- estudados: a filosofia só é possível como fenomeno-
tamento das regras tendo freqüentemente o objetivo logia (Fabre, 1999). Trata-se, então, mais que a impo-
salvador face aos aprisionamentos ou às exclusões sição de valores, de fornecer os meios de fazer as es-
desenvolvidas pelas organizações. Esta atitude supõe colhas dentro do respeito da liberdade, o que supõe o
que o profissional aceite gerenciar a incerteza e fazer desenvolvimento de métodos mais participativos e
reajustes freqüentes, conciliando as pressões e as lógi- compreensivos, a ausência de julgamento, um acom-
cas geralmente opostas dos diferentes atores. A etno- panhamento centrado na pessoa ou no grupo social.
metodologia, como a transdisciplinaridade em outro Então, pensar filosoficamente um objeto só é possí-
nível, convida, portanto, a reconsiderar os saberes dis- vel a partir de um lugar intermediário entre o outro e
ciplinares e profanos na educação para a saúde e a si-mesmo, o dentro e o fora. A boa distância mantém,

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em uma relação complexa, a intimidade e o distancia- modelá-lo segundo seus próprios valores e represen-
mento (Fabre, 1999). tações ou acompanhá-lo no seu tornar-se auto-produ-
A problemática das relações entre educação para tor de si-mesmo, supõem desafios radicalmentes di-
a saúde e ética podeira ser considerada de múltiplas ferentes: em um caso, métodos diretivos, um ensino e
maneiras. Uma das primeiras refere-se à questão das balanços formais, uma simplificação eficaz mas limi-
referências epistemológicas. Quem define aquilo que tada são colocadas; no outro caso, métodos não
nós apreendemos como verdadeiro? Os saberes espe- diretivos, a produção de uma representação mais aber-
cialistas e teóricos, ainda que nos pareçam verdadei- ta e dinâmica mas mais complexa de encontrar estão
ros, não deixam de se referir a posturas epistemoló- em ação. Em matéria de ética, no entanto, somente a
gicas que, de maneira subjacente, propõe uma certa segunda posição é verdadeiramente defensável, com
leitura do real, embora se distingua dele. Então, aqui- a praxis sendo regida pelo domínio à priori da liber-
lo que tomamos por verdadeiro não é necessariamen- dade e da livre determinação da razão. No primeiro
te o real, sempre velado - se se crê em Espagnat - com caso, o ator é educador, o médico, o docente. No segun-
as representações do sadio e do malsão variando, ali- do caso o ator é o próprio usuário, intervindo direta-
ás, segundo o momento e o lugar (ver os trabalhos de mene no âmago do problema que se estuda. Advém daí
Vigarello, 1999, por exemplo). Se verdades parciais e a importância crescente, no campo da educação para
realidade diferenciam-se assim é que o que é proprio a saúde, de abordagens mais interativas, qualitativas,
da metodologia científica - que serve invariavelmen- dialéticas e sistêmicas, até mesmo hermenêuticas do
te para apoiar nossas opiniões - repousa sobre um saber como, por exemplo, o modelo da saúde comuni-
reducionismo que se revela, sem dúvida, pertinente tária. A transdisciplinaridade, como conceito alarga-
para a resolução de certos problemas circunscritos, do da ciência, integrando um conjunto de fenômenos
mas não adequado ou suficiente para problemas mais heterogêneos e inúmeras variáveis mais ou menos
complexos que necessitam uma abordagem mais lar- identificáveis e controláveis é, numa ótica sintética,
ga e global das situações. uma outra possibilidade mais larga ainda, porque
Nosso olhar é um constructo baseado na fragmen- integrativa dos dados contraditórios.
tação e nas respostas a curto termo, mesmo que o hu- Em todos esses casos, a educação para a saúde
mano seja um fenômeno global inscrito na durabilida- supõe um indivíduo autônomo que escapará sempre
de. Dito de outra maneira, mas apenas para evocar o de uma ação de “fabricação”, dos programas estereo-
tema, o questionamento ético na educação para a saú- tipados que visam à reprodução e à imitação de mo-
de não pode fazer a economia das relações entre sabe- delos supostamente pertinentes. Há, de fato, na ação
res e poder ou temporalidades, a dominante da ciên- educativa, uma imprevisibilidade dos atores e dos
cia, ligada ao esquema hipotético-dedutivo, colocan- agentes que faz com que o modelo de inteligibilidade
do a constatação de uma dependência a certos tipos se apoie na interação de pessoas, de programas, de
de lógicas de saberes mais que a outros assim como a ambientes específicos e no caráter para sempre in-
seus objetivos sociais e societários a curto prazo. completo do encontro (Develay, 2001). Daí a importân-
Afirmando de outra maneira, uma abordagem lar- cia também de introduzir no campo da educação para
ga da epistemologia do campo da educação para a saú- a saúde a multireferencialidade, a complexidade, o
de é indispensável, sem a qual há o risco de cair em paradoxo, a incerteza, esta nova epistemologia apare-
uma poïesis alienante, esquecendo a importância de cendo no cruzamento da epistemologia das ciências
uma praxis liberadora. Na poïesis o “outro” é modela- e da epistemologia das práticas, das metodologias
do segundo sua própria imagem e deseja-se “fabricá- hipotético-dedutivas e indutivas, das abordagens for-
lo” - reflexo da onipotência divina - como o ceramista mais e informais ou experienciais, na confluência de
dá forma ao seu vaso, sendo essa atividade da ordem uma epistemologia dos objetos disciplinares e de uma
da reprodução, não possuindo nenhuma outra finali- epistemologia do sujeito e do ser, portanto, de uma
dade que ela mesma. A praxis, ao contrário, objetiva ontologia. Aliás, a introdução da praxis, como proces-
ver o outro como ser autônomo, como alguém que se so evolutivo, sugere uma problemática educativa as-
tornará produtor de si mesmo. Dirigir o outro para sociando a transformação pessoal ao ato de conhecer,

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o que supõe também a aceitação da idéia de percurso da vida. O “pretium doloris”, para retomar o título da
e de caminho no ato de conhecer-se (Buber, 1995). obra de Fleury, precisa e mede assim, como modalida-
de de conhecimento de si, o risco (mas também por
vezes a ilusão) que se está pronto a assumir para co-
O Acidente como Imperativo?
nhecer-se. É graças à figura dionisíaca do desmem-
A introdução da complexidade no campo da saúde vem bramento, da perda e da provação, depois da mortifi-
quebrar o dogma das certezas. Se nós não podemos cação e enfim da metamorfose que a dor propõe uma
tudo controlar, a noção de risco vem introduzir a in- transformação de si generadora de um novo modo de
certeza, com toda a ação tornando-se um desafio que aparição: aquele que conhece o mundo e que se conhe-
assumimos, com a maior das garantias racionais pos- ce é aquele que conhece a ligação entre o aparente e o
síveis, mas sem jamais poder medir todas as conse- escondido (Jambet, 2003), entre a aparência e a apari-
quências. Entre a experiência de si, na qual, muitas ção (Paul, 2003), entre a manifestação e a comparência
vezes, o inconsciente vem surpreender, e a elabora- (Fleury, 2002).
ção consciente, refletida e socializada das condutas É claro que esses propósitos não devem ser enten-
se situa então uma dobra e, muitas vezes, uma oposi- didos como emergindo de uma apologia ao sofrimen-
ção aos desafios essenciais, fazendo do acidente uma to - que nós refutamos, certamente -, mas de uma pos-
necessidade ao dar um preço à dor que se trata de re- tura ligada à hermenêutica do pathos, com a negação
conhecer (Fleury, 2002) e que se afirma ao mesmo tem- das provas transformadoras fixando a inibição em
po como modalidade de conhecimento de si e como depressão, a ausência do desejo orientado impelindo
crítica da razão. em paralelo a todas as inflações e substituições. Aliás,
A dor, como reveladora do ser essencial, emerge é nesse contexto que é necessário situar certas con-
aqui do acidente (“accidere”, “queda inesperada”) pos- dutas de risco interpretadas muitas vezes como ten-
tulante de um reerguimento de si generador da auto- tação disfarçada de suicídio, enquanto eu concordo
consciência. Mas o acidente, pela ignorância de si ou com a opinião de Le Breton (2003) que aí vê muito mais
pela identificação a uma racionalidade não adequada uma tentativa desesperada de viver em um mundo
falsifica-se muitas vezes em falsa equivalência pela desencantado e com perda coletiva de sentido, com
inversão dos valores em direção do ter. Ao menos no essas colocações em perigos visando a querer, a qual-
contexto do ser, não mais aceitar o preço do acidente, quer preço, salvar o essencial colocando à prova sua
da morte, remete a criar uma falsa medida, implicita- força de vida a fim de quebrar as imposições condici-
mente um mental (mens) falsificado (Fleury, 2002), onadas pelos falsos valores.
com a qualidade do verdadeiro afirmando, inversa- A recusa da transgressão, do sofrimento, do erro,
mente, a qualificação do risco como oportunidade de da ilusão, da provação, valorisando as normas promul-
crescimento e de força dando um sentido positivo à gadas por uma sociedade que não respeita, aliás, os
provação, o que alguns definem como fatores de resi- valores da vida (nós o observamos todos os dias, em
liência. Assim, à fenomenologia existencial acrescen- todos os níveis), causiona o falso princípio de uma
ta-se uma dimensão mais hermenêutica tendendo à individualidade ilusória mantendo o desaparecimen-
revelação de uma outra ordem de verdade, mais velada to do sentido e do vínculo do homem com ele mesmo,
e inconsciente. Esta, como conhecimento “imaginal”7, 8 com os outros e com seus ambientes constitutivos. A
e secreto é, sem dúvida, bem mais apta a formular uma metafísica da dor, do erro, da aceitação de nossas im-
verdadeira ética da vida que os valores existenciais perfeições em um sistema de transformação, como
definidos pelo ter, na medida de sua intimidade com tomada consciente ou inconsciente do risco, equivale
o sujeito e dos ultimatos fornecidos pelas provações aqui a uma metafísica da imaginação, tornando-se por

7 O termo «imaginal » foi criado pelo iranólogo francês Henry Corbin (1930-1978) para estabelecer uma diferenciação com o termo
«imaginário», que nos últimos séculos foi sendo associado a fantasia, uma vez que foi se perdendo a diferenciação entre esta e a
imaginação verdadeira ou a imaginação criadora. (Nota da tradutora)
8 Ver sobre esse assunto Paul (2003), inspirado nos trabalhos mais específicos de Corbin.

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sua vez um espaço “entre-dois” que conduz à revela- mais ainda, que ela não responde a uma expectativa
ção de si. Aceitar o acidente, ousar a aventura permi- de esclarecimento.
te - apesar do risco e pagando o preço do vaguear - o Nós constatamos, apoiados em Sfez (1995), que sob
acesso ao limiar de uma consciência superior de si, essa palavra desenvolve-se uma utopia ideológica. O
dos outros e do mundo que nos envolve. Essa percep- “politicamente correto” tenderia a fazer-nos crer que
ção só é possível pagando o preço de um suplemento bastaria respeitar as diretrizes enunciadas pela ciên-
de alma desperta pela provação vivida e integrada. O cia e nós poderíamos evitar a doença e não ter mais
pretium doloris, como processo cognitivo, emerge da nenhuma inquietação face à morte, tão distante se
ordem de libertação e da liberdade que torna possível tornaria o seu acontecimento. Mas essas boas inten-
a ultrapassagem das barreiras colocadas pelas nos- ções não escondem interesses financeiros ou ideoló-
sas limitações, nossas opiniões, nossos conhecimen- gicos e um despotismo sutil dos mais perigosos que
tos, pessoais ou coletivos. Esse processo, que marca negaria toda provação de construção identitária? In-
nossa aptidão à auto-cura e à autonomia, revela uma versamente, deve-se apoiar, sob pretexto de respeito
hermenêutica de si que significa a polifonia dos ní- às liberdades e à busca, toda atitude que se pode su-
veis ontológicos, cujo desconhecimento tende a este- por como negativa para os outros ou para si?
rilizar toda ação duradora em educação para a saúde. Se a saúde opõe-se a um “pathos »”, à subjetivida-
de do sofrimento tanto como às suas manifestações
objetivas, é nesse horizonte de luta, nesse espaço “en-
A Saúde como Autenticidade?
tre-dois” que reside toda intervenção preventiva e
Importa também distinguir, o que não é necessaria- educativa. O problema reside, então, na interação en-
mente fácil, os diferentes tipos de intervenção em edu- tre os diferentes níveis de perturbações, objetivos e
cação para a saúde conforme nos vinculemos a um subjetivos, aparentes e velados, afirmando a impor-
nível ou a outro. tância de uma hierarquização dos sintomas e das in-
Se não é muito discutível implicar o melhor possí- tervenções em função de critérios cada vez diferen-
vel o sujeito na ação empenhada, essa participação tes e que convém definir em diferentes níveis de rea-
postula necessariamente uma liberdade de escolha lidade. É necessário também poder precisar a relação
ligada à ultrapassagem de toda vontade normativa. entre esses níveis e aquele do sentido que a pessoa
Inversamente, em relação ao objeto analisado, ca- atribui a sua patologia, postulando a noção de cami-
racterística do modelo bio-médico, a noção de norma- nho. Porque os sofrimentos podem ser múltiplos, in-
lidade e de patologia situa-se - para o essencial - fora clusive o que Zarifian (1994) denomina de sofrimen-
de toda liberdade humana. A função do cuidado, da tos existenciais, o que supõe não perder de vista o es-
qual decorre a da educação para a saúde, esforça-se tatuto, sempre plural, da saúde e da doença ou dos
em tratar um estado patológico real ou potencial para desequilíbrios potenciais que dão o alarme.
restaurar um estado normal mas que não torna jamais Dizer que a saúde é ausência de doença é afirmar,
a reencontrar a identidade do estado anterior à doen- com Honoré (1999) que a referência central é a doen-
ça (Canguilhem, 1966). Como uma conseqüência lógi- ça, considerada como objeto principal. Aliás, em nos-
ca a educação para a saúde deveria conduzir à apre- so mundo moderno as atividades ditas de saúde di-
ensão do potencial patogênico de uma situação, de um zem respeito à doença. Mas a saúde é também prévia,
comportamento, para evitar atingir sua atualização. anterior à toda patologia e não pode, então, identifi-
Mas o que se deve compreender por normalidade? De car-se plenamente a uma ausência de doença. Como ó
igual modo, até onde há dever ou possibilidade de ação enunciamos, ela não corresponde mais a um estado
e qual fronteira não se deve ultrapassar? Como situar de bem estar. É portanto a doença que é normativa,
o normal, o quase normal, não acarretando nenhuma não a saúde, na medida em que ela é - como o dizia
conseqüência mórbida e o francamente anormal ne- Canguilhem - geradora de novas normas de vida a fim
cessitando de uma intervenção? de não se adoecer de novo. O que funda a manutenção
Em medicina a normalidade só pode remeter à saú- da saúde depois de uma doença seria portanto nossa
de. Mas nós vimos o quanto essa palavra questiona e, capacidade individual em determinar novas normas

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vitais, às vezes mais largas mas muitas vezes mais sível (Honoré, 1999), com o educar para a saúde tor-
reduzidas, com a doença, em continuidade com a saú- nando-se, nesta última dialética dos opostos, formar
de, vindo desordenar uma ordem anterior para modi- e se formar para a autenticidade. Porque a saúde, que
ficá-la. Evitar a doença, pelos métodos supostamente de uma certa maneira engloba todos os estados de
adequados, relaciona-se com a própria patologia, mas harmonia e de resposta à patologia, emerge de uma
essa prática não se endereça nem à saúde, nem aos relação com a autenticidade ou com a inautenticidade:
indivíduos, de onde advém a dificuldade em determi- uma pessoa está em boa saúde no bem-estar, na doen-
nar uma educação para a saúde. A doença, manifesta ça ou na morte quando ela é autêntica em sua relação
ou potencial, mas em todos os casos reconhecida, tor- com ela mesma, com os outros e com o mundo que a
na-se, no entanto, o indicador de nossa capacidade de envolve. Por outro lado, ela está, doente – mesmo no
adaptação e de transformação, ligada tanto aos impe- estado de saúde aparente e a mais manifesta – quan-
rativos biológicos quanto psicológicos ou sociais da do essas mesmas relações constitutivas do ser se in-
pessoa. A saúde, independentemente da doença, não vertem e são inautênticas.
é um estado mas um dinamismo vital com o qual o ser
vivente faz face ao que o desequilibra, reorganizan-
Conclusão
do-se (Honoré, 1999). Reunir as duas faces da saúde,
uma inscrevendo-se como respeito à “palavra” dos ór- A ética, como “arte de dirigir a conduta” sugere uma
gãos após sua doença, outra como “silêncio” desses vida voltada para o bem, nutrida de solicitude para
mesmos órgãos por todo o tempo em que tudo estiver com o próximo, de dignidade e de estima de si. Afir-
bem, inscreve-se então em um processo dialético com mar um posicionamento ético suporia uma certa jus-
dupla entrada: uma orientada para a alteração (pela teza em nossas relações com o mundo (no caso contrá-
presença excessiva a si), a outra para o esquecimento rio a doença biológica não está longe), em nossas re-
(pelo retraimento de si). A relação entre esquecimen- lações com os outros (do contrário há o risco de uma
to e afirmação, silêncio e palavra, equivalentes de bem- patologia social), em nossa aproximação conosco mes-
estar e mal-estar, indicaria então a maneira que nós mo (o desequilíbrio subjetivo interior sendo uma de-
nos portamos e comportamos. A vida, sob a forma de corrência de sua ausência). O conjunto dessas rela-
silêncio ou de pathos, de paixão, desperta assim à pre- ções determina a autenticidade ou inautenticidade de
sença do ser que se revela no duplo espelho de seu si- nossa vida, intimamente correlacionada à questão da
lêncio e de sua palavra, de sua saúde e de sua doença, educação para a saúde. Esse imperativo sugere a ul-
de sua inapreensibilidade e de suas apreensões. trapassagem das representações dominantes da ciên-
Mas a dialética saúde-doença apreende-se também cia, a fim de engajar-se em uma via bio-cognitiva e em
segundo outras tensões dialéticas, como por exemplo um processo ativo de transformação que promovam a
aquela de um processo de avaliação entre uma neces- união entre o vivido, o conhecido e o desconhecido. A
sária desestabilização existencial impelindo ao ultra- ética, nesta orientação, torna-se uma proteção contra
passar das fronteiras ou dos limites – abrindo para as todos os desejos de poder.
transformações – e uma busca das profundezas que Se a atitude educativa, no sentido de uma praxis,
aspira ao equilíbrio e à estabilidade. Não se trata mais, visa a alimentar a autenticidade e a refutar a inauten-
então, na problemática do estável e do instável, de ticidade, fora dessa relação haveria uma certa vaida-
conservar sua saúde, mas antes de inscrever saúde e de em querer propor uma educação para a saúde, como
doença em um processo mais e mais consciente do bem lembra Sicard (2002), presidente do comitê na-
despertar dos valores inscritos no ser, isto é, retoman- tional de ética. Pois até onde lutar contra as diferen-
do Canguilhem, para realizar sua natureza. Cuidar de tes formas de desequilíbrio e com que direito? Tentar
sua saúde torna-se, então, manter com a maior coe- impor uma normalidade, difícil de precisar quando
rência possível seu próprio desdobramento, do come- não nos restringimos aos valores biológicos, não pode
ço ao fim, esperando poder realizar, sem jamais total- nos fazer crer – pelas representações sociais interpos-
mente lá chegar, o mistério de sua própria origem. tas – no mito da saúde perfeita? Mas, também, à proble-
Nesta ótica, cuidar é viver o mais autenticamente pos- mática da saúde construída sobre a doença e em tor-

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no do medo, entre normalidade e anormalidade, deve- JAMBET, C. Le caché et l’apparent. Paris: Ed. de l’Herne,
ria poder substituir-se uma experiência da saúde apoi- 2003. (Coll. Mythes et Religions).
ada na vida, construída em torno do prazer, do conhe- LE BRETON, D. Anthropologie de la douleur. Paris: Ed.
cimento, da responsabilidade de si, entre autenticida- Métaillé, 1995.
de e inautenticidade que especificaria a dialética das LE BRETON, D. Risquer sa vie pour en retrouver le goût.
relações entre o ser de saúde e o sentido do ser. Esta Le Quotidien du médecin, n. 7345, 3 juin 2003. p.16.
adesão presumiria, por sua vez, a aceitação de nossa
LESELBAUM, N. Autour des mots « éducation sanitai-
parte de sombra ¯ e não mais sua rejeição ¯ como
re », « promotion », « prévention », « éducation à la
reveladora de nossa relação com o mundo, com os ou-
santé ». In: Education à la santé, recherche et for-
tros e conosco em uma busca unificadora do conjun-
mation pour les professions d’éducation, n. 28, p.
to das dimensões que compõem cada ser humano.
131-138, 1998.
Enfim, um aprofundamento dos fundamentos éti-
cos e epistemológicos na educação para a saúde deve- MASSÉ, R. La santé publique comme projet politique
ria permitir clarificar a questão de sua avaliação, em et individuel. In: SYSTÈMES et politiques de santé:
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