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Saúde mental, produto da educação?

Se nos aventuramos a abordar uma questão tão controver tida, não foi
por intransigência semântica ou pelo prazer forma lista de distinguir
violência de agressividade ou violência de poder. Embora
concordemos com Freud, quando ele diz que começa mos a ceder
pelas palavras e terminamos por ceder nas coisas, o motivo
essencial de nossa reflexão é bem outro.
Além de constatarmos o pouco espaço dado à violência na literatura
psicanalítica, notamos que este espaço vem sendo ocu pado por
esgrimas verbais e grandiloqüências ocas. Este proce dimento não
condiz com a gravidade e a seriedade do problema. Alguns teóricos
resolveram transformar a violência em palco para a exibição dos piores
excessos retóricos. Inventaram, assim, uma "violência acadêmica” tão
distante da “violência da vida” que, em certos momentos, não sabemos
mais se aquilo a que se refe rem tem algo a ver com aquilo que
conhecemos ou experimen tamos.
Como para agir é preciso ver e julgar, cabe ao analista deci dir qual das
duas é matéria de seu interesse. De nossa parte, não temos dúvida: é a
segunda que interessa ao psicanalista.
Freud, é sabido, não tinha muito senso de humor. Mas, se lhe faltava
humor, sobrava-lhe fineza de observação. Conta-se, por exemplo, que
teria respondido a uma mãe que lhe pergun tara o que fazer para
bem educar o filho: "Faça como quiser, qualquer que seja a maneira ela
será igualmente má”. Freud, descontado o mau humor, pretendia afirmar
que não existe pre venção possível da neurose.
Hoje em dia, estamos de tal forma habituados a crer que a saúde mental
depende da educação, que uma afirmação seme lhante pode causar
estranheza. No entanto, acreditamos que ela contém algo de
verdadeiro e, por isso mesmo, é digna de aten ção. O que pode
nos fazer acreditar, sobretudo a nós, profissio nais ligados à área
de saúde mental, que saúde e educação são termos de uma
equação necessária? A lógica que fundamenta esta asserção é
da ordem do senso comum ou da ordem da ciência, poucoimportando,
no momento, distinguir o que qualifica uma e outra.
Na verdade, antes mesmo de iniciarmos a reflexão sobre o assunto é
necessário precisar os termos da discussão. Reservare mos à palavra
educação o sentido que lhe é usualmente dado na literatura
sobre o tema, ou seja, o da administração de conheci
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mentos psicológicos com vista à prevenção de distúrbios neuró ticos e
caracteriais. Não estenderemos a análise ao campo das doenças de
etiologia orgânica, isto é, às seqüelas mentais de afecções
tóxicas, infecto-contagiosas, carenciais, metabólicas etc. Neste caso,
a educação coincide com as medidas profiláticas médico-higiênicas e
não com a tentativa de prevenção das ano malias do comportamento.
Sua validade é, a nosso ver, consen sual. Não há o que discutir.
Tampouco levaremos em conta ca sos extremos de privação física ou
emocional que podem levar os indivíduos a desenvolverem reações do
tipo psicótico. Tam bém aqui é indiscutível a nocividade dos fatores
etiológicos em causa, e a possibilidade de prevenção destes quadros
não concerne à educação, no sentido acima descrito.
Nosso objetivo é mais limitado, embora esta limitação não seja
gratuita, na medida em que a maioria dos esforços educativos dirige-se,
justamente, à prevenção de neuroses e condutas carac teriais. Por
conseguinte, centraremos nosso trabalho na análise destas propostas,
ressalvando, de antemão, o caráter provisório de nossos argumentos e
hipóteses. Procuraremos demonstrar, primeiramente, que alguns
pressupostos contidos na afirmação de que a saúde mental depende da
educação possuem uma lógi ca equivoca. E, em seguida, a partir de
fundamentos históricos, mostrar que a educação psicológica não produz
saúde mental mas reproduz, tão-somente, a ordem social.
ratura psicológica. Neste contexto, educação é tomada ora num
vago sentido filosófico, o de fazer emergir o potencial humano dos
indivíduos, ora no sentido estrito de instrução ou escolari zação.
Outras vezes, a noção é identificada à socialização no clás sico sentido de
transmissão de valores culturais. Neste último caso, a socialização ora
se restringe à ação educativa na infância ora se refere ao processo que
acompanha o sujeito em toda sua vida biológico-social.
tenda
Esta pluralidade de sentidos é significativa para quem pre
formular projeto em saúde mental. Ela pode conferir a tais
projetos dimensões variáveis. Dependendo de como se en
tenda a educação, pode-se desejar que o agente de saúde conver ta-
se numa instância onipresente na vida social ou numa pre sença
mais discreta, que se limite a intervir junto a instituições de maior
importância, em certas etapas do processo educativo. Não se pode utilizar,
portanto, o vocábulo educação corno um conceito inequivocamente
definido no conjunto de teorias psi cológico-psiquiátricas. A variação no
seu emprego é decisiva quando pensamos em quem vai ser educado,
como, em que limi te de tempo e em que espaço social. Só dispondo
desta informação podemos julgar se o instrumental educativo é
compatível com a tarefa proposta.
Suponhamos, entretanto, que este trabalho preliminar te nha sido
cumprido, e tomemos como modelo de resolução o caso da
educação das crianças. O exemplo não é aleatório. A educação
infantil vem sendo insistentemente considerada a pe dra de
toque dos programas da saúde mental, por motivos, à
primeira vista, aceitáveis. Na infância, os contornos do
sujeito, período e espaço social da ação educativa são mais
precisos, as sim como são mais limitados, em número e
importância, os agentes da educação, dada a inegável
preponderância da família e da escola como veículos de
socialização, nesta faixa de idade.
Restaria perguntar, portanto, em que consiste a educação para a saúde
mental na infância? A resposta não é difícil. Excluí
1. O pressuposto da identidade conceitual
Quando se postula a idéia de que a educação interfere na saúde
mental, não se deixa claro o que se entende por educação, saúde e
doença. Aparentemente, os termos são empregados como se
possuíssem uma identidade conceitual que dispensasse suas prévias
definições. Este pressuposto está longe de ser verdadei ro. O termo
educação possui numerosas acepções, senão em sua natureza,
digamos, pedagógica, pelo menos em seu uso na lite
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das as minúsculas divergências quanto ao ritmo e à execução,
educar para a saúde mental significa, na prática, transmitir co
nhecimentos psicológicos às crianças. Diretamente, através dos
profissionais de saúde, ou, indiretamente, através da família, escola e
instituições afins. Reduzida à expressão mais simples,
educação quer dizer instrução psicológica segundo o que
cada profissional considera a “boa psicologia”. A conclusão
pode parecer banal porém seus efeitos, a nosso ver, nada têm de
óbvios. O raciocínio é simples: existirão tantas “boas educações
psicológicas” quantas forem as preferências teóricas dos responsáveis
pela educação. Como é previsível, as chances de um acordo em torno da
“boa educação" são, em princípio, pequenas. Um educador partidá rio
de Rogers seguramente veria com reservas a “boa educação"
proposta por um outro, partidário da psicanálise. Do mesmo modo, um
terceiro, influenciado pelo behaviorismo, oporia resis tências às certezas
educativas dos dois anteriores, e assim por diante. Perguntaríamos,
então, qual dessas correntes, além de outras não citadas e além das
infinitas divisões é subdivisões que as separam, promoveria a boa saúde
mental? A opção não seria fácil. E isto considerando a hipótese mais
simples, ou seja, des cartando as eventuais inclinações do próprio
público receptor e assinalando apenas os previsíveis desentendimentos
entre os agentes da educação.
No que concerne aos termos saúde e doença mental, a com plexidade não
é menor. Depois de “relativizados culturalmente” até a exaustão por
historiadores, antropólogos e sociólogos, es tes conceitos começaram a
co psicológico-psiquiátrico. Em
flutuar dentro do pensamento clíni
primeiro lugar, graças ao desen volvimento das teorias
psicossociogenéticas que, por um lado, revisaram as concepções
mais rígidas da nosologia clássica, mas, por outro, enquadraram toda
uma série de condutas e sentimentos, antes desprezados pela
psiquiatria organicista, na categoria de doenças ou de
estruturas tratáveis psicoterapicamente. Em segundo lugar,
pela reação da psiquiatria convencional (leia-se,
a psiquiatria dos anuais acadêmicos e das classificações interna cionais de
doenças mentais), que respondeu as inovações, assi milando algumas
delas. É o caso da psiquiatria americana que, em grande parte, deixou de
considerar algumas das chamadas "perversões sexuais” como doença.
Dada a finalidade do trabalho, é irrelevante aprofundar os motivos
destas transformações. Para alguns, é próprio da razão
científica esta evolução para um conhecimento cada vez mais adequado a
seu objeto; para outros, todas estas mudanças nada mais são que
acomodamentos táticos do poder-saber psiquiátri co. Diante de nosso
propósito, é suficiente constatar que, não obstante as discordâncias
quanto ao conteúdo da "boa educa ção” e a oscilação dos conceitos de
saúde e doença, muitos agen tes de saúde persistem acreditando na
causalidade educativa da saúde mental.
Deixemos de lado, por enquanto, esta questão. Mais adian te, dispondo de
outros elementos, ela poderá ser, talvez, melhor explicada e entendida.
Abordemos um outro ângulo da propos ta, o que diz respeito à sua suposta
originalidade como instru mento de prevenção das doenças mentais.
2. O pressuposto da originalidade
Se a idéia de que existe uma “boa educação" para uma boa
saúde mental” é discutível, a idéia de que esta proposição é ori ginal não é
só discutível, é falsa. Bem entendido, não afirmamos que os defensores
destas proposições reivindiquem explicitamen te a etiqueta de
originalidade. Notamos apenas que o modo como a idéia é correntemente
apresentada induz o ouvinte ou leitor a percebê-la desta forma.
Freqüentemente, os projetos deste gênero insinuam que a educação
para a saúde” é uma eventualidade, uma aspiração entravada por
interesses político-econômicos. A imagem vendi da
é a do ideal com o
qual se sonha e que a mesquinhez do real
la.
C

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impede de se concretizar. A educação é uma possibilidade refe rida a um
futuro histórico, sem equivalência no passado e sem apoio no presente.
Assim apresentada, a questão assume automaticamente o caráter de
descoberta, de experiência intuída e não realizada, conseqüentemente,
original. Ora, o que sabemos é que a crença na educação científica dos
indivíduos como meio preventivo de doenças mentais antecedeu o
nascimento da psiquiatria e das psicologias. O movimento higiênico-
pedagógico dos séculos XVIII e XIX, que deu origem a este tipo de idéia,
efetivou este projeto, apoiado nas escolas e nas famílias. E, mais que isto,
a partir des ta prática forneceu as bases do conhecimento que, em grande
parte, constituíram a psiquiatria e a psicologia enquanto disci plinas
científicas. 1-2-345e6 Em outras palavras, o ideal de hoje já foi
realizado ontem.
Todavia, a experiência dos séculos passados pode ser histo
ricamente relativizada e, por conseguinte, anulada em sua perti nência
para com os métodos, objetivos e objetos da experiência
educativa atual. Retomemos, então, um exemplo de nosso sécu lo. E, para
efeito de demonstração, analisemos o caso particular da pretensão
educativa que marcou tão fortemente toda uma geração de psicanalistas e
educadores influenciados pela psica nálise. E de Anna Freud a
seguinte citação: “Não obstante nu merosos progressos
parciais, a educação psicanalítica não conse guiu tornar-se à
arma preventiva que devia constituir-se. E ver dade que as crianças que
cresceram sob sua influência foram, sob vários aspectos, diferentes das
gerações anteriores, mas não foram, por isso, liberadas de
angústias e conflitos e, por conse
guinte, menos expostas que outras a afecções neuróticas ou a
outras doenças mentais: surpresa que não teria razão de ser,
caso certos autores, em vez de terem se deixado levar pelo otimismo e
entusiasmo com respeito ação preventiva, tivessem observado a
estrita aplicação dos princípios psicanalíticos. Segundo estes
princípios, não existe, no conjunto, prevenção da neurose”.?
Este texto, escrito há quase 20 anos, não mostra uma só ruga. Em
seu apoio, poderíamos chamar outros testemunhos. Bruno Bettelheim,
apreciando os resultados da educação psica nalítica
dos kibutzim,
chega a conclusões idênticas. Admitimos, contudo, que a
visão psicanalítica dos autores não é representa tiva da
psicanálise em geral e que as experiências narradas foram
necessariamente marcadas pelos contextos institucionais em que
se desenrolaram. A exemplaridade dos modelos poderia, assim,
ser contestada, e sua universalidade, negada.
Recorramos, portanto, a tentativas mais próximas de nossa realidade
social, abandonando, por um momento, a educação psicanalítica.
educativos
O que restou da imensa propaganda e dos esforços
despendidos pelos psiquiatras da Liga Brasileira de Higiene
Mental? Fique claro que estamos aludindo às iniciati vas de homens
como Ulysses Pernambucano e não à atividade do grupo
nazifascista que também pertenceu àquela instituição.? Ao
que saibamos, as estatísticas de saúde mental permaneceram
empedernidamente insensíveis ao aparelho educativo
montado pela Liga. Mas o Brasil é um país pobre,
desorganizado, avesso à veracidade e à confiabilidade estatísticas.
Tomemos, então, o exemplo americano, insuspeito neste sentido. Ao
que nos cons ta, também neste caso, os resultados obtidos com os
faraônicos programas educativos de saúde mental dos anos 1960 em
nada alteraram a sanidade psicológica daquele povo.
U

1. ALBUQUERQUE, J. A. Guillon. Metáforas da desordem, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.


2. CASTEL, Robert. L'ordre psychiatrique, Paris, Minuit, 1976. 3. COSTA, Jurandir Freire.
Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro, Graal, 1979. 4. FOUCAULT, Michel. La
volonté de savoir. Paris, Gallimard, 1976. 5. MACHADO, Roberto et alii. Danação da
norma. Rio de Janeiro, Graal, 1978. 6. USSEL, Jos von. La répresion sexual. México,
Roca, 1974.
7. FREUD, Anna. Le normal et te pathologique chez l'enfant. Paris, Gallimard, p.5 8.
BETTELHEIM, Bruno. Les enfants du rêve, Paris, Lafont, 1971. 9. COSTA, Jurandir Freire.
História da psiquiatria no Brasil – um corte ideológico. Rio de Janeiro, Documentário,
1976.
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Naturalmente, pode-se objetar que o exemplo é falacioso.
Expõe-se o leitor aos resultados de um programa educativo cujos
princípios lhe são sonegados. Para que se julgue com
proprieda de um destes projetos, é preciso que se conheça
os pressupostos teóricos e técnicos em que se basearam. Ora, todos
sabemos que as experiências apontadas foram concebidas dentro de
parâmetros ideológicos claramente conservadores. E, salvo o
particularíssimo caso dos kibutzim israelenses, microcosmos
socialistas planta dos no coração do capitalismo, todas elas
refletiram, em seus objetivos, este parti pris político. Como dissociar a
versão edu cativa da psicanálise anglo-saxônica da consciência democráti
co-burguesa de seus mentores intelectuais? E, pensando na Liga
Brasileira de Higiene Mental e na psiquiatria comunitária ame ricana,
como deixar de assinalar a dependência de seus projetos de saúde
mental para com os projetos políticos de ordenação social em que se
enquadraram? A partir dos eventos descritos, pode-se afirmar, no máximo,
lógica no ocidente capitalista
que a tentativa de educação psico
fracassou. Deduzir daí a nulidade de toda e qualquer
educação do gênero é uma inferência arbitrá ria. A prática
educativa criticada pode ter fracassado justamente pelo
comprometimento com objetivos políticos alienantes para a
pessoa humana. Nada nos impede de supor que noções educa
tivas voltadas para a liberdade, dispondo de outros suportes
políticos, produzam resultados diferentes. Sem um estudo com
parativo desta ordem, toda conclusão a respeito do problema
é apressada ou preconceituosa.
Voltemo-nos, portanto, para esta face da questão. Cruze mos as
fronteiras ocidentais e capitalistas. Vejamos o que pro punha, por
exemplo, Vera Schmidt, educadora revolucionária, em plena União
Soviética pré-stalinista. Um dos conselhos da dos às educadoras dos
Laboratórios-Lares de Infância, institui ções modelo criadas pela
pensadora, era o seguinte: “No seu tra to com as crianças, as
educadoras deverão mostrar-se extrema mente parcimoniosas em
carícias e demais manifestações de
carinho. Limitar-se-ão a retribuir cordialmente, mas com mo deração, as
demonstrações de afeto das crianças. No laborató rio-Lar de
Infância estão terminantemente proibidas as impe tuosas demonstrações
de carinho por parte dos adultos (beiji nhos, abraços violentos, etc.) que
excitam sexualmente as crian ças e são nocivas ao seu sentido de
autonomia. Este tipo de efusões é mais adequado à satisfação dos adultos
do que às necessidades das crianças”. 10
Seria curioso imaginar como um educador moderno reagi ria a um
conselho assim formulado. Vera Schmidt, no entanto, representava, na
época, a vanguarda político-teórica do pensa mento psicológico. Como
Reich, foi precursora do que poste riormente veio a ser chamado
pensamento freudo-marxista. Sua leitura da psicanálise, nem por isso,
deixa de ser vista por nossa sensibilidade atual como puritana ou mesmo
repressiva.
Evidentemente, a relevância do exemplo não deriva dos resultados -
experiência de Vera Schmidt foi interrompida e não pôde
ser
retomada graças ao dogmatismo stalinista, mas do
conteúdo da proposta. Não nos encontramos, aqui, diante de idéias
conservadoras ou reacionárias. Mesmo assim, a distância, elas nos
parecem lamentavelmente caducas. A lucidez política da autora não
modificou o teor de “verdade” psicológica de seus princípios
educacionais.
Deste modo, nos resultados como nas intenções, as pro postas educativas
de que temos conhecimento revelam-se sem pre malsucedidas ou mal
formuladas, quando confrontadas às nossas expectativas e
convicções presentes. Não negamos, com isto, o progresso do
conhecimento ou a possibilidade de sucesso da experiência educativa.
Notamos, apenas, que com referên cias teórico-políticas que ainda
são nossas, o fato histórico nega que a educação promova saúde
mental. Pelo contrário, o que se
10. REICH, Wilheim & SCHMIDT, Vera. Psicanálise e educação. Lisboa, J. Bragança, s/d., p.53.
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observa é que as medidas educativas, sempre inócuas no tocante
à saúde e à doença," mostram-se extraordinariamente ativas, no que
concerne à normalização social. Esta última asserção mere ce ser
melhor explicitada.
3. A “competência psicológica”: efeito mental da educação
sau dável
Há 40 ou 50 anos, inúmeros profissionais de saúde mental e
educadores influenciados pela psicanálise de Freud ou de Reich
lutavam para impor à sociedade certos preceitos educativos.
Acreditava-se, então, que a repressão afetiva, moral e, sobretu do,
sexual era o agente causal, por excelência, de distúrbios mentais da
idade adulta. Atualmente, temos provas bastantes de que muitos destes
preceitos, revolucionários no tempo, vêm sendo aceitos e postos em
prática por uma parcela expressiva da sociedade. Nas camadas
urbanas economicamente privilegia das, nunca fomos tão atentos,
quanto hoje, aos excessos de con trole,
proteção ou rigidez
com que tratamos os nossos filhos. Nunca, como hoje,
sentimos tanta culpa quando imaginamos que não sabemos ou não
podemos dar-lhes o carinho, presença, limites ou afeição necessários
para um bom desenvolvimento emocional.
Ao mesmo tempo, também aprendemos a cultivar nosso bem-estar
mental, protegendo-o da repressão. Estamos sempre hipervigilantes
às intrusões de nossos parceiros de relações amo rosas,
pessoais ou profissionais em nossa área de autonomia se xual ou
sentimental. Cuidamos de nosso corpo, sexo e emoções
com o respeito dedicado às coisas sagradas. O direito à liberdade
sexual e à independência afetiva tornou-se para nós um bem
inalienável, pois dele depende não apenas nossa felicidade, mas
nossa saúde mental.
Com um pouco de recuo, não é difícil perceber que a tão desejada
educação para a saúde mental não necessita ser criada ou inventada. Ela
cionando eficientemente,
existe, ou melhor, continua existindo e fun
desde que seus fundadores, higienis tas e pedagogos dos
séculos XVIII e XIX impuseram-na como nor ma do viver social. O que
a torna invisível ao olhar dos agentes de saúde são seus resultados,
que não correspondem às expecta tivas destes agentes e levam-
nos a anular a responsabilidade que lhes compete, na produção do
efeito indesejável. Em outros ter mos, nega-se que a educação exista
para não se assumir o ônus de suas conseqüências.
De fato, malgrado o extremo zelo com que os indivíduos se cuidam;
malgrado a maciça dose de regras de saúde mental que são
obrigados a consumir; malgrado, enfim, todo o sucesso da
propaganda em torno da educação psicológica, as doenças
mentais continuam existindo e para alguns tendem a aumentar. O
cimo
saldo da educação não foi o que se esperava, ou seja, o acrés
da saúde mental das pessoas. O efeito positivo da educa
ção foi o aumento daquilo que, por analogia com o que
Bol tansky chamou de “competência médica”, chamaríamos de
"competência psicológica."12 Explicitando, os indivíduos apro
priaram-se do vocabulário e dos métodos diagnósticos da
psicopatologia clínica e passaram a codificar, mais facilmente, o
sofrimento psíquico em termos de desvio ou anormalidade mentais. O
que aumentou não foi a saúde mental, mas a capacida de de
traduzir sensações psíquicas em sintomas psicopatológicos.
O que cresceu não foi a taxa de sanidade psicológica, mas a
clien tela psiquiátrico-psicoterápica.
11. Para efeito de simplificação do raciocínio, dispensaremos a definição dos
termos saúde e doença. Quando nos referirmos a estes vocábulos, estaremos pensando na reali
dade empírica do comportamento anômalo (no sentido de variação individual do
tipo específico) que se descreve sob a rubrica do anormal, doente ou psicopatológico. No
decor rer do trabalho assinalaremos algumas características do fato psicopatológico,
sem que isso implique em sua definição exaustiva.
12. BOLTANSKY, Luc. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
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la justa ou injusta segundo nossa postura ideológica, mas não
podemos tomá-la como fator causal de saúde ou doença.
Estes fatos escapam à circunscrição da educação e o
desconhecimento desta especificidade deu origem e alimenta
o persistente equívo co de que ora nos ocupamos.
4. Norma educativa, desvio e doença mental
Este fenômeno, que Castel tão bem denominou de “apetite
terapêutico” das elites urbanas, é entendível quando vemos a ligação
estreita que ele mantém com a educação. Acontece que a
redistribuição do saber psicológico, medida aparentemente
democrática, assumindo a forma da educação, incorporou tam bém
a função social que esta última cumpre numa sociedade comandada por
interesses de classe. Tornou-se um instrumento de conversão dos
indivíduos aos valores ideológicos da elite do minante. A “competência
psicológica” é, em sua essência, um traço da norma do viver social
das elites econômico-culturais. Ela expri me a maneira pela qual
os indivíduos que integram este segmen to social concebem
seus ideais de felicidade ou bem-estar. Ideais que têm na
otimização do prazer do corpo, do sexo e no sucesso
individual, econômico, intelectual, artístico etc. seus pontos de apoio
e referência.
Não pretendemos conotar pejorativamente o desejo de fe
licidade individual das elites, rotulando-o de “burguês”. Tam pouco
temos a intenção de opô-lo a um “desejo de felicidade
proletário”, supostamente diverso e qualitativamente superior, em sua
natureza, ao primeiro. Não temos dados suficientes e, por conseguinte,
competência para criticar o “projeto individual de um burguês” à
luz de um projeto de bem-estar pessoal pro letário”. O objeto de
nossa discussão não são os modos de vida das classes sociais e
suas respectivas diferenças no que tange a este item da vida
psicológica. Chamamos atenção, isto sim, para o fato de que
estas questões só marginalmente têm a ver com a problemática
da saúde e da doença mental, pois em nada eluci dam a natureza
do fenômeno psicopatológico.
A educação psicológica é indiferente quanto à sanidade psí
quica dos indivíduos. Como qualquer outro tipo de educação, ela
transmite valores socializados ou socializáveis. Podemos
julgá
O indivíduo bem-educado é um indivíduo mentalmente sadio.
Acreditamos que, assim exposta, esta afirmação encon - traria quem
de imediato a contradissesse. No entanto, diluída
em meio à discussão sobre educação e saúde, ela tende a
ocultar sua incongruência e, freqüentemente, a ser aceita
como lógica e razoável.
A educação, todos sabem, produz regimes de representação
do mundo que visam a obter o consenso em torno dos interesses sociais
hegemônicos em uma dada sociedade. Os hábitos men tais que ela
cria ou reedita têm, por conseguinte, a característica de serem
hábitos comuns, partilhados ou partilháveis pela maio ria dos
indivíduos. A educação psicológica não foge a esta regra. Por
mais que pretenda dar conta do que distingue os indivíduos e não do que
os une; por mais que pretenda incidir no desenvol vimento emocional
das pessoas e não em seus valores morais; sua finalidade é a de
universalizar particularidades emocionais previamente definidas
como saudáveis. Seu objetivo, dito de outro modo, é o de criar
uma “norma psicológica”, fixando cer tos registros de percepção
e interpretação de fenômenos da esfe ra psíquica como modelos
dominantes para um determinado grupo social.
Este objetivo pode até reforçar nos sujeitos a convicção de que o
máximo grau de desenvolvimento psíquico corresponde ao maior
ma ideal de
desenvolvimento possível da individualização. A nor
constituição do sujeito pode ter na originalidade, na
singularidade ou unicidade de sua personalidade o
paradigma
LI

13. CASTEL, Robert. Le psychanalisme. Paris, François Maspero, 1973.


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fundamental. É o caso de nossa cultura, onde o indivíduo é tan to
mais reconhecido socialmente quanto maior for sua origina
lidade. Isto, contudo, não invalida nem contradiz o propósito
socializante: quanto mais indivíduos originais existam, tanto mais bem-
sucedida terá sido a educação.
Desta constatação se depreende que toda norma educativa,
psicológica ou outra, busca a universalização do particular, o
que implica a valorização consciente, intencional, deliberada, de
tudo aquilo que os indivíduos possam ter em comum. A educação
psicológica atinge seu objetivo quando consegue formar um
Tipo Psicológico Ordinário. Este tipo, naturalmente, tem seu perfil
moldado segundo a classe social ou subgrupo cultural a que
pertence o indivíduo, e varia no decorrer da história. Em nossa
sociedade, tomando-se por amostra a elite, observa-se que em
períodos anteriores certos traços de personalidade, como a con
tenção emocional, sexual e agressiva, ocuparam o lugar de nor ma
psicológica ideal. Hoje, a ênfase é posta em características quase
opostas. Valoriza-se a espontaneidade, a liberação da se
xualidade, da agressividade, além de se estimular o contato,
cada vez mais intenso, com sentimentos e pensamentos do que
cha mamos vida intima.
do com este
Todo indivíduo, portanto, está continuamente conviven
tipo psicológico padrão de seu grupo social. Quan do se
imagina próximo do sujeito ideal pode sentir-se, como de
hábito se sente, satisfeito e realizado; quando se imagina
afasta do, pode experimentar aflição, insatisfação ou mal-estar.
Mas este tipo de sofrimento não configura um quadro
psicopatológico embora seja, inequivocamente, um sofrimento
mental. O desvio do Tipo Psicológico Ordinário pode ser causa de
sofrimento mas não é sinônimo de doença mental. Do mesmo
modo, a aproximação do tipo pode ser fonte de satisfação sem
que isso, por si só, de fina o estado de sanidade mental.
Elucidemos o problema, tomando um exemplo clássico: o da
divergência entre Freud e Reich. Para Freud, o destino nor
mal e satisfatório das pulsões era a sublimação. Seja dito, a bem da
verdade, que Freud não acreditava na felicidade humana por achar
que havia uma incompatibilidade irredutível entre as ne cessidades de
satisfação pulsional do indivíduo e as necessidades éticas e
materiais da cultura ou civilização. Como quer que seja, para ele
a sublimação representava o ideal de maturidade afetiva ao qual
o indivíduo podia aspirar, dados os limites impostos pelas
exigências pulsionais e sociais.
Em contrapartida, para Reich, o homem freudiano, sujeito da
sublimação, era um homem reprimido e, por isto, exposto à tensão
libidinal, porta de entrada da neurose. Seu modelo psi cológico ideal
encontrava na liberação sexual a única via com patível com a
sanidade mental. Resumindo, o "homem subli mado” de Freud, que
para Reich era reprimido e neurótico, coin cidia com o que o primeiro
acreditava ser o limite de sanidade mental alcançável, numa sociedade
intrínseca e inelutavelmen te repressiva. Inversamente, o “homem
liberado” de Reich, que para Freud era imaturo, infantil, perverso
polimorfo, represen tava o ideal de sanidade mental que, por
hipótese, deveria existir numa sociedade livre de toda repressão.
Em retrospectiva, podemos dizer que ambos se equivoca ram ao
identificarem modelos de normalidade social com mo delos de saúde
mental. O homem sublimado e o homem libera do se opõem porque são
tipos psicológicos conflitantes. Porém suas existências não excluem a
experiência, tanto em um como em outro, da saúde ou da doença. O
sofrimento provocado pelo desvio social pode ou não coincidir com
aquele de origem psicopatológica. Há indivíduos que não sentem
nenhum des conforto especial por se afastarem do Tipo Psicológico
Ordiná rio e, no entanto, sofrem de maneira intensa as repercussões de
perturbações mentais.
A educação psicológica, portanto, pode ser mais ou menos fiel ao
padrão de valores dominantes. Ela pode aceitar na totali dade os
elementos que compõem o Tipo Psicológico Ordinário,
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e, no processo de socialização, levar o educando a internalizar
plenamente o sujeito ideal do grupo. Como também pode di vergir,
propositalmente, do ideal da maioria e propor um outro Tipo
Psicológico Ideal, que conteste a norma estabelecida. De qualquer
forma, a intenção consciente de dirigir a vida do edu cando
para valores universais é determinante e explícita. É neste
sentido que ela se distingue do que, por vezes, se chama de “edu
cação patogênica”.
Para efeito de clareza, repensemos o caso da educação fami liar. Na
família concentram-se muitos dos esforços para propor- . cionar aos
indivíduos uma boa educação psicológica. No entan to, quando falamos
de educação familiar é preciso distinguir noções de ordens
diversas, subsumidas no conceito educação. A família
inegavelmente transmite, na educação psicológica das crianças,
os ideais de vida que formam o Tipo Psicológico Ordi nário.
Sob este aspecto, completa ou duplica a função exercida pela
escola, religião etc. Mas, quando se supõe que a educação
familiar foi patogênica, educação, nesta acepção, não pode ser
assimilada à educação psicológica. E um exemplo típico de um mesmo
conceito pertencente a classes lógicas diversas. Educa ção
familiar patogênica alude a um fenômeno heterogêneo à educação
psicológica, no sentido acima indicado. A identifica ção usualmente
estabelecida entre as duas baseia-se em analo gias e similitudes
que escondem a descontinuidade de ações e efeitos de cada
uma delas.
Vejamos que elementos favorecem a identidade postulada entre
os tipos de situação. Em primeiro lugar, trata-se de siste mas de
comunicação humana, de natureza assimétrica. Um dos parceiros da
relação possui um código de interpretação do real que o outro
desconhece e, por isso, não tem condições de con firmar ou
infirmar a veracidade da informação recebida. Em segundo lugar, trata-se
de relações em que a dependência do receptor
para com o
transmissor é necessária e inevitável. A criança necessita
do adulto para que suas experiências emocionais se
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tornem significativas. Sem este repertório de significações, tais
experiências seriam psiquicamente abolidas do universo mental e
socialmente incomunicáveis. A dependência é uma
condição sine qua non no processo de humanização do
sujeito, nesta fase da vida. Em terceiro lugar, a criança
está exposta, de maneira particularmente vulnerável, ao
adulto, que pode abusar de sua força e submetê-la a uma
forma de violência extremamente no civa, a violência simbólica.
Por este termo entendemos toda imposição de enunciados sobre o real
que leve a criança a adotar como referencial exclusi vo de sua
detentor do
orientação no mundo a interpretação fornecida pelo
saber.14 O indivíduo crônifica a posição de depen dência e
perde ou amputa a capacidade de criar seu próprio elenco de
significados. O mundo representado sofre uma restrição, fruto da
privação sinalética. O funcionamento mental do sujeito, sim
bolicamente violentado na infância, torna-se inibido, paralisa do ou
distorcido, em maior ou menor extensão, conforme a na tureza e a
intensidade da violência.
Entretanto, insistimos, semelhança não é identidade. O alcance da
violência simbólica no ato educativo não é o mesmo da interação
emocional patogênica. A educação, mesmo quan do violenta,
respeita, por assim dizer, os valores do grupo social. Não por opção ou
decisão do educador, mas porque sua própria substância é composta
de representações socializadas. Ninguém pode transformar
água em vinho e quem só dispõe de água não pode fabricar
vinho.
cológica das
Ilustremos com fatos a teoria e a metáfora. A educação psi
crianças no nazismo foi uma educação violenta. Os jovens
nazistas internalizaram uma construção lógica da reali dade que
legitimava a destruição como norma do viver social e, além disso,
se apresentava como única, verdadeira e incontestá
14. AULAGNIER, Piera. La violence de l'interpretation. Paris, PUF, 1975.
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vel. As crianças nazistas, ou preparadas para aceitarem o
nazis mo, foram privadas, ao mesmo tempo, da possibilidade de
vis lumbrarem os elementos irracionais de suas visões de mundo e
da possibilidade de acederem a uma interpretação alternativa do real.
Raramente, na história moderna, viu-se exemplo mais bru tal de
violência educativa. Mas, não obstante toda aberração, não
podemos afirmar que a educação psicológica nazista foi
psico patogênica. A não ser que se queira fazer do nazismo uma
doen ça mental, afirmação comprovadamente ideológica, pelo
subjetivismo com que tenta explicar um fato social. A educação nazista foi
vetor de uma monstruosa alienação político-ideoló gica, mas não fator
causal de doença mental.
Deixemos, porém, os casos extremos. Analisemos a ideolo gia
democrático-burguesa em que se inspira a educação psicoló gica
hegemônica, em nossa sociedade. Podemos julgar violenta a educação
que, através do culto ao individualismo, inculca nas crianças os
preconceitos de classe, raça e sexo que todos conhe cemos. Porém,
sabemos que o indivíduo convertido a estes va lores não é doente
mental. Ele é parte integrante de um grupo cujo ethos pode nos
parecer “alienado”, “desumano” etc. Mas, ideologia é sempre
um fenômeno social e o substrato da educa ção psicológica,
em nossa realidade, nada mais é que uma ideo logia
subjetivista, indivíduo-centrado portanto, socialmente
normalizada e normalizante. Assim, quando o educador (pai,
mãe, psicólogo, professor etc.) afirma a uma criança que
o bom filho, a boa filha, o bom marido, a boa esposa, o bom pai
ou a boa mãe possuem tais ou quais predicados
emocionais, ele repe te uma injunção consensual, para um
determinado grupo. O tipo ideal uma vez definido já é socializado. E,
uma vez enunciado no ato da educação, já existe incorporado como tal
na consciên cia do educador. A coerção do discurso normativo, neste
par ticular, não deixa margens à transgressão. A única ruptura pos
sível da norma consiste na elaboração de um outro tipo ideal
também socializado ou socializável e, consequentemente, nor
malizador. A violência simbólica provocada pela educação psi cológica
preserva no indivíduo a capacidade de reconhecer em algum dos tipos
ideais a referência que torne “natural”, lógico, aceitável, significativo,
seu universo de experiências emocionais. Por alienante que seja, ela
sempre remete o indivíduo ao mundo das significações coletivas,
à lógica do discurso cultural.
Outra coisa é a relação familiar patogênica, que se pode chamar,
impropriamente, de educação patológica. Não se trata, aqui, de uma
imposição de enunciados sobre o real previamente legislados pelo
social e dependentes da intenção consciente de quem os enuncia.
No presente caso, a informação dada não co incide, em seu teor, com
a intenção do “educador”. No ato de interpretar o mundo para a
criança, um pai pode, consciente e voluntariamente, pretender
realizar plenamente a função pater na, conforme o modelo ditado pelo
tipo ideal. No entanto, a forma
e o conteúdo de sua
interpretação podem trair sua delibe ração e deixarem
passar uma mensagem que não é reconhecida porque não tem
tradução na linguagem socializada dos tipos ideais. O suposto pai
guarda a referência do Tipo Psicológico Ordinário, elemento
estável e inamovível, parte constitutiva de sua consciência
socializada. Mas particulariza-o em função das
representações imaginárias e inconscientes, cuja lógica
desconhe ce e sobre as quais não tem controle voluntário. Neste
registro, o conhecimento da regra psicológica não evita sua
transgressão. A escala de reinterpretações é infinita e só em casos
francamente graves mostra-se à consciência do “educador” como tal.
Uma mãe, por exemplo, pode dar-se conta da compulsão, produto
de uma idéia obsessiva ou delirante, em fazer sofrer o filho. Na
maioria das vezes, entretanto, esta dissociação entre conhecimen to
da norma, base da educação, e infração inconsciente,
base da psicopatologia, só é perceptível pela consciência do
observador externo.
A interação emocional potencialmente patogênica leva,
obviamente, a criança a construir um comportamento desviante
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SINO
CO

com relação ao tipo ideal. No entanto, este é seu aspecto mais


acidental. O fundamental nesta relação é seu poder de excluir do horizonte
psíquico da criança o acesso a um tipo psicológico ideal, qualquer
que seja ele. O específico da psicopatologia reside na
incapacidade que tem o sujeito de construir ou se apropriar de objetos
socializados. A interação emocional patogênica impede o sujeito de
formular projetos satisfatórios porque neles há sem pre um
pressuposto incompatível com os universais da cultura em questão. A
privatização do real, socialmente definido, levada a cabo pelo
“educador”, faz com que o indivíduo não consiga ins crever suas
experiências emocionais no conjunto de representa ções
socializadas, posto à sua disposição pela cultura. O sofri mento
mental psicopatológico tem origem nesta “ausência de senti do” do vivido
e não no puro conflito com o Tipo Psicológico Ordiná rio. O distúrbio
mental existe quando as representações de que o indivíduo dispõe
para sentir e pensar sua identidade ou as cau salidades e finalidades
de seus projetos e emoções não se articulam em nenhuma rede de
significados presente em sua consciência socializada.
Naturalmente a experiência psicopatológica será tanto mais grave quanto
ficar ou
mais extensa for a área psíquica impedida de signi
“desprovida de sentido”, como se preferir. De qualquer forma,
a referência a “doença” surge, na consciência de quem a
experimenta como na consciência de quem a diagnostica, cada
vez que o pensamento se defronta com uma representação ou um
afeto desta ordem.
Que esta experiência tenha sido apropriada, no Ocidente industrial e
capitalista, pela linguagem e terapêutica médicas, isto é um outro
problema. No momento, tentamos apenas mostrarque os efeitos da
educação psicológica são distintos dos efeitos da interação
emocional virtual ou realmente patogênica. Esta última, desde o
início, rompe o pacto social, justo ou injusto. Não se entende,
portanto, como medidas educativas poderiam servir de corretivos a
fenômenos que, uma vez surgidos, já são
ineducáveis. O que falta a um adulto potencialmente
eficaz do ponto de vista psicopatológico não são conhecimentos
psicoló gicos normativos. Via de regra, estes conhecimentos ou são
re dundantes e ineficientes ou apenas incitam os indivíduos a ade
rirem ou reforçarem a “ideologia psicológica” do grupo social.
A psicopatologia não é uma variante psicológica do proces so
educativo. E isto, é útil esclarecer, não quer dizer que exista
descontinuidade entre o psicológico e o psicopatológico. Quan do
certas teorias, como a psicanálise, afirmam a continuidade entre o
normal e o patológico, para retomar a terminologia freudiana, é
preciso que se entenda o sentido dado por Freud ao “psicoló
gico”. Para a psicanálise o substrato do aparelho psíquico alude ao real
social, tem nele sua matéria prima, mas não é um reflexo
mecânico da ação educativa, ética ou moral, do mundo exterior.
O“psicológico” da teoria analítica está em continuidade com o
psicopatológico porque sua origem traz o selo da realidade psí quica,
formação inconsciente cujas leis são generalizáveis, mas cujo
funcionamento é absolutamente pessoal, idiossincrático, estrita e
originalmente dependente da história de cada um. Mesmo
assim (e este é mais um motivo para duvidarmos do valor
preventivo da educação psicológica) a continuidade
postulada entre o normal e o patológico não implica
homogeneidade entre os estados. 15 A heterogeneidade de
uma experiência com relação a outra não nega a continuidade,
transição ou transitividade en tre elas. Afirmar, por exemplo,
que os processos psicopatológicos dos adultos exibem
características dos processos psíquicos nor mais na infância
significa afirmar que existe continuidade entre os dois. Mas um
adulto mentalmente afetado não é uma criança fora do
tempo. Existe uma heterogeneidade entre a experiência
psicopatológica do adulto e a experiência psicológica
infantil,
un

15. Quanto às noções de continuidade, homogeneidade e heterogeneidade na relação com


o normal e o patológico, ver: CANGUILHEM G. Le normal et le pathologique. 2.ed. Paris,
PUF, 1972.
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Violência e identidade
assim como existe diferença entre uma criança
mentalmente hígida e uma outra psicopatologicamente atingida.
Por conseguinte, mesmo considerando as teorias que esta belecem
uma continuidade entre o psicológico e o psicopatoló gico, existe lugar
para se afirmar a alteridade de um fenômeno para com outro. Não vemos,
então, que razões teríamos em iden tificar “educação
psicológica" à "interação emocional patogêni ca”, quando
às duas são atribuídos propriedades e efeitos psíqui cos não
só opostos, mas heterogêneos.
A menos que se queira dar ao termo educação a qualidade típica dos
princípios universais que explicam tudo, sem nada explicarem.
Contudo, neste caso, renunciaremos a entender a singularidade de
cada situação. E mais: fingiremos não ver que, até o momento,
nenhuma educação psicológica pôde reivindi car o mérito de ter
abolido ou reduzido o surgimento de doen ças mentais.
Y. tinha 21 anos quando nos procurou. Encontrava-se numa situação
delicada, respondendo, sub-judice, a um processo por porte e uso de
tóxicos. Já nas entrevistas iniciais não deixa dúvi das quanto à
imagem que pode projetar em seu meio social. Trata se de
uma biografia típica do chamado “jovem delinqüente”. Aos 4 anos
de idade, os pais separaram-se. Ficou desde então sob a guarda da mãe
que, obrigada a trabalhar, entregou-o aos cuida dos de empregadas. Aos 5
anos foi currado por garotos de um morro próximo a sua casa, onde fora
levado a passear por uma empregada. Acredita que se “perdeu” e não
sabe dar maiores explicações de como pôde ter-se encontrado em tal
situação. Esta mesma empregada, em outras ocasiões, induziu-o a fumar
ma conha e a ingerir bebida alcoólica. Tinha, nesta época, 8 ou 9 anos e
não lembra a sensação experimentada. Acha que sentiu medo,
mas ao certo recorda apenas que a mãe, tendo casualmente
surpreendido o filho embriagado, demitiu a empregada. As ba bás
contratadas posteriormente não repetiram a conduta brutal da primeira
mas tampouco souberam desenvolver uma relação afetiva calorosa com
a criança. Y. descreve-as como frias, indife rentes ou ríspidas.
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