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Se nos aventuramos a abordar uma questão tão controver tida, não foi
por intransigência semântica ou pelo prazer forma lista de distinguir
violência de agressividade ou violência de poder. Embora
concordemos com Freud, quando ele diz que começa mos a ceder
pelas palavras e terminamos por ceder nas coisas, o motivo
essencial de nossa reflexão é bem outro.
Além de constatarmos o pouco espaço dado à violência na literatura
psicanalítica, notamos que este espaço vem sendo ocu pado por
esgrimas verbais e grandiloqüências ocas. Este proce dimento não
condiz com a gravidade e a seriedade do problema. Alguns teóricos
resolveram transformar a violência em palco para a exibição dos piores
excessos retóricos. Inventaram, assim, uma "violência acadêmica” tão
distante da “violência da vida” que, em certos momentos, não sabemos
mais se aquilo a que se refe rem tem algo a ver com aquilo que
conhecemos ou experimen tamos.
Como para agir é preciso ver e julgar, cabe ao analista deci dir qual das
duas é matéria de seu interesse. De nossa parte, não temos dúvida: é a
segunda que interessa ao psicanalista.
Freud, é sabido, não tinha muito senso de humor. Mas, se lhe faltava
humor, sobrava-lhe fineza de observação. Conta-se, por exemplo, que
teria respondido a uma mãe que lhe pergun tara o que fazer para
bem educar o filho: "Faça como quiser, qualquer que seja a maneira ela
será igualmente má”. Freud, descontado o mau humor, pretendia afirmar
que não existe pre venção possível da neurose.
Hoje em dia, estamos de tal forma habituados a crer que a saúde mental
depende da educação, que uma afirmação seme lhante pode causar
estranheza. No entanto, acreditamos que ela contém algo de
verdadeiro e, por isso mesmo, é digna de aten ção. O que pode
nos fazer acreditar, sobretudo a nós, profissio nais ligados à área
de saúde mental, que saúde e educação são termos de uma
equação necessária? A lógica que fundamenta esta asserção é
da ordem do senso comum ou da ordem da ciência, poucoimportando,
no momento, distinguir o que qualifica uma e outra.
Na verdade, antes mesmo de iniciarmos a reflexão sobre o assunto é
necessário precisar os termos da discussão. Reservare mos à palavra
educação o sentido que lhe é usualmente dado na literatura
sobre o tema, ou seja, o da administração de conheci
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mentos psicológicos com vista à prevenção de distúrbios neuró ticos e
caracteriais. Não estenderemos a análise ao campo das doenças de
etiologia orgânica, isto é, às seqüelas mentais de afecções
tóxicas, infecto-contagiosas, carenciais, metabólicas etc. Neste caso,
a educação coincide com as medidas profiláticas médico-higiênicas e
não com a tentativa de prevenção das ano malias do comportamento.
Sua validade é, a nosso ver, consen sual. Não há o que discutir.
Tampouco levaremos em conta ca sos extremos de privação física ou
emocional que podem levar os indivíduos a desenvolverem reações do
tipo psicótico. Tam bém aqui é indiscutível a nocividade dos fatores
etiológicos em causa, e a possibilidade de prevenção destes quadros
não concerne à educação, no sentido acima descrito.
Nosso objetivo é mais limitado, embora esta limitação não seja
gratuita, na medida em que a maioria dos esforços educativos dirige-se,
justamente, à prevenção de neuroses e condutas carac teriais. Por
conseguinte, centraremos nosso trabalho na análise destas propostas,
ressalvando, de antemão, o caráter provisório de nossos argumentos e
hipóteses. Procuraremos demonstrar, primeiramente, que alguns
pressupostos contidos na afirmação de que a saúde mental depende da
educação possuem uma lógi ca equivoca. E, em seguida, a partir de
fundamentos históricos, mostrar que a educação psicológica não produz
saúde mental mas reproduz, tão-somente, a ordem social.
ratura psicológica. Neste contexto, educação é tomada ora num
vago sentido filosófico, o de fazer emergir o potencial humano dos
indivíduos, ora no sentido estrito de instrução ou escolari zação.
Outras vezes, a noção é identificada à socialização no clás sico sentido de
transmissão de valores culturais. Neste último caso, a socialização ora
se restringe à ação educativa na infância ora se refere ao processo que
acompanha o sujeito em toda sua vida biológico-social.
tenda
Esta pluralidade de sentidos é significativa para quem pre
formular projeto em saúde mental. Ela pode conferir a tais
projetos dimensões variáveis. Dependendo de como se en
tenda a educação, pode-se desejar que o agente de saúde conver ta-
se numa instância onipresente na vida social ou numa pre sença
mais discreta, que se limite a intervir junto a instituições de maior
importância, em certas etapas do processo educativo. Não se pode utilizar,
portanto, o vocábulo educação corno um conceito inequivocamente
definido no conjunto de teorias psi cológico-psiquiátricas. A variação no
seu emprego é decisiva quando pensamos em quem vai ser educado,
como, em que limi te de tempo e em que espaço social. Só dispondo
desta informação podemos julgar se o instrumental educativo é
compatível com a tarefa proposta.
Suponhamos, entretanto, que este trabalho preliminar te nha sido
cumprido, e tomemos como modelo de resolução o caso da
educação das crianças. O exemplo não é aleatório. A educação
infantil vem sendo insistentemente considerada a pe dra de
toque dos programas da saúde mental, por motivos, à
primeira vista, aceitáveis. Na infância, os contornos do
sujeito, período e espaço social da ação educativa são mais
precisos, as sim como são mais limitados, em número e
importância, os agentes da educação, dada a inegável
preponderância da família e da escola como veículos de
socialização, nesta faixa de idade.
Restaria perguntar, portanto, em que consiste a educação para a saúde
mental na infância? A resposta não é difícil. Excluí
1. O pressuposto da identidade conceitual
Quando se postula a idéia de que a educação interfere na saúde
mental, não se deixa claro o que se entende por educação, saúde e
doença. Aparentemente, os termos são empregados como se
possuíssem uma identidade conceitual que dispensasse suas prévias
definições. Este pressuposto está longe de ser verdadei ro. O termo
educação possui numerosas acepções, senão em sua natureza,
digamos, pedagógica, pelo menos em seu uso na lite
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das as minúsculas divergências quanto ao ritmo e à execução,
educar para a saúde mental significa, na prática, transmitir co
nhecimentos psicológicos às crianças. Diretamente, através dos
profissionais de saúde, ou, indiretamente, através da família, escola e
instituições afins. Reduzida à expressão mais simples,
educação quer dizer instrução psicológica segundo o que
cada profissional considera a “boa psicologia”. A conclusão
pode parecer banal porém seus efeitos, a nosso ver, nada têm de
óbvios. O raciocínio é simples: existirão tantas “boas educações
psicológicas” quantas forem as preferências teóricas dos responsáveis
pela educação. Como é previsível, as chances de um acordo em torno da
“boa educação" são, em princípio, pequenas. Um educador partidá rio
de Rogers seguramente veria com reservas a “boa educação"
proposta por um outro, partidário da psicanálise. Do mesmo modo, um
terceiro, influenciado pelo behaviorismo, oporia resis tências às certezas
educativas dos dois anteriores, e assim por diante. Perguntaríamos,
então, qual dessas correntes, além de outras não citadas e além das
infinitas divisões é subdivisões que as separam, promoveria a boa saúde
mental? A opção não seria fácil. E isto considerando a hipótese mais
simples, ou seja, des cartando as eventuais inclinações do próprio
público receptor e assinalando apenas os previsíveis desentendimentos
entre os agentes da educação.
No que concerne aos termos saúde e doença mental, a com plexidade não
é menor. Depois de “relativizados culturalmente” até a exaustão por
historiadores, antropólogos e sociólogos, es tes conceitos começaram a
co psicológico-psiquiátrico. Em
flutuar dentro do pensamento clíni
primeiro lugar, graças ao desen volvimento das teorias
psicossociogenéticas que, por um lado, revisaram as concepções
mais rígidas da nosologia clássica, mas, por outro, enquadraram toda
uma série de condutas e sentimentos, antes desprezados pela
psiquiatria organicista, na categoria de doenças ou de
estruturas tratáveis psicoterapicamente. Em segundo lugar,
pela reação da psiquiatria convencional (leia-se,
a psiquiatria dos anuais acadêmicos e das classificações interna cionais de
doenças mentais), que respondeu as inovações, assi milando algumas
delas. É o caso da psiquiatria americana que, em grande parte, deixou de
considerar algumas das chamadas "perversões sexuais” como doença.
Dada a finalidade do trabalho, é irrelevante aprofundar os motivos
destas transformações. Para alguns, é próprio da razão
científica esta evolução para um conhecimento cada vez mais adequado a
seu objeto; para outros, todas estas mudanças nada mais são que
acomodamentos táticos do poder-saber psiquiátri co. Diante de nosso
propósito, é suficiente constatar que, não obstante as discordâncias
quanto ao conteúdo da "boa educa ção” e a oscilação dos conceitos de
saúde e doença, muitos agen tes de saúde persistem acreditando na
causalidade educativa da saúde mental.
Deixemos de lado, por enquanto, esta questão. Mais adian te, dispondo de
outros elementos, ela poderá ser, talvez, melhor explicada e entendida.
Abordemos um outro ângulo da propos ta, o que diz respeito à sua suposta
originalidade como instru mento de prevenção das doenças mentais.
2. O pressuposto da originalidade
Se a idéia de que existe uma “boa educação" para uma boa
saúde mental” é discutível, a idéia de que esta proposição é ori ginal não é
só discutível, é falsa. Bem entendido, não afirmamos que os defensores
destas proposições reivindiquem explicitamen te a etiqueta de
originalidade. Notamos apenas que o modo como a idéia é correntemente
apresentada induz o ouvinte ou leitor a percebê-la desta forma.
Freqüentemente, os projetos deste gênero insinuam que a educação
para a saúde” é uma eventualidade, uma aspiração entravada por
interesses político-econômicos. A imagem vendi da
é a do ideal com o
qual se sonha e que a mesquinhez do real
la.
C
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impede de se concretizar. A educação é uma possibilidade refe rida a um
futuro histórico, sem equivalência no passado e sem apoio no presente.
Assim apresentada, a questão assume automaticamente o caráter de
descoberta, de experiência intuída e não realizada, conseqüentemente,
original. Ora, o que sabemos é que a crença na educação científica dos
indivíduos como meio preventivo de doenças mentais antecedeu o
nascimento da psiquiatria e das psicologias. O movimento higiênico-
pedagógico dos séculos XVIII e XIX, que deu origem a este tipo de idéia,
efetivou este projeto, apoiado nas escolas e nas famílias. E, mais que isto,
a partir des ta prática forneceu as bases do conhecimento que, em grande
parte, constituíram a psiquiatria e a psicologia enquanto disci plinas
científicas. 1-2-345e6 Em outras palavras, o ideal de hoje já foi
realizado ontem.
Todavia, a experiência dos séculos passados pode ser histo
ricamente relativizada e, por conseguinte, anulada em sua perti nência
para com os métodos, objetivos e objetos da experiência
educativa atual. Retomemos, então, um exemplo de nosso sécu lo. E, para
efeito de demonstração, analisemos o caso particular da pretensão
educativa que marcou tão fortemente toda uma geração de psicanalistas e
educadores influenciados pela psica nálise. E de Anna Freud a
seguinte citação: “Não obstante nu merosos progressos
parciais, a educação psicanalítica não conse guiu tornar-se à
arma preventiva que devia constituir-se. E ver dade que as crianças que
cresceram sob sua influência foram, sob vários aspectos, diferentes das
gerações anteriores, mas não foram, por isso, liberadas de
angústias e conflitos e, por conse
guinte, menos expostas que outras a afecções neuróticas ou a
outras doenças mentais: surpresa que não teria razão de ser,
caso certos autores, em vez de terem se deixado levar pelo otimismo e
entusiasmo com respeito ação preventiva, tivessem observado a
estrita aplicação dos princípios psicanalíticos. Segundo estes
princípios, não existe, no conjunto, prevenção da neurose”.?
Este texto, escrito há quase 20 anos, não mostra uma só ruga. Em
seu apoio, poderíamos chamar outros testemunhos. Bruno Bettelheim,
apreciando os resultados da educação psica nalítica
dos kibutzim,
chega a conclusões idênticas. Admitimos, contudo, que a
visão psicanalítica dos autores não é representa tiva da
psicanálise em geral e que as experiências narradas foram
necessariamente marcadas pelos contextos institucionais em que
se desenrolaram. A exemplaridade dos modelos poderia, assim,
ser contestada, e sua universalidade, negada.
Recorramos, portanto, a tentativas mais próximas de nossa realidade
social, abandonando, por um momento, a educação psicanalítica.
educativos
O que restou da imensa propaganda e dos esforços
despendidos pelos psiquiatras da Liga Brasileira de Higiene
Mental? Fique claro que estamos aludindo às iniciati vas de homens
como Ulysses Pernambucano e não à atividade do grupo
nazifascista que também pertenceu àquela instituição.? Ao
que saibamos, as estatísticas de saúde mental permaneceram
empedernidamente insensíveis ao aparelho educativo
montado pela Liga. Mas o Brasil é um país pobre,
desorganizado, avesso à veracidade e à confiabilidade estatísticas.
Tomemos, então, o exemplo americano, insuspeito neste sentido. Ao
que nos cons ta, também neste caso, os resultados obtidos com os
faraônicos programas educativos de saúde mental dos anos 1960 em
nada alteraram a sanidade psicológica daquele povo.
U
SINO
CO
Violência e identidade
assim como existe diferença entre uma criança
mentalmente hígida e uma outra psicopatologicamente atingida.
Por conseguinte, mesmo considerando as teorias que esta belecem
uma continuidade entre o psicológico e o psicopatoló gico, existe lugar
para se afirmar a alteridade de um fenômeno para com outro. Não vemos,
então, que razões teríamos em iden tificar “educação
psicológica" à "interação emocional patogêni ca”, quando
às duas são atribuídos propriedades e efeitos psíqui cos não
só opostos, mas heterogêneos.
A menos que se queira dar ao termo educação a qualidade típica dos
princípios universais que explicam tudo, sem nada explicarem.
Contudo, neste caso, renunciaremos a entender a singularidade de
cada situação. E mais: fingiremos não ver que, até o momento,
nenhuma educação psicológica pôde reivindi car o mérito de ter
abolido ou reduzido o surgimento de doen ças mentais.
Y. tinha 21 anos quando nos procurou. Encontrava-se numa situação
delicada, respondendo, sub-judice, a um processo por porte e uso de
tóxicos. Já nas entrevistas iniciais não deixa dúvi das quanto à
imagem que pode projetar em seu meio social. Trata se de
uma biografia típica do chamado “jovem delinqüente”. Aos 4 anos
de idade, os pais separaram-se. Ficou desde então sob a guarda da mãe
que, obrigada a trabalhar, entregou-o aos cuida dos de empregadas. Aos 5
anos foi currado por garotos de um morro próximo a sua casa, onde fora
levado a passear por uma empregada. Acredita que se “perdeu” e não
sabe dar maiores explicações de como pôde ter-se encontrado em tal
situação. Esta mesma empregada, em outras ocasiões, induziu-o a fumar
ma conha e a ingerir bebida alcoólica. Tinha, nesta época, 8 ou 9 anos e
não lembra a sensação experimentada. Acha que sentiu medo,
mas ao certo recorda apenas que a mãe, tendo casualmente
surpreendido o filho embriagado, demitiu a empregada. As ba bás
contratadas posteriormente não repetiram a conduta brutal da primeira
mas tampouco souberam desenvolver uma relação afetiva calorosa com
a criança. Y. descreve-as como frias, indife rentes ou ríspidas.
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