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Júlio Machado Vaz: 

"Se for necessário


marcha-atrás nas restrições, tenho
dúvidas quanto à reação da população"
Os efeitos da pandemia na saúde mental dos portugueses em análise no divã do
psiquiatra, que assume que "já esteve deprimido". Acredita no potencial da tecnologia,
mas não teme que substitua o médico. Sobre a eutanásia, é um dos assinantes do
manifesto e diz que "ficaria muito surpreendido se não caíssemos numa situação de, em
termos legais, isso ter sido aprovado e, em termos operacionais, começarmos a
caminhar em terreno enlameado e que torna o trajeto muito lento".

Júlio Machado Vaz.

© Leonel de Castro/Global Imagens

Rosália Amorim e Pedro Cruz (TSF)


13 Maio 2022 — 07:00

Psiquiatra, professor universitário e comunicador, há mais de 30 anos que nos


habituamos a vê-lo, ou a ouvi-lo, a tentar explicar temas complexos em palavras
simples. Não gosta que lhe chamem sexólogo, mas foi por aí que se tornou conhecido
dos portugueses, um rótulo que lhe ficou colado à figura e à voz. Entre a televisão e a
rádio, nunca deixou de dar consultas, há uma década abandonou a faculdade, o
ambiente estava, diz ele, irrespirável. Depois de anos de pandemia e restrições, a saúde
mental entrou na ordem do dia. O nosso convidado é Júlio Machado Vaz, 72 anos.

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desenhar-se", diz relatório

Depois de dois anos de pandemia estamos todos a precisar de ir ao divã ou só


alguns?
Alguns estão, mas não devemos confundir, aliás, o meu querido professor Coimbra de
Matos explicava isso como ninguém: não devemos confundir tristeza com depressão,
portanto, acrescentaria que também não devemos confundir profundo cansaço com
depressão. É sempre perigoso quando começamos a psiquiatrizar sentimentos que
acabam por ser normais, perante os desafios que nos aparecem pela vida, e estes dois
anos têm sido um desafio grande, inesperado, e que continua. Isso leva-nos longe, não
sei se concordam, mas há um sentimento em muitos de nós que foi decretar o fim da
pandemia e ponto final. Por outro lado, começamos a ler que talvez estejamos no início
de uma sexta vaga, portanto, há aspetos que transformam o momento em que vivemos,
tem-se estado muito mais ocupado com a guerra na Ucrânia, mas transforma-se numa
situação curiosa. Isto porque tenho sinceras dúvidas de que se for considerado
necessário fazer travão às quatro rodas e fazer alguma marcha-atrás, tenho muitas
dúvidas quanto à reação da maioria da população.

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Não foi na verdade decretado, mas temos todos já esse sentimento de libertação.
Tem toda a razão. O verbo decretar tem um peso quase Diário da República, empreguei-
o no sentido em que as pessoas, umas conscientemente e outras inconscientemente,
assumiram que esta primavera marcava o fim da pandemia. Há muita gente que já fala
na pandemia no passado e a realidade é mais complexa do que isso.

As restrições a que fomos sujeitos, os confinamentos, o medo de uma doença


totalmente desconhecida e altamente contagiosa, de alguma forma criaram
desequilíbrios emocionais em cada um de nós, e na própria sociedade, que levarão
muito tempo a resolver, ou não?
Mais uma vez, não podemos generalizar. Houve pessoas que passaram sem grandes
sacudidelas, por isso houve outras que tiveram e ainda têm problemas, mas em que a
recuperação - partindo do princípio de que não estamos a caminho da décima quinta
vaga -, se fará de modo rápido e sem problemas maiores. Mas temos de assumir, e os
meus colegas responsáveis pela saúde mental fizeram isto desde o início, que há
consequências psicológicas que, algumas delas, justificam até diagnósticos psiquiátricos
e que têm uma característica que é quase irónica, que parece "de mau gosto",
prolongam-se no tempo. Ou seja, o tempo da doença biológica, digamos assim, não é o
mesmo tempo das consequências a nível da saúde mental.

"Nas consequências de confinamento, até em profissionais de saúde, observaram-se


casos de stress pós-traumático quatro e cinco anos depois dos acontecimentos."

Estes efeitos da pandemia podem sentir-se ao nível emocional por quanto tempo?
Só tínhamos tido experiências, embora em muito menor escala, sobre as consequências
de confinamento, até em profissionais de saúde, e observaram-se casos de stress pós-
traumático quatro e cinco anos depois dos acontecimentos. E, ainda por cima, afetavam
o comportamento dos profissionais de saúde, um exemplo: havia colegas meus, três ou
quatro anos depois, quando numa consulta normalíssima de seguimento a pessoa à sua
frente tossia, tinham um movimento automático de recuo. As coisas ficaram de tal
maneira incrustadas que ainda influenciam o comportamento pessoal, ainda por cima de
um profissional de saúde.

Portanto, um estado de alerta constante.


É verdade, e se quisermos ir ao diagnóstico, porque tive o cuidado de dizer que será
uma minoria, mas que existe, há muito ainda a ideia em Portugal que o stress pós-
traumático é algo que só afeta ou afetou quem esteve na guerra colonial. E aqui
permitirão que renda a minha homenagem ao meu grande amigo e recentemente
perdido, o dr. Afonso de Albuquerque que se bateu nessa área como ninguém. Mas não
é verdade, começamos a observar situações de stress pós-traumático, observaremos
situações de agravamento de patologias pré-existentes, e aparecerão distúrbios de
ansiedade e distúrbios depressivos.
Dados recentes mostram que a sociedade portuguesa está muito mais desperta
para a problemática da saúde mental. Mais de dois terços dos portugueses
consideram que se trata de uma área de intervenção prioritária. Na sua opinião,
resulta dos últimos dois anos ou simplesmente do facto de se falar mais do tema,
inclusive na comunicação social?
Sim, tem-se falado mais do tema. Não podemos esconder o sol com a peneira e temos
um problema de iliteracia na saúde, mas que está incluído num problema de iliteracia no
geral. A saúde mental foi sempre encarada - e agora estou a falar mesmo nos
profissionais e pelos profissionais -, como, digamos assim, a enjeitada do ramo da
medicina. A queixa psicológica foi sempre considerada menos credível, menos
"honesta", do que a queixa física. Quando conversamos e alguém refere algo que tem a
ver com ortopedia, medicina interna, etc., não nos passa pela cabeça duvidar da
seriedade da questão, da necessidade de procura de ajuda, mas com a saúde mental não
é assim.

"Os homens têm uma pressão social ainda maior para considerar o sofrimento
psicológico como uma demonstração de fraqueza (...) foram educados com aquelas
frases como "um homem não chora".

A dor da alma não está catalogada.


Não e, ainda por cima, há um efeito género, ou seja, os homens têm uma pressão social
ainda maior para considerar o sofrimento psicológico como uma demonstração de
fraqueza. Portanto, é muito vulgar recebermos homens que estão em estados mais
adiantados de sofrimento psicológico, porque eles acham que já deveriam ter
conseguido resolver aquilo. Ainda foram educados com aquelas velhas frases como "um
homem não chora", "mostra que és um homem", etc.. Mas as falhas claras, as
insuficiências melhor dizendo, ao nível da saúde mental existiam antes da pandemia, a
pandemia só veio aprofundar essas feridas. Tenho lido com prazer as declarações do
professor Miguel Xavier, do meu velho amigo o professor Lauret Fernandes e, portanto,
tenho a esperança que isto sirva para de uma vez por todas - não vai acontecer de uma
semana para a outra -, se perceba que não podemos andar pelo país inteiro a dizer às
pessoas que a saúde é uma questão global, da parte psicológica, da parte física, um dos
adjetivos da moda é uma visão holística da pessoa, e depois no concreto os meus
colegas dizerem-me que quando pedem para referenciar alguém para uma consulta, por
exemplo, de psiquiatria ou psicologia, essa consulta leva meses e meses até se realizar.
É impensável.

Tem esperança que tenha impacto nas políticas públicas do Ministério da Saúde ao
nível da saúde mental?
É verdade, veja o número de psicólogos nos cuidados de saúde primários.

Mas, ao mesmo tempo, Portugal é o país onde se receita mais antidepressivos e


ansiolíticos. Na sua opinião, trata-se de um excesso de prescrições ou de um
número anormal de casos? No sentido em que, seremos nós, por definição, um
povo triste, dado a estados de alma negativos, com o fado, a fatalidade e o luto, ou
isso são as tais heranças da mesma lógica de "um homem nunca chora"?
Tenho uma posição muito ambivalente em relação a isso. Sempre achei que tínhamos
um bocado de azar em sermos vizinhos dos espanhóis, porque eles têm uma alegria de
viver, uma capacidade de encher aquelas magníficas praças enormes de carrinhos de
bebé para beberem uma "copa" antes de irem jantar às dez da noite, etc., que a nós nos
faz sempre parecer macambúzios. Mas não alinho nada, por outro lado, nessa história de
que estamos sempre atacados por um espírito de um fado, não, os portugueses não são
assim tão dotados de especificidades a nível do humor. Não creio que seja isso que está
em causa, o que acontece é que perante determinadas situações, a população apercebe-
se daquilo que lhe vai dentro. O facto de se ter começado a falar mais de saúde mental
também foi importante, é verdade, mas arriscar-me-ia a dizer que terá sido mais
importante para aqueles que decidem, para aqueles que planeiam, do que propriamente
para aqueles que estão habituados a que, cada vez que nessas áreas procuram ajuda,
terem respostas de todo insuficientes.

"Doença psiquiátrica implica escutar. A esmagadora maioria dos meus colegas,


sobretudo nos cuidados de saúde primários, não tem essa possibilidade. Nessas
situações, é mais fácil prescrever."

Mas já não temos o rácio mais alto de medicamentos antidepressivos em Portugal?


Em primeiro lugar, as condições de trabalho influenciam. Como compreende, o
sofrimento psicológico - e repare que tenho o cuidado de não dizer "a doença
psiquiátrica" -, implica que se tenha possibilidade de escutar as pessoas. A esmagadora
maioria dos meus colegas, sobretudo nos cuidados de saúde primários, não tem essa
possibilidade. Nessas situações, é mais fácil prescrever, é mais rápido, e isso acontece.
Por outro lado, vivemos numa sociedade que está muito virada para soluções rápidas e,
por isso, também não é raro que do lado da própria pessoa que tem as queixas, haja a
nostalgia de uma pastilha que vai resolver tudo. Portanto, nessa altura, acaba por se
formar uma espécie de tempestade perfeita, em que dos dois lados da secretária há um
movimento de mútuo acordo para a medicação. Aí, regressaria ao que disse
anteriormente a respeito da tristeza e da depressão: enquanto as depressões - o que não
significa que não haja apoio psicoterapêutico -, pressupõem uma ajuda medicamentosa,
não faz sentido nenhum estar a medicar a tristeza. A tristeza é algo tão natural como a
alegria e demasiadas vezes nós profissionais, psiquiatras ou não, porque é bom não
esquecer que não são só os psiquiatras que receitam medicação psiquiátrica, por vezes
estamos a sobremedicar. Portanto, esses números, em termos de literacia de saúde dos
próprios profissionais, são números que são preocupantes em termos do país.

Há pouco falou das condições de trabalho: trabalhamos de mais, ganhamos de


menos, ou seja, grande parte da vida útil é passada a trabalhar com pouco espaço e
tempo para o lazer? A semana de quatro dias, por exemplo, poderia ter um efeito
no sentido de melhorar o bem-estar na sociedade?
Poderia. É uma coincidência que me ponha essa questão porque ontem mesmo gravei
com a Inês sobre o ócio, um texto belíssimo de Robert Louis Stevenson, A Capacidade
do Ócio.

Mas não há tempo para ele ultimamente.


Temos uma visão pejorativa da própria palavra, mas o ócio não é não fazer nada, o ócio
pode ser muito produtivo. Por exemplo, havia nos clássicos a noção que enquanto o
ócio era destinado ao trabalho intelectual, o negócio era destinado ao trabalho ligado à
sobrevivência. Quando me fala na semana de quatro dias, o que tenho dificuldade é em
falar nisso isoladamente, porque isso vem no seguimento de outras ideias, muitas delas
aplicadas como, por exemplo, a flexibilização do trabalho. Isto vive paredes-meias com
questões como a crise da natalidade, mas também o maior empoderamento dos
trabalhadores. Sabemos que a rentabilidade é maior quando os trabalhadores, em
qualquer tipo de área, têm a noção que eles próprios têm uma determinada autonomia
para que as tarefas sejam levadas a cabo, e não que estão inseridos numa espécie de
cadeia de produção completamente automatizada.

Recordo-vos aquela imagem extraordinária de Chaplin nos Tempos Modernos, em que


saía da fábrica e começava a apertar os botões dos casacos das pessoas na rua porque
era isso que ele fazia todos os dias. A priori e por aquilo que me é dito pelas pessoas que
estudam o tema, a semana de quatro dias não tem nada que me assuste, não é uma
questão de preguiça como diz muita gente. Gostaria de recordar que houve uma altura
em que foi preciso haver lutas sociais para não se trabalhar ao sábado, para nós o fim de
semana é mais ou menos um direito adquirido. A questão não está aí, a questão está na
organização de trabalho, e se se provar que com quatro dias por semana o trabalho não
sofre com isso, que isso pode ajudar, de certa forma, em termos da problemática do
desemprego, a minha questão é, porque não? Nós não inventámos a roda, há países que
estão a experimentar esse sistema, vamos ver as avaliações que já existem, e um dia,
porque não?

Recentrando na importância de colocar os cidadãos à frente da doença, isso


realmente aconteceu com a pandemia ou a covid-19 ultrapassou tudo e todos?
Fomos abalroados pela covid-19, mesmo nos serviços de saúde e passou à frente
daquilo que é o interesse do cidadão?

Fomos. Fomos porque a manta é curta, como diz o povo, e, portanto, uma inevitável
concentração de recursos numa determinada área, como foi e tem sido a área da
pandemia, fez com que outras áreas e o metabolismo basal dos serviços em geral, e dos
cuidados de saúde em particular, foram muito afetados. As pessoas queixam-se ainda,
mas queixavam-se amargamente, que não conseguiam entrar em contacto com os
profissionais de saúde. Por outro lado, é bom também dizer isto, os profissionais de
saúde queixavam-se amargamente de que lhes eram acometidas funções que não
deveriam ser da sua responsabilidade, e que os impediam de prosseguir a sua atividade
normal mínima, naquilo que é o mais nobre da profissão, que é a consulta com o doente.
É evidente que a tecnologia ajudou em termos das questões do confinamento, as
comunicações por e-mail, etc., mas quer queiramos quer não, houve um prejuízo
enorme da atividade, ainda por cima, da área fulcral do SNS que são os cuidados de
saúde primários, que já viviam em dificuldades, e que ficaram completamente
submersos com a situação que atravessámos. Isto é evidente que tem consequências,
mas havia problemas que vinham de trás, qualquer um de vocês já ouviu aquela
expressão de que "gosto muito do meu médico de família, mas ele só olha para o ecrã
do computador", ou seja, problemas na relação médico-paciente.

"A inteligência artificial abre-nos perspetivas magníficas a nível da imagiologia, a nível


da capacidade de articular os serviços (...), mas dentro dos seus limites que têm a ver
com a lógica."

Já todos ouvimos falar muito de tecnologia na saúde, fala-se muito do avanço da


robótica, da inteligência artificial e por isso pergunto, que papel fica reservado ao
tal humanismo essencial à medicina?
Enquanto estava à espera de estabelecer ligação convosco, estava a ler na diagonal um
artigo enviado pelo professor Espiga de Macedo, uma amizade de 60 anos, e o artigo era
sobre as questões do diagnóstico, a relação médico-doente, etc.. E dizia algo que assino
por baixo: a inteligência artificial abre-nos perspetivas magníficas a nível da
imagiologia, a nível da capacidade de articular os diversos serviços, da informação
circular, etc.. Depois, era a opinião de quem escrevia o artigo, há determinadas funções
de integração, tanto do tratamento como do diagnóstico, em que a inteligência artificial
tem muito mais dificuldades, e em que o médico continua a ser mais eficaz. Mas antes
de tudo isto há outra coisa: o que é que esperamos da medicina? Uma relação entre duas
pessoas com todo o auxílio que a inteligência artificial nos pode dar? Aliás,
recentemente, um colega meu nos Estados Unidos, depois de sublinhar todos os avanços
da inteligência artificial, quando lhe perguntaram o que valorizava mais em tudo isso,
sorriu e disse, "estou com uma enorme esperança de que a inteligência artificial me
permita ter o tempo para ver cada doente, que tinha há 20 ou 30 anos". Isto conta muito,
e até me podem dizer, e aqui também há diferenças nos estudos entre os mais velhos e
os mais jovens, os mais jovens estão mais disponíveis para aplicações, contactos à
distância, para um diagnóstico que é dado pela própria máquina ou algoritmo, mas isso
não significa que depois não haja a nostalgia do contacto humano. Não podemos pedir à
inteligência artificial que funcione fora dos seus limites, e os seus limites têm a ver com
a lógica. Somos um animal que muitas vezes é profundamente ilógico e isso é algo com
que temos de lidar em consulta, ao longo do tratamento. Houve agora uma
pequena/média discussão por causa de um critério em relação ao desempenho dos meus
colegas das USF tipo B, com a questão das interrupções de gravidez e com as infeções
sexualmente transmissíveis e isso já foi retirado. Vejamos, isto tem a ver com uma
nostalgia de que me lembro de há 30 ou 40 anos, por exemplo em relação às infeções
sexualmente transmissíveis, e depois há aquela hipocrisia que é falarmos disto como se
apenas se referisse aos mais jovens, o que é uma redonda e anafada mentira. Mas a
nostalgia era a seguinte: se as pessoas estiverem devidamente informadas, não haverá
comportamentos de risco. Isto pura e simplesmente não é verdade porque em
determinadas situações as pessoas tentam a sorte, portanto, ir buscar a uma situação
dessas a prova de uma determinada incompetência do profissional de saúde, não faz
sentido rigorosamente nenhum. E reparem que nem sequer abordei isto pelo prisma de
liberdade das pessoas, não é preciso ir aí, basta ter a noção de que a informação só por si
não garante nada em relação ao comportamento das pessoas.

"Assumi que tinha estado deprimido. E colegas meus telefonaram-me dizendo 'o que tu
fizeste é suicidário. Quem é que agora te vai consultar?'. E não foi isso que aconteceu.
Havia pessoas que iam ter comigo e diziam "talvez o senhor perceba".

O senhor é um psiquiatra que já teve uma depressão, já confessou isso e explicou


porquê.
Permita-me só, por deformação profissional, pôr a coisa de outra maneira? Estive
deprimido. Sabe porquê? Quando dizemos "teve uma depressão", parece que outro
diagnóstico psiquiátrico está numa esquina, terrivelmente chateado, por não ter nada
que fazer, passamos nós e cai-nos em cima. Não é assim. Não é uma entidade externa.
Numa determinada altura nós estamos deprimidos. E, com um bocado de sorte, depois
deixamos de estar.

O facto de ter estado deprimido ajuda-o a perceber melhor quem tem diante de si?
Eu acho, e aqui tenho que deixar uma palavra de agradecimento do dr. Jaime Milheiro,
que foi o meu psicanalista há 40 anos. Estou profundamente convencido de que se não
fui mais longe em autoconhecimento, a culpa foi minha porque ele fez, na minha
opinião um ótimo trabalho e hoje faz-me o favor de ser um bom amigo. Se, por um
lado, eu tive a opção - e não estou a dizer que foi a melhor -, houve alturas da minha
vida em que eu pensei que não era assim que as coisas se deviam passar, mas fiz
psicanálise e não fiz terapia medicamentosa. Eu próprio era psiquiatra e tinha a sensação
de que é mais do que legítimo que tentemos fazer abrandar os sintomas com medicação,
mas eu tinha a sensação de que o fulcro da questão não era esse. Que havia um padrão
na minha vida que era preciso deslindar, e que sem isso não iria lá. Portanto, em termos
de autoconhecimento foi bom. Um psiquiatra, um psicólogo, um médico de medicina
geral e familiar, que se conhece melhor, em geral tem melhor capacidade de empatizar
com quem está à sua frente. No meu caso particular, houve um pormenor, hoje em dia
engraçado, já não sei em que entrevista, eu assumi que tinha estado deprimido. E
colegas meus, muito bem-intencionados, telefonaram-me dizendo "o que tu fizeste é
suicidário. Quem é que agora te vai consultar?". E não foi isso que aconteceu. O que
aconteceu é que havia pessoas que iam ter comigo e diziam "eu ouvi aquilo, eu li aquilo,
talvez o senhor perceba". Ou seja, quando uma pessoa me dizia "eu estou
completamente desmotivado, não tenho um objetivo na vida, ando triste, etc.", e eu
dizia "se calhar tem aquela sensação desagradável que é custar-nos até abrir a persiana
de manhã". Não era raro a pessoa dizer "é exatamente isso". E isto para a pessoa é
reconfortante. Do outro lado alguém entende. Cuidado que não estou a dizer que haja
workshops para deprimir os psiquiatras.

A que médicos vai o médico Júlio Machado Vaz? E como funciona essa relação
paciente-médico quando o próprio paciente é médico? É uma luta, uma discussão,
é um debate?
Essa é uma daquelas perguntas que só me apetece dar a resposta clássica: "só na
presença do meu advogado". Porque nós os médicos, com enorme frequência, sendo
médicos de outro médico, e sendo doentes de outro médico, furamos completamente as
regras. Primeiro, porque não é nada raro que as nossas consultas sejam em conversas de
corredor ou num jantar em que estamos com o colega ou, porque também somos
médicos, perante uma medicação que aceitámos oficialmente chegamos cá fora e
imediatamente adaptamo-la porque achamos que aquele medicamente não precisa de ter
aquela dose, aquele outro talvez a uma outra hora. Somos muito indisciplinados. E isso
não é bom. Lembro-me de um livro que li, sobre relação entre médico e doente, e que se
debruçava sobre essa questão. Um colega meu trabalhava com um prémio Nobel na área
da neurologia e estava preocupado com determinados sintomas. Então, em conversa
estilo café, deu-lhe nota das suas preocupações. E o outro mais velho, mais experiente,
mais sábio disse-lhe "sabes o que tens que fazer?", "não, o quê?", "acho que tens que ir
ao médico". Ou seja, nessas alturas, temos que nos convencer que precisamos de uma
consulta e vamos a uma consulta. Não é passar tangentes e ouvir palpites. É irmos a
uma consulta, ouvir, queixarmo-nos, depois fazermos os exames que nos são prescritos,
mas sem fazer batota pelo meio. Aliás, em termos de formação em medicina, há escolas
médicas que põem os alunos, durante alguns dias, em enfermaria, na posição dos
doentes. E isso é muito revelador porque conseguir pôr-se nos sapatos do outro, é uma
vantagem extraordinária. E não é uma coisa fácil.

Vamos agora mudar ligeiramente de sapatos para ir até à faculdade. Deixou a


faculdade porque estava irrespirável, e estou a citá-lo. Irrespirável porquê? O que
é que o fez deixar a faculdade?
Numa determinada altura, com razão ou sem ela, houve alguém do Instituto de Ciências
Abel Salazar que teve uma atitude para comigo que me fez sentir indesejado na escola.
Nessa altura pensei em tomar a decisão e tomei-a porque podia.
Mas sentiu uma certa ditadura do pensamento?
Senti uma profunda deselegância para comigo. E não gostei porque estive décadas no
Instituto Abel Salazar e, como se costuma dizer, vesti a camisola do instituto desde os
primeiros tempos em que se dizia que quem estava no instituto ou era comunista ou era
retornado, tive a honra de trabalhar, não na mesma área, mas lado a lado com pessoas
como o Nuno Grande, etc., e, talvez eu estivesse já a azedar com a idade, mas achei que
tinha sido vítima de uma garotice, e lembrei-me de uma frase de meu pai que costumava
dizer que tinha aversão a agressividade e confrontos, e dizia uma frase que não era dele
que é: quando se vai a um restaurante e o serviço é mau, não se volta. E eu pensei, não
me estou a sentir confortável e vou-me embora. E posso ter alguma razão, porque eu
vim-me embora e o único órgão de Biomédicas que escreveu um e-mail a desejar-me
felicidades foi a Associação de Estudantes. E pensei assim, primeiro fiquei chocado,
mas é o órgão mais importante para mim. E deixe-me dizer aqui uma coisa. Durante
algum tempo em Biomédicas, eu era o único exótico que levava para as aulas slides, de
pintura ou de poesia, e agora tenho a enorme alegria de ter em Biomédicas, uma
disciplina opcional de poesia com o João Luís Barreto Guimarães. E fiquei muito
contente.

É um dos assinantes do manifesto da eutanásia, e o Partido Socialista quer voltar a


discutir o tema. Qual será a solução que acha que vamos ter?
Quer que lhe seja franco? Acho que formalmente, o projeto ou os projetos, se houver
um acordo serão aprovados. Depois, a passagem à prática será qualquer coisa que o
povo costuma dizer: demorou tanto com as obras de Santa Engrácia. E, portanto, ficaria
muito surpreendido se não caíssemos numa situação de, em termos legais, isso ter sido
aprovado e, em termos operacionais, começarmos a caminhar em terreno enlameado e
que, portanto, torna o trajeto muito lento. Mas pode ser o pessimismo de uma velha
raposa que já viu muitas batalhas nas mais diversas áreas.

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