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covid-19. Portugal entra em nova onda ao chegar quase aos 25 mil casos diários
covid-19. Subida de casos lança pressão para passo atrás nas máscaras e nos testes
Não foi na verdade decretado, mas temos todos já esse sentimento de libertação.
Tem toda a razão. O verbo decretar tem um peso quase Diário da República, empreguei-
o no sentido em que as pessoas, umas conscientemente e outras inconscientemente,
assumiram que esta primavera marcava o fim da pandemia. Há muita gente que já fala
na pandemia no passado e a realidade é mais complexa do que isso.
Estes efeitos da pandemia podem sentir-se ao nível emocional por quanto tempo?
Só tínhamos tido experiências, embora em muito menor escala, sobre as consequências
de confinamento, até em profissionais de saúde, e observaram-se casos de stress pós-
traumático quatro e cinco anos depois dos acontecimentos. E, ainda por cima, afetavam
o comportamento dos profissionais de saúde, um exemplo: havia colegas meus, três ou
quatro anos depois, quando numa consulta normalíssima de seguimento a pessoa à sua
frente tossia, tinham um movimento automático de recuo. As coisas ficaram de tal
maneira incrustadas que ainda influenciam o comportamento pessoal, ainda por cima de
um profissional de saúde.
"Os homens têm uma pressão social ainda maior para considerar o sofrimento
psicológico como uma demonstração de fraqueza (...) foram educados com aquelas
frases como "um homem não chora".
Tem esperança que tenha impacto nas políticas públicas do Ministério da Saúde ao
nível da saúde mental?
É verdade, veja o número de psicólogos nos cuidados de saúde primários.
Fomos. Fomos porque a manta é curta, como diz o povo, e, portanto, uma inevitável
concentração de recursos numa determinada área, como foi e tem sido a área da
pandemia, fez com que outras áreas e o metabolismo basal dos serviços em geral, e dos
cuidados de saúde em particular, foram muito afetados. As pessoas queixam-se ainda,
mas queixavam-se amargamente, que não conseguiam entrar em contacto com os
profissionais de saúde. Por outro lado, é bom também dizer isto, os profissionais de
saúde queixavam-se amargamente de que lhes eram acometidas funções que não
deveriam ser da sua responsabilidade, e que os impediam de prosseguir a sua atividade
normal mínima, naquilo que é o mais nobre da profissão, que é a consulta com o doente.
É evidente que a tecnologia ajudou em termos das questões do confinamento, as
comunicações por e-mail, etc., mas quer queiramos quer não, houve um prejuízo
enorme da atividade, ainda por cima, da área fulcral do SNS que são os cuidados de
saúde primários, que já viviam em dificuldades, e que ficaram completamente
submersos com a situação que atravessámos. Isto é evidente que tem consequências,
mas havia problemas que vinham de trás, qualquer um de vocês já ouviu aquela
expressão de que "gosto muito do meu médico de família, mas ele só olha para o ecrã
do computador", ou seja, problemas na relação médico-paciente.
"Assumi que tinha estado deprimido. E colegas meus telefonaram-me dizendo 'o que tu
fizeste é suicidário. Quem é que agora te vai consultar?'. E não foi isso que aconteceu.
Havia pessoas que iam ter comigo e diziam "talvez o senhor perceba".
O facto de ter estado deprimido ajuda-o a perceber melhor quem tem diante de si?
Eu acho, e aqui tenho que deixar uma palavra de agradecimento do dr. Jaime Milheiro,
que foi o meu psicanalista há 40 anos. Estou profundamente convencido de que se não
fui mais longe em autoconhecimento, a culpa foi minha porque ele fez, na minha
opinião um ótimo trabalho e hoje faz-me o favor de ser um bom amigo. Se, por um
lado, eu tive a opção - e não estou a dizer que foi a melhor -, houve alturas da minha
vida em que eu pensei que não era assim que as coisas se deviam passar, mas fiz
psicanálise e não fiz terapia medicamentosa. Eu próprio era psiquiatra e tinha a sensação
de que é mais do que legítimo que tentemos fazer abrandar os sintomas com medicação,
mas eu tinha a sensação de que o fulcro da questão não era esse. Que havia um padrão
na minha vida que era preciso deslindar, e que sem isso não iria lá. Portanto, em termos
de autoconhecimento foi bom. Um psiquiatra, um psicólogo, um médico de medicina
geral e familiar, que se conhece melhor, em geral tem melhor capacidade de empatizar
com quem está à sua frente. No meu caso particular, houve um pormenor, hoje em dia
engraçado, já não sei em que entrevista, eu assumi que tinha estado deprimido. E
colegas meus, muito bem-intencionados, telefonaram-me dizendo "o que tu fizeste é
suicidário. Quem é que agora te vai consultar?". E não foi isso que aconteceu. O que
aconteceu é que havia pessoas que iam ter comigo e diziam "eu ouvi aquilo, eu li aquilo,
talvez o senhor perceba". Ou seja, quando uma pessoa me dizia "eu estou
completamente desmotivado, não tenho um objetivo na vida, ando triste, etc.", e eu
dizia "se calhar tem aquela sensação desagradável que é custar-nos até abrir a persiana
de manhã". Não era raro a pessoa dizer "é exatamente isso". E isto para a pessoa é
reconfortante. Do outro lado alguém entende. Cuidado que não estou a dizer que haja
workshops para deprimir os psiquiatras.
A que médicos vai o médico Júlio Machado Vaz? E como funciona essa relação
paciente-médico quando o próprio paciente é médico? É uma luta, uma discussão,
é um debate?
Essa é uma daquelas perguntas que só me apetece dar a resposta clássica: "só na
presença do meu advogado". Porque nós os médicos, com enorme frequência, sendo
médicos de outro médico, e sendo doentes de outro médico, furamos completamente as
regras. Primeiro, porque não é nada raro que as nossas consultas sejam em conversas de
corredor ou num jantar em que estamos com o colega ou, porque também somos
médicos, perante uma medicação que aceitámos oficialmente chegamos cá fora e
imediatamente adaptamo-la porque achamos que aquele medicamente não precisa de ter
aquela dose, aquele outro talvez a uma outra hora. Somos muito indisciplinados. E isso
não é bom. Lembro-me de um livro que li, sobre relação entre médico e doente, e que se
debruçava sobre essa questão. Um colega meu trabalhava com um prémio Nobel na área
da neurologia e estava preocupado com determinados sintomas. Então, em conversa
estilo café, deu-lhe nota das suas preocupações. E o outro mais velho, mais experiente,
mais sábio disse-lhe "sabes o que tens que fazer?", "não, o quê?", "acho que tens que ir
ao médico". Ou seja, nessas alturas, temos que nos convencer que precisamos de uma
consulta e vamos a uma consulta. Não é passar tangentes e ouvir palpites. É irmos a
uma consulta, ouvir, queixarmo-nos, depois fazermos os exames que nos são prescritos,
mas sem fazer batota pelo meio. Aliás, em termos de formação em medicina, há escolas
médicas que põem os alunos, durante alguns dias, em enfermaria, na posição dos
doentes. E isso é muito revelador porque conseguir pôr-se nos sapatos do outro, é uma
vantagem extraordinária. E não é uma coisa fácil.