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ARQUITETURA E SIGNIFICADO: O ESPAÇO NO

SÉCULO XVII

A CIDADE E O ESPÍRITO DE SISTEMA


Vimos que os monumentos aparecem como centros signi-
ficativos que estruturam a cidade barroca. Em relação a eles,
a existência humana readquire segurança e significado e vê-se
referenciada pelos sistemas ideológicos e hierárquicos que
deles emanam: no caso da Itália, esse sistema é o poder da
Igreja Católica renovada pela Contra-Reforma e, no caso da
França, é o poder da monarquia absoluta. Com compasso e
esquadro, os arquitetos rasgaram as cidades, introduziram
amplas praças, ruas compridas e retas ligando seus focos, e
constituindo o sistemático e cenográfico urbanismo seiscen-
tista. Nesse ambiente, o absolutismo leva o espírito do seu
sistema até o infinito, organizando não apenas a cidade, mas
toda a região e todo o país, não vendo limites para a sua
autoridade. Nos séculos anteriores predominaram as relações
econômicas entre cidade e cidade. No século XVII, predomi-
navam as relações políticas entre Estados centralizados nas
suas capitais, focos dos quais emanava o sistema e onde se
centravam as maiores riquezas e os maiores monumentos: "A
cidade monumental é a cidade capital e a grande criação histó-
rica do barroco é a cidade capital do Estado moderno." Ou,
como diz Norberg-Schulz, "a idéia barroca de um espírito siste-
matizado e infinitamente estendido encontrou sua principal
manifestação no conceito, próprio do século XVII, de cidade
capital". 1 9 Sede do poder absoluto, a capital é o centro de
forças que concentra em si o poder máximo governante e
subordina todo o território estatal e suas demais cidades,
reduzidas a satélites sem vida própria. Dentro da capital existe
uma hierarquia presidida pelos diferentes centros monumentais.
Dentre esses centros, um parece ser o mais importante: aquele
19
Conferir tais citações em ARGAN. El concepto del espacio arquitectónico
desde el Barroco a nuestros dias, p.58; NORBERG-SCHULZ. Arquitectura
barroca tardia y rococó, p.18. Deste mesmo autor, ver também, Arquitectura
barroca, p.15-20; Meaning in western architecture. p.150. Ver ainda ARGAN
Historia del arte como historia de la ciudad, p.176; CONTI. Como reconhecer a
arte barroca, p.33, 34.
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no qual reside o poder e que, portanto, deve presidir todos os estruturante das praças de Domenico Fontana. Destas, destacamos
demais. A Basílica de São Pedro, em Roma, e o Palácio de duas. Da Piazza del Popolo, cujo centro focal era a porta da
Versalhes, próximo de Paris, são os melhores exemplos disso. cidade-santa, partiam três ruas radiais que, bem ao gosto
Neles, todo o sistema piramidal encontra, enfim, seu vértice barroco, concentravam ou dispersavam as pessoas a partir
original. de um lugar importante. O obelisco, colocado em 1589, e as
igrejas gêmeas, projetadas por Carlo Rainaldi (1611-1691) em
Convém adiantarmos que, devido às peculiaridades regionais
meados do século XVII, acabam por convertê-la em verdadeiro
(e este pluralismo formal ou tendência particularizadora é típico
foco barroco, símbolo do poder da Igreja e frente monumental
da universalidade que a arte barroca conquistava), o barroco
do conjunto que se estende além dela. A Piazza Navona, onde
santo romano e o barroco secular francês adoraram linguagens
morava o papa Inocêncio X, também torna-se outro centro focal
diferentes, aclimantando-se às características particulares de cada
com as construções da Igreja de Sant'Agnese, cuja cúpula
núcleo, para divulgar o sistema absoluto. Afinal de contas, a
Borromini retira do fundo e traz para dentro do espaço urbano,
corte francesa, expressão máxima do absolutismo e resistente à
do obelisco e da Fontana Dei Quattro Fiumi de Bernini, eixo
linguagem católica do barroco italiano, ocupava uma posição
vertical que centraliza o movimento horizontal, e cujas figuras
mais independente do papado. A solução francesa seria um
alegóricas simbolizam o poder da Igreja Católica nas quatro
domínio do poder secular da monarquia e uma linguagem
partes do mundo (representadas pelos rios Prata, Danúbio,
arquitetônica mais contida, estudada e racional.20
Ganges e Nilo). Aqui já não se vêem nem os esquemas duros
Apesar dessas diferenças, no entanto, o projeto arquitetônico e esquemáticos de Domenico Fontana, nem a racionalidade
e urbanístico elabora-se a partir do mesmo esquema em ambos das composições francesas do mesmo período. Ao contrário,
os países: em primeiro, objetiva-se construir centros focais tem-se um espaço persuasivo, integrado, variado, dinâmico,
hierárquicos representativos do poder absoluto (centralização); marcante e vital, típico do barroco romano. A Piazza Navona,
em seguida, viabiliza-se a propagação da mensagem destes diz Norberg-Schulz, "nos faz compreender como teria sido uma
edifícios por toda a cidade, através de um conveniente cidade desenhada por Bernini e Borromini: latente, expressiva
p l a n e j a m e n t o urbano que enfatize aqueles monumentos e rica em conteúdo humano".21
diretores (continuidade); por ú l t i m o , permite-se que os
A série de praças barrocas romanas culmina na Piazza
monumentos não só estruturem o entorno urbano edificado,
San Pietro de Bernini, destinada a ser o centro persuasivo
mas também a própria paisagem natural que se vê dominada, e
da religião católica.
as demais cidades que à capital devem se subordinar (extensão).
Examinemos agora as duas cidades-capitais dominantes do Seu próprio autor reconhece:
período, Roma e Paris, e os vértices principais dos dois sistemas: a
Piazza San Pietro e Versalhes. Sendo a Igreja de São Pedro quase a matriz de todas as outras,
deveria conter um pórtico que, de pronto, demonstrasse receber
maternalmente e de braços abertos os católicos para confirmá-los
Roma e a Piazza San Pietro na crença, os heréticos para reuni-los na Igreja e os i n f i é i s
para iluminar-lhes com a verdadeira fé.22
Roma deveria se tornar, no século XVII, o lugar da demons-
tração argumentada e persuasiva do sistema católico emer-
gente. O projeto de Sisto V, organizando-se em torno de centros 21
NORBERG-SCHULZ. Arquitectura barroca, p.44. Sobre as transformações
(edifícios e praças), fez de Roma o protótipo da cidade-capital realizadas nas praças contidas no projeto de Sisto V, conferir, nesta mesma
barroca, criou grandes monumentos e enfatizou o poder obra, p.29-57.
22
20 Bernini. Códice Chighiano, H, II, 22, citado por NORBERG-SCHULZ.
Conferir MACHADO. Barroco mineiro, p.49, 50; CONTI. Como reconhecer
Arquitectura barroca, p.57.
a arte barroca, p.28.
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Figura 29 - Piazza del Popolo. Roma
O objetivo, como diz o arquiteto, é fazer irradiar a mensagem
da Igreja, representada pela cúpula de Michelangelo, e provi-
denciar um local de reunião para toda a humanidade. Dessa
forma, ele responde às novas necessidades históricas, políticas
e religiosas que Roma deveria assumir diante da grande lu ta
travada contra a Reforma Protestante. A própria história e
romanidade deveriam ser recuperadas no projeto para afirmar
a antiguidade da Igreja Católica no seio dos cristãos. Persuadi-los
será a missão fundamental que se coloca ao arquiteto. Para
isso, Bernini projeta para a visão e para a imaginação, de
comunicação mais fácil e imediata, e não para a razão e o
juízo como o fizera o Renascimento. Assim, a devoção desperta
mais próxima do sentimento e do mundo humano imediato.
A Piazza San Pietro tem, portanto, um duplo papel: representar
a autoridade histórica, política e religiosa de Roma e converter-se
no grande teatro persuasivo do mundo católico, levando a
mensagem da Igreja desde o seu interior até o exterior. Espa-
cialmente, como trad uzir esse desejo? Trazendo a cúpula de
Michelangelo, na qual se sintetizavam, a um só tempo, a men-
sagem histórica e religiosa, para o mundo urbano e a visão
dos cidadãos. Figura 30 - BERNINI e BORROMINI. Piazza Navona. Roma
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Mas o que acontecera com a cúpula desde a morte do seu
autor? Terminada por Giacomo della Porta, ela fora ofuscada pela
imensa reforma encomendada a Carlo Maderno e concluída em
1612. Amoldando seu projeto às formas das igrejas de congregação
desejadas pela Contra-Reforma, tal como II Gesù, Maderno se
vê obrigado a incorporar uma imensa nave longitudinal que
d e s vir t ua o corpo plástico de Michelangelo, e d ista nc ia
demasiadamente a cúpula do observador. Registre-se, contudo,
que tal longitudinalidade promove uma maior participação do fiel
no rito religioso, e do edifício no contexto urbano, expressando
melhor a nova missão da Igreja Católica no mundo.23 Além disso,
a imensa fachada que ele projeta domina a plástica do edifício e
torna a cúpula um elemento de fundo, secundário em relação à
frontalidade. Diante dessa fachada estendia-se um espaço urbano
amorfo, sem definição, que não condizia com a sistematicidade
barroca. Já tendo sido o autor do imenso baldaquino situado sob a
cúpula de São Pedro (terminado em 1633), Bernini é encarregado Figura 31 - BERNINI. Piazza San Pietro. Vaticano
por Alexandre VII (1655-1667) de definir o espaço urbano frontal,
Convém uma explicação sobre essa última intenção men-
consertar os equívocos oriundos do projeto de Maderno, e difundir
mais ainda o monumento e sua mensagem dentro da cidade. Uma cionada por Argan: simetrizar o espaço urbano a partir da
dupla finalidade formal o projto da Piazza San Pietro deverá, cúpula significava produzir um espaço que enquadrasse a
então, perseguir: visão desta pelo espectador situado numa praça, junto à qual
a cúpula readquiriria sua expressão formal urbana ao nível
do chão.
a) C o l o c ar e n t r e p ar ê nt e s e s e transformar de prólogo em
tr a ns i ç ã o a fachada q u e Maderno desenhara com extrema Como Bernini consegue responder a tais exigências espa-
correção, t r a t a n d o de não o cu ltar a cúpula de Michelangelo; b) ciais? Ele pensa em três soluções. Em primeiro lugar, imagina
Recuperar a cúpula como elemento simétrico que a duplicava, um pórtico retangular para definir o contorno da praça, mas
mas também a abria e a precipitava ao solo, traduzindo sua
isso entraria em contradição com o grande núcleo central de
elevação em extensão. 24
Michelangelo e resultaria inadequado para a função congre-
gacional da praça, já que seus ângulos retos pareceriam mortos
23
Portanto uma justa crítica a essa obra de Maderno deve levar em conside- e pouco convidativos. Em seguida, pensa em providenciar uma
ração o fato de que suas alterações fazem de São Pedro, como diz Argan, lo praça circular. Mas aí, a imensa horizontalidade da fachada
strumento di un culto di massa, che ha uno scopo propagandistico, ma si
fonda sul pressupposto ideologico che la communità dei fideli, anzi l´ecumene de Maderno apareceria como segmento de reta sobre uma
Cristiana constituisca il corpo stesso della chiesa e sia non soltanto spectatrice circunferência incapaz de ser grande o bastante para diluir
ma ministra del rito. La lunga navata del Maderno distrugge indubbiamente aquela fachada no seu contorno. Assim fazendo, a fachada se
la drammatica unità del tormentato bloco michelangiolesco, ma prolunga la
basilica nello spazio urbano, svillupando cosí la funzione urbanistica del destacaria ainda mais e a cúpula permaneceria como mero
monumento. Argan. Europa delle capitali 1600-1700, p.45, citado por elemento de fundo. Além disso, entre a cúpula e o centro da
NORBERG-SCHULZ. Arquitectura barroca, p.108. circunferência, a linha de visão encontraria sempre o ruído da
24
ARGAN. Historia del arte como historia de la ciudad, p. 171. Sobre as transfor- fachada. Bernini chega, então, à solução definitiva: concebe o
mações da Basílica de São Pedro, do papel da cidade de Roma e da posição de
espaço principal da praça como um pórtico elíptico composto
Bernini frente a ambas, ver, nessa mesma obra, p. 161-174; ARGAN. El concepto
del espacio arquitectónico desde el Barroco a nuestros dias, p.49-60.
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por quatro fileiras de colunas. Nessa praça elíptica, cujos focos a esta o caráter monumental que ela deve ter enquanto capital
se situam não no eixo central da fachada, mas lateralmente a que irradia sua mensagem a todo o mundo.26
este, as visadas diagonais da cúpula são favorecidas por não
É importante verificarmos uma série de sínteses que ocorrem
encontrarem a fachada no meio do caminho. Verifica-se também
nessa praça. Em primeiro lugar, uma síntese entre fechamento
que a horizontalidade da fachada se d il u i ao inscrever-se
e abertura. A praça é fechada, porque está claramente delimi-
perfeitamente no contorno da elipse, ficando a cúpula em
tada, principalmente se levarmos em conta que no projeto
destaque. As colunas do pórtico também realizam uma dupla
original havia um terzo braccio que não foi construído devido
função. Em primeiro lugar, elas repetem, em alguns pontos,
à morte de Alexandre VII (1667). Mas, simultaneamente, o
os pares de colunas que são o tema central do tambor de
interior da praça se comunica enfaticamente com o exterior, e
Michelangelo. Em segundo lugar, elas se integram com as
a praça torna-se aberta; a elipse se expande ao largo do eixo
colunas colossais da fachada de Maderno, ajudando a diluí-la
transversal e atravessa o transparente contorno da colunata,
no pórtico. Mas observa-se que essa praça elíptica se liga
não sendo o espaço limitado por uma forma estática. Se
com a Basílica por uma outra praça trapezoidal. A ligação
pensarmos na relação entre a cúpula e a praça, também
entre as duas praças é menor do que a fachada da igreja. Em
encontraremos uma síntese realizada pelas colunas do tambor
perspectiva, tal artifício encurta a fachada e a aproxima do
que se repetem no pórtico. Mas, enquanto aqui elas produzem
observador. Outro artifício plástico utilizado é a alteração do
a abertura para a cidade, no tambor elas acumulam forças dentro
tamanho das colunas na medida em que se aproxima da igreja,
de si, preparando o impulso para cima. Enquanto a colunata
o que reproporciona a fachada e dirige os olhos do observador
é aberta, terrestre, acessível, a cúpula de Michelangelo era
para o alto, onde se encontra a cúpula. Um último recurso
inacessível, excelsa, simbólica, fechada. No centro da praça,
adotado pelo arquiteto refere-se ao enquadramento final da
observamos uma outra síntese, quando o obelisco vertical
cúpula, focando-a para a visão frontal do observador através
concentra e unifica todas as direções, e define o eixo longi-
de dois campanários simétricos que, infelizmente, não se
tudinal que conduz à igreja (meta). Desse modo, a concentração
mantiveram na construção.
(centralidade) e a longitudinalidade (caminho) vêem-se arti-
Com tais recursos visuais e ilusões de perspectiva, Bernini culadas em uma típica síntese barroca na qual, ao interesse
consegue estruturar o espaço urbano, desenvolver a igreja pelo movimento, pela tensão e pela centralidade, adiciona-se
dentro dele e abri-la para difundir a temática histórico-religiosa o poder do centro dinâmico, aberto e centrífugo. Tal tema é
do sistema romano, alegoricamente transmitida, pela cúpula repetido no interior da igreja quando o eixo longitudinal,
de Michelangelo. Pelas quatro fileiras de colunas, o mundo é
purificado para se aproximar do monumento, e, simultanea- 26
Sobre as intervenções de Bernini em São Pedro, conclui ARGAN que la
mente, a mensagem da igreja é difundida a todos os homens. cupola se abre e dispiega nel collonato così come il suo originario significato
A esse respeito, uma interessante interpretação da colunata é simbolico si dispiega nel piú accesibili significato allegorico della piazza
dada por M au ri zi o e Marcello Fagiolo, associando-a a uma berniniana.[...] La forma chiusa, in senso plastico e simbolico, della cupola
redonda é implicita, anche visivamente, nella forma aperta, ellitica del
série de símbolos religiosos e dando a entender que o mundo colonnato, il cui significato allegorico dichiarato in un disegno de Bernini,
se filtra ao atingir o interior da praça, através das filas de é di formare le braccia di um corpo ideale, di cui la cupola é la testa:
santos representados na colunata.25 Nos braços abertos de sua 1'abraccio universale della Chiesa è dunque la preparizione alla rivelazione
elipse, toda a humanidade é acolhida pelo sistema e encontra suprema. Argan. Europa delle capitali 1600-1700, p.45, c i t a d o por
NORBERG-SCHULZ. Arquitectura barroca, p.57. Para uma análise mais de-
sua segurança existencial dentro dele. Dessa forma, o valor talhada da forma da Piazza San Pietro, conferir NORBERG-SCHULZ. Genius
monumental sai do edifício e invade a cidade, dando também loci; towards a phenomenology of architecture, p.152, 160 et seq. Meaning in
25 western architecture, p.149, 150; Arquitectura barroca, p.22, 57 et seq.
Conferir NORBERG-SCHULZ. Arquitectura barroca, p.57, 361, nota 29, ARGAN. El concepto del espado arquitectónico desde e! Barroco a nuestros
onde se comentam as interpretações de Maurizio y Marcello Fagiolo formu- dias, p.55-60; Historia del arte como historia de la ciudad, p. 161-174; ZEVI.
ladas sobre Bernini. Saber ver la arquitectura, p.93, 94.
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que preside o movimento do espectador ao longo da nave,
encontra o eixo vertical, que une o imenso baldaquino de
Bernini à monumental cúpula de Michelangelo. Poderíamos
falar, então, de uma síntese histórica que funde, no século
XVII, a centralidade e a horizontalidade do século XV com o
interesse pelo movimento do século XVI. Observe-se que a
elipse de Bernini apresenta-se como uma planta central
alargada, típica de muitas igrejas barrocas e, em particular,
da linguagem arquitetônica berniniana. Tal elipse transversal
suscita uma impressão de expansão e calma no espectador,
própria da mensagem triunfal e alegórica que seus monumentos
deveriam celebrar. Uma quinta síntese, de caráter psicológico,
surge da necessidade de combinar o áulico e majestoso da
igreja com uma certa popularidade na sua linguagem formal,
decorrente do caráter persuasivo da mensagem que o monu-
mento deveria enunciar. E isso Bernini consegue associando
o acolhimento e a intimidade do espaço com a solenidade
das formas e das proporções.
Essa busca de se fundirem os contrários numa totalidade
mais rica e complexa demonstra a plenitude que se queria
atingir, explorando-se ao máximo o poder expressivo e a força
persuasiva pela qual o sistema animava o contexto e atraía o
cidadão. Tal como o absolutismo concentra o poder, também
a forma barroca concentra em si o máximo de possibilidades
espaciais. O espírito de síntese, desenvolvido na arquitetura
do século XVII, liga-se ao espírito de sistema pela totalidade
concentrada q u e se p r o c u r a obter. A forma da p raça de
B e r n i n i é a alegoria do poder absoluto da igreja romana,
c u j a mensagem derrama-se para toda a cidade. Esta, por sua
vez, converte-se em alegoria da totalidade do Estado. Nessa
praça, melhor do que em qualquer obra, Bernini conseguiu,
com uma simplicidade extraordinária, concretizar o espírito Figura 32 - BERNINI. Colunata da Praça de São Pedro. Roma
de sistema, de totalidade e de síntese da arquitetura barroca,
cujo fundamento reside em alguns princípios gerais e intenções
básicas e universais.27

27
La Piazza San Picíro, exemplifica Norberg-Schulz, demuestra que el fun-
damento del arte barroco consiste en princípios generales mas que en su
exuberancia de detalles. La Opus Magnum de Bernini, de hecho, esta formada
por um solo elemento: la coluna clásica. NORBERG-SCHULZ. Arquitectura
barroca, p.57.
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Se examinarmos a obra preferida do próprio Bernini, francês: o Louvre. A princípio, não há uma diferença substancial
Sant'Andrea al Quirinale, também verificaremos essa caracte- entre construir para a autoridade religiosa romana, à qual
rística barroca de concentrar numa célula fundamental as se confiava o desenvolvimento político, e para a autoridade
potencialidacles formais que deverão se desenvolver. secular de Luís XIV, à qual se confiava a defesa dos interesses da
religião. Porém, Bernini fracassa no seu novo projeto por não
Em alguns pontos, essa pequena igreja de Roma copia o
perceber que faltava a Paris "o espaço imaginativo histórico-
tema espacial da grandiosa Piazza San Pietro. A planta elíptica,
natural de Roma e o impulso religioso-ideológico que desde
também estendida no sentido da largura, dá ao espaço o
o princípio dera à sua imaginação uma poderosa, ainda que
mesmo caráter monumental, expansivo e calmo que Bernini
inconsciente, intencionalidade política".29 Examinemos, então,
procura em suas obras. Além disso, a relação entre o interior
o que foi feito para este outro sistema absoluto centrado na
e o exterior e a composição da fachada são interessantes para
figura real.
o nosso estudo. Em primeiro lugar, observamos uma fachada
dotada de extraordinária força plástica, quase escultórica,
unificada pelo mesmo círculo que faz o arco da superfície
p l a n a sobre a entrada e conclui a escadaria de acesso, cuja
convexidade dá à pequena igreja um caráter monumental
dentro do contexto urbano. Ao lado da fachada, Bernini desen-
volve duas paredes até sugerir um princípio de círculo. Esse
círculo é o mesmo que define o espaço interior da igreja e do
qual deriva o tratamento plástico da fachada. Através dele, a
igreja ganha um desenvolvimento formal urbano que acentua
seu poder expressivo e a irradiação alegórica de sua mensagem.
Também o pórtico semicircular desenvolve suas funções e
faz a transição para o interior de dois espaços, a igreja e a
praça, que são variações do mesmo tema circular. Portanto,
Sant´Andrea é concebida a partir de um tema espacial sintético
que dá ao espaço um caráter e significado semelhantes aos
da Piazza San Pietro. Em Sant´Andrea, esse tema preside tanto
o edifício como o seu próprio entorno. O desenvolvimento
das paredes laterais da igreja indica que dela emana a lei
única e absoluta que deve sistematizar o urbano. A igreja é
monumento: é a sede do valor ideológico dominante e a origem
de todo o sistema.28 Figura 33 - BERNINI. Vista aérea da Praça de São Pedro.
Vaticano
Em virtude de sua concepção do edifício como monumento
urbano, cuja forma alegórica deve irradiar o valor ideológico
dominante para toda a cidade, Bernini é chamado, em 1665,
para projetar o centro monumental da cidade-capital do Estado

28
Sobre Sant'Andrea al Quirinale, ver ARGAN. El concepto del espacio arqui-
tectónico desde el Barroco a nuestros dias, p.95,96; e NORBERG-SCHULZ. 29
Arquitectura barroca, p.115. Conferir ARGAN. Historia del arte como historia de la ciudad, p. 173.

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Paris e o Palácio de Versalhes
As semelhanças entre Paris e Roma se assentaram na mesma
necessidade de concretizar o espírito barroco, tornando visível
o sistema dominante que regia a sociedade. Para isso, ambas
as cidades trataram de criar centros, significativos do poder
que dominassem toda a cidade. A diferença é que Roma já
oferecia, nas suas basílicas, os focos que serviram ao absolu-
tismo contra-reformista, enquanto Paris ainda tinha de criá-los,
e desenvolver, pouco a pouco, a estrutura sistemática de seu
urbanismo, a qual só concluirá no século XIX. Esse processo
começa com Henrique IV, restaurador da monarquia absoluta,
desejoso de fazer de Paris a cidade capital expressiva do novo
sistema. Para isto, ele criou as place royale, espaços urbanos
centrados e desenvolvidos a partir da estátua do soberano,
como no Campidoglio de Michelangelo. Porém, ao contrário
deste, a place royale, cercando-se de casas e não de edifícios
públicos ou palácios civis, concretiza a nova relação entre o
povo — subordinado diretamente ao poder único — e o sobe-
rano. As Place Dauphine, Place dês Vosges e Place de France
são exemplos disso. Esta última, inconclusa, foi concebida
como uma estrela da qual irradiavam oito ruas que levavam
os nomes das principais províncias francesas e tinha uma
porta nomeada Porte de France. O simbolismo do esquema
espacial é claro: de Paris, capital e sede do poder absoluto,
emanava o novo sistema nacional que devia englobar todo o
Estado. Com Luís XIV mais duas praças são construídas, ambas de
Jules Hardouin-Mansart (1646-1708), um dos principais
Figura 34 - BERNINI. Sant´Andrea al Quirinale. Roma arquitetos do barroco francês: a Place dês Victories, original-
mente Place Louis XIV (1682-1687) e a Place Vendome ou Place
Louis Le Grand (1699-1708).
Nas duas, uma estátua central do soberano domina e concentra
os eixos dos acessos e da composição espacial. Observamos
que, ao contrário das praças barrocas romanas, onde um edi-
fício religioso domina o espaço à sua frente, as praças fran-
cesas são dominadas por uma estátua central do monarca,
dando a Paris uma nova estrutura urbana, onde puntificam
estes focos, cercados por alamedas e eixos centrífugos que
levam, numa perspectiva radial, o edifício até a paisagem,
como se também à natureza o Rei quisesse estender o seu
poder. Mas persiste o mesmo espírito de sistema e os desejos de
centralização, integração, continuidade, extensão e abertura.
Outra distinção: enquanto em Roma os edifícios particulares
chamam atenção e polarizam o espaço, dramática e teatral-
mente, os edifícios parisienses não têm a mesma individuali-
dade plástica forte, sendo mais contidos e regulares, conten-
tando-se em aplicar corretamente as proporções clássicas. O que
se destaca na praça é a estátua do soberano, centro que domina
até o i n fi n i to através do sistema radial que dele emana.30

FIGURA 36 - LE NÔTRE, André. Jardim de Versalhes. Versalhes


Mas o edifício barroco francês não se utiliza da contenção
plástica para enfatizar o geometrismo, como no Renascimento.
Por isso é superficial chamá-lo, puramente, de clássico. Se
abandonarmos esses traços formais, veremos que tal classi-
cismo constrói um espaço ex isten cial típico do Barroco.
Regulando-se, o edifício, ou c o n j u n t o de ed ifício s e de
paisagens, apresenta uma uniformidade que faz ressaltar a
extensão espacial (res extensa) do conjunto, e não o edifício
em si. Essa res extensa, por sua vez, apresenta-se organizada
em alamedas e eixos que enfatizam a estátua do soberano,
como nas praças vistas acima, ou a sede do poder, como é o
caso de Versalhes.
Figura 35 - VERSALHES. Planta dos jardins
Comecemos por uma rápida análise do Palácio de Versalhes,
30
Sobre as praças reais, ver NORBERG-SCHULZ. Meaning in western um dos melhores exemplos dessa contenção do barroco
architecture, p.150; Arquitectura barroca, p.67 et seq.
francês. O projeto de Louis Le Vau (1612-1670) apresenta um
imenso edifício quadrado envolvendo o velho castelo. Em
seguida, Jules Hardouin-Mansart constrói mais duas alas trans-
versais (norte e sul), repetindo o mesmo esquema anterior das
paredes por uma extensão de mais de quatrocentos metros.
Isso acentua a horizontalidade do edifício, transformando-o
num sistema de repetição simples, com articulação horizontal
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aditiva e modulação aparente, em que os vãos dominam os palácio. Também a topografia natural do terreno é transformada
cheios. Ao contrário da plasticidade e teatralidade romana, o em terraços planos que realizam, mais ainda, a desejada domes-
que domina aqui é a racionalidade, a extensão, a dimensão: ticação da natureza. Os espelhos d'água, os canais e as fontes
Versalhes tematiza esta extensão concebendo o espaço, como representam a domesticação dos rios e oceanos postos sob o
veremos em Descartes, como pura res extensa. poder de Luís XIV e nas imediações do seu quarto.
Mais interessante é analisarmos Versalhes como exemplo Essas características de Versalhes empreendidas por Le
da cidade ideal do século XVII, tanto no que se refere às suas Nôtre, ao expressarem o ideal barroco em relação à cidade e
estruturas urbanas quanto à sua relação com a paisagem, tal à paisagem, tornar-se-ão paradigmáticas para as realizações
como trabalhadas por André Le Nôtre (1015-1700). ulteriores do Barroco, no qual o palácio procura se situar
como foco urbanístico de todo o sistema e envolver a cidade
Em primeiro lugar, note-se que o palácio e suas grandes
e a natureza. Casos típicos são o Palácio de Schonbrunn, de
alas separam a cidade à sua frente, e os jardins atrás. O sistema
Fischer von Erlach (1656-1723), o Belvedere Superior de Lucas
urbano, estruturado ortogonalmente a partir de suas praças
von Hildebrant (1668-1745), ambos em Viena, e o projeto da
quadradas, converge em três grandes avenidas (Saint Claude,
cidade de Karlsruhe. Neste, se destaca o sistema radial de
Paris, Sceaux), as quais, por sua vez, se dirigem ao palácio.
trinta e seis ruas retas, ligadas entre si por rond-points, como
A própria paisagem do entorno é estruturada e convidada a
nos jardins de Le Nôtre, a atravessarem uma extensão infinita
participar do sistema ortogonal urbano e ilimitado que converge
uniforme, sem edificações, e convergirem na torre que esta-
no palácio. Os jardins, por sua vez, estruturam-se em torno de
belece o eixo longitudinal, junto com o palácio e a igreja da
focos e apresentam um sistema de caminhos e visadas radiais
cidade. Como em Versalhes, todo o espaço (extensão) é geome-
que, a partir da fachada posterior (se é que podemos falar
trizado, matematicamente organizado. Contudo não se confunda
assim do Palácio de Versalhes), domina toda a paisagem.
com a geometrização renascentista: no Renascimento, o que se
Portanto ambas as fachadas são estruturadas por perspectivas
criava era um organismo homogêneo, estático, composto por um
infinitas, cujo centro é o edifício do soberano. Centro conver-
módulo que se repete, igualmente distribuído em torno de um
gente na sua relação com a cidade; centro divergente na sua
centro. A organização de Versalhes e Karlsruhe, ao contrário,
relação com os jardins. É como se a cidade estivesse em função
é dinâmica, tensionada, e seu foco não se situa ao centro, mas
do palácio e este se empenhasse em dominar a natureza.
no ponto onde se unem cidade e natureza. Se no Renasci-
Como se ao soberano todos mirassem, e ele, de costas para
mento a organização era fechada e o edifício imitava a natureza
os que o olham, só se dirigisse para o universo a dominar,
sem se abrir a ela, agora a organização é aberta e sintética,
representado na geometrização dos canteiros, na fonte, nos
composta de elementes distintos que se inter-relacionam.31
canais, nos espelhos d'água e nos bosques ao fundo, a que
dão acesso os caminhos largos e retos, ligados entre si por Gostaríamos de apontar uma última semelhança entre o
clareiras circulares. Nos jardins, tudo indica a domesticação Barroco italiano e o francês. No espaço de ambos, o princípio
da natureza pelo homem. Portanto, Versalhes é uma perfeita compositivo básico é o movimento visual ou corporal ao longo
expressão do sistema barroco. O próprio direito divino de do eixo longitudinal centralizado no palácio, através do qual
governar do monarca, fundamento do absolutismo francês, é transita-se do mundo público à natureza infinita. Essa transição,
expresso por Hardouin-Mansart ao projetar uma cúpula, típico contudo, revela-nos algo acerca da nova relação do homem
elemento dos edifícios religiosos, para arrematar o palácio. com a natureza durante o século XVII. Vimos que um dos
Nos jardins de Le Nôtre, o eixo longitudinal leva o observador
a dominar o espaço infinito. Em torno desse eixo penetra-se 31
Sobre Versalhes e suas influências ver, principalmente, NORBERG-SCHULZ.
na natureza através de caminhos transversais e esquemas Arquitectura barroca, p.12, 24, 64-78, 85-102, 296-302, 318-322; Arquitectura
radiais que indicam o poder e a abertura do sistema emanado do barroca tardia y rococó, p.28-30; Meaning in western architecture, p.158-160.
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aspectos mais característicos do Maneirismo foi a tematização
dessa relação. Ali, ela era problemática, conflituosa e expressa
na arquitetura pela alienação conferida ao edifício, como no
Palazzo Farnese (1547-1549) e na Villa Lante (1566), ambos
de Vignola. O século XVII providencia uma nova síntese para
superar esse conflito homem-mundo sem voltar à velha harmo-
nia que dominara até o Renascimento. Agora, a integração se
restabelece, como o paisagismo de Le Nôtre denuncia, e o
edifício e a natureza se reforçam reciprocamente. Contudo a
nova síntese que o Barroco produz afirma o poder do homem
que controla, domina e amolda a natureza às suas formas.
Expressão desse poderio, a natureza se põe sob o domínio
do edifício e revela uma nova relação com o mundo: o Barroco
desenvolve o antinaturalismo maneirista, e destitui a natura
de qualquer capacidade de contrapor-se ao poder pretendido
pelo homem moderno.

Figura 37 - Von HILDEBRANT, Lucas. Belvedere Superior. Viena

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