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2023_1
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
UnB
TEXTO 2
Sumário
I.2. A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL DE HUSSERL: INTENCIONALIDADE,
CONSTITUIÇÃO E REDUÇÃO. ......................................................................................... 2
1
I.2. A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL DE HUSSERL: INTENCIONALIDADE,
CONSTITUIÇÃO E REDUÇÃO.
1
No § 1 das Meditações Cartesianas, Husserl descreve o caminho de pensamento de Descartes nas
Meditações. Ele pergunta, então, pelo valor e significado “eterno” deste pensamento, o que, na concepção
de Husserl, significa perguntar se os pensamentos aqui expostos são “ainda apropriados para infundir forças
vivas ao nosso tempo”. O que aconteceu depois de Descartes? Husserl começa colocando em relevo um
fato que, diz ele, dá a pensar: o fato de que as ciências positivas se interessam pouco por estas meditações.
A consequência é que depois de três séculos (hoje, para nós, seriam quatro séculos), o progresso das ciências
é apenas ainda um progresso positivo, isto é, ele até pode ser um grande progresso no âmbito de descobertas
e invenções e da funcionalidade e eficiência, mas é um progresso que se encontra-se atravancado no âmbito
dos seus fundamentos. As ciências permanecem ainda dogmáticas e ingênuas, quando se trata de discutir e
colocar questões no âmbito dos seus próprios fundamentos. Sua forma de conceber o real é ainda debilitada
por um objetivismo ingênuo. A filosofia que é pressuposta pelas ciências é ainda pré-crítica. O passo dado
por Descartes não fora seguido. Que passo é este? O passo pelo qual “a filosofia assume uma viragem
radical do objetivismo ingênuo para o subjetivismo transcendental”.
2
mesmo tempo e principalmente denuncia o seu fracasso para a vida e para o sentido do
ser humano 2.
2
Husserl, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à
filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
3
Em Husserl, a fenomenologia emerge como uma teoria crítica da razão e como um conceito de método
investigativo filosófico transcendental. Emerge como uma reflexão transcendental acerca da possibilidade
de fundação e fundamentação das ciências. Trata-se de uma reflexão sobre as condições de possibilidade
do conhecimento e, por conseguinte, da ciência, que se funda sobre o conhecimento. Em diferença da crítica
de Descartes e de Kant, porém, a crítica fenomenológica operada por Husserl não toma de antemão uma
ciência como modelo para reconstruir o edifício das ciências ou para refundar o sentido da racionalidade,
como, por exemplo, a geometria ou a física. A crítica de Husserl adverte na positividade e no positivismo
da ciência moderna uma forma de consciência esquecida de si mesma. A ciência positiva é a ciência do ser,
que se perdeu no mundo. Por isso, o começo da meditação fenomenológica se dá justamente com a epoché,
e isso quer dizer: é preciso perder o mundo para reencontrar o ser. “É preciso de início perder o mundo
pela epoché, para reencontrá-lo em seguida numa tomada de consciência universal de si mesmo”
(HUSSERL, Meditações Cartesianas. São Paulo – SP: Madras, 2001, p. 170). Para Husserl, a ciência
parecia muito crítica em relação a seus objetos, mas muito ingênua em relação à objetividade enquanto tal,
alheia a si mesma como forma de consciência e esquecida de sua própria subjetividade. Além disso, disso,
nesta forma alienada de consciência da ciência positiva, a crença num mundo absolutamente e
simplesmente dado, levava a uma coisificação e naturalização grotesca de tudo. O maior perigo da ciência
está em ser chata: nas formas do mecanicismo e do cientificismo tudo é nivelado. Ela tende a operar o
achatamento de toda dimensão ou modo de ser ao modo de ser da ocorrência física, com outras palavras,
tende a operar a redução da res cogitans, de suas cogitationes e cogitata, à res extensa. Nesta tendência, a
dimensão noética das idéias ou essências é reduzida a algo de psíquico, no sentido do anímico empírico. O
psíquico mesmo, com toda a sua gama de vivências anímicas, é reduzido ao orgânico, isto é, ao biológico.
E o biológico, com todo o dinamismo de sua vitalidade orgânica, é reduzido ao físico. Daí a crítica de
Husserl ao naturalismo, na primeira parte do artigo “Filosofia como Ciência de Rigor” (cfr. HUSSERL, La
filosofia come scienza rigorosa. Bari – Italia: Editori Latterza, 1998, p. 13-70). Na tendência dominante da
ciência moderna, no naturalismo, tudo se torna chato, tudo se torna unidimensional. Da mesma maneira,
todo o rigor é reduzido a exatidão. Como se a única maneira de ser rigoroso e preciso, na pesquisa, fosse
ser exato, no sentido da exatidão do cálculo matemático e da mensuração experimental. Por outro lado, o
sentido de totalidade do conhecimento se perde na fragmentação de um sem fim de ciências particulares,
cada vez mais especializadas.
3
A própria filosofia moderna que tomou impulso a partir de Descartes declinou a
partir do século XIX. Ela não conseguiu estar à altura de sua tarefa histórica 4.
Nesse sentido, a fenomenologia surge como uma nova ideia, isto é, como um novo
vislumbre de possibilidade de ser, de uma humanidade, que vigore não no domínio da
positividade, do saber do cálculo e do poder tecnológico, mas no domínio da experiência
transcendental. Husserl vislumbrou a fenomenologia como uma possibilidade para o ser
humano viver de modo transcendental – e não positivo – em verdade e autenticidade:
4
O que aconteceu com a filosofia mesma? Nas Meditações Cartesianas, Husserl fala de uma
“decomposição da filosofia atual”, que, do mesmo modo, dá a pensar. O seu declínio é inegável desde o
meado do século XIX, diz ele. No início da modernidade a fé religiosa entrou em descrédito à medida que
se exteriorizou numa convenção. Ela perdeu sua substância, isto é, sua vigência e valência histórica. Em
seu lugar, a “humanidade pensante” elegeu uma “nova grande fé”, a fé em uma “filosofia e ciência
autônomas”. “A cultura humana no seu todo deveria ser conduzida por visões intelectivas científicas, ser
iluminadas por elas e, assim, ser reformada numa nova cultura autônoma” (p. 142). Foi o que aconteceu?
Não. “Entretanto, essa fé caiu na inautenticidade e definhou”. A filosofia moderna não conseguiu estar à
altura de sua tarefa histórica. Uma “filosofia unitária e viva” não foi constituída. Em seu lugar, o que
aconteceu foi o crescimento sem limites e sem coerência da literatura sobre a filosofia. A verdadeira crítica
no filosofar uns com e uns para os outros se tornou uma crítica aparente. Nos congressos filosóficos,
encontram-se os filósofos, mas não as filosofias. “Falta a unidade de um espaço espiritual”. Esta situação
parece requerer, tanto quanto a situação histórica da filosofia na época de Descartes, uma nova reforma e
um renascimento. As forças impulsionadoras que se irradiavam das meditações de Descartes perderam a
sua originária vivacidade. Uma reforma e um renascimento só seria possível, se se adotasse, de novo, o
espírito de radicalismo que está presente nas meditações de Descartes. “Radicalismo” certamente Husserl
usa esta expressão com um significado que é distinto daquele usual em nossos dias, isto é, não como
fanatismo e fundamentalismo sectário, mas como a tentativa de “ir à raiz” (radix), aos fundamentos, às
fontes mesmas de todo o conhecimento e de todo o saber. Para Husserl, este radicalismo filosófico significa
o retorno ao “ego cogito”, retorno que constitui o passo decisivo de uma filosofia transcendental. A
fenomenologia transcendental é, pois, a retomada das aspirações mais profundas do pensamento de
Descartes e do espírito de seu filosofar. O que não significa que a fenomenologia transcendental deva se
deixar conduzir pelos “extravios sedutores” nos quais caíram Descartes e seus seguidores. Do caminho da
fenomenologia transcendental nos falará as cinco meditações reunidas por Husserl e que constituem uma
verdadeira e própria introdução à fenomenologia tal como ela se encaminhou na sua experiência de
pensamento, na sua reflexão filosófica.
5
Husserl, Edmund. Phänomenologische Psychologie (Husserliana, Band IX). Den Haag: Martinus Nijhoff,
1962, p. 299.
4
A modernidade europeia (= ocidental) perseguiu até agora a realização da
humanidade do ser humano a partir da ciência positiva e da técnica. No entanto, com a
descoberta da investigação fenomenológica transcendental, Husserl entrevê a
possibilidade de uma humanidade que transcende esta realização, que se move no âmbito
e no horizonte do positivo e da positividade.
6
A primeira das Meditações Cartesianas trata de “O caminho para o ego transcendental” e compreende os
parágrafos de 3 a 11. O § 3 trata da “subversão” (Umsturz) cartesiana e da ideia-fim (Zweckidee) diretora
de uma fundamentação (Begründung) da ciência. A subversão consiste na resolução (Enstchluss) radical
de deixar fora de jogo todas as convicções que nos são válidas até então. A ideia-fim diretora é a da “Ciência
Universal” (Mathesis Universalis = Filosofia). Podemos entender a fenomenologia transcendental como a
realização desta ideia, ou, pelo menos, como o método (caminho) para a realização desta ideia. Em que
consiste esta ciência? Como ela se apresenta? Deve-se pressupor uma ciência já existente como modelo
para a realização desta ideia? A resposta de Husserl é: não. Não se deve pressupor uma ciência como
modelo para a realização da ideia da Ciência Universal. E aqui entra a crítica de Husserl a Descartes: este
foi traído por um preconceito (Vorurteil), a saber, o de que a Ciência Universal teria como modelo a
geometria e, respectivamente, a ciência matemática da natureza (física), ou seja, para Descartes, a Ciência
Universal deveria ser um sistema axiomático-dedutivo. A dedução seria realizada a partir do axioma da
absoluta autocerteza do ego e dos demais axiomas que seriam oferecidos pelos princípios axiomáticos
inatos ao próprio ego e que constituem o tema das meditações (a existência de Deus, a dualidade das
substâncias: res cogitans e res extensa). Husserl mantém a ideia-fim de uma Ciência Universal. Mas ele
não adota a pressuposição de que esta ciência tenha que ter a forma de um sistema axiomático-dedutivo.
Nenhuma ciência já existente deve servir de ideal normativo de ciência, nem a ciência matemática da
natureza, nem a matemática, nem a lógica... As ciências facticamente dadas devem ser submetidas à crítica
fenomenológica. Por enquanto, Husserl deixa em pé somente a ideia-fim de uma Ciência Universal, ainda
que esta ideia se apresente de modo vago – em vaga universalidade (in vager Allgemeinheit), dirá o § 4.
Esta ideia é por enquanto apenas algo que é presumido (Präsumption), assumido de antemão, como algo
que é pretendido (Prätention), sem que se possa prejulgar se e em que medida esta ideia possa ser realizada
efetivamente na práxis. O § 4 trata do desvelamento (Enthüllung) do sentido final da Ciência (Universal)
através de um imergir vivencial (Einleben) nela, ou seja, no seu aspirar, esforçar por alcançar (Streben) e
no seu agir (Handeln). A ideia diretora (Leitidee) de uma Ciência Universal deve guiar este esforço e este
agir. Ela não deve ser tirada das ciência fácticas por meio de uma abstração comparativa. É preciso encarar,
aqui, a Ciência Universal como ideia, não como fato, como fato da cultura, por exemplo. Esta ideia, porém,
reside numa “pretensão” (Prätention), ou seja, naquilo que é previamente intencionado e no tender para
isso que é intencionado, no esforçar-se por alcançar uma meta. Para desvelar esta ideia, é preciso imergir
no esforço que se orienta para ela como para uma meta.
5
1.2.2. CIÊNCIA, VERDADE E EVIDÊNCIA.
7
A verdade é a adequação do presumido com a coisa intuída mesma. Alcança-se, assim, uma interpretação
fenomenológica da antiga definição escolástica de verdade: veritas est adaequatio rei et intellectus. A
verdade aparece como identificação mostradora (ausweisende Identifizierung), realizada na plenificação
(Erfüllung) de um intencionar vazio, ou ainda, na realização ou confirmação de uma presunção. A
adequação acontece no modo do trazer à coincidência o presumido e o intuído. É, pois, identificação. E é
identificação mostradora à medida que, nesta adequação, acontece a mostração ou atestação (Ausweisung)
do presumido no intuído. Em sua estrutura intencional, a verdade enquanto adequação, se deixa analisar
em seus dois momentos, isto é, no tocante à intentio e no tocante ao intentum. O intentum da verdade é o
ser-idêntico de presumido e intuído. Verdade, neste sentido, aparece como o relacionamento entre
presumido e intuído, o qual se dá no modo do ser-idêntico de ambos. O ser-idêntico de presumido e intuído,
pois, constitui o ser-verdadeiro no sentido do intentum. Correlativamente, no sentido da intentio, verdade é
a realização do identificar, isto é, do trazer à coincidência, a saber, o presumido e o intuído. No sentido
pleno da análise intencional, portanto, verdade é a identificação do ser-idêntico de presumido e intuído.
8
Husserl, E. (1929). Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, p. 191.
6
atualizar (Gegenwärtigen). Isso mostra o caráter temporal da consciência em seu
relacionamento com o que se lhe presenta 9.
A evidência se dá, pois, em sentido pregnante, na intuição. A intuição, por sua
vez, em sentido pregnante, se dá na percepção. Na evidência, o que está em questão se
oferece ao modo do que é apreendido nele mesmo e como ele mesmo (Selbsterfassten),
do que é visto nele mesmo e como ele mesmo (Selbstgesehenen). Na fenomenologia de
Husserl, a evidência é uma consciência originária (urtümliche Bewusstsein). Ela é um ser-
junto à coisa mesma em questão 10. Na percepção, este ser-junto é privilegiado: “O ser-
junto-disso (Dabei-sein) é para mim como percipiente, em termos de consciência, meu
agora-ser-junto (Jetzt-dabei-sein): eu mesmo junto do percebido mesmo” 11. A evidência,
na percepção, tem o caráter de uma intelecção, isto é, de uma vidência clara e penetrante
do que se autodoa em sua originalidade (Einsicht).
Entretanto, apenas a evidência da percepção ou intuição sensível não satisfaz as
condições para que haja verdade. Daí a importância do tema da intuição categorial.
Entretanto, como acontece esta doação do categorial? E, de modo correlativo, como
acontece o intuir do categorial?
Eu vejo um livro diante de mim. No livro, eu vejo um objeto, que é uma coisa,
que é uma substância. Eu não vejo a substância do mesmo modo como vejo o livro. Ao
ver o livro como objeto, como coisa, como substância, eu estou vendo mais do que dados
hiléticos. Eu estou vendo uma forma categorial. Com esta forma categorial, no entanto,
algo me é dado 12. Já ao nomear “livro”, na significação do nome, está em jogo, como diz
Husserl, mais do que a “matéria” de um nome; está em jogo também a sua “forma” 13.
Neste sentido, já aqui há uma excedência (Überschuss) em significação (Heidegger, 1986,
p. 375). Husserl chama a atenção para a excedência de significação ao se dizer “papel
branco”. O que se dá a conhecer com esta expressão é o papel enquanto branco. A
expressão expressa a percepção, isto é, o percebido. Percebido, conhecido, é o papel
enquanto branco. A intenção da palavra “branco” apenas parcialmente coincide com o
momento-cor que se dá no objeto que está se manifestando. Sua intenção sobrepuja o
dado hilético da cor. Há uma excedência na significação, “uma forma que não encontra
9
Husserl, E. (1929). Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, p. 193.
10
Husserl, E. (1929). Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, p. 191.
11
Husserl, E. (1929). Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, p. 191.
12
Heidegger, M. (1986). Seminare (GA Band 15). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, p. 375.
13
Husserl (1993). Logische Untersuchungen II/2: Elemente einer phänomenologischen Aufklärung der
Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p. 128-129.
7
na aparição nada que pudesse confirmá-la” 14. Essa é “uma forma complementar, que
contém o ser” 15. Neste sentido, “branco”, na expressão “papel branco”, expressa “papel
sendo branco” (Weiss seiendes Papier). E Husserl pergunta: “e essa forma não se repetirá
também, mesmo permanecendo escondida, no substantivo papel?” (Husserl, 2000, p.
125). Isso quer dizer: o substantivo (Hauptwort) “papel” expressa mais do que um dado
hilético, expressa uma forma de ser, precisamente, a forma do ser enquanto substância.
Por isso, o nome “papel” é justamente designado de “nomen substantivum”, nome
substantivo. Poderíamos dizer, então: “papel” quer dizer “sendo papel”. A fortiori, esta
excedência se encontra também em enunciados inteiros que dão expressão a percepções.
Husserl fala de enunciados que dão a conhecer o ato de perceber, do tipo “vejo que este
papel está escrito”, ou “vejo que há aqui um tinteiro de bronze”, ou ainda, “vejo que vários
livros estão abertos” 16. Tudo o que vai além da “matéria”, isto é, dos termos nominais,
constitui a “forma categorial”, que pode e deve plenificar aos momentos de significação
da forma proposicional como tal 17. Nos enunciados há palavras cujas significações não
são materiais, mas formais, tais como “o, um, alguns, muitos, poucos, dois, é, não, qual,
e, ou e assim por diante” 18. São partes de enunciado cujas significações não encontram
correspondência na intuição sensível 19.
14
Husserl, E (2000). Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, p. 125.
15
Husserl, E (2000). Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, p. 125.
16
Husserl, E (2000). Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, p. 123.
17
Husserl, E (2000). Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, p. 123-124.
18
Husserl, E (2000). Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, p. 124.
19
Husserl (1993). Logische Untersuchungen II/2: Elemente einer phänomenologischen Aufklärung der
Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p. 135.
20
E. HUSSERL, Ideen I, 43-44.
8
O princípio dos princípios pode ser chamado de princípio da evidência. Ele não é
propriamente uma proposição teórica, algo assim como um axioma. Trata-se de um
princípio que jaz previamente a todos os princípios, isto é, que vem antes de todos
princípios teóricos, por reger toda a investigação científica, e que vem antes de todos os
princípios práticos, por reger a vida de uma humanidade que pretende viver na verdade e
na autenticidade 21.
21
Husserl, E. (1962). Phänomenologische Psychologie (Husserliana Band X). Haag: Martinus Nijhoff, p.
299.
22
As Conferências de Paris foram pronunciadas na Sorbonne, no anfiteatro Descartes, a convite do Instituto
de Estudos Germanísticos e da Sociedade Francesa de Filosofia, nos dias 23 e 25 de fevereiro de 1929. O
título original destas conferências era: “Einleitung in die transzendentale Philosophie” (Introdução à
Fenomenologia Transcendental). Depois disso, Husserl foi a convite de Jean Héring a Estrasburgo, onde
conferenciou na Faculdade Protestante de Teologia. As conferências se deram na primeira metade de março
de 1929. Husserl retomou os temas das Conferências de Paris, mas insistiu mais no tema da experiência do
outro (Fremderfahrung), da empatia (Einfühlung), do “alter ego”, da “intersubjetividade”. Visto que estas
conferências foram acompanhadas com vivo interesse pelos participantes, Husserl resolveu então dedicar-
se a escrever uma introdução à fenomenologia transcendental, para a qual ele quisera dar o título de
“Meditações Cartesianas”. O texto que Husserl escreveu estava pronto em 17 de maio de 1929. Husserl o
entregou a seu assistente Eugen Fink, que reviu o manuscrito e o enviou a Jean Héring. Este texto foi
traduzido para o francês por Gabrielle Peiffer e Emmanuel Levinas. A tradução foi revista por Alexandre
Koyré, outro antigo aluno de Husserl, e foi editado em francês como “Méditations cartésiennes”, no ano de
1931. Husserl intencionava publicar o texto do manuscrito em alemão no Jahrbuch (Anuário) para o verão
de 1929. Em carta a Roman Ingarden, Husserl declara que esta deveria ser a sua “Hauptwerk” (obra capital).
Husserl, porém, nunca estava satisfeito com a obra, continuou tentando aperfeiçoar as suas meditações e
foi, assim, postergando a publicação. Sua intenção era apresentar de modo mais elaborado a fenomenologia
transcendental como como filosofia universal, que inclui em si todas as ontologias, isto é, todas as ciências
que tratam do apriori das regiões do ser em questão, e que, por isso, serviria de fundamento para todas as
ciências positivas. A publicação tinha sido adiada para 1932 ou 1933, mas, a partir deste ano, a situação
política, com o governo de Hitler, os seus planos de publicação tornaram-se impossíveis, visto que Husserl
era judeu. Em 1950 as Meditações Cartesianas foram publicadas nas Obras de Husserl (Husserliana) como
o primeiro volume. Este volume contém as Conferências de Paris, as cinco Meditações Cartesianas, um
sumário de Husserl para as Conferências de Paris e umas observações críticas de Roman Ingarden (antigo
aluno de Husserl, professor em Cracóvia, na Polônia).
9
válidas uma vez por todas e para qualquer um”, ou seja, ela procura verdades que sejam
imutáveis e universais, ao menos idealmente, mesmo se esta busca exija uma
aproximação ao infinito deste ideal. Ademais, a Ciência Universal, a Filosofia, pretende
alcançar a “universalidade sistemática do conhecimento” (p. 50), pois ela é a ciência da
“unitotalidade do ente enquanto tal” (All-Einheit des Seienden überhautpt). Além disso,
pertence também à ideia de Ciência e Filosofia uma “ordem de conhecimento indo dos
conhecimentos em si primeiros para os conhecimentos em si posteriores”, sendo que o
começo e a progressão se dão não arbitrariamente mas de maneira fundada, isto é,
segundo a “natureza das próprias coisas”. Daqui Husserl retira um primeiro princípio
metódico, que se expressa nas palavras: “não poderei (...) fazer nem deixar valer nenhum
juízo que eu não tenha formado a partir da evidência, a partir das experiências em que a
coisa ou o estado-de-coisas em questão estão para mim presentes enquanto eles
próprios” 23.
23
HUSSERL, Meditações Cartesianas. São Paulo – SP: Madras, 2001, p. 51.
24
Note-se que a noção de experiência empírica se estende tanto sobre a experiência externa (do que é físico)
quanto sobre a experiência interna (do que é acessível à reflexão natural a modo de estados anímicos). O
conceito de “empírico” é, na filosofia transcendental, oposto a “puro” (sentido kantiano). Empírico é o
que, na experiência total, não vem das formas ou das leis do próprio espírito, mas lhe é imposto de fora.
25
Experiência é o conhecimento que procede da apreensão imediata de algo dado. A imediatez atesta a
presença do experimentado. Ela possui uma evidência privilegiada. Desde Roger Bacon, na idade média, e
ao longo da filosofia moderna, se distingui a experiência entre “experiência externa” e “experiência
interna”. Da experiência externa fazem parte as percepções sensíveis. Da experiência interna, as vivências
enquanto estados anímicos (realidades psíquicas). Tanto a experiência externa, do físico, quanto a
experiência interna, do psíquico, fornecem dados fáticos, singulares, contingentes, derivados (a posteriori).
Se considerarmos experiência apenas estes dois tipos de experiência, então toda experiência é fonte de
conhecimento a posteriori. Não haveria uma experiência do a priori, isto é, daquilo que é prévio ou que é
compreendido previamente (o âmbito do necessário e universal). A fenomenologia husserliana, no entanto,
traz a noção de experiência transcendental. O transcendental é tema da filosofia tanto medieval quanto
moderna. Na Idade Média, transcendental diz respeito àquilo que ultrapassa os limites dos gêneros e das
espécies ou, ainda, das categorias (é o trans-categorial). Em Kant, transcendental, em oposição a
transcendente, não é algo que se situa mais além do cognoscível (e que, neste sentido ultrapassa o âmbito
da experiência possível), mas sim algo que, no regresso reflexivo à consciência (sujeito) se descobre como
princípios constitutivos e como condição de possibilidade dos objetos da experiência. Através do método
regressivo, Kant procura esclarecer como é possível em geral o conhecimento objetivo. A objetividade dos
objetos é constituída a partir de condições a priori. Transcendental é, pois, em Kant, o que está referido às
condições de possibilidade da experiência dos objetos e dos objetos da experiência. Kant distingue entre
empírico e sensível. A intuição de um triângulo geométrico é sensível, mas pura; a de um cartão branco
triangular é sensível e empírica. O conhecimento empírico, a posteriori, se funda no conhecimento
transcendental, a priori. O conhecimento transcendental é ontológico. O conhecimento finito consiste de
duas fontes do ânimo (Gemüt): sensibilidade e entendimento. Em vez de duas fontes, às vezes Kant fala
também de “dois ramos” e pressente que “talvez” estes dois ramos brotem de uma raiz comum, mas que
nos é conhecida. O esclarecimento da possibilidade do conhecimento ontológico
(conhecimento sintético a priori) se torna, então, a pergunta pela essência de uma síntese “pura” (livre da
10
concepção de que só há experiência empírica, isto é, externa e interna, do físico e do
psíquico, então seria um algo paradoxal falar de “experiência transcendental” 26. Todavia,
este paradoxo pode se dissolver, se compreendermos que há outro modo de compreender
experiência. Podemos, por exemplo, admitir que um conhecimento transcendental,
concernente às condições de possibilidade dos objetos da experiência e da experiência
dos objetos, para se afirmar, precisa tornar fenômenos estas condições, para não resultar
uma mera construção 27. Podemos, fenomenologicamente, falar de uma experiência que
11
faz visível, torna fenômeno, a modo de uma abertura inaugural, o domínio do apriori:
experiência fundamental ou transcendental 28.
percebido e concebido. Tal ponto focal que se constitui na instância estrutural do sujeito, a qual apresenta
as características de ser unitária e originária, transcendental e sempre idêntica a si mesma é chamada de
consciência. O “eu penso” é ele mesmo representação, mas representação originária, pois não pode ser
objeto de uma intuição, isto é, de uma percepção empírica. O “eu penso” é dado de modo imediato como
apercepção originária ou pura. Tal apercepção é o que caracteriza a consciência como autoconsciência. A
unidade subjetiva da multiplicidade objetiva que se dá na autoconsciência é chamada por Kant de unidade
transcendental da autoconsciência. O nosso pensamento é, no fundo, uma atividade unificadora,
sintetizadora. A forma do entendimento é a apercepção originária.
28
O transcendental concerne ao apriori e o apriori é discernido como aquilo que é necessário e universal.
29
O adjetivo “adequada” referido a “evidência” significa, portanto, “perfeita”, no sentido de “completa”.
12
ter o caráter de uma evidência apodítica 30. Segundo Husserl, “toda e qualquer evidência
é autocaptação de um ser ou de um ser-assim (Selbsterfassung eines Seienden oder So-
seienden) no modo “ele próprio”, na plena certeza acerca deste ser, a qual, portanto,
excluir qualquer dúvida” (p. 53). As evidências que se referem à experiência sensível 31,
que se referem a fatos, isto é, a coisas e estados-de-coisa, não são necessárias e não
excluem a possibilidade e a pensabilidade de um não-ser, de um não-ser-assim. É que o
ser pode acabar se revelando, na experiência sensível, uma aparência (Schein). As
evidências deste tipo não resistem à reflexão crítica que quer excluir toda dúvida, que
quer constatar a “absoluta impensabilidade” do não-ser daquilo que é enunciado no juízo.
Evidência apodítica implica que aquilo que é julgado não pode não ser e não pode não
ser assim como é, isto é, implica a necessidade.
30
Heidegger trata da diferença entre “evidência assertórica” e “evidência apodítica”. Evidência assertórica
é a que se refere a existência de fatos, isto é, ao factual, a coisas e estados-de-coisa “individuais”, ao não-
necessário. “Evidência apodítica” se refere, porém, à essência, ao que é necessário, ao que não pode não
ser, e que não pode não ser de outro modo de como é. A evidência apodítica é uma visão intelectiva das
relações-de-essência. Ambas as formas de evidência podem ser conjugadas numa conexão em que se dá a
visão intelectiva da necessidade do ser-assim de um estado-de-coisas individual a partir de razões essenciais
do “individual posto” (Cfr. Heidegger, Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, GA Band 20, p. 68).
Uma evidência pode ser apodítica e não ser absoluta, isto é, incondicionada, como a evidência do enunciado
“2 x 2 = 4”. Neste caso, trata-se de uma certeza condicionada, pois a evidência deste enunciado depende de
duas coisas: da premissa da igualdade e da premissa da identidade – que o 2 é sempre idêntico a ele mesmo
(cfr. Seminários de Zollikon, p. 38). Leibniz falava de “verdades de fato” e de “verdades de essência”; Kant
distinguia as modalidades do juízo em assertórico, problemático e apodíctico.
31
Evidências assertóricas.
32
Husserl, E. (1929). Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, p. 144.
13
conceitos de intencionalidade como tal e de evidência, estão, pois, essencialmente
conectados. Intencionalidade, em termos de consciência, aparece, com efeito,
basicamente, como a vivência de um ter a sabença de alguma coisa. O saber dessa sabença
da consciência, porém, varia de acordo como o modo do relacionamento da consciência
com aquilo de que ela tem consciência. Uma certa consciência de evidência, pois, se
insere sempre na intencionalidade. “Assim a evidência é um modo universal da
intencionalidade, que se refere ao todo da vida da consciência” 33. A análise
fenomenológica da vida da consciência em seu caráter de intencionalidade, com efeito,
traz à evidência a universalidade da evidência. Heidegger aponta para essa
universalidade: “Evidência é uma função universal, a princípio, dos atos que doam
objetos, mais amplamente, de todos os atos (evidência do querer, do desejo, evidência do
amar e esperar). Ela não é restrita a enunciados, predicações, juízos” 34.
33
Ibidem.
34
Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band
20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 68.
14
‘percepção interna’” 35. A evidência ontológica é dada na reflexão e para a reflexão
transcendental. Entretanto, não é um produto da reflexão transcendental.
35
Husserl, E. Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 131.
15
pretensão de ser (Seinsanspruch) do mundo (p. 56). Ele perde o mundo. Perder o mundo
significa, porém, perder não somente o mundo circundante concreto da vida, com a
natureza aí inserido, mas também o mundo da socialidade e da cultura, significa perder
não somente os seres que vivem no mundo natural, mas também perder os outros eus com
os quais ele compartilha este mundo natural e o mundo sociocultural, significa, enfim,
perder o seu próprio corpo, perder a si mesmo como uma coisa dentro mundo. O mundo,
para ele, já não é algo que é (seiend), é apenas algo que aparece, é apenas um fenômeno
de ser (Seinsphänomen) (p. 56). Neste momento, portanto, não há uma decisão entre o
ser (Sein) e a aparência (Schein) do mundo. O fenomenólogo se abstém da crença no
mundo, da crença no seu sentido (Sinn) e na sua validade (Validade) como ser verdadeiro
(als wahres Sein). O mundo é, agora, seu fenômeno, algo que aparece para mim, sem que
eu possa crer na sua pretensão de verdade, sem que eu possa decidir se este aparecer é
verdadeiro ser ou se é mera aparência.
16
eu, aquele que medita, por isso mesmo me aproprio é da minha vida
pura com todas as suas vivências e todas as suas coisas visadas,
enquanto puramente visadas, o universo dos fenômenos no sentido da
Fenomenologia (p. 58).
17
presença (die lebendige Selbstgegenwart). Mas, junto com isso que se oferece como
presente vivo da ego, se dá também, como algo que é presumido e visado junto, o
horizonte do não-experimentado. A este horizonte pertence o obscuro passado próprio,
como também as “faculdades transcendentais” e as propriedades habituais que, a cada
vez, pertencem ao eu. O “eu sou” é, pois, um horizonte aberto de potencialidades e de
habitualidades. A vida do ego sum, do ego cogito, do sum cogitans, deixa presumir, assim,
uma amplidão de experiências. O problema sobre a envergadura ou alcance desta
amplidão é que é o problema.
36
Que trata das leis naturais.
37
“seguindo a ordem da geometria”. Outra expressão equivalente: “more geometrico”, expressão latina que
significa “à maneira da geometria”. É a ordem dos “Princípios” de Descartes: partindo de definições e
axiomas se deduzem teoremas, seguidos de corolários e esclarecimentos. Definição: determinação completa
e clara do significado de uma palavra ou de um conceito, e portanto, de um estado-de-coisas com indicação
de todas as notas necessárias, e só estas, de sua ordem. Axioma: princípio fundamental, primeiro princípio,
tese primeira, evidente por si mesma (evidência axiomática), indeduzível e isenta de pressupostos; como
pressuposto fundamental de toda demonstração, não é demonstrável em si mesmo; só pode ser mostrado
(na reflexão transcendental). Teorema: enunciado demonstrável numa teoria; proposição especulativa, que
serve de premissa a novos raciocínios. Corolário: proposição que deriva imediatamente de uma outra em
virtude apenas das leis da Lógica (= consequência formal).
38
“Substância pensante”.
39
“Mente ou ânimo”.
18
A primeira meditação termina com o § 11, que trata do “eu psicológico” e do “eu
transcendental”, bem como da “transcendência do mundo”. A vida, em sua validade de
ser (Seinsgeltung), permanece intocada, mesmo se nada se decidiu sobre o ser ou o não
ser do mundo. O eu, a vida do eu, não é um pedaço do mundo. O ego do “ego sum”, do
“ego cogito”, não é um homem, isto é, não é uma coisa intramundana, um ser psicofísico
que aparece no horizonte da experiência sensível, no mundo. O eu não é uma ocorrência
no mundo. Sua vida transcendental não coincide com a vida da alma deste ser psicofísico
que ocorre no mundo, e que é objeto da biologia, da antropologia, da psicologia. O eu
transcendental é o eu que medita, o eu que se experimenta a si mesmo
transcendentalmente, como sendo aquém do ser natural do mundo, como sendo
“fundamento de validação” (p. 63) de toda e qualquer validade e fundamento objetivos.
Se, por um lado, o eu não é nenhum pedaço do mundo, também, por outro lado, o
mundo e cada objeto mundano não são um pedaço do meu eu. Isso quer dizer: não é uma
parte real (reell), um complexo de dados de sensação ou de atos que se achariam em mim
de modo real (reell). O mundo está “contido em mim”, mas apenas de modo intencional,
irreal (irreell). Ao mundo pertence o caráter de transcendência. Transcendência do mundo
significa: ele não é parte real de mim, está contido em mim apenas de modo intencional,
irreal, como aquilo de que eu tenho consciência, e eu sou fonte de seu sentido e de sua
validade de ser. O mundo é transcendente. O eu é transcendental, é aquele que precede o
mundo, como fonte de sentido e de validade de ser, como fundamento e suporte da
validade da transcendência do mundo.
19
Buscando compreender a dinâmica de sentido do fenômeno, sua fenomenologia,
a partir da experiência transcendental, o método descoberto por Husserl se concentra na
intencionalidade. É, fundamentalmente, análise intencional das mais diversas formas de
vivência da consciência, ou seja, análise da correlação entre intencionar e intencionado:
dos processos de relacionamento que a consciência exerce com qualquer conteúdo (polo
noético), bem como das relações significativas que os conteúdos constituídos guardam
com esses processos de relacionamento (polo noemático).
40
Rombach, Heinrich. Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins. Freiburg [Breisgau] / Müchen:
Alber, 1980, p. 39.
20
A segunda das Meditações Cartesianas se intitula, em alemão, “Freilegung des
transzendentalen Erfahrungsfeldes nach seinen universalem Strukturen”. A tradução de
Pedro Alves diz: “Abertura do campo de experiência transcendental segundo as suas
estruturas universais”. É importante a palavra “Freilegung”, traduzido como “abertura”.
O verbo “freilegen” significa abrir um caminho, desentulhar um caminho. Tem também
o sentido de pôr a descoberto. “Frei” é “livre”. “Legen” é “pôr”. Podemos interpretar esta
palavra como indicando o trabalho de liberar. Trata-se, pois, de uma “liberação” que se
dá no sentido de desencobrir um campo, tirar o que está entulhado nele, abrir caminhos
nele, torna-lo capaz de receber a semente, etc. Digamos que o trabalho da fenomenologia
transcendental aparece aqui como a “liberação” do “campo da experiência
transcendental”. Esta liberação se dá segundo, isto é, seguindo as “suas estruturas
universais”. Os §§ 12 a 22 das Meditações Cartesianas tratam deste trabalho.
Com a “epoché” se abre, se libera, uma esfera infinita de ser nova enquanto esfera
de uma experiência de novo tipo, a saber, a transcendental. Husserl fala de uma
“experiência transcendental”. No texto, de cara, não vem nenhuma definição do que ele
entende por “experiência transcendental”. O que seria, aqui, experiência? A “apreensão
imediata de algo dado” e dado “por si mesmo”, em sua presença direta? Há uma
experiência que não é do físico nem do psíquico? Uma experiência do “ego cogito”
enquanto transcendental, isto é, enquanto uma esfera de ser que não é constituída, mas
que é constituinte? Uma experiência do apriori? Husserl parece apontar para a
“dimensão” do a priori. Nós temos uma experiência do real, efetivo (wirklich). Temos
também uma experiência própria da fantasia. A experiência da fantasia Husserl chama de
“experiência do como-se”. Depois, ele trata de um terceiro tipo de experiência, que
implica consigo o “reino das puras possibilidades”, que são as “possibilidades
apriorísticas”. Logo em seguida, ele fala de uma “autoexperiência da vida transcendental”
e de uma “estrutura universal apodítica da experiência do eu”.
41
Ou corrente, entendida, no sentido da correnteza de um rio, em seu fluir contínuo.
22
ontologicamente toda e qualquer vivência enquanto tal. E traz consigo uma evidência
apodítica: que se faz ver por si mesma.
Husserl fala de dois níveis de trabalho científico a ser feito. “No primeiro nível, o
colossal (...) domínio da autoexperiência transcendental deve ser percorrido”. Este
percorrer deve acontecer numa “simples entrega ao decurso concordante da evidência que
lhe é inerente”. Este nível ainda não é filosófico em sentido pleno. Falta, aqui, ainda uma
“crítica da experiência transcendental”. O segundo nível é justamente do da “crítica da
experiência transcendental”, e, a partir desta crítica, o da crítica do “conhecimento
transcendental em geral”.
Husserl observa que a epoché não muda nada no mundo, o que muda é o modo de
se relacionar com o mundo e de tomar o mundo em relação à consciência. A percepção
de uma mesa, continua sendo percepção de uma mesa. Só que agora, mesa não é tomada
como uma coisa ocorrente aí num mundo que é absolutamente dado. A mesa aparece
como objeto que se dá à consciência, como o que percebido na percepção. Cada vivência
da consciência é cada vez consciência disso e daquilo. Cada vivência da consciência
intenciona, visa, alguma coisa e traz em si esta coisa no modo do seu ser-intencionado.
Isso que é visado pela vivência da consciência e que ela traz em si mesma no modo do
seu ser-intencionado chama-se “cogitatum”. Na redução transcendental, pois, a mesa não
é mais uma coisa dada num mundo que existe de modo absoluto, incondicionado; a mesa
é um objeto visado pela consciência, no caso, ela é o percebido do perceber. O percebido
está no percepiente segundo o modo da percepção. A percepção de uma casa visa uma
casa, esta casa individual, mas a visa no modo da percepção. A recordação de uma casa
visa (intenciona) uma casa no modo da recordação (como casa recordada). Outro modo é
o de uma casa que é fantasiada. Outro modo é ainda o de uma casa que está dada de modo
perceptivo e que é objeto de um juízo predicativo. Em todas estas vivências da
consciência, a casa é objeto intencional. Intencionalidade é, portanto, a propriedade da
consciência de ser consciência de algo, de trazer em si, enquanto cogito, o seu cogitatum.
25
minha própria percepção da casa, atentar para ela. Neste caso, pratico um ato de reflexão.
Há a reflexão natural, isto é, habitual, cotidiana, ou então, a reflexão psicológica, em que
o mundo é o chão dado de antemão sobre o qual se vive se pratica a reflexão. E há a
reflexão transcendental, em que a posição (tese) do mundo como absoluta dado é inibida
(epoché). A reflexão transcendental deve ser livre deste preconceito. Depois, se na
reflexão natural eu sou um participante interessado no mundo, na reflexão transcendental
eu sou um expectador desinteressado do que se dá na consciência em sua correlação com
o mundo. Neste caso os dados objetivos do mundo são tomados como “cogitata” (plural
de cogitatum), isto é, como objetos para os atos da consciência, e apenas assim (cogitata
enquanto cogitata).
27
que o perceber de uma coisa como coisa espacial supõe já sempre a vivência do tempo.
Cada ato de percepção traz consigo o horizonte temporal que a ele pertence, o qual deve
ter sido já sempre possibilitado, a fim de que possam se dar protensões e retensões, mas
também recordações e expectativas. Contemplando uma determinada coisa da percepção,
eu vejo não somente esta coisa, mas também o meu advir a ela, bem como o meu partir
dela. Cada percepção atual é a contração de uma história perceptiva. Eu vejo tanto
melhor quanto mais eu deixo estar viva, na mirada atual da coisa, esta história, que é a
história da minha percepção da coisa e, ao mesmo tempo, a “história” da coisa percebida
mesma.
28
consciência. Estes, os modos de ser da consciência, permanecem sempre vinculados a
uma típica estrutural (Strukturtypik). “Explicitar sistematicamente essa típica estrutural
é precisamente a tarefa da teoria transcendental, a qual, quando toma como fio condutor
uma generalidade objetiva, se chama teoria da constituição transcendental do objeto em
geral enquanto objeto da correspondente forma ou categoria, ou, no ponto supremo, da
correspondente região” (p. 90). A teoria transcendental requer assim, por um lado, uma
teoria do objeto em geral, e, por conseguinte, uma teoria dos diversos tipos de
objetividades (reais ou categoriais), e, por outro lado, uma teoria da percepção, uma teoria
da significação, uma teoria do juízo, uma teoria da vontade, etc. Objetos reais e ideais
são, assim, fio condutor para a investigação dos modos de consciência em que eles são
constituídos. Para além dos “objetos objetivos”, temos também os “objetos subjetivos”
(vivências imanentes). Toda esta investigação constitutiva (que trata da constituição dos
objetos e suas objetividades nos modos de ser da consciência) remetem de volta para o
“ego na universalidade do seu ser e da sua vida”:
29
1.2.5. CONSTITUIÇÃO DA REALIDADE EFETIVA / DO MUNDO
30
passagem para sínteses de confirmação, que pertencem, por essência,
ao domínio do eu posso (p. 95).
31
modo de consciência da fantasia não põe algo como efetivamente dado, apenas põe algo
como se fosse, como se fosse assim e assim, etc. Ele desvela, assim, possibilidades de
ser. Também a fantasia (o como-se-fosse) tem uma função importante como “modo de
tornar evidente”, pois ela oferece uma “intuição prefigurativa” (vorverbildlichenden
Anschaung). Trata-se de uma visão que de antemão figura, imagina, como seria algo. Esta
intuição pode conceder preenchimento a um presumir vazio, isto é, pode confirmar ou
não uma presunção. Trata-se de uma “intuição que traz implicitamente consigo o sentido
de que, se chegasse a ser direta, autodoadora, daria um preenchimento (Erfüllung =
preenchimento, cumprimento, plenificação) que confirmaria a visada no seu sentido de
ser” (p. 96). Quer dizer: a intuição prefigurativa, alcançada na fantasia, oferece a
“possibilidade de ser” de um conteúdo.
32
de determinado fato vivido. Este “sempre de novo” dá o caráter de iteração (repetição) da
evidência habitual. O “eu posso sempre de novo” dá a característica de potencialidade da
evidência habitual (potentia > potere = poder). Por isso Husserl fala de “evidência
habitual e potencial”. O poder repetir uma evidência adquirida é que constitui o sentido
noemático do “objeto que está sendo”, do “objeto que é”, no sentido de um ser que
persiste e permanece (stehendes und bleibendes Sein). O sentido noemático “Ser
permanente” (bleibendes Sein), atribuído a um ente real ou ideal, ou a um mundo real ou
ideal, se constitui, pois, a partir de uma evidência habitual e potencial, isto é, a partir de
uma evidência adquirida que pode ser sempre de novo restituída. O sentido noemático do
“em si” de um ente, de um mundo, de uma verdade pressupõe a evidência habitual e
potencial. A evidência habitual e potencial, por sua vez, se funda em “certas
potencialidades fundadas no eu transcendental e na sua vida” e remete para
“potencialidades da infinitude das visadas que estão sinteticamente referidas a uma e
mesma coisa em geral” e também para “potencialidades da sua confirmação” (p. 98).
33
ideia correlativa à ideia de uma perfeita evidência de experiência”, uma ideia “de uma
síntese completa de experiências possíveis” (p. 100).
O § 31 trata do “eu” como “polo idêntico das vivências”. “O próprio ego é para si
um ser numa evidência contínua, portanto, a si em si mesmo continuamente se
constituindo enquanto ser” (p. 104). O “ego não se capta apenas como vida fluente, mas,
sim, como eu, como o eu que vive isto e aquilo, que vive através deste e daquele cogito
como o mesmo” (p. 104). Assim, a correlação intencional tem dois polos. Um polo é o do
“cogitatum”, que se abre como sistemas de objetos intencionais. Outro polo é o do
“cogito” que reconduz a um “eu idêntico”, isto é, que permanece o mesmo, que é algo
como a fonte das “cogitationes” e que “vive em todas as vivências, enquanto consciência
ativa ou enquanto afetado, e que, através e ao longo das vivências, está referido a todos
os polos-objeto” (p. 104).
34
O § 32 trata do eu como “substrato de habitualidades”. A vida do eu se rege pela
“legalidade da gênese transcendental”. Em virtude desta legalidade, “com cada ato que
dele irradia com um novo sentido objetivo, este eu adquire uma propriedade nova
permanente” (p. 104). O exemplo dado por Husserl é o da decisão. Se eu, num ato
judicativo (= de julgar), me decido pelo ser ou ser-assim de algo, o ato é efêmero, mas
“eu sou, de um modo permanente, o eu que se decidiu desta ou daquela maneira”, ou seja,
um eu que tem tal ou tal convicção. Decisões valorativas (de atos de sentimento) e
volitivas (de atos de vontade) também criam hábitos, isto é, disposições permanentes que
determinam o eu deste ou daquele modo. “Eu decido-me – a vivência de ato deflui, mas
a decisão persiste duradouramente na sua validade, quer passivamente mergulhe num
sono pesado, quer viva em outros atos; correlativamente, eu sou, de agora em diante,
aquele que está assim decidido, e sou-o enquanto não tiver abandonado a decisão” (p.
105). O eu, nas decisões que toma, nas convicções que cria, “mostra um caráter pessoal”
(p. 106).
35
fenomenologia genética já iniciada com a apresentação do eu como polo e substrato de
habitualidades. Ao mesmo tempo este § 34 faz uma passagem da descrição da
experiência transcendental para o método da descrição eidética. A redução
fenomenológica conduziu ao ego transcendental monádico, enquanto ego concreto, ego
fático, que é absoluto (solto em si mesmo), uno e único. A descrição eidética dá um passo
a mais. Ela visa “possibilidades puras (não factuais) e “necessidades de essência”,
estruturas “a priori”, tipos de vivências intencionais (por exemplo, percepção, retenção,
recordação iterativa, asserir, ter-prazer-em-algo, et.). Se a descrição abstrai (prescinde)
de toda factualidade e varia as possibilidades puras (não factuais) de uma vivência, por
exemplo, da percepção, ela capta, então, o seu eidos. O eidos da percepção é a sua
essência, a sua estrutura geral típica, o que implica nas necessidades de essência que
regem a priori o dar-se de suas possibilidades, “cuja extensão ideal é constituída de todas
as percepções idealiter [idealmente] possíveis enquanto concebibilidades [o que se pode
imaginar e conceber] puras” (p. 109). Necessidade de essência é aquilo que a priori rege
toda a possibilidade e se aplica a qualquer caso singular. Assim, uma análise eidética da
percepção buscaria o que é que necessariamente e geralmente se dá em toda e qualquer
percepção. A essência da percepção é aquilo sem o que uma percepção não pode ser
percepção. A evidência intuitiva das possibilidades puras (que se obtém pela imaginação
que varia as possibilidades puras) tem como correlato uma “consciência de generalidade
intuitiva e apodítica”. A intuição eidética é a visão (apreensão) de algo de universal e
incondicionado: “O próprio eidos é algo universal, visto ou visível, algo puro
incondicionado, a saber, não condicionado por qualquer fato segundo o seu sentido
intuitivo próprio” (p. 109). O eidos é algo de a priori: “Ele está antes de todos os
conceitos, no sentido de significações verbais, as quais, enquanto puros conceitos, terão
antes de se ajustar a ele” (p. 109). Assim como se pode alcançar uma intuição eidética de
um tipo de vivência, por exemplo, da percepção, pode-se também alcançar uma intuição
eidética do ego transcendental. Agora não se considera mais este ou aquele ego
transcendental fático, mas sim o “eidos ego” (p. 110). A intuição eidética do ego se dá à
medida que o fenomenólogo, partindo de seu ego fático, pela imaginação, varia as
possibilidades de ego, abstraindo das factualidades, tentando apreender aquilo que
necessariamente, universalmente e a priori é constitutivo de todo e qualquer ego enquanto
ego.
36
em geral, ou, dado que toda e qualquer generalidade de essência tem o
valor de uma legalidade inquebrantável, ela pesquisa a legalidade
universal de essência que prescreve o seu sentido possível (juntamente
com o seu oposto, o contrassenso) a toda e qualquer asserção fatual
sobre o transcendental (p. 110).
37
Pensemos, por exemplo, nas restrições que as idades da vida impõem aos seres humanos.
A temporalidade rege todas as realizações das formas ou tipos de vida, suas possibilidades
de coexistir e de se suceder: “Pois, seja o que for que surja no meu ego e, eideticamente,
num ego em geral – sejam vivências intencionais, unidades constituídas, habitualidades
egoicas –, tudo tem a sua temporalidade e toma parte, neste aspecto, no sistema de formas
da temporalidade universal, com a qual se constitui para si mesmo cada ego concebível”
(p. 113).
O tempo é, assim, a forma das formas, isto é, a forma que in-forma, dá forma, a
todas as vivências da consciência, a seu fluxo e defluxo. No interior desta forma universal
da temporalidade é que decorre a vida “como uma marcha motivada de operatividades”,
responsáveis pela gênese do ego. “O ego constitui-se para si mesmo na unidade de uma
história” (p. 114). Por outro lado, com a autoconstituição do ego é que se dá a
constituição do mundo objetivo – quer da natureza, quer da cultura (ciências, belas-artes,
técnica), quer de “personalidades de ordem superior” (Estado, Igreja), etc. Com a
fenomenologia genética, isto é, com o tema da gênese do ego e da gênese do mundo
objetivo, passamos de uma fenomenologia estática para uma fenomenologia dinâmica.
38
O § 38 entra na fenomenologia genética ressaltando a gêneses constitutiva em suas
duas formas fundamentais: “gênese ativa” e “gênese passiva”. Na gênese ativa “o eu
funciona, através de atos egoicos específicos, como produtor, constituinte” (p. 116). Ao
domínio da gênese ativa pertencem as “operações da razão prática”, tomando-se esta num
sentido bem amplo, que inclui também a razão lógica. Aqui se constituem novos objetos:
matemáticos, lógicos, etc. Atos de síntese e atos de ideação produzem objetos que só são
apreensíveis por meio da intuição categorial. As atividades da razão constituem ou
produzem, assim, objetos que têm o caráter de irrealidade, isto é, de idealidade.
Atividades espirituais iniciam-se com a “captação ativa” da intuição categorial.
Atividades racionais-espirituais da consciência, porém, pressupõem algo de pré-dado, de
que elas retiram a matéria para dar forma. Esta matéria é dada numa síntese passiva.
Apresenta-se, assim, “a coisa pré-dada na intuição passiva”, que é unitária, isto é, uma
captação de uma coisa singular, una na sua forma, não obstante os seus múltiplos modos
de aparição. Esta síntese passiva tem, pois, uma história. Assim, a percepção das coisas
têm uma história. Na nossa infância foi-nos preciso aprender a ver as coisas, antes de nos
tornarmos capazes de apreender objetos lógicos, matemáticos, enfim, objetos que só se
nos aparecem numa intuição categorial. Graças à gênese passiva o eu tem
incessantemente uma “cercania de objetos”. Para poder ver objetos como substratos de
propriedades é preciso ter sido exercitado na gênese passiva. O objeto como substrato de
propriedades é a forma final de uma gênese, o que remete, então para uma instituição
originária desta forma. Para se poder ver uma coisa espacial, um objeto cultural, um
utensílio como tais também é preciso ter sido exercitado na gênese passiva.
39
se devem conjugar por completo com a forma universal e persistente da temporalidade,
forma que abarca tudo o que surge como novo na consciência.
40
cai no domínio da subjetividade transcendental, enquanto constituinte
de sentido e ser (p. 122).
41
Trata-se, pois, de um idealismo que explicita a gênese de sentido a partir da
intencionalidade constituinte. A fenomenologia transcendental é esta própria
explicitação, ou melhor, é a própria autoexplicitação do ego e daquilo que, por meio da
intencionalidade, nele se constitui: ele mesmo, os outros, o mundo comum objetivo.
Trata-se, pois, de um idealismo que se prova a si mesmo como explicitação e não por
meio de jogos argumentativos, que visam ganhar um troféu “no combate dialético com
os realismos” (p. 124). O idealismo fenomenológico-transcendental, pois, consiste no
trabalho “de autoexplicitação do meu ego meditante, segundo a constituição e o
constituído” (p. 125). Para além da questão da autoconstituição do ego e da constituição
do mundo objetivo, está a questão da constituição dos outros. Esta é mesmo fundamental
para colocar devidamente a questão da constituição do mundo objetivo: “por meio das
constituições alheias, que se constituem no meu próprio ego, constitui-se para mim (...) o
mundo comum para todos nós” (p. 125-126). Daí também vem a questão da constituição
de uma “filosofia como algo comum a todos nós, enquanto meditamos uns com os outros
– a ideia de uma única perenis philosophia” (p. 126). O fim do § 41 é um aceno para o
que vem na quinta meditação – a questão da intersubjetividade. Mas é também uma
declaração sobre o sentido das “Meditações Cartesianas” como um todo: a fenomenologia
universal como ontologia, isto é, como filosofia primeira:
42
1.2.7. INTERSUBJETIVIDADE
43
qualquer um nos seus objetos” (p. 130). No entanto, o outro-eu assim como o mundo
intersubjetivo, são, cada vez, sentidos de ser. Enquanto tais sentidos de ser se formam no
eu, isto é, na sua vida intencional constituinte: “todo e qualquer sentido que um qualquer
ente que tenha e possa ter para mim, tanto quanto ao seu “quid” (o quê = quididade,
essência) quanto ao seu ‘é, e é efetivamente’ (existência), é um sentido em ou a partir da
minha vida intencional, cujas sínteses constitutivas, nos sistemas de confirmação
concordante, são aquilo a partir de que esse sentido para mim se aclara e se desvenda” (p.
130). Isto quer dizer: o sentido de ser “outros-eus”, bem como o sentido de ser “mundo
intersubjetivo” se faz para mim e se forma em mim a partir de mim, isto é, de minha vida
intencional, das suas intencionalidades abertas para o mundo e para os outros. Como o
sentido de ser da alteridade e da intersubjetividade se faz para mim e se forma para mim
é que é a questão. Trata-se do “problema do aí-para-mim (Für-mich-da) dos outros”, tema
da “teoria transcendental da experiência do que me é alheio”, a assim chamada
“intropatia” (Einfühlung – também se traduz por empatia) (p. 130). Esta teoria, no
entanto, tem um alcance maior: ela “funda uma teoria transcendental do mundo objetivo”
(p. 130), ou seja, do mundo que está aí-para-qualquer-um (Für-jederman-da), mundo da
natureza objetiva, mas também do mundo da cultura enquanto mundo que está aí-para-
qualquer-um desta ou daquela comunidade humana.
44
semelhante na dessemelhança ou dessemelhante na semelhança]. Surge, então, a questão:
“como pode o meu ego, no interior de sua propriedade, constituir, sob o título de
‘experiência alheia’, precisamente algo alheio”? (p. 132). A colocação desta questão,
porém, deve permanecer na atitude transcendental. Ela deve partir da epoché
fenomenológica: “tudo o que antes fora diretamente para nós um ser é tomado
exclusivamente como fenômeno, como um sentido visado que se confirma” (p. 133). A
partir da epoché, o outro é tomado como sentido de ser correlato da intencionalidade.
Antes, porém, de tratar da constituição intencional do alheio, é preciso explicitar o não-
alheio (Nicht-Fremdes), o “próprio-a-mim” (Mir-Eigene). Na epoché, faz-se abstração
(se prescinde de) dos outros, do mundo objetivo (natureza e cultura), do mundo
intersubjetivo. No entanto, mesmo com esta abstração, que reconduz ao campo da
experiência transcendental do ego, “retemos um estrato unitário e coerente do fenômeno-
mundo”, que é condição de possibilidade para que possa haver uma experiência do alheio,
bem como uma experiência do mundo objetivo. Na abstração da epoché fenomenológica
desaparece o sentido de ser “objetivo”, mas permanece o fenômeno-mundo.
Respectivamente, a natureza não desaparece de todo. Ela está incluída na esfera da minha
propriedade, a saber, como “meu soma” (Leib = corpo no sentido de corpo vivente). Este,
o “soma” (Leib = corpo vivente) é mais do que um simples corpo (Körper = coisa
extensa). É o corpo que pertence a mim, em que experiencio campos sensoriais (sensações
táteis de frio, calor, etc.). É o corpo em que eu imediatamente mando, e de que eu
disponho, que eu governo. Os órgãos do meu corpo com suas cinestesias obedecem a um
“eu faço” (Ich tue) e a um “eu posso” (Ich kann). A partir do meu corpo vivente (Leib =
“soma”) e da sua corporeidade (Leiblichkeit = somaticidade) é que eu tenho o comércio
com a natureza. É a partir dele também que se constitui o fenômeno objetivo do “eu
enquanto este homem” (p. 135). Este eu é uma unidade psicofísica, isto é, uma unidade
de corpo e alma. É o eu pessoal, que neste corpo e por meio dele (note-se a ideia de
mediação atribuída ao corpo), “age e padece no mundo exterior” (p. 135). Vem à luz,
assim, o eu constituído (diferente do eu constituinte), e, com ele, o mundo exterior. Mas
tanto o eu constituído quanto o mundo exterior se formam interiormente, na esfera da
subjetividade transcendental, do eu constituinte:
45
mundo reduzido, pertence à essência concreta do sujeito constituinte
como determinação interna inseparável, então o seu mundo próprio
encontrar-se-ia, na autoexplicação do eu, como interno e, por outro
lado, encontrar-se-ia o próprio eu, enquanto percorre diretamente este
mundo, como um membro das exterioridades do mundo e ele
distinguiria, assim, entre si próprio e mundo exterior (p. 136-137).
46
desvenda-se originariamente no olhar experienciante e explicitante que dirijo para mim
próprio, a partir do meu eu sou, perceptiva e mesmo apoditicamente dado, e da sua
identidade persistente consigo próprio, na síntese contínua unitária da autoexperiência
originária” (p. 139). Este idêntico, porém, e o seu próprio, se desdobra com suas
peculiaridades, manifestando “uma infinitude aberta de uma corrente de vivências”, que
emerge, porém, no horizonte de uma temporalidade imanente (futuro, presente, passado).
O eu vive como eu idêntico nesta corrente de vivências, que é a corrente da consciência,
isto é, nas suas atualidades e nas suas potencialidades. “Todas as possibilidades do tipo
‘eu posso ou poderia pôr em marcha esta ou aquela cadeia de vivências’ [...] pertencem,
manifestamente, a mim mesmo de um modo essencial e próprio” (p. 140). A
autoexplicação do eu, portanto, explicita uma autoexperiência original, sua autodoação
originária, que traz consigo uma autoevidência. Temos, então, a evidência apodítica da
autopercepção transcendental (a do eu sou). Visto, porém, mais de perto, ressalta-se, por
um lado, uma evidência apodítica pura e simples, a das “formas estruturais universais”
do ego, “a saber, aquelas em que, numa universalidade essencial, eu sou e só assim
poderei ser” (p. 141) [evidência do universal-necessário]; e, por outro lado, a evidência
de “dados egológicos singulares”, como, por exemplo, a “evidência certa, mas imperfeita,
da recordação iterativa do meu próprio passado” (p. 141). A explicitação de dados
egológicos singulares, porém, participa da apoditicidade do a priori universal, que se
pode denominar de “vida universal em geral”, que se mostra “na forma da constante
autoconstituição das suas próprias vivências enquanto temporais no quadro de um tempo
universal” (p. 141). Assim, o singular (minhas vivências egológicas singulares) é
explicado (desdobrado e tornado inteligível) à luz do universal (a vida universal em geral
e suas formas estruturais universais, isto é, que determinam necessariamente a egoidade
de todo e qualquer ego). Assim, o universal pré-delineia os caminhos para a explicação
do singular.
47
também o mundo no seu todo. Por conseguinte, o transcendente também pertence ao ego
transcendental concreto e fático (=mônada), assim como o imanente. Conclusão:
48
primeiro (o primeiro não eu) é o outro eu” (p. 145). Os que permanecem para mim outros
não se dão isolados, mas constituem uma comunidade, a saber, a “comunidade dos eu,
que inclui a mim próprio, como uma comunidade dos eu que são uns com os outros e uns
para os outros” (p. 145). Por fim a análise constitutiva chega a uma “comunidade de
mônadas”, como uma comunidade “que constitui (na sua intencionalidade constituinte
comunalizada) o mesmo e único mundo” (p. 145). Surge daí a noção de uma
“intersubjetividade transcendental” que tem uma “esfera intersubjetiva de propriedade,
na qual ela constitui intersubjetivamente o mundo objetivo” (p. 145). Trata-se de um “nós
transcendental”, em que se constitui o sentido de ser mundo objetivo. O mundo objetivo,
porém, não transcende a esfera de propriedade desta intersubjetividade transcendental,
mas nela habita enquanto “transcendência imanente” (p. 145). Com outras palavras, o
mundo objetivo é uma ideia, isto é, um “correlato ideal de uma experiência intersubjetiva
que idealmente se realiza e que foi realizada na concordância – enquanto correlato de uma
experiência intersubjetivamente comunalizada” (p. 145-146). Isto quer dizer que o
sentido de ser ou a ideia de mundo objetivo “está por essência referido à
intersubjetividade” (p. 146), que também idealmente está aberta ao infinito. Isto
pressupõe que os sujeitos singulares que são parte desta intersubjetividade, deste “nós
transcendental”, estejam “dotados de sistemas constitutivos, que se correspondem
mutuamente e que são em conjunto concordantes” (p. 146). Isto leva à afirmação de que
“pertence por essência à constituição do mundo objetivo uma harmonia das mônadas”
(p. 146). Estas indicações do § 49, pois, se apresentam como um “pré-delineamento do
percurso de explicitação intencional da experiência do alheio”, necessário para
“solucionar o problema transcendental”, ou melhor, “realizar efetivamente o Idealismo
transcendental da Fenomenologia” (p. 146).
49
sentido homem. Ponto de partida é a experiência, mais exatamente, a “experiência do
alheio”, isto é, do “não eu”, que, como já foi dito, tem no “outro eu” a sua datidade
primordial (p. 145). A partir da experiência, agora, o outro eu aparece como outro homem.
“Experiência é consciência original; e, de fato, no caso da experiência de um homem,
dizemos, em geral, que o outro está aí diante de nós ‘em pessoa’” (p. 147). O outro, porém,
não me está disponível de modo direto, isto é, o que chega à doação originária na
experiência do outro homem “não é aquilo que pertence à sua essência própria” (p. 147).
Com outras palavras, eu não tenho acesso imediato ao “outro em si próprio”, nem às suas
vivências. O próprio corpo do outro transcende a minha esfera primordial. O outro não é
presente a mim como eu sou a mim próprio, isto é, na imediatez. A apreensão do outro,
com efeito, acontece na “mediatez da intencionalidade”. Por isso o título do § 50 fala de
“intencionalidade mediata da experiência do alheio”, do estranho. O outro se me torna
representável numa espécie de um “tornar-copresente” (Mitgegenwärtig-machen), que é
chamada, aqui, de “apresentação” (Appräsentation). O outro não se me torna
representável por meio de uma simples presentificação (Vergegenwärtigung), como por
exemplo, por meio de uma imaginação, mas sim por meio de uma presentação
(Präsentation), ou seja, por meio de uma “autodoação em sentido próprio”, em que ele se
doa “em carne e osso” ou “em pessoa”. Quer dizer: a “apresentação” que funda a
representação do outro se funda ela mesma na “presentação”. É a apresentação que motiva
a aparição do “ser-aí-copresente” (Mitdasein) do outro. A questão é saber como acontece
essa “operação de apresentação” (p. 148) e sua motivação. “Uma primeira orientação
pode ser-nos fornecida pelo sentido da palavra ‘outro’ – outro eu; alter quer dizer alter-
ego, e o ego que está aqui implicado sou eu próprio” (p. 148). Quando “um outro homem
entra no nosso campo perceptivo” apreendemos um outro corpo, que se mostra como
sendo semelhante ao meu próprio corpo. Acontece, assim, uma “apreensão analogizante”
do corpo do outro. Analogia significa semelhança na dessemelhança. Nesta apreensão eu
transfiro os predicados da corporeidade específica de meu corpo para o corpo do outro.
Acontece, assim, uma “transferência aperceptiva a partir do meu próprio soma” (p. 149).
A assim chamada “apreensão analogizante” é uma “certa apercepção que assemelha” o
corpo do outro com o meu corpo. Não se trata, porém, de uma inferência. “Apercepção
não é inferência, não é um ato de pensamento” (p. 149). A apreensão analogizante ou
apercepção que assemelha se funda, por sua vez, na “instituição originária”, em que se
constitui, pela primeira vez um objeto com um determinado sentido de ser. Quando
vemos, então, outro objeto semelhante, nós operamos uma “transferência analogizante”
50
do sentido de ser daquele objeto para este. Um exemplo: “a criança, que já vê coisas,
compreende pela primeira vez o sentido finalístico (Zwecksinn) de, digamos, uma tesoura,
e, a partir daí, vê tesouras enquanto tais ao primeiro olhar e de modo imediato, sem ter de
fazê-lo, naturalmente, naturalmente, numa reprodução explícita (in expliziter
Reproduktion), numa comparação e na consumação de uma inferência (im Vollziehen
eines Schlusses) ” (p. 149). As apercepções são muito diversas entre si. Há apercepções
do que pertence, segundo sua gênese, à esfera primordial da propriedade do ego, e há
apercepções do que lhe é alheio, como, dentre estas, a apercepção do que surge “com o
sentido alter-ego” (p. 150).
51
apresentação originária, diretamente, é o seu corpo. Neste corpo e com ele são indicadas
determinações psíquicas. A apresentação originária do corpóreo (somático) e as
indicações do psíquico, porém, se entrelaçam: “neste entrelaçamento, porém, o corpo
somático alheio e o eu alheio que o governa são dados ao modo de uma experiência
unitária transcendente” (p. 152). O outro é, na sua transcendência, “originaliter
(originalmente) inacessível” (p. 152). O originalmente acessível sou eu próprio e o que
pertence a mim mesmo enquanto próprio. Neste caso, acontece uma autodoação, que
permite o cumprimento (Erfüllung) de um juízo presumido, ou, se quisermos, o
preenchimento (Erfüllung) de uma intenção signitiva vazia, ou seja, que permite uma
confirmação (Bewahrung) de um juízo que antes era apenas presumido. Ao outro, porém,
eu só tenho uma acessibilidade indireta. O acesso ao outro se dá por meio da experiência
de sua apresentação, ou melhor, por meio de uma síntese de experiências de apresentação:
“cada experiência está apontada a ulteriores experiências, preenchendo e confirmando os
horizontes apresentados, experiências que incluem, sob a forma de antecipação
inintuitiva, sínteses potencialmente confirmadoras de uma experiência continuada
concordante” (p. 152). A propósito desta continuação confirmadora se mostra que ela
“pode suceder apenas por novas apresentações transcorrendo de um modo sinteticamente
concordante” (p. 152). Por conseguinte, o alheio surge necessariamente em virtude da sua
“constituição de sentido”, o que significa uma “modificação intencional do meu eu”, do
meu “mundo primordial”, com outras palavras, o outro se constitui fenomenologicamente
para mim e em mim como “modificação do meu ‘eu mesmo’” (Modifikation meines
Selbst) (p. 153). “Por outras palavras, na minha mônada constitui-se apresentativamente
uma outra” (p. 153). Trata-se, enfim, de “um eu apresentado que eu próprio não sou, mas
que é antes um modificado meu, um outro eu” (p. 154). Ao fim do § 52, entretanto, o
leitor é recordado de que esta “explicitação das conexões noemáticas da experiência
alheia”, embora ainda não suficiente, tem como escopo “tornar completamente
transparente, a partir dos conhecimentos adquiridos, a possibilidade e o alcance de uma
constituição transcendental do mundo objetivo e, com isso, do Idealismo
fenomenológico-transcendental” (p. 154).
52
“natureza espacial” é constituída, pois, “numa referencialidade intencional” para com a
minha corporeidade. O meu corpo é apreendido como existindo no espaço. Ao mesmo
tempo, porém, ele se me aparece como um centro de mudanças de orientações e
movimentações. Com outras palavras, o meu corpo está “retrorreferido a si próprio”, ou
seja, ele “tem como seu modo de doação o aqui central” (p. 154). Por sua vez, “todo e
qualquer outro corpo, e assim o corpo do outro, tem o modo do ali” (p. 154). Se eu me
colocar, porém, ali onde está o outro, este ali se transforma num aqui. Trago comigo a
potencialidade de “converter todo e qualquer ali num aqui” (p. 155). A cada estar-eu-ali
pertence “sistemas de aparição”. De perspectivas diferentes, eu posso ver a mesma coisa,
só que com modos de aparição diversos. A cada mudança de posição corresponde
sistemas de aparição determinados. Estes sistemas de aparição estão, por sua vez,
conectados associativamente. Diversa, porém, é a “realização associativa da experiência
do alheio” (p. 155). “Pois eu não apercebo o outro simplesmente como um duplicado de
mim próprio” (p. 155). Pelo contrário, “o outro é apercebido apresentativamente como eu
de um mundo primordial, ou como uma mônada em que o seu soma (corpo) é
originariamente constituído e experienciado no modo do aqui absoluto, precisamente
como centro funcionante do seu governo” (p. 155). O corpo do outro apresenta-se na
minha esfera monádica no modo do ali, mas enquanto corpo alheio, enquanto corpo de
um alter-ego, ele está indiciado no modo aqui.
53
especificamente somática (=corporal): a compreensão dos membros como mãos que
funcionam palpando ou empurrando, como pés que funcionam andando, como olhos que
funcionam vendo etc.” (p. 158). Com isso, de início, o eu do outro é determinado ainda
apenas como o que está governando aquele corpo. Ulteriores conteúdos da “esfera
psíquica superior” são indiciados também corporalmente. É por meio da “conduta”
(Gehaben) no mundo exterior, como ira, alegria, etc., que se chega à compreensão dos
“acontecimentos psíquicos superiores”, ou seja, à empatia (Einfüllung – também traduz
por intropatia ou endopatia) 42. Tais condutas são compreendidas de maneira analogizante,
ou seja, são “bem compreendidas a partir da minha própria conduta em circunstâncias
semelhantes” (p. 158). Com outras palavras, os “acontecimentos psíquicos superiores”,
que têm o seu estilo de “conexões sintéticas” e suas “formas de decurso”, “poderão ser
para mim compreensíveis através da referência ao meu próprio estilo de vida, que me é
empiricamente familiar na sua típica aproximada” (p. 158). Por sua vez, a compreensão
da vida anímica do outro abre novas possibilidades de compreensão da vida anímica
própria: “toda e qualquer compreensão conseguida do outro atua abrindo novas
associações e novas possibilidades de entendimento, tal como, ao contrário, dado que toda
associação emparelhante é recíproca, esta compreensão desvenda a vida anímica própria
na sua semelhança e alteridade e, pondo em destaque novos aspectos, torna-os frutuosos
para novas associações” (p. 158).
42
Há um erro de tradução na página 158. Onde está “preenchimento” (que em alemão seria “Erfüllung”)
deve-se ler “empatia” ou “intropatia” (que em alemão é “Einfühlung”, palavra que aparece na página 149
da edição alemã).
54
na minha esfera primordial, no caso, ganha “o sentido de um corpo que pertence a outro
ego” (p. 160). “Este corpo natural ali, pertencente à minha esfera, apresenta o outro eu na
minha natureza primordialmente constituída, em virtude da associação aparelhante com
o meu soma corpóreo (körperlichen Leib) e com o eu psicofísico que aí governa” (p. 161).
Com o corpo, é dada, porém, a natureza, a que este corpo pertence. A natureza primordial
do outro, por sua vez, e a minha natureza primordial, “é a mesma natureza, apenas que
no modo de aparição como se eu atuasse ali, no lugar do corpo somático alheio” (p. 161).
Produz-se, assim, “o sentido identitário da minha natureza primordial e da outra natureza
primordial presentificada” (p. 162). A percepção do outro apreende não um signo ou uma
figuração do outro, mas o outro mesmo, captado numa originalidade efetiva, nesta
corporeidade ali. Capto o outro como uma unidade psicofísico: percebo um corpo,
originalmente acessível, embora com “sombreamentos” (há nuances que percebo e outras
que ficam “na sombra”), e, junto com este corpo, por meio dele, indicativamente, percebo
uma alma, por princípio não originalmente acessível. A natureza objetiva começa a ser
percebida, antes de tudo, em meu corpo e, depois, no corpo do outro. O corpo alheio é “o
objeto em si primeiro”, é o “protofenômeno da objetividade” (p. 163). A presentação do
corpo do outro é, porém, também, a base para a apresentação do outro como tal. Faz parte
da apercepção do outro a experiência de que o mundo que aparece para ele é o mesmo
mundo que aparece para mim, apesar de eu e ele termos sistemas de aparições diversos.
O mundo objetivo aparece como tal “em virtude da confirmação concordante da
constituição aperceptiva” (p. 163), seja pelo sucesso desta seja pelas correções de erros
devidos à anormalidade da percepção. O anormal é uma variante do normal. Nesta mesma
linha vai a distinção entre homem e animal (classificados como superiores e inferiores).
O critério da apercepção do animal é, para o homem, ele mesmo. Assim se explica a
constituição do animal na consciência humana:
55
1.2.8. UM NOVO SENTIDO DE MATHESIS UNIVERSALIS
43
Leão, Emmanuel Carneiro. Apresentação. In: Fernandes, Marcos Aurélio. À clareira do ser: da
fenomenologia da intencionalidade à abertura da existência. Teresópolis: Daimon, 2011.
56
como não unidimensional, ou seja, como estruturada de modo multidimensional. A
fenomenologia transcendental, neste sentido, torna possível o emergir de uma nova
racionalidade teorética, axiológica e prática, cujo medium natural já não é o mundo
constituído, mas a consciência constituinte. E esta consciência entendida, enfim, não na
solidão monádica do solipsismo e sim na comunhão e comunidade monádica da
intersubjetividade. A fenomenologia aparece, por conseguinte, como uma sondagem dos
fundos e fundamentos, a partir dos quais a consciência edifica todo o mundo do
conhecimento e constrói o conhecimento do mundo; uma sondagem dos fundos e
fundamentos, a partir dos quais a consciência institui os seus valores e dá sentidos à sua
ação. Fenomenologia, enquanto fenomenologia transcendental da consciência, é o abrir-
se e o recolher-se da vida intencional. A consciência é ato, quer dizer, aquela transição e
passagem na qual e para a qual se constitui o mundo e, no horizonte do mundo, toda e
qualquer objetividade, em várias dimensões e modos de ser de aparição dos objetos. Na
dinâmica operativa desta passagem, a consciência está, sempre de novo, instituindo e
constituindo o mundo objetivo. Na fenomenologia da consciência, toda manifestação e
aparição se reconduz a esta dinâmica, que é a intencionalidade operativa da consciência:
o ato. Neste sentido, o mundo perde o caráter de absoluto. O mundo é o horizonte, aberto
pela própria consciência, em que toda objetividade aparece como correlata à operação
instituidora, constituidora e conferidora de sentido, própria do dinamismo da consciência.
Tudo o que o homem sabe e não sabe, tudo o que ele é e não é, emerge daí. Cada ego é,
porém, uma mônada: a abertura que abre, cada vez de modo singular, perspectivamente,
o todo, isto é, a realidade universal. Ao mesmo tempo, porém, cada ego está em comunhão
com os outros egos. A intercomunicação dos egos é, pois, a fonte mesma da evidência do
“em si” do mundo e da tese de sua realidade, o que dá à ciência o seu positum e a sua
positividade, as condições de possibilidade de toda a sua objetivação.
57
modo de captação originário destas estruturas 44. Estas estruturas são o fenômeno
primordial da fenomenologia transcendental. Na segunda versão de Heidegger do texto
que estava sendo escrito para a Enciclopédia Britânica e que estava sendo, a princípio,
elaborado junto com Husserl, aquele escreve:
44
Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (Gesamtausgabe Band 20).
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª Auf.), p. 108-110.
45
Heidegger, Martin. „Einleitung. Die Idee der Phänomenologie und der Rückgang auf das Bewusstsein“.
In: Husserl, Edmund. Phänomenologische Psychologie (Husserliana, Band IX). Den Haag: Martinus
Nijhoff, 1962, p. 256.
46
Heidegger, Martin. Nietzsche. Zweiter Band (Gesamtausgabe Band 6.2). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1997, p. 462.
58
O apriori estrutura a própria correlação intencional de ambos: sujeito e objeto,
subjetividade e objetidade/objetualidade. É o fenômeno em sentido ontológico. Apriori
não é, aqui, meramente título de conhecer ou de qualquer outro comportamento ou
relacionamento. É título de ser. É o que vem por primeiro estruturalmente na ordem do
ser. Só é acessível numa simples apreensão de uma intuição originária: a arqui-intuição
do ser 47. A descoberta da intuição categorial em Husserl, segundo Heidegger, teve o
mérito de deixar e fazer ver, num visualizar presencializante, a vigência do ser na
categoria. Ser não é mero conceito, não é pura abstração, mas é datidade originária que
pre-jaz a todas as categorias, que não são, do mesmo modo, meras formas a priori do
pensamento, mas verdadeiras datidades fenomenais, só que de caráter ontológico 48.
Husserl viu que uma mathesis universalis da investigação da razão não concerne
apenas a puras formas do vivenciar exterior, de que fluem as leis dos conteúdos de
conhecimento objetivo, mas que também concerne às puras formas do vivenciar interior,
de que fluem as leis do conhecimento e do agir humano 49. Assim, a pura mathesis subjaz
não só às ciências da natureza, como também à ciências humanas.
47
Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (Gesamtausgabe Band 20).
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª Auf.), p.
48
Heidegger, Martin. Seminare (GA 15). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1986, p. 378.
49
Cf. Rombach, Heinrich. Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins. Freiburg [Breisgau] /
Müchen: Alber, 1980, p. 30.
59
ciência positiva-empírica, têm, certamente, muito que aprender desta psicologia pura,
fenomenológica 50.
50
Cf. Husserl, Edmund. Phänomenologische Psychologie (Husserliana, Band IX). Den Haag: Martinus
Nijhoff, 1962.
60
ciência da vida intencional da consciência ou da subjetividade transcendental, é a
verdadeira, plena e própria mathesis universalis, almejada pela humanidade europeia,
desde os primórdios da modernidade.
51
Husserl, Edmund. Logische Untersuchungen. Bd 1: Prolegomena zur reinen Logik (7ª Aufl.). Tübingen:
Max Niemeyer, 1993, p. 219-222.
52
Husserl, Edmund. Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge (Husserliana Band I). Haag:
Martinus Nijhoff, 1950, p. 48-50.
61
comunidade monádica transcendental. Essa é o chão transcendental para a constituição
do mundo objetivo.
53
Husserl, Edmund. Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge (Husserliana Band I). Haag:
Martinus Nijhoff, 1950, p. 180-183; 192-193; 200-201.
54
Husserl, Edmund. Phänomenologische Psychologie (Husserliana, Band IX). Den Haag: Martinus
Nijhoff, 1962, p. 299.
62