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CURSO DE FENOMENOLOGIA

2023_1
Prof. Marcos Aurélio Fernandes

UnB

TEXTO 2

Sumário
I.2. A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL DE HUSSERL: INTENCIONALIDADE,
CONSTITUIÇÃO E REDUÇÃO. ......................................................................................... 2

1.2.1. A BUSCA DA MATHESIS UNIVERSALIS ............................................... 2

1.2.2. CIÊNCIA, VERDADE E EVIDÊNCIA. ..................................................... 6

1.2.3. EPOCHÉ COMO VIA PARA O EGO TRANSCENDENTAL .................... 15

1.2.4. A LIBERAÇÃO DO CAMPO DA EXPERIÊNCIA TRANSCENDENTAL..... 19

1.2.5. CONSTITUIÇÃO DA REALIDADE EFETIVA / DO MUNDO .................. 30

1.2.6. EGOLOGIA: EGO TRANSCENDENTAL E PROBLEMAS CONSTITUTIVOS


34

1.2.7. INTERSUBJETIVIDADE ..................................................................... 43

1.2.8. UM NOVO SENTIDO DE MATHESIS UNIVERSALIS ........................... 56

1
I.2. A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL DE HUSSERL: INTENCIONALIDADE,
CONSTITUIÇÃO E REDUÇÃO.

1.2.1. A BUSCA DA MATHESIS UNIVERSALIS

A princípio, Husserl entende a filosofia fenomenológica a partir do horizonte da


filosofia moderna, como a consumação da tendência de pensamento iniciada por
Descartes, com sua investigação ou ciência da razão, a mathesis universalis (aprendizado
ou ciência universal), que suplantaria a ciência da razão antiga, a filosofia primeira
(metafísica) de até então (antiga-grega e medieval-escolástica). A filosofia
fenomenológica transcendental husserliana se autocompreendeu como cartesiana, na
medida em que retoma este motivo fundamental da mathesis universalis. A filosofia
fenomenológica aparece, neste horizonte, como uma mathesis universalis, ou seja, como
a nova investigação ou ciência da razão, que, como filosofia primeira, como ontologia
universal, se estende ao todo do ente (ao seu ser, à sua entidade), fundando-se de modo
absoluto na subjetividade transcendental.

A ciência matemática e matematizante da natureza e a técnica modernas são o


êxito de um primeiro movimento no desenvolvimento da ideia da mathesis universalis.
Mas esse desenvolvimento, que toma impulso com Descartes e com a ciência galilaica,
permanece unilateral 1.

Em “A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental”, Husserl


aponta para os êxitos da positividade alcançados por este desenvolvimento, mas ao

1
No § 1 das Meditações Cartesianas, Husserl descreve o caminho de pensamento de Descartes nas
Meditações. Ele pergunta, então, pelo valor e significado “eterno” deste pensamento, o que, na concepção
de Husserl, significa perguntar se os pensamentos aqui expostos são “ainda apropriados para infundir forças
vivas ao nosso tempo”. O que aconteceu depois de Descartes? Husserl começa colocando em relevo um
fato que, diz ele, dá a pensar: o fato de que as ciências positivas se interessam pouco por estas meditações.
A consequência é que depois de três séculos (hoje, para nós, seriam quatro séculos), o progresso das ciências
é apenas ainda um progresso positivo, isto é, ele até pode ser um grande progresso no âmbito de descobertas
e invenções e da funcionalidade e eficiência, mas é um progresso que se encontra-se atravancado no âmbito
dos seus fundamentos. As ciências permanecem ainda dogmáticas e ingênuas, quando se trata de discutir e
colocar questões no âmbito dos seus próprios fundamentos. Sua forma de conceber o real é ainda debilitada
por um objetivismo ingênuo. A filosofia que é pressuposta pelas ciências é ainda pré-crítica. O passo dado
por Descartes não fora seguido. Que passo é este? O passo pelo qual “a filosofia assume uma viragem
radical do objetivismo ingênuo para o subjetivismo transcendental”.

2
mesmo tempo e principalmente denuncia o seu fracasso para a vida e para o sentido do
ser humano 2.

A partir deste desenvolvimento científico-positivo e tecnológico, a humanidade


europeia moderna alcançou o descobrimento de uma natureza idealizada (matematizada)
através do objetivismo fisicalista (que inclui o empirismo) e conseguiu um significativo
progresso tecnológico, que visa ao domínio da terra. Mas, por outro lado, este
descobrimento trouxe consigo o encobrimento da natureza do mundo pré-científico e
extracientífico. O racionalismo fisicalista, com o empirismo, não permite o vir à luz da
fenomenologia do fenômeno originário do mundo da vida.

As “ciências europeias”, assim, não obstante todo o seu sucesso na produção de


conhecimento objetivo e em seus desdobramentos tecnológicos de domínio do real,
fracassam, do ponto de vista filosófico, fenomenológico, transcendental 3.

2
Husserl, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à
filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
3
Em Husserl, a fenomenologia emerge como uma teoria crítica da razão e como um conceito de método
investigativo filosófico transcendental. Emerge como uma reflexão transcendental acerca da possibilidade
de fundação e fundamentação das ciências. Trata-se de uma reflexão sobre as condições de possibilidade
do conhecimento e, por conseguinte, da ciência, que se funda sobre o conhecimento. Em diferença da crítica
de Descartes e de Kant, porém, a crítica fenomenológica operada por Husserl não toma de antemão uma
ciência como modelo para reconstruir o edifício das ciências ou para refundar o sentido da racionalidade,
como, por exemplo, a geometria ou a física. A crítica de Husserl adverte na positividade e no positivismo
da ciência moderna uma forma de consciência esquecida de si mesma. A ciência positiva é a ciência do ser,
que se perdeu no mundo. Por isso, o começo da meditação fenomenológica se dá justamente com a epoché,
e isso quer dizer: é preciso perder o mundo para reencontrar o ser. “É preciso de início perder o mundo
pela epoché, para reencontrá-lo em seguida numa tomada de consciência universal de si mesmo”
(HUSSERL, Meditações Cartesianas. São Paulo – SP: Madras, 2001, p. 170). Para Husserl, a ciência
parecia muito crítica em relação a seus objetos, mas muito ingênua em relação à objetividade enquanto tal,
alheia a si mesma como forma de consciência e esquecida de sua própria subjetividade. Além disso, disso,
nesta forma alienada de consciência da ciência positiva, a crença num mundo absolutamente e
simplesmente dado, levava a uma coisificação e naturalização grotesca de tudo. O maior perigo da ciência
está em ser chata: nas formas do mecanicismo e do cientificismo tudo é nivelado. Ela tende a operar o
achatamento de toda dimensão ou modo de ser ao modo de ser da ocorrência física, com outras palavras,
tende a operar a redução da res cogitans, de suas cogitationes e cogitata, à res extensa. Nesta tendência, a
dimensão noética das idéias ou essências é reduzida a algo de psíquico, no sentido do anímico empírico. O
psíquico mesmo, com toda a sua gama de vivências anímicas, é reduzido ao orgânico, isto é, ao biológico.
E o biológico, com todo o dinamismo de sua vitalidade orgânica, é reduzido ao físico. Daí a crítica de
Husserl ao naturalismo, na primeira parte do artigo “Filosofia como Ciência de Rigor” (cfr. HUSSERL, La
filosofia come scienza rigorosa. Bari – Italia: Editori Latterza, 1998, p. 13-70). Na tendência dominante da
ciência moderna, no naturalismo, tudo se torna chato, tudo se torna unidimensional. Da mesma maneira,
todo o rigor é reduzido a exatidão. Como se a única maneira de ser rigoroso e preciso, na pesquisa, fosse
ser exato, no sentido da exatidão do cálculo matemático e da mensuração experimental. Por outro lado, o
sentido de totalidade do conhecimento se perde na fragmentação de um sem fim de ciências particulares,
cada vez mais especializadas.

3
A própria filosofia moderna que tomou impulso a partir de Descartes declinou a
partir do século XIX. Ela não conseguiu estar à altura de sua tarefa histórica 4.

Nesse sentido, a fenomenologia surge como uma nova ideia, isto é, como um novo
vislumbre de possibilidade de ser, de uma humanidade, que vigore não no domínio da
positividade, do saber do cálculo e do poder tecnológico, mas no domínio da experiência
transcendental. Husserl vislumbrou a fenomenologia como uma possibilidade para o ser
humano viver de modo transcendental – e não positivo – em verdade e autenticidade:

Em sua universal autorreferência, a fenomenologia reconhece


sua própria função em um possível viver transcendental da humanidade.
Ela reconhece as normas absolutas que a partir deste viver podem ser
sacadas pelo olhar; mas reconhece também sua estrutura originária,
tendencial-teleológica, na direção de uma descoberta destas normas e
sua efetuação prática e consciente. Ela se reconhece então, enquanto
função da universal autorreflexão da humanidade (transcendental), a
serviço de uma práxis universal da razão, ou seja, a serviço da tendência
que se torna livre pela descoberta, na direção da idéia universal,
radicada no infinito, de uma absoluta perfeição ou, o que dá na mesma,
na direção da ideia – radicada no infinito – de uma humanidade que, de
fato e inteiramente, fosse e vivesse na verdade e na autenticidade5.

4
O que aconteceu com a filosofia mesma? Nas Meditações Cartesianas, Husserl fala de uma
“decomposição da filosofia atual”, que, do mesmo modo, dá a pensar. O seu declínio é inegável desde o
meado do século XIX, diz ele. No início da modernidade a fé religiosa entrou em descrédito à medida que
se exteriorizou numa convenção. Ela perdeu sua substância, isto é, sua vigência e valência histórica. Em
seu lugar, a “humanidade pensante” elegeu uma “nova grande fé”, a fé em uma “filosofia e ciência
autônomas”. “A cultura humana no seu todo deveria ser conduzida por visões intelectivas científicas, ser
iluminadas por elas e, assim, ser reformada numa nova cultura autônoma” (p. 142). Foi o que aconteceu?
Não. “Entretanto, essa fé caiu na inautenticidade e definhou”. A filosofia moderna não conseguiu estar à
altura de sua tarefa histórica. Uma “filosofia unitária e viva” não foi constituída. Em seu lugar, o que
aconteceu foi o crescimento sem limites e sem coerência da literatura sobre a filosofia. A verdadeira crítica
no filosofar uns com e uns para os outros se tornou uma crítica aparente. Nos congressos filosóficos,
encontram-se os filósofos, mas não as filosofias. “Falta a unidade de um espaço espiritual”. Esta situação
parece requerer, tanto quanto a situação histórica da filosofia na época de Descartes, uma nova reforma e
um renascimento. As forças impulsionadoras que se irradiavam das meditações de Descartes perderam a
sua originária vivacidade. Uma reforma e um renascimento só seria possível, se se adotasse, de novo, o
espírito de radicalismo que está presente nas meditações de Descartes. “Radicalismo” certamente Husserl
usa esta expressão com um significado que é distinto daquele usual em nossos dias, isto é, não como
fanatismo e fundamentalismo sectário, mas como a tentativa de “ir à raiz” (radix), aos fundamentos, às
fontes mesmas de todo o conhecimento e de todo o saber. Para Husserl, este radicalismo filosófico significa
o retorno ao “ego cogito”, retorno que constitui o passo decisivo de uma filosofia transcendental. A
fenomenologia transcendental é, pois, a retomada das aspirações mais profundas do pensamento de
Descartes e do espírito de seu filosofar. O que não significa que a fenomenologia transcendental deva se
deixar conduzir pelos “extravios sedutores” nos quais caíram Descartes e seus seguidores. Do caminho da
fenomenologia transcendental nos falará as cinco meditações reunidas por Husserl e que constituem uma
verdadeira e própria introdução à fenomenologia tal como ela se encaminhou na sua experiência de
pensamento, na sua reflexão filosófica.
5
Husserl, Edmund. Phänomenologische Psychologie (Husserliana, Band IX). Den Haag: Martinus Nijhoff,
1962, p. 299.

4
A modernidade europeia (= ocidental) perseguiu até agora a realização da
humanidade do ser humano a partir da ciência positiva e da técnica. No entanto, com a
descoberta da investigação fenomenológica transcendental, Husserl entrevê a
possibilidade de uma humanidade que transcende esta realização, que se move no âmbito
e no horizonte do positivo e da positividade.

Descartes apenas entreviu o reino do transcendental, mas decaiu no reino da


positividade 6. Kant já o explorou de modo significativo. Com sua filosofia dá-se a
revolução copernicana: a mudança do positivo para o transcendental. Mas mesmo a
viragem kantiana para o subjetivismo transcendental se mostrou insuficiente, por falta
dos métodos da redução fenomenológica. A fenomenologia transcendental, contudo, deu
passos significativos na busca de uma recondução do pensamento e da vida humana às
fontes últimas das formações cognitivas.

6
A primeira das Meditações Cartesianas trata de “O caminho para o ego transcendental” e compreende os
parágrafos de 3 a 11. O § 3 trata da “subversão” (Umsturz) cartesiana e da ideia-fim (Zweckidee) diretora
de uma fundamentação (Begründung) da ciência. A subversão consiste na resolução (Enstchluss) radical
de deixar fora de jogo todas as convicções que nos são válidas até então. A ideia-fim diretora é a da “Ciência
Universal” (Mathesis Universalis = Filosofia). Podemos entender a fenomenologia transcendental como a
realização desta ideia, ou, pelo menos, como o método (caminho) para a realização desta ideia. Em que
consiste esta ciência? Como ela se apresenta? Deve-se pressupor uma ciência já existente como modelo
para a realização desta ideia? A resposta de Husserl é: não. Não se deve pressupor uma ciência como
modelo para a realização da ideia da Ciência Universal. E aqui entra a crítica de Husserl a Descartes: este
foi traído por um preconceito (Vorurteil), a saber, o de que a Ciência Universal teria como modelo a
geometria e, respectivamente, a ciência matemática da natureza (física), ou seja, para Descartes, a Ciência
Universal deveria ser um sistema axiomático-dedutivo. A dedução seria realizada a partir do axioma da
absoluta autocerteza do ego e dos demais axiomas que seriam oferecidos pelos princípios axiomáticos
inatos ao próprio ego e que constituem o tema das meditações (a existência de Deus, a dualidade das
substâncias: res cogitans e res extensa). Husserl mantém a ideia-fim de uma Ciência Universal. Mas ele
não adota a pressuposição de que esta ciência tenha que ter a forma de um sistema axiomático-dedutivo.
Nenhuma ciência já existente deve servir de ideal normativo de ciência, nem a ciência matemática da
natureza, nem a matemática, nem a lógica... As ciências facticamente dadas devem ser submetidas à crítica
fenomenológica. Por enquanto, Husserl deixa em pé somente a ideia-fim de uma Ciência Universal, ainda
que esta ideia se apresente de modo vago – em vaga universalidade (in vager Allgemeinheit), dirá o § 4.
Esta ideia é por enquanto apenas algo que é presumido (Präsumption), assumido de antemão, como algo
que é pretendido (Prätention), sem que se possa prejulgar se e em que medida esta ideia possa ser realizada
efetivamente na práxis. O § 4 trata do desvelamento (Enthüllung) do sentido final da Ciência (Universal)
através de um imergir vivencial (Einleben) nela, ou seja, no seu aspirar, esforçar por alcançar (Streben) e
no seu agir (Handeln). A ideia diretora (Leitidee) de uma Ciência Universal deve guiar este esforço e este
agir. Ela não deve ser tirada das ciência fácticas por meio de uma abstração comparativa. É preciso encarar,
aqui, a Ciência Universal como ideia, não como fato, como fato da cultura, por exemplo. Esta ideia, porém,
reside numa “pretensão” (Prätention), ou seja, naquilo que é previamente intencionado e no tender para
isso que é intencionado, no esforçar-se por alcançar uma meta. Para desvelar esta ideia, é preciso imergir
no esforço que se orienta para ela como para uma meta.

5
1.2.2. CIÊNCIA, VERDADE E EVIDÊNCIA.

A investigação fenomenológica é conduzida em sua busca da verdade pelo


princípio de evidência. Nisso, a experiência intuitiva da verdade tem um papel decisivo.

Já nas Investigações Lógicas, na sexta investigação, que visa elucidar


fenomenologicamente o conhecimento a partir da análise de seus elementos
fundamentais, no sexto capítulo desta, a questão da evidência e da verdade emerge em
conexão com o tema da intuição categorial. Como? A intuição (Anschauung) é um destes
elementos fundantes do conhecimento. Ela é uma apreensão direta do fenômeno, isto é,
do que está doado, no como de sua autodatidade. Ela é fonte de evidência (Evidenz). Por
sua vez, a evidência é o conhecimento no sentido pregnante do termo. É na evidência que
se realiza a verdade, enquanto concordância (Übereinstimmung) entre intentio e
intentum 7.

A intuição pode se dar no modo de uma presentificação em que o intuído se dá a


si mesmo, mas não em sua presença e atualidade. É o caso, por exemplo, de uma intuição
que se alcança via recordação, via imaginação, ou ainda através da mediação de imagem.
Outro, porém, é o caso da percepção. Esta doa imediatamente o ente mesmo em sua
presença original e em sua atualidade. A máxima pregnância, pois, da intuição acontece
com a percepção. Na percepção, a coisa mesma não é meramente presentificada. Ela é
presentada. Esta presentação é que dá a suma plenificação de um intencionar vazio, de
um presumir. A percepção é a consciência da apreensão direta da coisa em questão dando-
se em sua presença (Präsenz) 8. Nela acontece um presentar (Präsentieren) que é um

7
A verdade é a adequação do presumido com a coisa intuída mesma. Alcança-se, assim, uma interpretação
fenomenológica da antiga definição escolástica de verdade: veritas est adaequatio rei et intellectus. A
verdade aparece como identificação mostradora (ausweisende Identifizierung), realizada na plenificação
(Erfüllung) de um intencionar vazio, ou ainda, na realização ou confirmação de uma presunção. A
adequação acontece no modo do trazer à coincidência o presumido e o intuído. É, pois, identificação. E é
identificação mostradora à medida que, nesta adequação, acontece a mostração ou atestação (Ausweisung)
do presumido no intuído. Em sua estrutura intencional, a verdade enquanto adequação, se deixa analisar
em seus dois momentos, isto é, no tocante à intentio e no tocante ao intentum. O intentum da verdade é o
ser-idêntico de presumido e intuído. Verdade, neste sentido, aparece como o relacionamento entre
presumido e intuído, o qual se dá no modo do ser-idêntico de ambos. O ser-idêntico de presumido e intuído,
pois, constitui o ser-verdadeiro no sentido do intentum. Correlativamente, no sentido da intentio, verdade é
a realização do identificar, isto é, do trazer à coincidência, a saber, o presumido e o intuído. No sentido
pleno da análise intencional, portanto, verdade é a identificação do ser-idêntico de presumido e intuído.
8
Husserl, E. (1929). Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, p. 191.

6
atualizar (Gegenwärtigen). Isso mostra o caráter temporal da consciência em seu
relacionamento com o que se lhe presenta 9.
A evidência se dá, pois, em sentido pregnante, na intuição. A intuição, por sua
vez, em sentido pregnante, se dá na percepção. Na evidência, o que está em questão se
oferece ao modo do que é apreendido nele mesmo e como ele mesmo (Selbsterfassten),
do que é visto nele mesmo e como ele mesmo (Selbstgesehenen). Na fenomenologia de
Husserl, a evidência é uma consciência originária (urtümliche Bewusstsein). Ela é um ser-
junto à coisa mesma em questão 10. Na percepção, este ser-junto é privilegiado: “O ser-
junto-disso (Dabei-sein) é para mim como percipiente, em termos de consciência, meu
agora-ser-junto (Jetzt-dabei-sein): eu mesmo junto do percebido mesmo” 11. A evidência,
na percepção, tem o caráter de uma intelecção, isto é, de uma vidência clara e penetrante
do que se autodoa em sua originalidade (Einsicht).
Entretanto, apenas a evidência da percepção ou intuição sensível não satisfaz as
condições para que haja verdade. Daí a importância do tema da intuição categorial.
Entretanto, como acontece esta doação do categorial? E, de modo correlativo, como
acontece o intuir do categorial?

Eu vejo um livro diante de mim. No livro, eu vejo um objeto, que é uma coisa,
que é uma substância. Eu não vejo a substância do mesmo modo como vejo o livro. Ao
ver o livro como objeto, como coisa, como substância, eu estou vendo mais do que dados
hiléticos. Eu estou vendo uma forma categorial. Com esta forma categorial, no entanto,
algo me é dado 12. Já ao nomear “livro”, na significação do nome, está em jogo, como diz
Husserl, mais do que a “matéria” de um nome; está em jogo também a sua “forma” 13.
Neste sentido, já aqui há uma excedência (Überschuss) em significação (Heidegger, 1986,
p. 375). Husserl chama a atenção para a excedência de significação ao se dizer “papel
branco”. O que se dá a conhecer com esta expressão é o papel enquanto branco. A
expressão expressa a percepção, isto é, o percebido. Percebido, conhecido, é o papel
enquanto branco. A intenção da palavra “branco” apenas parcialmente coincide com o
momento-cor que se dá no objeto que está se manifestando. Sua intenção sobrepuja o
dado hilético da cor. Há uma excedência na significação, “uma forma que não encontra

9
Husserl, E. (1929). Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, p. 193.
10
Husserl, E. (1929). Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, p. 191.
11
Husserl, E. (1929). Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, p. 191.
12
Heidegger, M. (1986). Seminare (GA Band 15). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, p. 375.
13
Husserl (1993). Logische Untersuchungen II/2: Elemente einer phänomenologischen Aufklärung der
Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p. 128-129.

7
na aparição nada que pudesse confirmá-la” 14. Essa é “uma forma complementar, que
contém o ser” 15. Neste sentido, “branco”, na expressão “papel branco”, expressa “papel
sendo branco” (Weiss seiendes Papier). E Husserl pergunta: “e essa forma não se repetirá
também, mesmo permanecendo escondida, no substantivo papel?” (Husserl, 2000, p.
125). Isso quer dizer: o substantivo (Hauptwort) “papel” expressa mais do que um dado
hilético, expressa uma forma de ser, precisamente, a forma do ser enquanto substância.
Por isso, o nome “papel” é justamente designado de “nomen substantivum”, nome
substantivo. Poderíamos dizer, então: “papel” quer dizer “sendo papel”. A fortiori, esta
excedência se encontra também em enunciados inteiros que dão expressão a percepções.
Husserl fala de enunciados que dão a conhecer o ato de perceber, do tipo “vejo que este
papel está escrito”, ou “vejo que há aqui um tinteiro de bronze”, ou ainda, “vejo que vários
livros estão abertos” 16. Tudo o que vai além da “matéria”, isto é, dos termos nominais,
constitui a “forma categorial”, que pode e deve plenificar aos momentos de significação
da forma proposicional como tal 17. Nos enunciados há palavras cujas significações não
são materiais, mas formais, tais como “o, um, alguns, muitos, poucos, dois, é, não, qual,
e, ou e assim por diante” 18. São partes de enunciado cujas significações não encontram
correspondência na intuição sensível 19.

A experiência intuitiva da verdade e da evidência, que inclui tanto a intuição


sensível quanto a intuição categorial, também aparece em Ideias I, na famosa declaração
do “princípio dos princípios” do método fenomenológico.

No princípio de todos os princípios: que toda visão


originariamente doadora é uma fonte justa do conhecimento; que tudo
aquilo que se nos oferece originariamente numa “intuição” (por assim
dizer em sua realidade efetiva, em carne e osso), há que ser tomado
simplesmente como aquilo que se mostra, mas também só nos limites
em que se dá aí – assim, nenhuma teoria pensável pode nos induzir a
erro 20.

14
Husserl, E (2000). Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, p. 125.
15
Husserl, E (2000). Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, p. 125.
16
Husserl, E (2000). Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, p. 123.
17
Husserl, E (2000). Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, p. 123-124.
18
Husserl, E (2000). Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, p. 124.
19
Husserl (1993). Logische Untersuchungen II/2: Elemente einer phänomenologischen Aufklärung der
Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p. 135.
20
E. HUSSERL, Ideen I, 43-44.

8
O princípio dos princípios pode ser chamado de princípio da evidência. Ele não é
propriamente uma proposição teórica, algo assim como um axioma. Trata-se de um
princípio que jaz previamente a todos os princípios, isto é, que vem antes de todos
princípios teóricos, por reger toda a investigação científica, e que vem antes de todos os
princípios práticos, por reger a vida de uma humanidade que pretende viver na verdade e
na autenticidade 21.

O princípio de evidência é retomado nas Meditações Cartesianas 22. Na primeira


dessas meditações, nos §§ 5 a 7, Husserl o retoma no contexto da exposição sobre o
fenômeno da ciência.

O § 5 trata de “evidência e a ideia de Ciência autêntica”. Husserl assim define


evidência: “evidência é a experiência de que algo é e é assim” (p. 49). Literalmente,
Husserl diz: evidência é a experiência do sendo (von Seiendem = do ente) e do sendo-
assim (So-Seiendem). Esta experiência consiste em “fitar espiritualmente a própria coisa”
(p. 50): um olhar em que a mente obtém o ente ele mesmo e o seu ser-assim. Quando algo
contraria a evidência, temos uma evidência negativa, a falsidade evidente. Já na vida
cotidiana, pré-científica, nós nos atemos a evidências. Mas, normalmente, no dia a dia, as
evidências são relativas. Já a Ciência, diz Husserl, aspira a verdades, “que permaneçam

21
Husserl, E. (1962). Phänomenologische Psychologie (Husserliana Band X). Haag: Martinus Nijhoff, p.
299.
22
As Conferências de Paris foram pronunciadas na Sorbonne, no anfiteatro Descartes, a convite do Instituto
de Estudos Germanísticos e da Sociedade Francesa de Filosofia, nos dias 23 e 25 de fevereiro de 1929. O
título original destas conferências era: “Einleitung in die transzendentale Philosophie” (Introdução à
Fenomenologia Transcendental). Depois disso, Husserl foi a convite de Jean Héring a Estrasburgo, onde
conferenciou na Faculdade Protestante de Teologia. As conferências se deram na primeira metade de março
de 1929. Husserl retomou os temas das Conferências de Paris, mas insistiu mais no tema da experiência do
outro (Fremderfahrung), da empatia (Einfühlung), do “alter ego”, da “intersubjetividade”. Visto que estas
conferências foram acompanhadas com vivo interesse pelos participantes, Husserl resolveu então dedicar-
se a escrever uma introdução à fenomenologia transcendental, para a qual ele quisera dar o título de
“Meditações Cartesianas”. O texto que Husserl escreveu estava pronto em 17 de maio de 1929. Husserl o
entregou a seu assistente Eugen Fink, que reviu o manuscrito e o enviou a Jean Héring. Este texto foi
traduzido para o francês por Gabrielle Peiffer e Emmanuel Levinas. A tradução foi revista por Alexandre
Koyré, outro antigo aluno de Husserl, e foi editado em francês como “Méditations cartésiennes”, no ano de
1931. Husserl intencionava publicar o texto do manuscrito em alemão no Jahrbuch (Anuário) para o verão
de 1929. Em carta a Roman Ingarden, Husserl declara que esta deveria ser a sua “Hauptwerk” (obra capital).
Husserl, porém, nunca estava satisfeito com a obra, continuou tentando aperfeiçoar as suas meditações e
foi, assim, postergando a publicação. Sua intenção era apresentar de modo mais elaborado a fenomenologia
transcendental como como filosofia universal, que inclui em si todas as ontologias, isto é, todas as ciências
que tratam do apriori das regiões do ser em questão, e que, por isso, serviria de fundamento para todas as
ciências positivas. A publicação tinha sido adiada para 1932 ou 1933, mas, a partir deste ano, a situação
política, com o governo de Hitler, os seus planos de publicação tornaram-se impossíveis, visto que Husserl
era judeu. Em 1950 as Meditações Cartesianas foram publicadas nas Obras de Husserl (Husserliana) como
o primeiro volume. Este volume contém as Conferências de Paris, as cinco Meditações Cartesianas, um
sumário de Husserl para as Conferências de Paris e umas observações críticas de Roman Ingarden (antigo
aluno de Husserl, professor em Cracóvia, na Polônia).

9
válidas uma vez por todas e para qualquer um”, ou seja, ela procura verdades que sejam
imutáveis e universais, ao menos idealmente, mesmo se esta busca exija uma
aproximação ao infinito deste ideal. Ademais, a Ciência Universal, a Filosofia, pretende
alcançar a “universalidade sistemática do conhecimento” (p. 50), pois ela é a ciência da
“unitotalidade do ente enquanto tal” (All-Einheit des Seienden überhautpt). Além disso,
pertence também à ideia de Ciência e Filosofia uma “ordem de conhecimento indo dos
conhecimentos em si primeiros para os conhecimentos em si posteriores”, sendo que o
começo e a progressão se dão não arbitrariamente mas de maneira fundada, isto é,
segundo a “natureza das próprias coisas”. Daqui Husserl retira um primeiro princípio
metódico, que se expressa nas palavras: “não poderei (...) fazer nem deixar valer nenhum
juízo que eu não tenha formado a partir da evidência, a partir das experiências em que a
coisa ou o estado-de-coisas em questão estão para mim presentes enquanto eles
próprios” 23.

Há, assim, um nexo entre intuição, evidência e experiência. Em Husserl, há tanto


experiência empírica quanto experiência transcendental 24. O reino do transcendental é
uma esfera de um novo tipo de ser e de um novo tipo de experiência 25. Caso se parta da

23
HUSSERL, Meditações Cartesianas. São Paulo – SP: Madras, 2001, p. 51.
24
Note-se que a noção de experiência empírica se estende tanto sobre a experiência externa (do que é físico)
quanto sobre a experiência interna (do que é acessível à reflexão natural a modo de estados anímicos). O
conceito de “empírico” é, na filosofia transcendental, oposto a “puro” (sentido kantiano). Empírico é o
que, na experiência total, não vem das formas ou das leis do próprio espírito, mas lhe é imposto de fora.
25
Experiência é o conhecimento que procede da apreensão imediata de algo dado. A imediatez atesta a
presença do experimentado. Ela possui uma evidência privilegiada. Desde Roger Bacon, na idade média, e
ao longo da filosofia moderna, se distingui a experiência entre “experiência externa” e “experiência
interna”. Da experiência externa fazem parte as percepções sensíveis. Da experiência interna, as vivências
enquanto estados anímicos (realidades psíquicas). Tanto a experiência externa, do físico, quanto a
experiência interna, do psíquico, fornecem dados fáticos, singulares, contingentes, derivados (a posteriori).
Se considerarmos experiência apenas estes dois tipos de experiência, então toda experiência é fonte de
conhecimento a posteriori. Não haveria uma experiência do a priori, isto é, daquilo que é prévio ou que é
compreendido previamente (o âmbito do necessário e universal). A fenomenologia husserliana, no entanto,
traz a noção de experiência transcendental. O transcendental é tema da filosofia tanto medieval quanto
moderna. Na Idade Média, transcendental diz respeito àquilo que ultrapassa os limites dos gêneros e das
espécies ou, ainda, das categorias (é o trans-categorial). Em Kant, transcendental, em oposição a
transcendente, não é algo que se situa mais além do cognoscível (e que, neste sentido ultrapassa o âmbito
da experiência possível), mas sim algo que, no regresso reflexivo à consciência (sujeito) se descobre como
princípios constitutivos e como condição de possibilidade dos objetos da experiência. Através do método
regressivo, Kant procura esclarecer como é possível em geral o conhecimento objetivo. A objetividade dos
objetos é constituída a partir de condições a priori. Transcendental é, pois, em Kant, o que está referido às
condições de possibilidade da experiência dos objetos e dos objetos da experiência. Kant distingue entre
empírico e sensível. A intuição de um triângulo geométrico é sensível, mas pura; a de um cartão branco
triangular é sensível e empírica. O conhecimento empírico, a posteriori, se funda no conhecimento
transcendental, a priori. O conhecimento transcendental é ontológico. O conhecimento finito consiste de
duas fontes do ânimo (Gemüt): sensibilidade e entendimento. Em vez de duas fontes, às vezes Kant fala
também de “dois ramos” e pressente que “talvez” estes dois ramos brotem de uma raiz comum, mas que
nos é conhecida. O esclarecimento da possibilidade do conhecimento ontológico
(conhecimento sintético a priori) se torna, então, a pergunta pela essência de uma síntese “pura” (livre da

10
concepção de que só há experiência empírica, isto é, externa e interna, do físico e do
psíquico, então seria um algo paradoxal falar de “experiência transcendental” 26. Todavia,
este paradoxo pode se dissolver, se compreendermos que há outro modo de compreender
experiência. Podemos, por exemplo, admitir que um conhecimento transcendental,
concernente às condições de possibilidade dos objetos da experiência e da experiência
dos objetos, para se afirmar, precisa tornar fenômenos estas condições, para não resultar
uma mera construção 27. Podemos, fenomenologicamente, falar de uma experiência que

experiência) de pura intuição (espaço, tempo) e puro pensamento (apercepção). o fundamento da


possibilidade do conhecimento sintético a priori, ao menos na primeira versão da Crítica da Razão Pura, é
a imaginação transcendental. Aparece, assim, uma terceira fonte fundamental do ânimo. Esta não somente
jaz “entre” ambos os ramos anteriormente postos como seu “meio”, como constitui a sua raiz. À capacidade
de produzir e de configurar, sintetizando, representações que são intermediárias entre o sensível e o
inteligível Kant chamou de imaginação transcendental. Esta produz “esquemas” transcendentais que
possibilitam aplicar as categorias aos objetos. A imaginação transcendental está na raiz da intuição sensível
pura. As intuições puras (espaço, tempo) são uma apresentação originária do intuível: exhibitio originaria.
Nelas acontece uma pura “Synopsis”, que dá unidade a tudo o que é intuível empiricamente (pelo sentido
externo ou pelo sentido interno). Espaço e tempo não são manifestações – objetos; não são fenômenos
“vulgares” (que se dão numa intuição empírica). Não são coisa nenhuma. São “Nada” (no sentido relativo,
de não ente). E, no entanto, são algo. São para as manifestações o que a forma é para a matéria, isto é, o
que o determinante é para o determinado. O intuído como tal na intuição pura é um “ens imaginarium”25.
Assim, o puro intuir é, em sua essência, pura imaginação. O “ens imaginarium” é, por sua vez, uma forma
de “Nada”. Espaço e tempo são algo. E, no entanto, não são objeto nenhum. Espaço é a apresentação da
pura possibilidade de coexistência (Beisammensein). Tempo, da sucessão. Espaço e tempo são uma doação
(Gebung) originariamente formadora. A intuição pura tem o caráter de unificação (synópsis). Destaque-se
esta concepção em relação ao tempo. O tempo, como é entendido pela tradição, flui constantemente como
o suceder da sequência de agoras (KRV B 291). Esta sucessão não é, porém, intuída a modo de objeto. Ela
é intuída como auto doação, auto instituição. “O tempo como pura intuição é de uma só vez o intuir
formador, instituidor, de seu intuído”. O tempo é auto formação, auto instituição – a realização dessa auto
formação ou auto instituição é posta em obra pela imaginação transcendental. Esta intuição é,
simultaneamente, sempre de novo, não só uma visão atual, mas também uma revisão e uma pré-visão. A
intuição que é o tempo, e que tem o caráter de “synópsis”, é uma visão, uma re-visão e uma pré-visão.
26
A fenomenologia husserliana traz a noção de experiência transcendental. O transcendental é tema da
filosofia tanto medieval quanto moderna. Na Idade Média, transcendental diz respeito àquilo que ultrapassa
os limites dos gêneros e das espécies ou, ainda, das categorias (é o trans-categorial). Em Kant,
transcendental, em oposição a transcendente, não é algo que se situa mais além do cognoscível (e que, neste
sentido ultrapassa o âmbito da experiência possível), mas sim algo que, no regresso reflexivo à consciência
(sujeito) se descobre como princípios constitutivos e como condição de possibilidade dos objetos da
experiência. Através do método regressivo, Kant procura esclarecer como é possível em geral o
conhecimento objetivo. A objetividade dos objetos é constituída a partir de condições a priori.
Transcendental é, pois, em Kant, o que está referido às condições de possibilidade da experiência dos
objetos e dos objetos da experiência.
27
Kant tem em vista, na Crítica da Razão Pura, as condições a priori da experiência dos objetos e dos
objetos da experiência. Para a filosofia moderna, o ente é o cognoscível a modo de objeto. O ser é a realidade
enquanto objetualidade e, respectivamente, objetidade. O método transcendental, embora faça constante
referência aos objetos, se desvia deles, regredindo às suas fontes constitutivas. Os objetos são elaborados
pelas funções de processamento (formas da sensibilidade e categorias do entendimento). O fio condutor do
método transcendental não provém dos objetos, mas das funções de processamento da realidade enquanto
objetualidade. O que a análise visa é elucidar a possibilidade do próprio mundo. O problema do método
transcendental se formula assim: como é possível a objetividade enquanto sistema de experiência? O objeto
só pode se contrapor ao sujeito porque, no fundo, o supõe. O objeto não é outra coisa senão representação
do sujeito. Mas o sujeito permanece sempre idêntico a si mesmo em toda a mudança e variação das
representações. O “eu penso” (Ich denke) acompanha, imutável, ou seja, sempre idêntico a si mesmo, todas
as representações. O “eu penso” é o ponto focal onde reúne-se a multiplicidade de tudo aquilo que é

11
faz visível, torna fenômeno, a modo de uma abertura inaugural, o domínio do apriori:
experiência fundamental ou transcendental 28.

O apriori, na fenomenologia, tem uma envergadura universal. Pode ser tanto


formal quanto material. Pode dizer respeito tanto ao real quanto ao ideal. Em si, ele não
é nem transcendente nem imanente (à consciência). Não é nem objeto ou conteúdo (polo
noemático) nem ato ou vivência (polo noético). É indiferente tanto à objetidade e
objetualidade quanto à subjetividade.

O § 6 das Meditações Cartesianas trata das “diferenciações da evidência” e da


“exigência filosófica de uma evidência apodítica e em si primeira”. O começo da Ciência
deve se dar, como queria também Descartes, numa certeza absoluta ou, o que é a mesma
coisa, numa absoluta indubitabilidade. Mas, diz Husserl, isto carece de uma clarificação.
Nós temos infindas experiências de evidência. Mas as evidências podem ser mais ou
menos perfeitas. Imperfeição, no tocante às evidências, significa “unilateralidade, relativa
obscuridade, indistinção na autodoação da coisa ou do estado-de-coisa” (p. 52). Neste
caso, não se tem um cumprimento ou preenchimento pleno do presumir intencional,
especialmente no tocante ao que é co-visado ou pré-visado nesse presumir. As evidências
vão sendo aperfeiçoadas à medida que as experiências concordantes vão crescendo e o
presumir vai ser sendo cumprido, realizado, preenchido, verificado. No tocante às
evidências, a ideia de perfeição ou completude seria a de evidência adequada, deixando-
se em aberto se a ideia de evidência perfeita, isto é, adequada, não é no fim das contas um
ideal, uma ideia que, como gosta de dizer Husserl, “reside no infinito” (p. 53) 29.

Outra forma de perfeição da evidência, de dignidade superior, é a da


“apoditicidade”. Uma evidência pode ser não adequada e ser, porém, apodítica.
Apoditicidade significa “absoluta indubitabilidade”. Os princípios de uma ciência devem

percebido e concebido. Tal ponto focal que se constitui na instância estrutural do sujeito, a qual apresenta
as características de ser unitária e originária, transcendental e sempre idêntica a si mesma é chamada de
consciência. O “eu penso” é ele mesmo representação, mas representação originária, pois não pode ser
objeto de uma intuição, isto é, de uma percepção empírica. O “eu penso” é dado de modo imediato como
apercepção originária ou pura. Tal apercepção é o que caracteriza a consciência como autoconsciência. A
unidade subjetiva da multiplicidade objetiva que se dá na autoconsciência é chamada por Kant de unidade
transcendental da autoconsciência. O nosso pensamento é, no fundo, uma atividade unificadora,
sintetizadora. A forma do entendimento é a apercepção originária.
28
O transcendental concerne ao apriori e o apriori é discernido como aquilo que é necessário e universal.
29
O adjetivo “adequada” referido a “evidência” significa, portanto, “perfeita”, no sentido de “completa”.

12
ter o caráter de uma evidência apodítica 30. Segundo Husserl, “toda e qualquer evidência
é autocaptação de um ser ou de um ser-assim (Selbsterfassung eines Seienden oder So-
seienden) no modo “ele próprio”, na plena certeza acerca deste ser, a qual, portanto,
excluir qualquer dúvida” (p. 53). As evidências que se referem à experiência sensível 31,
que se referem a fatos, isto é, a coisas e estados-de-coisa, não são necessárias e não
excluem a possibilidade e a pensabilidade de um não-ser, de um não-ser-assim. É que o
ser pode acabar se revelando, na experiência sensível, uma aparência (Schein). As
evidências deste tipo não resistem à reflexão crítica que quer excluir toda dúvida, que
quer constatar a “absoluta impensabilidade” do não-ser daquilo que é enunciado no juízo.
Evidência apodítica implica que aquilo que é julgado não pode não ser e não pode não
ser assim como é, isto é, implica a necessidade.

Na investigação fenomenológica se mostra que há diversos tipos de categoria, de


acordo com os diversos tipos de objetos e objetualidades, de entes e de modos de ser, de
setores do ente e de regiões do ser (exemplo: natureza, história, etc.).
Correspondentemente, há diversos tipos de evidências. Assim, “categorias da
objetualidade e categorias da evidência são correlatas. A cada modo fundamental de
objetualidades (...) pertence um modo fundamental de ‘experiência’ da evidência” 32.
Cada região coisal tem o seu modo próprio de dar-se à evidência, o seu modo de tornar-
se acessível, e seu modo de deixar-se tematizar. Correspondentemente, cada mostração
teorética (theoretische Ausweisung) terá o seu próprio rigor, de acordo com o tipo de
evidência que aquela região coisal oferece e o tipo de acesso que ela requer.

Husserl descobriu a universalidade da evidência na vida da consciência. A


evidência tem uma função universal na vida intencional da consciência. Seu desempenho
se refere a tudo quanto vem ao encontro da consciência no modo da autodoação. Os

30
Heidegger trata da diferença entre “evidência assertórica” e “evidência apodítica”. Evidência assertórica
é a que se refere a existência de fatos, isto é, ao factual, a coisas e estados-de-coisa “individuais”, ao não-
necessário. “Evidência apodítica” se refere, porém, à essência, ao que é necessário, ao que não pode não
ser, e que não pode não ser de outro modo de como é. A evidência apodítica é uma visão intelectiva das
relações-de-essência. Ambas as formas de evidência podem ser conjugadas numa conexão em que se dá a
visão intelectiva da necessidade do ser-assim de um estado-de-coisas individual a partir de razões essenciais
do “individual posto” (Cfr. Heidegger, Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, GA Band 20, p. 68).
Uma evidência pode ser apodítica e não ser absoluta, isto é, incondicionada, como a evidência do enunciado
“2 x 2 = 4”. Neste caso, trata-se de uma certeza condicionada, pois a evidência deste enunciado depende de
duas coisas: da premissa da igualdade e da premissa da identidade – que o 2 é sempre idêntico a ele mesmo
(cfr. Seminários de Zollikon, p. 38). Leibniz falava de “verdades de fato” e de “verdades de essência”; Kant
distinguia as modalidades do juízo em assertórico, problemático e apodíctico.
31
Evidências assertóricas.
32
Husserl, E. (1929). Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, p. 144.

13
conceitos de intencionalidade como tal e de evidência, estão, pois, essencialmente
conectados. Intencionalidade, em termos de consciência, aparece, com efeito,
basicamente, como a vivência de um ter a sabença de alguma coisa. O saber dessa sabença
da consciência, porém, varia de acordo como o modo do relacionamento da consciência
com aquilo de que ela tem consciência. Uma certa consciência de evidência, pois, se
insere sempre na intencionalidade. “Assim a evidência é um modo universal da
intencionalidade, que se refere ao todo da vida da consciência” 33. A análise
fenomenológica da vida da consciência em seu caráter de intencionalidade, com efeito,
traz à evidência a universalidade da evidência. Heidegger aponta para essa
universalidade: “Evidência é uma função universal, a princípio, dos atos que doam
objetos, mais amplamente, de todos os atos (evidência do querer, do desejo, evidência do
amar e esperar). Ela não é restrita a enunciados, predicações, juízos” 34.

A intuição e a evidência são as condições fundamentais do que chamamos de


“razão” (Vernunft). Intuir é, simplesmente, ver. Este ver doador originário, diz Husserl,
nas Ideias I, é base da “Vernunft” (Razão), quer da razão teórica, quer da axiológica, quer
da prática. Com efeito, o que está em questão em todo o comportamento intencional
racional é a possibilidade de captação, de apreensão, do ser, quer no sentido do ser real,
quer no sentido do ser verdadeiro. É com base nesta doação, em que o doado se dá em
sua autodatidade, ou melhor, com base na sua recepção (annehmen) e percepção
(vernehmen), que o comportamento intencional racional pode fundamentar (Begründen)
e demonstrar, por meio de um mostrar, que se dá no modo do atestar e documentar
(Ausweisen), aquilo que fora presumido (vermeint). Sem o preenchimento (Erfüllung) de
um sentido (Sinn), possibilitado por atos perceptivos, de visão, o pensar permanece não
só vazio, mas também cego, sem visão, sem evidência.

A questão é: de que modo se dá a evidência ontológica (evidência do ser e de suas


determinações, como unidade, identidade, diferença, bem como das categorias)? Ela é um
produto da reflexão? Husserl contesta como uma doutrina fundamentalmente errônea,
aquela que foi ensinada por Locke, a saber, de que as categorias lógicas, como ser e não
ser, unidade, pluralidade, totalidade, número, fundamento, consequência etc. “surgem da
reflexão sobre certos atos psíquicos, portanto, no domínio do sentido interno, da

33
Ibidem.
34
Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band
20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 68.

14
‘percepção interna’” 35. A evidência ontológica é dada na reflexão e para a reflexão
transcendental. Entretanto, não é um produto da reflexão transcendental.

O § 7 declara que a “evidência acerca da existência do mundo não é apodítica” e


que ela deve, portanto, ser incluída na “subversão cartesiana”. Ao mundo nós nos
confiamos, comumente. Também as ciências costumam ser construídas sobre o chão do
mundo, as ciências empíricas, imediatamente, as ciências a priori, mediatamente. A
existência do mundo é dada numa experiência sensível universal. Entretanto, trata-se de
uma evidência assertória, factual, não essencial e não-necessária. Ademais, a evidência
da existência do mundo não é indubitável. Assim como aquilo que é experimentado na
experiência sensível individual pode ser considerado, posteriormente, como uma
aparência (Schein), do mesmo modo, a experiência sensível universal também, ou
melhor, aquilo que nela é experimentado, pode se revelar uma aparência, uma ilusão.
Afinal, não poderia ser assim que tudo quanto nós experimentamos fosse uma espécie de
“sonho coerente”? (p. 55). Conclusão: não basta pôr fora de validade todas as ciências,
“também ao seu terreno universal, o do mundo da experiência, deveremos nós retirar a
validade ingênua. O ser do mundo. Com base na evidência da experiência natural, não
poderá mais ser, para nós, um fato óbvio, mas deverá antes ser, ele próprio, um simples
fenômeno de validade” (p. 55).

A investigação fenomenológica transcendental conduz ao domínio originário do


ego transcendental como polo constitutivo e à sua experiência transcendental.

1.2.3. EPOCHÉ COMO VIA PARA O EGO TRANSCENDENTAL

O § 8 trata da “grande reversão” (Umwendung), para o ego cogito enquanto


subjetividade transcendental, que agora passa a ser o último chão do juízo, no qual a
filosofia encontra a sua radical fundação. O mundo que é, o mundo enquanto sendo
(seiende Welt), não é mais esse chão, mas sim a subjetividade transcendental, o “ego
cogito”. Aqui o fenomenólogo, o eu filosofante, o eu que medita, se abstém da crença
no ser (Seinsglauben) do mundo, com outras palavras, ele se abstém da crença na

35
Husserl, E. Investigações Lógicas: Sexta Investigação (Elementos de uma dilucidação
fenomenológica do conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 131.

15
pretensão de ser (Seinsanspruch) do mundo (p. 56). Ele perde o mundo. Perder o mundo
significa, porém, perder não somente o mundo circundante concreto da vida, com a
natureza aí inserido, mas também o mundo da socialidade e da cultura, significa perder
não somente os seres que vivem no mundo natural, mas também perder os outros eus com
os quais ele compartilha este mundo natural e o mundo sociocultural, significa, enfim,
perder o seu próprio corpo, perder a si mesmo como uma coisa dentro mundo. O mundo,
para ele, já não é algo que é (seiend), é apenas algo que aparece, é apenas um fenômeno
de ser (Seinsphänomen) (p. 56). Neste momento, portanto, não há uma decisão entre o
ser (Sein) e a aparência (Schein) do mundo. O fenomenólogo se abstém da crença no
mundo, da crença no seu sentido (Sinn) e na sua validade (Validade) como ser verdadeiro
(als wahres Sein). O mundo é, agora, seu fenômeno, algo que aparece para mim, sem que
eu possa crer na sua pretensão de verdade, sem que eu possa decidir se este aparecer é
verdadeiro ser ou se é mera aparência.

Nesta abstenção, porém, em que se perde o mundo, o que é que se ganha?


Resposta: “a corrente (Strom) inteira da minha vida de experiência”. Esta vida (Leben)
está aí para mim (für mich) constantemente. Esta vida está aí presente para mim como
um “campo de presença” (Gegenwartsfelde) que se torna consciente de modo perceptivo,
que se dá na mais originária originalidade, como ela mesma. Ela se dá não somente como
o presente e como presença, mas também como o passado de uma recordação. “Posso
captar o presente como presente, o passado como passado, tal como ele próprio é” (p. 57).
Assim, perdendo o mundo, Husserl desvela a vida da consciência e seu misterioso nexo
com a temporalidade. Desvela-se, aqui, o fluxo da vida (Lebenstrom), o seu fluir
constante, com a sua temporalidade própria. Se volto o olhar para esta vida, de início
percebo, de fato, o constante fluir de representações, juízos, atitudes valorativas, decisões,
posições de fins e de meios etc. O fenomenólogo agora volta o olhar, a atenção da mente,
para estas “cogitationes”, para estas vivências, sem pôr em jogo a validade, sem crer na
pretensão de verdade, daquilo que elas intencionam no mundo, deixando-o ser apenas
como “simples fenômeno” (p. 58).

Este universal pôr fora de validade (“inibir”, “pôr fora de jogo”)


todas as tomadas de posição perante o mundo objetivo pré-dado e,
assim, desde logo, as tomadas de posição de ser (as tomadas de posição
a respeito do ser, da aparência, do ser de modo possível, suposto, do
ser provável e semelhantes) – ou, como também se costuma dizer, esta
epoché fenomenológica ou este pôr entre parênteses o mundo objetivo
– não nos põe perante um nada. Ao contrário, aquilo de que nos
apropriamos precisamente por isso ou, mais claramente, aquilo de que

16
eu, aquele que medita, por isso mesmo me aproprio é da minha vida
pura com todas as suas vivências e todas as suas coisas visadas,
enquanto puramente visadas, o universo dos fenômenos no sentido da
Fenomenologia (p. 58).

Assim, tudo que é mundano, é tomado em consideração apenas enquanto se dá


como o cogitatum do ego cogito. Vale apenas enquanto é “para mim”, enquanto aquilo
que eu experimento, percebo, de que me recordo, em que penso, a respeito de que julgo,
aquilo que é objeto de minha valoração ou de meu desejo, etc. Ora, experimentar,
perceber, recordar, pensar, julgar, estimar, desejar, e coisas deste tipo, recebe em
Descartes o título de “cogito”. “O mundo não é para mim, em geral, outra coisa senão um
ser que, num tal cogito, está consciente e vale para mim” (p. 58). O seu sentido (Sinn), a
sua validade de ser (Seinsgeltung), universal ou específica, ele tem somente a partir de
tais “cogitationes”. O mundo com o qual eu me relaciono tem em mim próprio a fonte de
seu sentido e de sua validade. O mundo é mundo da minha consciência. A minha
consciência é consciência do mundo. Perder o mundo, perder, isto é, a crença na sua
validade em si, significa, pois, ganhar a mim mesmo “enquanto ego puro, com a corrente
pura de suas cogitationes” (p. 59). O ser do ego puro, do ego cogito, com suas
cogitationes, precede o ser natural do mundo. O seu ser é anterior ao ser do mundo, isto
é, ao seu sentido e à sua validade d ser. Este preceder, esta anterioridade, constitui a
transcendentalidade do ser do ego. O ser do ego puro, do ego cogito, é chamado, portanto,
de ser transcendental. A epoché, enquanto reconduz o mundo, enquanto fenômeno, ao
terreno do ser transcendental (do ego cogito), é chamada por isso de “redução
fenomenológico-transcendental”.

O § 9 fala do “alcance da evidência apodítica do “eu sou””. A questão agora é se


esta redução fenomenológico-transcendental possibilita uma evidência apodítica do ser
da subjetividade transcendental. Já Descartes descobriu a apoditicidade da evidência do
ego sum, respectivamente, do sum cogitans. Trata-se, pois, de uma evidência apodítica,
de uma certeza indubitável, pois o “eu duvido” já pressupõe, por si mesmo, o “eu sou”.
Mas, em que medida esta evidência serve apenas para o presente? Ela vale também para
o passado? É o problema do alcance da evidência apodítica que se põe aqui. Husserl
observa “que a adequação e a apoditicidade de uma evidência não têm de andar de mãos
dadas” (p. 60). Há uma experiência de si mesmo que é transcendental. “Nela, o ego é
originariamente acessível para si próprio” (p. 60). Mas esta experiência não oferece, de
uma vez, toda a vida da consciência. Ela oferece, a cada vez, apenas a sua vivente auto-

17
presença (die lebendige Selbstgegenwart). Mas, junto com isso que se oferece como
presente vivo da ego, se dá também, como algo que é presumido e visado junto, o
horizonte do não-experimentado. A este horizonte pertence o obscuro passado próprio,
como também as “faculdades transcendentais” e as propriedades habituais que, a cada
vez, pertencem ao eu. O “eu sou” é, pois, um horizonte aberto de potencialidades e de
habitualidades. A vida do ego sum, do ego cogito, do sum cogitans, deixa presumir, assim,
uma amplidão de experiências. O problema sobre a envergadura ou alcance desta
amplidão é que é o problema.

O § 10 apresenta um excurso sobre a falha de Descartes na “viragem


transcendental” (transzendentalen Wendung). Descartes se deixou trair por preconceitos,
advindos não só da escolástica, como mostraram Gilson e Koyré, mas também por
preconceitos advindos do seu deslumbramento com a ciência matemática da natureza. Ele
quis fazer do ego cogito uma proposição axiomática, o fundamento de uma ciência
dedutiva-explicativa do mundo, uma ciência nomológica 36, demonstrada ordine
geometrico 37, algo semelhante à ciência matemática da natureza. Em Descartes, o ego
acaba sendo interpretado como um “pedacinho do mundo”. O ego cogito puro se torna
uma “substantia cogitans” 38, “mens sive animus” 39. A mente, enquanto “res cogitans”
acaba se tornando o ponto de partida de inferências sobre o mundo, constituindo assim,
no dizer de Husserl, o contrasenso de um “realismo transcendental”. Para não cair nos
erros de Descartes é preciso ficar fiel ao princípio de evidência ou princípio da pura
intuição, ou seja, não querer dizer mais do que aquilo que se vê, que se percebe no modo
da intuição ou evidência. Descartes realizou a maior de todas as descobertas sem,
contudo, captar o seu sentido próprio, o sentido da subjetividade transcendental. “Assim,
não transpôs a porta de entrada que conduz à autêntica Filosofia Transcendental” (p. 62).

36
Que trata das leis naturais.
37
“seguindo a ordem da geometria”. Outra expressão equivalente: “more geometrico”, expressão latina que
significa “à maneira da geometria”. É a ordem dos “Princípios” de Descartes: partindo de definições e
axiomas se deduzem teoremas, seguidos de corolários e esclarecimentos. Definição: determinação completa
e clara do significado de uma palavra ou de um conceito, e portanto, de um estado-de-coisas com indicação
de todas as notas necessárias, e só estas, de sua ordem. Axioma: princípio fundamental, primeiro princípio,
tese primeira, evidente por si mesma (evidência axiomática), indeduzível e isenta de pressupostos; como
pressuposto fundamental de toda demonstração, não é demonstrável em si mesmo; só pode ser mostrado
(na reflexão transcendental). Teorema: enunciado demonstrável numa teoria; proposição especulativa, que
serve de premissa a novos raciocínios. Corolário: proposição que deriva imediatamente de uma outra em
virtude apenas das leis da Lógica (= consequência formal).
38
“Substância pensante”.
39
“Mente ou ânimo”.

18
A primeira meditação termina com o § 11, que trata do “eu psicológico” e do “eu
transcendental”, bem como da “transcendência do mundo”. A vida, em sua validade de
ser (Seinsgeltung), permanece intocada, mesmo se nada se decidiu sobre o ser ou o não
ser do mundo. O eu, a vida do eu, não é um pedaço do mundo. O ego do “ego sum”, do
“ego cogito”, não é um homem, isto é, não é uma coisa intramundana, um ser psicofísico
que aparece no horizonte da experiência sensível, no mundo. O eu não é uma ocorrência
no mundo. Sua vida transcendental não coincide com a vida da alma deste ser psicofísico
que ocorre no mundo, e que é objeto da biologia, da antropologia, da psicologia. O eu
transcendental é o eu que medita, o eu que se experimenta a si mesmo
transcendentalmente, como sendo aquém do ser natural do mundo, como sendo
“fundamento de validação” (p. 63) de toda e qualquer validade e fundamento objetivos.

Através da epoché fenomenológica, reduzo o meu eu natural


humano e a minha vida anímica – o domínio da minha autoexperiência
psicológica – ao meu eu fenomenológico-transcendental, ao domínio
da autoexperiência fenomenológico-transcendental. O mundo objetivo,
que é para mim, que para mim era e há-de ser, o único que para mim
pode ser, com todos os seus objetos, ganha a partir de mim próprio, digo
eu, todo o sentido e validade de ser que tem de cada vez para mim, a
partir de mim enquanto aquele eu transcendental que entra em cena, por
vez primeira, precisamente com a epoché transcendental-
fenomenológica (p. 63).

Se, por um lado, o eu não é nenhum pedaço do mundo, também, por outro lado, o
mundo e cada objeto mundano não são um pedaço do meu eu. Isso quer dizer: não é uma
parte real (reell), um complexo de dados de sensação ou de atos que se achariam em mim
de modo real (reell). O mundo está “contido em mim”, mas apenas de modo intencional,
irreal (irreell). Ao mundo pertence o caráter de transcendência. Transcendência do mundo
significa: ele não é parte real de mim, está contido em mim apenas de modo intencional,
irreal, como aquilo de que eu tenho consciência, e eu sou fonte de seu sentido e de sua
validade de ser. O mundo é transcendente. O eu é transcendental, é aquele que precede o
mundo, como fonte de sentido e de validade de ser, como fundamento e suporte da
validade da transcendência do mundo.

1.2.4. A LIBERAÇÃO DO CAMPO DA EXPERIÊNCIA TRANSCENDENTAL

19
Buscando compreender a dinâmica de sentido do fenômeno, sua fenomenologia,
a partir da experiência transcendental, o método descoberto por Husserl se concentra na
intencionalidade. É, fundamentalmente, análise intencional das mais diversas formas de
vivência da consciência, ou seja, análise da correlação entre intencionar e intencionado:
dos processos de relacionamento que a consciência exerce com qualquer conteúdo (polo
noético), bem como das relações significativas que os conteúdos constituídos guardam
com esses processos de relacionamento (polo noemático).

A fenomenologia transcendental é a autoaclaração da redução e da constituição da


fenomenologia do fenômeno através do fio condutor da intencionalidade. Todo ato ou
toda a vivência da consciência visa a algo cada de um modo específico (perceber,
imaginar, recordar, esperar, julgar, amar, odiar, etc.). Há uma unidade estrutural-
intencional entre o visado (o percebido, o imaginado, o recordado, o esperado, o julgado,
o amado, o odiado, etc.) e o visar. O ato ou vivência intencional exibe em si mesmo a
estrutura do relacionamento específico entre o dirigir-se a/o visar a e o conteúdo cada vez
em questão. O ser intencional não é um acréscimo acidental à vivência, mas é, sim, sua
estrutura, sua essência. A referência intencional em sua espécie é que estrutura a vivência
em seu vivenciar e em seu vivenciado, fazendo com que o vivenciar seja vivenciar deste
objeto ou objetualidade e não de outro e com que o vivenciado seja conteúdo desta
vivência e não de outra. Os atos ou vivências possuem, assim, estruturas pré-formadas
essenciais específicas, caracterizadas pelos tipos de referência intencional. A mudança de
um tipo de ato para outro (de uma vivência específica para outra) é tanto uma mudança
de relacionamento, de direcionamento ou orientação, de visada, quanto uma mudança de
objeto em sua objetualidade. Assim, por exemplo, uma mudança de amor em ódio ou
vice-versa é uma mudança da referência intencional e, assim, uma mudança do vivenciar
e do vivenciado. Não é assim que muda o relacionamento e o objeto permanece o mesmo,
apenas alterado em seus caracteres. Muda o próprio objeto em sua objetualidade. Este é,
por assim dizer, inteiramente reconstituído, não desde fora, mas de dentro para fora 40.

O fenomenológico do método da fenomenologia transcendental consiste na


liberação (Freilegung) do campo fenomenal transcendental da subjetividade pura (não
empírica). Esta liberação abre o campo da experiência transcendental.

40
Rombach, Heinrich. Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins. Freiburg [Breisgau] / Müchen:
Alber, 1980, p. 39.

20
A segunda das Meditações Cartesianas se intitula, em alemão, “Freilegung des
transzendentalen Erfahrungsfeldes nach seinen universalem Strukturen”. A tradução de
Pedro Alves diz: “Abertura do campo de experiência transcendental segundo as suas
estruturas universais”. É importante a palavra “Freilegung”, traduzido como “abertura”.
O verbo “freilegen” significa abrir um caminho, desentulhar um caminho. Tem também
o sentido de pôr a descoberto. “Frei” é “livre”. “Legen” é “pôr”. Podemos interpretar esta
palavra como indicando o trabalho de liberar. Trata-se, pois, de uma “liberação” que se
dá no sentido de desencobrir um campo, tirar o que está entulhado nele, abrir caminhos
nele, torna-lo capaz de receber a semente, etc. Digamos que o trabalho da fenomenologia
transcendental aparece aqui como a “liberação” do “campo da experiência
transcendental”. Esta liberação se dá segundo, isto é, seguindo as “suas estruturas
universais”. Os §§ 12 a 22 das Meditações Cartesianas tratam deste trabalho.

Com a “epoché” se abre, se libera, uma esfera infinita de ser nova enquanto esfera
de uma experiência de novo tipo, a saber, a transcendental. Husserl fala de uma
“experiência transcendental”. No texto, de cara, não vem nenhuma definição do que ele
entende por “experiência transcendental”. O que seria, aqui, experiência? A “apreensão
imediata de algo dado” e dado “por si mesmo”, em sua presença direta? Há uma
experiência que não é do físico nem do psíquico? Uma experiência do “ego cogito”
enquanto transcendental, isto é, enquanto uma esfera de ser que não é constituída, mas
que é constituinte? Uma experiência do apriori? Husserl parece apontar para a
“dimensão” do a priori. Nós temos uma experiência do real, efetivo (wirklich). Temos
também uma experiência própria da fantasia. A experiência da fantasia Husserl chama de
“experiência do como-se”. Depois, ele trata de um terceiro tipo de experiência, que
implica consigo o “reino das puras possibilidades”, que são as “possibilidades
apriorísticas”. Logo em seguida, ele fala de uma “autoexperiência da vida transcendental”
e de uma “estrutura universal apodítica da experiência do eu”.

O § 12 trata da “ideia de uma fundamentação transcendental do conhecimento”.


O “ego transcendental” – transcendental no sentido do que precede, vem antes, está
aquém de todo o ser e conhecer objetivo – é o fundamento e o chão, no qual se passa todo
o conhecimento objetivo. A fenomenologia trabalha com uma nova ideia de
fundamentação do conhecimento. Trata-se, aqui, de uma fundamentação transcendental,
ou seja, de uma fundamentação do conhecimento objetivo na subjetividade
21
transcendental. A fundamentação não é entendida, como em Descartes, a modo de uma
fundamentação axiomática-dedutiva, em que uma proposição fundamental, um axioma –
no caso, o “cogito, ergo, sum” – serviria de premissa para presumidas conclusões, ao
modo da ordenação dos juízos na geometria (ordine geometrico). Com a “epoché” se abre,
se libera, uma esfera infinita de ser nova enquanto esfera de uma experiência de novo
tipo, a saber, a transcendental. Husserl fala de uma “experiência transcendental”. No
texto, de cara, não vem nenhuma definição do que ele entende por “experiência
transcendental”. O que seria, aqui, experiência? A “apreensão imediata de algo dado” e
dado “por si mesmo”, em sua presença direta? Há uma experiência que não é do físico
nem do psíquico? Uma experiência do “ego cogito” enquanto transcendental, isto é,
enquanto uma esfera de ser que não é constituída, mas que é constituinte? Uma
experiência do a priori? Husserl parece apontar para a “dimensão” do a priori. Nós temos
uma experiência do real, efetivo (wirklich). Temos também uma experiência própria da
fantasia. A experiência da fantasia Husserl chama de “experiência do como-se”. Depois,
ele trata de um terceiro tipo de experiência, que implica consigo o “reino das puras
possibilidades”, que são as “possibilidades apriorísticas”. Logo em seguida, ele fala de
uma “autoexperiência da vida transcendental” e de uma “estrutura universal apodítica da
experiência do eu”. Em que consiste isso? Husserl apenas dá um exemplo, alude à “forma
temporal imanente da corrente das vivências”. Na autoexperiência da vida
transcendental” se dá o tempo. Como o tempo é, aqui, entendido? Como a forma pura do
fluxo (Strom) 41 das vivências. Toda consciência é consciência de alguma coisa. Toda
consciência-de é uma vivência: um acontecimento da vida, da vida “transcendental”, isto
é, da vida tomada não como algo objetivo, mas como algo que precede a toda a
objetividade. Consciência é também o todo das vivências. As vivências, com suas
intencionalidades típicas, fluem no fluxo da consciência. O que “in-forma”, isto é, forma
desde dentro (de modo imanente) este fluxo é o tempo. Toda consciência só se forma e
se estrutura em seu caráter intencional a partir do tempo imanente, do tempo como forma
a priori das vivências do eu. O tempo seria uma estrutura que rege e forma todas as
vivências. O tempo serve, pois, como um exemplo de uma “estrutura universal apodítica
da experiência do eu”. É universal pois diz respeito não a este ou aquele eu em particular,
mas à egoidade como tal, a todo e a cada eu. É a priori, pois antecede estrutural-

41
Ou corrente, entendida, no sentido da correnteza de um rio, em seu fluir contínuo.

22
ontologicamente toda e qualquer vivência enquanto tal. E traz consigo uma evidência
apodítica: que se faz ver por si mesma.

Ao falar de uma “experiência transcendental” Husserl está indo além de todo o


empirismo, que só reconhece uma experiência natural, física ou psíquica. Estará indo
também além de Kant? É algo que se pode investigar... Qual o alcance ou a envergadura
da experiência? O § 13 fala da “necessidade de se começar por excluir o problema do
alcance do conhecimento transcendental”. A experiência é conhecimento que traz consigo
uma evidência privilegiada. Uma experiência transcendental, então, traz consigo uma
evidência ainda mais privilegiada, uma evidência apodítica (de certeza absoluta,
incondicionada; indubitável; necessária: em que se vê que algo é e não pode não ser; é
assim e não pode ser diversamente). Qual o alcance da experiência, ou melhor, do
conhecimento transcendental? A colocação deste problema seria tarefa de uma “crítica da
autoexperiência transcendental”. Não se pode responder a este problema logo de início.
A resposta a este problema depende justamente da abertura do campo da experiência
transcendental. Não se deve delimita-lo dogmaticamente. É preciso deixar que ele mesmo
se mostre em todo o seu alcance.

Husserl fala de dois níveis de trabalho científico a ser feito. “No primeiro nível, o
colossal (...) domínio da autoexperiência transcendental deve ser percorrido”. Este
percorrer deve acontecer numa “simples entrega ao decurso concordante da evidência que
lhe é inerente”. Este nível ainda não é filosófico em sentido pleno. Falta, aqui, ainda uma
“crítica da experiência transcendental”. O segundo nível é justamente do da “crítica da
experiência transcendental”, e, a partir desta crítica, o da crítica do “conhecimento
transcendental em geral”.

A fenomenologia transcendental aparece, então, como uma ciência que


“estabelece a mais extrema contraposição com as ciências no sentido até aqui vigente”,
ou seja, com as ciências no sentido das “ciências objetivas”. Isso vale mesmo para as
ciências que tratam do “subjetivo”. É que as “ciências objetivas” lidam com o subjetivo-
objetivado, lidam com o “sujeito” que aparece como parte do mundo, com o sujeito que
aparece, por exemplo, como um animal, como um ente psicofísico dentro do mundo,
como um ente social, cultural, político, etc. A fenomenologia transcendental, entretanto,
pretende ser uma “ciência absolutamente subjetiva”, uma ciência que não trata da
subjetividade como algo já dado e posto no mundo, mas da subjetividade como fonte de
conhecimento, de sentido de ser e de validade do mundo enquanto tal. O “objeto” da
23
fenomenologia transcendental não é nenhum objeto no sentido de algo já dado e posto no
mundo. O “objeto” (Gegenstand) da fenomenologia transcendental é a subjetividade
constituinte, não a subjetividade constituída. Este “objeto” não depende em nada da
decisão sobre o ser ou não ser do mundo. É ab-soluto, solto em si e a partir de si,
independente, incondicionado.

A fenomenologia transcendental começa como pura egologia. De início o ego


meditante, filosofante, trata somente do que se lhe dá na imediata evidência de si mesmo.
Trata do ego e do que nele está incluído como conteúdo noemático-noético. Isso impõe,
de início, a aparência do solipsismo, ainda que transcendental. Os eus dos outros, como
“coisas” do mundo foram suspensos com a epoché. E outros eus transcendentais ainda
não emergiram no horizonte da meditação. O solipsismo se revelará apenas uma aparência
(Schein). A realização de ponta a ponta do caminho das meditações acabarão conduzindo
a uma “fenomenologia da intersubjetividade transcendental”.

A fenomenologia transcendental de Husserl se desvia do encaminhamento de


pensamento tomado por Descartes. Descartes descobriu o “ego cogito, ego sum”, mas não
abriu, não liberou, o campo infinito da experiência transcendental. A evidência obtida por
ele ficou sem fruto. Descartes se desencaminhou por uma dupla omissão. Em primeiro
lugar, Descartes descurou a “clarificação do sentido puramente metodológico da epoché
transcendental”. Em segundo, descurou também “uma consideração atenta do fato de que
o ego pode explicitar a si próprio ao infinito e de modo sistemático, através da experiência
transcendental”. O ego é um campo de trabalho fenomenológico prioritário. Mas, ao se
tratar do ego trata-se também daquilo que lhe é correlato: “o mundo no seu todo”
(contudo, sem pressupor a sua validade de ser). A fenomenologia transcendental, por
trabalhar neste campo, está separada de todas as ciências positivas, objetivas, está, por
assim, dizer, no contrapé de todas elas.

O § 14 trata do “Fluxo das cogitationes” e do título “cogito-cogitatum”. O tema


fundamental da fenomenologia transcendental é o ego-cogito-cogitatum. O cogito é
entendido aqui, como em Descartes, no sentido amplo de consciência-de. Cada vivência
é uma consciência-de de uma forma típica. O que se chama de “vida da consciência” é
um fluxo de vivências, sendo que cada vivência tem a sua forma de se referir e se
direcionar, de visar e intencionar, aquilo que ela vivencia, o seu conteúdo intencional. O
eu vive nestas vivências a vida da consciência. Podem-se descrever psicologicamente as
vivências. No caso, estas vivências são tomadas como processos efetivos, psíquicos, de
24
um ente psicofísico que é o homem. Mas uma descrição psicológica, ainda que se
abstenha de teorias sobre as relações entre o corpo e a alma, não é ainda uma propriamente
fenomenologia transcendental. Se a fenomenologia transcendental se baseasse no
psíquico para explicar a constituição do mundo, então ela recairia no psicologismo. A
psicologia pura da consciência é paralela à fenomenologia transcendental. O conteúdo de
ambas pode ser o mesmo. O que diferencia uma da outra é que a fenomenologia
transcendental opera com a redução transcendental. Na psicologia o homem é tomado
como ser psicofísico que vive no mundo. O mundo é tomado como existente em si
mesmo. Na atitude da redução fenomenológica, porém, o mundo não é tomado como
realidade que tem uma validade de ser em si mesma, nela, o mundo é tomado apenas
como “fenômeno da realidade”, ou seja, como o mundo que se dá e aparece à consciência.

Husserl observa que a epoché não muda nada no mundo, o que muda é o modo de
se relacionar com o mundo e de tomar o mundo em relação à consciência. A percepção
de uma mesa, continua sendo percepção de uma mesa. Só que agora, mesa não é tomada
como uma coisa ocorrente aí num mundo que é absolutamente dado. A mesa aparece
como objeto que se dá à consciência, como o que percebido na percepção. Cada vivência
da consciência é cada vez consciência disso e daquilo. Cada vivência da consciência
intenciona, visa, alguma coisa e traz em si esta coisa no modo do seu ser-intencionado.
Isso que é visado pela vivência da consciência e que ela traz em si mesma no modo do
seu ser-intencionado chama-se “cogitatum”. Na redução transcendental, pois, a mesa não
é mais uma coisa dada num mundo que existe de modo absoluto, incondicionado; a mesa
é um objeto visado pela consciência, no caso, ela é o percebido do perceber. O percebido
está no percepiente segundo o modo da percepção. A percepção de uma casa visa uma
casa, esta casa individual, mas a visa no modo da percepção. A recordação de uma casa
visa (intenciona) uma casa no modo da recordação (como casa recordada). Outro modo é
o de uma casa que é fantasiada. Outro modo é ainda o de uma casa que está dada de modo
perceptivo e que é objeto de um juízo predicativo. Em todas estas vivências da
consciência, a casa é objeto intencional. Intencionalidade é, portanto, a propriedade da
consciência de ser consciência de algo, de trazer em si, enquanto cogito, o seu cogitatum.

O § 15 trata de reflexão natural e reflexão transcendental. O ato da consciência


pode ser reto e direto, voltado para aquilo de que se é consciente, ou pode flexionar de
volta para si mesmo, numa espécie de retrorreferência. Neste caso, temos uma re-flexão.
Por exemplo, eu posso voltar-me para uma casa numa percepção. Ou posso perceber a

25
minha própria percepção da casa, atentar para ela. Neste caso, pratico um ato de reflexão.
Há a reflexão natural, isto é, habitual, cotidiana, ou então, a reflexão psicológica, em que
o mundo é o chão dado de antemão sobre o qual se vive se pratica a reflexão. E há a
reflexão transcendental, em que a posição (tese) do mundo como absoluta dado é inibida
(epoché). A reflexão transcendental deve ser livre deste preconceito. Depois, se na
reflexão natural eu sou um participante interessado no mundo, na reflexão transcendental
eu sou um expectador desinteressado do que se dá na consciência em sua correlação com
o mundo. Neste caso os dados objetivos do mundo são tomados como “cogitata” (plural
de cogitatum), isto é, como objetos para os atos da consciência, e apenas assim (cogitata
enquanto cogitata).

O § 16 apresenta um excurso sobre o “ego cogito” como princípio necessário da


reflexão, tanto psicológica, quanto transcendental. O ego concreto é o tema da descrição
fenomenológica na reflexão transcendental. “Ou, para dizer de modo mais preciso, eu, o
fenomenólogo que medita, atribuo-me a tarefa universal do desvendamento (Enthüllung)
de mim mesmo enquanto eu transcendental na minha plena concreção, por conseguinte,
com todos os correlatos intencionais aí incluídos” (p. 76). Aqui vale observar a palavra
“concreto”: vem de “concretum”, que é particípio passado de “concrescere”: concrescer.
Concreto é, portanto, o que concresceu (o que cresceu com). A questão é: com o que
concresce o ego? Como se dá a sua concreção? Resposta: com os “correlatos
intencionais”, isto é, com aquilo de que a consciência tem consciência. A experiência
transcendental desvenda assim um ego concreto correlacionado com o mundo.

O § 17 fala da dupla direção de investigação da correlação consciência-mundo. A


investigação pode ir na direção do cogito, e, então, ser noética (nóesis = modos de
consciência); e pode ir na direção do cogitatum, e, então, ser noemática (nóema = modos
de ser daquilo de que se tem consciência). Fala também da síntese como forma originária
da consciência. Para que eu perceba um cubo, por exemplo, como um único e mesmo
cubo, não obstante os seus múltiplos aspectos, mostrados em diversos momentos e
perspectivas, eu preciso realizar uma síntese (composição) destes aspectos múltiplos.
Também a recordação se dá graças à elaboração da síntese.

O § 18 fala da identificação como forma fundamental de síntese. Esta é uma


síntese que decorre passivamente e que abrange tudo, “sob a forma da contínua
consciência interna do tempo”. Uma coisa é a temporalidade objetiva do cubo percebido.
Outra coisa é a temporalidade interna do perceber de um cubo. O ato de perceber tem
26
trechos e fases diversos. Em cada fase do perceber, alguns aspectos são mostrados. Mas
não seria possível perceber um cubo como o único e mesmo cubo, se todas as aparições
do cubo não pudessem ser ligadas a uma consciência “em que se constitui a unidade de
uma objetividade intencional, enquanto a mesma de uma multiplicidade de modos de
aparição” (p. 80). O objeto da consciência (tanto real, como o físico e o psíquico, quanto
o categorial) é, portanto, constituído em sua unidade e identidade na consciência e pela
consciência. É, enquanto constituído, uma realização intencional (intentionale Leistung)
da síntese da consciência. Há a síntese passiva, que é de objetos reais; e a síntese ativa,
que é de objetos categoriais.

O § 19 fala de “atualidade e potencialidade da vida intencional”. Atualidade é o


caráter de ser que diz respeito ao que é ou está em ato, isto é, em obra, em ação.
Potencialidade é o caráter de ser do que é possível, não, porém, no modo de uma
possibilidade abstrata, mas sim no modo de uma possibilidade concreta, de uma
virtualidade (possibilidade pré-delineada): “Toda e qualquer atualidade implica, antes, as
suas potencialidades, que não são possibilidades vazias, mas, sim, possibilidades que, na
vivência atual respectiva, estão intencionalmente pré-delineadas quanto ao conteúdo e,
sobretudo, dotadas do caráter de serem algo a realizar pelo eu” (p. 82). Isso quer dizer
que cada vivência traz consigo um horizonte intencional, que pré-delineia as possíveis
mudanças no fluxo temporal da vida da consciência. A percepção, por exemplo, sempre
traz consigo retensão e protensão. Vamos tentar esclarecer isto. Percepções surgem de
percepções e conduzem a percepções. Uma percepção só é possível enquanto provém de
outras ou conduz a outras. A coisa só se dá como idêntica a partir de uma captação
dinâmica, constituída no fluxo motivacional de retensões e protensões, que, por sua vez,
supõe o transcendental e-assim-por-diante da percepção. Para termos uma coisa da
percepção de modo “plástico” diante de nós, precisamos apreender a visão particular
como um momento somente no contexto vivencial do andar em torno dela. A vivência
particular presente contém vivências futuras e passadas, ou melhor, vivências pós-
presentes e ante-presentes. O intuitivo ter-diante-de-si uma coisa espacial em sua
plasticidade e concreticidade abraça a coisa, por assim dizer, com dois braços: o braço
das retenções e o das protensões. A figura plástica e concreta da coisa da percepção é uma
forma de realidade efetiva-dinâmica, que só pode ser captada em sua mobilidade. O estar
no espaço da coisa é, fundamentalmente, um preencher espaço, um ser-arrumado e um
estar-posicionado dentro de um contexto espacial de múltiplos “em” possíveis. Daí resulta

27
que o perceber de uma coisa como coisa espacial supõe já sempre a vivência do tempo.
Cada ato de percepção traz consigo o horizonte temporal que a ele pertence, o qual deve
ter sido já sempre possibilitado, a fim de que possam se dar protensões e retensões, mas
também recordações e expectativas. Contemplando uma determinada coisa da percepção,
eu vejo não somente esta coisa, mas também o meu advir a ela, bem como o meu partir
dela. Cada percepção atual é a contração de uma história perceptiva. Eu vejo tanto
melhor quanto mais eu deixo estar viva, na mirada atual da coisa, esta história, que é a
história da minha percepção da coisa e, ao mesmo tempo, a “história” da coisa percebida
mesma.

O § 20 trata do “tipo peculiar da análise intencional”. Análise quer dizer


decomposição, partição. A análise intencional consiste no “desvendamento (Enthüllung)
das potencialidades implicadas nas atualidades de consciência, desvendamento com que
se realiza, sob o aspecto noemático, a explicitação (Auslegung), o tornar distinto
(Verdeutlichung) e, eventualmente, a aclaração (Klärung) do que é visado segundo a
consciência, do sentido objetivo” (p. 84). Todo cogito é um visar. O cogitatum, o visado,
por sua vez, é um “plus”, um mais, no sentido de que ultrapassa o que é explicitamente
visado e visa junto algo de implícito. Na análise intencional, por outro lado, o
fenomenólogo “penetra, com o seu olhar reflexivo, na vida cognitiva anônima, desvenda
os processos sintéticos determinados dos modos de consciência múltiplos e, ainda mais
para trás, os modos do comportamento egoico que tornam compreensível o ser-pura-e-
simplesmente-visado-para-o-eu, o ser intuitivo ou não intuitivo do objectual” (p. 85-86).
Pela análise intencional, o fenomenólogo descobre que, “no fluxo da síntese intencional,
que cria a unidade em toda consciência e que constitui, noética e noematicamente, a
unidade do sentido objetivo, impera uma típica (Typik) de essência, captável por conceitos
rigorosos” (p. 88).

O § 21 apresenta o objeto intencional como “fio condutor transcendental”. A


“típica de essência” generalíssima do fluxo da síntese intencional se apresenta no
esquema ego-cogito-cogitatum. A ela pertencem uma série de tipos particulares
(Sondertypen) noético-noemáticos: percepção, retenção, recordação iterativa,
expectativa, significação, ilustração intuitiva analógica, etc. Os objetos intencionais
correlatos podem trazer o caráter de objetividades reais (que se constituem numa síntese
passiva) ou então de objetividades categoriais (que se constituem numa síntese ativa: atos
de síntese e atos de ideação). Modos de ser dos objetos correspondem a modos de ser da

28
consciência. Estes, os modos de ser da consciência, permanecem sempre vinculados a
uma típica estrutural (Strukturtypik). “Explicitar sistematicamente essa típica estrutural
é precisamente a tarefa da teoria transcendental, a qual, quando toma como fio condutor
uma generalidade objetiva, se chama teoria da constituição transcendental do objeto em
geral enquanto objeto da correspondente forma ou categoria, ou, no ponto supremo, da
correspondente região” (p. 90). A teoria transcendental requer assim, por um lado, uma
teoria do objeto em geral, e, por conseguinte, uma teoria dos diversos tipos de
objetividades (reais ou categoriais), e, por outro lado, uma teoria da percepção, uma teoria
da significação, uma teoria do juízo, uma teoria da vontade, etc. Objetos reais e ideais
são, assim, fio condutor para a investigação dos modos de consciência em que eles são
constituídos. Para além dos “objetos objetivos”, temos também os “objetos subjetivos”
(vivências imanentes). Toda esta investigação constitutiva (que trata da constituição dos
objetos e suas objetividades nos modos de ser da consciência) remetem de volta para o
“ego na universalidade do seu ser e da sua vida”:

Se tomarmos o mundo objetivo unitário como fio condutor


transcendental, então ele remete para a síntese das percepções objetivas
e das outras intuições objetivas ocorrentes, síntese que se estende ao
longo da unidade da vida no seu todo e em virtude da qual o mundo não
só está a todo o momento consciente como unidade, como pode mesmo
tornar-se objeto temático. Em conformidade, o mundo é um problema
egológico universal, do mesmo modo que o é, na direção puramente
imanente do olhar, o todo da vida de consciência na sua temporalidade
imanente (p. 91).

O § 22 trata, justamente, da “ideia da unidade universal de todos os objetos”, ou


seja, do mundo objetivo, da tarefa do esclarecimento constitutivo dele. “Cada objeto, cada
objeto em geral (também cada objeto imanente), designa uma estrutura regular do ego
transcendental” (p. 91). A subjetividade transcendental não é um caos de vivências
intencionais, nem mesmo um caos de tipos constitutivos. Em lugar do caos temos uma
ordem estrutural de tipos de vivências correlacionados com os tipos de objetividades. “A
totalidade dos objetos e dos tipos de objeto concebíveis – ou, dito de modo transcendental,
concebíveis para mim enquanto ego transcendental – não é nenhum caos e,
correlativamente, também não o são a totalidade dos tipos de infinitas multiplicidades que
correspondem aos tipos de objeto, os quais se pertencem noética e noematicamente, de
acordo com a sua síntese possível” (p. 91-92).

29
1.2.5. CONSTITUIÇÃO DA REALIDADE EFETIVA / DO MUNDO

Exercitar o método fenomenológico é exercer a liberação da constituição


intencional dos feitos e fatos da consciência pura.

Nas Meditações Cartesianas, Husserl exercita o método da liberação da


constituição dos feitos e fatos da consciência pura.

A terceira meditação trata da “problemática constitutiva”. À luz desta coloca a


questão sobre “verdade e efetividade” (Wirklichkeit). O § 23 traz à tona que a investigação
constitutiva descobre como correlatos, por um lado, a razão (Vernunft) e o ser e a verdade;
e, por outro lado, a desrazão (Unvernunft) e o não-ser e a falsidade. Mas, o que significa
“razão”? Husserl diz:

Razão não é nenhuma faculdade contingente e fática, não é um


nome para fatos contingentes possíveis, mas antes para uma forma
estrutural, essencial e universal, da subjetividade transcendental em
geral. Razão remete para possibilidades de confirmação, e estas, por seu
turno, ultimamente para o tornar evidente e para o ter-na-evidência (p.
94).

O § 24 trata, justamente, do tema da “evidência como autodoação” e de suas


“variações”. Evidência quer dizer “autoaparição”, ou seja, o “apresentar-se-a-si-próprio”,
o “dar-se-a-si-próprio de uma coisa, de um estado-de-coisas, de uma generalidade, de um
valor, etc.”. Evidência é, portanto, um modo de autoaparição, autoapresentação,
autodoação, no modo definitivo da “coisa mesma aí” (Selbst da), do “intuível
imediatamente” (unmittelbar anschaulich), do “originalmente dado” (originaliter
gegeben). É o oposto de visar algo (uma coisa, um estado de coisas, uma generalidade,
um valor), de modo confuso ou vazio. Há uma conexão entre evidência e experiência.
Experiência, num sentido comum, é uma evidência destacada, singular, especial. Do
mesmo modo, evidência, qualquer que seja ela, é experiência, num sentido o mais vasto,
e, no entanto, essencialmente unitário. No sentido mais amplo, evidência é um “fenômeno
originário universal da vida intencional” (ein allgemeines Urphänomen des intentionalen
Lebens) (p. 94), é um “traço fundamental da vida intencional qualquer que seja ela”
(Grundzug des intentionalen Lebens überhaupt) (p. 95). Husserl esclarece:

Cada consciência em geral ou tem já o caráter da evidência (ou


seja, é autodoadora a respeito do seu objeto intencional) ou está, por
essência, ordenada à passagem para a autodoação, por conseguinte, à

30
passagem para sínteses de confirmação, que pertencem, por essência,
ao domínio do eu posso (p. 95).

Quando a consciência-de-algo tem o seu visado se autodoando direta e


imediatamente, então ela está na experiência da evidência. Mas a consciência pode visar
algo de modo vazio, apenas a modo de uma presunção (ato de presumir). Então ela precisa
de uma confirmação (Bewährung): se aquilo que ela presume é e é tal como ela presume
ou não. No entanto, no processo da confirmação, a resposta pode ser afirmativa ou
negativa. Isto é, pode dar-se a evidência de que a coisa mesma (ou o estado-de-coisas,
etc.), não simplesmente não é, ou não é tal como se presumia. No dizer de Husserl: “no
processo de confirmação, a confirmação pode reverter-se no seu negativo, pode surgir,
em vez do próprio visado, um outro, e seguramente no modo do ele próprio, com o que
a posição do objeto visado fracassa e este assume, pelo seu lado, o caráter de nulidade”
(p. 95). Assim, pode-se ter uma evidência positiva (de que algo é e é assim como se
presumia) ou uma evidência negativa (de que algo não é e não é assim como se presumia).
Com outras palavras “não-ser (Nicht-sein) é apenas uma modalidade do ser puro e simples
(Modalität des Seins schlechthin), da certeza de ser (Seinsgewissheit) ” (p. 95). A
evidência tem como correlatos o ser e não-ser e suas modificações modais: ser-possível,
ser-provável, ser-duvidoso, etc. Também os atos afetivos (do sentir) e volitivos (do
querer) têm a sua própria experiência de evidência. Os atos do sentir têm como correlatos
os valores; os atos do querer têm como correlato o bem. Assim, o sentir pode ter ou não
ter a evidência do ser-valioso em referência àquilo que se sente, o querer pode ter ou não
ter a evidência do ser-bom em referência àquilo que se quer.

O § 25 trata de “efetividade” [realidade efetiva (Wirklichkeit)] e quase-efetividade


[como-se-fosse-realidade-efetiva (Quasi-Wirklichkeit)]. Realidade efetiva e quase-
realidade efetiva são determinados em referência às modalidades de ser. São modalidades
da efetividade: ser efetivamente, ser efetivamente provável, ser efetivamente duvidoso,
ser efetivamente nulo (nichtig), etc. A estas correspondem modos de consciência da
posicionalidade (atos que põem algo sendo efetivamente, como sendo efetivamente
provável, duvidoso, nulo, etc.). A quase-efetividade pertence ao domínio da não-
efetividade, da não realidade-efetiva, ou melhor, da possibilidade. Por “possibilidade”
entende-se, aqui, “simples concebibilidade” (blosse Erdenklichkeit). O “possível”
coincide, aqui, com o “imaginável”, com o “pensável”, com o “concebível”. Vem à luz
num figurar-se (Sich-denken), num fantasiar (phantasieren), “como se algo fosse”. O

31
modo de consciência da fantasia não põe algo como efetivamente dado, apenas põe algo
como se fosse, como se fosse assim e assim, etc. Ele desvela, assim, possibilidades de
ser. Também a fantasia (o como-se-fosse) tem uma função importante como “modo de
tornar evidente”, pois ela oferece uma “intuição prefigurativa” (vorverbildlichenden
Anschaung). Trata-se de uma visão que de antemão figura, imagina, como seria algo. Esta
intuição pode conceder preenchimento a um presumir vazio, isto é, pode confirmar ou
não uma presunção. Trata-se de uma “intuição que traz implicitamente consigo o sentido
de que, se chegasse a ser direta, autodoadora, daria um preenchimento (Erfüllung =
preenchimento, cumprimento, plenificação) que confirmaria a visada no seu sentido de
ser” (p. 96). Quer dizer: a intuição prefigurativa, alcançada na fantasia, oferece a
“possibilidade de ser” de um conteúdo.

O § 26 trata da “efetividade como correlato da confirmação evidente”. Na crença,


nós tomamos objetos como válidos para nós (objeto, aqui, tomado em sentido bem amplo:
coisas, vivências, números, estados-de-coisa, leis, teorias, etc.). A crença é um modo
posicional da consciência (ela põe algo como válido-para-mim). A segurança, porém,
sobre o ser efetivo de alguma coisa só se alcança mediante a “síntese da confirmação
evidente, a qual é autodoadora da reta ou verdadeira efetividade” (p. 97). Só a evidência
“faz com que tenha sentido para nós o ser efetivo, verdadeiro, a reta validade de um objeto,
seja qual for a sua forma ou tipo, com todas as determinações que, para nós, lhe pertencem
sob o título de ser-assim verdadeiro” (p. 97). A verdade é entendida, aqui, como
adequação entre o que se presume e o que se mostra na experiência da evidência, ou seja,
como “síntese de confirmação”, que é operada pela razão, entendida, como acima (p. 94),
a modo de forma estrutural, essencial e universal, da subjetividade transcendental em
geral. Esta, a subjetividade transcendental, é o sustentáculo, a condição de possibilidade,
da síntese da confirmação, é o seu “fundamento transcendental último” (p. 97).

O § 27 fala de “evidência habitual e potencial” e trata da constituição daquilo a


que nos referimos como “objeto que está sendo” ou “objeto que é” (seiendes Gegenstand).
“Cada evidência institui para mim uma posse permanente”. “Posse” (Habe): algo que eu
tenho, algo a que eu sempre de novo me atenho, com o que eu posso sempre de novo me
relacionar (haben = ter; ater-se a; relacionar-se com). A realidade efetiva é algo que me é
dado numa evidência habitual, pois eu posso sempre de novo retornar a ela. Também a
evidência de dados imanentes me é dada numa evidência habitual. Eu posso, sempre de
novo, me recordar de algo, isto é, acessar na minha memória uma determinada lembrança

32
de determinado fato vivido. Este “sempre de novo” dá o caráter de iteração (repetição) da
evidência habitual. O “eu posso sempre de novo” dá a característica de potencialidade da
evidência habitual (potentia > potere = poder). Por isso Husserl fala de “evidência
habitual e potencial”. O poder repetir uma evidência adquirida é que constitui o sentido
noemático do “objeto que está sendo”, do “objeto que é”, no sentido de um ser que
persiste e permanece (stehendes und bleibendes Sein). O sentido noemático “Ser
permanente” (bleibendes Sein), atribuído a um ente real ou ideal, ou a um mundo real ou
ideal, se constitui, pois, a partir de uma evidência habitual e potencial, isto é, a partir de
uma evidência adquirida que pode ser sempre de novo restituída. O sentido noemático do
“em si” de um ente, de um mundo, de uma verdade pressupõe a evidência habitual e
potencial. A evidência habitual e potencial, por sua vez, se funda em “certas
potencialidades fundadas no eu transcendental e na sua vida” e remete para
“potencialidades da infinitude das visadas que estão sinteticamente referidas a uma e
mesma coisa em geral” e também para “potencialidades da sua confirmação” (p. 98).

O § 28 fala da “evidência presuntiva da experiência do mundo” e do “mundo como


ideia correlativa de uma perfeita evidência da experiência”. O que chamamos de “mundo”
é um sentido noemático de ser (= a totalidade de tudo o que está efetivamente sendo ou
de tudo o que efetivamente é). Ao mundo atribuímos o caráter de transcendência, isto é,
o caráter de ser “em si”, de ultrapassar a consciência, de transcendê-la. O “em si” no
entanto é um sentido de ser noemático, constituído na experiência e desde a experiência,
portanto, num “para nós”. Não há mundo sem consciência de mundo. O mundo
transcendente é, pois, constituído a partir da subjetividade transcendental:

Que o ser do mundo seja, deste modo e mesmo na evidência


autodoadora, transcendente à consciência e que permaneça
necessariamente transcendente, é coisa que não é alterada por a vida da
consciência ser a única instância em que todo o transcendente se
constitui como algo inseparável, e por ela, especialmente enquanto
consciência de mundo, trazer em si o sentido mundo e também o sentido
este mundo que efetivamente é. De um modo derradeiro, é somente o
desvendamento dos horizontes de experiência que esclarece a
efetividade do mundo e sua transcendência, e que as patenteia, então,
como inseparáveis do sentido e da efetividade de ser da subjetividade
transcendental constituinte (p. 99).

“Mundo transcendente, efetivamente existente” é, portanto, um sentido noemático


de ser constituído a partir da subjetividade transcendental. “Mundo” é uma ideia: “uma

33
ideia correlativa à ideia de uma perfeita evidência de experiência”, uma ideia “de uma
síntese completa de experiências possíveis” (p. 100).

O § 29 trata de “regiões ontológico-formais e ontológico-materiais” no contexto


da tarefa da investigação da “constituição transcendental” da “objetividade que é”
(seiende Gegenständlichkeit). Esta investigação inclui, por um lado, investigações
ontológico-formais, que têm em vista o sentido noemático “objeto em geral” (Gegestand
überhaupt); por outro lado, investigações ontológico-materiais, que visam regiões do
mundo objetivo (como, por exemplo, natureza, comunidade humana, cultura, etc). A
investigação da constituição do objeto em geral, como também, das regiões do mundo
objetivo requer o “desvendamento da intencionalidade”, ou seja, a elucidação de como a
“edificação intencional” das suas “evidências constitutivas” (p. 101).

1.2.6. EGOLOGIA: EGO TRANSCENDENTAL E PROBLEMAS CONSTITUTIVOS

A quarta meditação trata do desdobramento dos problemas constitutivos do ego


transcendental mesmo. O § 30 se refere ao “ego transcendental” como “inseparável das
suas vivências”. Afirma que “o ego transcendental (ou a alma, no paralelismo
psicológico) só é o que é em relação com objetividades intencionais” (p. 103). Os objetos
intencionais podem ser imanentes (que se dão numa experiência interna da consciência)
ou transcendentes (mundanos: que se dão numa experiência externa da consciência). O
ego transcendental tem como correlatos sistemas de objetos intencionais, quer imanentes,
quer transcendentes.

O § 31 trata do “eu” como “polo idêntico das vivências”. “O próprio ego é para si
um ser numa evidência contínua, portanto, a si em si mesmo continuamente se
constituindo enquanto ser” (p. 104). O “ego não se capta apenas como vida fluente, mas,
sim, como eu, como o eu que vive isto e aquilo, que vive através deste e daquele cogito
como o mesmo” (p. 104). Assim, a correlação intencional tem dois polos. Um polo é o do
“cogitatum”, que se abre como sistemas de objetos intencionais. Outro polo é o do
“cogito” que reconduz a um “eu idêntico”, isto é, que permanece o mesmo, que é algo
como a fonte das “cogitationes” e que “vive em todas as vivências, enquanto consciência
ativa ou enquanto afetado, e que, através e ao longo das vivências, está referido a todos
os polos-objeto” (p. 104).

34
O § 32 trata do eu como “substrato de habitualidades”. A vida do eu se rege pela
“legalidade da gênese transcendental”. Em virtude desta legalidade, “com cada ato que
dele irradia com um novo sentido objetivo, este eu adquire uma propriedade nova
permanente” (p. 104). O exemplo dado por Husserl é o da decisão. Se eu, num ato
judicativo (= de julgar), me decido pelo ser ou ser-assim de algo, o ato é efêmero, mas
“eu sou, de um modo permanente, o eu que se decidiu desta ou daquela maneira”, ou seja,
um eu que tem tal ou tal convicção. Decisões valorativas (de atos de sentimento) e
volitivas (de atos de vontade) também criam hábitos, isto é, disposições permanentes que
determinam o eu deste ou daquele modo. “Eu decido-me – a vivência de ato deflui, mas
a decisão persiste duradouramente na sua validade, quer passivamente mergulhe num
sono pesado, quer viva em outros atos; correlativamente, eu sou, de agora em diante,
aquele que está assim decidido, e sou-o enquanto não tiver abandonado a decisão” (p.
105). O eu, nas decisões que toma, nas convicções que cria, “mostra um caráter pessoal”
(p. 106).

O § 33 trata da “plena concreção do eu enquanto mônada” e põe “o problema da


sua autoconstituição”. Aqui aparece a “palavra leibniziana” “mônada”. A mônada não
simplesmente o eu enquanto polo idêntico e substrato de habitualidades, mas sim o “ego
tomado na sua plena concreção” (p. 106). Este ego traz consigo a evidência de um mundo
circundante, que é para ele de maneira constante. Este ego traz consigo também a
evidência de si mesmo. “Eu sou para mim mesmo e estou-me dado constantemente,
através da evidência da experiência, como eu próprio (Ich selbst) ” (p. 107). Isso levanta
o problema sobre a autoconstituição do ego, isto é, como é que o ego se constitui a si
mesmo. Como o ego é a base transcendental da constituição de todos os objetos possíveis,
então a investigação sobre a autoconstituição do ego decide sobre os problemas das
constituições de todos os tipos de objetos e também da constituição do objeto em geral:

Dado que o ego concreto monádico compreende a inteira vida


de consciência, efetiva e potencial, será então claro que o problema da
explicitação fenomenológica (phänomenologische Auslegung) deste
ego monádico (o problema da sua constituição para si próprio) deve
compreender todos os problemas constitutivos em geral. Como
consequência subsequente, resulta a coincidência da fenomenologia
desta autoconstituição com a Fenomenologia em geral (p. 107).

O § 34 trata da configuração principial (prinzipielle Ausgestaltung) do método


fenomenológico e da análise transcendental enquanto eidética. Surge a necessidade de
refletir mais uma vez sobre o método fenomenológico antes de clarificar melhor a

35
fenomenologia genética já iniciada com a apresentação do eu como polo e substrato de
habitualidades. Ao mesmo tempo este § 34 faz uma passagem da descrição da
experiência transcendental para o método da descrição eidética. A redução
fenomenológica conduziu ao ego transcendental monádico, enquanto ego concreto, ego
fático, que é absoluto (solto em si mesmo), uno e único. A descrição eidética dá um passo
a mais. Ela visa “possibilidades puras (não factuais) e “necessidades de essência”,
estruturas “a priori”, tipos de vivências intencionais (por exemplo, percepção, retenção,
recordação iterativa, asserir, ter-prazer-em-algo, et.). Se a descrição abstrai (prescinde)
de toda factualidade e varia as possibilidades puras (não factuais) de uma vivência, por
exemplo, da percepção, ela capta, então, o seu eidos. O eidos da percepção é a sua
essência, a sua estrutura geral típica, o que implica nas necessidades de essência que
regem a priori o dar-se de suas possibilidades, “cuja extensão ideal é constituída de todas
as percepções idealiter [idealmente] possíveis enquanto concebibilidades [o que se pode
imaginar e conceber] puras” (p. 109). Necessidade de essência é aquilo que a priori rege
toda a possibilidade e se aplica a qualquer caso singular. Assim, uma análise eidética da
percepção buscaria o que é que necessariamente e geralmente se dá em toda e qualquer
percepção. A essência da percepção é aquilo sem o que uma percepção não pode ser
percepção. A evidência intuitiva das possibilidades puras (que se obtém pela imaginação
que varia as possibilidades puras) tem como correlato uma “consciência de generalidade
intuitiva e apodítica”. A intuição eidética é a visão (apreensão) de algo de universal e
incondicionado: “O próprio eidos é algo universal, visto ou visível, algo puro
incondicionado, a saber, não condicionado por qualquer fato segundo o seu sentido
intuitivo próprio” (p. 109). O eidos é algo de a priori: “Ele está antes de todos os
conceitos, no sentido de significações verbais, as quais, enquanto puros conceitos, terão
antes de se ajustar a ele” (p. 109). Assim como se pode alcançar uma intuição eidética de
um tipo de vivência, por exemplo, da percepção, pode-se também alcançar uma intuição
eidética do ego transcendental. Agora não se considera mais este ou aquele ego
transcendental fático, mas sim o “eidos ego” (p. 110). A intuição eidética do ego se dá à
medida que o fenomenólogo, partindo de seu ego fático, pela imaginação, varia as
possibilidades de ego, abstraindo das factualidades, tentando apreender aquilo que
necessariamente, universalmente e a priori é constitutivo de todo e qualquer ego enquanto
ego.

A Fenomenologia eidética pesquisa, portanto, o a priori


universal sem o qual não seria concebível o eu e um eu transcendental

36
em geral, ou, dado que toda e qualquer generalidade de essência tem o
valor de uma legalidade inquebrantável, ela pesquisa a legalidade
universal de essência que prescreve o seu sentido possível (juntamente
com o seu oposto, o contrassenso) a toda e qualquer asserção fatual
sobre o transcendental (p. 110).

A fenomenologia eidética é a primeira realização de uma ciência filosófica, a


saber, da “Filosofia Primeira”. É preciso passar do fato e factual para as possibilidades
puras e daí paras as necessidades de essência e seus princípios apodíticos. Junto com a
redução fenomenológica, a intuição eidética é um momento essencial do método
fenomenológico transcendental: “Assim nos elevamos à visão intelectiva metódica de
que, a par da redução fenomenológica, a intuição eidética é a forma fundamental de
todos os métodos transcendentais particulares, que ambas definem de ponta a ponta o
reto sentido de uma Fenomenologia Transcendental” (p. 111).

O § 35 traz um excurso sobre a “Psicologia interna eidética”. A psicologia é


ciência positiva (não transcendental). Ela é empírica: desponta da experiência interna. Há,
no entanto, certo paralelismo entre a fenomenologia transcendental e a psicologia interna
eidética. O que é o ego transcendental concreto (monádico) na fenomenologia
transcendental é o “eu-homem”, respectivamente, a alma, na psicologia interna. Também
à psicologia pode-se aplicar o método da intuição eidética. Uma psicologia interna
eidética seria uma “teoria eidética pura da alma”. No caso, a intuição eidética visaria o
“eidos alma”.

O § 36 trata do “ego transcendental como universo de formas possíveis de


vivência”. “O a priori universal, que pertence a um ego transcendental enquanto tal, é
uma forma de essência que encerra em si uma infinidade de formas, de tipos apriorísticos
de possíveis atualidades e potencialidades da vida, juntamente com os objetos a constituir
nela como sendo efetivamente” (p. 112). As formas ou tipos singulares de vida não se
compõem arbitrariamente, quer no espaço (coexistência) quer no tempo (sucessão). A
compossibilidade (o ser compossíveis) dos tipos singulares de vida se regula de modo
essencial. Assim, a possibilidade ou a potencialidade de uma criança tornar-se cientista
quando adulta, está assentada numa necessidade de essência: a do homem enquanto
“animal rationale”. Um cientista é uma forma possível de vida, mas esta forma se assenta
no ser racional do homem. Entretanto, um homem não pode ser, desde criança, cientista.
Ele precisa de tempo para desenvolver a potencialidade desta forma de vida. Há, pois,
“legalidades de essência universais da coexistência e da sucessão temporais egoicas”.

37
Pensemos, por exemplo, nas restrições que as idades da vida impõem aos seres humanos.
A temporalidade rege todas as realizações das formas ou tipos de vida, suas possibilidades
de coexistir e de se suceder: “Pois, seja o que for que surja no meu ego e, eideticamente,
num ego em geral – sejam vivências intencionais, unidades constituídas, habitualidades
egoicas –, tudo tem a sua temporalidade e toma parte, neste aspecto, no sistema de formas
da temporalidade universal, com a qual se constitui para si mesmo cada ego concebível”
(p. 113).

O § 37 aprofunda o tema da temporalidade. Trata do “tempo como forma universal


de toda e qualquer gênese egológica”. As leis essenciais de compossibilidade de formas
de vida (potencialidades e atualidades) são regras que regulam a simultaneidade e a
sucessão do seu poder-ser. São leis do “se – então”, logo, leis de causalidade, em sentido
lato. No entanto, como a palavra “causalidade” é carregada de preconceitos e nos induz a
pensar segundo o âmbito dos acontecimentos físicos – e, ainda por cima,
mecanicisticamente – então é melhor evita-la. No campo da psicologia fenomenológica
(interna - intencional – eidética) e no campo da fenomenologia transcendental, é melhor
falar de “motivação”. Retoma-se então a regência universal da temporalidade:

O universo das vivências que constituem o teor de ser real


(reell) do ego transcendental é um universo compossível unicamente na
forma de unidade universal do fluir, na qual todas as singularidades se
inserem elas próprias como aí defluindo. Portanto, já esta forma
generalíssima de todas as formas particulares de vivências concretas e
das formações que, no seu fluxo, se constituem como fluentes, é a forma
de uma motivação que a tudo enlaça e que domina, em particular, cada
singularidade, a qual também poderíamos enunciar como uma
legalidade formal de uma gênese universal, de acordo com a qual se
constituem unitariamente, sempre de novo, passado, presente e futuro,
numa certa forma estrutural noético-noemática de modos de doação
fluentes (p. 113-114).

O tempo é, assim, a forma das formas, isto é, a forma que in-forma, dá forma, a
todas as vivências da consciência, a seu fluxo e defluxo. No interior desta forma universal
da temporalidade é que decorre a vida “como uma marcha motivada de operatividades”,
responsáveis pela gênese do ego. “O ego constitui-se para si mesmo na unidade de uma
história” (p. 114). Por outro lado, com a autoconstituição do ego é que se dá a
constituição do mundo objetivo – quer da natureza, quer da cultura (ciências, belas-artes,
técnica), quer de “personalidades de ordem superior” (Estado, Igreja), etc. Com a
fenomenologia genética, isto é, com o tema da gênese do ego e da gênese do mundo
objetivo, passamos de uma fenomenologia estática para uma fenomenologia dinâmica.

38
O § 38 entra na fenomenologia genética ressaltando a gêneses constitutiva em suas
duas formas fundamentais: “gênese ativa” e “gênese passiva”. Na gênese ativa “o eu
funciona, através de atos egoicos específicos, como produtor, constituinte” (p. 116). Ao
domínio da gênese ativa pertencem as “operações da razão prática”, tomando-se esta num
sentido bem amplo, que inclui também a razão lógica. Aqui se constituem novos objetos:
matemáticos, lógicos, etc. Atos de síntese e atos de ideação produzem objetos que só são
apreensíveis por meio da intuição categorial. As atividades da razão constituem ou
produzem, assim, objetos que têm o caráter de irrealidade, isto é, de idealidade.
Atividades espirituais iniciam-se com a “captação ativa” da intuição categorial.
Atividades racionais-espirituais da consciência, porém, pressupõem algo de pré-dado, de
que elas retiram a matéria para dar forma. Esta matéria é dada numa síntese passiva.
Apresenta-se, assim, “a coisa pré-dada na intuição passiva”, que é unitária, isto é, uma
captação de uma coisa singular, una na sua forma, não obstante os seus múltiplos modos
de aparição. Esta síntese passiva tem, pois, uma história. Assim, a percepção das coisas
têm uma história. Na nossa infância foi-nos preciso aprender a ver as coisas, antes de nos
tornarmos capazes de apreender objetos lógicos, matemáticos, enfim, objetos que só se
nos aparecem numa intuição categorial. Graças à gênese passiva o eu tem
incessantemente uma “cercania de objetos”. Para poder ver objetos como substratos de
propriedades é preciso ter sido exercitado na gênese passiva. O objeto como substrato de
propriedades é a forma final de uma gênese, o que remete, então para uma instituição
originária desta forma. Para se poder ver uma coisa espacial, um objeto cultural, um
utensílio como tais também é preciso ter sido exercitado na gênese passiva.

O § 39 trata da associação como princípio da gênese passiva. “Associação é um


conceito fundamental fenomenológico-transcendental” (p. 119). É um “título da
intencionalidade” e, como tal, difere do antigo conceito de associação e de leis de
associação (Hume, etc.), “distorção naturalista dos autênticos conceitos intencionais
correspondentes” (p. 119). Ou seja: não se trata de uma legalidade empírica, que rege “a
complexão de dados numa alma – qualquer coisa como uma gravitação interna da alma”
(p. 119). Trata-se, antes, de “uma legalidade intencional de essência da constituição do
ego puro, um domínio de a priori inato sem o qual, portanto, um ego enquanto tal é
impensável” (p. 119). Diz respeito à gênese do ego, que acontece a partir de uma conexão
infinita de operações que se pertencem mutuamente de um modo sintético, em graus que

39
se devem conjugar por completo com a forma universal e persistente da temporalidade,
forma que abarca tudo o que surge como novo na consciência.

A fenomenologia genética da constituição das objetividades conduz a


fenomenologia a uma “teoria transcendental do conhecimento” (p. 120), que se difere da
teoria do conhecimento tradicional. Esta é anunciada no § 40. O problema da teoria do
conhecimento tradicional é o da transcendência. Trata-se de esclarecer a possibilidade do
conhecimento. Este problema surge na atitude natural, ou seja, permanece no terreno do
mundo dado. Se, com Brentano, reconhecermos que a intencionalidade é traço peculiar
de fundo da minha vida psíquica, e se os caracteres de ser evidentemente efetivo, pensado
como necessário, contrassenso, pensado como possível, provável, etc., são caracteres do
objeto intencional que surgem no domínio da minha consciência, então “toda e qualquer
fundamentação, toda e qualquer justificação da verdade e do ser decorrem, de ponta a
ponta, em mim, e a sua resultante final é um caráter no cogitatum do meu cogito” (p. 121).
Isto quer dizer: a justificação da verdade e do ser decorre na imanência da vida da
consciência. Daí surge a pergunta: “Como poderá a evidência (a clara et distincta
perceptio) reivindicar ser algo mais que um caráter de consciência para mim? Descartes
tentou resolver este problema, recorrendo à veracitas divina.

O § 41 afirma que este problema da transcendência, fundante da teoria do


conhecimento tradicional, é um pseudoproblema, ou seja, é, no fundo, um contrassenso:
“um contrassenso em que o próprio Descartes teve de cair por não ter topado com o
sentido autêntico da sua epoché transcendental e da redução ao ego puro” (p. 121). Numa
outra formulação, este pseudoproblema é assim apresentado: “como poderei sair da ilha
da minha consciência e como poderá adquirir significação objetiva aquilo que surge na
minha consciência como vivência da evidência? ” (p. 122). Ao formular este problema eu
já me apercebo como homem natural, já tenho também uma apercepção do mundo
espacial, já me apreendi como estando no espaço e como tendo um fora-de-mim. A
validade da apercepção do mundo já está pressuposta na posição da questão sobre a
possibilidade do conhecimento transcendente. A epoché e a redução fenomenológica,
seguida da autorreflexão sistemática do ego puro, que abre o campo da consciência em
sua totalidade, reconhece que a transcendência é constituída nesse ego puro:

A transcendência, em todas as suas formas, é um caráter de ser


imanente, que se constitui no interior do ego. Todo sentido que se possa
conceber, todo ser concebível, chame-se ele imanente ou transcendente,

40
cai no domínio da subjetividade transcendental, enquanto constituinte
de sentido e ser (p. 122).

Por essência, o universo do ser verdadeiro está correlacionado com o universo da


consciência. Por essência, ambos se correspondem – “e aquilo que se corresponde por
essência é, também, concretamente um, um na concreção absoluto única da subjetividade
transcendental” (p. 122). Assim, o universo do ser verdadeiro ou universo do sentido
possível (que inclui também o sem sentido) não é exterior ao universo da consciência –
tanto do eu quanto do nós transcendental (intersubjetividade transcendental). É para um
nós transcendental (intersubjetividade transcendental) que se dá, com efeito, a validade
de um mundo comum fático – “mundo objetivo a todos comum” (p. 123). Enfim, “todo
tipo de ser, tanto real (Real) como ideal (Ideal), se torna ele próprio compreensível
enquanto formação (Gebilde) constituída” na “operatividade da subjetividade
transcendental. Este tipo de compreensibilidade é a mais alta forma de racionalidade que
se pode conceber” (p. 124). A teoria do conhecimento transcendental tem a ver, então,
com a autorreflexão (Selbstbesinnung) sistemática e com a autoexplicitação
(Selbstauslegung) apriorística do ego puro e com a explicitação de todas as suas
constituições. A fenomenologia universal é, pois, um desdobramento da autoexplicitação
do ego, a qual se apresenta, em primeiro lugar, como

Uma autoexplicitação em sentido pleno, que mostra


sistematicamente como o ego se constitui como um ser próprio,
enquanto sendo em si e para si, e logo de seguida, em segundo lugar,
como uma autoexplicitação em sentido alargado, que mostra, a partir
daí, como o ego constitui em si, a partir daí, como o ego se constitui em
si, em virtude deste seu ser próprio, também o outro, o objetivo e, em
geral, tudo o que para ele tem validade de ser enquanto não eu no eu (p.
124).

A fenomenologia é, assim desenvolvida, um idealismo transcendental – um


idealismo, porém, diferente do idealismo psicológico, que, “a partir de dados sensuais
carecidos de sentido, quer derivar um mundo pleno de sentido”. Também é um idealismo
diferente daquele idealismo kantiano, que alega a existência de uma transcendência de
“coisas-em-si” por princípio incognoscíveis, ou pelo menos como conceito-limite, “crê
poder manter em aberto a possibilidade de um mundo de coisas-em-si” (p. 124). Trata-se
de um idealismo que consiste na autoexplicitação do ego como constituinte de todo o
sentido de ser. Todo o sentido de ser, todo o tipo de ser concebível, também o da
transcendência que é pré-dado através da experiência e que inclui a objetividade da
natureza, da cultura, do mundo em geral, se constitui no ego, desde o ego, para o ego.

41
Trata-se, pois, de um idealismo que explicita a gênese de sentido a partir da
intencionalidade constituinte. A fenomenologia transcendental é esta própria
explicitação, ou melhor, é a própria autoexplicitação do ego e daquilo que, por meio da
intencionalidade, nele se constitui: ele mesmo, os outros, o mundo comum objetivo.
Trata-se, pois, de um idealismo que se prova a si mesmo como explicitação e não por
meio de jogos argumentativos, que visam ganhar um troféu “no combate dialético com
os realismos” (p. 124). O idealismo fenomenológico-transcendental, pois, consiste no
trabalho “de autoexplicitação do meu ego meditante, segundo a constituição e o
constituído” (p. 125). Para além da questão da autoconstituição do ego e da constituição
do mundo objetivo, está a questão da constituição dos outros. Esta é mesmo fundamental
para colocar devidamente a questão da constituição do mundo objetivo: “por meio das
constituições alheias, que se constituem no meu próprio ego, constitui-se para mim (...) o
mundo comum para todos nós” (p. 125-126). Daí também vem a questão da constituição
de uma “filosofia como algo comum a todos nós, enquanto meditamos uns com os outros
– a ideia de uma única perenis philosophia” (p. 126). O fim do § 41 é um aceno para o
que vem na quinta meditação – a questão da intersubjetividade. Mas é também uma
declaração sobre o sentido das “Meditações Cartesianas” como um todo: a fenomenologia
universal como ontologia, isto é, como filosofia primeira:

Se as nossas meditações cartesianas devem ser para nós, como


filósofos em formação, a reta introdução numa filosofia e o começo
fundamentante da sua efetividade como ideia necessariamente prática
(um começo a que pertence, portanto, também a evidência de um
caminho a constituir, enquanto necessidade ideal, para a infinidade de
trabalho a realizar), então as nossas próprias meditações deverão
conduzir-nos suficientemente longe para que, sob este aspecto, não
deixem em aberto qualquer estranheza quanto à sua meta e ao seu
caminho. Elas devem, tal como o queriam as antigas meditações
cartesianas, desvendar, com uma compreensibilidade sem resto, a
problemática universal pertencente à ideia-final da Filosofia (para nós,
portanto, os problemas constitutivos); e isso implica que elas devem ter
já exposto, na maior e, contudo, mais estritamente delimitada das
generalidades, o verdadeiro sentido universal do ser em geral e as suas
estruturas universais – numa generalidade que torne possível, por vez
primeira, tanto a execução do trabalho ontológico, sob a forma de uma
filosofia fenomenológica vinculada ao concreto, como também, numa
consequência mais larga, uma ciência filosófica dos fatos, porque o ente
é, para a Filosofia – e, assim, para a investigação correlativa da
Fenomenologia -, uma ideia prática, a ideia da infinitude do trabalho
teoreticamente determinante (p. 126).

42
1.2.7. INTERSUBJETIVIDADE

A quinta meditação trata do desvelamento (Enthüllung) da esfera do ser


transcendental (transzendentalen Seinssphäre) como “intersubjetividade monadológica”.
Começa com o § 42 que expõe o problema da experiência do que é alheio
(Fremderfahrung). Contrapõe-se, assim, à objeção de solipsismo. Os outros ego são,
justamente, outros (isto é, alheios, estranhos, transcendentes à minha consciência). Como,
porém, esta transcendência da alteridade está correlacionada com o transcendental da
egoidade? Surge, então, o desafio de “compreender e desenvolver sistematicamente, num
trabalho concreto, a tarefa de explicitação fenomenológica que nos é indicada pelo alter-
ego (outro eu) ” (p. 128). O sentido desta tarefa é assim elucidado:

Temos de ganhar uma visão sobre a intencionalidade explícita


e implícita em que, a partir do terreno do nosso ego transcendental, o
alter-ego se anuncia e se confirma, sobre como, em que
intencionalidades, em que sínteses, em que motivações o sentido alter-
ego se forma em mim e, sob o título de experiência concordante do que
me é alheio, se confirma como sendo e mesmo como estando, a seu
modo, ele próprio aí. Estas experiências e suas operatividades são bem
fatos transcendentais da minha esfera fenomenológica – como, de outro
modo senão interrogando-as, poderia eu explicitar, em todos os seus
aspectos, o sentido “outro que é”? (den Sinn seiender Anderer) (p. 128-
129).

O § 43 trata do modo ôntico-noemático de datidade (noematisch-ontische


Gegebenheitsweise) do outro, que será tomado como fio condutor transcendental para a
teoria acerca da constituição (= formação de sentido de ser) da experiência do alheio, isto
é, do outro e do que a ele pertence. O eu meditante parte da experiência ôntica que ele
tem do outro. Os outros eu os experiencio, em experiências mutáveis e concordantes,
enquanto entes que estão sendo efetivamente (wirklich Seiende) e os experiencio a
princípio como objetos do mundo (Weltobjekte), embora não como meras coisas da
natureza. Experiencio-os como objetos psicofísicos no mundo (= corpos que têm vida).
Mas, mais propriamente, eu os experiencio como sujeitos para este mundo, como entes
que estão experienciando este mundo, este mesmo mundo que eu experiencio, que
experienciam também a mim mesmo. Eles experienciam a mim como eu experiencio a
eles. Eu tenho experiência do mundo e esta experiência inclui a co-presença de outros.
Surge, assim, o mundo como “mundo que me é alheio, como um mundo intersubjetivo”,
isto é, como mundo que está “sendo para qualquer um, como mundo acessível para

43
qualquer um nos seus objetos” (p. 130). No entanto, o outro-eu assim como o mundo
intersubjetivo, são, cada vez, sentidos de ser. Enquanto tais sentidos de ser se formam no
eu, isto é, na sua vida intencional constituinte: “todo e qualquer sentido que um qualquer
ente que tenha e possa ter para mim, tanto quanto ao seu “quid” (o quê = quididade,
essência) quanto ao seu ‘é, e é efetivamente’ (existência), é um sentido em ou a partir da
minha vida intencional, cujas sínteses constitutivas, nos sistemas de confirmação
concordante, são aquilo a partir de que esse sentido para mim se aclara e se desvenda” (p.
130). Isto quer dizer: o sentido de ser “outros-eus”, bem como o sentido de ser “mundo
intersubjetivo” se faz para mim e se forma em mim a partir de mim, isto é, de minha vida
intencional, das suas intencionalidades abertas para o mundo e para os outros. Como o
sentido de ser da alteridade e da intersubjetividade se faz para mim e se forma para mim
é que é a questão. Trata-se do “problema do aí-para-mim (Für-mich-da) dos outros”, tema
da “teoria transcendental da experiência do que me é alheio”, a assim chamada
“intropatia” (Einfühlung – também se traduz por empatia) (p. 130). Esta teoria, no
entanto, tem um alcance maior: ela “funda uma teoria transcendental do mundo objetivo”
(p. 130), ou seja, do mundo que está aí-para-qualquer-um (Für-jederman-da), mundo da
natureza objetiva, mas também do mundo da cultura enquanto mundo que está aí-para-
qualquer-um desta ou daquela comunidade humana.

O § 44 reintroduz a epoché, desta vez, aplicada aos outros enquanto entes


objetivos e mesmo enquanto sujeitos no mundo. Com isso, põe em obra a “redução da
experiência transcendental à esfera de propriedade” (Eigenheitssphäre). Esta é desvelada
tematizando as operatividades da intencionalidade, tanto atual quanto potencial, em que
“o ego se constitui na sua propriedade e constitui unidades sintéticas que são inseparáveis
dele, por conseguinte, que devem ser imputadas à sua propriedade” (p. 131). Abstrai-se
(prescinde-se) aqui de tudo o que é alheio, para se descobrir o que é próprio. Na atitude
natural dá-se uma forma de contraposição (Gegenüber): eu e os outros. Se abstraio dos
outros, eu fico só no mundo. Mas este ficar só no mundo ainda não alcança a dimensão
da solidão transcendental, que põe entre parênteses, o próprio mundo. O ego
transcendental concreto (= mônada) que então se desvela compreende, porém, a
intencionalidade dirigida para o alheio, que, por enquanto, fica suspensa também neste
momento da meditação. Em todo o caso, o outro, enquanto outro-eu (alter-ego), enquanto
“eu” remete de volta para mim mesmo: “o outro remete para mim mesmo, o outro é
reflexo de mim mesmo”, isto é, “o outro é análogo de mim mesmo” (p. 132) [analogon =

44
semelhante na dessemelhança ou dessemelhante na semelhança]. Surge, então, a questão:
“como pode o meu ego, no interior de sua propriedade, constituir, sob o título de
‘experiência alheia’, precisamente algo alheio”? (p. 132). A colocação desta questão,
porém, deve permanecer na atitude transcendental. Ela deve partir da epoché
fenomenológica: “tudo o que antes fora diretamente para nós um ser é tomado
exclusivamente como fenômeno, como um sentido visado que se confirma” (p. 133). A
partir da epoché, o outro é tomado como sentido de ser correlato da intencionalidade.
Antes, porém, de tratar da constituição intencional do alheio, é preciso explicitar o não-
alheio (Nicht-Fremdes), o “próprio-a-mim” (Mir-Eigene). Na epoché, faz-se abstração
(se prescinde de) dos outros, do mundo objetivo (natureza e cultura), do mundo
intersubjetivo. No entanto, mesmo com esta abstração, que reconduz ao campo da
experiência transcendental do ego, “retemos um estrato unitário e coerente do fenômeno-
mundo”, que é condição de possibilidade para que possa haver uma experiência do alheio,
bem como uma experiência do mundo objetivo. Na abstração da epoché fenomenológica
desaparece o sentido de ser “objetivo”, mas permanece o fenômeno-mundo.
Respectivamente, a natureza não desaparece de todo. Ela está incluída na esfera da minha
propriedade, a saber, como “meu soma” (Leib = corpo no sentido de corpo vivente). Este,
o “soma” (Leib = corpo vivente) é mais do que um simples corpo (Körper = coisa
extensa). É o corpo que pertence a mim, em que experiencio campos sensoriais (sensações
táteis de frio, calor, etc.). É o corpo em que eu imediatamente mando, e de que eu
disponho, que eu governo. Os órgãos do meu corpo com suas cinestesias obedecem a um
“eu faço” (Ich tue) e a um “eu posso” (Ich kann). A partir do meu corpo vivente (Leib =
“soma”) e da sua corporeidade (Leiblichkeit = somaticidade) é que eu tenho o comércio
com a natureza. É a partir dele também que se constitui o fenômeno objetivo do “eu
enquanto este homem” (p. 135). Este eu é uma unidade psicofísica, isto é, uma unidade
de corpo e alma. É o eu pessoal, que neste corpo e por meio dele (note-se a ideia de
mediação atribuída ao corpo), “age e padece no mundo exterior” (p. 135). Vem à luz,
assim, o eu constituído (diferente do eu constituinte), e, com ele, o mundo exterior. Mas
tanto o eu constituído quanto o mundo exterior se formam interiormente, na esfera da
subjetividade transcendental, do eu constituinte:

Eu, o eu-homem reduzido (eu psicofísico), sou, portanto,


constituído como membro do mundo, com o fora-de-mim multíplice,
mas eu próprio constituo tudo isso na minha alma e transporto-o
intencionalmente em mim. Se deveras se pudesse mostrar que tudo
aquilo que é constituído como próprio, por conseguinte, também o

45
mundo reduzido, pertence à essência concreta do sujeito constituinte
como determinação interna inseparável, então o seu mundo próprio
encontrar-se-ia, na autoexplicação do eu, como interno e, por outro
lado, encontrar-se-ia o próprio eu, enquanto percorre diretamente este
mundo, como um membro das exterioridades do mundo e ele
distinguiria, assim, entre si próprio e mundo exterior (p. 136-137).

O § 45 coloca a questão de saber “como se relacionam um com o outro o eu-


homem, reduzido à sua pura propriedade, num fenômeno-mundo do mesmo modo
reduzido, e o eu enquanto ego transcendental” (p. 137). A explicação se dá com base na
elucidação da constituição e da redução. O ego transcendental constitui, na sua vida
constitutiva, tudo o que para ele é objetivo e se constitui também a si mesmo enquanto
ego idêntico, isto é, um eu humano e pessoal que se dá no interior de um mundo
constituído. A operação constituinte consuma, pois, uma “autopercepção mundanizante”
(p. 137), mantendo-a numa validação e numa construção continuada. O mundo objetivo
pode ser reduzido (reconduzido) à esfera da propriedade do eu enquanto unidade
psicofísica, mais exatamente, à alma. Por sua vez o eu psicofísico, “humano e pessoal”,
e, em particular, a alma, pode ser reduzido (reconduzido) ao ego transcendental
constituinte. A diferença entre a alma e o ego transcendental reside nisso: que a alma é
um componente “da minha apercepção do mundo”, e, enquanto tal, algo “secundário do
ponto de vista transcendental” (p. 138), uma vez que pertence ao que é constituído,
enquanto o ego transcendental é constituinte, isto é, é fonte de validação e construção de
sentido de ser do que é mundano. À esfera do que é constituído pelo ego transcendental
pertence, por sua vez, tanto o ser do próprio e quanto o ser do alheio. O que lhe é próprio
é inseparável de seu ser concreto. Ao alheio pertence tanto o mundo objetivo, quanto o
alter-ego (outro-eu). “No interior e com os meios deste próprio, ele constitui, porém, o
mundo objetivo enquanto universo de um ser que lhe é alheio e, no primeiro nível, o
alheio no modo alter-ego” (p. 138).

O § 46 trata da propriedade (Eigentlichkeit) como “esfera de atualidades” (do eu


faço, eu atuo) e “potencialidades” (eu posso) do fluxo ou corrente de consciência. De
início, o próprio foi esclarecido como o não-alheio. Falta, porém, caracterizar
positivamente o ego em sua propriedade. Eu sou original e intuitivamente “pré-dado”
para mim, antes de uma percepção captadora, “com um horizonte aberto, sem fim, de
peculiaridades internas que ainda não foram postas a descoberto” (p. 139). O que me é
próprio se descobre por meio da explicação (desdobramento) deste meu eu pré-dado.
Surge como o explicatum (=desdobrado) desta explicação (= deste desdobramento). “Ele

46
desvenda-se originariamente no olhar experienciante e explicitante que dirijo para mim
próprio, a partir do meu eu sou, perceptiva e mesmo apoditicamente dado, e da sua
identidade persistente consigo próprio, na síntese contínua unitária da autoexperiência
originária” (p. 139). Este idêntico, porém, e o seu próprio, se desdobra com suas
peculiaridades, manifestando “uma infinitude aberta de uma corrente de vivências”, que
emerge, porém, no horizonte de uma temporalidade imanente (futuro, presente, passado).
O eu vive como eu idêntico nesta corrente de vivências, que é a corrente da consciência,
isto é, nas suas atualidades e nas suas potencialidades. “Todas as possibilidades do tipo
‘eu posso ou poderia pôr em marcha esta ou aquela cadeia de vivências’ [...] pertencem,
manifestamente, a mim mesmo de um modo essencial e próprio” (p. 140). A
autoexplicação do eu, portanto, explicita uma autoexperiência original, sua autodoação
originária, que traz consigo uma autoevidência. Temos, então, a evidência apodítica da
autopercepção transcendental (a do eu sou). Visto, porém, mais de perto, ressalta-se, por
um lado, uma evidência apodítica pura e simples, a das “formas estruturais universais”
do ego, “a saber, aquelas em que, numa universalidade essencial, eu sou e só assim
poderei ser” (p. 141) [evidência do universal-necessário]; e, por outro lado, a evidência
de “dados egológicos singulares”, como, por exemplo, a “evidência certa, mas imperfeita,
da recordação iterativa do meu próprio passado” (p. 141). A explicitação de dados
egológicos singulares, porém, participa da apoditicidade do a priori universal, que se
pode denominar de “vida universal em geral”, que se mostra “na forma da constante
autoconstituição das suas próprias vivências enquanto temporais no quadro de um tempo
universal” (p. 141). Assim, o singular (minhas vivências egológicas singulares) é
explicado (desdobrado e tornado inteligível) à luz do universal (a vida universal em geral
e suas formas estruturais universais, isto é, que determinam necessariamente a egoidade
de todo e qualquer ego). Assim, o universal pré-delineia os caminhos para a explicação
do singular.

O § 47 afirma que “o objeto intencional pertence também à plena concreção


monádica da esfera de propriedade”. “Tanto o percepcionar constituinte quanto o ser-
percepcionado pertencem à minha propriedade concreta” (p. 141). Pertence à esfera de
propriedade do eu transcendental o que lhe é imanente (atualidades, potencialidades e
habitualidades – como, por exemplo, convicções) e também o que lhe é transcendente,
tais como os objetos que são apreendidos pela sensibilidade externa. Pertence a ela

47
também o mundo no seu todo. Por conseguinte, o transcendente também pertence ao ego
transcendental concreto e fático (=mônada), assim como o imanente. Conclusão:

Desse modo torna-se claro que o ego, concretamente tomado,


tem um universo daquilo que é próprio a si mesmo, o qual pode ser
desvendado através de uma explicitação original apodítica – ou, pelo
menos, pré-delineadora de uma forma apodítica – do seu ego sum
apodítico. No interior desta esfera original (da autoexplicação original),
encontramos também um mundo transcendente, que desponta com base
no fenômeno intencional mundo objetivo reduzido ao que me é próprio
(...); todavia, todas as correspondentes aparências, fantasias, puras
possibilidades, objectualidades eidéticas, que se nos deparam como
transcendentes, na medida em que estão submetidas à nossa redução à
propriedade, pertencem também a este domínio – ao domínio do que
me é próprio e essencial, daquilo que eu mesmo sou em plena concreção
ou, como também dizemos, à minha mônada (p. 142-143).

O § 48 apresenta “a transcendência do mundo objetivo como uma transcendência


de grau mais elevado que a transcendência primordial”. O ser efetivo (wirkliches Sein) se
constitui originariamente através da concordância da experiência. Efetividade ou
realidade efetiva (Wirklichkeit) é um sentido de ser através do qual o ego “transcende, de
todo em todo, o seu próprio ser” (p. 143). A questão que se levanta é a de como o ego
forma em si, isto é, constitui, este sentido de ser de algo que o transcende, que transcende,
isto é, o seu próprio ser. A redução fenomenológica à esfera da propriedade chegou ao
dado de um “mundo reduzido enquanto transcendência imanente” (p. 144). Este mundo
constitui uma “transcendência primordial”: “Na ordem da constituição de um mundo
alheio ao eu, de um mundo exterior ao meu eu concreto próprio (...), esse mundo reduzido
é a transcendência (ou mundo) em si primeira, primordial, que (...) é ainda um elemento
determinativo do meu ser concreto próprio (p. 144) ”. Porém, como indica o título deste
parágrafo, a “transcendência do mundo objetivo” é uma “transcendência de grau mais
elevado que a transcendência primordial”. A questão é “tornar compreensível, agora,
como, no grau superior e fundado, se realiza a doação de sentido da transcendência
objetiva em sentido próprio, constitutivamente secundária, enquanto experiência” (p.
144).

O § 49 tenta responder à questão que se acabou de levantar. A primeira indicação


é a de que “o sentido de ser mundo objetivo constitui-se em vários níveis a partir do
subsolo do meu mundo primordial” (p. 144). O primeiro nível é o “nível constitutivo do
outro ou dos outros em geral, isto é, dos ego excluídos do meu ser próprio concreto (de
mim enquanto ego primordial) ” (p. 144-145). Com outras palavras, “o alheio em si

48
primeiro (o primeiro não eu) é o outro eu” (p. 145). Os que permanecem para mim outros
não se dão isolados, mas constituem uma comunidade, a saber, a “comunidade dos eu,
que inclui a mim próprio, como uma comunidade dos eu que são uns com os outros e uns
para os outros” (p. 145). Por fim a análise constitutiva chega a uma “comunidade de
mônadas”, como uma comunidade “que constitui (na sua intencionalidade constituinte
comunalizada) o mesmo e único mundo” (p. 145). Surge daí a noção de uma
“intersubjetividade transcendental” que tem uma “esfera intersubjetiva de propriedade,
na qual ela constitui intersubjetivamente o mundo objetivo” (p. 145). Trata-se de um “nós
transcendental”, em que se constitui o sentido de ser mundo objetivo. O mundo objetivo,
porém, não transcende a esfera de propriedade desta intersubjetividade transcendental,
mas nela habita enquanto “transcendência imanente” (p. 145). Com outras palavras, o
mundo objetivo é uma ideia, isto é, um “correlato ideal de uma experiência intersubjetiva
que idealmente se realiza e que foi realizada na concordância – enquanto correlato de uma
experiência intersubjetivamente comunalizada” (p. 145-146). Isto quer dizer que o
sentido de ser ou a ideia de mundo objetivo “está por essência referido à
intersubjetividade” (p. 146), que também idealmente está aberta ao infinito. Isto
pressupõe que os sujeitos singulares que são parte desta intersubjetividade, deste “nós
transcendental”, estejam “dotados de sistemas constitutivos, que se correspondem
mutuamente e que são em conjunto concordantes” (p. 146). Isto leva à afirmação de que
“pertence por essência à constituição do mundo objetivo uma harmonia das mônadas”
(p. 146). Estas indicações do § 49, pois, se apresentam como um “pré-delineamento do
percurso de explicitação intencional da experiência do alheio”, necessário para
“solucionar o problema transcendental”, ou melhor, “realizar efetivamente o Idealismo
transcendental da Fenomenologia” (p. 146).

O § 50 trata da “intencionalidade mediata da experiência do alheio”


(Fremderfahrung) caracterizada como “apresentação” (Appräsentation), a qual se dá
como “apercepção analógica” (analogische Apperzeption). Este parágrafo, que se
encontra no caminho da investigação que visa descrever a constituição do mundo
objetivo, procura realizar o “passo para o outro” (p. 146). Anteriormente, falou-se de
“outros puros” (p. 145), ou seja, de outros que não tinham, ainda, “nenhum sentido
mundano” (p. 145). Neste parágrafo, o “outro puro” parece ser caracterizado como o
outro que “ainda não chegou a revestir o sentido homem” (p. 147). O passo para o outro,
neste parágrafo, porém, pretende alcançar este outro que se apresenta como revestido do

49
sentido homem. Ponto de partida é a experiência, mais exatamente, a “experiência do
alheio”, isto é, do “não eu”, que, como já foi dito, tem no “outro eu” a sua datidade
primordial (p. 145). A partir da experiência, agora, o outro eu aparece como outro homem.
“Experiência é consciência original; e, de fato, no caso da experiência de um homem,
dizemos, em geral, que o outro está aí diante de nós ‘em pessoa’” (p. 147). O outro, porém,
não me está disponível de modo direto, isto é, o que chega à doação originária na
experiência do outro homem “não é aquilo que pertence à sua essência própria” (p. 147).
Com outras palavras, eu não tenho acesso imediato ao “outro em si próprio”, nem às suas
vivências. O próprio corpo do outro transcende a minha esfera primordial. O outro não é
presente a mim como eu sou a mim próprio, isto é, na imediatez. A apreensão do outro,
com efeito, acontece na “mediatez da intencionalidade”. Por isso o título do § 50 fala de
“intencionalidade mediata da experiência do alheio”, do estranho. O outro se me torna
representável numa espécie de um “tornar-copresente” (Mitgegenwärtig-machen), que é
chamada, aqui, de “apresentação” (Appräsentation). O outro não se me torna
representável por meio de uma simples presentificação (Vergegenwärtigung), como por
exemplo, por meio de uma imaginação, mas sim por meio de uma presentação
(Präsentation), ou seja, por meio de uma “autodoação em sentido próprio”, em que ele se
doa “em carne e osso” ou “em pessoa”. Quer dizer: a “apresentação” que funda a
representação do outro se funda ela mesma na “presentação”. É a apresentação que motiva
a aparição do “ser-aí-copresente” (Mitdasein) do outro. A questão é saber como acontece
essa “operação de apresentação” (p. 148) e sua motivação. “Uma primeira orientação
pode ser-nos fornecida pelo sentido da palavra ‘outro’ – outro eu; alter quer dizer alter-
ego, e o ego que está aqui implicado sou eu próprio” (p. 148). Quando “um outro homem
entra no nosso campo perceptivo” apreendemos um outro corpo, que se mostra como
sendo semelhante ao meu próprio corpo. Acontece, assim, uma “apreensão analogizante”
do corpo do outro. Analogia significa semelhança na dessemelhança. Nesta apreensão eu
transfiro os predicados da corporeidade específica de meu corpo para o corpo do outro.
Acontece, assim, uma “transferência aperceptiva a partir do meu próprio soma” (p. 149).
A assim chamada “apreensão analogizante” é uma “certa apercepção que assemelha” o
corpo do outro com o meu corpo. Não se trata, porém, de uma inferência. “Apercepção
não é inferência, não é um ato de pensamento” (p. 149). A apreensão analogizante ou
apercepção que assemelha se funda, por sua vez, na “instituição originária”, em que se
constitui, pela primeira vez um objeto com um determinado sentido de ser. Quando
vemos, então, outro objeto semelhante, nós operamos uma “transferência analogizante”

50
do sentido de ser daquele objeto para este. Um exemplo: “a criança, que já vê coisas,
compreende pela primeira vez o sentido finalístico (Zwecksinn) de, digamos, uma tesoura,
e, a partir daí, vê tesouras enquanto tais ao primeiro olhar e de modo imediato, sem ter de
fazê-lo, naturalmente, naturalmente, numa reprodução explícita (in expliziter
Reproduktion), numa comparação e na consumação de uma inferência (im Vollziehen
eines Schlusses) ” (p. 149). As apercepções são muito diversas entre si. Há apercepções
do que pertence, segundo sua gênese, à esfera primordial da propriedade do ego, e há
apercepções do que lhe é alheio, como, dentre estas, a apercepção do que surge “com o
sentido alter-ego” (p. 150).

O § 51 trata do “emparelhamento” (Paarung = formação de pares) como


componente associativamente constituinte da experiência do alheio. Aponta-se para o fato
de que ego e alter ego sempre e necessariamente são dados num originário
emparelhamento (ursprüngliche Paarung). Emparelhamento quer dizer “o surgir
configurado como parelha” (p. 150), ou seja, uma configuração em pares e,
subsequentemente, como grupo, como pluralidade. É um fenômeno universal da esfera
transcendental. Trata-se de “uma protoforma daquela síntese passiva que designamos por
associação, por oposição à síntese passiva de identificação” (p. 150). Numa associação
emparelhante, dois elementos são intuitivamente dados com destaque na unidade de uma
consciência, “enquanto elementos que aparecem distintamente”, mas que formam uma
“unidade de semelhança”. É a partir de emparelhamentos singulares que se forma o
sentido de grupo, como unidade de uma pluralidade (mais que dois). Os elementos que
se emparelham são mostrados à consciência ao mesmo tempo como “juntos” e
“distintos”. No entanto, pode haver uma conformidade com o sentido do outro. Esta
conformidade se dá em gradações. O caso-limite é a igualdade. “No caso que
particularmente nos interessa da associação e apercepção do alter-ego através do ego,
realiza-se um primeiro aparelhamento quando o outro surge no meu campo perceptivo”
(p. 151). Entra neste campo perceptivo um corpo que é semelhante ao meu. Trata-se de
um corpo que é tomado como sendo alheio, que não pertence à minha própria esfera
primordial. No caso, o apresentado por força da apreensão analogizante “jamais pode vir
efetivamente à presença, portanto, à uma percepção em sentido próprio” (p. 150).

O § 52 trata da “apresentação enquanto tipo de experiência” que tem o seu “estilo


próprio de confirmação”. Parte-se da pergunta sobre como é possível a apercepção do
outro. O outro homem se apresenta como uma unidade psicofísica. O que se dá numa

51
apresentação originária, diretamente, é o seu corpo. Neste corpo e com ele são indicadas
determinações psíquicas. A apresentação originária do corpóreo (somático) e as
indicações do psíquico, porém, se entrelaçam: “neste entrelaçamento, porém, o corpo
somático alheio e o eu alheio que o governa são dados ao modo de uma experiência
unitária transcendente” (p. 152). O outro é, na sua transcendência, “originaliter
(originalmente) inacessível” (p. 152). O originalmente acessível sou eu próprio e o que
pertence a mim mesmo enquanto próprio. Neste caso, acontece uma autodoação, que
permite o cumprimento (Erfüllung) de um juízo presumido, ou, se quisermos, o
preenchimento (Erfüllung) de uma intenção signitiva vazia, ou seja, que permite uma
confirmação (Bewahrung) de um juízo que antes era apenas presumido. Ao outro, porém,
eu só tenho uma acessibilidade indireta. O acesso ao outro se dá por meio da experiência
de sua apresentação, ou melhor, por meio de uma síntese de experiências de apresentação:
“cada experiência está apontada a ulteriores experiências, preenchendo e confirmando os
horizontes apresentados, experiências que incluem, sob a forma de antecipação
inintuitiva, sínteses potencialmente confirmadoras de uma experiência continuada
concordante” (p. 152). A propósito desta continuação confirmadora se mostra que ela
“pode suceder apenas por novas apresentações transcorrendo de um modo sinteticamente
concordante” (p. 152). Por conseguinte, o alheio surge necessariamente em virtude da sua
“constituição de sentido”, o que significa uma “modificação intencional do meu eu”, do
meu “mundo primordial”, com outras palavras, o outro se constitui fenomenologicamente
para mim e em mim como “modificação do meu ‘eu mesmo’” (Modifikation meines
Selbst) (p. 153). “Por outras palavras, na minha mônada constitui-se apresentativamente
uma outra” (p. 153). Trata-se, enfim, de “um eu apresentado que eu próprio não sou, mas
que é antes um modificado meu, um outro eu” (p. 154). Ao fim do § 52, entretanto, o
leitor é recordado de que esta “explicitação das conexões noemáticas da experiência
alheia”, embora ainda não suficiente, tem como escopo “tornar completamente
transparente, a partir dos conhecimentos adquiridos, a possibilidade e o alcance de uma
constituição transcendental do mundo objetivo e, com isso, do Idealismo
fenomenológico-transcendental” (p. 154).

O § 53 segue perseguindo este escopo e explicitando as “conexões noemáticas da


experiência alheia”, agora, entretanto, indicando “as potencialidades da esfera primordial
e a sua função constitutiva na apercepção do outro” (p. 154). “Na minha esfera primordial,
na mudança de orientações, é constituída a natureza espacial uma” (p. 155). Esta

52
“natureza espacial” é constituída, pois, “numa referencialidade intencional” para com a
minha corporeidade. O meu corpo é apreendido como existindo no espaço. Ao mesmo
tempo, porém, ele se me aparece como um centro de mudanças de orientações e
movimentações. Com outras palavras, o meu corpo está “retrorreferido a si próprio”, ou
seja, ele “tem como seu modo de doação o aqui central” (p. 154). Por sua vez, “todo e
qualquer outro corpo, e assim o corpo do outro, tem o modo do ali” (p. 154). Se eu me
colocar, porém, ali onde está o outro, este ali se transforma num aqui. Trago comigo a
potencialidade de “converter todo e qualquer ali num aqui” (p. 155). A cada estar-eu-ali
pertence “sistemas de aparição”. De perspectivas diferentes, eu posso ver a mesma coisa,
só que com modos de aparição diversos. A cada mudança de posição corresponde
sistemas de aparição determinados. Estes sistemas de aparição estão, por sua vez,
conectados associativamente. Diversa, porém, é a “realização associativa da experiência
do alheio” (p. 155). “Pois eu não apercebo o outro simplesmente como um duplicado de
mim próprio” (p. 155). Pelo contrário, “o outro é apercebido apresentativamente como eu
de um mundo primordial, ou como uma mônada em que o seu soma (corpo) é
originariamente constituído e experienciado no modo do aqui absoluto, precisamente
como centro funcionante do seu governo” (p. 155). O corpo do outro apresenta-se na
minha esfera monádica no modo do ali, mas enquanto corpo alheio, enquanto corpo de
um alter-ego, ele está indiciado no modo aqui.

O § 54 se propõe dar uma “explicação do sentido da apresentação em que se faz


experiência do alheio” (p. 156). Uma apercepção que assemelha (veränlichende
Apperzeption) confere a um corpo exterior (aussere Körper) um sentido análogo ao meu
próprio corpo (Leib = corpo vivente). Consequentemente, este corpo vivente análogo ao
meu recebe o sentido de corpo “de outro mundo análogo ao meu mundo primordial” (p.
156). Com outras palavras, o “corpo alheio no ali entra numa associação emparelhante
com o meu corpo no aqui” (p. 157). Este corpo se torna o “núcleo de uma apresentação”,
isto é, com ele se doa a “experiência de um ego coexistente”, que aparece no modo do ali
“como se eu estivesse ali” (p. 157). “Há, portanto, um ego que é apresentado como outro”
(p. 157). Trata-se de um ego tem a peculiaridade de não exigir nem permitir “um
preenchimento por meio de uma presentação” (=doação no modo de autodoação de uma
auto-presença). Com a apresentação do alheio são fornecidos novos conteúdos
apresentativos. “O primeiro teor determinado do outro ego deve, manifestamente, ser
formado pela compreensão da somaticidade (=corporeidade) do outro e da sua conduta

53
especificamente somática (=corporal): a compreensão dos membros como mãos que
funcionam palpando ou empurrando, como pés que funcionam andando, como olhos que
funcionam vendo etc.” (p. 158). Com isso, de início, o eu do outro é determinado ainda
apenas como o que está governando aquele corpo. Ulteriores conteúdos da “esfera
psíquica superior” são indiciados também corporalmente. É por meio da “conduta”
(Gehaben) no mundo exterior, como ira, alegria, etc., que se chega à compreensão dos
“acontecimentos psíquicos superiores”, ou seja, à empatia (Einfüllung – também traduz
por intropatia ou endopatia) 42. Tais condutas são compreendidas de maneira analogizante,
ou seja, são “bem compreendidas a partir da minha própria conduta em circunstâncias
semelhantes” (p. 158). Com outras palavras, os “acontecimentos psíquicos superiores”,
que têm o seu estilo de “conexões sintéticas” e suas “formas de decurso”, “poderão ser
para mim compreensíveis através da referência ao meu próprio estilo de vida, que me é
empiricamente familiar na sua típica aproximada” (p. 158). Por sua vez, a compreensão
da vida anímica do outro abre novas possibilidades de compreensão da vida anímica
própria: “toda e qualquer compreensão conseguida do outro atua abrindo novas
associações e novas possibilidades de entendimento, tal como, ao contrário, dado que toda
associação emparelhante é recíproca, esta compreensão desvenda a vida anímica própria
na sua semelhança e alteridade e, pondo em destaque novos aspectos, torna-os frutuosos
para novas associações” (p. 158).

O § 55 trata da “comunalização (Vergemeinschaftung) das mônadas” e da


“primeira forma de objetividade: a natureza intersubjetiva”. O corpo alheio, enquanto
aparecente na minha esfera primordial, corpo sensivelmente visto, “é efetivamente, sem
mais, experienciado como corpo do outro e não apenas como índice do outro” (p. 159).
O outro se me dá numa “percepção presentante-apresentante” (p. 160). O corpo constitui
o núcleo de presentação da apresentação do outro. Trata-se de uma só percepção, em que,
com a presentação do corpo se dá a apresentação do outro, e, por conseguinte, em mim,
“a consciência do seu ser-ele-próprio-aí” (p. 160). O corpo é o “percepcionado em sentido
próprio”, mas com a percepção dele se dá a “copercepção” de um “excedente”, de um
“coexistente” (Mitdaseiende). Assim, a percepção do outro é transcendente: “assim, toda
e qualquer percepção deste tipo é transcendente, ela põe como ele-próprio-aí mais do que,
de cada vez, ela torna efetivamente (wirklich) presente (präsent) ”. O corpo se presenta

42
Há um erro de tradução na página 158. Onde está “preenchimento” (que em alemão seria “Erfüllung”)
deve-se ler “empatia” ou “intropatia” (que em alemão é “Einfühlung”, palavra que aparece na página 149
da edição alemã).

54
na minha esfera primordial, no caso, ganha “o sentido de um corpo que pertence a outro
ego” (p. 160). “Este corpo natural ali, pertencente à minha esfera, apresenta o outro eu na
minha natureza primordialmente constituída, em virtude da associação aparelhante com
o meu soma corpóreo (körperlichen Leib) e com o eu psicofísico que aí governa” (p. 161).
Com o corpo, é dada, porém, a natureza, a que este corpo pertence. A natureza primordial
do outro, por sua vez, e a minha natureza primordial, “é a mesma natureza, apenas que
no modo de aparição como se eu atuasse ali, no lugar do corpo somático alheio” (p. 161).
Produz-se, assim, “o sentido identitário da minha natureza primordial e da outra natureza
primordial presentificada” (p. 162). A percepção do outro apreende não um signo ou uma
figuração do outro, mas o outro mesmo, captado numa originalidade efetiva, nesta
corporeidade ali. Capto o outro como uma unidade psicofísico: percebo um corpo,
originalmente acessível, embora com “sombreamentos” (há nuances que percebo e outras
que ficam “na sombra”), e, junto com este corpo, por meio dele, indicativamente, percebo
uma alma, por princípio não originalmente acessível. A natureza objetiva começa a ser
percebida, antes de tudo, em meu corpo e, depois, no corpo do outro. O corpo alheio é “o
objeto em si primeiro”, é o “protofenômeno da objetividade” (p. 163). A presentação do
corpo do outro é, porém, também, a base para a apresentação do outro como tal. Faz parte
da apercepção do outro a experiência de que o mundo que aparece para ele é o mesmo
mundo que aparece para mim, apesar de eu e ele termos sistemas de aparições diversos.
O mundo objetivo aparece como tal “em virtude da confirmação concordante da
constituição aperceptiva” (p. 163), seja pelo sucesso desta seja pelas correções de erros
devidos à anormalidade da percepção. O anormal é uma variante do normal. Nesta mesma
linha vai a distinção entre homem e animal (classificados como superiores e inferiores).
O critério da apercepção do animal é, para o homem, ele mesmo. Assim se explica a
constituição do animal na consciência humana:

Em relação ao animal, o homem é, falando constitutivamente,


o caso normal, tal como eu próprio sou, constitutivamente, norma
primitiva para todos os homens; os animais são, por essência,
constituídos para mim como modificações anômalas de minha
humanidade, mesmo que, também entre eles, se possa separar outra vez
normalidade de anormalidade. Trata-se sempre de novo de
modificações intencionais na própria estrutura de sentido, que enquanto
tais se atestam. Tudo isto carece certamente de uma explicação
fenomenológica que penetre mais fundo, mas esta exposição de ordem
geral é já suficiente para os nossos fins (p. 164).

55
1.2.8. UM NOVO SENTIDO DE MATHESIS UNIVERSALIS

Na investigação fenomenológica transcendental é pela intencionalidade que o


fenômeno vira fenomenologia, isto é, adquire sentido e validade de ser. É na transiência
da intencionalidade que o objeto em sua objetualidade se constitui. Essa transiência tem
um caráter dinâmico. É gênese. O método fenomenológico reconduz o objeto e sua
objetualidade, antes de tudo, tematizando o surgimento do fenômeno enquanto fenômeno
para a consciência e na consciência (redução fenomenológica). Depois, reconduz os
epifenômenos aos fenômenos, isto é, os fatos às essências, os conteúdos à sua forma
essencial, vislumbrando geneticamente as estruturas estruturantes como possibilidades
possibilitadoras de ser (redução eidética). Enfim, reconduz as estruturações de sentido às
suas fontes geradoras e suas forças constituintes que por assim dizer jorram da vida da
consciência intencional 43.

Para Husserl, a retomada da ideia da possibilidade de uma Mathesis Universalis


só seria possível numa “tomada de consciência universal de si mesmo” por parte do
sujeito que conhece, valora e age. Entretanto, esta tomada de consciência da subjetividade
enquanto tal só seria plena se neutralizasse toda representação do sujeito como objeto,
isto é, como uma coisa dentro do mundo. Ora, a ciência, mesmo quando trata do sujeito
e da subjetividade, como o faz no caso das ciências humanas, o faz tratando-o como
objeto, isto é, pondo-o no plano do mundo já dado. A ciência positiva é incapaz de deixar
ser o sujeito como sujeito. Ela só pode lidar com o sujeito como objeto. Daí, a necessidade
de uma redução transcendental: a recondução ao cogito e às suas cogitata, à
intencionalidade e à sua dinâmica constitutiva, ao ego monádico e à intersubjetividade
monádica. Descobrem-se, assim, as estruturas a priori da subjetividade transcendental
como constituidoras de sentidos que vigoram nas várias dimensões do mundo objetivo,
incluindo natureza e cultura. Intencionalidade e constituição se tornam o fio condutor para
analisar diversos tipos de objetividade, diversos horizontes de aparecimentos objetivos,
diversas dimensões de fenômenos, enfim, o mundo como uma transcendência imanente
e como uma realidade estruturada multidimensionalmente, numa vinculação intencional
com uma subjetividade que é também estruturada multidimensionalmente. A
fenomenologia husserliana mostra a unidade consciência-mundo como não chata, isto é,

43
Leão, Emmanuel Carneiro. Apresentação. In: Fernandes, Marcos Aurélio. À clareira do ser: da
fenomenologia da intencionalidade à abertura da existência. Teresópolis: Daimon, 2011.

56
como não unidimensional, ou seja, como estruturada de modo multidimensional. A
fenomenologia transcendental, neste sentido, torna possível o emergir de uma nova
racionalidade teorética, axiológica e prática, cujo medium natural já não é o mundo
constituído, mas a consciência constituinte. E esta consciência entendida, enfim, não na
solidão monádica do solipsismo e sim na comunhão e comunidade monádica da
intersubjetividade. A fenomenologia aparece, por conseguinte, como uma sondagem dos
fundos e fundamentos, a partir dos quais a consciência edifica todo o mundo do
conhecimento e constrói o conhecimento do mundo; uma sondagem dos fundos e
fundamentos, a partir dos quais a consciência institui os seus valores e dá sentidos à sua
ação. Fenomenologia, enquanto fenomenologia transcendental da consciência, é o abrir-
se e o recolher-se da vida intencional. A consciência é ato, quer dizer, aquela transição e
passagem na qual e para a qual se constitui o mundo e, no horizonte do mundo, toda e
qualquer objetividade, em várias dimensões e modos de ser de aparição dos objetos. Na
dinâmica operativa desta passagem, a consciência está, sempre de novo, instituindo e
constituindo o mundo objetivo. Na fenomenologia da consciência, toda manifestação e
aparição se reconduz a esta dinâmica, que é a intencionalidade operativa da consciência:
o ato. Neste sentido, o mundo perde o caráter de absoluto. O mundo é o horizonte, aberto
pela própria consciência, em que toda objetividade aparece como correlata à operação
instituidora, constituidora e conferidora de sentido, própria do dinamismo da consciência.
Tudo o que o homem sabe e não sabe, tudo o que ele é e não é, emerge daí. Cada ego é,
porém, uma mônada: a abertura que abre, cada vez de modo singular, perspectivamente,
o todo, isto é, a realidade universal. Ao mesmo tempo, porém, cada ego está em comunhão
com os outros egos. A intercomunicação dos egos é, pois, a fonte mesma da evidência do
“em si” do mundo e da tese de sua realidade, o que dá à ciência o seu positum e a sua
positividade, as condições de possibilidade de toda a sua objetivação.

O método fenomenológico transcendental é, assim, a descrição analítica da


intencionalidade em seu a priori. Ele lida com as estruturas da intencionalidade. A
intuição categorial, que se dá em atos de síntese e atos de ideação, aparece, aqui, como o

57
modo de captação originário destas estruturas 44. Estas estruturas são o fenômeno
primordial da fenomenologia transcendental. Na segunda versão de Heidegger do texto
que estava sendo escrito para a Enciclopédia Britânica e que estava sendo, a princípio,
elaborado junto com Husserl, aquele escreve:

A aclaração (Klärung) fundamental da necessidade do retorno


à consciência, a determinação radical e explícita do caminho e das leis
de etapas desse retorno, a delimitação em linha de princípio e a
perscrutação sistemática do campo da pura subjetividade que se abre
com base neste retorno se chama fenomenologia 45.

Essa perscrutação sistemática do campo da pura subjetividade toma como fio


condutor as estruturas da intencionalidade das vivências em seu caráter a priori. O
apriori, na fenomenologia, tem uma envergadura universal. Pode ser tanto formal quanto
material. Pode dizer respeito tanto ao real quanto ao ideal. Em si, ele não é nem
transcendente nem imanente (à consciência). Não é nem objeto ou conteúdo (polo
noemático) nem ato ou vivência (polo noético). É indiferente tanto à objetidade e
objetualidade quanto à subjetividade.

A propósito, carece de se fazer aqui uma anotação terminológica. Aqui


distinguimos entre objetividade (Objektivität) do conhecimento e objetidade
(Gegenständigkeit) e objetualidade (Gegenständlichkeit) do objeto. No tocante à
distinção ontológica de ente e ser, pode-se diferenciar entre o objetivo não do
conhecimento, mas do objeto (das Gegenständige) e o objetual (das Gegenständliche) do
objeto enquanto seu caráter de estar contraposto ao sujeito representador enquanto tal. O
objetivo do objeto tem o sentido ôntico. Objetivo é o que, no objeto, é uma sua
característica ou nota, por exemplo, o ser colorido, o ser extenso, etc. Objetual tem o
sentido ontológico. Objetual é o que constitui o estar de frente e contraposto do objeto
enquanto tal. A estabilidade (Beständigkeit) funda a constância (Ständigkeit) do viger no
sentido do estar presente (Anwesen). Tomada desde o representar, isto é, desde o insurgir
do subiectum qua res cogitans qua certum (sujeito enquanto coisa cogitante enquanto
certo) este viger do estar presente se configura como objetidade (Gegenständigkeit) 46.

44
Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (Gesamtausgabe Band 20).
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª Auf.), p. 108-110.
45
Heidegger, Martin. „Einleitung. Die Idee der Phänomenologie und der Rückgang auf das Bewusstsein“.
In: Husserl, Edmund. Phänomenologische Psychologie (Husserliana, Band IX). Den Haag: Martinus
Nijhoff, 1962, p. 256.
46
Heidegger, Martin. Nietzsche. Zweiter Band (Gesamtausgabe Band 6.2). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1997, p. 462.

58
O apriori estrutura a própria correlação intencional de ambos: sujeito e objeto,
subjetividade e objetidade/objetualidade. É o fenômeno em sentido ontológico. Apriori
não é, aqui, meramente título de conhecer ou de qualquer outro comportamento ou
relacionamento. É título de ser. É o que vem por primeiro estruturalmente na ordem do
ser. Só é acessível numa simples apreensão de uma intuição originária: a arqui-intuição
do ser 47. A descoberta da intuição categorial em Husserl, segundo Heidegger, teve o
mérito de deixar e fazer ver, num visualizar presencializante, a vigência do ser na
categoria. Ser não é mero conceito, não é pura abstração, mas é datidade originária que
pre-jaz a todas as categorias, que não são, do mesmo modo, meras formas a priori do
pensamento, mas verdadeiras datidades fenomenais, só que de caráter ontológico 48.

A coisa mesma (die Sache selbst) da investigação fenomenológica husserliana, ou


seja, aquilo que, em última instância, nela está em questão, é a subjetividade
transcendental. A fenomenologia é ciência universal que tem sua fundamentação absoluta
na subjetividade transcendental. Ela é, assim, ciência fundamental para todas as demais
ciências, que tratam do ente no sentido de objeto. Sendo crítica da razão teorética,
axiológica e prática, a fenomenologia, aqui, é a liberação das estruturas intencionais em
seu a priori, da subjetividade que conhece, põe valores e age. A fenomenologia dos
fenômenos objetivos só acontece graças à mediação da subjetividade transcendental em
sua vida intencional. A redução transcendental é o retorno a ela. É a partir dela que se
descreve a gênese da constituição do ser do ente enquanto objeto, respectivamente, da
objetualidade.

Husserl viu que uma mathesis universalis da investigação da razão não concerne
apenas a puras formas do vivenciar exterior, de que fluem as leis dos conteúdos de
conhecimento objetivo, mas que também concerne às puras formas do vivenciar interior,
de que fluem as leis do conhecimento e do agir humano 49. Assim, a pura mathesis subjaz
não só às ciências da natureza, como também à ciências humanas.

A psicologia pura, a psicologia fenomenológica, é a mathesis enquanto ciência


das legalidades dos atos humanos. As ciências humanas, incluindo aí a psicologia como

47
Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (Gesamtausgabe Band 20).
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª Auf.), p.
48
Heidegger, Martin. Seminare (GA 15). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1986, p. 378.
49
Cf. Rombach, Heinrich. Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins. Freiburg [Breisgau] /
Müchen: Alber, 1980, p. 30.

59
ciência positiva-empírica, têm, certamente, muito que aprender desta psicologia pura,
fenomenológica 50.

A psicologia pura da consciência é paralela à fenomenologia transcendental. O


conteúdo de ambas pode ser o mesmo. O que diferencia uma da outra é que a
fenomenologia transcendental opera com a redução transcendental. Na psicologia
empírica o homem é tomado como ser psicofísico que vive no mundo. O mundo é tomado
como existente em si mesmo. Na atitude da redução fenomenológica, porém, o mundo
não é tomado como realidade que tem uma validade de ser em si mesma, nela, o mundo
é tomado apenas como “fenômeno da realidade”, ou seja, como o mundo que se dá e
aparece à consciência. Na redução transcendental, não só o mundo, mas também a alma
(o anímico ou psíquico) é submetida à redução transcendental. Isto é: o psíquico como
algo que é ele mesmo transcendente (subjetivo-objetivo) é neutralizado também. Essa
epoché, mais do que uma suspensão (da posição da apercepção transcendente e de sua
validade), é uma contenção da força do movimento transiente que se dá no acontecer da
vivência intencional, enquanto correlação de consciência-de-algo e o algo de que a
consciência é consciência. Esta contenção pode ser encarada como a concentração para
um salto.

A redução transcendental é uma espécie de salto, ou seja, de mudança de


impostação da inteira forma de vida: da positividade (vida positiva) para a
transcendentalidade (vida transcendental). Na atitude da redução transcendental, por sua
vez, dá-se a recondução de todo o objetivo, seja do objetivo-objetivo (os conteúdos que
são dados a partir das vivências exteriores), seja do objetivo-subjetivo (os conteúdos que
são dados a partir das vivências interiores), seja do real-físico, seja do real-psíquico, seja
do ideal, que são percepcionados intuitivamente e que são espelhados na reflexão do eu
fenomenológico, ao cogito e às suas cogitata, à intencionalidade e à sua dinâmica
constitutiva, ao ego monádico e à intersubjetividade monádica.

Quer as vivências exteriores, que concernem à experiência e ao conhecimento da


natureza, quer as vivências interiores, que concernem à experiência e ao conhecimento
do ser humano, de seus atos, têm suas fontes na vida intencional da consciência
transcendental. Assim, a “fenomenologia pura” (fenomenologia transcendental), como

50
Cf. Husserl, Edmund. Phänomenologische Psychologie (Husserliana, Band IX). Den Haag: Martinus
Nijhoff, 1962.

60
ciência da vida intencional da consciência ou da subjetividade transcendental, é a
verdadeira, plena e própria mathesis universalis, almejada pela humanidade europeia,
desde os primórdios da modernidade.

Se a mathesis universalis não coincide com as realizações das ciências materiais


(da natureza ou do espírito), também não coincide com as realizações das ciências formais
(matemática, lógica). A mathesis universalis tal como vislumbrada por Husserl não
coincide com uma ciência meramente formal-lógica, tal qual a mathématique universelle
concebida ao modo de Leibniz, sobre a qual Husserl se pronuncia no § 60 do primeiro
volume de suas Investigações Lógicas, o qual trata dos Prolegômenos para uma lógica
pura 51. A mathesis universalis fenomenológica não é um sistema axiomático-dedutivo.
No § 3 de suas Meditações Cartesianas, Husserl diz que Descartes foi traído por um
preconceito, a saber, o de que a Ciência Universal teria como modelo a geometria e,
respectivamente, a ciência matemática da natureza (física), ou seja, para Descartes, a
Ciência Universal deveria ser um sistema axiomático-dedutivo 52. Na verdade, nenhuma
ciência já existente deve servir de ideal normativo de ciência para a mathesis universalis
fenomenológica, nem a matemática, nem a ciência matemática da natureza, nem a lógica.
As ciências facticamente dadas devem ser submetidas à crítica fenomenológica.

Ao fim de suas Meditações Cartesianas, Husserl considera a fenomenologia


transcendental como a solução do problema cartesiano de uma ciência universal que
repousa numa fundamentação absoluta. A fenomenologia transcendental transcende a
ingenuidade da vida pré-científica, como também das ciências positivas. Esta ingenuidade
se mostra como falta de uma fundamentação mais profunda a partir do desvelamento das
realizações transcendentais. A elaboração sistemática da fenomenologia a priori contém,
numa fundamentação absoluta, como ramos em si todas as ciências a priori. Ela preenche
e plenifica a ideia de uma ontologia universal, que é ao mesmo tempo formal e material,
portanto, à ideia de uma filosofia primeira ou de uma doutrina ou teoria da ciência plena
e radicalmente fundada. Husserl ao mesmo tempo deixa claro que a egologia apresentada
restritamente de modo solipsista, a análise fenomenológica da vida intencional limitada
ao ego transcendental, é apenas o seu primeiro degrau. A redução fenomenológica, na
verdade, plenamente realizada, conduz à subjetividade transcendental enquanto

51
Husserl, Edmund. Logische Untersuchungen. Bd 1: Prolegomena zur reinen Logik (7ª Aufl.). Tübingen:
Max Niemeyer, 1993, p. 219-222.
52
Husserl, Edmund. Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge (Husserliana Band I). Haag:
Martinus Nijhoff, 1950, p. 48-50.

61
comunidade monádica transcendental. Essa é o chão transcendental para a constituição
do mundo objetivo.

A ontologia universal fenomenológica concreta desempenha, pois, o papel de ser


o fundamento a priori para a fundamentação mais radical de uma ciência universal ou de
uma filosofia do ser fático. Se a egologia é apenas o primeiro nível da fenomenologia
transcendental, o nível mais elevado é aquele em que aparecem os autênticos problemas
metafísicos, que são os problemas concernentes ao sentido, que incluem os problemas
que dizem respeito à vida, à morte, ao destino humano, à sua história, à possiblidade uma
vida autenticamente humana, vida com sentido em sentido forte, etc. Enfim, os problemas
éticos e religiosos encontram aí o terreno propício para a sua tematização. A mathesis
universalis aparece, sim, não como um sistema lógico-dedutivo, mas sim como a
realização mais universal e mais radical da ideia de autoconhecimento.

A fenomenologia transcendental aparece, então, como a tomada a sério da máxima


délfica do “conhece-te a ti mesmo”. A ciência positiva é uma ciência que se perdeu no
mundo. Pela epoché fenomenológica, ponto de partida do método da investigação da
fenomenologia transcendental, o mundo é perdido, mas para que seja encontrada a
consciência pura, e, uma vez encontrada esta, o mundo é reencontrado numa tomada de
consciência universal de si mesmo. Aparece, então, como mundo da vida. A
fenomenologia transcendental realiza, assim, o preceito agostiniano (De vera religione,
XXXIX, 72) do Noli foras ire, in te redi, in interiore homine habitat veritas” (não vás
para fora, entra em ti mesmo, no homem interior habita a verdade) 53. A fenomenologia
transcendental é, assim, o vislumbre da possibilidade de uma humanidade que se engaje
em uma busca infinita por viver uma vida transcendental, ou seja, que se exerça não desde
a positividade e um mundo já dado, mas segundo a autorreflexão da subjetividade
transcendental, uma vida segundo a verdade e a autenticidade 54.

53
Husserl, Edmund. Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge (Husserliana Band I). Haag:
Martinus Nijhoff, 1950, p. 180-183; 192-193; 200-201.
54
Husserl, Edmund. Phänomenologische Psychologie (Husserliana, Band IX). Den Haag: Martinus
Nijhoff, 1962, p. 299.

62

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