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Introdução
“Escrever é procurar entender,
é procurar reproduzir o irreproduzível,
é sentir até o último fim o sentimento
que permaneceria apenas vago e sufocador”
(Clarice Lispector).
*
Texto baseado no artigo intitulado “Fenomenologia, Psicoterapia e Psicologia Humanista”, originalmente
publicado na revista Estudos de Psicologia (PUC Campinas), Vol.14, No 2, Maio/Agosto 1997, pp. 33-46.
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
Clínica, no prelo (Pede-se não reproduzir sem expressa autorização do autor).
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Lopes Neto & Pagliuca, 2002; Campoy, Merighi & Stefanelli, 2005) – , o da Arquitetura
(Furtado, 2005), o da Hermenêutica (Gadamer, 1998), o da análise da Estética ou da Arte
(Dufrenne, 1953, 1998; Merleau-Ponty, 1989b; Escoubas, 2005) e das Ciências da
Informação (Guillén, 2004).
A importância da Fenomenologia pode ser destacada pela sua proposição de uma
crítica à ciência de tal modo que permite a construção de outros modos de apreensão da
realidade onde se dá o resgate da subjetividade e a sua recolocação num contexto histórico
e mundano. Com a fenomenologia, nós recuperamos o sentido de mundo em toda a sua
plenitude, de humano em toda a sua singularidade, e da interrelação entre os dois.
O compromisso de Husserl com o pensamento de Descartes torna a Fenomenologia
uma corrente de pensamento imprescindível para a própria compreensão da cultura e da
evolução do nosso século. Husserl era um profundo admirador da filosofia de Descartes,
todavia, considerava que Descartes não havia aprofundado suficientemente sua
investigação epistemológica. Sua admiração e seu “compromisso” com o pensamento
cartesiano fizeram com que Husserl construísse um projeto de realizar uma “viragem” na
filosofia, tal qual Descartes:
Com efeito, nenhum filósofo do passado teve uma influência tão decisiva sobre o
sentido da fenomenologia como o maior pensador da França, René Descartes. É a ele que
ela deve venerar como seu verdadeiro patriarca. Foi de um modo muito directo, diga-se
expressamente, que o estudo das meditações cartesianas interveio na nova configuração da
fenomenologia nascente e lhe deu a forma de sentido que agora tem e que quase lhe permite
chamar-se um novo cartesianismo, um cartesianismo do século XX (Husserl, 1992, p.9).
1
Husserl assinala nas suas Conferências de Paris (1992) que o ego cartesiano realiza “um filosofar
seriamente solipsista”. “Solipsismo” advém de solus-ipse, e designa uma consciência que se fecha sobre si-
mesma.
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
Clínica, no prelo (Pede-se não reproduzir sem expressa autorização do autor).
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1969) como uma “psicologia descritiva dos fenômenos da consciência” (Jaspers, 1987,
p.71). E sob esta base Jaspers edifica toda uma reforma da Psiquiatria, constituindo um
campo novo de investigação, o da Psicopatologia, ao qual se refere como sendo a ciência
em si, cuja aplicação seria a psiquiatria.
Para Jaspers, a fenomenologia é um procedimento empírico e descritivo,
extremamente útil para se ter acesso àqueles fenômenos – como o fenômeno psíquico de
outrem – que não podem ser percebidos diretamente, ao contrário dos fenômenos físicos,
por exemplo.
No âmbito desta nossa consideração, a figura de Husserl é central. Podemos
considerá-lo um marco na filosofia do século XX, dada a magnitude e relevância que teve
seu pensamento para o desenvolvimento de uma série de outras considerações. Suas idéias
foram determinantes diretas dos pensamentos de filósofos como Sartre, Heidegger,
Merleau-Ponty e outros, além de contribuir significativamente para o advento do
movimento existencialista moderno, bem como outros desdobramentos que podem ser
encontrados nas contemporâneas Hermenêutica e na filosofia da linguagem.
O objetivo de Husserl era realizar uma “viragem” da Filosofia, com o intuito de
fundamentá-la em solo radical, dotando-a de um método apropriado. Este projeto, Husserl
procurou estabelecer a partir da publicação do livro A Filosofia como Ciência de Rigor – de
1910/1911 – que é uma obra que se situa a meio caminho entre as Investigações Lógicas –
de 1900/1901 –, e a crítica husserliana empreendida ao psicologismo e a instituição da
Fenomenologia em si das Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia
Transcendental, de 1913. Com a intenção de tornar a Filosofia uma “ciência de rigor”,
Husserl (1965) pretendia separar aquela filosofia rigorosa da filosofia “do ponto de vista”,
ou seja, pensá-la como uma “filosofia absoluta”, como a expressão de verdades absolutas, e
“não como expressão de anseios e de satisfação humanas” (Carvalho, 1965, p.XXVII).
A história de Husserl é marcada por situações de considerável relevância. De origem
judaica, foi proibido de publicar durante o período de governo do III Reich; suas obras
somente foram publicadas integralmente em 1950 na cidade de Haia, na Holanda. Durante
este período de perseguição, os inéditos de Husserl foram salvos graças aos esforços de
alunos e colegas próximos que conseguiram, clandestinamente, evitar a queima de seus
manuscritos enviando-os para fora da Alemanha. Neste aspecto, especial destaque para o
padre Hermann Leo Van Breda, que – após a morte de Husserl – transferiu o espólio
intelectual do mestre para a cidade de Louvain, na Bélgica, onde em 1939, sob sua direção,
foram fundados os Arquivos Husserl. A partir daí, e com o auxílio de Eugen Fink e Ludwig
Landgrebe, inicia-se a transcrição, ordenação e publicação de seus textos inéditos2.
A gênese da Fenomenologia pode ser associada a dois grandes pensadores: de um
lado, Wilhelm Dilthey e, de outro, Franz Brentano. Wilhelm Dilthey (1833-1911), foi o
grande nome do Historicismo alemão, além de ter se engajado na chamada “teoria da
concepção de mundo” ou Weltanschauung. Suas idéias influenciam as chamadas “filosofias
da vida” ou “filosofias do espírito”, ressoando em Heidegger, Max Weber e outros.
Influencia ainda Scheler, Jaspers e a corrente fenomenológica. Dilthey faz uma distinção
entre “ciências naturais” e “ciências do espírito”, dizendo que há uma diferença
gnoseológica nas questões metodológicas: de um lado, a observação externa dá os dados
das ciências naturais; e de outro, a observação interna revela a experiência vivida ou a
Erlebnis. No caso das ciências humanas, é necessário compreender a vida pela própria
vida, sem auxílio da metafísica ou de valores absolutos ou superiores.
Com isto, Dilthey faz uma distinção entre Erklaren (explicar) e Verstehen
(compreender) ou Aufklaren (entender). Distingue um “sistema de leis ou ciências”, de um
lado, de um “sistema de existências significativas e permeadas de valores” (visões de
mundo), do outro. Assim, haveria duas modalidades de ciência: as Naturwissenschaften
(ciências naturais) e as Geisteswissenschaften (ciências do espírito). Em outras palavras,
Dilthey antecipa e dá as bases para a crítica husserliana à aplicação das metodologias
naturalistas às ciências humanas.
Com Dilthey formaliza-se um pensamento que recoloca o sujeito humano num
contexto essencialmente social e histórico: somos seres históricos e constituídos na e pela
história. Assim, contrário a uma psicologia elementarista (que estuda o homem como
unidade psicofísica), propõe “uma psicologia compreensiva, descritiva e analítica,
reconhecendo a unidade estrutural da individualidade e seu modo de ser no mundo”
(Japiassu & Marcondes, 1990, p.73).
Contudo, é a partir do trabalho de Franz Brentano (1838-1917), filósofo alemão
nascido em Marienberg, que a Fenomenologia se estrutura. Foi professor em Würzburg,
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Tarefa ainda inconclusa nos dias atuais. Cabe destacar que Husserl deixou mais de 400.000 páginas
estenografadas.
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
Clínica, no prelo (Pede-se não reproduzir sem expressa autorização do autor).
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Berlim e Viena, e em 1874, publica sua obra capital: Psicologia do Ponto de Vista
Empírico, fato este importante devido à posterior influência que terá sobre Husserl.
Brentano “foi representante de uma psicologia descritiva a qual chamou de
‘psicologia dos atos’, que considera o essencial das manifestações anímicas (atos) em sua
relação com o objetivo ao qual estão encaminhadas (intencionalidade)” (Bonin, 1991,
p.68). Foi sacerdote católico (tendo se ordenado em 1864, mesmo ano de seu doutoramento
em Filosofia), mas entrou em confronto com a Igreja por não aceitar o dogma da
infalibilidade papal, tendo por isto se retirado de sua cátedra em 1873 e se convertido ao
protestantismo em 1879. Dentre seus discípulos, destacam-se Christian Von Ehrenfels3,
Edmund Husserl e Oswald Külpe, sendo que Freud tomou algumas lições com ele (mais
especificamente durante os anos 1874-1876)4. O fundamental da psicologia brentaniana é
que a experiência se baseia na percepção interior, ao contrário do que propunham os
sistemas psicológicos primevos ao apontar para a introspecção (observação interior). Com
isto reage contra a análise dos conteúdos da consciência conforme a psicologia
experimental de Wilhelm Wundt e contra a orientação naturalista tomada de empréstimo à
física e à fisiologia.
3
Importante personalidade da Psicologia. Foi precursor da chamada Gestalt-Theorie ou a Psicologia da
Gestalt, influenciando diretamente as figuras de Köhler, Koffka e Wertheimer.
4
A propósito, existe uma série de semelhanças entre Husserl e Freud: ambos nasceram na Morávia, Freud em
1856 e Husserl em 1859; estudaram em Viena, na mesma época, embora não existam informações de que
tenham se encontrado. Freud se doutorou em 1881 e Husserl em 1882. Ambos publicaram suas obras capitais
no ano de 1900 (Freud com A Interpretação dos Sonhos e Husserl com suas Investigações Lógicas). Ainda
sobre a correlação entre Freud e Husserl, assinala Bucher (1983, p.34): “(...) curiosamente, ambos os
pensadores iniciam as suas pesquisas com uma inovação metodológica pela qual se destacam de todas as
escolas e autores precedentes, e que merece ser chamada de corte epistemológico, com todas as implicações
que tem essa noção, de revolução, senão de ‘subversão’ das idéias vigentes até aí..”.
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
Clínica, no prelo (Pede-se não reproduzir sem expressa autorização do autor).
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Todo fenômeno mental inclui algo como objeto dentro de si mesmo, ainda que os
objetos não estejam todos do mesmo modo. [Assim] Na apresentação algo é apresentado; no
julgamento, algo é afirmado ou negado; no amor, amado; no ódio, odiado; no desejo,
desejado, e assim por diante (Brentano citado por Maciel, 2003, p.36).
Com isto, Brentano estabelece uma categorização dos atos mentais, distinguindo-os
em “representação” (onde o objeto está sempre presente, como algo mentalmente
percebido); “juízo” (no qual é afirmado ou negado) e “sentimento” (algo é amado ou
odiado). Em resumo, os atos mentais se caracterizam por serem intencionais, ou seja,
remetem aos objetos. A intencionalidade não varia, apenas a forma como é assumida, ou
seja, a referência ao objeto é que varia (Maciel, 2003).
Sobre estas bases Husserl estrutura seu projeto de Fenomenologia (que iremos
analisar a seguir). Edmund Husserl nasceu na cidade de Prostnitz, na Morávia, em 1859;
entre os anos de 1876 a 1878 freqüenta e se gradua em Matemática pela Universidade de
Leipzig. Em 1882, Husserl obtém seu doutoramento na Universidade de Viena com a tese
“Sobre o Cálculo das Variações”. No ano seguinte, em Berlim, torna-se assistente de um
ex-professor seu, Karl Weirstrass. Em 1884, Husserl retorna a Viena e se filia ao
pensamento de Brentano. Dois anos depois renuncia à sua ascendência judaica,
convertendo-se ao Luteranismo, casando no ano seguinte com Malvine Steinschneider.
Posteriormente torna-se livre-docente pela Universidade de Halle. Começa aí sua vida
intelectual realmente produtiva.
No ano de 1891 publica o primeiro volume da sua “Filosofia da Aritmética”, obra
que ficou inacabada. Entre os anos 1900-1901, publica uma de suas obras capitais:
“Investigações Lógicas”. Cresce sua consideração, tanto que, em 1906, é nomeado
professor da Universidade de Göttingen. Seus cursos sempre foram fonte de
questionamento e de desenvolvimento de suas idéias. No ano de 1907, durante seu curso
sobre “A Idéia da Fenomenologia”, surge-lhe a primeira idéia explícita sobre a redução.
Definir claramente o que vem a ser a Fenomenologia talvez seja tarefa demasiado
árdua. Na realidade, o próprio conceito de definição carrega uma conotação de algo estático
que ignora a própria essência do termo.
O problema da Fenomenologia é um problema de fundamentação da ciência.
Husserl estabeleceu para si a tarefa de repensar esses fundamentos. Eugen Fink, um
eminente conhecedor do pensamento husserliano, aponta a fenomenologia como um
“recomeço radical”, uma retomada da busca das raízes. Constitui-se numa tentativa de
superação da dicotomia sujeito/objeto, através da apreensão das relações do homem com o
mundo5.
A Fenomenologia surge como uma crítica, no sentido original do termo6, enquanto
uma tentativa de pôr em crise o conhecimento vigente. Assim, surge como crítica à
5
Relações do homem com o Umwelt (mundo ambiente), Mitwelt (mundo humano) e o Eigenwelt (mundo
próprio).
6
Sobre a questão da “crítica” uma citação serve de esclarecimento: “O termo ‘crítica’ (..) foi aqui encarado no
sentido originário de uma interrogação sobre as condições de possibilidade e os limites de algo (..). Nesse
sentido, a crítica se caracteriza, não pela mera objeção pessoal ou pela apreciação que destaca as qualidades e
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
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O que é a fenomenologia? Pode parecer estranho que ainda se coloque esta questão
meio-século após os primeiros trabalhos de Husserl. Ela está, entretanto, longe de ser
resolvida. A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela,
retornam a definir as essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por
exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que recoloca as essências na
existência e não concebe que se possa compreender o homem e o mundo de outra forma que
não seja a partir de sua “facticidade”. É uma filosofia transcendental que põe em suspenso,
para as compreender, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a
qual o mundo está sempre lá, anterior à reflexão, como uma presença inalienável, e cujo
esforço é de retomar esse contato ingênuo com o mundo para lhe dar, enfim, um estatuto
filosófico. É a ambição de uma filosofia que seja uma “ciência exata”, mas é também um
compte rendu do espaço, do tempo, do mundo “vividos”. É o ensaio de uma descrição direta
de nossa experiência tal qual ela é... (Merleau-Ponty, 1945, p.I).
os defeitos de uma obra ou de uma posição, mas por uma busca de fundamentos, isto é, por certo modo de
reflexão que, ultrapassando a experiência imediata, ruma para o ser, encontrando aí a origem da primeira”
(Frayze-Pereira, 1984:1. Grifos nossos).
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
Clínica, no prelo (Pede-se não reproduzir sem expressa autorização do autor).
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percebo. Mas é um “ir em busca” aliado à minha própria experiência subjetiva concreta. É
um olhar e ver, não apenas uma colocação diante de algo. É participação, envolvimento.
Assim sendo, a Fenomenologia torna-se um modo de existir, de se colocar no
mundo, de fazer parte deste mundo. Neste contexto, temos o ser humano também como um
fenômeno. O mais complexo (talvez), mas o mais completo também.
A Fenomenologia resta, pois, um método, de evidenciação, uma forma de renovação
dos problemas filosóficos, mas o que temos como o primordial na Fenomenologia é o seu
caráter de contínua reflexão crítica, de re-pensar o mundo e a realidade, pois afinal, o ser
somente se completa no seu devir, no seu crescer.7
Para compreendermos a Fenomenologia em sua tríplice perspectiva – como método,
como filosofia e como epistemologia – é preciso esclarecer certos conceitos e noções que
são centrais. Para tal, elaboraremos uma breve análise de seu arcabouço teórico.
7
Esta concepção fica mais clara com Heidegger, quando este assinala que, fundamentalmente, o sujeito e o
mundo não são entidades separadas ou estáticas, sendo que o sujeito somente se deixa apreender por sua
inserção no mundo, o que leva à concepção que “(...) o indivíduo (...) sempre se encontra em transição, em
evolução; é um ser emergente nunca fixado, nunca estabelecido, mas modelador do mundo através de
interações constantes; sempre em devir, o seu desenvolvimento é marcado pela trama histórica da sua
temporalidade, através da qual ele tem que elaborar o sentido pessoal da sua existência” (Bucher, 1989,
p.30).
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Colocamos esses termos entre aspas propositalmente, dado que os estaremos esclarecendo a seguir.
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
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na expressão do próprio Husserl. O que significa isto? Significa que ao olharmos para o
mundo, percebemo-lo naquilo que se apresenta enquanto tal, e não enquanto uma
determinada representação que já existe em nós, anterior à nossa experiência, e que é ditada
por nossa reflexão, por nossos conceitos, pelas apreensões da sociedade ou da cultura.
Significa olhar e ver. E não simplesmente olhar e achar algo “a respeito-de”.
Imaginemos o seguinte. Ao longo da nossa vida acumulamos uma série de idéias,
valores, conceitos, atitudes, que são produto da nossa experiência pessoal, da nossa
experiência com os outros, que são nos dadas pela cultura (ou pela sociedade, ou pela
religião, ou por nossa família), e que “atravessam” nossas relações futuras. Isto quer dizer
que ao nos relacionarmos com o mundo, já atribuímos, já colocamos no mundo, estas
idéias, valores, conceitos e atitudes que não estão lá, necessariamente, mas contidos em
nossa experiência. O “olhar ingênuo” é semelhante àquela atitude de nos colocarmos diante
de um bom filme – já visto – “de novo”, ou seja, significa “torná-lo novo”. Voltar às coisas-
mesmas é permitir um encontro com essa novidade, com esse “ainda não sabido ou
conhecido”; é ver ou perceber o mundo tal qual ele aparece por si só, e não através do
nosso crivo reflexivo.
Está-se falando de “experiência”. E este é um dos temas centrais da fenomenologia
husserliana. Husserl questiona a apropriação e a limitação da ciência empírica dos
fenômenos subjetivos. É através do seu contato com Brentano que Husserl desperta para as
insuficiências dessas ciências. Tomando o exemplo da Psicologia, Husserl questiona a
apropriação que esta faz da metodologia das ciências da natureza, sem o discernimento de
que seus objetos são distintos. Esta constatação e esta crítica já estava presente na filosofia
de Dilthey quando, em 1894, publica Idéias concernentes a uma psicologia descritiva e
analítica, e afirma que a vida psíquica é um dado imediato, e como tal, prescinde de
explicação, necessitando de compreensão e descrição (Dartigues, 1992).
Com isto, Husserl redefine o campo de investigação da experiência. Seu raciocínio
parte da idéia de como estudar os dados da experiência em sua totalidade. Coerente com a
perspectiva cartesiana, Husserl considerava que todo fenômeno estaria penetrado de logos,
penetrado no pensamento, mas que este logos somente se expõe no fenômeno. Se este
fenômeno não é construído, mas está acessível a todos, o pensamento racional e o logos
também. Com isto, reconhece a necessidade de se retornar às fontes originárias do
pensamento para tornar a filosofia rigorosa. Contudo, não se trata de retomar as opiniões de
filósofos do passado como ponto de partida para esta fundamentação, mas se trata de partir
da própria realidade.
A partir daí, Husserl elabora seu projeto de construir uma “filosofia como ciência
rigorosa”. Podemos tentar entender isto através da sua proposta de uma psicologia
científica, que seja empírica e eidética.
Husserl, ao longo de toda a sua obra, faz inúmeras referências à psicologia (Husserl,
1965, 1985), seja através de sua crítica à apropriação metodológica, seja a partir do exame
das fronteiras entre fenomenologia e psicologia (Struchiner, 2003). Em primeiro lugar, ele
elabora críticas relativas à psicologia empírica da época e; em segundo lugar, elabora um
projeto de “psicologia fenomenológica” enquanto uma psicologia eidética.
A psicologia fenomenológica pode ser entendida como a possibilidade de se
fundamentar fenomenologicamente os conceitos da psicologia ou como a análise concreta
dos significados psicológicos das experiências subjetivas. “Neste segundo sentido, trata-se
de uma ciência empírica de investigação da vida psíquica que se utiliza da fenomenologia
como método” (Struchiner, 2003, p.145).
Convém assinalar que o projeto de psicologia husserliano é o projeto de uma
psicologia eidética, enquanto que as aplicações que os psicólogos fazem da fenomenologia
à prática (clínica ou não) e à pesquisa constituem uma psicologia empírica. Esta colocação
é importante na medida em que regula um campo, determinando que certos conceitos e
noções fundamentais não se contrapõem em campos distintos, como é o caso de uma
aplicação prática (como no ato de pesquisar ou num consultório, p.ex.) e o caso de uma
construção epistemológica (quando se reflete sobre o processo de construção simbólica na
consciência, p.ex.).
Em 1911, Husserl publica um texto intitulado Philosophie als Strenge Wissenschaf9,
onde traça um panorama da psicologia dominante na época. Trata-se de um texto seminal,
pois Husserl parte de um questionamento com relação ao que considera como o maior
equívoco da ciência experimental da época: o objetivismo e o naturalismo, marcadamente
influenciados ou delimitados pelo positivismo.
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Filosofia como Ciência de Rigor.
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
Clínica, no prelo (Pede-se não reproduzir sem expressa autorização do autor).
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Psicologia científica do século XIX se construiu enquanto uma psicologia fisiológica (como
podemos observar claramente através do projeto de psicologia experimental em Wundt,
Titchener, Dewey e os funcionalistas). Neste caminho, a única psicologia científica era a
psicologia experimental.
A primeira grande objeção de Husserl reside no fato que nenhuma ciência
experimental poderia ser o fundamento de disciplinas como a Lógica, p.ex., que lida com
princípios puros. O que faltaria à psicologia experimental, diz Husserl, seria uma disciplina
anterior, originária, não mais baseada em “fatos”, mas em “vivências”. O fenômeno
psíquico não é um fato a ser observado diretamente, mas se caracteriza por ser uma
“experiência vivida” ou uma “vivência de uma consciência”.
O projeto de uma psicologia empírica deve ser, pois, de uma “ciência natural da
consciência” e, para tal, deve ser antecedida por uma análise direta da consciência pura –
tarefa esta da Fenomenologia e com a qual não se confunde: uma psicologia empírica deve
ser precedida por uma psicologia eidética, como assinalamos anteriormente. Dito de outra
forma, e recuperando a redefinição de “experiência” temos que, como assinala Dartigues
(1992), o experimentalista (o psicólogo experimental, p.ex.) realiza “experimentação” da
realidade, ou seja, ele tem uma “experiência sobre o fenômeno”, enquanto que o
fenomenólogo tem uma “experiência do fenômeno”, ao que poderíamos denominar
“experienciação”. Assim, para a primeira ter um sentido, deve se fundar sobre a segunda,
portanto, para Husserl, as ciências empíricas devem se fundamentar nas ciências eidéticas.
Portanto, é possível realizar uma psicologia empírica exata (ou positiva), como o
próprio Husserl assinala: “Se por ‘positivismo’ entendemos o esforço, absolutamente livre
de pré-julgamentos, para fundar todas as ciências sobre o que é ‘positivo’, ou seja,
suscetível de ser tomado de maneira originária, somos nós os verdadeiros positivistas”
(Husserl, 1985, p.69).
Tudo isto pode se apresentar como aparentemente confuso, mas isto se dá somente
na aparência. Está-se falando de realidades absolutamente cotidianas e, portanto, de
experiências que cada um de nós tem no dia-a-dia, mas que nem sempre se reconhece nelas.
Retomemos o percurso husserliano. Seu projeto de uma fenomenologia como
ciência rigorosa toma como ponto de partida, não mais as opiniões dos filósofos, mas a
própria realidade (Dartigues, 1992). Trata-se de uma “terceira via”, alternativas ao 1)
Isso significa que as essências não têm existência alguma fora do ato de consciência que
as visa e do modo sob o qual ela os apreende na intuição. Eis por que a fenomenologia, em
vez de ser contemplação de um universo estático de essências eternas, vai se tornar a análise
do dinamismo do espírito que dá aos objetos do mundo seu sentido (Dartigues, 1992, p.18).
não são entidades separadas, mas se definem respectivamente, no que Husserl chamou de
“correlação”. Fora dessa correlação não há, para a fenomenologia, nem consciência, nem
objeto. Uma questão que se põe aqui pode ser: “quer dizer que a consciência não existe?”.
Não se trata disto. O que é a consciência enquanto função orgânica, p.ex., é da seara da
ciência natural e não da fenomenologia. Não nos interessa a consciência “em si”, mas a
consciência enquanto correlação com o mundo.
O campo de análise da Fenomenologia será então o da elucidação da essência dessa
correlação entre consciência e objeto, já que é no campo da consciência que o mundo se
estende. A análise intencional husserliana irá, portanto, recobrir toda a esfera dinâmica do
“espírito” (o nous), e compor-se-á da análise da nóese (a atividade da consciência) e do
nóema (o objeto constituído por essa atividade).
Um ponto importante a ser assinalado. A correlação sujeito-objeto só se dá naquilo
que Husserl chama de “vivência” ou Erlebnis. Para se estudar esta correlação, é preciso
realizar uma operação de consciência, chamada de “conversão”. Trata-se de “suspender” a
crença na realidade do mundo externo para se colocar como consciência transcendental, ou
seja, que transcende a mera realidade empírica e que se coloca noutra posição. Esta é,
segundo Husserl, a condição de “aparição” do mundo como fenômeno. É a esse
desdobramento que se chama atitude fenomenológica, que torna a consciência doadora de
sentido e não mais a coloca como parte do mundo.
A consciência deixa de ser “parte” do mundo para se tornar o lugar do
desdobramento do mundo no campo da intencionalidade. E o mundo deixa de ser
considerado como “coisa”, destacado da consciência. O mundo como “coisa”, como res, é
uma das conseqüências do pensamento cartesiano. O “eu penso” de Descartes faz do “eu”
do cogito uma substância (a “alma”) e, por conseguinte, uma res. A intencionalidade –
diferentemente da dúvida cartesiana – reconecta o “eu penso” e seu objeto.
A consciência, aqui, deixa de ser receptiva para ser ativa. E o objeto (como o
mundo), deixa de ser uma coisa separada, para se tornar sentido-para-mim. À
fenomenologia, pois, não interessa nem o “objeto” (coisa, res), nem a “consciência” (como
atividade psicológica), mas interessa essa conexão entre uma consciência ativa e um mundo
de significados.
A análise fenomenológica nos coloca, pois, diante do mundo que precede a reflexão,
nos coloca diante de uma realidade que não é aquela dada a priori por minhas idéias,
conceitos, valores, etc. A atitude fenomenológica requer uma outra operação: para se ter o
mundo como fenômeno, devo me abster desses a priori que me acompanham, devo me
colocar diante do mundo numa atitude ingênua, devo “suspender” minhas idéias, valores,
conceitos e julgamentos (que estão em mim, antes mesmo de me encontrar com esse
mundo). A isto Husserl dá o nome de redução fenomenológica, e é o que permite colocar
em evidência o ser-no-mundo, produto desta intencionalidade.
Trata-se de uma atitude, que na abstração das idéias pré-estabelecidas em prol de um
contato direto com o observado e com o vivido. Desta maneira, sem elementos
perturbadores, a apreensão do mundo surge mais clara e límpida. Segundo Husserl, é
preciso realizar a époché fenomenológica, ou seja, pôr o mundo entre parênteses, suspender
todo e qualquer juízo da realidade. Não afirmar ou mesmo negar algo10, mas antes se deixar
abandonar à compreensão desta realidade, que assim estaríamos voltando às coisas
mesmas.
Quando procedo assim, (...), eu não nego este “mundo”, como se fosse um sofista; eu
não coloco sua existência em dúvida, como se fosse um céptico; mas eu opero a époché
“fenomenológica” que me impede de todo julgamento sobre a existência espácio-
temporal. Em conseqüência, todas as ciências que se reportam a este mundo natural - (...) -
eu as ponho fora de circuito, não faço absolutamente nenhum uso de sua validade; não faço
minhas nenhuma das suas proposições, fossem mesmo de uma evidência perfeita; não
acolho nenhuma, nenhuma me dá fundamentos... (Husserl, 1985, p.102-103).
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Husserl parte do ego solipsista (um eu-pensante, fechado em sua racionalidade, em sua consciência
individual definidora, um ego-cogito) de Descartes para determinar uma nova relação do ego enquanto um
ego-cogito-cogitatum, que designa que, através da consciência intencional, se estabelece uma ligação
intrínseca entre o sujeito e o objeto. Desta feita, a relação sujeito-objeto se define em si própria, e não mais
em seus elementos. Isto permite, para a Psicologia, uma retomada do ser humano numa perspectiva de um
devir heraclítico.
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
Clínica, no prelo (Pede-se não reproduzir sem expressa autorização do autor).
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A redução não é uma abstração relativamente ao mundo e ao sujeito, mas uma mudança
de atitude – da natural para a fenomenológica – que nos permite visualizá-los como
fenômeno, ou como constituintes de uma totalidade, no seio da qual o mundo e o sujeito
revelam-se, reciprocamente, como significações (Forghieri, 1993, p.15).
Husserl reconhece a necessidade de uma psicologia, mas que é possível somente através
de descrição da experiência imediata enquanto manifesta na consciência em sua pureza. Por
pureza, Husserl refere-se à suspensão de qualquer pressuposição teórica ou experimental
como ponto inicial de análise (Gomes, 1985, p.137).
grande notoriedade com a chamada Escola de Berlim, mais conhecida como a Psicologia
da Gestalt, com Max Wertheimer, Kurt Koffka, Wolfgang Köhler, Aron Gurwitsch, Karl
Duncker, Kurt Lewin, Fritz Heider e Martin Scheerer.
Para se vislumbrar a dimensão desta influência em meio a tantas personalidades não
tão conhecidas do grande público basta citarmos algumas das contribuições destes. Karl
Bühler (ao lado de sua esposa, Charlotte Bühler) foi um dos mentores da chamada
“Psicologia Humanista”; Kurt Lewin, é o criador da “Teoria do Campo” e um dos
precursores da Dinâmica de Grupo; ao lado de Fritz Heider, colaborou sensivelmente para o
desenvolvimento de uma teoria social; Edgar Rubin foi o responsável pela noção de “figura
e fundo”, desenvolvida pela Psicologia da Gestalt, cujos membros dispensam
apresentações.
No terreno da psicopatologia a Fenomenologia é decisiva. Karl Jaspers, que era
psiquiatra e filósofo, “funda” esta ciência sobre os fundamentos descritivos do pensamento
husserliano. Para Jaspers (1987), a psiquiatria seria a profissão prática, enquanto que a
psicopatologia seria a ciência propriamente dita, sendo que, por lidar com os fenômenos
subjetivos da vida psíquica, deveria se basear num método descritivo, constituindo-se numa
ciência compreensiva.
No esteio de uma “psicopatologia fenomenológica”, outros grandes nomes se
destacam, como Ludwig Binswanger (a quem iremos nos referir mais adiante), V.E. Von
Gebsattel e Erwin Straus, todos representantes de uma “antropologia psicológica”. Na
Holanda, toda uma escola se desenvolveu em torno da fenomenologia, liderados por
H.C.Rümke, Janse de Jonge, L.Van der Horst, F.J.J.Buytendijk e J.H.Van den Berg, este
último mais conhecido do grande público através de seu livro O Paciente Psiquiátrico (Van
den Berg, 1966). Igualmente na Inglaterra a psiquiatria conhece uma significativa
influência da Fenomenologia, destacando-se o grupo que constituiu a Antipsiquiatria, com
R.D.Laing e David Cooper, numa perspectiva mais sartreana.
Não poderíamos deixar de mencionar a estreita relação que existiu e ainda existe
entre Fenomenologia e Psicanálise. Para tanto, bastaria lembrarmos que Freud assistiu aos
cursos de Brentano em Viena, e sua prática clínica inicial caminha na mesma direção de um
procedimento descritivo. De qualquer modo, a fenomenologia encontra-se mais presente
nos seguidores tardios de Freud, como Daniel Lagache e Antoine Vergote (que desenvolve,
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Este movimento existencial em psiquiatria e psicopatologia é fruto de todo um processo de insatisfação
iniciado com os trabalhos de Reich, Rank, Fromm e Horney, que desemboca em significativas mudanças na
psicoterapia (May, 1967). Segundo Bucher (1983:37), “apesar de sua abertura para com a psicanálise,
Binswanger permaneceu fiel à fenomenologia transcendental de Husserl. (...) Graças à concepção do “Dasein”
de Heidegger, o conceito de consciência transcendental ligada a uma subjetividade pura, postulada à luz da
estrutura da intencionalidade e de “Weltentwurf”, do “projeto de mundo” desta consciência - se tornava mais
concreto, fornecendo assim a Binswanger a base para uma fundamentação filosófica da psiquiatria e
permitindo a sua aplicação à análise dos modos de espacialidade, de temporalidade e da “Selbstigung”, da
“auto-realização” da consciência, no seu “projeto de mundo” genuinamente próprio”.
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
Clínica, no prelo (Pede-se não reproduzir sem expressa autorização do autor).
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A Gestalt-Terapia possui raízes filosóficas as mais variadas e, por vezes, conflitantes. Isto nos permite
afirmar que não existe apenas uma, mas diversas “Gestalt-Terapias”, cada uma compreendida a partir de um
enfoque específico e de uma construção epistemológica (sobre esta questão remetemos o leitor a um texto
anteriormente publicado em Holanda, 2005). Já a Abordagem Centrada na Pessoa possui uma base mais
fundamentada na Fenomenologia, mesmo que implicitamente.
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
Clínica, no prelo (Pede-se não reproduzir sem expressa autorização do autor).
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Buber, todavia, aponta para os limites que o princípio dialógico pode ter numa
situação específica de psicoterapia, onde os papéis já estão previamente definidos e bem
destacados:
Um homem vem a você para ser ajudado. A diferença essencial entre seu papel e o dele
é visível. Ele vem para ser ajudado por você (...). E não é somente isto. Você o vê,
realmente. Não quero dizer que você não possa se enganar, mas você o vê, exatamente
como ele é (Buber, 1988, p.161).
O que Buber assinala é que não é função do cliente confirmar o terapeuta, enquanto
que, do lado do terapeuta, compete a este confirmar seu cliente, e acrescente:
“O que faz o psicoterapeuta? Ele nos ajuda a perceber como organizamos nosso
mundo, e como nossos problemas se prendem à forma como fazemos isso” (Amatuzzi,
2001b, p.69). Paul Ricoeur fala de um distanciamento que a linguagem opera em relação ao
real, ao que chama de “distanciamento da significação”. Ouvir é entrar em contato com o
que a pessoa diz. Segundo Amatuzzi (2001b), “a fenomenologia do ouvir se expande em
fenomenologia do diálogo. O que acontece então quando o ouvir chegou a esse nível de
profundidade? O passo seguinte pode ser expresso assim: permitindo a interpelação do
outro, sinto a necessidade da resposta. Seu discurso já não está nele. Está agora em mim”
(Amatuzzi, 2001b, p.71).
Uma psicoterapia “fenomenológica” é isto, uma relação intersubjetiva. E uma boa
metáfora para entendermos a fenomenologia na clínica é a questão do silencia e da palavra:
palavra e expressão, silêncio e expressão. Quantas e quantas vezes nossos clientes ficam em
silêncio absoluto e nos dizem, ao mesmo tempo, uma infinidade de coisas. Saímos do
terreno do “significado” (daquilo que é significado por alguém ou já dado) para o terreno
do sentido, do vivido, que nos é comum e que cala, na própria fala.
A plena expressividade ou não da fala, ou seja, sua autenticidade, pode ser descrita a
partir de sua relação com o pré-verbal que a mobiliza. Esse algo que a precede e a mobiliza,
posto que não-verbal, pode ser denominado, numa aproximação primeira de silêncio. A fala
é a ruptura de um determinado silêncio (Amatuzzi, 2001, p.24).
O psicoterapeuta deve estar atento ao significado que a fala tem, naquilo que a
conecta diretamente ao ser próprio do sujeito. A Fenomenologia diz de um sentido e um
significado que antecedem ao signo da própria fala, ou seja, diz de algo que remete o
sujeito a um pré-reflexivo, a um pré-cognitivo.
É a fala que contribui para modificar o sentido comum das palavras, mas os sentidos
comuns que constituem a fala, afirma Merleau-Ponty (1945). “Quando a fala é original ela
faz evoluir a própria língua” (Amatuzzi, 2001, p.25). Para Merleau-Ponty, é o silêncio
primordial – que se encontra por detrás do “barulho das palavras” – que é a “alma da
palavra pronunciada”, ou seja, é o que se concretiza e o que se constitui como sentido no
mundo do discurso. Em outras palavras, é na fala que se realiza um sentido anterior. Mas,
“a ruptura do silêncio que dá origem à fala não é propriamente a eliminação do silêncio,
mas uma realização dele” (Amatuzzi, 2001, p.25). Esta é uma regra importante no contexto
HOLANDA, Adriano F. (2006). Fenomenologia, Psicologia e Clínica Psicológica. Inserção da
Fenomenologia no Contexto da Psicologia [Capítulo III], Liberdade para Viver. Escritos em Psicologia
Clínica, no prelo (Pede-se não reproduzir sem expressa autorização do autor).
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da psicoterapia: o silêncio primordial carrega o sentido das falas, mas é pela fala que este
sentido se realiza. Buscar o sentido anterior à fala não implica em negá-la, mas em acolhê-
la. Como a regra dialética nos ensina, a resposta está contida na própria pergunta. É pela
fala que acessamos o silêncio primordial. Ao terapeuta cabe caminhar junto com seu
cliente, na fala dele, através dele.
Merleau-Ponty (1945) ainda dá exemplos de falas originárias: a do apaixonado
(que descobre sua paixão), a do escritor (ou filósofo, que despertam a experiência
primordial), o poeta. Nestes, é o silêncio pré-verbal que mobiliza e conduz a fala; esta, já
estava contida neste silêncio: o apaixonado identifica seu sentimento, que se revela (que se
des-vela), e que pré-existia (e que toma um formato novo, um novo estatuto, ao ser
descoberto). Este é o mesmo caminho que Buber (1979) aponta para a relação dialógica: o
homem se realiza na linguagem, quando se torna palavra. Palavra, para Buber, é ato.
A Fenomenologia propõe que o significado, o sentido, aquilo que habita a palavra,
não é o pensamento, é anterior a este. A isto Husserl denomina de “experiência pré-
reflexiva”; a isto Merleau-Ponty chama de intenção primordial. É sobre este solo filosófico
que a maioria das práticas psicoterápicas – ditas humanistas, fenomenológico-existenciais
ou simplesmente existenciais – se apóia quando constituem suas práxis num desvelar de
sentidos, numa busca de significados anteriores às falas, num conjunto de métodos e
técnicas com vistas a permitir ao cliente retornar à sua experiência vivida. É nisto que se
constitui a possibilidade de compreendermos o “retorno às coisas-mesmas” da
Fenomenologia.
Quando Carl Rogers define sua proposta psicoterapêutica como sendo um processo,
cujo centro é a troca de experiências vivenciais entre terapeuta e cliente, caminha na
direção da Fenomenologia. Imprescindível uma postura específica da parte do terapeuta,
como sendo a “(...) dedicação do terapeuta em ir na direção do cliente, no ritmo do cliente
e com a maneira única de ser do cliente” (Bozarth, 1979, p.1).
A “Abordagem Centrada na Pessoa” de Rogers supõe um compromisso da
totalidade do terapeuta com a totalidade do cliente. Pagès (1986, p.5-6) aponta que “(...)
Rogers é implicitamente fenomenólogo a nosso ver na medida em que para ele a fonte de
todo conhecimento autêntico reside numa experiência que partindo da experiência
cotidiana, destaca-se daquela que contém pré-concepçðes e quadros intelectuais
deformantes (...)”. Esta posição é corroborada por Spiegelberg (1972), que diz que Rogers é
um fenomenólogo na prática.
Quando a Gestalt-Terapia fala de awareness, por exemplo, e a coloca como um
objetivo a ser alcançado, definindo-a como a experiência de estar em contato com a própria
existência ou, como assinala Ribeiro (1994), como a experiência de estar consciente da
própria consciência, está-se assinalando este “retorno” a uma experiência que a
Fenomenologia descreve como sendo pré-predicativa. Este processo se dá através do que a
Gestalt-Terapia define por contato (Perls, Hefferline & Goodman, 1997; Polster & Polster,
2001). E é neste caminho que a questão da linguagem se apresenta.
(...) é tarefa primordial do terapeuta zelar pelo desabrochar da riqueza humana, isto é,
estar constantemente atento para o desvelamento do poder-ser próprio de cada paciente. Não
é o terapeuta quem deve indicar o que é próprio de cada paciente – isto é até um contra-
senso em relação ao sentido mesmo do próprio. O terapeuta deve atuar como um jardineiro
que cultiva uma planta. O jardineiro não produz a planta como se produz um automóvel, não
cria a terra, nem a semente, nem planeja os passos que devem ser seguidos pela planta para
atingir a maturidade, florir e frutificar. Ele somente cria melhores condições (...). O
terapeuta deve auxiliar o paciente a desvelar as próprias possibilidades (Cytrynowicz, 1997,
p.69-70).
Nem todo conflito é necessariamente neurótico; certa dose de conflito é normal e sadia.
De forma similar, o sofrimento não é sempre um fenômeno patológico; em vez de sintoma
de neurose, o sofrimento pode ser perfeitamente uma realização humana, especialmente se o
sofrimento emana de frustração existencial (...). A frustração existencial em si mesma não é
patológica nem patogênica. A preocupação ou mesmo o desespero da pessoa sobre se a sua
vida vale a pena ser vivida é uma angústia existencial, mas de forma alguma uma doença
mental (Frankl, 1991, p.94).
Referências Bibliográficas