Você está na página 1de 56

JOSÉ LUIZ FURTADO

CURSO DE INTRODUÇÃO À ONTOLOGIA

Ouro Preto
2

IFAC
2007

INTRODUÇÃO: A DIVISÃO TRADICIONAL DA METAFÍSICA................................................................................3


§ 01 DESEJO DE SABER E SABER DO DESEJO .............................................................................................................5
§ 02 PHYSIS E DES-OCULTAMENTO ................................................................................................................................6
§ 03 SIGNIFICAÇÃO METAFÍSICA DO SABER ABSOLUTO ......................................................................................8
§ 04 OS PRÉ-SOCRÁTICOS ..................................................................................................................................................10
§ 05 A POSIÇÃO DE HEIDEGGER ....................................................................................................................................12
I – PLATÃO: A TEORIA DAS IDÉIAS ..............................................................................................................................14
§ 06...............................................................................................................................................................................................15
§ 08................................................................................................................................................................................................18
§ 09...............................................................................................................................................................................................19
As idéias e a predicação ...........................................................................................................................................................19
§ 10 O BEM ................................................................................................................................................................................20
II – PROBLEMAS METAFÍSICOS EM ARISTÓTELES ..............................................................................................23
§ 11 UM NOME PARA UMA CIÊNCIA SEM NOME: A origem do termo Metafísica ............................................23
§ 12 UMA CIÊNCIA PROCURADA.....................................................................................................................................25
§ 13 A METAFÍSICA COMO CIÊNCIA DO SER ENQUANTO SER.........................................................................26
§ 16 As Categorias: da causa do ser à essência do discurso .............................................................................................29
§ 17 Crítica da concepção aristotélica da verdade apofântica .........................................................................................31
A CARNALIDADE DO COGITO............................................................................................................................................38
Fenomenologia do cartesianismo............................................................................................................................................38
I - A dupla redução .................................................................................................................................................................40
II - O Duplo sentido do cogito ................................................................................................................................................43
III - A Essência da ipseidade transcendental da vida do ego: a afetividade. .................................................................47
IV - O CORPO ABSOLUTO E A CARNALIDADE DA ALMA.....................................................................................50
V - Adendo: A vontade, o entendimento, o erro ..................................................................................................................54

2
3

“O que permanece mais enigmático, o fato de que o ente é ou o fato de que o ser
é?”
Heidegger
“O ser é o
conceito mais vazio e mais universal. É o mais abstrato. No meio da mais completa alienação frente ao
ser, é bem mais digno tomar o ser, a abstração de todas as abstrações, por simples vapor do que
pretender colocar a questão do ser”
Heidegger1

INTRODUÇÃO: A DIVISÃO TRADICIONAL DA METAFÍSICA

I
A principal preocupação da filosofia, desde suas origens, consistiu em determinar a unidade
originária dos seres, isto é, do mundo. Herdada do pensamento mitológico-poético, a busca da unidade
originária da natureza, tanto no que se refere aos princípios e normas que regeriam o devir dos
fenômenos naturais, quanto à matéria comum a todas as coisas, transfere-se, a partir de Sócrates, para
o campo do conhecimento. Trata-se de investigar tão sistematicamente quanto possível, os princípios
comuns ao exercício do conhecimento, presentes em todas as ciências. De fato, os problemas referentes
à investigação metafísica, apontados por Aristóteles, versam, quer sobre os princípios que regem o
discurso científico (por exemplo a não contradição), quer sobre o que há de comum aos objetos das
ciências (exemplo: as diversas classes de substância e seus atributos). Deste ponto de vista a metafísica
seria uma filosofia ou ciência primeira, não por anteceder no tempo os outros saberes, mas por
tematizar o que os torna possíveis, mesmo sem ter sido objeto de uma reflexão explícita. Nenhum
discurso contraditório pode ser a expressão de um conhecimento verdadeiro, mas a descoberta dessa lei
lógica, presente em todo saber, não impediu que houvesse conhecimentos verdadeiros anteriores.
Assim a metafísica é uma filosofia primeira porque investiga os princípios universais do conhecimento
aos quais toda ciência já existente ou ainda por ser inventada, deve se subordinar se quer ser uma forma
de conhecimento racional, ou seja, válido necessária e universalmente.
Mas a metafísica foi interpretada em três sentidos distintos, a saber, como teologia (ciência da
origem do mundo), ontologia (ciência do ser enquanto ser) ou teoria do conhecimento (princípios
universais do conhecimento). Mas trata-se sempre, nos três casos, de uma visão lançada sobre a

1
Heráclito, Rio: Relume Dumará, 1978, p. 111.

3
4

totalidade do ente2, referida àquilo de que todo ente, ou seu conhecimento dependem, sem que ele
próprio (princípio, causa ou característica universal) dependa de nada. O objeto da metafísica será pois
da ordem do incondicionado, pois é causa primeira; apriórico, já que em nenhum caso é um dado da
experiência; prioritário, uma vez que dele depende a prova da validade do conhecimento e, por fim,
universal, valendo sem exceção para todos os entes ou casos possíveis de conhecimento racional,
enquanto fundamento universal.
De fato, a metafísica interpretada como teologia tem como objeto o ente perfeitíssimo (Deus,
primeiro motor imóvel, segundo Aristóteles) do qual dependem todos os outros entes e a totalidade do
mundo; concebida como ontologia estuda as propriedades comuns a todo ente em geral, considerado
apenas enquanto ente (alguma coisa que é); e, por fim, a metafísica pode ser considerada ciência dos
primeiros princípios, presentes em todas as formas possíveis de conhecimento, independentemente do
tipo de objeto do qual se ocupam. A metafísica seria uma ciência prioritária porque alguma coisa deve
ser antes da existência do ente pois esse não pode ser a causa de si mesmo, assim como o próprio
mundo. No primeiro caso, como teologia, a metafísica seria prioritária por causa da superioridade do
seu objeto em relação ao de todas as outras ciências: o ente sumamente perfeito ou Deus. Mas as
concepções da metafísica como ontologia ou gnosiologia também fazem dela uma ciência prioritária
na medida em que a primeira visa as determinações necessárias do ser (“ser enquanto ser”), a segunda
tratando dos princípios comuns a todo pensamento verdadeiro e que, portanto, nenhuma ciência já
existente ou possível poderia transgredir. Em sentido metafísico a norma da verdade antecede
necessariamente, não apenas o pensamento verdadeiro, mas também o ser verdadeiro. Enfim, a
problemática metafísica, compreendida a partir da radicalidade do seu projeto, pretende remontar a um
domínio absolutamente originário onde reside o fundamento de todo ente sem que esse mesmo
fundamento dependa de nada. Mas, como trataremos de mostrar, quer este fundamento receba o nome
de Deus, subjetividade transcendental, consciência, Espírito Absoluto ou simplesmente “ser”, o que
está em jogo, implicitamente ou não, de forma confusa ou esclarecida, é sempre a elucidação da
essência da manifestação do ente como fenômeno. Se, em sentido fenomenológico, ser quer dizer
aparecer, a essência da manifestação, quer nessa manifestação se manifeste o ente ou não, é o próprio
ser. Incondicional, apriórico, universal e prioritário, esses quatro sentidos do ser se unificam sob a idéia
de essência do fenômeno.

II

De acordo com a tradição filosófica a ontologia é uma das duas partes principais em que se
dividirá a Metafísica (Metaphysica), a saber, metaphysica specialis e metaphysica generalis. A
primeira se divide em Psicologia Racional, Cosmologia e Teologia Racional. A psicologia tem por
objeto a alma humana, a Cosmologia o mundo, ou a natureza, e a Teologia trata, pr fim, das questões
relativas à essência de Deus. O problema de saber se a alma é ou não imortal, se somos seres
efetivamente dotados de livre arbítrio ou de que substância a alma é feita, pertencem à psicologia. A
cosmologia pergunta, entre outras questões, se o mundo teve realmente um começo no tempo e se terá
um fim; se há uma inteligência atuante na natureza ao modo de uma providência divina, se Deus criou
esse mundo como o melhor dos mundos possíveis ou se pode interferir na sua própria criação, se os
fenômenos são intrinsecamente determinados sendo o acaso apenas um efeito da nossa ignorância das
causas, ou se este último pertence à natureza considerada em si mesma; se tudo que existe foi gerado a
partir de uma unidade originária e qual sua natureza, ou se a multiplicidade não seria primeira. A
teologia busca provar a existência de Deus e discutir a legitimidade das diversas provas já existentes,
conhecer a maneira como Deus existe, se ele é, e como, entre outras possibilidades, omnipotente,
omnisciente, omnipresente, etc.
2
Parmênides: baniu o múltiplo (o ente e não os entes) e o não ser (totalidade). Em parte alguma há o nada.

4
5

A metaphysica generalis, ou ontologia, trata da questão (do ser) do ente considerado em sua
totalidade. O ser é tudo aquilo que é, ou seja, tudo é ser, de alguma maneira, e ser é tudo. Pensar o ente
em seu ser é pensá-lo a partir da totalidade que o compreende em mais alto grau, de tal modo que
todas as diferenças, diversidades e oposições desapareceriam. Do ponto de vista do seu ser os entes são
abarcados em sua totalidade, isto é, são unificados numa totalidade que é justamente o ser. O ser é
assim a identidade de princípio a partir da qual os entes se determinam como entes distintos e diversos.
Como tal o ente pode ser considerado prioritariamente a partir da sua existência em ato (ente
concreto existente), conforme a tradição tomista, ou enquanto meramente possível, em oposição às
regiões da realidade estudadas pela metaphysica specialis, conforme a concepção predominante a partir
da modernidade e principalmente, a partir de Kant: o ente como objeto de uma experiência possível.
Heidegger distingue e, ao mesmo tempo, vincula essencialmente, ente e ser fazendo deste, por
mais paradoxal que possa parecer, o objetivo único e verdadeiro da ontologia, como já vimos. Afirmar
que o ser é sempre o ser do ente é dizer que ele consiste em fazer aparecer o ente como fenômeno.
Assim o ser é a essência do fenômeno, mas o que aparece no fenômeno é o ente, não o próprio ser. O
paradoxo reside no fato da fenomenologia ter como objetivo elucidar a essência dos fenômenos ou seja
o que torna possível o aparecer do ente no fenômeno e que não pode ser identificado através do próprio
ente que aparece. Em outros termos, trata-se de investigar, no fenômeno, o ato de aparecer e não o que
aparece. Mas, como a luz no objeto que a reflete, o ser “des-aparece” no ente cujo aparecer torna
possível. Deste ponto de vista, se a ontologia é uma “ciência do ser enquanto ser”, que via de acesso
poderíamos seguir para elucidar o próprio ser ou aparecer em sua forma pura? Ou a ontologia seria um
simples desejo de saber, impossível de ser realizado, porque seu objeto, simplesmente, não se daria a
ver?

§ 01 DESEJO DE SABER E SABER DO DESEJO

Conforme a definição tradicional de filosofia, elaborada a partir da análise etimológica da


palavra (philo + sophia) significaria “desejo de sabedoria”, a meio caminho, portanto, da ignorância e
do saber. Apesar de bastante difundida, essa definição é insuficiente. A filosofia não é simplesmente
desejo de saber 3, o que se aplica a toda forma de conhecimento, mas desejo de saber sobre o desejo
de saber, porque investiga, efetivamente, o fundamento que torna possível - e legítimo – aquele
desejo.4 O desejo de saber revela-se como tal na interrogação ou pergunta que leva a investigar.
Perguntando e investigando o homem deseja saber. Não há saber que não derive de uma interrogação,
nem pergunta não conduzida previamente por alguma forma de saber. Investigar o fundamento do
saber partindo do desejo de saber significa pois questionar a própria essência – possibilidade e
legitimidade - da interrogação de onde se origina toda investigação e saber humanos.
Ao analisarmos a estrutura da interrogação vemos que toda pergunta interpela, primeiramente,
o ente considerado em seu ser. Podemos perfeitamente interpelar outros homens supondo que
conheçam as respostas para nossas perguntas, porém, se a resposta exigida consiste em saber acerca da
própria coisa, esta deverá poder ser interpelada, de modo originário, por algum sujeito efetivo. Por esta
via todo saber se fundamenta numa revelação ou desvelamento da própria coisa interrogada, a
partir da sua apresentação a nós em “carne e osso”. Interrogar as coisas consiste em perguntar o
que elas, de alguma forma, são. Mas o que torna possível a pergunta pelo ser das coisas não é,
3
“Todo homem deseja por natureza saber,” afirma Aristóteles (Met. I, 1, 980ª, 21).
4
“A epistémé é por sua natureza reflexiva porque não podemos compreender o mundo sem compreender ao mesmo tempo o lugar nele
ocupado pela nossa própria compreensão, de modo que o desejo de compreender e o desejo de compreender este desejo são um só
(23).

5
6

evidentemente, o simples desejo de saber, pois nem todo desejo pode realizar-se.5 Anteriormente à
curiosidade, ao espanto diante dos fenômenos da natureza ou interesse pela verdade, há o eterno
desvelamento/velamento do mundo no qual nossa existência encontra-se mergulhada. A essência do
questionar fundamenta o desejo de saber na medida em que reside no modo de ser e se mostrar
do próprio ente como tal no horizonte do mundo. O ente é questionável em e a partir da estrutura da
sua manifestação desveladora originária. Todo problema consiste em elucidar o que constitui a
investigabilidade do ente6, ou, o que dá no mesmo, o desejo de saber, posto que não se deseja o que se
possui nem o que se desconhece absolutamente. “Resistindo à suprema possibilidade de não ser, o
ente in-siste no ser, embora não tenha nunca ultrapassado e superado a possibilidade do não-ser”7
afirma Heidegger. Deste modo a precariedade do desvelamento condiciona o inesgotável
questionamento da natureza dos seres a que o homem está condenado. A verdade tem que ser a cada
momento, refeita a partir de uma manifestação sempre em vias de não ser.
A filosofia é pois orientada pelo desejo de saber que visa elucidar o que torna possível ao
homem conhecer a verdade. E como este desejo é especificamente filosófico, a filosofia problematiza
seu próprio fundamento.

§ 02 PHYSIS E DES-OCULTAMENTO

“A natureza ama ocultar-se”8, afirma um fragmento do efesiano Heráclito. Mas os gregos


pensavam a “natureza” através da noção de “physis”.9 Como tal o termo designa o que a tradução latina
(physis por natura) perverte, completando a restrição do significado originário, iniciada com Platão,
seguida por Aristóteles e consolidada pela tradução latina: “natura”.10 De acordo com seu significado
originário natureza (“physis”) designa o fundo comum de visibilidade de onde provém e a partir de
onde se mantém a imposição da presença de todas as coisas. Para Heidegger, na perspectiva dos
“pensadores originários” (Os Pré-socráticos) a physis engloba tudo o que denominamos “natureza” e
também os homens e deuses, o mundo da manifestação e o horizonte discursivo da vida cotidiana.

5
Um bom exemplo é o desejo de conhecer a existência de Deus, conhecimento que Kant, na “Crítica da razão pura”, demonstrou ser
impossível, ainda que o desejo como tal seja legítimo.
6
Referindo-se a uma passagem do Prometeu de Ésquilo, onde é afirmado que “o saber é de longe muito mais desprovido de força do
que a necessidade”, Heidegger conclui que esta afirmação se refere à finitude da teoria ou do conhecimento humano. “Todo saber
acerca das coisas permanece de início entregue ao poder superior do destino e fracassa diante dele”, escreve. Por esta via Heidegger
pretende ciriticar a idéia moderna de ciência enquanto conhecimento teórico no sentido de saber auto-suficiente., saber que não
dependeria senão de si mesmo embora seja o mais “esquecido de si”. (Discurso da reitoria. Trad. João Camillo Pena. In: Terceira
margem. Rio: UFRJ, 2007, p. 157). Mais adiante na mesma página Heidegger acrescenta que “a ciência (em sentido grego) é a
firmeza incessante do questionamento em meio à totalidade do ente que incessantemente se oculta. Esse perseverar auante sabe, no
entanto, de sua fraqueza diante do destino”.
7
Introdução à metafísica, op. cit., p. 58, grifado por mim. Segundo Heidegger, como se vê, há uma supremacia no não ser, velamento
ou não verdade sobre o desvelamento do ser.
8
Segundo a tradução brasileira do “Heráclito” de Heidegger: “surgimento favorece o encobrimento”
( op. cit., p. 122); e Emanuel Carneiro Leão traduz: “o Surgimento já tende ao encobrimento”(citado
pela tradutora in. Heráclito, Idem). O próprio Heidegger comenta no livro citado outras traduções. Cf.
p. 131.
9
Idem, p. 114.
10
Natura provém de nascor, vir ao ser por geração.

6
7

Assim φνδισ não designa a natureza que opomos ao espírito, a cultura ou a história; ou ainda o mundo
sensível sujeito ao devir contraposto à eternidade do mundo inteligível das idéias. A natureza
originariamente pensada é o próprio ser como tal, não uma região ou dimensão determinadas do ser.
Ora, a diferença principal entre o conceito de natureza e o de physis consiste no fato do
fundamento permanente constituir a própria essência da segunda: o que se oculta no aparecer. Assim,
no âmago do processo de aparecer mais próprio decorrente da physis, encontra-se já, ao mesmo tempo,
um processo de ocultação. É esse ocultar/desocultar-se que, constituindo a essência do aparecer, torna
possível investigar interrogando o ente a partir do seu ser.
A mesma questão encontra-se em Platão quando afirma que toda pergunta pressupõe saber
algo, antecipadamente, de alguma forma, sobre o que procuramos saber. Daquilo sobre o que nada se
sabe nada se pode, pois, perguntar. “Ninguém pode indagar o que sabe nem o que não sabe, porque não
pesquisaria o que sabe, pois já o sabe, nem investigaria o que não sabe, porque não saberia sequer o
que deve ser investigado” 11. Portanto, toda pergunta implica necessariamente a possibilidade da
resposta (do contrário ela não teria sentido), e a possibilidade de acesso até a coisa mesma a fim de
interrogá-la em seu ser (aparecer). Acesso constituído pelo ser do ente compreendido como physis. A
acessibilidade do ente em questão abre previamente o âmbito onde ele é encontrável. A filosofia
é, pois, nutrida pelo desejo de saber acerca do que torna possível a abertura desse âmbito sempre já
aberto, antes de toda busca e procura, que dirige e pré-orienta o olhar que investiga e conhece.
Por isso nenhuma pergunta põe a si própria em questão. Se assim fosse cairíamos em um
círculo vicioso. O questionamento pressupõe um horizonte de onde ele parte e que permanece
necessariamente inquestionado. Se vemos alguma coisa que não sabemos bem o que é,
perguntamos:“o que é isto?”. Esta pergunta pressupõe, primeiramente, que vemos algo, e que o sentido
desse algo é duvidoso. Ademais pressupomos que podemos saber corretamente o que é aquilo que
vemos, ou seja, que podemos estabelecer um acordo sobre o sentido de ser do objeto visado com outras
pessoas cujo ponto de vista é distinto do nosso. Perguntar a alguém o que é isto é dirigir-se a um
mesmo horizonte comum de visibilidade, é visar um mesmo fenômeno e buscar, através dele, o sentido
de ser do ente duvidoso e dubitável que ele manifesta.
Dois exemplos retirados das obras de Galileu e Kant nos ajudarão a compreender melhor o
caráter prévio do saber do que torna possível a investigabilidade do ente a partir do seu ser.
Quando Galileu diz ser a natureza um grande livro aberto diante dos nossos olhos, afirma que
ela é acessível aos esforços do conhecimento humano, podendo ser investigada pela ciência porque se
abre em seu ser para nós. Mas para que o homem possa conhecer a natureza, assim aberta e
confrontada, é necessário que saiba, antes de tudo, decifrar a linguagem em que esse “livro” está
escrito: a mathesis. Assim a matemática, dentro do ponto de vista metafísico onde se move o
pensamento de Galileu, pré-dispõe o homem ao conhecimento da natureza tal como ela é, ou seja, a
totalidade do ente em seu ser. Ela abre o domínio em que o ente pode se tornar investigável para a
ciência, uma vez reduzido a quantidades mensuráveis.
Do mesmo modo a Crítica da razão pura pretende explicitar as condições que tornam possível
o conhecimento da natureza, condições ditas transcendentais porque não são, consideradas em si
mesmas, um saber ou conhecimento, embora pertençam à essência de todo conhecimento possível. As
formas puras da intuição (espaço e tempo), são formas “a priori” da representação constituindo, como
tais, a objetividade do objeto, condicionando e antecedendo todo juízo de conhecimento enquanto
possibilitam a recepção do objeto como fenômeno da experiência possível. Como tal a representação é
o âmbito do horizonte já sempre aberto do ser que nos permite confrontar o ente na condição de objeto
a fim investiga-lo. Nesse caso a questão do conhecimento se endereça, em sentido transcendental, ao
que torna possível o objeto (espaço e tempo) sem ser objeto, pois se é verdade que só percebemos

11
Mémnom, XV, 81-82.

7
8

coisas no espaço e no tempo, estes não são perceptíveis “em si”. Não percebemos nem o espaço nem o
tempo, e sim coisas no espaço e no tempo.
Assim, interrogamos as coisas porque elas se mostram, de modo problemático, a partir do seu
ser, pois a investigabilidade do ente reside na essência do seu próprio aparecer, no que torna possível
encontra-lo de modo problemático (“o que é isto aí?”) e não no fato, posterior, de podermos duvidar do
que vemos. Em princípio podemos duvidar de tudo que a manifestação nos revela, na medida em que
haja, precisamente, manifestação de alguma coisa. Por isso a forma como o ente se revela, o modo
como aparece, constitui o fundamento do desejo de saber, modo de aparecer que é essencialmente um
des-encobrimento. Assim a investigabilidade exige que se dê primazia à verdade entendida como
desvelamento, desde que o velamento seja concebido, não como simples e total ocultação, o que
conduziria ao ceticismo, e sim como dissimulação do ente em seu ser que se opera na própria estrutura
da aparência.
Por esse caminho, se todo problema ontológico se endereça ao ente a partir do seu ser, a
filosofia é a indagação que se põe a si mesma em questão, perguntando, antes de qualquer coisa, a
partir de que fundamento é possível colocar a pergunta, absolutamente radical, sobre a essência do ser.
Nessa medida a filosofia se constitui como saber absoluto diante do qual tanto o erro quanto a verdade
provém de uma fonte única. Porque ser significa aparecer, no sentido de surgir, sair do ocultamento,
des-velar, manifestar, então pertence ao ser do ente, ou seja, ao seu aparecer, o encobrimento de onde
tal aparecer provém. Assim todo fenômeno trás no seu bojo a tendência originária ao encobrimento,
tendência que se revela como dissimulação obrigando o pensamento a por a questão da verdade no
contra-caminho da tendência ontológica do aparecer ao ocultamento. Tendência que assume, segundo
Heidegger, diversas formas históricas distintas determinando nossas possibilidades de compreensão e
interpretção do mundo, dos outros e da natureza.

§ 03 SIGNIFICAÇÃO METAFÍSICA DO SABER ABSOLUTO

A metafísica, define um recente dicionário 12, “é ciência da totalidade do ser e a totalidade da


ciência”, isto é, ela é saber absoluto do absoluto, pois afora o ser não há nada. Mas o que significa,
afinal, saber absoluto? De imediato trata-se do oposto ao saber relativo. Portanto, vamos começar
definindo esse último. Podemos compreender o caráter relativo do saber de quatro modos distintos.
Primeiramente trata-se do fato da extensão total da realidade não ter sido ainda abarcada no estágio de
desenvolvimento atual do conhecimento científico. A possibilidade de um (1) conhecimento exaustivo
de todos os fenômenos da natureza é, segundo Kant, apenas “idéia reguladora” a impulsionar
constantemente a ampliação dos nossos conhecimentos. Por esta via as realizações históricas são
sempre finitas em relação à própria idéia de ciência que remete a uma pesquisa, de direito, infinita no
tempo, à qual todas as ciências seriam relativas.
A segunda forma de compreensão do saber relativo deriva da (2) afirmação da relatividade
das perspectivas das diversas visões da realidade ou do mundo. Nesse caso se diz que o
conhecimento é relativo ao ponto de vista onde se situa o sujeito.13 (3) A terceira forma de finitude
12
MOLINARO, Aniceto. Léxico de metafísica. São Paulo: Paulus, 2000, p. 9.
13
A este propósito, vale o esclarecimento desse texto de CHANBOM: “o animal, ignora o Umwelt no qual vive porque não tem
experiência da existência absoluta e única do mundo. A idéia de meio ambiente, de mundo privado, específico, cultural ou individual,
não pode ser elaborada senão a partir do fundamento do mundo comum. É desconhecer o verdadeiro problema tirar conclusões céticas
sobre o mundo e a natureza da diversidade do Umwelt. A verdadeira questão consiste em saber como esta diversidade se articula
necessariamente com a unidade do mundo comum. E também de saber como a evidência da existência do mundo comum intervém

8
9

surge a propósito da idéia de que a essência última dos fenômenos não poderia ser jamais
alcançada pela ciência, (independentemente de qualquer desenvolvimento tecnológico e
metodológico, ou do ponto de vista adotado). A realidade, não tanto em extensão, mas em
profundidade, não poderia ser captada em seu fundamento último pela nossa capacidade de conhecer,
como ocorre, por exemplo, a propósito da teoria microfísica de Heisenberg, que afirma somente ser
possível conhecer os efeitos provocados pelos instrumentos observacionais na matéria, e nunca o que
ela seria independentemente disso ou em si.
A última definição do caráter relativo do saber concerne à (4) finitude do saber científico
considerado em e por si mesmo, à sua incapacidade de explicitar seus próprios fundamentos, ou seja,
em outros termos, de conhecer a própria essência do conhecimento em geral.
Deste último ponto de vista a ciência seria conhecimento relativo porque dependente de
condições que não pode esclarecer por si mesma, no sentido em que a essência do conhecimento, por
exemplo, matemático, não é de natureza quantitativa, do mesmo modo como os conceitos e teorias
elaborados pela Física não ocupam lugar no espaço. Assim, embora todo conhecimento implique
necessariamente um objeto, o que torna possível o aparecer do ente como objeto, a saber, a sua
objetividade, a fim de que ele possa, em seguida, ser conhecido, não pode ser esclarecido nem
investigado pelos métodos e regras que regem a ciência. Nessa medida o saber absoluto designa a
investigação do que condiciona a efetuação do conhecimento em geral. As ciências investigam o que as
coisas são de acordo com os diversos gêneros de ser – seres vivos, matéria etc. - a filosofia, neste caso a
ontologia (Metafísica geral), investiga o que torna possível ao ente manifestar-se na condição de objeto,
anteriormente aos atos de conhecimento que irão conceituá-lo.
Mas a filosofia não é saber absoluto no sentido da sua inquestionabilidade – nada há de mais
questionável e questionado do que as teorias filosóficas. A filosofia é saber absoluto porque
investiga a essência da verdade sem a qual nenhum saber seria possível, caminhando da condição
ao incondicionado. Assim é a direção para a qual se encaminha a investigação filosófica, mais que os
resultados efetivamente alcançados, que determinam o caráter absoluto do seu saber.14
Ora a essência da verdade é, de acordo com Heidegger, aletheia, ou seja, desvelamento. A
investigação que visa esclarecer o fundamento da verdade é o que Heidegger denomina “Ontologia”, na
medida em que esse fundamento é pensado a partir do próprio ser. O ser é a essência da verdade
sendo o fundamento do desvelamento do ente sob a forma de fenômeno para nós. Portanto a
filosofia se transforma em saber absoluto à medida que tematiza, não o que é verdadeiro, mas a
essência da verdade; não o ente, mas o Ser, não o condicionado e o fundado, mas o condicionante e o
fundante, não o que se presentifica no presente (agora), mas o processo da sua presentificação. A
primeira investigação desse “fundamento absoluto” ao qual corresponde um conhecimento absoluto,
deu-se na Grécia clássica com os filósofos denominados “Pré-socráticos”.

em um certo Umwelt induzindo, necessariamente, à idéia da irremediável singularidade da cada visão do mundo”(Le monde comme
perception, p. 142).
14
Para Husserl saber absoluto é sinônimo mesmo do Logos no sentido da razão considerada como faculdade e também no sentido da
essência do pensamento racional enquanto implica uma evidência apodítica ou, pelo menos dirigida na direção da verdade
apoditicamente evidente. Cf. Logique formale et logique transcendentale. Paris: PUF, 1965, p. 17, 28.

9
10

§ 04 OS PRÉ-SOCRÁTICOS

A questão filosófica por excelência, a mais originária, na ordem da história da filosofia assim
como do pensamento em geral, diz respeito ao fundamento do mundo abarcado em sua totalidade. Esta
questão é, inicialmente, religiosa.15 Os primeiros filósofos retomaram por sua própria conta e risco o
problema cosmogônico elaborado pela tradição religiosa e mítica da Grécia antiga. Trata-se de
determinar a essência da natureza concebida como origem do universo, no que se refere à sua
realidade, ordem e unidade. “E concluem estes filósofos que nada nasce e nada morre, porque esta
natureza (natureza origem dos seres naturais, natura naturans, JLF) sempre se conserva. É necessário,
pois, que exista uma tal natureza, única ou múltipla, da qual se originam todas as outras coisas,
conservando-se ela mesma”(Aristóteles, Metafísica, I, 3).

Portanto a idéia de que todas as coisas tiveram um começo (gênese ) no tempo e de que o ponto de
partida originário era um estado mais simples do que o universo conhecido, e que as partes do mundo
não estavam separadas, e sim unificadas por uma ordenação que obedecia, por toda parte, a um só
princípio ou tendência fundamental, esta idéia pertencia a “todas as cosmogonias”.16 Quando
Anaximandro, por exemplo, afirma serem as substâncias de alguma forma punidas por se afastarem do
Uno originário vindo a integrarem-se à pluralidade do mundo, associa este estado primário, não apenas
a uma forma mais simples de realidade, mas a uma verdadeira espécie de “idade de ouro” da matéria. 17
Por outro lado, a afirmação mitológica da semelhança entre a inteligência humana e divina justifica a
possibilidade do homem compreender o pensamento que rege a physis. Deus não será mais pensado sob
a forma de pessoa dotada de vontade, ou simples objeto de culto É o princípio da unidade originária de
todas as coisas, o objeto das teorias filosóficas pré-socráticas. Para designar esse princípio ao mesmo
tempo gerador (causa), permanente (substância), ordenador (finalidade) e incondicionado
(fundamento), os pré-socráticos utilizaram a palavra arké, mais ou menos equivalente ao termo to
theíon (princípio divino) que significa:
1. a substância, única ou múltipla, da qual se originam todas as outras coisas, não só no
começo do mundo, mas que, ainda atualmente e para sempre, impera.
2. princípio gerador incorruptível e incondicionado que se conserva idêntico a si mesmo, por
si mesmo; sendo a causa das transformações e movimentos.18
3. princípio unificante da multiplicidade dos seres, isto é, fonte da ordem cósmica, na
medida em que “os entes estão, em parte, e em parte tornam-se dispostos em boa e bonita ordem”.19

Assim os primeiros filósofos empregam ainda os conceitos mitológicos e religiosos de luta,


matrimônios, gerações, fundamentados na idéia de que as forças do amor (Eros) e do ódio imperam

15
CONFORD, M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. Lisboa: Calouste
Golbekian, p. 294.
16
CONFORD, M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. Lisboa: Calouste
Golbekian, p. 258.
17
SCHUHL, P-M. Essai sur la formation de la pensée grecque. Paris: PUF, 1934, p. 105.
18
Cf. Metafísica, I, 3.
19
Ver CONFORD, op. cit., p. 185, e Aristóteles, Metafísica, I, 4.

10
11

sobre o universo, como forças motrizes e geradoras. Hesíodo afirma ser Eros “o mais belo dos deuses
imortais” (Teogonia, 113) enquanto expressa a necessidade de haver nos seres uma causa que mova e
una as coisas (Aristóteles, Metafísica, I, 4, 984). Por isso as primeiras reflexões filosóficas acerca das
origens cósmicas vêm das teogonias mitológicas anteriores que se apossam, por sua vez, de conceitos
exauridos de uma reflexão sobre o mundo humano que, de certa forma, na Grécia clássica, antecede as
cosmologias e mesmo as cosmogonias mitológicas.
A imaginação mitológica/poética recuava no tempo passado até à origem das coisas, de modo que as
especulações teológicas ficavam pouco a pouco a cargo da poesia, tornando-se, por esta via,
independentes do culto e dos interesses oficiais dos sacerdotes e seitas religiosas. As obras de Homero e
Hesíodo, por exemplo, embora apresentassem certo interesse profético, não tinham propriamente
caráter sagrado, sendo abertas à crítica. Assim a filosofia põe de lado, simultaneamente, o manto
sagrado da profecia e a lira encantada dos poetas voltando-se criticamente para o passado no qual a
sabedoria fora atribuída à inspiração divina excepcional da poesia ou dos sacerdotes
De um lado temos o gradual desaparecimento da imagística mística, tal como, por exemplo, a figura de
Eros, e de toda interpretação cosmogônica efetuada a partir de uma série contínua de nascimentos,
constituindo uma verdadeira e completa árvore genealógica. De outro lado, no que tange ao acesso ao
ser supra-sensível, aparece, nos pré-socráticos, a distinção imediata entre uma realidade conforme ao
pensamento e ao mesmo tempo oculta aos sentidos, apreendida diretamente pela intuição intelectual,
que virá substituir os sonhos e visões proféticas como forma de revelação da verdade em geral. O
sobrenatural converte-se gradativamente no metafísico. A capacidade do espírito projetar o pensamento
para o que é invisível, está presente mesmo nos aspectos mais materialistas da doutrina de um Epicuro,
por exemplo.20

Por esta via a interpretação segundo a qual o problema cosmológico, tal como formulado
pelos pré-socráticos, representa a “afirmação das exigências da razão ante os dados da experiência
sensível”21 é o protótipo do posicionamento “parapositivista”22, que faz dos físicos modernos herdeiros
diretos desses primeiros pensadores. Ao contrário, o padrão metodológico seguido pela cosmologia
iônica, a despeito de toda aparência de completo racionalismo, não representa uma construção livre do
intelecto, raciocinando a partir da observação direta do mundo existente.23 Para JAEGER a filosofia
pré-socrática constrói uma “teologia natural” de certa forma já oposta à imaginação dos mitos e
religiões, mas fortemente ligada ainda ao sentimento de angústia do homem diante do sentido
da sua existência num mundo em eterno devir. Os pré-socráticos teriam descoberto primeiramente
nas leis internas da alma a legalidade que jamais poderia ter sido visualizada empiricamente na
natureza, investigando o que há de propriamente meta-físico. De outro lado há também o interesse em
compreender o que deriva daquela origem e existe atualmente (natura naturata) implicando a
investigação empírica dos fenômenos naturais enquanto entes presentes aos quais se sucedem outros
entes segundo uma necessidade.24 O objeto do primeiro tipo de interesse pode ser facilmente
identificado ao ser e à sua ciência, a ontologia; o segundo, ao interesse propriamente teórico que mais
tarde conduzirá à ciência racional da natureza e que os gregos herdaram dos orientais, como a
geometria e astronomia. Porém, em relação ao âmbito propriamente metafísico da investigação, “o
20
Cf. Crnford, op. cit., p. 252.
21
Mondolfo, op. cit., p. 34.
22
O termo é de Jean BRUN, in: Os Pré-Socráticos, p. 14.
23
CORNFORD, M. F. Principium Sapientiae. Lisboa: Gulbenkian, 1954, p. 329.
24
Cf JAEGER, W. Paidéia, p. 182 e ss.

11
12

mundo é cosmos, comunidade jurídica das coisas” submetidas, não a uma lei universal, como a
representada hoje pela atração gravitacional newtoniana, por exemplo, e sim a uma norma, menos
descritiva do que justificadora da natureza do mundo. Este era visto a partir da “incessante e inexorável
geração e corrupção” que tornava a existência “incompreensível e insuportável para as aspirações da
vida do homem ingênuo”.25 Assim, os primeiros filósofos não prescindiam das coisas e assuntos
humanos ao “visar exclusivamente a determinação do fundamento eterno das coisas”, 26 porque o
faziam partindo dos anseios mais profundos do homem, expressados na arte, nos mitos e nos cultos
religiosos, acerca do sentido da existência. Os primeiros pensadores gregos partiram das categorias da
vida jurídica para compreender a unidade entre a precariedade imediata da existência humana e o ser
eterno. Uma visão do ser separada do humano não poderia suprir o vazio em que o homem se
encontrava desprotegido frente ao “turbilhão destruidor do devir universal”, onde a filosofia da
natureza o precipitaria se o seu caráter metafísico não tivesse, desde o início, orientação religiosa.
Assim a “filosofia da natureza, no seu conceito de cosmos dominado pela dike, oferecia um ponto de
cristalização à consciência religiosa”27 permitindo, por fim, superar a oposição entre a religião do séc.
VI a.c. e o pensamento metafísico nascente.

§ 05 A POSIÇÃO DE HEIDEGGER

Segundo Heidegger os filósofos originários, isto é, os pré-socráticos, não poderiam ter


confundindo ethos e physis, como querem Mondolfo e Jaeger, entre outros, pela simples razão de que
eles não distinguiam entre princípios espirituais e substâncias materiais, entre subjetivo e objetivo,
entre causa final e eficiente (Aristóteles). Porque seu pensamento já se move no campo do
entendimento e suas divisões conceituais, Aristóteles censura seu precursor, Tales de Mileto, por
considerar que a alma se encontra misturada ao universo, sendo por isso - ainda de acordo com
Aristóteles - que Tales teria afirmado que tudo está cheio de Deuses.28 Porém, se “ethos” significa “a
morada do homem”, se o homem habita a verdade do ser, sendo a physis justamente o lugar onde esta
verdade impera, então os homens não estariam menos em casa na polis do que na physis29. De fato
para Heidegger a questão do ser inclui essencialmente, a da fundamentação da existência humana. 30
Isto não significa, de acordo com uma compreensão comum, que o homem interpreta o ser a partir do
ponto de vista traçado por sua história. Sendo assim o antropomorfismo dos primeiros filósofos, por
exemplo, derivaria da sua incapacidade em pensar objetivamente os fenômenos da natureza. Ao
contrário, a fundamentação da existência está incluída essencialmente na questão do ser porque a
existência se enraíza no ser.
“Dado que o aparecer pertence ao ser, entendido como physis – escreve Heidegger - o
homem deve, como ente, pertencer a tal aparecer. Por sua vez, visto que o ser homem constitui,
manifestamente, um ser próprio e peculiar no meio do ente em sua totalidade, segue-se que a
peculiaridade do ser do homem surge do seu modo próprio e específico de pertencer ao ser, como
25
Idem, p. 187.
26
Idem, p. 188.
27
Idem, p. 212.
28
De anima, I, 5. Sobre o caráter antropomorfo das filosofias anteriores afirma também Platão:
“Parece-me que cada uma delas nos relata um mito afirmando que todas as coisas provêm de núpcias
e nascimentos entre princípios” (Sofista, 242 c).
29
Ver Heidegger, Cartas sobre o humanismo, p. 99.
30
Introd. Met. P. 194.

12
13

aparecer imperante e vigente. Enquanto porém, a esse aparecer pertence percepção, o perceber
receptor, daquilo que se mostra, poder-se-á pressupor, que é a partir daí, que se determina a
essencialização do ser homem”.31
Vemos assim que a existência humana participa do processo de abertura do horizonte do ser
(physis) na medida em que se encontra essencialmente aberta para ele. O homem não pensa, percebe,
fala e cria senão porque sua existência é abertura para o ser. Portanto é a condição ontológica do
homem, não sua condição humana, que determina a existência. O homem só é plenamente homem na
medida em que projetando-se na direção da familiaridade assentada pela clareira do ser rompe com
aquilo que “nos é caseiro, habitual, não ameaçado” 32 projetando algo de novo ainda não presente, de
acordo com a terminologia de Heidegger, “poetando originariamente”.33 Tal dimensão aberta na
abertura do ser (physis) é justamente o que Heidegger denomina existência.. A história, ou “acontecer
histórico”, consiste justamente na ação criadora e instauradora da existência humana e a polis a
dimensão em que esta ação histórica de fundação tem lugar. “A polis é o lugar histórico, o espaço no
qual e a partir do qual e para o qual acontece história”.34

Portanto, para compreender o verdadeiro sentido da palavra “physis” para os gregos devemos
evitar traduzi-la, seja por “natureza”, em sentido amplo, seja por “natureza física” ou “material” em
oposição à natureza psíquica e espiritual do homem. Porque quando os gregos se referem à terra, ao
animal ou ao mar, não se referem à “natureza” mas à “força do vigor imperante”. Do mesmo modo a
referência ao homem não diz respeito apenas ao conjunto de características opostas à natureza tais
como a linguagem, o afeto, a razão e a arte. Ambos, o homem e o ente são confrontados com o “vigor
imperante”.35 O ente enquanto instância a partir de onde o ser provoca e estimula o homem em sua
existência histórica, o próprio homem como ente que tem de assumir em seu ser a disposição para o
“vigor imperante”. Esse vigor de instauração revelados pela poesia, a filosofia e a criação política, não
advém da entrada em cena de certas faculdades possuídas pelo homem, sendo antes de tudo modos dele
inserir-se nas forças daquele vigor instaurando-se nele como existência propriamente histórica. A
physis se restringe, primeiramente, na verdade, a partir do que constitui o fundamento do nomos
definido por Heidegger como “aquilo que diz respeito à livre conduta e atitude, que concerne à
configuração do ser histórico do homem e que então, sob a influência da moral, foi degradado ao
domínio do ético”.36

Assim a physis representa a compreensão do ser enquanto fazer aparecer no qual o ente se
revela a nós em sua totalidade. A aletheia (αληθεια) designa a compreensão da essência desse
aparecer, ou da verdade, enquanto des-velamento, a subtração a essa ocultação originária à qual
Heráclito se referia dizendo que a natureza “ama esconder-se”. De acordo com esse conceito toda
verdade determinada, todo descobrir, toda vinda na presença, toda revelação, é também, e
31
Intro. Met., p. 163. “O que se mostra em si mesmo na abertura compreensiva do homem permanence como algo irreduível à
representação objetiva de um sujeito cognoscente; porém por sua vez a abertura intencional do homem permite que uma coisa se
mostre em seu ser enquanto que a mesma existência humana constitui uma forma de abertura irredutível a qualquer determinação
psicológica, gnosiológica e antropológica”. Rodriguez, op. Cit. P. 48)
32
Idem, p. 174.
33
Idem, p. 168.
34
Idem, 175.
35
179.
36
Introdução à metafísica, op. Cit., p. 48. SCHUHL (op. cit., p. 357) define nomos como: 1) obrigação
de natureza superior, que se impõe aos homens e deuses; 2) lei escrita cuja publicação assegura a
todos a justiça igualitária.

13
14

simultaneamente, não verdade indeterminada, encobrimento, subtração ou velamento, que não


dependem de nada que o homem possa fazer. E o que permanece sempre velado em todo desvelamento
é justamente a essência da verdade como tal, ou seja, o próprio Ser. Não se trata pois, enfim, de
ultrapassar a aparência na direção da essência que se oculta por detrás ou além dos fenômenos, mas de
freqüentar a superação através da qual a própria aparência reenvia a si mesma num fluxo interminável.

De acordo com Heidegger, depois de Parmênides, Anaximandro e Heráclito, começa a


decadência do pensamento do ser, a errância da investigação metafísica em busca da medida capaz de
garantir a verdade, depois que a riqueza dessa elaboração primária e originária do conceito de ser foi
perdida em detrimento da interpretação da essência da aletheia como logos (λογοσ) e desse como
ratio: discurso adequadamente correlacionado ao ser. A história da metafísica Ocidental nada mais
é, para Heidegger, do que a história do esquecimento da investigação da efetiva essência do ser.
Mas este esquecimento nada tem de contingente. Para Heidegger o homem é impulsionado de dentro da
sua própria existência a por a questão do seu ser e do ser em geral. Assim tanto a possibilidade de
radicalizar a questão do ser, quanto de esquece-la, derivam das atitudes fundamentais da existência
cotidiana e histórica das quais o pensamento filosófico é a expressão teórica. O ser interpela o homem,
mas o que ele dá a dizer o faz de dentro da sua própria história, enquanto historial do seu
desabrochamento e da sua ocultação. Será portanto a história da metafísica e desse longo esquecimento
nela depositado que iremos abordar em seguida.

I – PLATÃO: A TEORIA DAS IDÉIAS

§ 06

A filosofia de Platão se deixar guiar pela necessidade, de influência socrática, de fundamentar


a possibilidade da elaboração de uma ciência capaz de orientar a conduta humana – política e
individual – assegurando-lhe, em ambos os níveis de existência, o exercício da virtude, da felicidade e
da justiça.37. Enquanto Parmênides definia o ser como unidade inerente a todo ente, em sua oposição
ao não ser, Platão deixa de lado a interrogação sobre a natureza mesma do ser. A teoria das idéias visa
investigar a essência da verdade no sentido do que permite ao homem corrigir sua conduta desviando-
se das opiniões sobre as quais a democracia grega esperava se apoiar. As investigações sobre a
natureza do ser características da filosofia pré-socrática são substituídas pelas especulações sobre a
estrutura do ser verdadeiro a partir da interpretação da sua essência como permanência.. “É preciso
distinguir antes de tudo, afirma o filósofo, as coisas seguintes: o que é o que sempre é, e não tem
geração; e o que se gera e nunca é” (Rep., VI, 18, 507). Mas a distinção entre ser e não-ser tem em
vista determinar a essência que torna o conhecimento do ente possível, garantindo, acima de tudo, a
verdade do discurso. “O conhecimento mais verdadeiro, em mais alto grau, é o conhecimento do ente e
de tudo o que é verdadeiramente e sempre do mesmo modo” (Filebo, XXXV, 57-8). E no Timeu a
mesma idéia é repetida : “é preciso convir que existe primeiramente o que permanece idêntico a si mesmo e
que enquanto idéia, que não nasce nem perece, nem recebe nada que venha de fora dela, nem se encontra em
37
Platão escreve que, a princípio, "desejara ardentemente tomar parte na vida pública" mas que os
acontecimentos políticos que presenciara deixaram-no perplexo. Por isso, continua o filósofo, "não
deixei de pensar na maneira de remediar todas estas coisas e, especialmente na organização do
Estado ... e fui levado a afirmar , em louvor da verdadeira filosofia, que só mercê dela era possível ter
uma verdadeira opinião do direito público e privado ...". Platão, Carta Sétima, cit. in. CORNFORD, F. M.
Estudos de Filosofia Antiga; Sócrates, Platão e Aristóteles. Lisboa: Atlântida, 1969, p. 31

14
15

qualquer parte, que não acessível à vista nem a qualquer outro sentido que a inteligência tem a função de
conhecer; e que há, secundariamente, o que tem o mesmo nome (que a idéia, JLF) e que é semelhante, mas é de
natureza sensível, nascendo e permanecendo sempre em movimento, surgindo em qualquer lugar para em
seguida desaparecer e que é acessível à opinião acompanhada de sensação” (Timeu, 51 52). Portanto o que no
ente merece consideração e é digno de ser objeto do conhecimento verdadeiro, o ser efetivo do ente, é o
que permanece idêntico, subtraído às mutações que sofrem toda espécie de seres existentes no mundo,
oferecendo-se a nós a partir do horizonte da experiência sensível.38
O interesse filosófico de Platão recai, portanto, não tanto no ser do ente como tal, mas sobre o
que, no que se refere ao ente, há de imutável, sendo, então, verdadeiro. A verdade do conhecimento é
garantida pelo que, no ente que aparece, é permanente (o que na presença é sempre presente), podendo,
por isso, ser fixado num conceito ou numa definição que será, por sua vez, imutável e duradoura,
passível de ser guardada, escrita e repetida por todos e para todo o sempre. Através da teoria das idéias
(eidos) Platão visa o imutável e permanente que constitui o ser do ente de tal modo que garante a
validade eterna e a certeza absoluta do sentido do discurso humano a ela referida. Com esta atitude
Platão se aparta da tradição filosófica que o antecede na medida em que o ser é por ela pensado como
algo essencialmente velado e obscuro.
Além das exigências de explicação da verdade do conhecimento e do discurso, todo existente
sendo nomeável, a significação aparece como dimensão apriórica do ser com todas as características
ideais que a fazem durar na memória dos tempos. A linguagem não constitui somente o fio condutor
que leva à negação do sensível, mas também seu modelo. “É por intermédio da atividade própria da
linguagem, unificação espontânea do múltiplo, que a dialética faz aparecer a idéia como ser verdadeiro
das coisas”.39 Por fim nos referiremos também à beleza como via de acesso privilegiada ao ser das
idéias. Deste modo a teoria das idéias vem resolver os problemas do conhecimento (a garantia da
verdade dos valores e conceitos em geral), da linguagem (a idealidade das significações), do desejo (a
possibilidade de uma satisfação justa e verdadeira) e da lei (possibilidade de um ordenamento
jurídico/político conforme a justiça).

§ 0640

38
“Platão não pode nunca admitir que o ente individual seja ente em sentido próprio”. Já Aristóteles “inclui o indivíduo no vir à
presença” (HEIDEGGER, Nietzsche, II, 228, cit in BERTI, E. Aristóteles no século XX, p. 134)
39
Frouchon, P., op. cit., p. 563.
40
Haveria na obra de Platão um “não dito” que diz respeito à uma mudança no estatuto da verdade e que poderia ser demonstrado
mediante uma adequada interpretação da alegoria da caverna em “A república”. “Geralmente a pessoa pensa que vê diretamente esta
casa, árvore ou deus. De início, e na maior parte das vezes, o homem não suspeita de que vê sempre e somente à luz das Idéias tudo o
que para ele vigora tão facilmente, como “real”. Aquilo que única e propriamente se supõe real, o imediatamente visível, audível,
palpável, e calculável, permanece, segundo Platão, contudo, sempre apenas o obscurecimento da idéia, e, por conseguinte, uma
sombra”(A doutrina de Platão sobre a verdade, p. 45). Os aspectos daquilo que as próprias coisas, ou seja, as idéias, são, constituem a
essência em cuja luz cada ente singular se mostra como isso ou aquilo (67) a beleza faz com que tal pessoa se mostre sob o aspecto
“bela”.
A essência da idéia está na capacidade de brilhar e ser assim visível
As idéias capacitam algo a aparecer como o que é e, assim, a estar presente em sua perman~encia de modo a ser conhecido
verdadeiramente
Reorientação para fora da esfera do que vem imediatamente ao nosso encontro
Ser algo consiste em poder ser previamente apreendido a partir de uma idéia no sentido da representação de um universal. Por exemplo
“Sócrates é homem.’

15
16

O termo grego eidos (idéia) não designa, na língua grega corrente, uma representação do
pensamento, nem a imagem arquetípica e exemplar do ente, conforme o sentido que o termo assumirá
na obra de Platão. Segundo Heidegger a idéia significa originariamente o que é visto em tudo aquilo
que é ou pode ser visível, a fisionomia com que alguma coisa se oferece a nós. “O que se oferece é o
aspecto (Aussehen), eidos, do que vem ao encontro”.41 Assim a idéia, na terminologia corrente antes de
Platão, aponta para o ser do ente concebido como aparecer. Porém, na aparência é preciso distinguir o
fato de aparecer, que constitui o elemento propriamente ontológico, daquilo que, no aparecer, aparece,
a saber, o ente sob um dos seus muitos aspectos. Assim a presença do ente presente e a modalidade
desta presença como aquilo que o próprio ente é, é sua idéia. O que um ente é reside em seu aspecto, o
qual por sua vez apresenta (deixa fazer-se presente) esse o que, i e, a quididade, o ser-o-que.42 A
PHYSIS designa originariamente o aparecer nascente, a idéia ou aspecto entendido como o que é visto,
o que vem de encontro a uma visão. A Physis é assim o aparecer considerado em sua essência, de
forma independente da visão. O primeiro conceito visa o aparecer originário, a abertura de um
horizonte ontológico para o qual a visão estará, por sua vez, voltada. A visão delimita um campo
próprio no interior do primeiro aparecer, ou seja, uma perspectiva determinada. Mas o aparecer
aparece antes e independentemente do ente que nele se revela e do olhar do homem que sobre ele se
debruça.
Platão interpretará a idéia de modo radicalmente diferente. As idéias fazem ver a verdadeira
face do ente, ou seja, a sua face inteligível:
(1) em contraposição à aparência sensível, na medida em que esta oferece um aspecto
desfigurado da enticidade verdadeira ao incorporar o ente na matéria e no devir das diversas
perspectivas através das quais as coisas se mostram a nós. Mediante esta via o discurso perder-se-ia no
emaranhado das aparências sensíveis para onde se encaminham as doxoi (opiniões), pautando-se pela
superficialidade, contraditoriedade e falsidade. A idéia constitui o aspecto do ente separado da sua
aparição efetiva, e que faz, por exemplo, com que cada uma das diversas facetas de uma cama
percebida de vários lados sejam todas igualmente aparências de uma só e mesma cama. A cama
enquanto permanece a mesma, separada dos seus aspectos, é a cama verdadeira: verdade representada
pela idéia una e idêntica a si mesma.
(2) A idéia se transforma em “figura exemplar”, em ideal e paradigma, e a aparência
em manifestação da cópia do exemplar, abrindo entre o ente que aparece e seu aparecer, o abismo
metafísico inultrapassável da idéia.

41
Heidegger, Introd., op. Cit., p. 201. Também “Ensaios e Conferências”. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 23.
Ver Mac Dowell, J. A A. O fim do fim da metafísica. In: Reflexões, Mariana: Dom viçoso, 20004, p. 9-44. O
pensamento grego foi o primeiro a identificar o ser do ente com o aspecto privilegiado que ele apresenta ao
simples olhar da inteligência, em detrimento do modo como os entes aparecem na vida cotiana enquanto
utensílios de uso. “O conteúdo desta contemplação intelectual se articula na estrutura do juízo predicativo, no
qual o sujeito (hypokeimenon) corresponde à coisa, enquanto dada na experiência sensível, e o predicado
corresponde ao aspecto sob o qual o inteligência a apreende e que revela aquilo que a coisa é”. Daí a doutrina
das categorias, isto é, dos diversos aspectos ou perspectivas a partir das quais podemos compreender o que as
coisas são (tempo, lugar quantidade etc.). Segundo Mac Dowell, Heidegger aponta para uma dupla
significação da transcendência em sentido metafísico. De um lado a transcendência ontológica do ser do ente
em geral, a essência ou ousia, ligada ao que há de acessível ao nosso intelecto,mesmo no ente submetido às
vicissitudes da mutabilidade temporal, e, de outro, a transcendência da realidade supra-sensível, divina.
42
“O ser ou essências das coisas sujeitas à mudança e à multiplicação segundo o ritmo do tempo, é justamente o aspecto que elas
oferecem à visão intelectual e que permanece através da mudança, como presente intemporal e imutável, necessário e universal. O que
é, enquanto é, não muda. Ser significa portanto presença constante, estabilidade, identidade consigo mesmo. MAC DOWELL, J. O
fim do fim da metafísica. In: Reflexões. Mariana: Dom Viçoso, 2000, p. 25)

16
17

Por essa via a idéia transforma-se em ideal, isto é, em paradeigma (paradigma), no que toda
coisa deveria ser e nunca será. A aparência torna-se o aparecer da cópia enquanto exemplo que, como
tal, remete à idéia arquetípica. Na medida em que nunca pode rivalizar-se com a sua figura exemplar e
originária, o que aparece revela-se simples aparência no sentido de um parecer: simples “aspecto” da
verdadeira realidade.
O aspecto significa pois o defeito, a imperfeição e deficiência do surgir a partir da
physis em relação ao mundo das idéias. “É então, conclui Heidegger, que se separam on (ser) e
phainomenon (fenômeno)”43. Separação que terá como conseqüência a transformação da verdade da
physis, ou seja, da aletheia, que constitui a doação originária e prévia do ente, em correção do discurso
e em adequação da visão à verdade do que é dito, adequação que só pode ser garantida pela
representação e captação prévias do modo de ser ideal do ente.44
A interpretação platônica do ser como idéia advém da “experiência fundamental do ser como
physis”45. Porém, ao mudar o sentido do conceito de aspecto Platão transforma a interpretação do ser
do ente que cessa de estar ligada ao acontecimento original da physis. O aparecer cessa de significar
surgir, palavra que remete à noção de acontecimento, de algo inesperado, im-pré-visível, passando
a designar o ponto de vista que tomamos acerca do aspecto através do qual o próprio ente se mostra, e
que pode ser mais ou menos correto, baseando-se naquilo mesmo que a própria idéia da coisa é. Ou, ao
contrário, pode ser um ponto de vista enganador, pois a conjunção da perspectiva da visão tomada
sobre o aspecto do ente oferecido no fenômeno abre a via da simples aparência e da opinião (doxa). Tal
situação torna necessário introduzir a correção apriórica do próprio ponto de vista ou perspectiva
lançado sobre o aparecer do ente.46
43
Introd. p. 204. “A visão da aparência pela qual se pode olhar o que é uma casa, e não esta ou aquela casa
percebida sensivelmente, a visão da aparência do que constitui a casa é algo não sensível, é supra-sensível.
Pensar o ente a partir da idéia, do supra-sensível, é o que distingue o pensamento chamado metafísico”.
Heráclito, p. 266. Assim a apreensão de uma casa em seu ser é a intuição intelectual da idéia universal que lhe
corresponde e que constitui a verdadeira aparência e visão da casa.
44
“De algum modo, Platão, ainda assim, tem de manter a verdade como caráter do ente, porque o ente, como o que se faz presente no
aparecer, tem o ser, e este traz consigo o desvelamente. Simultaneamente, contudo, a pergunta sobre o desvelamento se desloca para o
aparecer da evidência e, com isso, para o olhar a ele referido e, também, para o correto e a correção do olhar. Por isso, há uma
ambigüidade necessária na doutrina de Platão”. A doutrina de Platão sobre a verdade, p. 32. Assim Heidegger distingue entre o
desvelamento, que possui uma proveniência ontológica, não podendo ser interpretado como adaptabilidade do modo de ser do ente à
conformação do ver, e a evidência que consiste justamente em ver de modo correto, ou seja, a partir de uma posicionamento correto
em relação ao ente. É que a evidência da verdade depende do modo de desvelamento prévio do ente. Heidegger chama a atenção para
o fato de que também em Aristóteles existe tal ambigüidade quando ele define a verdade (Met. Livro 9, 10, 1051 a) que a verdade e a
falsidade, longe de pertencerem ao modo de ser das coisas, está no entendimento humano que julga e enuncia proposições. “a essência
da verdade como a correção da representação enunciada torna-se normativa para o conjunto do pensamento ocidental” (Idem, p. 23).
E, “a verdade não é mais, como desvelamento, o traço fundamental do próprio ser, mas tornou-se correção, em conseqüência da sua
subjugação à idéia e, a partir daí, o traço distintivo do conhecimento do ente”. Heidegger opõe aqui a verdade enquanto “traço
fundamental do próprio ser” e “traço distintivo do conhecimento do ente”. O primeiro é o sentido ontológico o segundo meramente
antropológio na medida em que se trata de assegurar a correção do olhar humano, de guia-lo previamente para o aspecto verdadeiro do
ente, de realizar uma aspiração, um desejo, daí philo-sophia. Daí também o humanismo da filosofia: “trata-se sempre de levar o
homem animal racional, determinado no âmbito de uma estrutura metafísica do ente, fundamental e bem firmada, à emancipação de
suas possibilidades, à certeza de sua determinação, e à garantia da sua vida. Isso acontece pela modelagem da atitude moral, pela
redenção da alma imortal, pelo desdobramento das forças criativas, pela instrução da razão, pelo cultivo da personalidade, pelo
despertar da solidariedade, pelo cultivo do corpo ou pela combinação adequada de alguns ou de todos esses “humanismos”.

45
Ibidem, p. 202.
46
Cf. Introdução à metafísica, p. 131. Ao mesmo propósito afirma Heidegger em outra obra: “segundo Platão a
dificuldade de se visualizar a essência das coisas, isto é, as idéias, se explica porque o homem se ilude, e não
porque a essência das coisas se esconde”. Heráclito, p. 150.

17
18

Com isto se esboça a doutrina das categorias que, através dos séculos, dominará a metafísica
do Ocidente.

De fato essa adequação prévia da visão, dos juízos e do discurso à verdade do ser, garante a
correção do pensamento que se move num espaço de dimensões já conhecidas “a priori”, inspiração
inicial da lógica. As categorias representam justamente as determinações desse espaço de visibilidade
orientando as conexões necessárias que o pensamento deve efetivamente fazer a fim de apreender a
verdade. Deste ponto de vista o verdadeiro ser surge como o que se oferece ao pensamento a partir de
um quadro ideal previamente estabelecido, atuando à maneira de uma norma para sempre fixada. A
verdade está lá, já feita. As categorias da lógica nada mais são do que as determinações constitutivas
desse quadro apriórico, definindo a essência metafísica da verdade. Da verdade como revelação somos
conduzidos a verdade como correção do discurso, ou seja, como adequação entre o pensamento e o ser
que o restante da historia da filosofia jamais conseguiu explicar.47

§ 08
Assim, a relação entre ser e ente é pensada a partir da noção de participação (Méthexis) do
ente, em sua totalidade, na idéia (Cf. Sofista 252 c, 251 d). O conceito de participação tem dois
sentidos. Primeiramente designa a relação das idéias entre si e as leis ou categorias que regem a forma
como elas, relacionando-se, misturam-se de modo inteligível, existindo umas nas outras e permitindo,
desse modo, o discurso predicativo. Em segundo lugar entende-se por “participação” a relação
paradigmática das idéias com as coisas sensíveis. Nesse sentido a relação entre o mundo das idéias e o
mundo sensível dar-se-ia ao modo da relação da cópia ao modelo, o segundo determinando a perfeição
imaterial, imóvel e essencial do primeiro. Por esta via o ente torna-se a transfiguração sensível da
realidade ideal. Toda produção(poiesis) é, deste ponto de vista, imitação (mimesis).
As idéias têm existência apriórica e a idéia de cavalo não é engendrada a partir de nenhum dos
procedimentos do entendimento humano que se limita a intuí-la. Mas a teoria das idéias, como tais, é
inteiramente motivada pelo esclarecimento que lança sobre o mundo e sobre a vida do homem,
permitindo “corrigir” tanto a polis (República, Leis, Político) quanto o desejo amoroso (Banquete,
Fédon) ou o discurso (Sofista, Parmênides). Sendo a correta apresentação do mundo, das coisas e dos
valores, as idéias regulam o posicionamento do homem diante da sua própria vida. Conhecendo a idéia
da cama verdadeira o carpinteiro produzirá a melhor cama possível, do mesmo modo como o amante
compreenderá a verdadeira natureza e o verdadeiro objeto do seu desejo contemplando a essência da
beleza, e o político fará boas e adequadas leis conhecendo a idéia de justiça. Daí que a existência “em
si” das idéias não deva esconder sua função normativa assegurada, acima de tudo, pela proeminência
da idéia das idéias: o bem.
Assim a dificuldade em que os homens se encontram em compreender a essência das coisas,
incompreensão que origina a doxa, deve-se ao fato do olhar humano se deixar iludir pela aparência.
Para que as idéias possam se manifestar ao homem é preciso que haja uma correção do olhar, uma
transformação da visão que a torne capaz de intuir as essências sem permanecer presa às sombras
dissimuladoras e ilusórias do mundo da caverna. Assim não há, na luminosidade, no brilho e
aparecer das idéias, nenhum lugar para qualquer tipo de velamento ou ocultamento essencial.
Se a essência das coisas não se mostra ao homem isto deve-se apenas à união contingente da
alma e do corpo que torna o pensamento humano apegado à sensibilidade e, como tal ao reino
ilusório das aparências. Apenas na medida em que logra superar esta contingência da sua existência,
47
“verdade enquanto certeza diz asseguramento da humanidade a partir dela mesma e para ela mesma”. Metafísica e Niilismo, p. 173.

18
19

tornando a alma senhora do corpo e a inteligência dos sentidos, ascendendo, por esta via, à intuição
eidética, o homem pode, simultaneamente, conhecer a essência das coisas e tornar-se justo.

§ 09

As idéias e a predicação

Definindo a relação das idéias entre si, a participação (mehéxis) responde ao problema
eleático da relação entre ser e não-ser, interpretada a partir da estrutura do discurso. Trata-se de
compreender a unidade que cada coisa forma, no discurso mais cotidiano, com a multiplicidade das
suas determinações. Em outros termos, como explicar a unidade de um mesmo sujeito com seus
diversos predicados possíveis? O homem é racional. Isto significa que não é uma pedra e que é vivo,
quer dizer, que é, e não é. Mas haveria diferença entre o Homem enquanto é (animal racional) e o
homem enquanto (não) é (uma não- pedra)? Entre Sócrates e Sócrates sentado? Toda maçã é vermelha,
mas nem todo “vermelho” é de uma maçã. Quando afirmo que a maçã é vermelha, na condição de
predicado o vermelho não se identifica à maçã, do mesmo modo, ainda que não no mesmo sentido,
Sócrates é o mesmo ser do qual afirmamos estar sentado, ser racional ou saber gramática.
Pois bem de acordo com a doutrina eleática, duas teses fundamentais definem a essência do
ser. A primeira afirma que o “não-ser não é”, a segunda, que o ser “é uno”. Segue-se o postulado
máximo do idealismo filosófico, a saber. A identidade entre ser e pensar, com a qual, aliás, Platão
concorda plenamente. Se ser é igual a pensamento, o que não pode ser pensado sem contradição não é.
Daí a célebre demonstração da impossibilidade do movimento efetuada por Zenão de Eléia. O
discípulo de Parmênides demonstra ser impossível a realidade do movimento porque ele não pode ser
pensado sem a admisão do não ser, dado que um corpo que é (está) aqui e agora, será (estará) lá onde
não era (estava). A tese não nega a percepção sensível do movimento mas sua realidade uma vez que o
pensamento é essência da realidade. Ora Parmênides pretende definir o ser. Mas se o ser é uno e o não
ser não é, então ou bem o ser é idêntico à unidade e, neste caso, ela não pode ser um atributo
definitório, ou é diferente, caso no qual haveria dois e não um termo. Além do mais, se o ser e o uno
formam uma totalidade, é esta que na verdade é e o ser seria, diante dela, não-ser.
De fato o discurso predicativo - e significativo - une sempre duas ou mais idéias diferentes
pois, caso contrário, seria tautológico. Dizer que a idéia de branco participa da idéia de homem é
afirmar, ao mesmo tempo, que o homem “é” branco. A participação é o princípio que rege o modo
de ser das idéias no discurso. Se, enquanto fundamento, as idéias são primeiras em si, primeiro para
nós é o ser da diversidade das idéias projetado na estrutura predicativa do discurso. Dizer que uma
idéia “é”, simplesmente, nada acrescenta e nada significa. O problema ontológico reside na teoria da
participação que deriva, por sua vez, da estrutura da predicação considerada como essência da verdade
do ente. A doutrina ontológica da participação é, identicamente, doutrina da verdade do discurso. A
predicação só é verdadeira quando expressa uma relação de participação possível na ordem das
idéias. O sentido do verbo ser na definição que enuncia a essência de um ente reside na participação da
idéia correspondente ao sujeito, na idéia representada pelo predicado. As relações possíveis entre as
idéias prefiguram todo o universo do discurso verdadeiro e é o objeto da dialética, ou seja, da arte das
regras da participação ou combinação das idéias entre si. “Somente pelo mútuo enlace das espécies,
afirma Platão, pode gerar-se para nós o raciocínio(Sofista, XLIV, 259).”

Por esta via Platão opõe-se às teorias da linguagem vigentes na sua época – notadamente no
Crátilo - a saber, tanto ao verbalismo representado pelos sofistas quanto ao naturalismo de Heráclito e
Crátilo que afirma ser a linguagem derivada do “pensamento que a tudo governa atrás de todas as

19
20

coisas”(Diels, fgt. 41).48 Das duas posições Platão retém o essencial. Concorda com o caráter
instrumental da linguagem, conforme a posição verbalista e convencionalista da sofística, mas
transformando o seu sentido. A linguagem já não é simplesmente instrumento de persuasão capaz de
convencer qualquer um de qualquer coisa, mas caminho para a verdade na medida em que permite
discernir a natureza das coisas. Os nomes são imagens mais ou menos fiéis das coisas, sendo pois
necessária uma avaliação e uma medida da verdade dos juízos. Neste ponto Platão distancia-se do
naturalismo, pois considera a linguagem uma produção humana que deve ser constantemente corrigida
a fim de orientar o discurso para o conhecimento racional das idéias. Por si mesma a linguagem não
permite obter nenhuma verdade acerca das próprias coisas, sendo preciso conhecer o que é a partir de
si mesmo, sem recurso às palavras, tal é a função da noesis ou intuição das idéias.49 O pensamento
racional puro é diálogo puro, sem palavras, consigo mesmo, de modo que Platão opõe à unidade
originária da palavra e da coisa que constitui o fenômeno da significação, a adequação do pensamento
às próprias coisas. Porque se os nomes correspondem ao que as coisas são, o convencionalismo
mostra-se, neste caso, completamente paradoxal.50
As múltiplas espécies de entes, determinações do ser, são diferentes do ser, mas não opostas a ele
Tudo o que é diverso do ser é não ser, inclusiva a própria diversidade
As categorias são as determinações mais universais do ente, ou seja, que não podem ser incluídas senão
no ser como gênero supremo, exercendo a “função de liame” entre todos os outros gêneros (Sofista,
XXXVII-IX, 253). As maiores entre as diversas espécies são o ser mesmo, a inércia e o movimento.
Estas duas não podem comunicar-se entre si mas o ser une-se a ambas, posto que são. Como cada uma
é diversa das outras duas e, ao mesmo tempo, idêntica a si mesma, a diversidade e a identidade vêm
compor com as três anteriores as cinco categorias da ontologia platônica descritas no Sofista (Sofista,
XL, 254).

Assim o não-ser, segundo Platão, a negação absoluta do ser em sua totalidade, o outro
absoluto do ser, só pode ser pensado em relação ao ser. “Quando dizemos não-ser não dizemos o
contrário de ser, mas somente o diverso”(Sofista, XLI, 256-7). Uma oposição desta ordem não permite
compreender a multiplicidade das idéias, exigida pelos juízos e pelo discurso, nem o movimento, que
implicam uma relativa negatividade.

§ 10 O BEM
Segundo Platão, o bem é a idéia “autora e produtora da verdade”(Rep. VII, 3, 517), de todas
as idéias e de todos os fenômenos. Nesse sentido, como a verdade é a medida da participação de cada
coisa em sua correspondente essência ideal, a dialética descendente não tem outra finalidade senão a de
fazer penetrar o bem, em maior ou menor grau, na experiência sensível. O bem é justamente a
proporção e a medida da perfeição em cada coisa que se traduz na hierarquia dos valores. Isto vale
tanto para os produtos da ação humana quanto para as coisas no sentido em que se diz que uma pedra
preciosa é mais bonita do outra, ou que um cavalo é superior a outro. O bem está presente em cada
coisa como aspiração à realização da perfeição da sua essência. Ele não é, evidentemente, propriedade
de nenhum ente – não é uma coisa - , nem um simples valor – o que é desejado ou agrada, a um ou a
muitos homens – nem mesmo um valor moral prescrito pela lei ou normalizado pelos costumes. O
bem é uma realidade de ordem metafísica: a unidade, presente em todas as idéias, do ser e do

48
Cf. BRUN, J. Os Pré-socráticos. Edições 70, 1978, p. 47.
49
Cf. Verdade e Método, p. 384, Crátilo 438d.
50
Cf. Hermêneutique, langage et ontologie: un discernement du platonisme chez Gadamer, in Archives de
Philosophie, 36, 1973, 529-568; continuação em n. 37, 1974, 223-242, p. 229..

20
21

dever-ser.51 Assim conhecimento e a ação têm um só fim na medida em que todo conhecimento
verdadeiro é intuição intelectual de uma idéia, do mesmo modo como toda ação visa produzir, por
imitação, a idéia que guia a concepção do seu objeto. Por isso o bem pode ser comparado à luz do sol.
Mas, “o sol não dá às coisas visíveis somente a possibilidade de serem vistas, sendo também causa do
seu nascimento, crescimento e nutrição, sem ser ele próprio o nascer, o crescer, nem alimento”. Por esta
via o sol, como analogicamente o bem, está presente em todas as coisas do mundo sensível sem se
identificar aos processos naturais de geração e corrupção, que nelas ocorrem. As coisas podem estar à
altura do influxo ontológico do sol ou, mesmo recebendo sua luz, definharem, mas, em qualquer caso, é
do bem que toda coisa recebe seu sentido de existência e a dignidade do seu ser, mesmo se lhe é infiel
no primeiro caso, ou indigna no segundo.
Este é o motivo pelo qual uma vez conhecida a forma ideal de uma coisa não se tem o direito
de pedir ao filósofo que demonstre a possibilidade da sua existência. O ser não é jamais dado
juntamente com o valor e é por isso que o bem “está além do ser” (República 509 b). Mas é justamente
a maior “dignidade” e “potência” (ibidem) da natureza transontológica.52 do bem que impulsiona sem
cessar o desejo da alma elevando-a para além dos fatos e “reafirmando a primazia do valor sobre a
existência”, ou seja, do dever-ser sobro ser, na medida em que ela “se priva de sentido quando trai o
valor”.53
Do mesmo modo “os cognoscíveis”, isto é, as idéias, devem ao bem o fato de serem
conhecidas pelo filosófo e também seu “ser e a sua essência”, sem que o bem seja ele próprio “a
essência, antes, permanecendo superior à essência, por dignidade e potência”(Rep., VI, 19, 508). De
fato, se em relação às coisas sensíveis o bem é de natureza transontológica, por excesso e não por
deficiência, em se tratando das idéias, que são perfeitas, falta-lhes a existência. Esta mistura de riqueza
e miséria define o amor que motiva a produção de todas as coisas a fim de que elas encarnem o bem,
pois o possível não teria nenhum sentido se não se relacionasse essencialmente ao ser, se não fosse
precisamente desejo de coincidência com seu objeto.
De acordo com o outro aspecto da metáfora do sol, referente à sua capacidade clarificadora, a
relação entre o homem e as idéias depende da essência da verdade, ou seja, da luminosidade das idéias
e da capacidade humana de intuir o que se encontra assim iluminado (inteligência). O Bem concebido
enquanto luminosidade lançada sobre as idéias não torna possível, por si só, a revelação da verdade
sem que o homem se encontre, por sua vez, aberto a ela pela noiesis mediante a conversão que faz o
filósofo ver com os olhos da alma e não do corpo (República). Deste ponto de vista as idéias são, pois,
verdadeiras por si. A verdade depende da relação da inteligência humana com elas (calcada sobre
a capacidade ética de fazer prevalecer alma racional sobre as paixões), mas o que torna possível
esta relação é a luminosidade do Bem (como a luz solar torna possível a visão) da qual todas as
idéias participam, e que só se completa quando à noesis, enquanto simples capacidade intuitiva de
contemplação, que todos possuem, se sobrepõe o desejo despertado pela filosofia. Por esta via o bem,
enquanto forma interna das próprias idéias, é superior à nossa capacidade de intuir as idéias do mesmo
modo como o sol é superior à visão humana das coisas que ele ilumina. Enfim o conhecimento humano
das idéias é inferior ao brilho através do qual elas nos seduzem e nos conduzem à sua contemplação.
No “Filebo” Platão afirma que a idéia de Bem deve ser entendida como mescla de outras três
idéias: beleza, medida (simetria) e verdade 54, que, efetivamente, constituem uma unidade. Nesse caso,
são a medida ou proporção de ser das coisas no sentido em que se diz que alguma coisa é mais ou

51
“O Bem não significa o moralmente ordenado mas o que e como deve ser” “o que confere ao ser a propriedade
de vigir como modelo” 215 introd.
52
Cf. VAZ, H. C. L. Antropologia Filosófica. P. 23.
53
LAVELLE, L. Traité des valeurs, théorie générale de la valeur. Paris, PUF, 1951, p. 52 e segts. São Tomás
afirma que o bem e o ser e o bem são convertíveis porque o grau de bondade depende do grau de realidade ou
ser. Mas “o bem tem a razão do apetecível, que o ser não tem”. Suma teologia, ed. Bilíngüe, Tomo 1, Madrid,
B. ª C., 1964, q.5, ª1, pp. 370-371.
54
Filebo, 65 A.

21
22

menos bela, por sua maior ou menor participação e semelhança com a idéia a ela relacionada. De fato,
para os gregos medida nada tem a ver com a quantificação de um dado. Ao contrário, significa a
proporção ou relação das partes de um todo que o mantém em harmonia. Em Platão esta proporção
está diretamente ligada à disposição dos elementos essenciais contidos e relacionados entre si de
acordo com a própria idéia. Fundamentalmente a beleza, por exemplo, não se distingue da harmonia
que forma entre si as partes de um todo, a unidade coerente da multiplicidade. As idéias são, por fim,
os objetos efetivos da ciência, ou seja, a própria essência da verdade do conhecimento racional, como
vimos.
O que se encontra pois visado pela idéia de Bem é justamente esse “ser total” de que nos fala
o “Sofista”(248 e) e o Bem é a fonte de todo ser e vir a ser no homem assim como fora dele (República,
VI, 508 e 509 b). Mas, fundamental é, para a metafísica Platônica, a compreensão da essência dos
valores humanos e, entre eles, os de natureza ética. 55 A teoria das idéias constitui justamente a
fundamentação dos valores no ser na medida em que traduzem o que há de inteligível na ordem
divina do cosmos, que deve ser introjetada tanto na vida de cada indivíduo como na estrutura
da polis, pelo desejo de sabedoria. O bem é o verdadeiro telos em tudo o que tende para a perfeição
da idéia correspondente.56 É o nome da causalidade das idéias e da causa do ser das idéias no sentido
do atrativo inexorável que estas exercem sobre o homem capaz de praticar a noiesis. Enquanto as
idéias são bens, ou perfeições, consideradas em sua multiplicidade apelam para a perfeição como tal,
que não pode ser uma idéia já que é a causa da perfeição das próprias idéias. Se fosse ela própria uma
idéia necessitaria de outra idéia para constituir a causa da sua perfeição. Os entes participam das
idéias, as idéias participam entre si, mas o Bem não pode ser definido como gênero supremo, posto que
é origem e fonte atuante de ser, enquanto as idéias somente são causas geradoras na condição de
telos de uma ação demiúrgica, que tanto pode ser divina, quanto humana Neste último caso o que
é produzido pela práxis através da orientação teleológica das idéias é a própria virtude humana,
individual ou política, porque não há virtude senão em visar a perfeição, o ser absoluto. Na práxis
humana realiza-se, pois, a verdadeira e suprema perfeição das idéias, o verdadeiro Bem. Através dela a
perfeição das idéias é traduzida em causa do aperfeiçoamento da existência que se eleva da sua
condição sensível aos rasgos de divindade que a atravessam quando intui o mundo do eidos.57
Neste último sentido a verdade é a medida da realização da existência que permite ao homem
viver a melhor vida possível: “uma ontologia que culmina na idéia de Bem: eis a metafísica da
paideia”, escreve ainda JAEGER58. O Bem é a medida das medidas, a revelação de que “o
conhecimento do ser está na dependência e conexão com a intelecção da ordem dos valores e
orientação da vida”59. Por essa via o Bem é a essência da verdade, dando sentido à busca de
conhecimento racional ao despertar o desejo de sabedoria 60.

55
“O platonismo se limitou a transpor para a ordem do ser inteligível relações que somente têm sentido no
mundo da vontade” (LAVELLE, op. Cit., p. 50). Práxis: a existência não é guiada por atos de conhecimento
apoiados em intuições eidéticas
56
Cf. Paidéia, p. 813-820.
57
Segundo Hanna Arendt “Platão definia as idéias como aquilo que “mais brilha e se evidencia” (ekphanestaton)
e, portanto, como variações do belo. Somente na República as idéias se convertem em padrões, medidas e
normas de comportamento, todos eles variações ou derivações da idéia do “bem” na acepção do que é “bom
para” ou adequado a alguma (outra, JLF) coisa.” Deste ponto de vista as idéias seriam incialmente meros
objetos de intuição contemplativa, passando em seguida a assumir o estatuto de esquemas operatórios, com um
objetivo político. A beleza é a mais elevada das idéias para o filósofo dedicado à vida contemplativa. O
filósofo rei, que precisa “governar os negócios humanos” é quem desvenda o potencial técnico efetivo das
idéias pois elas permitem “julgar e classificar a multiplicidade variada de ações e palavras humanas com a
mesma certeza absoluta e objetiva com que o artesão se orienta na fabricação e o leigo no julgamento de cada
cama pela idéia invariável e eterna da “cama” em geral”(p. 238).
58
Idem, p. 822.
59
JAEGER, W. Paideia, Lisboa: Kalouste Goubekian, 1978, p. 208.

22
23

II – PROBLEMAS METAFÍSICOS EM ARISTÓTELES

§ 11 UM NOME PARA UMA CIÊNCIA SEM NOME: A origem do termo Metafísica

ORDEM E CONTEÚDO DOS LIVROS


O nome “Metafísica” (Metha phisys) foi atribuído ao conjunto dos livros aristotélicos
dedicados à investigação filosófica considerada por ele absolutamente fundamental. Estes estudos não
compõe um todo sistematicamente articulado. Ao todo somam 14 livros designados por letras do
alfabeto grego. Α( acrescido de um suplemento “alfa” que recebe o número II), Β (Beta, III), Γ (Gamma,
IV), ∆(Delta, V), Ε (Épsilon, VI), Ζ (Dseta, VII), Η (Heta, VIII), Θ (Zeta, IX), I (Iota, X), Κ(Kappa, XI),
Λ(Lambda, XII), Μ(My, XIII), Ν(Ny, XIV).
O conjunto todo fora publicado por Andrónico de Rodes, juntamente com as outras obras
conhecidas de Aristóteles, compondo o que se convencionou chamar de corpus aristotelicus, e situados
depois dos livros que tratam de questões de filosofia da natureza (Física). O ‘meta” de meta-física
designaria assim a ordem da publicação dos textos em relação ao restante da obra, a saber, logo após
os livros dedicados aos fenômenos naturais. Milita em prol desta tese a ausência de ordenação
sistemática (e sistematizante) e de um conteúdo comum aos textos agrupados sob a unidade do mesmo
nome.
De fato, o livro Lambda apresenta-se como obra independente, de cunho predominante
teológico, sem conter nenhuma referência a qualquer outro livro da Metafísica. O livro Kappa resume
Beta, Gamma e Epsilon, além de apresentar uma série de extratos da Física. O livro Delta rompe a
seqüência iniciada com o livro anterior, Gamma, intercalando-se entre este e o livro Épsilon. Ele
contém uma série de definições de termos e noções gerais de filosofia, não necessariamente
relacionadas diretamente com a metafísica.
Assim, se quiséssemos ordenar mais ou menos sistematicamente o tratado de Aristóteles, seria
necessário excluir Kappa e Delta, situando Iota (X) após Ny ( XIV), de modo a permitir que os livros
Alfa(I, II), Beta(III), Gamma (IV), Épsilon(VI) - Dseta, Eta, Zeta (VII, VIII, IX), Mi(XIII), Ni(XIV) - e
Iota(X), formassem, nessa ordem, uma obra dotada de certa continuidade.
Em seu livro sobre Aristóteles61 Jaeger demonstra como a Metafísica foi composta durante
praticamente toda a vida do filósofo e várias vezes retomada. Os livros A e B foram escritos logo
depois da morte de Platão, retomando a teoria das idéias a fim de reabilitar a afirmação da existência
da realidade supra-sensível do interior de uma crise da doutrina. Quanto aos livros Dseta, Heta e Zeta,
abandonam completamente as questões centrais de Alfa e Beta. Introduzindo a discussão do conceito
de substância levam a crer que se trata de obras posteriores, pois não pretendem provar a existência dos

60
Deste ponto de vista “o ser está no valor”, a saber, no valor das idéias, e “não o valor no ser”. Cf.
Abbagnano, vol. 1, p. 211.
61
JAEGER, W. Aristoteles. México: Fondo de Cultura, 1997, p. cap. VIII.

23
24

seres imateriais. Ao contrário, pretendem refutar a identificação platônica do ser e do universal


supremo, reabilitando o estatuto ontológico da substância sensível.
SENTIDOS DO TERMO METAFÍSICA
Mas, independentemente do caráter não sistemático da obra, seria a denominação
“Metafísica” redutível à tà metà physiká ou seja, puramente extrínseca ao conteúdo da obra, referindo-
se apenas à ordem cronológica da publicação dos livros de Aristóteles? Segundo Aubenque a crítica da
interpretação tradicional da origem do termo Metafísica “repousa sobre o postulado discutível de que
uma consideração de ordem é necessariamente extrínseca, não podendo ter nenhum significado
filosófico”.62 De fato, afirma Heidegger, “a investigação filosófica do ente como tal é” precisamente
“meta ta physika” pois “investiga algo que está além do ente” .63 Assim o prefixo “meta” não indica
apenas a ordem da publicação dos textos, tendo uma significação propriamente ontológica, tanto no
sentido da natureza do objeto investigado – substâncias não sensíveis - , quanto no que tange a posição
privilegiada da respectiva “ciência buscada” em relação às outras partes da filosofia aristotélica como
um todo. Tanto o objeto transbordaria o domínio da realidade empírica quanto a ciência
correspondente não se encontraria no mesmo plano das outras ciências.
A interpretação conforme a qual a metafísica refere-se ao ser transcendente no sentido de
supra-sensível encontra apoio nos próprios textos de Aristóteles. Se existe “qualquer coisa eterna,
imóvel, separada” (das essências sensíveis), escreve o estagirita, “seu estudo deverá competir a uma
filosofia primeira ou teologia” (Epsolón, 1, 1026 a 10 ss), na medida em que a ciência teológica deve
estabelecer a natureza e a possibilidade da existência dessa essência plenamente atualizada, porque
eterna (Mi, XIII, 1 1076 a 10 ss). Portanto, a prioridade da metafísica enquanto ciência da substância
imóvel se põe em relação à Física, mais do que em relação às matemáticas que também tratam do ser
separado, uma vez que o motor imóvel – causa primeira -, objeto de investigação da teologia,
fundamenta e dá acabamento à teoria geral do movimento natural. Assim a Física é primeira para nós,
porque a investigação humana começa com a natureza sensível, mas a ciência do que é primeiro em si,
porque dele, isto é, do motor-imóvel, depende a existência da própria natureza, é também primeira.
Deste ponto de vista:
1. o “meta” de metafísica designa a ordem da publicação dos textos em conexão com a relação
desta ciência ao conjunto das outras investigações aristotélicas. Trata-se de uma ciência superior às
outras.
2. a relação da metafísica com a física enquanto esta contém a teoria do motor imóvel que explica
e dá acabamento à teoria aristotélica geral do movimento;
3. a natureza transcendente do seu objeto em relação a todo ente em geral – sensível ou não.

O texto completo de Aristóteles que comentamos afirma que “se existe pois uma substância
imóvel, esta é anterior às outras, e há uma filosofia primeira, que é universal enquanto é primeira, e a
esta compete estudar o ser enquanto ser, a essência e os seus atributos enquanto ser”(Metaf., Épsilon, 1,
1026). Como demonstrou Jaeger aqui se reúnem duas definições diferentes da metafísica. Uma tem por
objeto o ser imóvel transcendente, espécie suprema porém determinada: a substância imóvel. Por outro
lado “a metafísica representa os traços mais gerais do ente”, ou seja, os pertencentes ao ente
considerado em sua totalidade, em seu “ser-aí” simplesmente. De acordo com o sentido teológico
platônico que anima parte da obra redigida na juventude de Aristóteles, a metafísica busca determinar
a essência (e seus atributos) da entidade transcendental, equivalente à idéia platônica, capaz de
“combinar realidade absoluta com valor absoluto (ens perfectissimum)”.64 Por esta via o objetivo é

62
Le Probléme de l’être chez aristote. Paris, 1978, p. 29.
63
Introdução à metafísica, p. 4.
64
JAEGER, op. cit., p. 255.

24
25

investigar a totalidade do ente no sentido do ente supremo e, portanto, divino, de que todos os outros
entes dependeriam, por ser ele a causa e o princípio da existência em geral.
Assim a filosofia primeira seria tal devido ao fato de investigar a causa suprema de todas as
coisas. Como esta causa é incondicionada, estaríamos diante do “ser enquanto ser”, ou seja, que é o que
é sem depender de nenhum outro ser, sendo, portanto, aquilo que ele é, enquanto é, simplesmente.
Como a causa de todos os outros seres é Deus, a filosofia primeira, ou ontologia, coincidiria com a
teologia.
O problema consiste pois em determinar o estatuto verdadeira da metafísica aristotélica:
ciência do ser ou teologia?

§ 12 UMA CIÊNCIA PROCURADA

Há, na Metafísica, três referências distintas à “ciência” que a tradição acreditou tratar-se de
uma só. Em primeiro lugar o texto nos remete a uma “ciência buscada” ou “desejada”. "Trata-se,
portanto do que, desde o início dos tempos, como também agora, é também de longe buscado, e isso
significa, sobretudo, aquilo que (se pensarmos) nunca se alcançou."(My, Z1, 1028 b3). Nesse sentido, a
Metafísica deveria ser uma ciência ainda não existente, que estaria sendo formulada ali. Em segundo
lugar há a idéia de uma ciência absolutamente fundamental do desenvolvimento da qual todas as
outras dependeriam, porque trataria dos princípios universais do conhecimento teórico, sendo por
isso “ciência primeira” (Prima Philosophae). A eterna e inalterável realidade e as leis eternas do
cosmos nela fundamentadas, constituem, segundo o livro Kappa, a condição de possibilidade, não só
da ciência procurada como inclusive de todo pensar logicamente consistente e de toda verdade absoluta
e durável, posto que o mundo dos sentidos está em um fluxo perpétuo e não proporciona nada que
assegure a possibilidade de proposições definitivas.65

Além do mais há também a referência a uma “ciência que estuda o ser enquanto ser e seus
atributos essenciais”(Γ, 1, 1003 a 21)66, e que denominaremos ontologia.67

Assim à qual desses sentidos de ciência corresponde o termo Metafísica? À Teologia


( Filosofia primeira) ou à Ontologia? Qual é essa ciência suprema, “buscada” ou “desejada”? Seria ela
uma outra teoria ao estilo da Física, das matemáticas e da teologia, ou seu método e seu objeto
apontariam para uma forma nova de pensamento?

A Metafísica como teologia ou ciência primeira

65
Jaeger, 245.
66
Samarranch traduz assim: “Há uma certa ciência que estuda o ente enquanto ente e os atributos que lhe
pertencem por si mesmo”(Op. cit., p. 67). Já Émile Bréhier traduz “ciência do ser enquanto é o ser, ou dos
princípios e causas do ser e dos seus atributos essenciais”(Historia de la Filosófia, Buenos Aires,
Sudamericana, 1944, Tomo I, p. 213).
67
Termo usado pela primeira vez por Jacobus Thomasius ( 1655), para designar a ciência do ente em geral tal
como revelado pela experiência.

25
26

No livro Beta (III, 2, 997 a 15) Aristóteles indaga se “há uma única ciência de todas as
substâncias ou várias”. O livro Gamma afirma a existência de tantas partes da filosofia quantos gêneros
de substâncias houver. Conforme a classificação das ciências teoréticas no livro Épsilon (VI, 1, 1026 a
18) em Física, Matemática e Teologia, haveria três gêneros de substância e três ciências distintas
correspondendo, a cada uma daquelas, respectivamente, estudar os seres móveis e subsistentes, imóveis
e não subsistentes, imóveis e subsistentes. A Teologia é Filosofia primeira porque tem por objeto “o
gênero mais valioso”, ou seja, as substâncias supra-sensíveis imóveis e subsistentes, sendo por isso “a
ciência mais valiosa”(idem, 1026 a 21). Essa hierarquia na ordem do ser ou das substâncias justifica a
hierarquia das partes da própria filosofia. Haverá, portanto, uma filosofia primeira e,
consequentemente, uma filosofia segunda (Gamma, IV, 2, 1004 a 3) que lhe deveria ser subordinada –
no caso a matemática (M, VI, 1, 1026 a 16). A tradição atribuiu tal prioridade à teologia, tanto pelo
lugar ocupado por Deus na ordem do conhecimento (causa primeira) quanto pela sua dignidade
ontológica (ente supremo). Assim a metafísica culminaria na teologia, o que se refletiria tanto no
tangente ao sentido extrínseco da denominação do tratado (depois da Física), quanto ao sentido
intrínseco (investiga a natureza do gênero supra-sensível supremo). De acordo com a interpretação
tradicional o Meta de Metafísica refere-se a um objeto que, na qualidade de fundamento supremo,
antecede a existência de todo ente pertencente à experiência, no sentido de uma anterioridade “em si”:
Deus antecede o mundo do qual é causa. Por essa via justificar-se-ia o título de Filosofia primeira
conferido à metafísica considerada como teologia. Por outro lado o objeto da teologia é posterior ao da
física segundo a ordem do conhecimento, porque a existência do motor imóvel resulta das
investigações do ser da Physis como um todo, que, partindo do sensível eleva-se até à concepção de um
ente causa sui 68. Justificar-se-ia assim, simultaneamente, o título de Filosofia primeira e o de Meta-
física conferido à teologia, enquanto esta investiga, respectivamente, o princípio originário do universo
e a causa primeira a que se chega partindo das múltiplas causas naturais do movimento.
Assim, fica claramente estabelecido o caráter “meta” físico do objeto da nova ciência
procurada por Aristóteles. Nesse sentido o “meta” associado à posição ocupada pelo objeto da reflexão
ontológica em relação ao domínio da physis (experiência) dissimula o que verdadeiramente encontra-se
sendo superado, ou seja, não apenas a Física, mas os princípios de toda ciência teórica como tal,
inclusive os que determinam a teologia enquanto ciência primeira. A elevação da investigação até
o máximo grau de universalidade inclui no âmbito da ontologia tanto os seres sensíveis como supra-
sensíveis, corruptíveis ou não, de modo que, se a ontologia vai além da física, da matemática e da
teologia, é no sentido em que seu objeto – o ser enquanto ser – não pode, por sua própria
indeterminação ser objeto de conhecimento científico como qualquer ente.

§ 13 A METAFÍSICA COMO CIÊNCIA DO SER ENQUANTO SER

A ciência do ser enquanto ser não se ocupa de nenhum gênero determinado, mesmo
considerado supremo. “Todas as ciências, tendo delimitado um certo gênero, ocupam-se dele, mas não
do ser tomado absolutamente, nem enquanto ente”(Épsilon, VI, 1, 1026 a 18 s).69 De fato o ser se diz de
todos entes, reais e possíveis, independentemente do gênero ao qual pertençam. Ademais, os gêneros
são essencialmente incomunicáveis pois não se pode predicar um gênero de outro afirmando, por
exemplo, que o “ser vivo” é “inorgânico”, ou que um animal quadrúpede é bípede. Ao contrário, o ser
se diz de todas as coisas.
68
Cf. Aubenque, op. cit., p. 33. O livro Delta distingue o que é primeiro para nós e o que é primeiro de acordo
com a natureza. Primeiro para nós são os objetos sensíveis e, portanto, o particular. Segundo a ordem da
natureza o "primeiro" são as causas mais universais e mais afastadas das sensações (Met. 1018 b 31)
culminando no motor imóvel.
69
A ci~encia do ser enquanto ser não é ciência de nenhum ente.

26
27

Como vimos a filosofia primeira é tal por ser a ciência do “gênero mais valioso” (Épsolon, VI,
1026 a 21 ss). Na medida em que não se refere a nenhum gênero, mesmo supremo, por sua perfeição
e/ou extensão, o pensamento do ser reenvia ao domínio ôntico. O que se busca é o que permite afirmar
o ser de todas as coisas absolutamente, o que há de propriamente comum ao ente em sua totalidade,
distintamente da natureza, objeto da física, que pressupondo o conceito de um ser supra-sensível, isto é,
o motor imóvel, revelou-se incapaz de abarcar a totalidade do real, constituindo, assim,
verdadeiramente, uma ciência primeira.70
A ontologia seria então a ciência das coisas consideradas em sua totalidade, anteriormente ao
fato da sua divisão em gêneros, divisão sobre a qual o discurso científico se apóia. Na verdade, trata-se
de uma aporia que se caracterizada como se segue:
1) Há uma ciência do ser enquanto ser, do que faz com que toda coisa seja ela mesma.
2) Toda ciência refere-se a um gênero determinado, a um setor particular da experiência.
3) O ser não é um Gênero e, portanto, sua compreensão não pode ser conceitual.
Para concluir, Teologia, Física e matemáticas, diferem entre si enquanto ciências de gêneros
distintos aos quais toda ciência se refere necessariamente em virtude da essência do conhecimento
humano. Na medida em que o objeto da ontologia não corresponde a nenhum gênero fica em aberto
a questão da determinação do seu estatuto epistemológico. O ser, no sentido da verdade ou falsidade da
proposição, não faz parte do problema metafísico acerca do ser, já que, sendo algo além do gênero não
é suscetível de definição (definir é afirmar a diferença específica: o homem é animal bípede).71 Nesse
sentido escreve Aubenque (Op. cit., p. 44) que “se a ciência buscada é a teologia, então ela tem um
nome e um lugar no edifício do saber, mas se encontra ausente da maioria dos escritos aristotélicos
chamados metafísica; e se a ciência buscada não é a teologia, explica-se o caráter não teológico desses
escritos, mas essa ciência permanece sem nome e deve conquistar sua justificação e seu lugar no campo
da filosofia”.

Compreensão do ser e emprego do verbo na linguagem cotidiana


A significação do verbo ser no infinitivo (ser enquanto ser) e na cópula predicativa ( A é B) a
primeira indicando o fato de ser, misturam-se na experiência cotidiana da linguagem. De fato, os
enunciados do discurso somente são significativos quando não se contradizem e, além disso, afirmam
ou negam efetivamente um predicado de um sujeito. O enunciado não pode ser nem tautológico (“uma
cadeira é uma cadeira”) nem contraditório (os homens são imortais porque vivem para sempre). O
discurso efetivamente significativo refere-se àquilo que alguma coisa é e não ao fato de alguma coisa
ser simplesmente. Assim, se de um lado o discurso cotidiano já promove a entificação do ser, de outro,
o uso substantivado do verbo ser tomado em sua forma infinitiva é próprio do vocabulário filosófico,
não tendo nenhum uso corrente na língua grega e mesmo nas outras línguas em geral. 72 Digamos que a
experiência cotidiana é concreta demais e que, para evitar tal concretude entificante, a filosofia é
obrigada a transgredir o discurso cotidiano de tal modo que se acerca do não sentido.
A confusão sob a qual se situa a significação do ser como tal não deriva apenas do fato dele
não ser um gênero, mesmo supremo. Um gênero supremo tende para o limite máximo de
universalidade onde ainda é possível compreende-lo univocamente, ainda que não se possa mais defini-
70
BERTI, E. As Razões de Aristóteles, p. 86.
71
Jaeger, 236, baseando-se no último capítulo do livro Zeta.
72
Cf. Heidegger, Introdução à metafísica, op. cit., p. 115. Ver também BENVENISTE, E. Problèmes de
linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966. Haveria uma dimensão pré categorial do ser

27
28

lo. Do gênero supremo à espécie ínfima, vai-se de um máximo de extensão e um mínimo de


compreensão, a um mínimo de extensão e máxima compreensão. Um conceito que se aplicasse a todas
as coisas nada definiria pois definir significa subsumir algo, como sujeito de uma predicação, a uma
generalidade (Exp.: Sócrates é homem) Do mesmo modo não se pode conceituar – ou definir - o
indivíduo considerado em sua singularidade, que só pode ser descrito. No exemplo acima a
humanidade não pertence a Sócrates indivíduo singular, mas a ele enquanto membro de uma espécie.
Assim não há nada que possa ser situado sob um campo ontológico superior ao ser porque ou bem teria
de já também ser estando, nesse caso, incluído no próprio ser, ou então seria nada, puro não ser. Segue-
se daí que nenhum ente se opõe ao ser, apenas o nada. O ser se diferencia intrinsecamente de tudo
aquilo que compreende e que, por esta razão, transcende.
Por esse caminho o gênero é o limite além do qual o pensamento torna-se vazio pois
além dele o universal não mais define a natureza essencial do particular. Tal é precisamente, o
caso da universalidade do “ser” que é, por isso, chamada transcendental De fato, todo ente é, mas
nenhum ente exemplifica suficientemente o que queremos dizer com “ser”. Assim a metafísica de
Aristóteles nos convida a fazer a experiência da impossibilidade de apreender em si mesmo e de modo
imediato, o ser do ente, nem no ente ou “dentro” dele, nem simplesmente em qualquer outro lugar. 73
Entretanto, embora a significação da palavra ser seja indeterminada, sempre compreendemos o que ela
quer dizer quando a empregamos de modo determinado. Isto mostra que, em seu uso cotidiano, a
linguagem contém já uma certa compreensão, não explícita e não conceitual, do ser. Como para
Aristóteles a linguagem é um instrumento para a revelação da verdade, a apresentação correta do ente
dar-se-á nos juízos, pois somente eles podem ser ditos verdadeiros ou falsos. Deste modo o “ser” que
deve ser analisado é o ser do ente na cópula do juízo em que aparece unido, essencial ou
contingentemente, aos seus predicados.74 Individual, existente, idêntico à sua própria essência, tal é o
ser do ente aristotélico. A investigação do ser do ente deve pois começar pela apresentação do ente na
proposição. Todas as coisas que são podem ser nomeadas e receber um predicado a elas atribuído
numa proposição verdadeira. Portanto é vão pretender separar o ser dos enunciados significativos da
linguagem, ou seja, das proposições apofânticas do discurso. O ser não é uma intuição, seja
intelectual ou sensível. “Presente no coração de toda proposição”, escreve Aubenque, o ser é essa
“unidade” visada por todas as nossas “intenções significantes”(p. 235), unidade que caracteriza o ente
como suporte estável e permanente de predicações, constituindo a essência da própria substância. 75
Quando dizemos que uma pedra é dura, que está quente sob o sol ou é pesada, dureza, calor e
peso são qualidades atribuídas à pedra na condição de sujeito das proposições ou enunciados do
discurso, que recebe aquelas qualidades enquanto predicados. Ora o discurso só pode atribuir um
predicado a alguma coisa que é, no sentido em que não se pode dizer nada sobre o não ser. Na medida
em que é, uma coisa aparece e se revela. A linguagem, ao contrário da percepção, testemunha essa
revelação da coisa como algo consistente. Quando dizemos “a rosa é vermelha”, a qualidade
“vermelha” é atribuída à rosa enquanto ente, ou seja, enquanto suporte capaz de fixar essa qualidade no
ser de uma presença. Visto dessa perspectiva o ente consiste no suporte estável das propriedades que
nele subsistem ou se modificam no tempo. Este é o resultado ontológico principal da interpretação do
ser do ente a partir da sua posição na proposição no lugar de sujeito de diversos predicados possíveis.

73
Cf. Heidegger, Int. à metafísica, p. 60.
74
.
75
A substância, ou o ser enquanto ser, (on he on) não tem em vista o ente, mas o ser que ele é e o fato de ele ser, destacado de tudo
aquilo que que pode lhe advir (sem que ele cesse de ser o que essencialmente é) – ora isto ora aquilo. Mais tarde, o ser, que é assim
independente e cindido de todas as predicações ou acidentes possíveis”. (GADAMER, 99).

28
29

§ 16 As Categorias: da causa do ser à essência do discurso


A Doutrina das categorias

A ontologia é pois a ciência do ser do ente (ón), ou seja, daquilo que é, enquanto é o que é, e
não enquanto é isto ou aquilo. Mas para designar a “enticidade” do ente Aristóteles usa o termo “ousia”
(substantia): “aquilo que cada coisa é dita ser por si”(Z, 4, 1029 b 13). Por exemplo, Sócrates é branco,
ou homem, “por si”; mas a brancura ou a humanidade não são senão enquanto atributos da substância.
Assim o problema da substância passa a recobrir exatamente o âmbito da ontologia: “antes,
agora e sempre, a investigação e o problema que sempre causou perplexidade, a saber, “que é o
ente”, equivale a isto: “que é a substância”(Z, VII, 1, 1028).
Antes de mais nada a substância é o modo ser das coisas de que propriamente se fala. Em
linguagem moderna, é o que torna possível ao ente vir a ser objeto do discurso. Como o discurso é
reduzido por Aristóteles à sua forma predicativa elementar (logos apofântico), ou seja, ao juízo, a
substância é definida como o que torna possível esta predicação, como o que determina a possibilidade
da cópula do juízo na qualidade de suporte de predicados, ou seja, sujeito. Mas há várias formas de
atribuir um predicado a uma substância através do ser. Assim “o ser propriamente compreendido se diz
em múltiplos sentidos, quais sejam, o ser por acidente...o ser como verdadeiro e o não ser como falso”,
juntamente com as “figuras da predicação”, por exemplo “o que” ou essência (Sócrates é homem), o
qual (Este indivíduo é Sócrates), o quanto ou quantidade (Sócrates é um), o “onde” ou lugar (Sócrates
“é” em Atenas), o quando ou temporalidade (Sócrates “é” [está] no Séc. V), o como (Sócrates “é” [está]
sentado)”. E o livro IV completa: “o ser (do ente) se diz em múltiplos sentidos (modos de ser) porém,
sempre em referência a uma única substância”(IV, 1, 1003). (Parei Alberti 93).
Como vimos a análise do ser deve começar por uma reflexão semântica que aponta,
primeiramente, para a diversidade de sentidos do ser.76 Em seguida distingue um sentido primeiro ao
qual todos os outros se referem: a substância. De fato o ente é justamente o que – e porque – subsiste e
faz com que a diversidade de sentidos a ele referida seja unificada. Assim a unidade das categorias é a
unidade de uma multiplicidade referida à substância. Além disso cada uma das categorias secundárias
mantém um tipo determinado de relação com a substância. Por exemplo, nenhum dos modos de ser por
elas designados pode figurar no discurso como sujeito do juízo. Além disso toda quantidade ( o que
vale para todas as categorias), na medida em que sempre quantifica alguma coisa, ou seja, uma
substância, não tendo nenhuma realidade fora desta quantificação, tem seu princípio e sua causa
primeira na substância.
Deste modo a substância é primeira na ordem do conhecimento, pois o conhecimento das
categorias depende dela (como conheceríamos as qualidades se elas não fossem qualidades de algo
existente?), e primeira na ordem do tempo, pois somente ela existe separadamente. Do ponto de vista
epistemológico, assim como ontológico, a substância é sempre e absolutamente “causa primeira”.
Assim o ente (substância) é apreendido através da categoria que constitui o ponto de vista a partir do
qual ele se torna apropriadamente enunciável. Por quê? Porque todas as categorias se referem à
76
O ser se diferencia em uma pluraridade de gêneros e espécies. Neste caso o sentido do ser permaneceria unívoco quanto referido a
qualquer tipo de sujeito? Há três soluções possíveis. A primeira considera que o ser é equívoco, mudando de sentido conforme o
sujeito ao qual se aplica. A segunda afirma a univocidade do ser. De acordo com esta tese o ser significa a quididade ou essência de
cada ente, definida pela simples possibilidade de existir fundamentada, por sua vez, no princípio da não contradição. A terceira
consideração afirma a tese da analogia desenvolvida principalmente pela filosofia medieval para resolver o problema, acima de tudo,
do ser de Deus e das coisas criadas. São Tomás, por exemplo, distingue entre o ser necessário de Deus, idêntico à essência, não
contendo, por isso nenhuma contingência, do ser das criaturas que é separável da essência. Assim somente Deus teria o ser por
essência enquanto as criaturas o teriam por participação. Logo o ser do homem seria análogo ao ser de Deus, ou seja, haveria
semelhanças no modo de ser, segundo diversas proporções (hierarquia dos seres culminando no ente perfeitíssimo). Por exemplo a
“sabedoria” pode ser estendida a Deus e ao homem. Mas quando aplicada ao homem significa uma perfeição distinta da essência e da
existência do homem: há homens que não são sábios. Referida a Deus a sabedoria designa uma perfeição idêntica à sua essência e ao
seu ser. parei

29
30

unidade de uma única substância, ou seja, ao “fundo” sobre o qual é enunciado, de diversos modos, o
que uma coisa é. Só podemos dizer o ser de várias formas porque o ente é uno em seu ser, idêntico a
si mesmo e permanente. Este é o motivo pelo qual os enunciados verdadeiros acerca do ente
devem necessariamente concordar entre si, ou seja, não devem estar em contradição. O discurso
contraditório implica a existência de coisas diferentes de si mesmas, destruindo a doutrina da
substância como essência do ser do ente, pois uma substância é justamente o que jamais pode ser outra
coisa.
Porém a contradição limita, a priori, o número de proposições que se pode enunciar acerca do ente (se
digo que S é P, a priori, S não é P é falso). A unidade da substância garante a pluralidade das verdades
que se pode enunciar acerca do mesmo ente, sendo todas elas verdadeiras justamente porque são
expressões diversas da identidade do mesmo ser. Mas não há nenhuma contradição entre a identidade
da essência e a pluralidade dos atributos porque ou bem um atributo define a essência, e neste caso o
juízo que o nega do sujeito é falso, e não contraditório, ou bem é um acidente. Como acidente pode ser
ou não-ser, não havendo contradição em dizer agora que fulano é ignorante, e mais tarde que é sábio,
porque aprendeu filosofia. Para os sofistas a contradição resultava da própria diversidade dos
atributos que se pode predicar de uma substância, de modo que eram forçados a manter todos
os atributos a igual distância da essência, o que resultava no ponto de vista ceticista segundo o
qual tudo pode ser predicado de tudo.

Portanto a substância é o ato do que é, do que existe efetivamente, em oposição ao universal


que é apenas em potência. A substância de um gênero, por exemplo, do homem, é sua forma
individualizada, o ente Sócrates, por exemplo, em princípio objeto de percepção - embora Aristóteles
admita a existência de substâncias imateriais, formas puras, como a alma. Nesse sentido se diz da
substância que ela é “primeira”, como vimos, - o individual determinado concreto – em oposição à
substância segunda que se refere à essência (quididade, o ser-o-que) ou ser necessário de uma coisa,
objeto da definição e necessariamente universal. "[Sem a substância] cada coisa seria destruída, já que
cada coisa é e é uma"(Met., XI, 1, 1059 b 31). Assim, ser é ser um ente determinado, e
determinação significa, não apenas ser diferente do nada, mas ser isto e não qualquer outra
coisa. Assim a substância define, em primeiro lugar, o fundamento da diferença ôntica, que separa
cada ente de todos os outros, na medida em que esse fundamento é pensado a partir do ser como
princípio de individuação, ao contrário de situado no âmbito puramente ôntico das diferentes
características das coisas entre si.

A ontologia, estudo do ser enquanto ser, é portanto, uma ciência da essência da substância ou
seja da essência da individuação pensada como condição de possibilidade de toda diferença ôntica. “A
substância é o primeiro ser, e não qualquer ser, mas o ser simplesmente”(VII, 1, 1028). A substância,
em sentido primeiro, é a determinação da existência individual e concreta do ente por seu ser. A
identidade da substância se expressa através da impossibilidade de que o ser seja e não seja ao mesmo
tempo, que um ente se transforme em outra coisa diferente dele mesmo. Esta impossibilidade de ordem
ontológica é, simultaneamente, o fundamento do princípio lógico da não contradição. De fato,
transgredir o princípio lógico implica em suprimir a substância em seu próprio ser (Gamma 4, 1006 a
295). Dizer que o homem é mortal e imortal não conduz apenas ao não sentido do discurso mas, acima
de tudo, leva a admitir que o não-ser pertença à essência da substância, quando "o ser necessário (da
substância) significa que é impossível que o ser não seja", que ela deixe de ser o que ela é
essencialmente (Met. IV, 4 1006 b 30). Portanto, - conclui Samarranch – é a referência do discurso a
uma realidade contraditória que impossibilita o dizer significativo, pois o discurso é exibição da
realidade 77. Mas isso não implica a proeminência do sentido lógico da contradição, nem do sentido
77
Op. cit., p. 155.

30
31

ontológico. O que para nós parece uma confusão inextrincável é apenas ausência de limites e
distinções tais como praticados pelo pensamento filosófico posterior. A questão de saber se o princípio
de contradição tem um estatuto ontológico ou lógico carece de sentido justamente porque em
Aristóteles não há nem lógica (regras da coerência interna do pensamento) nem ontologia (ciência do
ser), afirma Heidegger.78 Mas se o objeto do discurso contraditório não pode ser de nenhuma forma, ao
contrário, o objeto de um discurso coerente pode, pelo menos em princípio, ser.

§ 17 Crítica da concepção aristotélica da verdade apofântica

Segundo Aristóteles somente o discurso apofântico (apófansis) é suscetível de manifestar a verdade,


podendo, por isso, ser falso ou verdadeiro, ao contrário dos discursos exclamativos, das súplicas ou
petições, objetos da retórica ou da poética.79 Um discurso apofântico é, portanto, um juízo afirmativo
ou negativo, onde se atribui ou nega-se a pertinência de um predicado ao sujeito, por exemplo, S é P, S
não é P, algum S é P etc.
A pressuposição de que o pensamento verdadeiro se expressa essencialmente nas formas
apofânticas do discurso inspirou toda lógica aristotélica e posterior, até a lógica transcendental de Kant
que a porá seriamente em questão. Mas esta teoria lógica se refere diretamente à metafísica da
substância. De fato a substância é aquilo de que se predica uma qualidade ou acidente (o que pode ser
ou não ser). Ora, os acidentes da substância podem mudar sem que esta se transforme em outra coisa,
do mesmo modo como podemos afirmar que Sócrates é racional, está sentado agora e deitado à noite,
sem que isto implique qualquer transformação do próprio sujeito em outro ente. Ao contrário uma
mudança de substância é necessariamente uma transformação de ordem ontológica, a transformação de
uma coisa em outra coisa – de um indivíduo mortal no mesmo indivíduo imortal – o que é impossível,
pois implica admitir a contingência do ser essencial que uma coisa é e não pode não ser
Pode-se afirmar que “este indivíduo é um homem” e, neste caso o indivíduo é substância, mas
não o termo “homem” que indica um gênero ao qual pertence o indivíduo considerado enquanto
substância primeira. Esta última pode ser definida pelo fato de existir independentemente de outra
coisa em relação, por exemplo, a tudo aquilo que pode ser predicado de um sujeito. Neste sentido a
substância primeira é sempre sujeito, ou seja, suporte de predicações, nunca podendo ser predicada de
outros sujeitos. Por exemplo o cavalo pode ser dito quadrúpede, baio, herbívoro etc., mas não se pode
dizer que o cavalo é este indivíduo, porque a conversão dos termos da proposição implicaria a
transformação do gênero em acidente da substância. De fato, se o cavalo é este indivíduo, não há
nenhuma razão para dizer que ele não seja também este outro indivíduo. De outro lado há aí uma
inversão de prioridades, uma vez que o indivíduo precede o gênero na ordem do ser, a predicação deve
exprimir essa verdade com a mesma necessidade, porém de forma lógica. De acordo com o
pensamento de Aristóteles, a substância é necessariamente sujeito no juízo (ou pensamento) porque é
algo cuja existência se basta ontologicamente a si mesma. Portanto, em princípio, verdadeiro é tudo
aquilo que pode ser atribuído sem contradição a uma substância primeira, mas há contradição
quando se atribui a uma coisa algo que ela não é.
Por este caminho a teoria apofântica da linguagem tanto desemboca numa ontologia formal
quanto numa lógica da não contradição. No primeiro caso a análise da coerência interna do discurso
78
Int. p. 207.
79
Da interpretação, 4, 17 a 2.

31
32

revela as diversas formas possíveis de juízos sem se preocupar com o critério que possa servir para
distinguir os juízos falsos dos verdadeiros. Um juízo do tipo S é P, pode ser tanto falso quanto
verdadeiro, enquanto um juízo do tipo S é não S deve ser necessariamente falso, na verdade não tanto
porque é logicamente contraditório, mas porque sendo sujeito e predicados idênticos, ambos ocupam,
no interior da predicação, lugares destinados a representar modos de ser ontologicamente distintos, a
saber, substância e qualidade. Portanto na verdade Aristóteles jamais elabora uma teoria da mera
possibilidade do juízo com sentido. A apofântica é, ainda que confusa, uma teoria das formas possíveis
de juízos verdadeiros apoiada, ao mesmo tempo, nos pressupostos lógicos da teoria da não-contradição
e na metafísica da substância, como mostram, por fim, os postulados fundamentais da doutrina
aristotélica da verdade, a saber:
1. a verdade enquanto prerrogativa do discurso no sentido em que somente uma proposição
apofântica pode ser julgada verdadeira ou falsa, e nunca a substância considerada em sua
manifestação.80 A manifestação sensível de uma coisa não é nem falsa nem verdadeira.81
2. paralelamente a medida ou critério da verdade não pode ser a simples coerência interna do
discurso. O critério da verdade do discurso está na correspondência ou adequação do enunciado à
própria coisa enunciada.82
Por esta via a possibilidade da verdade pode ser pensada a partir das leis formais que regem o
pensamento discursivo. Com isso a análise da estrutura do dizer significativo comanda a
investigação do ser do ente e da essência da verdade enquanto proferimento humano. A
possibilidade da verdade, isto é, de acordo entre o juízo e a realidade e do pensamento consigo
mesmo, definem, ao mesmo tempo, a essência da linguagem humana ou da razão, em detrimento
da tradição pré-socrática segundo a qual a verdade repousa no aparecer efetivo do ente, ou seja, no
desvelamento. Por esse caminho originário, verdadeiro ou falso não é o discurso sobre o ser e sim a
maneira como alguma coisa aparece, sendo este aparecer, ao mesmo tempo, a medida e o critério da
verdade.83 É verdadeira, escreve Heidegger a propósito da aisthêsis grega, “a pura apreensão sensível
de alguma coisa” pois a percepção em geral não poderia encobrir. A audição, por exemplo, sempre
desvela sons, assim como a visão sempre apreende cores, de modo que “as determinações de ser mais
simples do ente” apresentam-se aos sentidos de modo imediato, ou não. Como um som ou cor,
qualquer sensação pode não nos abrir um acesso conveniente ao ente. Neste caso a percepção é
deficiente, falsa, nunca. 84

80
Cf. M, VI, 4, 1027 b 25.
81
O texto completo é: “Chamo de próprio o que não pode ser sentido por outro sentido e a cujo respeito é
impossível iludir-se. Cada sentido julga seus próprios e não se ilude sobre o fato de que cor ou som, mas sobre
o que é, ou então está, o que é colorido, sobre o que é, ou então onde está o que ressoa” (DE Anima, II, 6). De
fato, como Aristóteles considera a verdade a partir da idéia de adequação entre o sujeito e o predicado (dizer de
uma coisa que ela é o que é), também no caso da percepção valerá o mesmo critério. Uma percepção falsa não
é uma percepção ilusória e sim uma percepção contraditória. Posso me iludir acerca do que vejo, mas não se
estou vendo ou escutando, por exemplo, um som, porque neste caso haveria uma percepção contraditória no
sentido em que haveria confusão entre gêneros – sons e imagens. (para Aristóteles não há erro sem
contradição)
82
Cf. M, IX, 10, 1051 b 5.
83
Ver atrás § 05 e 06.
84
SZ, § 07, p. 64, Ed. Vozes. Mas Bárbara CASSIN chama a atenção para o fato de que o logos definido a partir
da percepção (“dos sensíveis próprios”) não é ainda o logos fenomenológico se este implica uma “articulação
verbal em que sempre algo é visualizado”, pelo menos se por “articulação verbal” se entende, como Heidegger,
o discurso, a palavra que discorre sobre alguma coisa. Segundo a autora a “sensação dos próprios” dita
“sempre verdadeira”, pertence a todos os animais” (De Anima, 427 b 12) quando a Política afirma
peremptoriamente que só o homem possui propriamente lógos. Deste modo a “verdade sem contrário” (p. 139)
é decisivamente não apofântica. Aqui nos movemos no conceito de ilusão, ou seja, estético, e não no de erro
(lógico). Deste modo é a impossibilidade de perceber o contrário ou oposto da cor, pois o olho não pode ver um
som, por exemplo, que determina a condição não opositiva da verdade estética.

32
33

Para entender a relação da compreensão aristotélica do ser com a linguagem é preciso


investigar, antes, a essência da própria linguagem. Para Aristóteles, conforme uma passagem do “Da
Interpretação, (3, 16 b 22-25) um dos problemas do eleatismo platônico consistiu em tratar o ser a
partir da declinação do verbo na terceira pessoa do singular, de modo isolado, como se fosse
significativo por si mesmo fora da sua função atribuitiva ou copulativa. Ao contrário, afirma
Aristóteles que “ser e não ser não são signos de nenhum fato”. Nesse sentido “a palavra “ser”, em cada
uma das suas variações, se comporta com respeito ao ser em si mesmo por ela evocado de um modo
essencialmente diverso do que todos os outros substantivos e verbos da linguagem com relação ao
ente”. Enquanto toda palavra ou verbo significa uma coisa ou uma ação determinada, o infinitivo
substantivado “ser” nada designa. Por isso, através da interpretação do ser do ente como
substância Aristóteles pretende retornar ao “é” predicativo, e à análise da proposição enquanto
suporte da investigação sobre o ser, constituindo, aos olhos de Heidegger, um movimento de
entificação da essência ontológica e esquecimento da questão fundamental que diz respeito ao
próprio fato de ser como tal.

O ENUNCIADO E O DESVELAMENTO ORIGINÁRIO

Segundo Heidegger são elementos constitutivos da estrutura de toda proposição, o sujeito, o


predicado, a cópula, o objeto-da-proposição, o enunciado-da-proposição e a palavra de ligação. Na
proposição “o home85
86

85
Aristóteles vê a essência do logos no fenômeno, ele tem em vista com isso a ação de mostrar e de colocar diante dos olhos, de modo
que algo está aí quando se fala sobre ele (GADAMER, H-G. Hermenêutica em retrospectiva. Rio: Vozes, 2007, p. 122) “no ser o
apreender se torna consciente do aí” de modo que, na verdade da palavra, “se trata, não do desvelamento daquilo que é dito no sentido
de um ente, nisso ou naquilo em que algo é, mas do fato de haver o “aí” e não “nada” (123). Parmênides: “o que está em questão não
é o pensamento do ente no sentido da recusa do falso, mas no sentido da recusa do nada”. Há algo a dizer. O discurso é discurso na e
pela abertura ontológica de um mundo. O aí do ser, na aletheia, expressa o fato de que o nada, nada é, e não o que isso - e não aquilo -
é: a verdade do ser.
Referente à passagem do “Da interpretação, 4, 17ª1-3. De fato como afirma Escudero (op. Cit., p. 38) “não é a verdade que se define em
relação à proposição, mas a proposição, o logos apophantikos, que se define em relação à verdade”. E, continua, citando Heidegger
(Logik. Die Frage nach der wahrheit. Frankfurt: Klostermann, 1976, p. 135) “a proposição não é o lugar da verdade, mas a verdade é o
lugar da proposição”.
O logos é assim uma estrutura pré-linguística,, pré objetiva da nossa compreensão imediata do mundo, do nosso comércio originário com
ele. Sobre esta compreensão se funda o “como apofântico” da proposição. Por esta via Heidegger pretende superar o primado da
percepção na determinação originária do sentido caminhando na direção da compreensão hermenêutica. O mundo se abre a nós a partir
de uma interpretação e compreensão do seu sentido e das coisas - entrelaçadas e referidas entre si no âmbito das nossas preocupações
cotidianas -que não depende de nenhuma operação lingüística, como a mão que maneja um martelo.
O mundo implica estar aberto para o sentido do ente a partir de um âmbito pré-definido. Não encontraríamos a raiz quadrada de 20 em
um bosque onde me deparo com um alce. Facticidade do horizonte do ser. A abertura do Dasein funda o estado de “descoberto” do ente.

Seja como for, uma coisa se torna clara: a questão da Alétheia, a questão do desvelamento como tal, não é a
questão da verdade. (...) Talvez exista um pensamento mais sóbrio do que a corrida desenfreada da
racionalização e o prestígio da cibernética que tudo arrasta consigo. Justamente esta doida disparada é
extremamente irracional. (...) A clareira garante, antes de tudo, a possibilidade do caminho em direção da
presença e possibilita a ela mesma presentar-se. A Alethéia, o desvelamento, devem ser pensados como a
clareira que assegura ser e pensar e seu presentar-se recíproco.
c

86
Logos: capacidade de extrair do seu próprio retraimento e da fazer ver sem retraimento o ente do qual se fala. Assim o logos é modo
derivado da verdade. A verdade originária é a percepção sensível. Por isso o logos implica o recolhimento prévio do ente por uma

33
34

Assim a conveniência do predicado ao sujeito, de acordo com a estrutura da proposição,


torna-se essência da verdade. Essa conveniência se manifesta normatizada pelo princípio da
contradição. Para que um predicado convenha ao sujeito é preciso que o sujeito seja substância, sempre
idêntica a si mesma, e que o predicado não contradiga essa identidade – já que o juízo verdadeiro tem
de estar de acordo com aquilo mesmo que a coisa é. O ser do ente no sentido da quididade é deduzido
da estrutura da proposição ou enunciado verdadeiros. A linguagem torna-se o fio condutor da
investigação ontológica, assumindo a determinação de lugar da verdade.
Há pois transitividade entre o fenômeno (aparecer da substância) e o logos, mas esse fio
condutor da reflexão metafísica sobre a essência da verdade, pode ser seguido “a contrapelo”,
transformando-se, por essa via, numa investigação que tem por finalidade elucidar a “constituição da
objetividade”. Neste caso a passagem do fenômeno ao logos dá-se através da introdução das mediações
do signo, do juízo (logos apofântico), do conceito de adequação e, por fim, do objeto: “a transitividade
só é garantida, finalmente, ao fazer-se do mostrar um signo, do lógos um juízo, do desvelamento uma
adequação e do fenômeno um objeto”.87

Alethéia, o desvelamento, devem ser pensados como a clareira que assegura ser e pensar e seu
presentar-se recíproco.

§ 19
Ato (energeia), Potência (dynamis) e entelequéia: a substância enquanto causa do devir.

Aristóteles é o primeiro filósofo a pensar o ser do ente na sua materialidade, conferindo ao


fluxo perpétuo do mundo dos sentidos uma significação ontológica imanente. Para isto retoma o
conceito de matéria (hylé) em conexão com o de forma (eidos) compreendendo a primeira, não como
absoluta privação de ser – como era o caso das idéias platônicas - e sim como tendência ou aspiração à
forma, tal como um bloco de mármore contém a título de possibilidade a forma da estátua. “O ente,
escreve Aristóteles, é o que vem a ser em ato (a forma) de que a sua matéria era potência (dynamis)”
(Met. XII, 4, 1047).88 E o existente em ato, considerado como unidade de matéria e forma, é a
substância, de modo que esta define o modo de ser de todo ente efetivamente existente.
Porém ainda que possa trazer em si a forma em potência, o mármore jamais transformar-se-ia
por si mesmo em estátua sem uma causa efetiva capaz de atualizar esta potência. “O germe (ou a
potência) procede de outros indivíduos que são anteriores e perfeitos (existentes em ato), e a primeira
coisa não é o germe, e sim o ser perfeito, isto é, devemos dizer que antes que o germem existe um
homem: não o homem engendrado pelo germem, mas outro do qual o germe procede” (Met. Λ 7, 1072b
30). Assim a potência não pode atualizar-se a si mesma, nem um ser em potência pode ser a causa de
outro. Por este prisma o movimento vem a ser um das causas da composição da substância – forma
percepção. Ver Michel Henry, Phénoménologie materielle, p. 117.
87
CASSIN, B. Aristóteles e o logos. São Paulo: Loyola, 1999, p. 136.
88
Importante será notar que a matéria é, sobretudo, “potencialidade indeterminada de contrários” (Aubenque, P.
A Prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 140). Deste modo podemos afirmar que “a
contingência provém da impotência da forma em dominar”, isto é, determinar completamente, “a matéria”.

34
35

que se atualiza numa matéria – ao mesmo tempo em que pressupõe a substância pois “não há
movimento fora das coisas: o mutável é sempre a substância”(Fis. III, 1, 201), isto pe, o ser.89
Há, portanto, três momentos essenciais constituitivos da corrupção, geração e movimento dos
seres físicos em geral: a potência (dynamis), a ação em curso (energéia) e a ação realizada ou ato
propriamente falando (enteléquia), designando este o ente considerado na plenitude do seu ser.
Priorizando o ato realizado, a perfeição do ser, em detrimento dos seus momentos superados
Aristóteles estabelece a primazia lógica e ontológica do atual em relação ao possível (Cf. Met. Zeta,
81050a, 1-10).
A matéria considerada isoladamente não é inteligível e a forma pura, embora seja pensável,
não existe na natureza senão em potência. Portanto, a unidade de matéria e forma constitui a enticidade
do ente enquanto unidade da perceptibilidade e da intelecção, ou, em termos kantianos do conceito e da
intuição. Do contrário não haveria necessidade de defini-la como unidade de matéria e forma. Uma
estátua de Zeus, por exemplo, pode ser simplesmente pensada mantendo-se sua matéria indeterminada
- madeira, barro, pedra – mas a possibilidade da existência efetiva da estátua, da sua percepção
sensível, implica a representação da sua forma incorporada numa matéria determinada, da mesma
maneira como a existência efetiva de um triângulo retângulo depende da determinação do tamanho dos
lados.
A primazia da enteléquia ou da atualidade sobre o possível estabelece as seguintes
consequências metafísicas:
1 - uma determinada interpretação da temporalidade conforme a qual o presente reina hegemônico
sobre o passado e o futuro. O Ato puro constitui a explicação do fenômeno do mundo e do ente em sua
totalidade. Como este ato puro confere inteligibilidade última à totalidade do ente, a verdade é
identificada ao ser atualizado em detrimento do possível. A mutação incessante da natureza é imitação
do que não muda, da perfeição imutável. A mudança é o modo como a natureza se encaminha para a
perfeição, movida, no sentido de atração, pelo imutável divino. Desejasdo em potencia com espécie pi
de tod ato possivel
2 - A questão “quem sou eu?” é transformada na questão “o que eu sou” ao definir a essência da
realidade humana a partir do vous: essência cósmica universal da vida (“a atividade criadora do
pensamento é vida”)90. Assim o homem é interpretado como animal que deve se aproximar, pela
imitação, o mais possível da atividade suprema e divina do Primeiro motor definido como pensamento,
ou autoconsciência pura, o que, conforme o final da Ética a Nicômaco, designa a contemplação
filosófica desinteressada (biós theoretikós).
Com isto escamoteia-se a finitude essencial da temporalidade da existência - o kairós – ou
seja, a fiitude deste tempo que só pode ser preenchido pela própria vida de cada individuo, em proveito
deste eterno presente que constitui a continuidade sobre a qual se apoia a eternidade do Primeiro
motor, inserindo, por esta via, a vida humana no ciclo sem fim das gerações e negando o destino
trágico da existência em devir. Ao contrário da angústia suscitada pela apreensão do devir da
existência que revela ao homem seu ser para a morte, a vida do divino encontra-se inteiramente contida
no prazer da sua própria eternidade, prazer do qual nos aproximaríamos por via da contemplação
metafísica da essência perene do cosmos.91

89
ser não é apenas o ser substancial, aquilo que se acha inalteravelmente à nosssa frente, isto é, a substância no sentido de suporte de
propriedades mutáveis. Energia é muito mais o modo de ser daquilo que não é produzido por nós, mas daquilo que é por natureza: o
ser do ente em sua mobilidade.
90
Livro Lambda citado por Jaeger, 252.
91
Une mise à l’epreuve d’Aristote à partir de Heidegger. Pierre Destrée, Revue Philosophique de Louvain 87
(76) 1988, p. 633.

35
36

No entanto Aristóteles tem plena consciência de que é vedado ao homem viver


contemplativamente. As preocupações com nossas tarefas cotidianas,a falta de tempo para isso ou para
aquilo, a brevidade da vida nos indicam justamente a dimensão da existência que permanece
impensada aí. Ao contrário a idéia de “ocasião propícia” (Kairós) chama a atenção para o caráter
sempre contingente das circunstâncias da vida, que nenhum pensamento pode afastar e que constitui o
seu cerne. O bem viver efetivo não pode portanto ser reduzido à mera contemplação e a felicidade de
um homem só estará completa ao final da sua existência.

§ 21

CONCLUSÃO: A Mutação cristã da metafísica de Aristóteles

Como vimos, a ontologia Aristotélica nos põe em contato com enormes dificuldades teóricas
que o autor publica no exato momento em que tenta resolvê-las. Pode-se supor que os livros da
metafísica compõem mais um simples rascunho do que uma obra acabada. Mas isso seria admitir que a
“ciência buscada”, tal como projetada por Aristóteles, isto é, sob a forma de uma ciência do ser
enquanto ser”, seria possível em princípio, enquanto sistema. Foi isso o que ocorreu às interpretações
posteriores da obra. Ao contrário de duvidar das pretensões sistematizantes do autor a tradição preferiu
denunciar a incoerência do sistema aristotélico, tratando de arranjar a exposição dos temas e questões
num todo coerentemente corrigido, embora Aristóteles estivesse consciente de considerar um conjunto
de problemas necessariamente aporéticos que não podiam ser tratados senão através de uma espécie de
“elucidação sistemática do fracasso”(Aubenque, 16).
No mesmo sentido afirma Samarranch que “a Idade Média dificilmente poderia ... ter
valorizado um simples esforço ou ensaio de investigação que terminava de forma diferente de como
havia sido planejada. Acostumados a contar com uma instância suprema de onde viriam todos os
recursos e respostas para os pontos de fuga do discurso” o inacabamento da Metafísica aristotélica
deveria aparecer necessariamente como sendo simplesmente ininteligível. Ao contrário, os filósofos
medievais preferiram atribuir esses “pontos de fuga” do discurso aristotélico à “carência da luz da fé”,
empreendendo, a partir desta, a tarefa de “tapar os buracos” da doutrina edificando, em seguida, um
sistema conceitual que “não estava contido no texto de onde partiam”. Assim, a metafísica aristotélica
sofre uma “mutação” decisiva, tornando-se uma “criação cristã e europeia, nascida em torno do sec.
XIII” (Samarranch, p. 93).
Porém, de acordo com Heidegger, essa mutação do sentido da metafísica não é propriamente
assim. O caráter teológico da ontologia já está embutido na estrutura da própria questão que a orienta
ao visar o ente enquanto ente, pois, assim procedendo, “representa o ente (on) constantemente apenas
naquilo que a partir dele se mostrou enquanto ente (he on)” (Heidegger, O Que é metafísica, p. 78). 92
Ora o que no ente pertence à sua enticidade é o que provém da realidade e não, por exemplo, da
projeção nele de qualquer determinação da subjetividade humana. O ente considerado em sua
enticidade é o ente em si, representado autenticamente pelo ente supremo, perfeito, totalmente em ato e
absolutamente independente de qualquer outro fundamento. O ente, tendo sempre em si uma potência,
faz com que se possa tomar um estado atual do seu desenvolvimento como sendo o todo do seu ser,
permitindo um erro que a natureza de Deus, toda em ato, não permite. Assim, só Deus seria,

92
Não tem em vista o ente mas o ser que ele é e o fato de lê ser, destacado de tudo aquilo que pode lhe advir – ora isto ora aquilo. O ser
separado dos acidentes e predicações possíveis: o absoluto

36
37

propriamente, ente enquanto ente e mais nada, só ele deveria ser objeto da contemplação metafísica
que visa o apreender o ser daquilo que é enquanto é o que é.93
Por outro lado pode-se entender a enticidade do ente no sentido dos traços mais gerais da sua
manifestação (on katholou, koinon) ou dos diversos sentidos em que se atribui ser ao ente. De todo
modo, as duas concepções ontológicas que visam a essência da manifestação do ente partem da
redução prévia do essencial ao que se mostra efetivamente no fenômeno não prestando atenção
suficiente ao que, na medida em que se desvela no ente, já sempre des-apareceu.
Assim, subtraindo-se à revelação no mesmo instante em que revela, o ser condiciona seu
próprio esquecimento na memória metafísica do homem. Esse esquecimento é o que permitiu aos
teólogos se apossarem da ontologia grega, de modo que, contrariamente ao que pensa Samarranch, a
doutrina cristã não transforma a ontologia aristotélica, antes prolonga-a.
Citando São Paulo quando este afirma que a sabedoria do mundo (sophia tou kosmou), com a
permissão de Deus, foi transformada em loucura (I Coríntios 1, 20) Heidegger mostra que essa
sabedoria é o que os gregos “zetousin”, procuravam, conforme o próprio Aristóteles dizia que a “prote
philosophia”, ou seja, a filosofia fundamental era zetoumene - a procurada. Assim, a palavra de São
Paulo é tomada por Heidegger em contraposição à reflexão teológica dos padres da igreja na medida
em que resguarda a unidade da busca filosófica com a loucura que consiste justamente em procurar
elucidar o que, por essência, jamais se mostra ao homem, seja em si mesmo, no mundo ou nas coisas,
senão enquanto des-aparece. Salvar do esquecimento o mistério do ser, fazendo a filosofia preservar o
espaço para uma busca cuja errância contém justamente o que ela procura, deve ser, portanto, a meta
fundamental da ontologia: procurar o que des-aparece.

93
“O pnesamento grego identifica o ser com o que se apresenta ao simples olhar da consciência para a coisa. O conteúdo desta
contemplação intelectual se articula na estrutura do juízo predicativo (logos), no qual o sujeito corresponde à coisa, enqunato dada na
experiência sensível, e o predicado corresponde ao aspecto (eidos) sog o qual a inteligência a apreende e que revela aquilo que a coisa
é (Sócrates é um, a coisa, Sócrates, sob o aspecto da quantidade) o inteligível é o que pode ser capatado pela inteligência no fenômno,
gozando por isso, tanto em Aristóteles quanto em Platão, de prioridade absoluta sobre o sensível, que se trate da idéia platônica ou da
substância aristotélica. Daí o caráter onto teológico da metafísica. Haveria uma dupla forma de transcendência da consciência humana
em relação ao mundo sensível. De um lado haveria a transcendência ontológica característica do “ser do ente em geral”; de outro lado
haveria também uma transcendência vertical e teológica no sentido da substância supra-sensível e imperecível, concebida como
pensamento puro em ato, de Deus. (Cf. MAC DOWELL, J. O fim do fim da metafísica. In: Reflexões. Mariana: Dom Viçoso, 2000,
p. 24).

37
38

A CARNALIDADE DO COGITO

Fenomenologia do cartesianismo

Ouro Preto
IFAC
1997

38
39

ÍNDICE
INTRODUÇÃO: A DIVISÃO TRADICIONAL DA METAFÍSICA................................................................................3
§ 01 DESEJO DE SABER E SABER DO DESEJO.............................................................................................................5
§ 02 PHYSIS E DES-OCULTAMENTO................................................................................................................................6
§ 03 SIGNIFICAÇÃO METAFÍSICA DO SABER ABSOLUTO......................................................................................8
§ 04 OS PRÉ-SOCRÁTICOS..................................................................................................................................................10
§ 05 A POSIÇÃO DE HEIDEGGER....................................................................................................................................12
I – PLATÃO: A TEORIA DAS IDÉIAS..............................................................................................................................14
§ 06...............................................................................................................................................................................................15
§ 08................................................................................................................................................................................................18
§ 09...............................................................................................................................................................................................19
As idéias e a predicação...........................................................................................................................................................19
§ 10 O BEM................................................................................................................................................................................20
II – PROBLEMAS METAFÍSICOS EM ARISTÓTELES..............................................................................................23
§ 11 UM NOME PARA UMA CIÊNCIA SEM NOME: A origem do termo Metafísica............................................23
§ 12 UMA CIÊNCIA PROCURADA.....................................................................................................................................25
§ 13 A METAFÍSICA COMO CIÊNCIA DO SER ENQUANTO SER.........................................................................26
§ 16 As Categorias: da causa do ser à essência do discurso.............................................................................................29
§ 17 Crítica da concepção aristotélica da verdade apofântica.........................................................................................31
A CARNALIDADE DO COGITO............................................................................................................................................38
Fenomenologia do cartesianismo............................................................................................................................................38
I - A dupla redução.................................................................................................................................................................40
II - O Duplo sentido do cogito................................................................................................................................................43
III - A Essência da ipseidade transcendental da vida do ego: a afetividade..................................................................47
IV - O CORPO ABSOLUTO E A CARNALIDADE DA ALMA.....................................................................................50
V - Adendo: A vontade, o entendimento, o erro..................................................................................................................54

39
40

I - A dupla redução

§ 01

Escrevendo a Picot Descartes afirma que “a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a
metafísica, o tronco a Física e os galhos que saem desse tronco são as outras ciências” 94. De acordo
com esta imagem a metafísica seria a ciência esclarecedora do fundamento de toda ciência e
conhecimento possíveis. Nas Regulae escreve Descartes que a questão essencial consiste em “procurar
o que é o conhecimento humano”.95 Assim, cabe à metafísica, e não às ciências, dizer qual é a
essência do conhecimento, fundamentando assim retroativamente a possibilidade das próprias
ciências em geral.96
Em primeiro lugar porque as raízes antecedem o tronco e os galhos da árvore das ciências
permitindo à árvore toda comunicar-se com a fecundidade do solo do conhecimento em que se apoia.
Em segundo lugar a raiz do conhecimento em geral, imersa na terra, subtrai-se ao horizonte de
visibilidade onde prosperam os galhos e o tronco. O objeto da metafísica (a essência do conhecimento)
encontra-se, portanto, situado num meio intrinsecamente obscuro e oposto, como tal, ao meio luminoso
da racionalidade matemática onde se situam as ciências da natureza em geral. A natureza é um livro a
se oferecer aberto ao olhar do saber humano, ao contrário da essência do próprio conhecimento.
Problemático, em sentido filosófico, portanto, não é o conhecimento em geral, ou conhecimento
cientifico, em particular, mas a possibilidade de esclarecer os seus fundamentos, indo até sua raiz
através da reflexão metafísica.
De fato, toda ciência fundamenta-se sobre pressupostos não esclarecidos. Para Aristóteles a
demonstração e a indução, métodos científicos do conhecimento pressupõem, no primeiro caso, os
elementos definitórios (gênero, diferença específica etc.), as primeiras premissas onde o universal é
sujeito e, no segundo caso, os fatos particulares a partir dos quais a generalização será inferida. Para
resolver essa questão Aristóteles recorreu aos princípios considerados evidentes por si mesmos, como
por exemplo o princípio lógico da não contradição. Os axiomas, como foram chamados, seriam
verdadeiros em si e por si, e, ao mesmo tempo, indemonstráveis. Fundamentar a verdade do princípio
da não contradição significaria demonstrar sua validade universal. Mas ele é pressuposto por toda
demonstração verdadeira, uma vez que juízos contraditórios não podem ser verdadeiros. Assim a
indemonstrabilidade do princípio da não contradição faz dele o fundamento de todo
conhecimento possível garantindo ao mesmo tempo sua validade universal como regra da
coerência do pensamento consigo mesmo e com a realidade.
94
Oeuvres de Descartes, Adam-Tannery, Paris: Vrin-CNRS 1974, IX, p. 14. Todas as citações seguintes
referem-se a essa edição das obras completas de Descartes.
95
Regra VIII.
96
Cf. RÖD, W. L’Explication entre méthode et métaphysique, in: Le Discours et sa méthode, op. cit., p. 107.
“Descartes atribuiu à metafísica duas funções diferentes, a saber: a de fundamentar os princípios científicos (já
reconhecidos, JLF) e a de refletir sobre a pretensão à verdade da ciência” (idem, p. 105). De fato uma coisa é
saber se um juízo é verdadeiro, outra o que torna possível que ele seja verdadeiro. A primeira questão é de ordem
epistemológica, a segunda, metafísica. A primeira consiste na verificação ou esclarecimento da verdade, a partir
da adequação do juízo aos princípios metodológicos da investigação matemática dos fenômenos; a segunda
consiste em elucidar o fundamento da própria verdade em geral, nascendo da perplexidade quanto à
possibilidade mesma do conhecimento.

40
41

Para Descartes essa maneira de pensar seria dogmática porque ele “não restringe, como os
escolásticos, a nossa receptividade à sensibilidade, de que a razão extrairia por abstração os elementos
comuns, sendo a intuição intelectual reservada aos anjos ou puros espíritos. A prática das matemáticas
mostra bem como esta intuição é a concepção indubitável de um espírito puro e atento, que nasce da
única luz da razão”. 97
Assim a indemonstrabilidade da necessidade com que um princípio, mesmo
lógico/transcendental, se impõe a nós, implica já a certeza subjetiva do ato que o pensa ou intui, isto é,
a atenção do espírito. É justamente essa certeza trazida pela consciência no ato em que representa para
si qualquer princípio, e não sua simples indemonstrabilidade factual como tal, o fundamento da sua
verdade. A indemonstrabilidade do princípio da não contradição significa apenas que ele é uma
verdade originária imposta imediatamente a nós, com evidência, a partir de uma intuição clara,
independentemente de qualquer raciocínio ou juízos prévios. Indemonstrável não quer dizer então que
alguma coisa se impõe a nós sem mais, pois trata-se de algo evidentemente indemonstrável. A
evidência da indemonstrabilidade é, por sua vez, constituída pela indubitabilidade com que uma
representação da consciência se impõe ao sujeito pensante. Com o conceito de indubitabilidade
Descartes pensa, portanto, a essência do ente segundo a efetividade da sua manifestação a uma
consciência evidente. Uma manifestação é efetiva quando o que através dela se revela é indubitável.
Mas, na medida em que a indubitabilidade caracteriza o fundamento da verdade do ente, ela não é
ainda a significação última do cogito, a saber a significação ontológica de uma investigação dirigida
para a essência da revelação do próprio ser. Essência residente, não nas raízes metafísicas da árvore do
conhecimento e da verdade, mas no próprio solo onde elas se apoiam e se nutrem de vida. De fato a
apreensão do ente exige a abertura prévia de um horizonte de visibilidade a partir do qual ele nos vem
ao encontro na condição de fenômeno, cabendo à metafísica investigar a essência dessa abertura. Ora
esta essência não se revela a nós na abertura que ela torna possível.

§ 02

Para melhor esclarecer a questão é preciso atentar para a diferença entre certeza (subjetiva) e
verdade (objetiva) estabelecida pela primeira vez no cogito. A interpretação clássica do problema
repousava sobre idéia de que a verdade consiste na adequação entre a representação que temos do
mundo e o que ele é em si, independentemente dessa mesma representação. "Veritas est adaequatio rei
et intellectus", afirmavam, nesse sentido, os medievais. Segundo Heidegger, a idéia de adequação é de
natureza "teológica", significando que "as coisas (ens criatum) correspondem, em sua essência, à idéia
previamente concebida pelo intellectus divinus, isto é, pelo espírito de Deus. Assim, elas concordam
com a idéia e com ela se conformam, sendo, nesse sentido, verdadeiras".98
Por essa via Deus torna-se o fundamento absoluto de onde emana toda verdade que o homem
possa conhecer. Ora, Descartes começa a busca da solução para o problema da fundamentação última
do conhecimento destituindo todo objeto da sua relação a uma idéia previamente concebida, seja pelo
intelecto divino, ou humano. De fato, se ele assim não procedesse, duvidar da existência do mundo
externo seria, mais do que um erro, uma heresia. Em segundo lugar Descartes aponta para a conexão
essencial da verdade objetiva com a certeza subjetiva do espírito humano, tal como ocorrerá
paradigmaticamente no cogito. Essa conexão precede necessariamente e fundamenta toda verdade.
97
Cf. Geneviève Rodis-Lewis, Descartes e o racionalismo, trad. Jorge de Oliveira Baptista, Porto: Rés, 1979, p.
35.
98
Sobre a essência da verdade, trad. Ernildo Estein, São Paulo: Duas Cidades, 1969, p. 134.
O conceito esolástico de verdade afirma, paradoxalmente, que a verdade deve ser verificada pela realidade a que
ela se refere e, ao mesmo tempo, que a inteligência é essencialmente inadequada em sua maneira de expressar a
realidade (MURALT, A. A metafísica do fenômeno. São Paulo: 34, 1998, p. 91).

41
42

Assim o fundamento da verdade torna-se imanente à subjetividade humana na e pela imanência


a si do pensamento. Com Descartes o pensamento humano vem a ser, propriamente falando, sujeito
das verdades que descobre trazendo em e por si mesmo a medida da objetividade do conhecimento99.

Mas a questão a que somos remetidos pelo cogito não consiste apenas em examinar todas as
verdades que a razão humana pode conhecer por si mesma 100, ou seja, em conhecer quais são essas
verdades, se é que existem, mas em que consiste a possibilidade mesma da verdade. O objeto da
“primeira Filosofia ou Metafísica” são “os princípios do conhecimento ...” 101, afirma Descartes.
Quanto às verdades que podem ser conhecidas através daqueles princípios, são as intuíveis
imediatamente com clareza e distinção e as que podemos deduzir mediante a utilização de regras
capazes de impor ordem e medida ao pensamento (mathesis). Nesse sentido, “deve haver uma ciência
geral que explique tudo o que se pode investigar acerca da ordem e da medida, sem as aplicar a uma
matéria especial: esta ciência designa-se ... pelo vocábulo já antigo e aceite pelo uso de Matemática
universal"102. Mas a Regra II afirma que não devemos nos ocupar de objeto algum sobre o qual não se
possa ter uma certeza igual às demonstrações da Aritmética e da Geometria. Com isso fica
suficientemente claro que a fundamentação do conhecimento em Descartes se faz em duas direções
simultâneas, ou conforme “duas reduções”. Para falar como Michel Henry:

"a dificuldade da leitura dos grandes textos filosóficos de Descartes diz


respeito ao fato de que neles a redução galileniana e sua contraredução, a saber, a
redução fenomenológica, se entrecruzam constantemente segundo o jogo dos objetivos
perseguidos, de modo que ainda é difícil ao leitor de hoje, apesar de tantos
comentários esclarecedores, dissociar essas duas reduções e pensá-las cada uma em
seu sentido próprio"103

99
Em carta a Mersenne de 15 de abril de 1630 Descartes escreve que a razão deve ser usada para “conhecer a si
mesma” e a “Deus”, e que o caminho do conhecimento de si mesmo conduz também aos “fundamentos da
física”. Ora, o conhecimento de si mesmo consiste na certeza de si. Assim a certeza de si do ego é o fundamento
último dos princípios da Física . Mas a ciência dos fundamentos de toda ciência possível, inclusive a Física, é a
metafísica. Quanto a Deus podemos dizer aqui apenas que a constatação da verdade da sua existência não
implica nenhum grau de participação no entendimento divino. Deus é o criador das essências visadas pela razão,
como tais, e é assim que ele garante nosso conhecimento. Ou seja, as essências conhecidas pelo entendimento
não são simples reflexos derivados do intelecto divino. Se assim fosse a perfeição do conhecimento humano só
se consumaria no próprio Deus. O método deveria consistir, nesse caso, primeiramente, não numa maneira de
ampliar nosso conhecimento, mas numa maneira de retroceder até à origem transcendente, convertendo o reflexo
das essências em visão direta. Ao contrário, em Descartes, “a ciência vai, não do obscuro ao claro”, ou seja, da
obscuridade do mundo à claridade da sua visão por Deus, mas “do claro ao claro”(Émile Bréhier, História da
Filosofia, II, 1, p. 77). Assim Deus é a garantia da existência dos seres cuja essência a razão desvenda por seu
próprio esforço. A obtenção de idéias claras e distintas é uma condição necessária porém não suficiente para
garantir a objetividade do conhecimento. Para que essa objetividade seja completa é preciso que as idéias
existam. Ora os conhecimentos intelectuais, únicos inteiramente válidos, não podem fazê-lo, ou seja, não
podemos criar o objeto correspondente, no mundo, das nossas concepções teóricas. Só Deus, portanto, ou melhor
só a idéia da sua existência pode regular o conhecimento da existência objetiva das idéias que formamos acerca
da essência das coisas, porque ele próprio as criou.
100
Cf. Regra VIII.
101
Princípios da Filosofia, IX, 2, 16, 13-16.
102
Regra IV.
103
Descartes et la question de la technique. In N. GRIMALDI et J.-L. MARION (Org.). Le Discours et sa
méthode. Paris: PUF, 1987, p. 287.

42
43

A redução galileniana determina as regras que o espírito deve seguir a fim de descobrir
verdades conhecendo objetivamente o mundo, como a física. Ao contrário, a redução fenomenológica
responde à questão da possibilidade interna de elucidação da própria essência da verdade, em sua
forma purificada. A redução galileniana determina como podemos conhecer a natureza objetivamente
reduzindo-a a propriedades mensuráveis (qualidades primárias) e que podem ser tratadas
matematicamente. Já a redução fenomenológica, ou ontológica, visa elucidar o modo de
manifestação que torna possível apreender a essência de todo conhecimento trazendo à luz do
espírito humano as raízes da árvore metafísica. Com essa última redução, afirma Michel Henry,
“Descartes não afasta apenas, de maneira explícita, toda interpretação do ser a partir do ente e como
ser do ente. Descartes faz com que uma disciplina inteiramente nova e que não será mais desenvolvida
depois dele, dê os primeiros passos, disciplina que denominamos fenomenologia material”104.

II - O Duplo sentido do cogito

§ 03

A partir das reduções galileniana e ontológica tornam-se possíveis duas interpretações do


cogito ergo sum. A primeira o toma como realização do tipo exemplar de uma proposição
verdadeira, a segunda, enquanto fundamento da manifestação interna da essência da verdade.
Para M. Henry, em que pese o fato de ser bastante comum, a interpretação segundo a qual o cogito é a
evidência primeira, é simplesmente aberrante. Em sentido epistemológico o cogito seria apenas uma
entre as tantas verdades racionais possíveis, a mais certa dentre elas, mas jamais o fundamento de toda
verdade possível. “Precisamente porque permitiu à consciência se elevar, do interior do seu ser
singular, à ordem da racionalidade, (o cogito, JLF) permanece sendo esse ideal de uma busca que se
realizou aí pela primeira vez, confirmando uma finalidade definida: a obtenção de conteúdos que
possam se prevalecer do título de `verdades´".105 O cogito marca assim o primeiro momento em que o
sujeito, decidido a procurar até o fim na autonomia da verdade a satisfação plena da exigência racional
de evidência, encontra o caminho do que procurava. Ele será a verdade inaugural resultante do exame
que pelo menos “uma vez na vida”, “todos os que se aplicam seriamente na realização do bom-
senso”106 devem fazer107.

A interpretação do cogito como verdade exemplar torna ininteligível a posição fundamental


da metafísica – raiz da árvore do conhecimento - em relação à possibilidade das outras ciências,
simples galhos. De fato, a realização do conhecimento científico, não os metafísicos propriamente
falando, não depende do cogito no sentido de modelo arquétipo de perfeição da evidência, porque as
regras da mathesis, quando bem conduzidas permitem sua dedução. Por outro lado, a posição central
ocupada pelo cogito no interior da doutrina cartesiana, não deixa dúvida de se tratar de um fundamento
último, não só no sentido em que possui uma evidência absoluta, mas em que dele depende a
realização de todo conhecimento possível sem a própria revelação efetuada pelo cogito depender de
104
Généalogie de la psychanalyse, op. cit., p. 21.
105
L’essence de la manifestatiton, Paris: PUF, 1974, p. 12. Grifado por mim.
106
Regra VIII.
107
É nesse sentido, sem dúvida, que Husserl interpretará Descartes fazendo dele o “patriarca” da fenomenologia:
“o filósofo que deve ser venerado pela fenomenologia ... como um verdadeiro patriarca", é Descartes, o "maior
pensador da França” (HUSSERL, E. Conferências de Paris. Trad. Arthur Mourão, Lisboa, Edições 70, s/d, p. 09).

43
44

nada. Como tentaremos demonstrar, a indubitabilidade do cogito não é da mesma ordem que a do
juízo, ou seja, do pensamento e darepresentação de conceitos.

Mas, se os princípios metafísicos fossem avaliados simplesmente do ponto de vista do seu


valor explicativo para a compreensão da ciência, não seria necessário impor a eles a exigência de
evidência absoluta. Descartes nem renunciou a ver na metafísica uma “suprateoria das teorias
científicas”, nem abdicou da pretensão de conferir aos seus princípios o estatuto de verdades
absolutas108. De fato se pretendemos legitimar a priori a pretensão científica de obter verdades
definitivas, os princípios metafísicos - dos quais as proposições científicas derivam, direta ou
indiretamente, na medida em que justamente a metafísica é a raiz da árvore do conhecimento - deviam
ser absolutamente verdadeiros. Assim a fundamentação metafísica absoluta dos princípios do
conhecimento seria a garantia transcendental do caráter definitivo das verdades científicas. Se esta
posição é correta, deveríamos rejeitar como falsa a afirmação de que Descartes toma a ciência “em si
mesma”, restringindo-a ao seu “domínio verdadeiro”, independentemente de toda “consideração acerca
da essência e origem primeira das coisas”109.
Nos “Princípios” escreve Descartes que apenas através da experiência podemos conhecer o
universo ordenado por Deus tal como existe atualmente, pois há inúmeras formas possíveis de
organizar a matéria a partir dos princípios e leis universais que a regem, sem que possamos saber qual
Deus escolheu.110 Em teoria pode-se deduzir inúmeros efeitos possíveis diferentes daqueles atualizados
pela matéria, verdadeiro objetos da ciência. Assim é verdade que Descartes restringe a ciência a seu
domínio verdadeiro, isto é, à observação experimental dos fatos matematizáveis. Mas é também
verdadeiro que a consideração filosófica do domínio efetivo da ciência depende da tese metafísica
relativa à “infinidade de modos” possíveis de ordenação do mundo.

§ 04

Mas, afinal, em que consiste o sentido propriamente metafísico do cogito? O que faz a
originalidade absoluta desse pensamento que inaugura a “fenomenologia material” de que fala
M.Henry?

A caminho de realizar o cogito Descartes começa por afastar do âmbito da consideração


filosófica tudo aquilo acerca de que pudesse “imaginar a menor dúvida”. A redução não afasta apenas
o que é incerto e obscuro, mas inclusive o que é tido regularmente, pela tradição, pela cultura de escola
etc., como certo, eliminando, de fato, toda verdade ainda não reconstituída mediante a evidência
fundamentada na certeza subjetiva, efetivamente vivida, na atualidade do cogito. O verdadeiro
objetivo da redução cartesiana não consiste, portanto, em um primeiro momento, em substituir um
conjunto de conhecimentos dubitáveis por outros mais certos, mas em tornar evidente o único caminho
capaz de conduzir a qualquer verdade possível. Esse método é idêntico ao estabelecimento de uma
certeza subjetiva absoluta relativa ao ato da consciência que pensa um objeto em sua verdade, certeza
que não resulta da demonstração, pois a consciência não poderia demonstrar, e isto não pro razões
lógicas, seu próprios atos.

108
Cf. RÖD, W. L’Explication entre méthode et métaphysique, in: Le Discours et sa méthode, op. cit., p. 107.
109
LIART, L. Descartes, Paris, 1882, p. 223, cit. in: Jean-luc Marion, La Situation métaphysique du
“Discuours”, in: Le Discours, op. cit., p. 369.
110
Cf. Princípios, III, 46.

44
45

De fato, a exclusão da dúvida inclui as “razões” do que podia ser tomado como
“demonstrações”.111 Assim, já de início sabemos que o cogito revelará o que não se fundamenta numa
demonstração. A revelação do cogito repousará exatamente sobre a impossibilidade de demonstrar
adequadamente a existência do eu, o que atesta suficientemente a afirmação repetida e comum de que o
cogito não é um silogismo ao qual faltaria uma premissa. Também não se trata de uma intuição
evidente obtida por reflexão ou introspecção.

F. Alquié, a fim de refutar qualquer desdobramento reflexivo que pudesse fazer do cogito uma
“apercepção intelectual” da “ligação necessária” entre pensar e existir, tal como afirma Rodis-Lewis112
sublinha que a revelação do cogito repousa sobre uma presença tão íntima da consciência a si mesma,
que nenhuma reflexão ou separação aí se introduz113. J.-M. Beysade, retomando a questão do cogito do
ponto de vista do videre videor afirma que o indubitável consiste num aparecer tão puro que nele não
há distância entre dois termos, isto é, entre o ato de aparecer o que nele se revela 114. J.-L. Nancy
sublinha que "Descartes não refutou nada mais obstinadamente do que introduzir o pensamento, no
sentido de reflexão, no cogito”115. Do ponto de vista estritamente fenomenológico, Merleau-Ponty se
propõe “pensar o cogito como um contato absoluto do eu consigo mesmo”116. Por último, afirma
Derrida que o cogito não é um conhecimento objetivo e representativo 117. Apesar desses comentários a
tradição consagrou-se a evitar, como um perigoso solipsismo, essa imanência ou imediaticidade do
cogito, de Spinoza a Kant, de Hegel a Lacan.

Ora esse contato absoluto da subjetividade consigo mesma, falta, de fato, à possibilidade
última de revelação da consciência. O olhar não se vê vendo, e é impossível se pensar pensante na
medida em que o pensamento pensante em ato não se confunde com o pensamento pensado, isto é, na
condição de objeto do pensar, retido na corrente temporal da consciência. No caso da visão, se
tentamos ver o próprio olhar no espelho, por exemplo, o que se oferece a nós revela-se uma simples
imagem especular, não possui nenhum “olhar” entendido como capacidade de ver e se sentir vendo em
ato. Entretanto a possibilidade dessa apreensão imanente é absolutamente imperiosa em se tratando da
constituição transcendental interna do poder que se efetua em todos os atos da consciência. A essência
do pensar é o eu penso, não porque me penso, mas porque eu sou. O ser do ego, sua vida interior, é a
essência do pensamento. “Eu sou explicita simplesmente a condição ontológica de possibilidade do eu
penso”118, condição, evidentemente, prévia. “Um pensamento que (se) pensa deve”, nesse ato e para
poder efetuá-lo, “já ser” antes da reflexão.119
O que não significa ser preciso, antes da reflexão, já ter pensado alguma coisa a fim de
repensar esse ato reencontrando nele o pensamento já efetuado e, juntamente com ele, os vestígios da
existência do ego que o efetuou. Segundo ainda Marion o cogito implica a estrutura de um
“pensamento pensado por um pensamento pensante que já é”120 independentemente do que ele
pensa, ainda que não anteriormente. Nesse sentido a anterioridade do cogito não se refere ao pensado

111
Discurso do método, § IV.
112
Op. cit., p. 30.
113
La Découverte métaphysique d'homme chez Descartes, Paris, l950, p. 189.
114
La Philosophie première de Descartes, Paris: Vrin, 1971, p.234.
115
Ego Sum, Paris: Vrin, l979, p. 34.
116
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la Perception, Paris: Gallimard, 1945, p. 342.
117
Cogito et histoire de la folie, in L'écriture et la différence. Paris: Seuil, 1967, p. 85
118
PRIENTE, Jean-Claud, Problèmes logiques du cogito. In: Le Discurs et sa méthode, op. cit., p. 266
119
Marion, J-L., op. cit., p. 386.
120
Idem, p. 386.

45
46

na reflexão, mas ao pensar em ato, ao presente originário desse ato. 121 Não se trata da anterioridade do
que já era mas do que sempre é em relação a tudo o que adveio ou advém no pensar. O pensamento
em sentido cartesiano designa assim a impossibilidade do fundamento da efetuação do ato de
pensar ser tematizado através da consciência reflexiva desse mesmo ato tal como ele é. O cogito é
este “conhecimento” imanente a todo ato da consciência que, não sendo conhecimento do objeto visado
por esses atos, permite à consciência manter-se em si mesma à distância de toda coisa, a fim de se
constituir como um sujeito reunificando cada um dos seus atos ao poder imanente que os exerce. É o
pensar que se “sabe” antes da projeção do objeto, da transcendência da consciência, da abertura de um
mundo, da reflexão sobre si.

05 §

Por esta via a afirmação de que a proposição “eu sou, eu existo” é verdadeira “por todo o
tempo em que eu penso”122 pode ser interpretada em dois sentidos. De um lado, como autonomia
ontológica da existência do eu, em sentido fenomenológico, pois o pensamento designa a
essência da consciência e não um dos seus modos particulares. Nesse sentido o pensamento seria a
determinação interna e imanente da unidade do eu que precede toda efetuação da consciência,
enquanto princípio da manifestação de o ego a si mesmo.
Mas pode ser vista apenas como fundamento da verdade do enunciado “eu sou, eu existo”,
necessariamente verdadeira, como diz Descartes, “toda vez que a enuncio ou que a concebo em meu
espírito”.123 De fato todo juízo é verdadeiro, não apenas quando enunciado, mas quando concebido, ou
seja, efetuado por um pensamento no qual a verdade do seu conteúdo se evidencia. Todo juízo só é
verdadeiro para mim que o efetuo enquanto vivido numa evidência atual, tal é o sentido originário da
verdade. Fora dessa experiência vivida já não tenho nenhuma evidência e não há mais verdade, a não
ser como rótulo aderido aos conceitos, juízos e teorias, que se tornaram aceitos por todo mundo. Por
esta via a verdade resulta do pensamento efetivamente em ato, ou seja, da atualidade da vida subjetiva
da consciência que a vive como uma evidência e que se atualiza em nós antes de toda evidência, e não
da adequação do juízo ou enunciado ao objeto.
Caminha no mesmo sentido a afirmação de que a dúvida metódica poderia ser estendida
inclusive aos princípios axiomáticos cuja verdade seria evidente por si mesma, de modo que eles não
necessitariam da garantia divina. Em carta a régius de 22 de maio de 1640, 124 afirma Descartes que os
axiomas são verdadeiros “por todo tempo em que são claramente compreendidos”. Ou seja, a verdade
dos axiomas não pode ser posta em dúvida enquanto for ele próprio intuitivamente evidente para uma
percepção efetiva. Mas não há nenhuma garantia da persistência futura dessa mesma evidência. Nossas
intuições são sucessivas e a certeza enraíza-se no instante presente em que é vivida como tal. É então
que devemos apelar para a imutabilidade e bondade divinas para garantir a sustentação das verdades
descobertas intuitivamente, já que seria impossível mantê-las presentes no nosso espírito mutável e
apenas capaz de intuir uma coisa de cada vez. A bondade de Deus garante então a validade da
evidência através do tempo, a esperança de que as verdades, mesmo axiomáticas, permanecerão
dotadas da mesma evidência.

121
De acordo com Merleau-Ponty no cogito “a certeza que tenho de mim é ... a de um “pensamento em ato”, no
sentido de um pensamento “que se toca mais do que se vê”(O Primado da percepção, Rio: Papirus, 1987, p. 34
122
Meditações, II, § 7.
123
Idem, II, § 04.
124
Citada por: BRÉHIER, E. Histoire de la philosophie, Paris: PUF, 1985, II, p. 72.

46
47

Essas duas concepções, a que concebe o cogito a partir da anterioridade absoluta da


manifestação imanente da vida egológica a si e, portanto, da realidade do eu, antes da efetuação de
qualquer consciência - clara e evidente ou duvidosa e confusa - e independentemente dela; e a que faz
do cogito a verdade exemplar, telos das outras efetuações da consciência evidente, sendo, como tal, a
condição da verdade dos conceitos relativos ao conhecimento ôntico em geral, convivem lado a lado
no texto das “Meditações”.

06 §

Mas o que torna especificamente difícil compreender a imanência da revelação contida no


cogito é justamente o fato dela ultrapassar a redução do poder elucidador interno da subjetividade à
estrutura da consciência evidente (indubitável) onde se dá a formação da objetividade da representação
e das teorias científicas. Conforme essa última redução a condição última da verdade do conhecimento
reside na possibilidade da certeza de si que fundamenta a intuição evidente dos objetos. A certeza é a
condição transcendental do conhecimento, mas não o fundamento ontológico último da realidade. Ela
dá conta da possibilidade da ciência, mas não da fundamentação metafísica última do cogito.
A certeza absoluta do "eu penso" não pressupõe nenhuma verdade, isto é, nenhuma adequação
do pensamento a um objeto qualquer, e por isso não há nenhuma razão para duvidar da sua verdade. A
possibilidade da dúvida se fundamenta, de fato, conforme Descartes, sobre a essência da verdade
objetiva, ou seja, sobre o horizonte da consciência e, por derivação, incide sobre tudo que se mostra
como tal a partir da visibilidade (objetividade) desse horizonte de presença. Assim, se o "eu penso" é
certo "por todo tempo quanto eu penso" isso significa que a efetuação imanente do ato de pensar, ou
dos atos da consciência em geral, encontrando-se fora do âmbito da consciência é, por isso, indubitável.
A realização dos atos transcendentais da consciência não depende da consciência dos próprios atos
enquanto princípio fenomenológico da sua efetuação, como o prova o fato da certeza se estender ao
pensamento como ato, independentemente da sua forma ou do seu conteúdo, mais ou menos rigorosa,
no primeiro caso, ou mais ou menos claro, no segundo. A certeza incide sobre a simples efetuação
imanente do pensamento, isto é, ao pensamento pensante que não foi ainda, nem pode sê-lo, objeto de
uma intuição qualquer, porque a interposição de uma distância paralisaria sua existência.
Mas, todo ato supõe sua relação ao poder que o efetua. Ora o poder que efetua os atos da
consciência reside justamente no sujeito, ou seja, no "ego". Deste ponto de vista a certeza de si
última do sujeito significa precisamente a revelação absoluta da essência do poder que efetua os
atos da consciência. Revelação que se passa, fora do horizonte aberto da consciência, na estrutura
interior da vida egológica. O ego, no cogito, acede imediatamente aos atos da subjetividade no sentido
em que não depende da fenomenalidade do campo de presença aberto pela consciência para se
assegurar da sua própria existência. O sujeito cartesiano é o ser-consciente da consciência, o Sein do
Bewust-Sein.
O círculo epistemológico que consiste em fazer uso do conhecimento antes de estabelecer a
sua possibilidade é, desse modo, rompido. O fundamento último do conhecimento - a ipseidade da vida
egológica - revela-se, para além da possibilidade de qualquer conhecimento, numa imanência tão
absolutamente radical que não comporta nenhuma luz, nenhum distanciamento objetivante, nenhuma
reflexão, nenhuma verdade. Qual é então o princípio que permite à subjetividade transcendental ser o
que ela é para além da consciência e anteriormente a ela?

III - A Essência da ipseidade transcendental da vida do ego: a afetividade.

47
48

De acordo com as precisões conceituais introduzidas pela filosofia de Heidegger na noção de


transcendência, esta é a essência da relação que une a luminosidade do mundo ao ente que ela faz
aparecer através da diferença ontológica. O conceito de transcendência concebe o vínculo que une o ser
ao ente tal como a luz se encontra unida à coisa por ela iluminada, isto é, de tal modo que o aparecer (a
luz) não aparece senão no aparente do qual ele é o ser. Assim, o elemento ontológico se une
indissoluvelmente à determinação ôntica, ainda que o ser não seja nenhum ente, do mesmo modo como
a luz não se identifica a nada do que é por ela iluminado, no sentido em que não pode ser explicada por
nada do que ela própria revela, não revelando seu próprio fundamento. O ente mostra-se, como tal,
estranho à luz do ser, de tal maneira que não pode nela entrar e não pode se manifestar através dela
senão enquanto outro, em sua oposição irredutível à essência da fenomenalidade.

Assim, a transcendência ontológica significa, primeiramente, que o ser transcende o ente no


sentido indicado acima, a saber, em que nenhuma manifestação do ente revela o próprio ser, ainda
que o ser seja sempre o ser do ente. Esclarecendo outra coisa a essência da fenomenalidade jamais
esclarece a si mesma. Sem compreender essa transcendência do des-aparecer do ser não há reflexão
filosófica nem ontologia fenomenológica. Ela nos permite compreender, por exemplo, que toda
experiência se dê no espaço e no tempo e o que o tempo e o espaço não sejam, concomitantemente,
conteúdos da experiência mas, justamente, suas formas transcendentais, como na Estética
Transcendental de Kant. Com essa passagem ao transcendental a filosofia pode distinguir o verdadeiro
objeto da sua reflexão distinguindo o ato de aparecer, considerado em sua pureza, disso que ele faz
aparecer, a luminosidade da luz daquilo que ela ilumina e, finalmente, o ente do seu ser.

Se entendemos a redução cartesiana como redução transcendental, ela deveria fazer ver
precisamente essa dimensão pura do “pensamento” e suas formas, ou seja, o fundamento último de
todo conhecimento possível (a mathesis universalis) enquanto fundamento originário da objetividade.
Nesse sentido, a certeza subjetiva do cogito fundamentaria, originariamente, a objetividade de toda
verdade efetiva, do mesmo modo como a intuição pura das formas da sensibilidade antecede e
fundamenta o conhecimento objetivo em Kant. Porém, a redução cartesiana é bem mais radical.

Segundo Michel Henry, no mesmo momento em que compreende a "ratio" como uma luz
natural indiferente a tudo o que ela esclarece, ou seja, em que a apreende como luminosidade pura em
sua transcendência a todo ente, e em que compreende o ver da ratio (o "intueri" do "intellectus") como
"ver-que-se-avança-na-luz",125 Descartes faz incidir sobre essa visão o golpe de uma redução ontológica
muito mais radical do que a redução transcendental do objeto à forma pura de um horizonte de
visibilidade que antecede sua apreensão. A dúvida metódica não pretendia afastar apenas os
conhecimentos duvidosos e dubitáveis em prol da evidência, nem reter sob a atenção da reflexão a
forma purificada de um horizonte de presença de onde todo conteúdo transcendente - ou seja, ôntico -
estaria eliminado. A dúvida pretendia ultrapassar o horizonte ontológico de luminosidade que
fundamenta toda visão possíveis, rumo a uma outra forma de manifestação não constituída pela
subjetividade no sentido da consciência e sua abertura. "O que é evidente, o ser aparente tal como
aparece e assim tomado precisamente em sua pura aparência e reduzido a ela, é falso, e isto porque a
própria evidência, quer dizer, o ver-na-luz é falso: a luz, considerada em si mesma, é falaciosa", 126
afirma Michel Henry.

Assim, a crítica cartesiana da luminosidade do horizonte transcendental do ser tem um


sentido fenomenológico, implicando a ultrapassagem que vai de uma esfera da manifestação a outra,
da manifestação transcendente e dubitável a uma manifestação imanente, certa, que não é mais
internamente constituída pela forma pura do pensar que se pensa vendo a si mesmo a partir do espaço
aberto pela objetivação da consciência. A revelação perseguida pelo cogito é certa na medida em que
revela o ato de ver em si mesmo, na heterogeneidade da sua essência em relação ao que este ver revela

125
Descartes et la question de la technique, op. cit., p. 291.
126
Idem., p. 290

48
49

através da luminosidade da sua "ratio". O ato de ver dispõe internamente de uma forma de revelação
imanente de si independente do horizonte transcendental aberto pela objetivação da consciência.

Mas qual é o fundamento desta certeza e desta revelação do ver a si mesmo, do sentir, da
imaginação, e de todos os atos da consciência, oposta à transcendência? O que escapa à redução é o
que, sendo radicalmente invisível, não tomba sob a luz do mundo e assim sob a intuição do olhar. "O
que se prova interiormente ... fora de toda luz" se propõe a nós "na irredutibilidade e
indubitabilidade do seu "pathos"127. O ver é certo na medida em que, não se vendo, sente-se a si
mesmo olhar no seio da invisibilidade radical da vida imanente do ego. Este cogito sem cogitatum
entrevisto por Descartes como condição de existência de uma manifestação absoluta, marca uma
verdadeira ruptura com a noção de fenomenalidade imperante na filosofia desde os gregos, segundo a
qual fenômeno significa o que brilha na luminosidade ek-stática do mundo e, por fim, esse próprio
brilho da essência da verdade enquanto tal.

Husserl pretendeu se inspirar no "cogito" para afirmar a transcendência não dubitável a partir
do modo de doação do objeto da intuição adequadamente preenchida: "cogito cogitatum". Se o cogito é
indubitável, sua certeza deve ser estendida também aos seus objetos. A teoria husserliana da evidência
pretende explicar como o ente pode se beneficiar da mesma luz interior com que a consciência
intencional apreende seus próprios atos, ou seja, como a certeza subjetiva de si pode fundamentar e
fundamenta efetivamente a verdade objetiva128.

Em relação, por exemplo, à evidência com que o objeto percebido se mostra, isso não trás
nenhum problema: a consciência vive a presença originária da coisa mesma. Porém, a questão principal
consiste em saber se a consciência de si é um conhecimento de si e se é, mais ainda do que isso, um
conhecimento adequado de si. Enfim, trata-se de saber se a certeza subjetiva da existência é capaz de
fundamentar o conhecimento objetivo da própria estrutura interna da consciência. Já vimos que o
cogito não é uma consciência de si. Em primeiro lugar porque não é reflexão acrescentada aos atos da
consciência, secundariamente, mas apreensão de si absolutamente imediata e permanente, uma
“certeza metafísica”129. Outro não é o sentido visado por Descartes ao afirmar que, negando a extensão
do espírito não pretendia “explicar como ele é dando a conhecer sua natureza, mas somente advertir
que se engana quem pensa que ele é extenso”130. Se assim é então a natureza do espírito não pode ser
conhecida através da representação de nenhuma categoria ontológica fundamental, quer se trate da
extensão ou da imaterialidade. Quem pensa a natureza do espírito se engana já por pensá-la pura e
simplesmente uma vez que, na condição de objeto do pensamento não estamos em presença da sua
forma efetiva e originária de revelação. Assim a certeza do cogito não é o fundamento da evidência do
conhecimento e a questão não consiste em saber “como o espírito pode ser concebido”, mas em saber
“o que ele é efetivamente” 131 em e por si mesmo, ou seja, se é concebível. Se Descartes desse uma
explicação da natureza do espírito, essa explicação seria contestável como qualquer outra porque todo
saber, desenrolando-se na luminosidade do horizonte que descortina seu objeto, é falacioso.

127
Idem., p. 291
128
"A maneira de ser dado pela atividade original nada mais é que a maneira específica da percepção.
(HUSSERL, E. Logique Formale et logique transcendentale. Trad. Suzanne Bachelard. Paris: PUF, 1965, p.
228) Ainda no mesmo sentido, "a remissão genética das evidências predicativas à evidência não predicativa",
escreve HUSSERL, "é o que se chama experiência (Idem, p. 283)", porque a intencionalidade da experiência da
consciência que vive na presença do seu objeto é mais originária que a intencionalidade propriamente teórica ou
discursiva que trabalha através da mediação secundária e derivada dos símbolos e signos do objeto, visando o
ente através da sua significação ideal. O ver fundamental, ou atividade original, reside deste modo, na
intencionalidade perceptiva.
129
Cf. Objeções e respostas, I, 504.
130
Idem, IV, 550. Grifado por mim.
131
Idem, III, 548.

49
50

Ora, a determinação afetiva da certeza metafísica atinge todo o campo do pensar


cogitativo em ato, sendo responsável pela unidade interna da consciência. Cada pensamento e cada
ato da subjetividade é certo enquanto efetuação imanente que se auto-afeta de forma absolutamente
permanente. A unidade da vida do ego é o fundamento dessa recusa de sofrer simplesmente a fuga do
sucessivo, recusa que caracteriza o que há de mais essencial no espírito humano. “O mesmo espírito,
escreve Descartes, emprega-se todo em querer e também todo em sentir, em conceber etc”.132 A
unidade do espírito ou do “eu” é, pois, imanente de forma plena a cada uma das efetuações dos seus
atos, de modo que ele se encontra presente inteiramente em todos eles, a todo momento. Mas como o
espírito pode empregar-se totalmente, ao mesmo tempo, em conceber e sentir? O eu que concebe é, sem
dúvida, o mesmo que sente. Mas qual o princípio dessa unidade ? A consciência de si ?

A unidade imanente da vida egológica não deve ser confundida com a unidade da consciência
porque a primeira fundamenta a segunda. A regra I, das “Regras para a condução do espírito”, afirma
que a luz transcendental da Sapientia universalis "permanece sempre una e sempre a mesma, por mais
diferentes que sejam os objetos aos quais ela se aplica, não recebendo nenhuma mudança desses
objetos, assim como a luz do sol não varia conforme a variedade das coisas que ela ilumina" 133. Aqui
Descartes se refere à unidade da luminosidade que se distribui igualmente, através de todos os atos da
consciência, sobre seus objetos. A unidade da ratio refere-se à unidade de um só horizonte de presença,
de uma só consciência que em sua função unificadora apreende-se a si mesma como unidade
permanente por sob a diversidade do fluxo das vivências. É essa a unidade da apercepção
transcendental ou do “eu penso” que acompanha necessariamente toda representação, segundo Kant.
Tal unidade é requerida pela própria constituição da objetividade do objeto na medida em que implica
a sua representação no espaço e no tempo.

Mas a unidade metafísica originária visada pelo cogito reside da estrutura imanente da vida
egológica, ou melhor, na auto-afecção. Ela não é a unidade do campo da consciência, mas a unidade
que vincula todos os atos cogitativos ao poder subjetivo da vida do ego que os efetua. O mesmo espírito
encontra-se todo em cada um dos seus atos, incluindo-se aqui não apenas as representações da
consciência, mas também os movimentos do corpo, como veremos.

IV - O CORPO ABSOLUTO E A CARNALIDADE DA ALMA

De fato a distinção da alma e do corpo, afirmada principalmente no “Discurso do método”, 134


não é absoluta. A ela vem se contrapor a firmação da unidade de ambos, nas Meditações. “Estou
132
Meditações, VI.
133
Regra II, cit. in: HENRY, M. Généalogie de la psychanalyse, Paris: PUF, 1983, p. 43. Essa luminosidade nos
é também inteiramente dada, ou seja, é dada plenamente, enquanto capacidade de julgar, de tal modo que “não
poderei jamais falhar, quando a usar como é necessário”(Meditações, IV, § 3).
134
“Esse eu, ou seja, a alma, que me faz ser o que sou difere completamente do corpo sendo inclusive mais fácil
de conhecer”(§ IV). Ora, o corpo é conhecido como objeto, através da mediação do mundo, o que não ocorre
com a alma cujo conhecimento é imediato.

50
51

alojado no meu corpo”, afirma Descartes, “não somente como um piloto em seu navio, mas, além disso
lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele
um único todo”135. Evidentemente, resguardando-se a possibilidade de uma incoerência tão grande que
destruiria todo o pensamento de Descartes, há aí uma homonomínia a disfarçar o emprego de dois
conceitos distintos de corpo. O corpo do qual a alma se encontra absolutamente separada é o corpo
objetivo, o corpo na terceira pessoa, de natureza física: partes extra partes. O corpo com o qual ela se
“con-funde”, radicalmente subjetivo, é, para usar uma expressão tomada de Michel Henry, o corpo
“absoluto”, isto é, fenomenológico, do homem.136
A doutrina da separação da alma e do corpo fundamenta-se na separação metafísica que
distingue a res cogitans da res extensa. A essência do corpo, não somente do corpo objetivo do homem,
mas também dos animais e das coisas é a extensão. No interior da extensão o movimento é definido a
partir do deslocamento de um corpo por dois pontos do espaço exteriores entre si. Seja o movimento
de um corpo vivo ou inanimado, de um cavalo ou uma pedra, a essência é objetivamente a mesma, a
saber, a extensão. Assim, a análise cartesiana do corpo em geral é orientada “a priori” pela definição
da materialidade a partir da extensão. O caráter confuso da união da alma e do corpo advém do
confronto dessa essência “a priori” do corpo em geral com a experiência fenomenológica efetiva do
corpo próprio. De um lado é evidente que nossa alma está unida ao nosso corpo, seja lá de que modo, e
que sentimos nossos movimentos e os comandamos. De outro lado é teoricamente impossível que a res
extensa possa intervir, de qualquer forma, no domínio da res cogitans e vice versa, por causa da
ausência de qualquer mediação possível entre distintas regiões ontológicas. O próprio conceito de
causalidade exige a homogeneidade ontológica entre os dois fenômenos por ele vinculados, de modo
que nem a alma nem o corpo poderiam causar nada um no outro.
Mas para que o corpo possa ser comandado pela alma é preciso a união das duas substâncias
porque a relação de causalidade exige a homogeneidade ontológica da causa e do efeito. Ora, um
corpo constituído partes extra partes não pode se unir à alma que não possui nenhuma parte
exterior a si mesma, sendo internamente estruturada como uma unidade egológica absoluta. Do
mesmo modo dificilmente poderíamos compreender como um pensamento puro seria afetado do seu
exterior, o que é necessário admitir, por exemplo, para explicar a origem dos nossos pensamentos
confusos.
Segundo Descartes podemos supor que não temos corpo nenhum e que não há qualquer
mundo e mesmo assim ainda conceber claramente a existência do eu.137 Assim, a suposição teórica da
inexistência do corpo e do mundo objetivamente considerados não torna impossível realizar a
evidência de que eu existo. Por isso essa suposição é legítima de direito, mas não de fato. Dentro dessa
perspectiva a análise só poderia explicar a união de fato entre a alma e o corpo como uma espécie de
contingência, de resto nunca perfeitamente compreensível, a que a natureza humana se encontraria
submetida, fazendo com que alma fosse afetada, exteriormente, pelo corpo. Aqui o idealismo
cartesiano entra em cena identificando pensamento e ser e, a partir daí, como a existência egológica
pode ser pensada sem contradição, mesmo admitindo-se a inexistência de um horizonte objetivo onde
ela se manifestaria, tal suposição é válida.
Mas desde que a definição dos atos cogitativos inclui o sentimento, desde que há um tocar que
se toca em todo ver, imaginar, sentir etc., a afetividade já se encontra incluída interiormente por
Descartes na essência transcendental do próprio cogito, malgrado sua teoria a priori do dualismo das
substâncias. O pensamento que se possui a si mesmo interiormente, sem nenhuma outra mediação, é a
própria essência da corporalidade que não se pode realizar no corpo objetivo, incapaz de aceder a seu
ser próprio senão na distância de si mesmo como objeto, precisamente, de um ver. Em outros termos, se
135
Meditações, VI, § 24.
136
Ver Philosophie et phénoménologie du corps, Paris: PUF, 1965.
137
Cf. Discurso do método, § IV.

51
52

a essência da revelação interior da alma a si mesma e de todos os atos da consciência é o sentir-si-


mesmo do poder que os efetuam, ou seja, “a auto-afecção”, então a carnalidade pertence
essencialmente à essência do cogito. De fato, a carnalidade, no sentido de revelação imante de si, é a
essência última do sentir.

Mesmo tomado como resultado da busca da experiência subjetiva capaz de satisfazer o desejo
de encontrar uma evidência perfeita no pensamento puro, isto é, no conhecimento intelectual, o cogito
implica a afetividade. De fato, o problema essencial da doutrina ontológica é, na verdade, existencial.
Há em Descartes a tentativa teórica de fundamentar a alienação existencial - através da qual nosso
comportamento se distancia da verdade e do bem, incutindo-se no erro e no pecado - numa teoria
ontológica da supremacia e da independência da alma em relação ao corpo. A autonomia ontológica da
alma em relação ao corpo é o fundamento da superioridade, por exemplo, do conhecimento racional.
Assim, as almas “mais fortes” resistem às paixões apoiando-se no “conhecimento da verdade”, nos
“juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal”, a fim de bem conduzir as ações
da sua vida.138 Vê-se então que a purificação do pensamento no conhecimento intelectual só importa na
medida em que, através dele, libertamos a alma da “escravidão” e da “infelicidade”, não havendo,
portanto, desvalorização absoluta da afetividade interpretada como ingerência indevida do corpo na
alma, porque a alma não pode ser feliz ou infeliz senão na medida em que age, bem ou mal, e é o
corpo próprio quem, afinal, age. Ora a ação da alma sobre o corpo é incompreensível fora da
afetividade. O corpo não pode unir-se à alma sem que seus movimentos se afetem interiormente
através dela porque só ela possui interioridade. Se Descartes nega que a coisa pensante “tenha
necessidade de outro objeto além de si mesma para exercer sua ação”139, isto não significa afirmar a
possibilidade de que exista ação da alma como tal, o que seria um contra-senso, na medida em que o
movimento implica o deslocamento espacial e, assim, a materialidade. Se o puro pensamento pudesse
efetivamente agir não haveria nenhum problema da união da alma e do corpo. Na verdade se alma
pode agir imediatamente sobre o corpo é somente porque a corporalidade é, de alguma maneira,
vivência interior. A experiência que fundamenta a doutrina da terceira substância, ou seja, da união do
corpo e da alma, é a experiência de viver um corpo que é meu e, mais do que isso, que eu sou,
mesmo que possa, idealmente, conceber a mim mesmo sem nenhuma extensão.

Quando Descartes responde a Gassendi que desejava excluir da essência da vida egológica
“toda espécie de corpo”, e não somente o “corpo grosseiro e palpável”, o faz num contexto teórico em
que o importante consistia em mostrar que o corpo “sutil e tênue”140 que Gassendi pretendia atribuir à
alma, era, na verdade, por mais “sutil” que fosse, ontologicamente homogêneo ao corpo objetivo, pois
nenhuma sutileza poderia fazer com que o corpo perdesse sua extensão. Na verdade a essência da
corporalidade está unida interiormente à alma, não à extensão do corpo objetivo. O eu não
dispõe de nenhum distanciamento que pudesse diferencia-lo realmente do corpo e o movimento
subjetivamente apreendido não se revela mais aqui a partir do deslocamento espacial entre dois
pontos exteriores entre si. A revelação que manifesta a unidade imediata da alma e do corpo é o
sentimento de agir, ou, na linguagem de Descartes, o “pensamento” de agir. É assim que esse corpo
absoluto não tem necessidade de nenhum órgão para tocar-se a si mesmo interiormente pois sua
carnalidade em nada difere do modo como a alma se auto-afeta no cogito. A essa possibilidade de
apreensão imanente de si do corpo absoluto Descartes denomina “pensamento de ver e de tocar” 141 no

138
Cf. Tratado das paixões, § 49.
139
Objeções e respostas, III, § 559.
140
Idem, III, § 548.
141
Idem, § 515.

52
53

mesmo sentido em que afirma haver um “conhecimento interior” do movimento do meu corpo,
conhecimento que é, precisamente, um “pensamento”.142

Como devemos pois compreender enfim a natureza dessa união da alma e do corpo?

Descartes nos diz que “o espírito todo está unido ao corpo todo”.143 De fato nada do corpo
vivido encontra-se “subtraído a meu espírito”. Assim, a unidade do espírito, ou seja, da vida egológica,
é tão estreita que o espírito não pode tomar nenhum distanciamento de si que lhe permitisse estar mais
ou menos em qualquer dos momentos da efetuação da sua existência. Se o espírito está unido ao corpo
então é todo o espírito que se mistura. Mas “o espírito está unido a todo corpo sem ser extenso por todo
o corpo”,144 claro está, porque a vida egológica não habita o corpo à maneira de uma casa, e sim de
acordo com o modo como um poder efetivo de movimento se encontra ontologicamente unido a
todas as suas condições de possibilidade.

Por esse caminho, se “a alma está verdadeiramente unida ao corpo todo”, então o próprio
corpo subjetivo deve ser “uno e de alguma forma indivisível”.145 Guéroult, em seu clássico estudo sobre
Descartes, cita uma carta do filósofo à Mesland onde aquele afirma que “nosso corpo, enquanto
humano, permanece sempre o mesmo número durante o tempo em que está unido à mesma alma. E
inclusive nesse sentido é indivisível”146. Com isso não se afirma apenas a indivisibilidade do corpo
subjetivo e, portanto, o caráter inextenso da sua natureza, mas também - o que é infinitamente mais
importante - que ipseidade do eu, ou da alma, constitui a unidade interior do corpo, e que a unidade da
alma e do corpo é, ao mesmo tempo, a unidade interior do corpo próprio.

Sem dúvida, “a importância histórica do dualismo cartesiano consistiu em ter aberto um


horizonte no interior do qual as soluções do problema da relação entre a alma e o corpo iriam se
multiplicar pelo simples fato de terem se tornado impossíveis”147. Por isso a análise fenomenológica do
problema deverá proceder “fazendo surgir a evidência absoluta do fato” - a saber, do fato da união da
alma e do corpo - abandonando “o elemento hipotético” e “teórico”- a sua separação - como se
abandona um simples “absurdo”148. Mas essa correção fenomenológica do dualismo não seria já
demandada pela doutrina no instante em que nos convida a cessar de filosofar para viver e
experimentar a união?149 Porque esta exigência não significa a necessidade de abandonar senão a
filosofia da representação, da objetividade, numa palavra, da transcendência da consciência a fim de
perscrutar os mistérios da imanência da vida egológica que, na afetividade da sua essência, constitui a
carnalidade da nossa alma.

142
Idem, I, § 504.
143
Meditações, VI.
144
Objeções, V, § 550.
145
Tratado das paixões, § 30.
146
Carta a Mesland, cit. in Guéroult, M. Descartes selon l’ordre des raisons, 2 vol., Paris: Gallimard, 1968, II, p.
181. Grifado por mim.
147
Phénoménologie et philosophie du corps, op. cit., p. 210.
148
Idem, p. 192.
149
Carta à Élisabeth, 28 junho de 1643.

53
54

V - Adendo: A vontade, o entendimento, o erro

É dessa forma que se poderia conferir um sentido ontológico, ainda que derivado de um
sentido epistemológico, para a vontade, e ao mesmo tempo, oposto ao sentido prático, como ocorre,
segundo um comentador, por exemplo, em Descartes. A vontade cartesiana compreenderia, dessa
forma, segundo Daudin, ao mesmo tempo que a noção de um poder de"en même temps que la notion
d'un pouvoir de régler le jugement sur les lumières (naturelle ou surnaturelles) de l'entendement, celle
de pouvoir diriger(bien ou mal) les opérations de la pensée (y compris l'entendement) en vue d'un
certain but qui peut être, par exemple, chez Descartes lui-même, l'acquisition d'une connaissance
vraie".(DAUDIN, H. La liberté de la volonté. Paris: PUF, 1950, p. 114). Enquanto poder de reenviar o
juízo ao horizonte de visibilidade do seu objeto, a vontade tem um alcançe ontológico pois é, para o
espírito humano, a representação do princípio que constrange o conhecimento a se acercar da
manifestação para obter a determinação do ente visado por ele em sua realidade mesma. Enquanto
vontade de obter para o objeto do juízo sempre mais luminosidade e de não parar até que estejamos
crentes de te-la obtido, ela é, neste sentido, uma vontade hiperbolicamente crescente de certeza, e
assim, racional. No segundo caso, parece designar o interesse particular do filósofo. Mas se este último
onsiste na obtenção de um conhecimento verdadeiro, ele pressupõe, como todo interesse
transcendental, a possibilidade da sua realização, e a realização do conhecimento verdadeiro depende
da obra primitiva da vontade que regra o julgamento sobre as luzes. A vontade cartesiana da verdade é
uma vontade filosófica, ou seja, ela conduz a verdade do seu objeto ao seu fundamento, e, no caso, o
objeto é a própria essência da verdade.

O primado do conhecimento não exclui o fato fundamenteal de que não há efetiva


racionalidade do sujeito sem adesão à verdade do juízo.

54
55

BIBLIOGRAFIA

DESCARTES, R. Oeuvres de Descartes, Adam-Tannery, Paris: Vrin-CNRS, 1974.


RODIS-LEWIS, G. Descartes e o racionalismo, trad. Jorge de Oliveira Baptista, Porto:
Rés, 1979
GRIMALDI, N. & MARION, J.-L. (Org.). Le Discours et sa méthode. Paris: PUF, 1987.
HENRY, M. Philosophie et phénoménologie du corps, Paris: PUF, 1965.
.________. Généalogie de la psychanalyse, Paris: PUF, 1987.
.________. L’essence de la manifestatiton, Paris: PUF, 1974.
Husserl, E. Idées directrices pour une phénoménologie, trad. Paul Ricouer, Paris: PUF,
1968
ALQUIÉ, F. La Découverte métaphysique d'homme chez Descartes, Paris, l950.
BEYSADE, J. M. La Philosophie première de Descartes, Paris: Vrin, 1971.
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la Perception, Paris: Gallimard, 1945.
DERRIDA, J. Cogito et histoire de la folie, in L'écriture et la différence. Paris: Seuil,
1967.
HUSSERL, E. Logique Formale et logique transcendentale. Trad. Suzanne Bachelard.
Paris: PUF, 1965
GUÉROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons, 2 vol., Paris: Gallimard, 1968.
NANCY, J.-L. Ego Sum, Paris: Vrin, l979.

55

Você também pode gostar