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12 Revista Anhanguera Goiânia v.16, n. 1, jan/dez. p.

12-22, 2015

Entre mitos e heróis:


as celebridades e o assistencialismo

Rhayssa Fernandes Mendonça1 e Claudomilson Fernandes Braga2

Resumo

O artigo tem como tema as celebridades que realizam práticas assistencialistas. O objetivo é
refletir sobre celebridades e o assistencialismo. Por isso, apresenta como ocorre a construção dos
mitos e heróis e como estas perspectivas auxiliam a pensar a construção das celebridades. Como
metodologia, foi utilizada a revisão bibliográfica. O entendimento é que a prática assistencialista,
feita por celebridades pode oferecer parâmetros para as construções sociais desiguais e legitimar a
ilusão de que a mídia é um espaço para solucionar problemas.

Palavras-chave: Celebridades. Mídia. Imaginário. Práticas assisstencialistas.

Between myths and heroes:


the Celebrities and welfare practices

Abstract

The article is about the celebrities who make welfare practices. The purpose is to reflect about
celebrities and assistncialism. We present are formed as the myths and heroes and how these
perspectives help to think about the formation of celebrities. The methodology we used the literature
review . In our view , the welfare practice done by celebrities can offer parameter for unequal social
structures and legitimizing the illusion that the media is a space to solve problems.

Key words: Celebrities. Media. Imaginary. Welfare Practices. Welfarism.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da Universidade Federal de Goiás
(UFG).
2
Orientador do trabalho. Pós-Doutor em Psicologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do Curso de Comunicação Social
- Relações Públicas da Faculdade de Informação e Comunicação da UFG, email: milsonprof@gmail.com
Entre mitos e heróis 13
Introdução dibilidade. Os meios constituem-se a partir de
processos que envolvem os avanços tecnológicos,
O artigo tem como objetivo refletir que reforçam as características técnicas e permi-
sobre a construção das celebridades e o tem seu aprimoramento, possibilitando uma in-
assistencialismo. A compreensão que embasa tensa construção que permeia o tecido social.
o texto perpassa o entendimento sobre como A mídia detém atenção do público quando
os mitos e heróis são construídos na sociedade aborda algum assunto sobre célebres, bem como,
contemporânea, bem como, as noções sobre Gabler (1999) aponta que há um movimento
o imaginário e os meios de comunicação. cíclico em que a mídia precisa das celebridades,
Entende-se que as celebridades são pessoas que e as cria conforme a sua necessidade. Elas
possuem reconhecimento, em grande parte, são utilizadas em campanhas publicitárias,
regalado pelos meios de comunicação. Em geral, notícias, programas de televisão dentre outros
apresentam características idealizáveis e ocupam produtos e conteúdos. Com isso, diversos
um patamar que pressupõe ser privilegiado. fenômenos rodeiam a construção e a ascensão
Comumente delineiam padrões de beleza, das celebridades, que acabam participando da
constroem um status social e ocupam boa parte vida social das pessoas. Estas perspectivas são
dos conteúdos midiáticos. Tendo em vista estas o alicerce em que as celebridades constroem
constatações iniciais sobre como posicionam- sua imagem. Dentre os diversos conteúdos,
se socialmente, este artigo reflete sobre o papel os célebres acabam por atuar em ações de
das celebridades enquanto percussoras de assistencialismo às quais associam sua imagem.
padrões que perpassam a sociedade e acabam Diariamente, é possível ver celebridades como
construindo padrões sociais. porta-voz, programas de televisão e rádio,
Entende-se que os célebres constroem fazendo doações de diversos tipos de bens de
um imaginário que entretém as pessoas, consumo (carros, casas, alimentos, roupas,
possibilitando uma série de construções. O viagens), com objetivo de ajudar as pessoas em
conceito de imaginário em Mafesoli (2001), situações sociais difíceis.
refere-se ao estado de espírito de grupos, No intuito de compreender a construção
nações, comunidades. É o que estabelece dos mitos e heróis, bem como a forma pela qual
vínculos e produz um cimento social. Em nossa estas perspectivas auxiliam a pensar a constru-
compreensão, é este imaginário que produz e ção das celebridades e assistencialismo, o artigo
projeta a celebridade perante a sociedade, tendo fez uso de uma revisão bibliográfica, que con-
como propulsor os meios de comunicação. forme Quivy e Campenhoudt (1992), dá ênfase
São os meios de comunicação que pos- na leitura daquilo que já foi escrito em relação
suem um caráter mediador das relações sociais à determinado assunto, sem gerar dependência
que emerge nas interpretações e no grau de apro- do pesquisador, mas dando base e construindo
priação dos seus conteúdos. É importante com- um conhecimento topológico sobre o assunto.
preender que a presença nestes meios configura O artigo está dividido em duas partes, que
uma situação de poder, em parte possibilitado traçam um caminho para pensar a construção
pela visibilidade, o alcance midiático e sua cre- das celebridades e o assistencialismo na mídia.
14 Rhayssa Fernandes Mendonça e Claudomilson Fernandes Braga

Na primeira, aborda a construção da celebri- gotáveis dos cosmos penetram nas manifesta-
dade, perpassando pelas construções míticas e ções culturais humanas. Para Campbell (2007),
heroicas, elementos primordiais para entender
como as celebridades são construídas. Em se- As religiões, filosofias, artes, formas
guida, aborda essas celebridades enquanto exe- sociais do homem primitivo e histórico,
descobertas fundamentais da ciência e
cutoras de práticas assistencialistas. Com isso,
da tecnologia e os próprios sonhos que
pretende-se discutir como essas práticas se es- nos povoam o sono surgem do círculo
truturam e como, possivelmente, se refletem na básico e mágico do mito (CAMPBELL,
sociedade e almejam a construção de uma ima- 2007, p. 15).
gem heroica aos célebres.
O mito é eficaz em tocar e inspirar pro-
Compreendendo Mitos e Heróis fundos centros criativos, os símbolos da mitolo-
gia não são fabricados e sim produções espon-
As celebridades são um fenômeno con- tâneas da psique e cada um deles traz em si o
temporâneo, apesar disto, figuras admiráveis e poder criador de sua fonte (CAMPBELL, 2007).
divinização há muito circulam no cenário coti- Os mitos se prestam a um papel eficiente, pois
diano. A idolatria e o culto são fatores anterio- servem como uma referência com a qual as pes-
res à ascensão da mídia e até mesmo anteriores soas podem se identificar e se embasar, para de-
a existência do homo sapiens. Legros (2007) finir uma ação ou pensamento no plano de suas
afirma que a história não se ordena pela racio- relações sociais. É capaz de alcançar as pessoas
nalidade, logo, ela não é real, mas construída a e edificar explicações, devido ao seu poder de
partir de sentidos imaginários. Com isso, com- significação. A representação mítica varia de
preende-se que muitas representações têm a acordo com a sociedade, mas possui uma fun-
capacidade de causar reações e percepções, em ção similar, que consiste em habitar o imagi-
sentido prático e imaginário, tornando-se im- nário e prestar explicações sobre determinadas
prescindíveis ao entendimento das sociedades. situações, algo que se reflete nas práticas sociais.
Desde os povos pré-históricos, figuras ha- Rocha (1996) afirma que os mitos tocam,
bitam o imaginário sendo capazes de prestar ex- inspiram e o espaço que possuem no imaginário
plicações sobre os fenômenos que auxiliaram na social, foi ocasionado por sua narrativa especial
evolução da sociedade. A construção tem pauta que esconde algo. Não detém uma fala verdadei-
em sua circulação, até a efetivação. Quando che- ra, mas repercute entre as pessoas, ou seja, o que
garam até o homo sapiens, tiveram o papel de procura dizer não é explícito de forma literal e
auxiliar nas construções sociais. As formas de objetivo. “O mito fala enviesado, fala bonito, fala
expressão míticas fazem parte do cotidiano so- poético. Fala sério sem ser direto e óbvio” (RO-
cial, para Campbell (2007), os mitos florescem CHA, p. 4, 1996).
em todas as épocas, sob todas as circunstâncias As narrativas míticas utilizam de aspectos
e são a inspiração da vida para as atividades do de quem garante assimilação e identificação, algo
corpo e da mente. Em sua concepção, o mito é que constitui um sentimento de empatia, resul-
uma abertura secreta pela qual as energias ines- tando em um processo no qual o mito passa a sig-
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nificar esperança e/ou exemplo para as pessoas. não em figurações da vida real, mas em
Diante disto, o pensamento social pode ser fun- figurações oníricas. A questão é que, an-
damentado em perspectivas míticas, ao mesmo tes de ela poder ser feita na terra, uma
outra coisa, mais importante e essencial,
tempo em que se reflete em ações práticas.
teve de passar pelo labirinto que todos
Embora possa servir como guia e atuar conhecemos e visitar nossos sonhos.
no imaginário, os mitos provavelmente não Por vezes a passagem do herói mitoló-
possuem uma efetividade em relação ao que é gico pode ser por cima da terra, uma
material. Levi Strauss (1978), aponta que, por outra coisa, mais importante e essencial,
sua característica surreal, o mito fracassa em dar teve de passar pelo labirinto que todos
ao homem mais poder material sobre o meio, conhecemos e visitar nossos sonhos
(CAMPBELL, 2007, p. 35).
mas dá a ilusão de que ele pode entender e que
ele entende o universo. Na visão do autor, a
Na concepção da aventura mitológica
mitologia é importante por conta da existência
heróica, há uma representação do processo de
de deidades e personagens sobrenaturais que
conquista coletiva, em que o herói age em prol
possuem o papel de intermediários entre os
de uma sociedade e não vive uma perspectiva
poderes de cima e a humanidade.
egocêntrica. Sua glória é benéfica não só a si, mas
Com isso, compreende-se que os mitos têm
a seu povo e àqueles que ele representa e passam
uma assimilação maior com aspectos que habitam
a tê-lo como uma esperança e inspiração. O
espaços relacionados à psique humana, do que
herói não vive apenas para si, mas age em uma
necessariamente com acontecimentos práticos e
perspectiva coletiva, afirma Campbell (2007)
reais, muito embora também possam influenciar
em acontecimentos práticos, pois são guias sociais Um herói vindo do mundo cotidiano se
que oferecem possibilidades, ainda que ilusórias, aventura numa região de prodígios so-
não deixam de significar socialmente. brenaturais; ali encontra fabulosas for-
Dentro das construções míticas está a ças e obtém uma vitória decisiva; o herói
retorna de sua misteriosa aventura com
figura do herói. Para Campbell (2007), o herói é
o poder de trazer benefícios aos seus se-
aquele que viveu limitações históricas pessoais e
melhantes (CAMPBELL, 2007, p. 18).
locais, alcançando formas naturalmente válidas
e humanas. O papel da mitologia é semelhante ao
As dificuldades que envolvem o enredo
dos contos de fada, com uma função de revelar
e as tramas das tarefas do herói são capazes de
os perigos específicos do sombrio caminho que
causar efeitos, pois as pessoas se relacionam
existe entre a tragédia e a comédia. Campbell
com estas histórias de forma intrapessoal e
(2007) relata que
podem apropriar-se delas. As celebridades po-
dem ser pensadas como figuras que adquirem
Por conseguinte, os incidentes são fan-
tásticos e “irreais”: representam triunfos
características míticas e, em alguns casos, he-
de natureza psicológica e não natureza roicas. As construções midiáticas moldam os
física. Mesmo quando a lenda se refe- célebres e agregam a suas imagens atributos
re a uma personagem histórica real, as semelhantes às concepções míticas e podem
realidades da vitória são representadas construir socialmente uma satisfação de ne-
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cessidades ou até mesmo instigar o surgimento do cinema retomou (a seu modo) a história dos
destas necessidades. deuses e estas estrelas-deuses tornaram-se huma-
nas, que mediavam o mundo maravilhoso dos
Celebridades: Figuras que sonhos e a vida quotidiana. As estrelas tornaram-
-se modelos de vida e correspondiam a um apelo
habitam o Imaginário
de salvação individual, concretizando um novo
sistema de relações entre o real e o imaginário
Morin (1989) aponta que as conquistas ele-
(MORIN, 1989).
varam as condições sociais, ocasionando novas
A estrela, na concepção de Morin (1989),
necessidades e formas de lazer e construindo rei- é um híbrido da relação entre os atores e seus
vindicações de viver seus sonhos e sonhar a vida. personagens, algo que se sucede quando a per-
Com isso, as pessoas passaram naturalmente a al- sonagem tira vantagem da estrela, sobrepondo
mejar ao nível afetivo da personalidade burguesa o papel e delineando um plano mítico. Já o mito
e suas necessidades eram moldadas pelo padrão é um conjunto de condutas e situações imaginá-
cultural burguês. As pessoas eram excitadas pe- rias, que podem ter como protagonistas perso-
los meios de comunicação que, por sua vez, eram nagens sobre humanas, heróis ou deuses.
controlados pela burguesia. Com isso, deu-se o Por sua vez, os heróis atuam a meio cami-
aburguesamento do imaginário do cinema e, nho entre os deuses e os mortais, eles ambicionam
consequentemente o aburguesamento da psi- tanto a condição de deuses quanto aspiram a liber-
cologia popular, pois as primeiras assimilações tar os mortais de sua miséria infinita, o herói é o
afetivas foram em relação aos heróis do cinema e mortal que está em processo de divinização. He-
as estrelas cinematográficas que eram o primeiro róis são parentes dos homens e dos deuses e mui-
objeto dessa transformação (MORIN, 1989). to justamente, denominados semideuses. Assim,
A burguesia a que se refere Morin (1989), a estrela é o ator que absorve a parte da essência
concentra a classe social estadunidense res- heroica, divinizada e mítica, dos heróis dos filmes
ponsável pela lógica do mercado capitalista. A e que, de forma recíproca, essa essência com uma
contribuição que lhe é própria. Ao se falar em mito
classe que teve origem na Europa, representava
da estrela, trata-se em primeiro lugar do processo
o comércio e emergiu conforme seu enriqueci-
de divinização dos atores do cinema, fazendo des-
mento, que deu-lhe também poder. Seus valo-
tes, ídolos de multidões (MORIN, 1989).
res eram transpostos para os veículos de mídia,
Tendo como ponto de partida as conside-
com uso das celebridades, por meio de identifi-
rações de Morin (1989) em relação às estrelas
cações afetivas. cinematográficas, é possível entender que as ce-
Desta forma, as pessoas passam a idealizá- lebridades necessitam de algo que lhes confira
-las como detentoras de um status ou um padrão idealização e a torne diferente dos demais. Pela
desejado e admirado. O espetáculo das produ- perspectiva mitológica e heroica, também podem
ções do cinema apresentava um mundo estetiza- ser pensadas pelo viés da admiração, da idealiza-
do, no qual a realidade e a ficção se confundiam ção e da conquista de um lugar de privilegiados.
ao mesmo tempo em que eram introduzidas no Além do mais, há o mistério entre o que é real e
cotidiano de algumas pessoas. Com isso, ocor- o que é construto midiático, em que o imaginário
reu o fenômeno no qual as histórias das estrelas se edifica pelas possibilidades inerentes.
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Gabler (1999) também aponta que o cine- entende-se o papel dos meios de comunicação
ma era um conjunto de experiências oferecidas na construção de um imaginário, que integra e
para as pessoas, em que os filmes passaram a in- os aspectos sociais. Melo (2010) define o ima-
terpenetrar a realidade, era um entretenimento ginário como uma parte da existência social
barato, que oferecia proximidade e a sociedade estruturada em dois suportes: a linguagem e a
adorava o sensacionalismo oferecido. O cinema imagem. Associado à imaginação, às represen-
era popular pela maneira que o público o proces- tações e às ideologias, o imaginário dá vida ao
sava e conseguia replicar a própria consciência simbólico, que, por sua vez, transcende as relações
dos espectadores, fundindo as realidades (vida racionais dos sujeitos e transforma os símbolos em
e cinema), transpondo a linha entre a realida- um sistema de orientação social.
de e a imaginação. Nesta situação, a celebridade Desta forma, a percepção é a de que a
tornou-se a ideia mais difundida, desenvolvida compreensão dos conteúdos midiáticos pode
e poderosa de entretenimento humano. Com o ser realística, mesmo que estes tenham cará-
tempo, ultrapassaram o cinema e maximizaram a ter simbólico, fazendo com que os indivíduos
reação das plateias às sensações. construam suas percepções a partir destes cons-
As celebridades pertenciam a uma classe trutos. Na relação entre os célebres e a socieda-
que funcionava para captar e manter a atenção de, valores veiculados pela mídia perpassam o
pública, independente do que faziam. Tudo se imaginário e causam mudanças que podem ter
curvava diante delas, porque o entretenimento efeitos perceptíveis. Isto significa que muitas
humano interessava mais do que qualquer outro. pessoas se guiam pelos valores midiáticos, que
Celebridades eram produtos de publicidade, se edificam socialmente, nas opiniões que se
eficazes na arte de vender, tendo isto como uma formam, nas práticas de consumo, nos assuntos
forma não só de proeminência e glamour, mas discutidos, dentre outros.
de exaltação e santificação. Ser uma celebridade Tendo em vista as abordagens, pretende-
era e é o estado mais alto que um ser humano se pensar nas celebridades que constroem ações
poderia alcançar (GABLER, 1999). de assistencialismo na mídia por entender que
Para Gabler (1999), conforme o público a prática produz efeitos sociais e pode construir
procurava, a mídia oferecia e à medida que pre- um imaginário sobre forma de acesso aos bens de
cisava, a própria mídia criava mais celebridades. consumo. Logo, a percepção é que nestas ações
Entretanto, a mesma mídia que veicula e projeta encontram-se alguns traços das construções
a celebridade, é a que a destrói, construindo um míticas e heroicas.
filme vida, vivido midiaticamente, que acaba por
penetrar na vida das pessoas e fazer com que elas Celebridades e
construam uma relação profunda com os célebres. Assistencialismo Midiático
Com estas constatações sobre como as
celebridades se difundem, habitam e alimen- Dentre os muitos conteúdos midiáticos
tam o imaginário, entende-se que sua ascensão dos quais as celebridades fazem parte, encon-
e projeção ocorrem por meio de experiências tram-se aqueles que buscam prestar auxílios
e situações midiaticamente veiculadas. Assim, para pessoas. São diversos programas de televi-
18 Rhayssa Fernandes Mendonça e Claudomilson Fernandes Braga

são e rádio e mesmo em jornais impressos, que pessoa crê que o mundo é justo e que as pes-
de alguma forma utilizam seu espaço para dar soas recebem o que merecem receber, ela pode
ênfase aos problemas e carências sociais e ofere- ter uma atitude mais positiva diante das cele-
cem ajudas e soluções. bridades. Como as pessoas estão constante-
Guareschi (2007; 2008) define tais con- mente em contato com a divulgação exaustiva
teúdos e práticas com o conceito de assistencia- da vida das celebridades, passam a incorporar
lismo midiático, que contempla a prática tra- estes elementos novos nas crenças, que são um
dicional de assistencialismo, acrescida de uma sistema de categorias já familiares. Para a auto-
nova forma proporcionada pelos meios de co- ra, o interesse pela vida pessoal das celebrida-
municação. No contexto, as pessoas acabam por des reflete sobre a convivência das pessoas com
atribuir à imagem dos apresentadores ou outra as incoerências das desigualdades sociais.
celebridade envolvida, um caráter heroico. Celebridades possuem elementos que as
A celebridade, neste contexto, pode ser fazem obter destaque e a própria mídia constrói
compreendida como alguém superior e que o discurso que efetiva esta crença na sociedade.
retorna para ajudar àqueles que são desprovidos. A fama e o reconhecimento são como a vitória
O que acontece com as ações de assistencialismo de uma jornada. Além disso, os elementos
é a construção da esperança sem compromisso vinculados à imagem, como beleza, talento,
social. Neste contexto, a celebridade converte-se carisma, também integram o sistema que pode
em um elemento que compõe o aprimoramento levar a crença que tornar-se célebre, é algo
e a evolução de práticas que mantêm padrões inerente a justiça e que este célebre, ao ajudar as
de desigualdade social. Sapadoni (2005) aponta outras pessoas, por meio do assistencialismo é
que no Brasil as celebridades são exemplos de alguém bondoso, que ajuda a sociedade. Sobre
ascensão social, conforme a crença que as pessoas os programas de assistencialismo midiático e as
recebem aquilo que merecem. Em correlação ao celebridades que o compõem, Guareschi (2007)
pensamento de Gabler (1999), entende-se que a aponta que:
celebridade é alguém que triunfa por vencer o
anonimato, graças às suas capacidades pessoais, Na ingenuidade dos telespectadores,
algo que a torna diferente dos demais. Assim, o responsável por toda a ajuda é
o apresentador, já que é ele quem
a celebridade é alguém privilegiado e superior,
apresenta os quadros, vai à casa das
que ao praticar o assistencialismo pode estar pessoas e entrega a elas os benefícios.
se constituindo a imagem do herói. Pela Assim, ele passa a ser visto como
perspectiva de Campbell (2007), a celebridade uma pessoa maravilhosa, altruísta e
seria, então, aquela que venceu adversidades e caridosa, tornando-se um ídolo para
traz benefícios para o próximo. muitos (GUARESCHI, 2007, p.11).
Para Spadoni (2005), a crença na justiça
social faz com que as pessoas tenham atitudes As pessoas podem se imaginar sendo be-
mais positivas em relação às celebridades, pois neficiadas também, convertendo em uma ima-
as crenças são fontes de argumentos para de- gem de inspiração, que consegue tocar emocio-
fendermos as nossas atitudes. Portanto, se uma nalmente. O benfeitor constrói um sentimento
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de empatia, reconhecimento e válido, pois se permitiria o alcance e a elevação social. Essas
alguém em condições semelhantes foi benefi- características não implicam que estes célebres
ciado, outros também podem sonhar com a si- se tornarão mitos ou que são vistos como tal na
tuação. A imagem da celebridade é convertida sociedade, mas permitem observar traços de
em prol da construção de um ser humano bom, construções de imagem da celebridade.
cuja existência é fonte de ajuda, auxílio, espe- Por construir perspectivas ilusórias, o
rança e solução para os problemas. A relação assistencialismo midiático acaba por ser um
que se estabelece entre o célebre e o espectador aspecto que consegue audiência e integra
pode se tornar pessoal e ser calcada na posição a construção de uma imagem boa para as
mítica, por alimentar formas para superar uma celebridades. Entretanto, acaba por permear
situação e por inspirar. negativamente a sociedade. Conforme apontado
Estas ações, embora possam auxiliar de anteriormente, para Levi Strauss (1978), o mito
algum modo as pessoas, acabam por construir fracassa em relação ao poder material, e o mesmo
uma esperança que coloca em segundo plano o acontece com as celebridades assistencialistas.
exercício da cidadania. Isto porque, a esperan- Apesar de bem quistas, elas não detêm o poder
ça e o sonho ofertados pela mídia acabam in- de transformação social, construindo apenas
terpelando o modo de viver das pessoas, e des- a aparência de que os problemas podem ser
viando-as para conteúdos que não possuem um solucionados de forma milagrosa.
compromisso com o acesso aos direitos sociais. Todas estas perspectivas dão-se nos meios
Em suma, os conteúdos de assistencialismo mi- de comunicação, que possuem em sua essência
diático fazem uso da imagem da celebridade a capacidade de construir a realidade, visto que
para construir uma perspectiva que não visa a por muitas vezes, serão a única forma pela qual
sociedade, mas faz uso do sensacionalismo para as pessoas terão contato com fatos, conteúdos
emocionar, tocar e com isso obter audiência. Tal e acontecimentos. Com isso, Guareschi (2001)
prática pode corroborar para a construção de afirma que a mídia constrói a realidade devido
parâmetros sociais errôneos e mantenedores de ao seu poder de dar significações ao cotidiano
uma situação prejudicial. e valor aos acontecimentos. A existência das
Rocha (1996) aponta que o mito possui coisas é dada conforme estas são comunicadas e
uma fala bonita e poética, que é séria, mas nunca veiculadas e isto faz com que o ato de comunicar
óbvia e tem como função dar ilusões aos indiví- agregue sentido aos objetos. “Num mundo todo
duos. Estas características podem ser identifica- permeado de comunicação – um mundo de
das nas celebridades que praticam o assisten- sinais – num mundo todo teleinformatizado, a
cialismo midiático que podem iludir por meio única realidade passa a ser a representação da
da fala que emociona. Para Levi-Strauss (1978), realidade – um mundo simbólico, imaterial”
o mito conecta os humanos com algo superior, (GUARESCHI, 2001, p.14).
com isso, entende-se que as celebridades benfei- Apesar de o ato de agregar valor e signifi-
toras também constroem esta relação, ao conec- cações seja algo positivo para a comunicação, é
tar as pessoas com o acesso de benefícios. Com necessário pensar no caráter que deste ato, visto
isso, tem-se uma relação de intermediação que que nem sempre visam o que é realmente bené-
20 Rhayssa Fernandes Mendonça e Claudomilson Fernandes Braga

fico na sociedade. O assistencialismo midiático Abandona-se a perspectiva de dominação


é uma fórmula repetida e que a cada reformu- da mídia e entende-se que é uma instituição
lação encontra novas formas de entreter, mas que perpassa a sociedade, ocupa um espaço de
revela-se incapaz de se reverter em algo eficaz. respaldo, devido ao seu alcance e visibilidade. A
Com isso, Guareschi, Hartmann e Dias (2008) mídia possui um lugar de fala privilegiado que
apontam que tal forma de assistência acaba por é permeado pela credibilidade que para Braga e
consubstanciar e tornar as condições sociais das Campos (2012), é decorrente da sua veiculação
pessoas mais aceitáveis. de conteúdos simbólicos, que constrói um
Entende-se que a celebridade, neste quesi- discurso reconhecidamente válido.
to, é absolutamente contundente, visto que ela é A existência de uma credibilidade também
quem reforça a justiça social, contribuindo para leva a noção do contrato de comunicação, tal
a cristalização e a conformidade, em relação às como aponta Charadeau (2012), pela ideia de
situações. Resta para as pessoas o sonho e a es- legitimação estabelecida na situação de troca
perança de que o herói e benfeitor, por meio da entre os parceiros.
mídia, possa um dia ajudá-las.
O “contrato de comunicação” une os
Para Guareschi (2008), o assistencialismo
parceiros num tipo de aliança objetiva
midiático pode se assemelhar a uma estratégia que lhes permite coconstruir sentido se
de dominação da elite brasileira, que concede autolegitimando. Se não há possibilida-
pequenos benefícios materiais, principalmente de de reconhecer tal contrato, o ato de
para a população mais carente, para que estas comunicação não estabelece pertinência
pessoas fiquem agradecidas, facilitando a crista- e os parceiros não possuem direito à pa-
lavra (CHARAUDEAU, 2012, p. 6 e 7).
lização de relações assimétricas mais aceitáveis
e legítimas. Tais estratégias de dominação se re-
Para Giglione e Charadeau (1997), o
novam, de acordo com a ascensão de novos gru-
contrato de comunicação faz parte de uma busca
pos sociais, e a importância do assistencialismo
da mídia para atingir seus públicos, por meio da
midiático está ligada à relevância dos meios de
fidelização e para isso os veículos acabam por
comunicação, na legitimação das relações so-
construir e edificar a realidade, que de certa
ciais desiguais.
forma, é imaginária.
Apesar de crer que as interpretações dos
conteúdos oriundos dos meios de comunicação Desta feita, a questão da relação com o
não são iguais e devem ser pensadas desde as alvo torna-se interessante, já que não
instâncias de produção até o modo como são se trata mais de considerar o receptor
recebidas e interpretadas. Thompson (2002) como uma realidade pseudo-objectiva,
aponta que as mensagens das indústrias de exterior à instancia mediática [...],
mas como uma realidade imaginária
mídia são recebidas por pessoas específicas,
interior à própria instância mediática,
em situações sócio-históricas específicas, que
pois é ela que constrói, fazendo um
vêem as mensagens com graus diferenciados e cálculo sobre os universos mentais
dão-lhes sentido subjetivo ao relacioná-las com do alvo em questão (GHIGLIONE;
outros aspectos de suas vidas. CHARADEAU, 1997, p.13).
Entre mitos e heróis 21
O cálculo sobre os universos mentais pessoas fazem uso de figuras para orientar-se
pode concernir com as necessidades que os nas situações cotidianas. A compreensão é a de
públicos têm e que buscam realizar através da que esses valores foram e são ressignificados
mídia. Esses elementos, enquanto construto fi- nas celebridades, como figuras que tiveram sua
delizador, serão fundamentais na efetivação de ascensão no cinema, com a finalidade de entreter,
um contrato, caso embasem-se em necessidades mas ganharam espaço por sua capacidade de
que as pessoas desejam solucionar. Aqui é pos- entreter e disseminar reações.
sível entender que se o assistencialismo midiá- Celebridades são ícones de beleza e
tico possui espaço é em decorrência das ques- moda, são exemplos de vida e superação que
tões que o transformam em algo necessário que preenchem os espaços da mídia. Com isso,
pode socorrer e auxiliar. habitam de forma contundente o imaginário
Heal (2002) aponta que ao contrário dos e retornam seus valores para as perspectivas
heróis que vivem para redimir a sociedade, as cotidianas. Entre as várias formas em que
celebridades vivem somente para si. Com isso, ganham espaço e exploram, elas adentram
temos que as práticas assistencialistas seguem as ações de assistencialismo e ocupam lugar
um fluxo que pode atribuir vantagens ao célebre, primordial nestas, por ser a porta-voz, o rosto
mas prejudica a sociedade, confirmando a que aparece, aquele que apresenta e tem como
perspectiva do autor. papel emocionar o público.
Assim, finda-se como uma estratégia que Este posicionamento assistencialista pode
constrói a imagem de celebridades enquanto converter a imagem da celebridade como uma
heróis e benfeitores angariam respaldo à elas, pessoa que é superior aos demais e é benfeito-
dá audiência aos meios de comunicação e acaba ra, sendo uma forma de acesso da sociedade a
auxiliando na perpetuação de práticas que determinados bens de consumo. No contexto
reforçam as desigualdades sociais. Para isso, social do Brasil, a efervescência destas situações
utiliza de forma veemente do entretenimento e corrobora para a concretização de desigualdades
da celebridade como sua força pujante. e certo conformismo em relação às situações so-
ciais. Longe de desconsiderar os evidentes avan-
Considerações Finais ços do país, entende-se que é necessário pensar
sobre as formas de construção de estratégias que
O assistencialismo midiático é uma forma prejudicam as percepções sociais.
de entretenimento que tem como suporte as A aceitação de ações assistencialistas das
celebridades. Para trabalhar essa noção, o artigo celebridades ajuda a pensar sobre os problemas
buscou pensar, primeiramente, o modo como de acesso aos bens de consumo, bem como o
os mitos e heróis perpassam as construções acesso aos direitos sociais básicos, que deveriam
humanas, por entender que esta compreensão ser garantidos pelo Estado. Esta abertura pode
leva ao entendimento do fenômeno das ocasionar a apropriação por parte de figuras
celebridades na sociedade contemporânea. Os elencadas pela mídia deste papel de garantia. O
valores encontrados em mitos e heróis permitem que deve ser pensado e questionado é a validade
pensar nas discussões sobre o modo como as de tais ações, pois o construto pode estar
22 Rhayssa Fernandes Mendonça e Claudomilson Fernandes Braga

assimilando-se a uma construção de fantasias estratégia de legitimação social, Intexto, Porto


e a sustentação de ilusões que dificilmente se Alegre: UFRGS, v. 1, n. 16, p. 1-18, jan/jun, 2008.
realizarão. Assim, a noção do herói mítico pode
CHARAUDEAU, P.; GHIGLIONE, R.. A
ser entendida como uma estratégia de construção
Palavra Confiscada.Um gênero televisivo: o
de imagem, que possibilita uma série de efeitos
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sociais, que devem ser objeto de reflexão.
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