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Sobre gênero e preconceitos: Estudos em análise crítica do discurso.

ST 02
Luciana Patrícia Zucco
UFRJ
Palavras-chave: Discursos – gênero - revistas femininas

Como vender uma mulher? Uma análise dos discursos sobre gênero nas revistas femininas

A discussão de gênero aponta para a necessidade de se apreender como as representações do


feminino são veiculadas pela mass média. Nesse sentido, recortou-se como objeto de estudo os
discursos sobre gênero a partir das capas de revistas femininas. Como pressuposto tem-se que os
discursos das chamadas das matérias nas capas reproduzem a assimetria social das relações de gênero,
assim como contribuem com as mudanças de posição ocupada pelas mulheres na sociedade.
Tal proposição decorre da compreensão de que as práticas discursivas veiculam noções
presentes na sociedade, reproduzindo, por exemplo, crenças, valores e identidades sociais, ao mesmo
tempo em que retratam alterações históricas, contribuindo para a transformação nas relações sociais. O
pensamento de Bakhtin (2004) é revelador do ininterrupto movimento de construção dos discursos, ao
apresentar que a língua é a expressão das relações e lutas sociais, onde as palavras assumem a
propriedade de signos ideológicos e de indicadores das transformações sociais. A palavra é capaz de
registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais (Bakhtin, 2004: 41).
Para o autor, o discurso é o espaço onde língua e ideologia convergem e onde pode-se compreender
como a língua produz sentidos para as pessoas.
Os discursos são aqui definidos segundo o pensamento de Fairclough (2001), que os qualifica
como práticas sociais e não como atividades meramente individuais ou reflexos de variáveis
situacionais. Como toda ação, os discursos são uma maneira das pessoas atuarem sobre o mundo e,
igualmente, sobre os outros, além de serem uma forma de representação, ou seja, de significação do
mundo, instituindo e construindo o mundo através de significados.
Logo, de acordo com essa leitura, a linguagem ganha centralidade como prática social, sendo
esta ordenada e integrada à vida cotidiana. Ela organiza a vida em sociedade e é responsável por
oferecer sentido ao mais simples movimento do cotidiano, permitindo que as pessoas compartilhem de
significados comuns sobre a realidade. A linguagem é, então, um instrumento de socialização, que
transmite valores e conhecimento através da comunicação. No caso desse estudo, a linguagem
demonstra a fronteira de interação entre mulher e sociedade, dando visibilidade aos universos cultural,
social e político em que surgem determinados discursos.
Como todo produto gerado pela cultura de massa, as revistas são formuladoras de mensagens e
símbolos instituidores de socialidade. Isso implica dizer que elas tanto perpetuam e reinterpretam
representações como geram outras, através da criação de necessidades e sentidos que passam a figurar
na vida cotidianas das mulheres, contribuindo para sua interação social. Devido às suas características,
as revistas femininas são, por conseguinte, espaços privilegiados de análise dos sistemas sociais de
gênero, especificamente, do lugar atribuído às mulheres na sociedade e da noção de práticas por elas
desenvolvidas nas relações sociais. Este tipo de publicação não somente esboça uma identidade
feminina, como a reafirma na condição de uma natureza.
Diferentes pesquisas (Bassanezi, 2001; Caldas-Coulthard, 2005; Friedan, 1971; Gauntlett, 2002;
Sarti e Moraes, 1980), realizadas em diferentes décadas, países e segundo diferentes recortes teóricos,
confirmam um movimento contraditório sobre a visão da mulher veiculada pelas revistas. Pode-se
identificar nas análises a presença de novas visões, imagens e conteúdos sobre o gênero feminino,
como também de manutenção de velhas representações. Ou seja, apesar da aparente modernidade que
envolve a idéia sobre a mulher, as revistas ensinam figuras femininas, jovens, belas e heterossexuais a
seduzir. Portanto, dispõem às leitoras um manual a ser seguido, além de manterem as mulheres na
condição de objeto, a ser observado, avaliado, produzido, informado, desejado e vendido.
Materiais e Métodos: conhecendo o caminho
O método de análise de discurso utilizado foi o proposto por Fairclough (2001), que adota uma
perspectiva tridimensional, considerando evento discursivo, concomitantemente, um texto, um exemplo
de prática discursiva e um exemplo de prática social.
O corpus da pesquisa compreendeu cinco capas da revista Claudia (Editora Abril, R$ 8,60) e
cinco capas da revista Mulher (Editora Alto Astral, R$ 4,90); ambas mensais e referentes ao ano de
2005. As capas foram tratadas como objeto de análise porque atuam como grandes letreiros de
divulgação do que a leitora encontrará no corpo do texto; é por intermédio delas que a mulher é atraída
a adquirir a revista. De acordo com Caldas-Coulthard (2005), as manchetes são verdadeiras sínteses,
respondendo às perguntas sobre o que será oferecido à leitora, sendo elas persuasivas e
autopromocionais. O corpus se justifica a partir da argumentação de Orlandi (2001a; 2001b), ao
afirmar que não é intenção da análise de discurso a exaustividade, ou seja, a análise horizontal,
tampouco a completude ou exaustividade em relação ao objeto empírico, pois ele é inesgotável. A
exaustividade esperada é a vertical, por possibilitar a análise em profundidade e por trazer
conseqüências teóricas relevantes, uma vez que não trata os dados como meras ilustrações.
A escolha de ‘Claudia’ ocorreu por sua longa permanência no mercado e por ter sido pioneira
no âmbito da imprensa feminina, ao inaugurar, em 1961, data de sua criação, um novo estilo de editar
moda, beleza, culinária e decoração (Buitoni, 1986). Cláudia trouxe um editorial especializado e propôs
assuntos práticos e da vida cotidiana, que estão carregados de representação sobre o feminino. Sua
tiragem é de 471.700 exemplares e circulação líquida de 374.210 exemplares. Seu público compreende
mulheres (86%) de classe social B (44%), na faixa etária de 18 a 39 anos (52%)i. É voltada para a
mulher adulta, contemporânea, que gosta de se cuidar e de se sentir bonita e amada. A leitora de
Claudia é definida como consumidora inteligente, que tem consciência da importância de sua atuação
na sociedade, por isso, sente-se menos culpada em não ser somente provedora da educação, da saúde e
do amor familiar.
Diferentemente de ‘Claudia’, a revista ‘Mulher dia-a-dia’ estava no primeiro ano de circulação,
sendo lançada em março de 2005. A tiragem é de 44.340 exemplares e circulação líquida de 13.326
exemplares. Seu público compreende mulheres (79%) de classe social C (42%), na faixa etária de 20 a
29 anos (22%) e 50 anos em diante (19%)ii. Sua atenção está voltada para diversos temas de interesse
da mulher, como moda, beleza, saúde, comportamento, família, bem estar, profissão, entre outros,
atuando como um guia para o universo feminino.
Por ser uma publicação nova no mercado, ‘Mulher dia-a-dia’ faz um contraponto com ‘Claudia’
em vários aspectos, como por exemplo: não possui assinaturas, logo, é encontrada apenas em bancas de
jornais, o que valoriza ainda mais a importância de sua capa; preço inferior. No mercado nacional, não
foi identificada nenhuma outra revista de freqüência mensal, com perfil e preço similares; classe social
diferenciada; menor número de páginas.
Para analisar as práticas discursivas presentes nas capas, observou-se o contexto de sua
produção e ampliou-se a compreensão de discursos a outras formas simbólicas para além da lingüística,
como as imagens visuais (Fairclough, 2001). Foram considerados os textos, as imagens e a articulação
entre ambos, portanto, a capa como um todo. Entretanto, cabe destacar que a análise aqui apresentada
privilegiou a imagem das modelos e os textos a elas referidos.
Em cena: ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’
As capas das revistas ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’ trazem figuras femininas conhecidas
nacionalmente pela profissão que exercem na sociedade, sendo elas, atrizes, modelos e apresentadoras
de televisão. A formação discursiva é semelhante em todas as capas, uma vez que elas apresentam
características subjetivas, fatos pessoais e o próprio discurso direto de suas ‘Olimpianas’. Esse termo,
cunhado por Morin (1997), refere-se a vedetes dos meios de comunicação de massa, que são
personalidades de destaque, transformadas em ideais inimitáveis e modelos imitáveis. A imprensa de
massa, ao mesmo tempo em que investe os olimpianos de um papel mitológico, mergulha em suas vidas
privadas a fim de extrair delas a substância humana que permite a identificação (Morin, 1997:
106-107).
Nesse sentido, apesar do trabalho projetar as ‘Olimpianas’ publicamente, as chamadas das
matérias são, polifonicamente, entrecortadas por aspectos da vida privada, como: maternidade,
casamento, separação, amor, filhos, secundarizando a dimensão profissional. Fairclough (2001)
esclarece que essa é uma prática de alguns meios de comunicação, ou seja, a de manchetes noticiarem
pessoas e eventos públicos em termos privado, muito comum na imprensa sensacionalista. Isso atrai um
segmento de leitores-consumidores e garante, ainda, a sobrevivência do magazine num universo de
concorrência.
As Olimpianas passam a ser o próprio ideal de consumo, pois são produtos da publicidade
transformados em exemplos de beleza, de conduta e de atitudes. Na condição de ‘semideusas’, elas
sustentam o movimento de projeção e de identificação, elementos estes fundamentais para instigar
aspirações e necessidades em ‘leitoras mortais’. Logo, veiculam-se elaborações simbólicas que
funcionam como verdadeiros apelos para a compra de produtos tanto mais sofisticados quanto inúteis.
As capas valorizam o semblante da mulher, enfatizando pele, olhos, sorriso e cabelos, ou seja,
as características da face. Afirma-se, portanto, a hegemonia do rosto feminino, colocando a mulher
tanto na condição de ‘mulher-sujeito’ como de ‘mulher-objeto’, como explica Morin (1997). Para o
autor, se a presença do rosto feminino domina os periódicos, é porque a sociedade tem como modelo
identificador a mulher sedutora e não o objeto a seduzir, no caso, as leitoras de ‘Claudia’ e ‘Mulher
dia-a-dia’. Se na grande imprensa periódica a mulher eclipsa igualmente o homem, é porque ela ainda
é sujeito identificador para as leitoras, enquanto ela aparece como objeto de desejo para os leitores
(Morin, 1997: 144).
O perfil predominante é de mulheres brancas, olhos e cabelos claros, na faixa dos 25 aos 35
anos, heterossexuais, bonitas, sensuais, magras, famosas, contemporâneas, financeiramente
bem-sucedidas e felizes. As chamadas das reportagens em ambas as revistas são produzidas a partir
desse modelo, sendo a miscigenação das raças e etnias, característica da sociedade brasileira, não
explicitada. A diversidade ocorre segundo o padrão ariano, que é o hegemônico nesse tipo de
publicação.
Lypovetsky (2000) discorre sobre as críticas voltadas às revistas femininas, identifica-as como
sendo sexistas, racistas e tirânicas, por elas imporem um padrão de aparência e de sedução às mulheres.
Seu poder de homogeneização suprime as diferenças individuais e étnicas e estabelece (...) a
supremacia dos cânones estéticos ocidentais (Lypovetsky, 2000: 165). As observações realizadas pelo
autor não terminam com a afirmação de que a imprensa feminina é um instrumento de subordinação
das mulheres, pois ressalta que ela é, ainda, uma forma de ‘normalização de massa’.
Chama a atenção para o fato das revistas femininas não serem apenas uma ‘máquina
destruidora’ da alteridade, mas de serem, igualmente, (...) uma obra de valorização da individualidade
e da personalidade (Lypovetsky, 2000: 165). Enfatiza que é preciso dar visibilidade a esta outra
dimensão e reforça que o futuro do conteúdo da imprensa feminina está mais para o pluralismo
estético, atuando como mecanismo de democratização das diferenças.
No entanto, para Del Priori (2000: 87), a atuação dos periódicos é perversa, pois além de todas
as clivagens econômicas e sociais que existem no Brasil, haveria outra: a da estética, baseada em um
padrão de colonização tanto europeu como norte-americano. Na atualidade, segundo a autora, o poder é
exercido pela imprensa feminina, que vende uma representação idealizada do feminino, submetendo-o
a determinados biotipos e configurações familiares e profissionais.
Nas capas analisadas, a concepção de mulher como ‘dona de casa heroína e feliz’ (Friedan,
1971) é (re)significada, ou seja, ela permanece ‘heroína e feliz’, mas a esses são somados outros
discursos que exigem da mulher um excelente desempenho pessoal, visual, familiar e profissional.
Afirma-se, com isso, que há uma padronização nos discursos sobre as figuras femininas de ‘Claudia’ e
‘Mulher dia-a-dia’. Entretanto, na veiculação das imagens e manchetes é que se identificam diferenças
na imposição desse modelo.
Nota-se na prática discursiva de ‘Mulher dia-a-dia’ a combinação de características oriundas
tanto de um discurso pedagógico como de um discurso de cumplicidade (Verón, 1978a). No primeiro,
são comuns o conselho e a quantificação. Logo, o magazine aconselha, informa, propõe e previne,
ocupando a posição de quem sabe e ensina, colocando a leitora no lugar de quem não sabe, como
destinatária receptiva e, de alguma forma, passiva. O discurso de cumplicidade constitui uma
enunciação atribuída tanto à revista como à leitora. A esta é concedida à possibilidade de se expressar e
à revista a posição de informante, conselheira e comentadora. Figura na relação de cumplicidade a
utilização sistemática de fórmulas no imperativo por parte do enunciador. Nessa modalidade, há o
reconhecimento de que a leitora tem algo a dizer e de que há um movimento de identificação entre ela e
a revista. Embora existam momentos que suscitam uma aproximação, observa-se a permanência de um
traço hierárquico entre revista e leitora nos eventos discursivos.
Enquanto ‘Mulher dia-a-dia’ é direta e objetiva nos enunciados, ‘Claudia’ exercita a sutileza. A
princípio, ‘Claudia’ demonstra uma simetria na interlocução com a leitora. Contudo, de forma
implícita, apresenta traços de ambos os discursos. Sua posição é a de oferecer informações,
esclarecimentos, serviços e entretenimento à leitora e de dar sugestões, porém, sem impor suas idéias.
Anuncia a discussão de sentimentos, dando visibilidade a dimensões subjetivas; persuadi à leitora de
forma subliminar; cria uma representação de modernidade e de descolamento em seus discursos;
pressupõe uma leitora com acesso a diferentes meios de comunicação e inteirada dos acontecimentos
da realidade, ou seja, é uma mulher que acompanha novelas, vai ao teatro e lê, o que justifica a
presença de “discursos reportados” (Verón, 1978b).
Considerações Finais
As posições assumidas pelas imagens e manchetes presentes nas capas das revistas são
reveladoras da assimetria construída pelo sistema social de sexo e gênero, como também demonstram
um movimento simultâneo tanto de reprodução de relações sexuais naturalizadas pelo senso comum
como de nova produção de tais relações, fruto da incorporação das mudanças sociais. Tais discursos
são realizados no processo das relações sociais e marcados pelo horizonte social de uma época e de um
grupo social determinados (Bakhtin, 2004), sendo, portanto, partes integrantes do contexto
sócio-histórico. Ao mesmo tempo em que são constituídos, constituem a sociedade em várias
dimensões, do sujeito e das formas sociais do ‘eu’ às relações sociais (Faiclough, 2001). As capas
trazem discursos conservadores que revelam e reproduzem relações hierárquicas na sociedade, ainda
que com um discurso inovador, de liberdade e autonomia. Nesses, a mulher é colocada como produto a
ser consumido por homens e mulheres, sendo tais discursos catalizadores de sentidos, produzindo um
tipo próprio de sociabilidade midiática, de estética e de retórica.

Referências
BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.
BASSANEZI, Carla. Virando as páginas, revendo as mulheres. Revistas femininas e relações
homem-mulher 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
BUITONI, Dulcília Schroeder. Imprensa Feminina. São Paulo: Editora Ática, 1986.
CALDAS-COULTHARD, Carmen Rosa. “O picante sabor do proibido: narrativas pessoais e
transgressão”. In: FUNCK, Susana Bornéo e Widholzer, Nara (Orgs). Gênero em discurso da mídia.
Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005.
DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo
feminino no Brasil. São Paulo: Editora SENAC, 2000.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2001.
FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Petrópolis: Vozes, 1971.
GAUNTLETT, David. Media, Gender and Identity: An introduction. New York: Routledge, 2002.
LYPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1997.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001a.
__________. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 2001b.
SARTI, Cynthia e MORAES Maria Quartim. “Aí a porca torce o rabo”. In: BRUSCHINI, Maria
Cristina e ROSEMBERG, Fúlvia (Orgs). Vivência: história, sexualidade e imagens femininas. São
Paulo: Brasiliense, 1980.
VERÓN, Eliseo. “Le Hibou”. Communications, 28. Paris: Seuil, 1978a.
__________. “Sémiosis de l´idéologique e du pouvoir”. Communications, 28. Paris: Seuil, 1978b.

i Informações de abril de 2003, obtidas no site da Editora Abril, http://publiabril.abril.com.br/default.asp?tipo=Revista&qual=44 (70).


ii Informações de junho de 2006, obtidas no site da Eitora Alto Astral; http://www.editoraaltoastral.com.br/site/publicidade/info.php?pub_id=18.

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