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XII Seminário Nacional Sociologia & Política

O Papel Político e Social da Esperança: Debates Contemporâneos num Brasil em Distopia


GT 14 - MOVIMENTOS SOCIAIS E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

O DISCURSO DE EMPODERAMENTO FEMININO NA MÍDIA: UMA


TRANSFORMAÇÃO IMPULSIONADA PELO FEMINISMO NEOLIBERAL

Aélton Alves de Melo Júnior1

1 Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Campina Grande e mestre em Ciências
Sociais pela mesma instituição. E-mail: aeltonjuniormelo@gmail.com
O DISCURSO DE EMPODERAMENTO FEMININO NA MÍDIA: UMA
TRANSFORMAÇÃO IMPULSIONADA PELO FEMINISMO NEOLIBERAL

Resumo:
Identifica-se na segunda metade dos anos de 1990, um movimento discursivo midiático que
impulsionou o desenvolvimento de personagens femininas fortes e guerreiras, isto é, longe do
imaginário comum de “mocinha em perigo”. A série de televisão “Xena, a Princesa
Guerreira” (1995) e o filme de animação da Disney, “Mulan” (1998), por exemplo, trazem
um teor discursivo de empoderamento feminino. Mas o que proporcionou a midiatização
dessa discursividade? Partindo de um olhar sobre o feminismo e o neoliberalismo,
debateremos nessa pesquisa como o feminismo neoliberal colaborou para a irrupção de
discursos sobre força, liberdade e empoderamento feminino em produtos da mídia de massa.
Para tal desafio aciona-se a metodologia de Análise do Discurso francesa, e o arcabouço
teórico da pesquisadora Nancy Fraser como base, para, assim, discutir como discursos
próprios dos movimentos femininas foram cooptados e midiatizados por demandas
capitalistas neoliberais.

Palavras-chave: análise do discurso; mídia de massa; feminismo neoliberal; capitalismo;


neoliberalismo.

Introdução
Basta um olhar crítico e atento para notar que há circulando, atualmente, em alguns
produtos culturais da mídia de massa, uma discursividade sobre força e liberdade feminina,
discursos estes que, também, estão presentes em posicionamentos de marcas e na voz de
celebridades da mídia (atores, cantores, digital influencers, etc.), de tal modo que podemos
julgar, superficialmente, que de alguma forma “ser feminista” se tornou um movimento parte
da “cultura pop”. Mas o que impulsionou essa discursividade em prol do empoderamento
feminino na grande mídia?
Buscando identificar que tipo de feminismo seria esse, discursivizado pela mídia de
massa, partiremos nossa jornada a partir o arcabouço teórico da pesquisadora e feminista
Nancy Fraser (2021; 2017). Ela observa que a política neoliberal – movimento que explodiu
principalmente nos anos de 1990, em meio a expansão da globalização – tem cooptado pautas
feministas, propondo, assim, um feminismo de caráter neoliberal, logo, um tipo de feminismo
que está de braços dados com propostas capitalistas.
Mas, segundo Fraser, essa vertente feminista é digna de questionamentos, pois,
favorece somente uma pequena parcela das mulheres – as “merecedoras”, as “dedicadas”, as
com “talento”, que são muitas vezes mulheres brancas, de classe social bem favorecidas,
heterossexuais e magras etc. Então, questionamos: o quão progressista o movimento feminista
neoliberal realmente é?
Para observar como o discurso de empoderamento feminino na mídia de massa, é
fruto de uma transformação discursiva impulsionada pela política neoliberal – que cooptou
discursos feministas a seu favor –, na segunda parte deste artigo, iremos delimitar o foco de
nosso estudo, debruçando-nos sobre dois produtos da indústria cultural. Ou melhor, com a
metodologia de Análise do Discurso (AD) francesa (FERNANDES, 2013; BRANDÃO, 2006;
COURTINE, 2013;), observaremos como o feminismo neoliberal proporcionou a construção
de representações femininas guerreiras e “empoderadas”, na qual temos como recorte a
protagonista do filme de animação da Disney “Mulan” (1998) e a protagonista da série de TV
“Xena, a princesa guerreira” (1995).
Escolhe-se essas duas obras, pois partimos da identificação de que na segunda
metade dos anos de 1990, há uma significativa crescente de narrativas midiáticas com
mulheres fortes e guerreiras, isto é, longe no imaginário comum de “mocinha em perigo”,
trazendo discursos de empoderamento feminino, e até questionando construções sociais de
gênero.

A Análise do Discurso
Na Análise do Discurso (AD) de vertente francesa, o discurso não é tomado só em
sua materialidade linguística, apesar de precisar desta para existir, mas entende-se que o
discurso é exterior a língua, tem sua existência no social, no histórico e no ideológico. Logo,
podemos afirmar que é no estudo desses pontos que se encontram os vestígios da “origem” de
um dado discurso. Contudo, o discurso não possui uma origem linear ou dada, logo o que se
busca na AD são os processos envolvidos na formação de um discurso.
Na AD, chama-se de “enunciado” a “posição ideológica no ato de enunciar e que
integra a enunciação, lugar sócio-histórico-ideológico de onde os sujeitos dizem e que
marcam o momento e o ato de dizer” (Ibidem, p.19), assim o enunciado “é muito mais que
texto. É um fragmento de história” (COURTINE, 2013, s/p). Com Cleudemar Fernandes
(2013) compreendemos que os discursos e os enunciados estão em constante movimento,
sofrendo transformações, acompanhando as mudanças sociais.
Além disso, os enunciados e seus discursos estão sempre relacionados com outros.
Esse ponto de debate, dialoga com o pensamento foucaultiano de que o discurso deve ser
compreendido como formado por elementos diversos interligados, “um sistema de relação
entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias” (BRANDÃO, 2012, p.32), e que
juntos caracterizam uma “formação discursiva”. Para Foucault (2008) analisar uma
formação discursiva consiste em ler os enunciados que lhe atravessam, pois, o discurso é na
verdade uma grande constelação de enunciados.
Assim, quando nos dedicamos a estudar o discurso de empoderamento feminino na
mídia, compreendemos que sua formação discursiva está, como veremos logo mais, em
detrimento do desenvolvimento do feminismo neoliberal, que foi sendo discursivizado,
através da mídia de massa e incorporado na chamada cultura pop contemporânea.
Outro conceito que está inserido no método de Análise do Discurso, é denominado
por Courtine (2013) de “memória discursiva”. Essa memória não é no sentido de lembranças
do passado, mas são ecos, uma memória coletiva. “Trata-se de acontecimentos exteriores e
anteriores ao texto, e de uma interdiscursividade, refletindo materialidade que intervêm na sua
construção” (FERNANDES, 2013, s/p). Dessa forma, a “memória discursiva” faz circular as
“formações discursivas” anteriores.
Desse modo, compreende-se que a formação discursiva que possibilita a
discursividade sobre força feminina na mídia de massa, está em choque com discursos e
enunciados que contrariam tal discursividade, havendo assim, negociações e trocas
discursivas em um jogo de relações de poder.
Um outro conceito da AD, que precisamos destacar, é o de “acontecimento
discursivo”, que é quando um enunciado surge no lugar de outro, mas sem ocasionar uma
total ruptura do discurso anterior (FERNANDES, 2013), ou seja, são as continuidades ou as
rupturas/descontinuidades discursivas que caracterizam um acontecimento discurso. Por
exemplo, quando uma discursividade é desestabilizada, e irrompe-se uma nova, representa o
nascimento de um acontecimento discursivo.
Desse modo, quando há uma crescente de discursos midiáticos sobre força e
empoderamento feminino, na década de 1990, significa que estava irrompendo-se um
“acontecimento discursivo”. De forma que o novo discurso irrompido, não descontinua
automaticamente o discurso anterior, na verdade podem até interagir ou formar duelos
discursivos, pois o discurso não é algo linear, que segue um padrão, há sempre continuidades
e descontinuidades discursivas “cujas unidades obedecem a regularidades, cujos sentidos são
incompletamente alcançados” (FERNANDES, 2013, p. 41).

Feminismo x neoliberalismo progressista

Segundo Fraser, o neoliberalismo seria, portanto, um projeto econômico


que pode se acoplar com diferentes projetos de reconhecimento, e que de
fato o acoplamento mais bem-sucedido foi com o progressismo liberal,
combinando um programa econômico expropriador – financeirização,
endividamento, precarizações e desregulamentações, enfraquecimentos
dos sindicados e redução dos direitos trabalhistas – com uma política li-
beral meritocrática de reconhecimento – adornada por um discurso de di-
versidade, multiculturalismo e empoderamento. (MARQUES, 2021, p.
18)

Nancy Fraser (2021) vai chamar de “Neoliberalismo Progressista”, a ação de


políticas neoliberais que podem, por exemplo, até favorecer alguma redução da pobreza, mas
não medidas para combater de fato essa desigualdade, isto é, há à cooptação de demandas e
discursos de minorias sociais pela política neoliberal, que as utiliza tais discursos, de modo
inteligente, para avançar com suas manobras políticas. Em outras palavras, é um movimento
que mantém a ordem hegemônica neoliberal, enquanto dialoga superficialmente com
movimentos progressistas, sem abalos, sem reinvindicações, apenas “pequenas doses
homeopáticas” de mudanças.
Fraser (2021), em um contexto estadunidense, observa que essa união de pautas
distintas, se deu entre movimentos sociais, como o feminismo, o multiculturalismo, os
movimentos raciais e os ativismos LGBTQIA+, junto às grandes empresas e instituições
econômicas, como Hollywood, Vale do Silício e Wall Street.
Tal manobra, ela explica, se deu na tentativa de “vender” as ideias neoliberais de
uma forma “mais palatável”, reembalando o neoliberalismo com adornos emancipatórios e
progressistas – para que assim o projeto neoliberal se tornasse um bloco hegemônico. Esse
projeto funcionou? É possível dizer que sim, quando observarmos o modo como um certo tipo
de feminismo, à serviço do neoliberalismo, se tornou popular.
Lembremos que desde suas primeiras ondas, o movimento feminista tem proclamado
pela liberdade feminina e pela igualdade de gênero, e nesse processo questionamentos foram
lançados ao capitalismo, as imposições sociais e ao patriarcado.
No artigo “Como o feminismo se tornou a empregada do capitalismo – e como resga-
tá-lo”2, publicado por Fraser no The Guardian em 2013, a autora escreve como o movimento
feminista da segunda onda, que tinha como uns dos pilares criticar a exploração capitalista e
patriarcal, acabou, cegamente, por contribuir com ideias chaves para legitimar políticas neoli-
berais. Ideais como igualdade e liberdade feminina acabaram sendo utilizados para "novas
formas de desigualdade e exploração" (FRASER, 2017, s/p), num projeto que juntou capita-
lismo e demandas emancipatórias progressistas.

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O artigo foi lido em sua versão traduzida por Bruno Cava em 2017. Disponível em:
https://iela.ufsc.br/noticia/como-o-feminismo-se-tornou-empregada-do-capitalismo-e-como-resgata-lo Acessado
em: 18/07/2021
Tal afirmação da autora é deveras inquietante, pois nos faz questionar: então toda a
luta histórica dos movimentos feministas, serviram apenas de alavanca para novas formas de
opressão social, e/ou, para manutenção do sistema capitalista?
O neoliberalismo progressista faz a aproximação de políticas repressivas e pró-
negócios com políticas progressistas de valorização à diversidade, buscando esse apoio nas
noções de representatividade e igualdade, mas como sinônimos de meritocracia (MARQUES,
2021; MEDEIROS, 2017; ROTTENBERG, 2018). A ideia de meritocracia está intrínseca na
ideia homem empresarial (um dos pilares da ideologia econômica neoliberal), logo junto à
discursos feministas, faz deste um movimento individual, não mais coletivo em prol de todas
as mulheres, mas que é em prol de mulheres “merecedoras”:

O programa neoliberal progressista para uma ordem “mais justa” não visa
abolir a hierarquia social, mas “diversifica-la”, “empoderar” mulheres
“talentosas”, pessoas de cor e minorias sexuais para que chegassem ao
topo. Esse ideal é inerentemente específico a uma classe, voltado para ga-
rantir que indivíduos “merecedores” de “grupos sub-representados” pos-
sam alcançar posições e estar em pé de igualdade com os homens brancos
e heterossexuais de sua própria classe. (FRASER, 2021, p. 42)

Com essa noção a ideia de empoderar mulheres cai como uma luva para a manuten-
ção do capitalismo, incentivando as mulheres a seguirem uma carreira profissional de “suces-
so financeiro. Mas a lógica neoliberal propõe que elas entrem em competição, que cada uma
individualmente busque sua melhoria de vida (ROTTENBERG, 2018), pois o sujeito neolibe-
ral é responsável pelo seu bem-estar social, logo o feminismo neoliberal não é coletivo.
Contudo, com um outro olhar, o neoliberalismo progressista ao se apropriar de con-
ceitos do feminismo, talvez possa colaborar, indiretamente, de modo positivo à causa, isto é,
dando evidência para pautas feministas pouco discutidas e naturalizando determinadas mu-
danças reivindicadas pelo movimento. Ou seja, observamos que o feminismo neoliberal den-
tro da cultura popular, talvez, não deva ser totalmente criticado, pois, talvez esses discursos
possam servir de alavancas para outras lutas feministas, ou sirvam, para alguns sujeitos, como
o primeiro contato com o “feminismo”. Assim questionamos: a disputa lenta através de casa-
mentos entre demandas antagônicas, progressistas e capitalistas, podem promover pouco a
pouco, de forma efetiva, a melhoria da consciência de classe e outros debates sociais? O Fe-
minismo Neoliberal é efetivo nessa questão?
Tendo observado isso, pensemos agora na cultura pop. A principal característica da
“cultura pop” está interligada como um sinônimo de “cultura das mídias”, nos moldes concei-
tuais de ADORNO (2020), isto é, produtos culturais mercantis que estão diretamente ligados
ao entretenimento e suas performances (SÁ; CARREIRO e FERRARAZ, 2015). Logo quando
falamos em “cultura pop” devemos pensar em cultura midiática e consumo caminhando jun-
tos, um influenciando o outro, pois “estamos num estágio do capitalismo em que não pode-
mos trabalhar análises binárias sobre as relações entre capital e cultura” (SOARES, 2015, p.
21).
Logo, quando a mídia à serviço do neoliberalismo discursa mensagens de
empoderamento e liberdade feminina, está comercializando um movimento de luta social, de
modo a se apropriar de discursos de caráter feministas e lhe retirando o “grito” de movimento
de resistência, ou seja, transforma o discurso em produto de consumo.
Não é difícil vermos em lojas camisetas com dizeres que invocam o poder feminino,
publicidades diversas abordando a diversidade da mulher e vendendo “empoderamento
enlatado”. Enfim, tem se tornado recorrente, na atualidade, diversas instancias de caráter
mercantil, utilizando discursos de empoderamento, incentivando a autonomia e liderança de
tantas outras minorias sociais.
Contudo, para quem é esse discurso? É direcionado a toda a gama social? Eles
buscam realmente reivindicar transformações e “ascender a chama” de lutas sociais? Com
base em nosso debate, se tratando de discursos invocados por demandas neoliberais
progressistas, a ideia é “mudar ‘tudo’ para não mudar nada” (BERTH, 2019, p. 46), afinal os
grupos oprimidos continuam em lugares de marginalização, mesmo após e desenvolvimento
de pensamentos críticos e, aparentemente, terem adquirido mais visibilidade.
Nancy Fraser junto à Cinzia Arruza e Tithi Bhattacharya (2019), ao desenvolverem
um manifesto feminista para os 99%3, alertam para a falta de coletividade de um certo tipo de
feminismo crescente, um feminismo que beneficia somente o 1% das mulheres –
normalmente mulheres brancas, de classes altas e heterossexuais –, enquanto a categoria
proletária, os 99%, ficam a margem de alguns avanços feministas.
Esse feminismo a favor do 1% é um feminismo que é influenciado pela lógica
neoliberal, que se apropria de conceitos-chaves deste movimento social e os utilizam para
legitimar algumas bases ideológicas do capitalismo neoliberal, tal como os discursos de
igualdade de gênero, empoderamento feminino e liberdade, servindo à ideia de “mulher
empresarial”, empreendedora e livre para percorrer suas “estradas de tijolos amarelos” rumo
ao sucesso (ROTTENBERG, 2018; VICENT, 2020).
Essa lógica, da mulher empoderada e que trabalha, a chamada “mulher de negócios”,
favorece a lógica capitalista em seu estágio neoliberal, pois a força de trabalho feminina é
necessária para a sustentação do sistema, mas o que pouco se fala é que um dos sistemas de
opressão feminina, o capitalismo, está usando essa força de trabalho ao seu favor, e de um
jeito duplamente exploratório, pois a entrada da mulher no mercado de trabalho não lhe
retirou a imposição de ser a “cuidadora do lar”. E talvez essa seja uma das justificativas do
feminismo neoliberal ser, atualmente, tão discursivizado pela mídia a ponto de ter se tornado
parte da “cultura pop”, pois é um momento individual e despolitizado.
Assim, compreende-se que o feminismo quando popular e midiatizado, é análogo ao
feminismo neoliberal – um feminismo que não critica o sistema e que ganha formas hegemô-
nicas, por exemplo: aparecendo com intensidade nos discursos dos produtos culturais da mí-
dia de massa, na publicidade e em produtos de consumo diversos.

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As autoras usam o termo 99% para se referir a toda a extensa gama de diversidade de mulheres, ou seja,
mulheres que estão fora do espectro da meritocracia social, que fazem parte das ditas minorias sociais, mas que
são a maioria social.
Mídia x Feminismo neoliberal

Por volta de 1990, década na qual a racionalidade neoliberal começou a ganhar cará-
ter hegemônico, discursos de caráter “pós-feministas” começaram a ganhar notoriedade. Esses
discursos falavam sobre como as mulheres já possuíam a liberdade tão reivindicada, e que o
próximo passo seria abraçar as oportunidades e ocupar os espaços – é importante dizer que até
poderíamos aprofundar mais sobre “pós-feminismos”, mas precisamos avançar com o debate.
Identifica-se que as ideias “pós-feminista” se inscreve no pensamento neoliberal,
pois naturaliza aspectos do feminismo, mas também os mercantiliza, explorando o poder de
consumo da mulher livre e trabalhadora.
Essas ideias neoliberais e pós-feministas, talvez colaboraram para que aspectos de
discursos feministas fossem incorporados pela cultura popular. Podemos verificar isso quando
focamos na mídia de massa, pois observa-se que há na década de 1990, uma significativa
crescente de narrativas midiáticas envolvendo discursos de emporamento feminino.
Esse acontecimento discursivo nada contra a maré antifeminista irrompida durante os
anos de 1980, na qual a autora Susan Faludi chama de “backlash” (uma espécie de boicote
e/ou censura, na finalidade de frear o avanço de pautas feministas). Logo pressupomos que
esse acontecimento discursivo e midiático tenha “áurea feminista”. Contudo, não podemos
dizer que esses produtos culturais de mídia sejam obras feministas.
Outro fator que dá “massa” ao nosso estudo sobre como o feminismo neoliberal
impulsionou discursos de empoderamento na mídia, está no fenômeno cultural e comercial
chamado “girl power”4, que analisando sob o viés do neoliberalismo, consiste em uma das
formas como o feminismo foi comercializado através do cinema, da televisão, da música, da
arte e da moda... E assim, o feminismo neoliberal, sob a forma de discursos de caráter “girl

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Tal movimento surge com discursos de “empoderamento feminino” e “poder feminino”, que por sua vez,
invocam, de forma metamórfica, o discurso das chamadas “Riot Grrrls”, que foi um movimento punk de garotas
irrompido durante a década de 90, influenciado pelo movimento punk dos Estados Unidos.
power”, invadiu a cena cultural popular, ou melhor, a cultura pop (HAINS, 2009; ZEISLER,
2016).
Na década de ascensão do “girl power”, arquétipos de mulheres decididas, fortes e
destemidas começaram a aparecer com maior frequência na mídia de massa, pois, como nos
fala Naomi Wolf (1996), o discurso de mulher vítima do patriarcado foi aos poucos sendo
substituído pelo discurso de mulher poderosa.
Quando apropriado pelas mídias, o discurso feminista se torna mais “permissivo”,
pois, não denuncia as amarras sociais, e defende a liberdade de escolha feminina, com falas,
por exemplo, de que “você pode ter todas essas coisas e ser sexy, ser feminina, ser
tipicamente feminina e ainda ser feminista” (HAINS, 2009, p. 06 – tradução nossa).
Andi Zeisler (2016), sob um olhar positivo da cooptação de discursos feministas pela
mídia de massa, assevera que é mídia televisiva dos anos 90, impulsionaram histórias de
mulheres fortes e guerreiras, trazendo protagonistas que lutavam ativamente em suas
narrativas ficcionais, como exemplo, deste feito, temos a série de televisão “Xena, a Princesa
Guerreira” (1995) e o filme de animação da Disney, “Mulan” (1999).
Este movimento midiático que tornou o feminismo neoliberal extremamente popular
nos anos de 1990, ganha mais força nos anos 2000 e adquirindo um caráter massivo na década
de 2010, com celebridades apoiando a causa ao se “assumindo” feministas, com produtos
culturais exaltando o poder feminino, e a publicidade “vendendo” ideais feministas como
adornos de mercadorias.
A perspectiva de Zeisler (2016) é a mesma de inúmeros pesquisadores que observam
na união do feminismo e com capitalismo um meio de promover, em larga escala, ideias
feministas. Nancy Fraser (2019) observa essa união, pelo prisma do neoliberalismo
progressista, como uma linha tênue e problemática. Logo não devemos apontar esse
movimento midiático de promoção de “mulheres poderosas” como uma mídia feminista, ou
que adotou essa discursividade como uma “boa samaritana”, longe disso, estes discursos
servem a causas capitalistas, e que colabora com um movimento que despolitiza a
coletividade da base dos movimentos feministas.

Xena e Mulan: exemplos de empoderamento feminino midiático

Nesse tópico, iremos apresentar e discutir sobre os discursos de feminilidade presentes


nas personagens Xena e Mulan, na finalidade de observar como os discursos de
empoderamento, próprio do feminismo neoliberal, se apresenta nas obras midiáticas a qual
essas mulheres fictícias são protagonistas.
Intitulada no Brasil de “Xena: A Princesa Guerreira”, foi uma série de televisão
americana-neozelandesa, transmitida de 1995 a 2001. A sua protagonista, Xena, foi
interpretada pela atriz Lucy Lawless, que deu vida a essa mulher forte, destemida, uma
amazona, uma mulher guerreira. A serie narra a história de uma ex-assassina que se torna uma
heroína, ao ajudar as pessoas a se defenderem de criaturas e deuses mitológicos.
O que mais se destaca neste programa, é que foi um dos primeiros do gênero de ação e
aventura a ser protagonizado por uma mulher em posição de luta, essa sendo hoje reconhecido
até como um ícone de poder feminino, e até mesmo como um ícone pop LGBTQIA+, pois ao
fim da série subtende-se que Xena tem um relacionamento com sua companheira de
aventuras, Gabrielle – porém, esse romance nunca foi de fato trabalhado durante os anos que
o programa ficou em transmissão.
Na obra “Tough Girls: Women Warriors and Wonder Women in Popular Culture”,
Sherrie Inness (1999) dedica um capítulo inteiro para falar de Xena, na qual Kim Toley
(1999) em analise ao livro, comenta que Inness identificou a presença de mulheres guerreiras
na mídia e na cultura pop desde a década de 1960, mas é com Xena, em 1995, que há de fato a
narrativa de uma mulher durona sendo contada em mídia massiva e obtendo um notório
sucesso comercial, possibilitando, assim, uma imagem feminina de resistência, reconhecendo
o poder da mídia popular em construir uma representação do feminino com potencial de
incentivar a mudança da realidade social.
Contudo, Toley (Ibidem) argumenta em crítica, que apesar da personagem ser um
exemplo de mulher guerreira, ela também está inserida em redes discursivas e imagéticas
misóginas, pois visualmente a personagem utiliza roupas curtas e justas que deixem suas
pernas a mostra e que acentuam o volume de seus seios. Na narrativa, a personagem é uma
mulher atraente, que chama bastante a atenção dos homens por onde passa e guerreia. E por
causa desse fato, sua iconografia está longe de ser um objeto realmente político de resistência.
Melhor dizendo, numa visão feminista neoliberal, ao mesmo passo que a personagem
foi construída a partir do acontecimento discursivo e midiático de celebração ao “girl power”,
ela também continua discursos advindos de outras formações discursivas – se não misóginas –
, através das memórias discursivas de padrões de beleza feminino, ao ser uma mulher de porte
físico atlético, bela e de olhos azuis. Talvez o sentido que se extrai é o de que: está tudo bem
ela ser uma mulher guerreira e que represente alguns ideais feministas, desde que ela seja
definitivamente feminina e desejável.
Neste mesmo panorama de “mulher guerreira”, e de um possível exemplo midiático de
resistência em prol à causa feminista, e que também é fruto do acontecimento discursivo
observado da mídia dos anos de 1990, é o filme de animação lançado pela Disney em 1997,
Mulan. Esse filme em especial faz parte de uma tradição fílmica de narrativas de princesas,
que constitui uma das mais lucrativas franquias de mídia do mundo.
Mulan, se destaca por ser uma das primeiras princesas da Disney a fugir da linha
discursiva da tração fílmica, em que personagens “princesas” eram sempre postas como uma
mulher em perigo, que precisava ser salva e protegida por um herói masculino. Logo, sendo
uma das primeiras princesas, do estúdio, a não ter a narrativa amorosa como o arco principal,
e terminando a trama solteira. Colaborando, assim, na irrupção de uma nova discursividade de
“ser mulher” nos filmes de princesas da Disney.
No filme, Mulan é uma jovem chinesa, que desde cedo é ensina e cobrada a seguir
determinadas construções sociais de feminilidade. Mas ela se mostra uma mulher rebelde.
Desafiando as tradições e costumes sociais, ela se traveste de homem e entra para o exército
real. Buscando se tornar uma guerreira ela treina disfarçada, se mostrando bastante habilidosa
e se destacando entre todos os guerreiros.
Logo a leitura que fazemos, é de que a personagem quebra os com estereótipos de
“sexo frágil”. No final do filme, ela é a responsável por salvar o país, sendo reconhecida com
honraria pelo rei, mesmo após descobrirem o seu disfarce. A narrativa do filme exalta a força
feminina, coloca a mulher em destaque e em lugar de ação, ela é uma mulher ativa, uma
guerreira.
Neste ponto, percebe-se no filme uma discussão, em plano de fundo, sobre as noções
de gênero. Um debate que até hoje está presente nos movimentos feministas. A personagem
Mulan, nos proporciona a leitura, ou um debate, do que vem a ser próprio do mundo
masculino e o que pertence ao mundo feminino. “É como se Mulan tivesse começado a trilhar
o caminho da mulher que questiona sua posição na sociedade” (BREDER, p. 43, 2013).
Como dito, este filme está inserido em um acontecimento discursivo midiático. Mas
observando com o olhar crítico da contribuição de Nancy Fraser, entende-se que quando a
Disney incorpora a discursividade empoderamento feminino em seus filmes de princesas, está
associando sua linha de produtos fílmicos à uma proposta mercantil que estava em alta na
época.
E dessa forma, “vende-se” discursos de empoderamento, através de produções
midiáticas usando personificações/representações de “ser mulher”, apresentando modelos
identitários de se comportar ou agir.
Tanto a série de Xena e o filme de Mulan, são frutos de acontecimentos sócio-
histórico-ideológicos; os discursos e enunciados sobre força feminina, presentes nessas obras
são advindos de transformações sociais, na qual a mídia de massa colaborou no processo
“evolutivo” no modo de representear o feminino, e que de fato segue a ascensão da mulher na
sociedade. Mas não, necessariamente foi um processo evolutivo linear ou crescente. Mas um
processo de resistência, de negociações, de cooptação de discursos, e despolitização de
movimentos de resistência.
Porém, podemos observar que o discurso de empoderamento, impulsionado pelos
discursos do feminismo neoliberal, ao serem midiatizados, dá ao movimento feminista um
caráter de “polido”, “limpo” e “acessível”. Concluímos que o feminismo midiatizado é de
fácil aceitação e absorção, pois ele é capaz de gerar, numa ótica de cultural pop, a ideia de um
discurso geral, um discurso que agrada a todos de certa forma. Não se caracterizado num
movimento realmente político e de resistência significativa, mas um movimento que colabora
com a manutenção do sistema capitalista, mesmo oferecendo “doses homeopáticas” de
mudanças sociais para as minorias.

Conclusão
Não buscamos, nessa pesquisa, identificar como de fato o movimento midiático de
“empoderamento feminino” surgiu, mas sim investigar que aspectos sociais impulsionaram a
irrupção dessa discursividade.
Com nosso debate, compreendemos que o desenvolvimento crítico feito por Nancy
Fraser, é em respeito ao “feminismo neoliberal”. Mas, outras frentes feministas, são resistên-
cias ao poder do capitalismo, como, por exemplo, o feminismo de vertente marxista. Ou, por
exemplo, o feminismo interseccional, que observam que a opressão da mulher não advém
somente do fato de ser mulher, mas também tem a ver com questões raciais, com questões de
gênero e sexualidade, com classe social, com padrões de beleza etc. Diversas frentes feminis-
tas questionam as construções sociais patriarcais e heteronormativas, e buscam melhorias para
a vivencia da mulher, melhorias nos direitos e nas políticas públicas (BERTH, 2019).
Ou seja, algumas pautas e discursos feministas podem até terem sidos desvirtuados pe-
las políticas neoliberais, sofrendo ressignificações ou apropriações, mas o feminismo como
movimento político, de resistência e intelectual ainda persiste.
Ao utilizar os conceitos da AD, pudemos ver como o feminismo ao ser cooptado pela
governamentalidade capitalista neoliberal, poliu e despolitizou discursos de “empoderamento
feminino” ao midiatiza-os. Por outro lado, não podemos só ver esse acontecimento como algo
benéfico à causa feministas, pois esse movimento midiático neoliberal deu, de qualquer modo,
mais visibilidade a pautas de movimento feministas, mesmo que alguns debates emergentes
ainda não sejam tocados pela grande mídia.
A grande característica desse feminismo está em ser um movimento individual, ou se-
ja, ele não está em prol de todas as mulheres, nem de todas as classes, com isso alguns pesqui-
sadores, dos quais concordamos, vão questionar no sentido político: deveríamos realmente
chamar o feminismo neoliberal de feminismo? É um ponto difícil de se objetivar numa res-
posta direta, pois quando pautas feministas se entrelaçam com ideias neoliberais, há benefí-
cios e prejuízos neste jogo de interesses.
De toda forma, este artigo nos serviu para apresentar um debate que talvez seja emer-
gente, que é discutir a forma midiatizada e popular, que alguns discursos desenvolvidos por
movimentos feministas estão ganhando por causa do feminismo neoliberal. Este debate foi
mais profundamente desenvolvido em minha dissertação de mestrado5, na qual o presente
artigo contém fragmentos e alguns complementos.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W.; Indústria cultural. Editora Unesp, 2020.

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Dissertação disponível em: http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/24844 Acessado em:
05/06/2022
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