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Título original: í/E /d /Veo&arroca

<S) 1987, Gius. Laterza & Figli, Spa, Roma-Bari

Tradução de Carmen de Carvalho (até à p. 134)


e Artur Morão (a partir da p. 134)

Capa de Edições 70

Todos os direitos reservados para a língua portuguesa


por Edições 70, Lda., Lisboa — PORTUGAL

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OMAR CALABRESE

UFSMEijUO DEARIES ELEIRAS


SALA DEE ESTUDOS

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INTRODUÇÃO

Circula uma gente estranha, hoje, no mundo da cultura. Gente que


não pensa estar a cometer um crime de lesa-majestadc ao interrogar-se
se por acaso não haverá alguma relação entre a mais recente descober­
ta científica respeitante à fibrilação cardiaca e um telcfilme americano.
Gente que imagina a existência de curiosas relações entre um sofisti­
cado romance de vanguarda e uma vulgar banda desenhada para garo­
tos. Gente que entrevê cruzamentos entre uma futurista hipótese mate­
mática e as personagens de um filme popular.
Com este livro, procuro ser oficialmcnte admitido no seu grupo. A
operação que vou tentar d de facto do mesmo teor. Ou seja: vou pro­
curar os traços da existência de um «gosto» do nosso tempo nos objec-
tos mais díspares, da ciência aos meios de comunicação social, da lite­
ratura à filosofia, da arte aos comportamentos quotidianos. Parece-me
ouvir já a objecção: «Aqui está um que não distingue entre Dantc c
Papcrino, que pretende ver conexões onde nada prova que existam.»
Assim, vejo-me constrangido a começar com uma exeavado non peti-
ta. O que se resume nos dois princípios que se seguem.
Práw?.' as descrições dos fenômenos da cultura contemporânea
prescindirão da sua «qualidade», se por «qualidade» se entende um
juízo de valor. Aqui, efectivamcntc, .szí está em jogo o facto de na nos­
sa época existir uma «mentalidade», *um horizonte comum de gosto, e
não a sanção de quais são as obras melhores. Alcm do mais, as san­
ções são também fruto de um gosto, e então é preferível começar pela
sua definição geral e não pela dos seus efeitos.
ver conexões entre objectos que nascem intcncionalmen-
te afastados não é ilegítimo. De outro modo, ter-se-ia de concluir que

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o que conta na descrição dos fenômenos é a intcncionalidadc dos seus
autores. O que nem sempre se diz. Cada um de nós «sabe» muito mais
do que aquito que «crc» saber, c diz muito mais do que aquiio que crê
dizer. A cubara inteira de uma época faia, em quantidades maiores ou
menores e de maneiras mais ou menos profundas, nas obras de quem
quer que seja. Mesmo evitando hierarquias e guetos entre cabeças, é
possível descobrir a repetição de aiguns traços que distinguem a «nos­
sa» mentalidade (o nosso gosto, neste caso) da de outros períodos. E
justamente ao ir no encalce de conexões improváveis, dcscobrir-se-á,
ainda que com o benefício da dúvida, à eventual extensão daquela
mentalidade e daquele gosto.
Mas existirá, e qual será ele, o gosto predominante deste nosso
tempo, aparentemente tão confuso, fragmentado, indecifrável? Creio
tê-lo encontrado, e também proponho para ele um nome, o do Meo&v-
roco. Mas preciso desde já que a etiqueta não significa que tenhamos
«retornado» ao barroco, nem que o que eu defino por «neobarroco»
seja a totalidade das manifestações estéticas desta sociedade, ou o seu
âmbito dominante, ou o mais positivo. O «neobarroco» é simplesmen­
te um «ar do tempo» que alastra a muitos fenômenos culturais de hoje,
em todos os campos do saber, tomando-os parentes uns dos outros, e
que, ao mesmo tempo, os faz diferir de todos os outros fenômenos de
cultura de um passado mais ou menos rcccntc\É por causa deste espí­
rito que mc permito associar certas teorias científicas de hoje (catás­
trofes, fractais, estruturas dissipativas, teorias do caos, teorias da com­
plexidade, c assim por diante) a certas formas da arte, da literatura, da
filosofia c até do consumo cultural. Isto não quer dizer que a sua asso­
ciação seja directa. Significa apenas que análogo era o seu m óM c que
este se transferiu das maneiras mais específicas em toda a área intelec­
tual.
No que consiste o «neobarroco» está quase dito. Encontra-se na
procura de formas — e na sua valorização — , cm que assistimos â
perda da integridade, da globalidade, da sistcmaticidadc ordenada cm
troca da instabilidade, da polidimensionalidade, da mutabilidade. E
por isso que uma teoria científica que diz respeito a fenômenos de flu­
tuação e turbulência, c um filme que concerne a mutantes de ficção
científica são aparentados: porque cada âmbito fala de uma orientação
comum do gosto. Não se descobriu a ordem do caos, não só por não se
poder fazê-lo, como, e principalmcnte, porque interessava pouco. Do
mesmo modo que Alicn.
Mas como se faz para compreender quais são as características
comuns de fenômenos tão diferentes? Pode avançar-sc ao acaso, f
zendo uma lista daquilo que conseguimos intuir e arriscando-nos pas­
so a passo. Ou então, como se fará aqui, partir-se-á de um principio
geral. O seguinte: se estamos em posição de nos apercebermos de «se­
melhanças» e de «diferenças» entre fenômenos que têm, no entanto,
uma aparência muitíssimo distante, então isto significa que «há qual­
quer coisa lá debaixo». Que para além da superfície existe uma-íortqa
subjacente que permite as comparações e os parentcsco^Uma /b w M l'
Ou seja, um princípio de organização abstracto dos fcnómcnôS.' Que
preside ao seu sistema intemo de rclaçõcs.l
Chegámos agora ao fundamento deste livro, que não só é a ambi­
ção de encontrar o gosto do nosso tempo, mas também a de o í/tcM/w
métoJo. Isto é tão verdade que o tema dos capítulos é articulado
segundo um critério. Os títulos respeitam todos quer a um conceito
formal do «neobarroco», quer a uma palavra de ordem científica. A ra­
zão disto é simples: o conceito formal em questão é análogo a uma
teoria física ou matemática. Mas não por uma veneta do autor, e sim
porque a escolha de descrever a^owM dos fenômenos culturais corres­
ponde à natureza das teorias chamadas a capítulo. Elas são todas, de
facto, teorias que se referem a um critério espacial. São todas teorias
que não só se «assemelham» àqueles conceitos formais, mas também
são capazes de os explicar. Deste modo, atingimos um segundo objcc-
tivo: as nossas explicações resultam coerentes e metódicas.
O desejo de coerência e pertinência nas descrições das ciências hu­
manas parece-me ser, indcpcndentcmentc do resultado deste trabalho,
um desejo legítimo. D e facto, um vento antimetódico percorreu nos
últimos tempos o universo do saber humanístico e, pcssoalmcntc, sin-
to-me muitíssimo afastado dele. O declínio de certas formas da racio­
nalidade não pode ter como consequência a liquidação da racionalida­
de, mas apenas a procura de formas de racionalidade diferentes c mais
adequadas ao contemporâneo. Nas ciências humanas, isto surge como
cada vez mais necessário, pelo menos se se quiser evitar um sentido
de renúncia à compreensão dos fenômenos e o mal-estar do advento
da «idade do mexerico». E por isto que o primeiro capítulo do livro
afligirá o leitor com muitas reflexões sobre método, antes de entrar no
campo directamentc. E é sempre por isto que entre as várias dimen­
sões gerais através das quais se poderia examinar o «neobarroco» é
privilegiada a mais complicada, ou seja, a estética. O território da esté­
tica parece de facto, quase que por definição, o menos abordávcl por
uma análise não intuitiva. E, finalmcntc, é por isto que, além dos te­
mas escolhidos em primeiro lugar, se enfileirarão exemplos na aparên-
cia «impertinentes»: para aumentar o sabor do desafio, para iiustrar
melhor o que significa arriscar-se no terreno das «conexões imprová­
veis».
Em suma: por um !ado, este livro pretende ocupar-se da maneira
como a sociedade contemporânea manifesta os seus próprios produtos
intelectuais, independentemente da sua qualidade e da sua função; por
outro, entrevê o seu horizonte comum no gosto com que são expres­
sos, comunicados, recebidos. Desejando sintetizar com um riogon, di­
rei que este volume constitui uma tentativa para identificar uma «estêi.
tica social». E agradeço a Paolo Fabri pela invenção desta definição,
que representa perfeitamente o espírito do trabalho.

Para terminar, dedicatórias e agradecimentos. A dedicatória é aos


meus estudantes de Bolonha, que durante três anos seguiram com pai­
xão, mas sobretudo com numerosíssimas sugestões, as aulas de que
este volume é fruto. Os agradecimentos vão para um número impres­
sionante de amigos, que quiseram sentir-se participantes no trabalho.
Em primeiro lugar, Francesco Casetti, leitor atentíssimo do manuscrito
e que sugeriu uma infinidade de idéias que fiz minhas. No mesmo pla­
no, Cláudio Castellacci, apaixonado perito (e, por consequência, con­
selheiro) de objcctos «ncobarrocos». Não cito os outros, para evitar
um efeito — elenco — telefônico, mas sabemos todos que conheço e
reconheço cada minha dívida intelectual. Quanto aos erros e impreci­
sões, deles assumo, pelo contrário, total responsabilidade.

O .C .
Aíiiõo, 24 & Janeiro & 79R7

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I

O GOSTO E O MÉTODO

1. Questões preliminares

Será com um caracter, uma quaiidadc, um sinai gerai, que podere­


mos procurar definir a nossa época? A resposta não c ccrtamcntc fáeii.
Mas isto depende do facto de que a pergunta, por detrás da banaiidade
e simpticidade da sua formulação, esconde muitas armadithas teóricas.
Tentemos torná-la explícita. Primeira questão subterrânea: que signifi­
ca «época», e, sobretudo, como é que é possívc! definir uma que seja
«nossa»? Segunda interrogação impiícita: será lícito etiquetar períodos
da história com motivos de ordem gerai (ou pior, genérico)? Terceira
pergunta pressuposta: porquê então procurar um caráctcr para definir
uma época? Será permitido separar tão nitidamente biocos históricos,
difcrcnciando-os por homogeneidade com outros ou de outros? Quar­
to, último e mais grave probiema: onde reside semelhante «caráctcr»?
Na psicologia das pessoas, nos comportamentos públicos ou privados,
na história política ou econômica, na estrutura da sociedade, nas for­
mas de pensamento, nas artes, nas ciências?^
Vamos agora por ordem e comecemos pela questão da «época».
Sabc-sc que esta palavra, como toda a equivalente que sirva para cons­
truir uma periodizaçãof), traz aborrecimentos aos historiadores. Não é

(t) A periodização constitui com frequência um elemento central no de­


bate entre os historiadores. Se pegarmos nas obras «gerais» (por exemplo: a
//isiória Cwüe/HpcrâfMM, de Nicola Tranfaglia, Peltrinelli; ou a //estória da

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por acaso que e h c adoptada com toda a cautela, por exemplo, com a
advertência de que se usa por convenção ou para simplificar. E de fac-
to o conceito de «época», ou «idade», ou «período», contrasta com
muitas maneiras tradicionais de entender o íluir dos acontecimentos.
A história seria antes composta por cadeias de causas e efeitos, e não
por cesuras repentinas e ciaramcnte advertíveis. Reagrupar aconteci­
mentos sob categorias que os separam dos seus antecedentes e dos
acontecimentos seguintes surge como um paradoxo^). Aliás, é tam­
bém verdade que existe uma historiografia mais interpretativa que se
ocupa, efn princípio, precisamcntc do reconhecimento dos efeitos da
sua definição, da sua articulação, muito mais do que da explicação das
suas causas ou origens. A história da arte, da literatura, da música c de
todas as outras práticas criativas é muitas vezes assim. Antes de pro­
curar a motivação que antecedeu um facto ou um conjunto de factos, é
obrigada a tfe/t/ttr os factos. É por isso, por exemplo, que existem no­
ções como a de «estilo», ou «motivo», ou «tipo», ou «gosto», que fa­
zem sucederem-se os eventos em blocos mais compactos e cujo início
é estabelecido de modo convencional, sem que se lhes dê demasiada
importância, c cuja duração é variadíssima, na condição de que o con­
junto dos «efeitos» (isto é, dos objcctos produzidos) seja numerica­
mente relevante, pelo menos de modo a permitir a sua categorização.

Aátia, de vários autores. Einaudi), encontraremos sempre amplas discussões


sobre a maneira de classificar e repartir os acontecimentos. E se precisamente
as classificações são feitas com a advertência sobre a sua convencionalidade.
toma-se interessante observar o critério com que se fazem. De umas vezes, as­
sume-se o acontecimento como uma diferenciação simbólica entre dois con­
juntos político-econômicos. De outras, escolhe-sc um outro acontecimento
como emblema social. Outras vezes ainda, toma-se um que funcione como ei­
xo de mudança cultural ou de mentalidades. Neste sentido, por exemplo, o
congresso de Viena, a revolução americana, a descoberta da América, embora
sendo todos «macro-acontecimcntos», são, por seu turno, sinais da história
muito diferentes entre si.
(2 ) Por outras palavras, opõem-se duas concepções de história: a história
como continuidade e a história como fractura. Mas a oposição não é assim tão
rígida como a que estou a delinear. O «continuísmo» histórico não é só o de­
terminista, tal como o «dcscontinuísmo» pertence a numerosas correntes mui­
to diferentes entre si. Em todo o caso, para uma orientação sobre a história
como fractura, cf. Louis Althusser, Erre /e Cqp/ta/. Paris, 1965, c Mitchel Fou-
cault, Ees mots et /es c/mses, Gallimard, Paris, 1966. Em Althusser, encontra­
mos o conceito de «coupure» («corte»), que separa os grandes momentos da
história a partir da noção de classe, e em Foucalt o de «fractura epistémica».
Mas o discurso toma-se um pouco mais complicado quando pre­
tendemos atribuir uma homogeneidade e uma peculiaridade ao tempo
de que somos contemporâneos. De um ponto de vista circunstancial, 6
árduo reagrupar fenômenos cuja coerência é discutível em relação à de
um passado realizado em que o corpo das datas é controlado. Estabe­
lecer a pertinência recíproca dos acontecimentos, com o horizonte de
um presente e dc um futuro não conhecidos, e que apenas permitem
hipotéticas previsões, é arriscar-se de contínuo ao aventureirismof).
Por outro lado, não é assim tão simples estabelecer a relevância dos „
fenômenos que se confundem com muitos outros que, sendo relevan­
tes, não veremos julgados: Um critério de bom senso parece-nos, no
entanto, aplicável: o dc ter em conta a «emergência» de alguns em re­
lação a um desenrolar de outros que não provoca qualquer «excita­
ção». Por outras palavras, para estabelecer o parentesco c o relevo de
certos factos de «época» em relação a outros, pode considerar-se o
conjunto inteiro da cultura como uma espécie de catálogo da Bolsa.
Neste há títulos sólidos que vão bem, mas desde sempre: não são
aqueles que caracterizam um certo andamento mensal. Depois, há títu­
los que sobem imprevistamente, ou que se despenham: são estes que
definem o tipo de orientação do mercado. E aí está a causa da «excita­
ção» que provocam em relação à tipologia accionista no público dos
operadores. Mesmo quando estes títulos não constituem a maioria do
catálogo, atp^aorieataçáp geral aparece rotulada com eles. Portanto: o
caracter de «excitação» produzido no interior do sistema da cultura, e
no seio do**pCb!ico que dela frui, pode ser prccisamcnte uma maneira
dc classificar uma época ou um períodop).
Ó segundo problema deriva dircctamcntc do precedente, é o da li-
citude de se etiquetar uma época com uma série dc motivos emergen-

P) Mas, de facto, a semiótica começou recentemente a ocupar-se da ma­


neira como se produz um «discurso histórico». É na perspectiva do discurso
que se constroem a coerência, a verosimilhança, a pertinência recíproca dos
fenômenos. Cf., entre outros. Algirdas J. Grcimas, «Sur !'histoire événemen-
tielle et histoire fondamcntale», in óémiohqMe et Sciences sociaíes, Seuil, Pa­
ris, 1976.
(*) Na verdade, fiz minha, de um modo muito grosseiro e simplificado, a
análise de Jean-François Lyotard da maneira como Kant considerava os «si­
nais do progresso na história». Kant pensava que um destes sinais seria o entu-
siás/m?, não tanto entendido como paixão dos actores da história, como quanto
sentimento dos seus espectadores não directamente interessados. Cf. Jean-
François Lyotard, Éditions Galilce, Paris, 1986.

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tes. É frequente, na história do gosto ou dos estdos, dcnommarcm-se
os períodos por meio de paiavras-chaves que os tomam extremamente
simplificados e abstractos. É o caso da Idade Média, com os seus sé­
culos de obscurantismo, ignorância e superstição. E o caso do Renas­
cimento com o seu racionalismo e o seu humanismo. E logo a seguir
vem o barroco,-involuto, absolutista e enigmático. E assim por diante,
apenas para só falar das etiquetas dentro da história da arte. Mas seme­
lhantes simplificações não servem em absoluto para a compreensão da
história da cultura, apenas servem para a cmpastclarem em formalis­
mos que pouco tem a ver com a realidade e a que falta o vigor. Sena
ainda pior propô-las para a análise do presente, quando ainda não e
possível por falta de «boa distância»^), distinguir com certeza aquilo
mie é importante daquilo que o não é. Cada momento histórico, de res­
to não se pode reduzir a uma única etiqueta pelo simples motivo d
nue a história é consütuída pela confrontação de fenômenos distintos,
conflituais, globais, quando não absolutamente incomcnsuravcis c não
comparáveis entre si. Disto isto, é também verdade, todavia, que os fe­
nômenos se constituem «em série», ou por «famílias», devido a perti-
ncncias recíprocas. Por exemplo, não se pode negar que o período 01-
toccntista da Restauração assistiu ao aparecimento na cena europcia,
tanto em política como cm arte, tanto na economia como nas letras, de
uma série de acontecimentos, os quais levam todos a um projecto de
«regresso à ordem» continental. Nem tudo o que aconteceu depois de
1815 foi coerente com tal projecto, mas muitos dos acontecimentos
sim, e por isso é lícito agrupá-los como tal. Por outro lado, uma vez
que a Restauração foi a ideia dominante c a mais dilund.da, e mais do
que possível definir como restaurador um certo período do século.
L a lm c n tc óbvio, no entanto, é o facto de que, mudando quer os pon­
tos de vista, quer os grupos sociais interessados, quer o objcctivo dis­
ciplinar, poderemos classificar como «qualidade» da epoca também
algumas outras coisas, como, por exemplo, o novo espirito intelectual
do rom antism o.!) problema, pois, é simplesmente definir com prcci-

A (bJadislâncià^ é um conccilo que pertence a (An/iro-


p jg ie Paris. 1958) e que significa que todo . "bject. anah-
sado requer uma distância por parte d . observador e que nem todas as distam
cias são iguais, mas que apenas uma é habitualmenre a mais própria para urna
^ e r v a e f o «pòrspícua» por parte d . analista. Cf. também aquilo que sobre is­
to se pt!de deduzir no plano da linguagem m Jcan-Claude Coquet, Lu bowic
íRsítMce. «Actes semiotiques (Documcnts)». 55. 1984.
são o ponto de vista escoihido e aquiio que é pertinente, e articular
com base nisso o critério de coerência dos fenômenos analisados.
Com isto, entretanto, respondemos implicitamente à terceira ques­
tão, a da unicidade da característica de época. Se o caráctcr depende
tanto do ponto de vista c das regras de pertinência, é incontestável que
não pode haver aqui uma só característica, mas sim muitas. E estas ca­
racterísticas poderão, por outro lado, existir de uma maneira múltipla
também no interior de uma mesma regra de pertinência ou do mesmo
ponto de vista. Isto significa que, enquanto podemos considerá-la
como um «conjunto», ou um «sistema» [á maneira de um sistema bio­
lógico^)], c por isso pensar que cada seu nível de articulação apresen­
ta, microscópica ou macroscopicamcntc, os mesmos traços, podemos,
ao mesmo tempo, julgá-la também constituída por subconjuntos ou
subsistemas em competição. Alguns revelam-se dominantes ou mais
emergentes do que outros, outros são derrotas, outros ainda são pro­
dutores de ulteriores mudanças, que também se perdem, ao passo que
os vencedores estão destinados a uma extinção posterior, por exaus­
tão. Por outras palavras, a cultura pode entender-se como um conjunto
orgânico, no qual cada elemento tem uma relação ordenada hierar­
quicamente com todos os outros, e este conjunto pode ser por nós de­
nominado, como Eco o fax, de «enciclopédia»^). Mas a enciclopédia,
relativamente a cada um daqueles elementos, funciona como um ho­
rizonte geral de ordem, como uma espécie de ideal global de organi­
zação do saber. Quando estamos perante elementos concretos isola-

(6) A ideia de que a cultura seja um sistema como o sistema vivo é anti­
ga. Por exemplo, encontramo-la em Kant, na Kritik der Urtcilskraft. 1790.
Modcmamente. um conceito análogo penetrou a chamada «teoria geral dos
sistemas». Um dos seus fundadores, em particular, Ludwig von Bcrtalanffy,
tentou transferir uma concepção «organísmica» da biologia para todos os cam­
pos do saber e da realidade. Cf. Ludwig von Bcrtalanffy, D as bioiogisciíe
Weitbiid, Frankc, Bema. 1949; id., C entra/ System Táeory, Brazillcr, Nova
Iorque, 1968 (trad. it.: Teoria generaie dei sistemi, Isedi, Milão, 1971). O bio-
logismo extremo está hoje refutado, mas a metáfora cultural-biológica perma­
neceu na linguagem comum. Para uma discussão sobre o amadurecimento da
ideia de «sistema», cf. Tomas Maldonado, fo iitica e scieaza deiie ricerca sis­
têmica, «Problcmi delia transizione». 5,1 9 8 0 ; e Giacomo Marramao, 7,'ordirte
disiacaatato, Editori Riuniti, Roma, 1985.
(i) Entende-se por «enciclopédia» um modelo das competências sociali­
zadas num determinado momento histórico, que o dicionário (modelo das
competências ideais de um falante ideal) não pode de todo explicar. Cf. Um-
berto Eco, Trattato di semiótica geaeraie, Bompiani. Milão, 1975.

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dos, dificilmente estaremos a examinar roda a enciclopédia. Apenas
recorreremos ao postulado da sua organização geral, mas de facto
ocupar-nos-cmos só de uma região sua, mais ou menos grande. Isto é,
analisaremos só uma «localidade» suaO. Mas a localidade é, no en­
tanto, organizada segundo as redes de modclosf): estas são a «quali­
dade» que torna localmcnte comuns certos objcctos culturais. A uma
certa escala, a qualidade poderá por isso ser única, mudando a escala
poderá multiplicar-se.
Mas tomemos à questão do carácter de época c ao corolário da ter­
ceira interrogação, ou seja, se será permitido separar tão nitidamente
os blocos históricos entre si. Já abordámos aqui a discussão sobre uma
das idéias fundamentais de Foucault, por um lado, e dos «micro-his-
toriadores», por outro. Resumindo isto a uma linguagem comum, re­
cordemos agora que um dos pontos mais contestados (até há pouco
tempo) do pensamento de Foucault foi prccisamcnte a sua ideia de
«episteme»('°). Segundo Foucault, estamos de facto numa época em a
mudança das mentalidades é tão radical (como no século XVÍI) que se
pode falar de um corte cm relação ao passado. Trata-se de uma tdeia
forte, que derruba um dos princípios da historiografia tradicional, ou
seja, a causalidade entendida como relação necessária entre um antes e
um depois. No entanto, também se reconhece que o princípio foucaul-
tiano pode fazer correr riscos: por exemplo, o de entrever nos acon­
tecimentos ttm tímeo (JenoffMnaJor comum, com a consequência de

(') Sobre a rctação entre «gtobalidade» e «localidade» do saber, cf. Jcan


Petitot, «Locale/globale», in Enctc/opedta, Einaudi, Turim, 1979. vol. 8.
(") Para o conceito de rede aplicado aos fenômenos culturais, ver Marc
Augé et a/tt, 77 sapere come rete d/ mode//t, Edizioni Panani, Turim, 1980,
vol. 11.
('") Estou a referir-me sobretudo a dois ensaios dc Foucault: Les mots
et /es- cAoses, cit.; L'arcAeo/ogt'e da savotr. Gallimard, Paris, 1969 (trad. it.:
L'arcAeo/ogia de/ sapere. Rizzoli, Milão. 1971) c MctzscAe, /a geaéa/ogte.
/'A/sto/re, in 7/ommage à Vean 7/yppaAte. Gallimard, Paris, 1971 (trad. it..
MetzscAe. /a genea/ogta. /a storia. «11 Verri». 39-40. 1972). No que se refere a
micro-história, é óbvio que me estou a referir geralmente, à escola dos «Anna-
lcs». Cf. ainda, em particular. Paul Veyne. Comment <m écrit /'Aí.stoire. Paris,
1971 (trad. it.: Como st scrtve /a storia, Laterza, Roma-Bari, 1973) (trad. port.:
Como Se Escreve a //istória, Edições 70. Lisboa, rced., 1987); Jacques Lc
Goff et a/ii, fa ir e /'A/stotre. Paris. 1974 (trad. it.: fa r e storia, Einaudi. Turim.
1981); Manfredo Tafuri. La s/èra e // iaAiriato, Einaudi. Turim. 1980; id..
Carmortia e i coq/hítt. Einaudi Turim. 1983; Cario Ginzburg. ///brm aggio e i
vermi, Einaudi. Turim, 1976.
obrigar as interpretações tocais à tógica dos seus enquadramentosf).
Mas é um facto, porem, que existe uma «lógica da cultura», embora
uma vez por outra ela não seja a única, e embora também o circuns­
crever-lhe as proporções segundo uma escansão temporal rígida seja
uma operação imprópria. Poderemos dizer igualmente que, no campo
da história das idéias, aconteceu aquilo que tem distinguido as ciên­
cias da natureza, pelo menos de Aristóteles ate hoje. A física, por
exemplo, tem procedido sempre às suas próprias pesquisas empíricas
ou teóricas na perspectiva de um princípio organizador do universo. O
mesmo tem feito a TfMÍiMrgesc/úc/tie.' como se a sua lógica fosse uni­
tária. Provavelmente, pensar-se-á numa mediação. Existem «carac-
teres», «epistemes», «mcntaüdadcs» de época, c são reconhecíveis
enquanto redes de relações entre objcctos culturais. Mas, primeiro,
não é necessário traçar-lhes uma definição cronológica precisa; em
segundo lugar, não são já traços unificadorcs de uma época, mas sim
de um estilo de pensamento e de vida que se porá em conflito mais
ou menos produtivo com outros. Justamente no campo da historia da
arte se entendem por vezes este princípio. Dois velhos livros de Eu­
gênio Battisti c de Fcdcrico Zeri podem funcionar como exemplo.
Battisti mostrou como no interior da mesmíssima idade se defron­
taram duas filosofias, tendo uma sido vencedora, o Renascimento, e
a outra cancelada, pois perdeu, o «Anti-Renascim ento»^. E Zeri
mostrou magistralmentc como uma ideia vencedora no palco da His­
tória, o Renascimento, pode homogeneizar também as idéias perde­
doras, como no caso daquilo a que ele chama de «Pscudo-Renasci-
mento»('3).
As últimas reflexões, portanto, levaram-nos ao cerne do problema,
o do critério das análises das recorrências que permitem definir «ca­
racteres» de época. Aqui, na verdade, a questão toma-se complexa.
Por um lado, de facto, é justo colocar a exigência de um critério de
método. Mas, por outro, também é refutada a homogeneização dos ob­
jcctos culturais por gêneros ou tipos (isto é, a banalização do méto-

(") E í realmente esta crítica dirigida a Foucault pela intelectualidade


mais recente, sobretudo pelos «filósofos do regresso à ordem» franceses, que
contestam a anterior «pensée 68». Mas, para uma resposta a esta tendência, cf.
Gilles Deleuzc, Foacaa/t. Minuit, Paris, 1986.
('2) Eugênio Battisti, 7/antirina.sci;nef]to, Feltrinelli, Milão, 1962.
(") Federico Zeri, «Rinascimento e pseudorinascimcnto», in Storia
rieii'arte italiana, Einaudi, Turim, 1983, vol. 5.

79
do)('*). Como conciliar as duas necessidades? E digamos que só atra­
vés de uma intcrdcónição dos conceitos operativos é que e possívei
garantir o controlo sobre objcctos analisados. Os fenômenos já não fa­
lam por si sós e pela evidencia. É preciso «provocá-los». O que equi­
vale a dizer que é preciso construí-los como objcctos teóricos (^). Por
outras palavras, não existe uma objcctividade imediata dos factos,
existe só a coerência da perspectiva segundo a qual os interrogamos,
do horizonte dentro do qual os incitamos a responder. Em ciência, tra-
ta-sc de um velho problema. A objcctividade do sistema dos elemen­
tos químicos foi estabelecida por Lavoisicr com o critério da untcida-
de da «pesagem», isto é, com o mais subjectivo e convencional dos
procedimcntosf').; Também na cultura se poderia dizer, metaforica­
mente, que se devem «pesar» os elementos, fazendo-os tomar-se co-
mensuráveis. Sem metáforas: eles só constituiríam um sistema na con­
dição de serem colocados em relação com um sistema de conceitos.
Ora, sistemas de conceitos podem existir muitos, e as ciências huma­
nas oferecem-nos um vasto espectro deles. Não se tratará aqui de pro­
por um como melhor do que os outros. Tratar-se-á simplesmente de
fazer/uncionar Mia. Vejamos de que modo.
Se considerarmos cada objecto da cultura como qualquer coisa de
comunicável, veremos imediatamente que ele se integra numa cadcta
de comunicação. É criado por um sujeito, individual ou colcctivo, é
produzido segundo certos mecanismos de produção, manifcsta-sc se­
gundo certas formas e conteúdos, passa através de certos canats, c re­
cebido por um destinatário, individual ou colectivo, e determina certos
comportamentos. Para cada um dos pontos da série, podemos desen-
volver as oportunas análises. Existem, de facto, ulteriores diferenças

('<) para uma resenha da crítica de «tipo» histórico, cf. ainda Cario Ginz-
burg, /Z frowaggio e i vermi. cit. , , ^.
(H) No campo da teoria da arte, isto está a acontecer desde ha tempos, so ­
bretudo no grupo de História e Teoria da Arte da Escola de Altos Estudos de
Paris que compreende Hubert Damisch e Louis Marin, e muttos estudiosos
mais jovens, como Maurice Brock, Gcorges Didi-Hubcrman. Jcan-Claudc
Bonne, Philippe Morei, Daniel Arasse e outros.
(") A pesagem química é um método coerente e constante, mas e es­
colhido convencionalmentc pelo analista e depende, por tsso, do seu enterto
«subjectivo». Não pertence de modo imanente aos objectos anahsadtM. umea
contlição para o definir como «objectivo». Sobre esta questão, cE llia rigogi-
ne e Isabelle Stenghers. «Sistema», in Enciclopédia. Einaudi, Turim. 1981.
vol. 12.
pertinentes com que examinar as diferentes polaridades da cadeia. Por
exempto, o emissor poderá considerar-se como fisicamente existente
e, então, poderemos rcconstitui-io com análisqs empíricas de tipo so-
cio-cconómico; ou, peto contrário, entendê-lo como aparetho de pro­
dução c distinguir as suas rotinas profissionais e decisionais; ou então,
pcnsá-!o como autor e atribuir-lhe uma fitotogia e uma história indivi-
duat. O mesmo se pode dizer quanto ao receptor: poderá ser avaliado
como «público» e dar-se-the-á uma sociologia ou uma psicologia,
considerando os efeitos de certas mensagens sobre ele; ou ainda po­
derá pcnsar-sc como abstracto, construído segundo uma estratégia de
comunicação c uma pragmática itustrará as maneiras de ser chamado
por causa de um texto. Quanto à mensagem, é ainda a mesmíssima
coisa: poderá ver-se como determinada por outras mensagens, e tere­
mos novamente uma filologia ou uma crítica textual, ou uma história;
e poderá imaginar-se como conjunto de formas e de conteúdos, arran-
jando-se-lhe uma semiótica(^)]
Chegamos agora, pelo contrário, à questão do corpo de objcctos a
tomar para exame. O princípio que se pretende aqui refutar é o da ho­
mogeneidade por gêneros, tipos ou artes. Por exemplo, não é de inte­
resse neste local (não que o não seja em outros) verificar a existência
de redes de relações de gosto ou de mentalidade para objcctos jão
co/!Jt/*MÍríor d partida coma /tomogéncor a oatror. Pode muitíssimo
bem estabelecer-se a existência de um gosto cinematográfico, ou artís­
tico, ou literário, no interior de uma história, de uma estética, de uma
crítica disciplinar. Mas isto é um pouco mais óbvio do que não procu­
rar as conexões (frequentemente escondidas) entre objectos que nas­
çam como diferentes entre si, e não já como pertencentes a uma série
cultural. 0_progrcsso das idéias nasce quase sempre da descoberta de
relações impensadas, de ligações inauditas, de redes inimaginadá&.„
Uma descoberta é frequentemente descoberta de sentido onde primei­
ro parecia reinar não já a insensatez, mas sim a ausência de sentido^
Claro, actuar deste modo significa correr riscos. Significa, por exem­
plo, fazer que as coisas analisadas digam mais do que dizem. Mas tra­
ta-se de um risco fascinante e produtivo, e acima de tudo não infunda­
do. Cada um de nós, de facto, diz sempre muito mais do que sabe e até

(") Também uma semiótica do autor e do leitor, mas enquanto inscritos


no texto, enquanto modelos abstractos da «voz» do autor e da cooperação do
público na deci&ação do texto. Cf., nesta matéria, Umberto Eco. Aector át Fa-
&MÍa, Bompiani. Milão, 1979.
do que imagina saber. A cultura de uma sociedade já dctxou de ser por
nós conhecida na sua totalidade, mas os objcctos culturais estão agora
cm condições de lhe exprimirem implicitamente também porções que
estão longe das que se manifestam explicitamente^O conjunto da
cultura produz inconsciente individual, inconsciente colcctivo c ate
mesmo, se quisermos adoptar um síognn feliz, «inconsciente da
obra»(^). . bL.
O critério ao qual nos reportaremos será então o scgum te.l ornare­
mos em exame objectos culturais muito díspares entre st, por exemplo,
obras literárias, artísticas, musicais, arquitectómcas. Ou entao ftlmcs,
canções, banda desenhada, televisão. E ainda teorias científicas, tecno­
lógicas, pensamento filosófico. Consideraremos tais objcctos enquanto
fenômenos de comunicação, ou seja, como fenômenos dotados de uma
forma ou de uma estrufuHLStibjacente. A ideia é podermos encontrar
certas «formas profundas» como caracteres comuns a objectos, ainda
que díspares e sem aparente rclaçao causai entre si. Por outras pala­
vras, considerando textos provenientes de âmbitos muito diversos, ire­
mos verificar se actua uma «recaída» de algumas estruturas subjacen­
tes de uns sobre os outros. O conceito de «recaída» foi aqui tirado de
Severo SarduyC). Ao estudar o barroco, Sarduy pôs de facto em rela­
ção aspectos da ciência e da arte e chegou à conclusão de que, por
exemplo, a forma da descoberta de Kcplcr da órbita elíptica dos plane­
tas não é diferente da que está na base da obra poética de Gongora, ou
dos quadros de Caravaggio. ou das arquitccturas de Borromtm Em
minha opinião, fenômenos análogos podem apresentar-se em qualquer
época, na nossa também, e a sqá repetição pode considerar-se como
um «traço de época», ou seja, com todas as limitações expostas nas h-
nhas preccdcntesT Mas usarei também de outra cautela. Em Sarduy, de
facto, não obstante a matriz claramcnte estruturalista (Barthcs, por um
lado e Lacan, por outro), pareccria poder colher-se amda um vestígio
de determinismo. Sarduy está subtcrrancamente convencido, na reali­
dade, de que a «recaída» tinha uma orientação: a que vai da ciência
para a arte O que, com franqueza, não é obrigatório. Pode muitíssimo
bem dar-se o caso de uma grande descoberta científica ser capaz de re-

(") É este o título do livro de Ângelo Trimarco. L'inconscio deB'opera.


Officina, Roma. 1974. mas no qual. no entanto, o termo nao tem um stgntlica-
do tão lato quanto o que lhe damos aqui. , ... „
(") Severo Sarduy, Barroco. Seuil. Parts. 1975 (trad. tt.: Barroco, Sa-
giatore, Milão, 1980).

22
volucionar, como uma espécie de «origem»^*), a mentalidade de um
período. Mas tatnbém se pode dar o contrário, que um gosto artístico,
literário ou proveniente das comunicações de massas incida sobre o
próprio corpo das idéias científicas. Estabelecer o antes e o depois, a
causa e o efeito, toma-se então ininteligível (se precisamente não se
pretende pensar que seja .tcwtpre ininteligível). Regressando a um cír­
culo ou a uma espiral de conexões recíprocas, qualquer ponto poderá
entender-se como causa dos que se lhe sucedem, pois servirá sucessi-
vamente para o pôr cm perspectiva, para os enquadrar numa fuga de
conceitos. Em cada caso, surge já como interessante chegar a uma for­
mulação de parentescos (talvez audaciosos, não importa), que outros
poderão enriquecer com outros métodos e outros objectivos. Dos ca­
racteres de tais parentescos provirá a formulação de um «gosto» típico
da nossa época, provavelmente em conflito com outros gostos, e não
necessariamente gosto dominante.
Uma última advertência. Falou-se insistentemente de «gosto» e de
«formas». É melhor esclarecer, então, prccisamcnte por causa das hi­
póteses de partida, no fundo orientadas para a pesquisa de um «carác-
ter de época» substancialmente estético, o ponto fundamental da nossa
pesquisa não só é descrever as formas, como também compreender
quais os tipos de julgamento de valores que eles provocam na socieda­
de. Cada sociedade delineia sistemas de valores, mais ou menos nor­
mativos, com os quais se julga a si própria. Aqui, procuraremos com­
preender qual será um dos recorrentes na nossa. Não o faremos a partir
das sanções (ou a ventura crítica, o sucesso, o sistema jurídico, a reli­
gião, a política). Fá-lo-emos, pelo contrário, a partir da prqposía Je
vn/orer que, inevitavelmente, todo o texto contém. Não existe obra, de
facto, que não sugira a maneira de a ler e de a julgar: que não conte­
nha uma coacção a uma futura memória. Mas, uma vez que a nossa
perspectiva é examinar predominantemente textos criativos ou inven­
tivos, eis aí a razão pela qual o sistema inteiro das categorias axiológi-

(^°) E, estatisticamente, é muitas vezes assim: a invenção da pólvora, da


imprensa, da teoria da gravitação, do sistema planetário helioccntrico e assim
por diante, talvez tenham sido responsáveis por mudanças de mentalidades.
Todavia, por «origem» não se deve entender apenas o ponto de partida de uma
gênese, mas sim. como dizia Walter Benjamin, «um vórtice no fluxo do futu­
ro», um «caracter espontâneo» («Ursprung des deutschenTraucrspiels», inEr-
ggnnmúArútscAe, Berlim, 1925).
c a s f ) será tomado de enfiada a partir da categoria estética e não, por
exempio, da categoria ética, ou passionai, ou física. De resto, até à pri­
meira vista se ve que a sociedade actua! surge difusamente permeada
de uma espécie de «estetização de massas» como nenhuma outra an­
te s^ ).

2. O termo «neobarroco»

Para falar verdade, no campo expressivo, existe já um termo


parroMí que tem sido largamentc utilizado para definir uma linha de
tendência contemporânea. É o abusadíssimo «pós-modemo», dc que
se desnaturou o significado original e que se tomou na palavra dc or­
dem ou em marca de operações criativas muitíssimo diferentes entre
si. Trata-se, na verdade, de uma palavra equívoca c genérica, ao mes­
mo tempo. A sua difusáo está, de facto, relacionada com três campos
de acção que são confundidos uns cons os outros.
O primeiro, refinadamente americano, utilizava-a já nos finais dos
anos 60 em relação à literatura e ao cinema. De facto, signifteava mut-
to simplesmente que havia certos produtos literários que não consis­
tiam na experimentação (entendida como «modernidade»), mas sim na
reelaboração, no pa.sttc/t<?, na dcconstrução do patrimônio literário (ou
cinematográfico) imediatamente preccdentcf).

(*') Entendo por «categoria axiológica» as categorias respeitantes aos va­


lores, um tanto como se começaram a afumar desde o início do século, com as
chamadas «filosofias dos valores», que fizeram o sucesso do termo (cf., por
exemplo, Eduard von Martmann. Grandriss der Atio/agie, Lcipzig. 1908).
Mas veja-se idíra, § 4. . .. .
(H) Nos últimos tempos, esta ideia abriu caminho no ãmbtto soctologtco
e filosófico: por exemplo, em Michel Maffesoli ou em Gianni Vattimo. Mas
nem todos estão de acordo, e entre outros até mesmo alguns «compagnons de
route» dos supracitdos, como Mário Pemiola. Veja-se, a este respeito, o longo
debate dc 1985-1986 da revista /li/abeta e. em particular, alguns volumes:
Gianni Vattimo e Aldo Rovatti, /i pensiero debele, Fcltrinelli. Mtlão. 1985;
Michel Maffesoli. E'wnbre de Dyonise. ConVnbMhw! à une w cio/ogte de 1 er-
ge, Librairie des Méridicns, Paris. 1985 (trad. it.: Ea canascenza ardatarta.
Cappelli, Bolonha, 1986); Mario Pemiola, Transiu, Cappclli. Bolonha, 1986.
(ü) c f . Paolo Carravetta e Paolo Spedicato, Ta.statadcraa e /eMeratara,
Bompiani. Milão. 1984. mas também Maurizio Ferraris, Ea svaáu testuaie,
Unicopü, Milão, 1986.

24
O segundo é o âmbito estritamente filosófico c está rctacionado
com a conhecidíssima obra de Jean-François Lyotard, A Condição
Pós-Afoder/:a(^), que na origem era simplesmente um relatório ao
Conselho do Estado canadiano de Quebec sobre sociedades ocidentais
avançadas e a sua forma de desenvolvimento do saber. O adjectivo
«pós-modemo» era explicitamente colhido na sociologia americana
dos anos 60, mas como conceito, e rcelaborado como noção filosófica
original(^). De resto, Lyotard escreveu: «Ele designava o estado da
cultura, depois das transformações súbitas nas regras dos jogos da
ciência, da literatura e das artes, a partir dos finais do século XIX. Tais
transformações seriam aqui postas em relação com a crise das narrati­
vas Simplificando ao máximo, poderemos considerar 'pós-mo-
dema' a incredulidade nos confrontos das mctanarrativas.»(^)
O terceiro, enfim, c o campo da arquitcctura e, cm geral, das disci­
plinas projcctistas, e teve sucesso sobretudo em Itália e nos Estados
Unidos. O seu ponto de partida foi a famosa exposição da Bienal de
Veneza dedicada à «Strada Novíssima», cujo catálogo foi intitulado
Po.srmo&rn(^) pelo seu organizador, Paolo Portoghesi. Neste scctor,
«pós-modemo» começou a significar qualquer coisa de ideologica­
mente preciso, ou seja, a rebelião contra os princípios do Movimento
Modernista, o seu funcionalismo e racionalismo.
' Como se vê, o ligame entre os três âmbitos decerto que existe, mas
c tênue. Em literatura, «pós-modemo» quer dizer anticxpcrimcntalis-
mo, mas cm filosofia quer dizer pôr cm dúvida uma cultura baseada
cm narrativas que se tornam prescrições, c cm arquitcctura significa
projecto que regressa às citações do passado, à decoração, à superfície
do objecto projectado contra a sua estrutura e a sua função. Coisas, cm
suma, deveras afastadas entre si. E indefinidas, porquanto sob a cober­
tura de etiquetas demasiado vastas estão aparentadas, como se disse,
as operações mais variadas/A citação, por exemplo: mas sem explicar

f ) Jean-François Lyotard, La condúion po.trmodeme. Minuit, Paris,


1979 (trad. port.: A Condição Póx-A/oderna, Gradiva, Lisboa s/d).
P') Os sociólogos americanos são Dcrek Bell, 77te Corning o / Po.tr /n-
dustriai 5ocieiy, Nova Iorque, 1973; lhab Hassan, 7 Ae Di.tmemirerrnent o f Or-
p/teux.' Totvard a Po.tr A/odern Literaíare, Oxford University Press. Nova Ior­
que, 1971; M. Benamou e C. Caramello, Performance in Po,tí-rriodern CaiMre,
Center for the XXth Century Studies, Wisconsin, 1977; etc.
f j Jean-François Lyotard, op. cií., p. 5.
(") Paolo Portoghesi, «Postmodem», Piecta, Milão, 1979.
de que tipo (visto que uma literatura ou um cinema ou uma arte de ci-
mcões ^m pre exibiram). Ou então, os efeitos de superfície das obms^
mas também aqui sem especificações. Ou. enfim. a hostibda^ con
o «modernismo.: não vendo que o eventual suporte teor.co(Lyo^rd
não renegava de facto os valores de experimentação das chamadas
«vanguardas.. Vem a propósito, de resto, um rccen tissi^ hvrmho do
mesmo Lyotard, Lc exp/i?Me mor no qual
filósofo fmnccs fez o ponto de sete anos de moda pós-modernista c no
qual refuta, contra os muitos que o tentaram, tomar o pos-modcrmsmo
num «look ., ou num estilo de pensamento que se situa após ou conü-a
o moderno. E denuncia a tentativa, tanto de pretensos seguidores
como de dctractorcs, de liquidar pelo elogio ou critica a e mesmo
o trabalho de experimentação desenvolvido cm todos os campos do
saber desde o início do século XX. Em suma, o termo «pos-modemo.
tem continuado a viajar sobre um trilho de equívocos. muitos, na
verdade tomou as vezes de um verdadeiro programa ou manifesto c
* . p r b p n . S P ^
analítico. E para muitos outros tem constituído um ponto de referencia
sob c a ju b iM ...a s se p.<""- c . < ^ r p - o v p p . n o s .
«ism os. como a «transvanguarda., o «nco-expressionism c. o «neo-
futurismo», e assim por diante^). _ _
Mas poderá bastar um programa genérico (a reacçao ao p cycc^o
moderno) para definir conjuntos de fenômenos artísticos, científicos,
sociais globais como os contemporâneos^)? E podera bastar a dcc a-
ração de Em de vanguarda e do experimentalismo como característica

(2.) Jean-François Lyotard, Le PaslmatíerM exp/ii?Mé aax ea/aal.!. Édi-

ttons G a ld c ^ P ^ «p discorso modemo e il termine 'post- . . m


madermíà, Feltrinelli. Milão. 1987.
^ P") Tenho a impressão de que. pelo menos no que concemc ao pós-mo

is s a s á sssx =
ldmicas dos anos 60 em tomo do «pop. arquitectómco, ou na " ° ^ a «arqunec-
tura radical, dos anos 70. Cf., nesla matéria, a ^ 'n u c a q u e
vro de Tomas Maldonado. La ^peranza progellaa^. Emaudi. Turim .
o ^ reunia, por um lado, os americanos (B .b Vcntun. D e m s e S c .t B r.^ m
S e H e n d t s e outros), e por outro, os italianos (Alessandr. Mendmi. A id .
Rossi, e depois Paolo Portoghesi).

26
dos objectos denominados «pós-modemos»? A uma exposição pcdc-
se qualquer coisa mais, pede-se que parta peto menos de uma descri­
ção coerente daquilo de que fala e que explicite as próprias maneiras
de descrever. Por isso, proporei aqui uma etiqueta diferente para al­
guns objectos culturais do nosso tempo (não é realmente obrigatório
que sejam os mesmos denorpinados «pós-modemos»), Esta etiqueta
será a palavra «ncobarroco».J
Entcndamo-nos desde já. Não tenho apego a este nome de modo
particular. Considcro-o simplesmente um j/ogan como qualquer outro,
mas capaz de exprimir de maneira rccapitulativa os conteúdos concre­
tos que entendo dar-lhe. A minha tese geral c de que muitos importan­
tes fenômenos de cultura do nosso tempo são marcas de uma «forma»
interna específica que pode trazer à mente o barroco.
Só a evocação do termo pode fazer nascer mais do que uma ob-
jecção imediata. Quanto ao prefixo «nco». Assim como o «pós» de
«pós-modemo» fazia pensar num «depois», ou num «contra» a mo­
dernidade, também «neo» poderá levar a crer na ideia de repetição,
regresso, reciclagem de um período específico do passado, que seria
então precisamente o barroco. Naturalmente, a referência ao barroco
funciona por analogia, e em numerosos casos procurarei tomá-lo evi­
dente. Mas isto não significa realmente que a hipótese seja a de uma
«retomada» daquele período. Assim como se refuta a ideia de um de­
senvolvimento ou de um progresso da civilização, porque demasiado
determinista, também a dos ciclos históricos é inaceitável porque me-
ta-histórica e idealista. «Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo
rio», em suma. E a mesma maneira de compreender o termo «barro­
co» que, pois, se torna mais preciso.
Mais uma vez, para o fazermos seguiremos algumas intuições de
Sarduy. Este define o «barroco» não só, ou não tanto, como um perío­
do específico da história da cultura, mas como uma atitude generaliza­
da e uma qualidade formal dos objectos que o exprimem. Neste senti­
do, pode haver barroco em qualquer época da civilização. «Barroco»
quase se toma numa categoria do espírito, oposta à de «clássico»^').

f ) Severo Sarduy, ap. cá., que, naturalmente, retoma toda a tradição for-
malista de Wólfflin a D O rs. Cf. também Claude-Gilbert Dubois, í c ílarra-
<yae. Pra/ândears de /apparence, Larousse, Paris. 1973; Gcrard de Cortanze,
Ée bara^ae, M. A. Éditions, Paris, 1987; Cristine Genci-Glucksmann, La rat-
san bara^ae, Éditions Galilée, Paris, 1984; id.. La /b /ie da vair, Éditions Gali-
lée. Paris, 1986.

27
Aqui, não quero chegar a indicações novamente mcta-históricas. No
entanto, tentarei traduzir a ideia de Sarduy noutro sentido. Por exem­
plo: se conseguíssemos demonstrar que existem formas subjacentes
aos fenômenos culturais e que consistem no seu andamento estrutural;
e se conseguíssemos também demonstrar que tais formas coexistem,
conflitualmente, com outras de diferente natureza e estabilidade inter­
na, então poderiamos dizer que atribuímos ao «barroco» o valor de
uma certa morfologia e, admitamo-lo, ao «clássico» o de uma morfo-
logia com ele em competição. «Barroco» e «clássico» já não seriam
categorias do espírito, mas sim categorias da forma (da expressão ou
do conteúdo). Neste sentido, qualquer fenômeno seria ou clássico ou
barroco, e idêntica sorte cabcria à época ou episteme que vissem a
emergência de um ou outro. Isto não cxcluiria o facto de as manifesta­
ções de cada momento histórico isolado manterem a sua especificida­
de e diferenças como casos singulares.
Para dizer a verdade, não é a primeira vez que se emprega o termo
«neobarroco». Gillo Dorflcs, por exemplo, já o usou num livrinho inti­
tulado O Barroco na ar^MÍtectara moderna, por sua vez retomando um
termo de Brinkmann. E ainda em mais outro livro, E/ogio da desarmo­
nia. no qual não encontramos referências explícitas ao termo, mas on­
de alguns dos princípios que serão expostos aqui já vinham de algum
modo tratados. Na época contemporânea, de facto, Dorflcs identifica o
abandono (ou queda) de todas as características de ordem e simetria, e
vislumbra o advento (nem sempre positivo, mas também não necessa­
riamente negativo) do dcsarmónico e do assim étrico^. Encontrare­
mos ccrtamcntc muitas semelhanças entre os conceitos expressos por
Dorfles e quanto virá tratado aqui, como a rclcitura com a chave mo­
derna de alguns intérpretes (Wolfflin, D Ors, Anccschi, Focillon).
Mas encontraremos também profundas diferenças. Dorfles inclina-se
para uma dimensão histórica específica a atribuir ao «neobarroco»,
que seria um período deste século já decorrido, como no caso do
cubismo, do organicismo ou do nco-empirismo cm arquitcctura. E sa-

(32) Gillo Dorfles, ArcM ecmre omíngMe, Dedalo, Bari, 1985, onde vem
rcimpresso um trabalho de 1951 do próprio Dorflcs. Barocco ne//'arcMeimra
moderna, com os oportunos acrescentos e uma ligação à discussão mais recen­
te; e sobretudo E/ogio de/ia di.sarmonia. Garzanti, Milão. 1986 (trad. port.:
E/ogio da Desarmonia. Edições 70, Lisboa 1988). O termo surge accúe tam­
bém por Pierluigi Cervellati. Aria di neoftarocco, «L'informazione bibliográfi­
ca». 1.1986.

23
lienta que o «pós-modcrno» será um fenômeno que sucedeu a este.
Uma tal colocação numa espccie de história implícita dos estilos não
será aqui de todo aceite. Tal como não será completamcnte aceite nem
sequer a ideia (tirada de Focillon e Wõlfílin) de um «ritmo» ou de «ci­
clos» históricos. Clássico e barroco admitir-se-ão como constantes
formais, e accitar-sc-á igualmente a sua predominância muito mais
num período do que noutro. O princípio da sua reversibilidadc será,
pelo contrário, rejeitado. A história, na realidade, não demonstra —
senão à custa de um exagero — a alternância das duas constantes
(como pretendem precisamente Wõlfflin e Focillon). E ainda menos
permite que se estabeleça — senão às vezes à custa de fantasias sem
motivo — que o clássico seja um momento de perfeição de um siste­
ma cultural e o barroco o seu corrclativo momento degenerado (como
queria Focillon).
Um outro elemento presente em Dorfles e que não será considera­
do pertinente é o juízo de valor sobre o barroco. Dorflcs, como já ou­
tros críticos nos anos 50, e como Sarduy, «reavalia» o barroco quer
como época determinada, quer como constante formal. No nosso caso,
não se trata de julgar, mas sim de reconhecer o reaparecimento daque­
la constante. E mais: de compreender ou explicar os próprios motivos
pelos quais pode haver sanções negativas ou positivas sobre um tipo
de gosto. A atribuição de juízos é, cm meu entender, coerente com a
aparição de objectos a eles homogêneos. O julgamento estético faz,
cm suma, estreitamente parte das «características de época», exacta-
mente como as obras que julga. O que, pensando bem, até é banal: to­
da a obra, como já se disse, contém sempre também as instruções para
o uso próprio, até o estético^).

Clássico e barroco

Uma consideração /orota/ de um estilo de época requer evidente­


mente, de um modo determinado, numerosas teorias da arte que do

(") A ideia é obviamente velha. Encontramo-la, por exemplo, em Mauri-


ce Blanchot, í'e.;pare /idéraire, Gallimard, Paris, 1968 (trad. it.: Z,a spazia
iederario, Dedalo, Bari, 1971). Mas estamos a pensar no quanto ela se tomou
explícita na neovanguarda literária ou artística. O título de um famoso livro de
Lambcrto Pignotti, Atraziani per ia s a degii aitáni made/ii di poesia, Lerici,
Milão, 1967, é emblemático neste sentido.

29
formalismo fizeram o seu fundamento. A primeira menção vai, natu-
ralmcnte, para Hcinrich Wõlfflin. Em conceiKM /Mntfamc/tmíj tfa
/ujtória arte, Wõifflin esclarece pcrfcitamcntc o significado do ter­
mo «formal»: «O presente estudo não analisa a beleza de um Leo­
nardo ou de um Dürer, mas o elemento em que esta beleza tomou for­
ma [...] estuda o caracter da concepção artística que está na base das
artes figurativas nos diversos scculos.»f") É a partir destes princípios
que Wõfflin elabora o seu método, que resumiremos nestes termos: a.
cada obra ou série de obras é a manifestação complexa e combinada
de algumas «formas» abstractas e elementares; 0. tais formas elemen­
tares podem definir-se como uma lista de oposições, porquanto uma
forma não é perceptível cm si, mas através de um sistema de diferen­
ças; Í-. um «estilo», toma-sc então a maneira específica de operar as es­
colhas através dos pólos das categorias formais de base, e corresponde
frequentemente a princípios de coerência individual, colcctiva, de épo­
ca, até mesmo de raça. Sucede assim que podemos definir um estilo
AAtórico como conjunto das maneiras de tomar forma escolhidos nu­
ma determinada época c traduzidos cm figuras^). Mas, ao mesmo
tempo, existirá um estilo aàrfracfo, que consistirá na lógica de conjun­
to das escolhas possíveis. É precisamente este o caso de dois estilos
que resultam, ao mesmo tempo, históricos e abstractos: o clássico c o
barroco. Eles tomam forma, por exemplo, no Renascimento e naquilo
a que chamamos «barroco histórico». Mas, num sentido mais geral,
também se pode dizer que clássico c barroco são conjuntos de esco­
lhas categoriais que podem encontrar-se, embora com resultados indi­
viduais diversos, cm toda a história da arte.
«Rescrevi» de certo modo a ideia de fundo de Wólfflin, porque
com o correr do tempo ela foi por muitos rejeitada em nome de uma
presumida «metafisicidadc» ou de uma «mcta-historicidade». Pelo
contrário, talvez seja caso para lhe fazer justiça. Outros formalistas te-

(") Heinrich W õlfflin, KMfMígMcAicMicAe Munique,


1915 (trad. it.: CcnceHi de/ía storia deífarn?, Longanesi, Milão.
1953), p. 59.
(3S) Traduzo, espero que não de modo ilegítimo, um dos conceitos wolf-
ílinianos cm tennos um tanto «linguísticos»: as «figuras» são de facto o modo
concreto de os textos se manifestaram, independentemente das estruturas mais
abstractas que regulam o seu mecanismo de aparição; assim, pode dizer-se que
um estilo surge na história com formas que estão simultaneamente ligadas ao
/HzwtffUo histórico, mas também a um ít/w figurativo abstracto.

30
rao provavelmente corrido aquele risco, mas não Wõlfflin, que, se de
alguma coisa pode ser acusado, c precisamente de um exagerado ape­
go ã ideia de historicidade dos estilos. Ou melhor: de continuidade
evolutiva entre eles, de forma que, por exemplo, a oposição entre clás­
sico e barroco como escolha entre as categorias de «lincar»/«pictóri-
co», «supcrfícic»/«profundidade», «forma fechada»/«forma aberta»,
«multiplicidade»/«unidadc», «clareza absoluta»/«clareza relativa» c
concebida com uma cadência, um ritmo da história.
Com maior razão poderia ser acusada de excessivo evolucionismo
a concepção de um outro formalista, Hcnri Focillon. De facto, Focil-
lon chega a comparar o sistema das formas a um sistema biológico
(talvez não tanto de um ponto de vista cientifico quanto de um filosó­
fico, de harmonia com as idéias de Kant sobre o argumento)^). Toda­
via, tambóm Focillon, cm A ViJa das Forwas(^), distingue nitidamen­
te entre categorias estilísticas historicamente definidas c princípios
formais a que damos simbolicamente o mesmo nome. Os famosos
«estádios» evolutivos (idade experimental, idade clássica, idade do re­
quinte, idade barroca) são na verdade irans/br/nações fnc/ybídgicas,
válidas no interior de qualquer estilo histórico. Poderemos até mesmo
deduzir delas que o estilo histórico «barroco» possui uma idade clássi­
ca, ou que o estilo histórico «clássico» possui uma idade barroca. A
que Focillon descortina é, em suma, uma implícita íágien da
wese. Isto é tão verdade que, ao considerar os quatro grandes âmbitos
que constituem uma forma (espaço, matéria, espírito c tempo), se
preocupa sobretudo em observar a mudança de configurações indivi­
duais, e não tanto dos estilos, no sentido geral do termo. O aspecto
propriamente histórico da arte c reduzido por Focillon muito mais ao
estudo de /nomenias como aglomerados de diversas formas cm «está­
dios» diferentes de evolução c em competição entre si, e não recondu­
zido a uma história dos estilos como princípio de periodização. Resta
ainda o facto de que a lógica das formas de Focillon segue um princí­
pio um pouco causalista, isto c, o da sucessão predeterminada da «ge-

(") Desde o fim do século XIX que existe uma retomada da ideia kantia-
na, expressa na Á 'r á d e r í/rfeils%ra/i, da «organicidade» das obras humanas.
Data de 1886, para dar um exemplo, o livro de Arsène Darmestetcr, La vie dei
wotx (reeditado pela Livraria Dclgrave em 1950), no qual a metáfora biológi­
ca c aplicada à linguagem.
(") Hertri Focillon, La vie d ei /arw es, Flammarion, Paris, 1934 (trad.
port.: A Vida das For/nax, Edições 70, Lisboa, 1988).
ração»-«acabamcnto»-«aperfeiçoamento»-«degenerescência» das for­
mas.
A historicidadc é, por seu tumo, tota!mcnte negada por Eugênio
d'Ors(^). A sua ideia de barroco 6 de facto, desta vez, decididamente
meta-histórica. O barroco torna-se categoria do espírito, formada por
constantes, denominadas por D'Ors «eões». Deste modo, pode alar-
gar-se esta noção a qualquer movimento artístico concreto da história,
independentemente do seu tempo c da sua situação geográfica. D e fac­
to, tomando como modelo o princípio de classificação de Lineu,
D'Ors consegue pensar o barroco como gênero, subdividido em nume­
rosas espécies. Contar-se-iam, no final de O Barroco, bem vinte e
duas. Mas é mesmo aqui que reside a debilidade da classificação, por­
quanto as diversas espécies têm uma denominação pouco coerente,
quase casual. Não existe homogeneidade, cm suma, entre um barroco
«maccdonicus», «alexandrinus», «romanus», «budicus», e um barro­
co, digamos, «vulgaris», ou «officinalis» (senão, justamente um re­
gresso a dimensões histórico-gcográficas do fcnómeno)(^).
Como se vê (e como, de resto, em finais dos anos 50 já notara Lu-
ciano Anceschi), nas posições formalistas há sempre uma contradição
não resolvida entre um conceito abstracto de estilo ou de forma artísti­
ca e a sua situação material. O abandono da historicidade em benefício
da classificação (por exemplo, a oposição entre «clássico» e «barro­
co») é importante, mas muitas vezes é escolhido sem que se utilize um
critério de rigorosa interdefinição dos conceitos. Por outro lado, a exi­
gência evolucionista ou biologista obriga a arriscados retornos no pla­
no da história. No que diz respeito ao critério de coerência c interdefi-
nição dos conceitos: nem Wõlfflin, nem Focilloti, c ainda menos
D'Ors sc arriscam a construir um «quadro» articulado. Wõlfflin, por
exemplo, inventa os seus cinco pares formais a partir da ideia de obra
de arte como aspecto, aparência, superfície sob a qual estão subjacen­
tes formas mais abstractas. Mas não explica a pertinência recíproca de
conceitos como «linearidade», «fecho formal», «superficialidade»,
«clareza», e assim por diante. O resultado é, por isso, um formalismo
pouco operativo, o qual poderá ser sempre contestado com a oposição
de outros pares classificativos. A Focillon, para além do claro determi­
nismo, poder-se-ia de igual modo criticar a ausência de homogcncida-

P*) Eugcnio d'Ors, í o Barroco, Madrid, 1933 (trad. it.: D el Borocco, Ro­
sa & Bailo, Milão, 1945).
(") VBidc/n, no capítulo «Las espccics dei barroco».
de dos termos de referencia de «espaço», matéria», «espirito» e «tem­
po». E finalmcntc, a D'Ors poder-se-ia contestar a muitipiicação sem
necessidade das subclassiEcaçõcs do barroco, que se tomam numa
s.mp!cs hsta que se pode prosseguir até ao infinito, na sequência do
acto de se querer focar um ciemcnto qualquer de um barroco quai-
quer. Enfim, como já se disse, continua a ser criticáve) a sobreposição
do aparato formai sobre a história concreta em demonstração do facto
dc que aos vários formaiismos subjaz no fundo uma JÍ/oM/ia da /,/j-

. soiução para o probiema ainda surge a dc


Ancesch.( ). Em várias intervenções históricas, hoje recoihidas em A
Mfcm rio òarrcco, Anccschi, acompanhado, entre outros, também por
Francastci e Wellck("), propunha que se considerasse p barroco como
Sistema cuiturai, configurado por várias componentes formais, mas a
partir dc uma sua descrição Aij/dríca determinada. Só depois dc se ihc
ter construído teoricamente, mas ao mesmo tempo historicamente, os
coníms e as características é que se poderá aiargar a sua função heu­
rística a outros tempos, movimentos, sistemas cuiturais. Dc facto, tor- .
nava-se já c!aro a Anccschi um princípio fundamental das ciências hu- '
manas em accpçao moderna: a saber, que todo o fenômeno anaiisado é ^
sempre, enquanto analisado, um fenômeno construído pelo analista e
^rtantp^transrcrívcl para lá da própria colocação espacial e temporal
O prmctpio de controlo e dc garantia ainda era, no entanto, o da de"*"
Imiçao e delimitação do fenômeno como surgido na história. Assim,
para chamar «barroco» a qualquer acontecimento cultural, o procedi­
mento continua a ser o da comparaç3o com o acontecimento historica­
mente definido, até mesmo através dc princípios formais.
E uma solução mais do que correcta. Mas talvez n3o seja a única.
Podc-sc-lhe contrapor realmcntc uma proposta tão coerente como ela
isto e, tornar «rigoroso» o formalismo, evitando-se tanto a contradição

nh, A "'cschi, òarocco, Nuova Alfa Editoriale. Bolo-


Táia. 1984, que recolhe os estudos de Anccschi sobre o barroco publicados em
1 ^ ^ ^ ""cia- cm particulj, com o /?ap-
K r s 'e o u c ^ l ° ^ 'ntroduçào à edição italiana dc
d!.Sele e ^ ib ant.crocana autorizada da Itália a propósito

lim iÜ ^ ^ e a ste l. «Limites chron.l.giques, limites gíographigues et


bnutes s.ciales du Bar.que», m Enrico Casteli (organizado po^. c

iirra /eiicrarm, citado por Anceschi, <p. cá.

3.? CFSM-CENTRO CE ARTES E LETRAS


S A L A D E E S IU D O S
com a historicidadc como a dcbdidadc de situações classificativas ca­
suais e empregadas dedutivamente. Será este o critério que tentaremos
adoptar nestas páginas c que muito sumariamente pode ser assim des­
crito. frMHO- anaiisar os fenômenos de cuitura como textos, indepen-
dentemente da pesquisa de explicações extratextuais. fecundo/ identi-
Hcar neles morfologias subjacentes, articuladas em diversos níveis de
abstraeçáo. 7*ertío.- separar as identificações das morfologias da dos
juízos de vafor de que as morfologias estão investidas pelas diversas
culturas. Quarto.' identificar o sistema axiológico das categorias de va­
lor. Quinto.' observar as duraçõex c as dinâwicos tanto das morfologias
como dos valores que as investem. 5cxto.* chegar á definição de um
«gosto» ou de um «estilo» como tendência para valorizar certas mor­
fologias e certas dinâmicas suas, talvez através de procedimentos va-
lorizadorcs que tem, por sua vez, uma morfologia c uma dinâmica
idênticas às dos fenômenos analisados. Como se vê, a historicidadc
dos objcctos é limitada a um «aparecer na história», quer como mani­
festação de superfície (também variável em cada tempo, tal como num
mesmo tempo), quer como efeito de dinamicas morfológicas. Já nao
se trata de confrontar, nem que seja formalmcntc, momentos diversos
c isolados de factos historicamente determinados, mas sim de verificar
a diferente manifestação histórica de morfologias pertencentes ao
mesmo plano estrutural. A história é vista como local de manifesta­
ções de diferenças, c não de continuidade, cuja análise empírica (c não
dedutiva) permite encontrar modelos de funcionamento geral dos fac­
tos culturaisf^).

(") Por outras palavras: um qualquer facto cultural tem uma sua manifes­
tação concreta e precisa, que é a sua «forma» na acepção tradicional c genéri­
ca do termo; mas os factos culturais também tem «formas» subjacentes mutto
mais abstractas, que fogem aos modos com que os factos isolados «surgem»
nas épocas específicas; neste sentido, pode supor-se que cm tempos diferentes,
mas também no mesmo tempo, surgem «formas» que diferem entre si enquan­
to pertencentes a um mesmo conjunto lógico, as classificações. Um exemplo,
neste sentido, é dado pelo trabalho de James Sacré sobre o mancirismo e o
barroco. De facto, Sacrc chega a dar-lhes definições formais (mancutsmo:
poética das categorizações conflituais; barroco: poética da suspensão das opo-
sições) que são gerais c concretas, ao mesmo tempo. Cf. James Sacré, P<w
une dé/initton sémioti^ae da ntaniérisnte et da bareque. in «Actes sémtoUqucs
(Documcnts). 4, 1979; id., í/n rung manièriste, À la Baconnicrc, Neuchâtel,
1977; sobre este tema, podem também ver-se as actas do simpósio internacio­
nal dá Chicago University, baroíyaer Mode/s and Concepts. 1978 (mimeogra-
fadas).

34
4. As categorias de vaior

A diferença mais marcada cm relação aos formalismos tradicionais


está em não conceber um estilo ou um gosto simplesmente como so­
matório de formas, mas tambóm como tendência para o investimento
de valores. Os valores, por outras palavras, não são considerados re­
sumidamente como mais ou menos /verenter neste ou naquele fenô­
meno, mas sim como a/ríÒMior reflexivamente a cada manifestação
discursiva, ou como atriÒMKM exteriormente a cada metadiscurso ava-
liativo. Por outro lado, cada juízo de valor, enquanto consiste num
gesto de atribuição, contempla também um aspecto «polemico», o u ,
seja, a rejeição da ou das atribuições concorrentes. Que se trata de atri­
buições de valores é testemunhado pelo próprio termo «valor», que é
necessariamente categorial, isto é, manifestação de uma polaridade, de
uma diferença. Não só: uma ulterior dimensão «polêmica» c constituí­
da pelo facto de que as categorias de valor não investem os lenómenos
sozinhos, mas sim em companhia. Um juízo estético é quase sempre
acompanhado por um juízo ético, ou passional, ou morfológico. E rc-
ciprocamentc. Assim, poderemos dizer que cada indivíduo, grupo ou
sociedade não só atribuem valores isolados, como também homologa­
ções entre diversas polaridades avaliativas. De um ponto de vista so­
cial, este é um facto da máxima importância: a maior ou menor rigidez
das homologações dá não só a medida da quantidade e qualidade do
controlo social sobre comportamentos individuais, como também a
medida da forma da reflexão filosófica sobre a sociedade c sobre a sua
natureza. Não é por acaso que desde Platão aos nossos contemporâ­
neos encontramos na história do pensamento filosófico tentativas pe­
renes de construir classificações das categorias do juízo.
Não é este, de facto, o local para se tentar fazer um balanço de tal
constante filosófica, nem de propor uma ulterior incursão a ela. Mas é
caso, todavia, de notar como cada axiologia avaliadora é então o resul­
tado de uma alguma proposição que contém termos linguísticos. Os
valores estão por isso já contidos na linguagem c podc-sc-lhc articular
um sistema semântico c sintáctico coerente. A tentativa de muitos filó­
sofos de propor um «sistema de categorias», como o de Aristóteles, ou
de Kant, ou os exclusivamentc estéticos de um Roscnkranz ou de um
Olanché(^), pode, cm suma, rcsolvcr-sc no plano da análise linguísti-

( ) Aristóteles, Ca/egorÚK, ed. Minuo-Paluello, Oxford Univcrsity Press,


Oxford, 1949; Inmtanuel Kant, A*ránt: ret/Myt Ver/mu/l, 1781; Karl Ro-

15
ca. Sc, de facto, tomarmos os quatro âmbitos de juízo mais tradicio­
nais, o do bem, o do beio, o do passional e o do juízo de forma, acha­
remos que todos se articulam através de categorias qprecíartvar, como
lhes chamava AristótclcsC**), susceptíveis, por outro lado, de expan­
são, segundo o princípio do quadrado semiótico(^). Os valores passio­
nal (tímico) e morfológico, por seu turno, apoiam-se em categorias
aparentemente (sempre para permanecermos em Aristóte­
le s)^ ), onde não aparece apreciação por parte de um sujeito do dis­
curso: parecem descrições da natureza de uma forma e de uma paixão.
Qualquer termo avaliativo, como sugeriu para este caso Robcrt Blan-
ché nas Categoriar vem da combinação de marcos semânti­
cos provenientes da expansão das categorias, e não do entrecruzar de

senkranz, AestAgtd: des 7/dss/icAen, Kõnigsberg, 1853 (trad. it.: Estética dei
òratto, 11 Mulino, Bolonha, 1984); Robert Blanché, Ees catégories estMti^üg.s',
Vrin, Paris, 1979. Cf. sobre o tema também Jean Lacoste, E idee de &e<3M,
Bordas, Paris, 1986; Muricl Gagnebin, Fascittation de /a iaidear, !'Age
d'Homme, Lausana, 1978.
(^) Aristóteles, cp. cit., 16, 25 e segs.
("3) O quadrado semiótico é um esquema lógico com quatro posições,
configurado segundo dois eixos de termos contrários (horizontais), dois ter­
mos contraditórios (diagonais) e dois de implicações (verticais), como na figu­
ra seguinte:

con trários

Ele revela-se de particular utilidade para «expandira a articulação de uma


oposição qualquer. De facto, o esquema permite «vcr« conjuntamente tanto as
oposições semânticas como as gramaticais, que se exprimem mediante a nega­
ção lexical («negro» nega «branco») e a gramatical («não branco» nega «bran­
co»). Por outro lado, são não só visíveis as implicações (a asserção «x é ne­
gro» implica a de que «x é não-branco»), como também as combinações ao
longo dos eixos da contraditoriedade (complexo: «x é branco e negro»; neu­
tro: «x é não-branco c não-negro») e das implicações (x é branco e não-ne-
gro»; «x é negro e não-branco»).
categorias diversas c, enfim, da contcxtualização de um discurso^?).
Assim, a temática dos vaiores possui uma dimensão semântica pre­
cisa, que pode encontrar-se em tipos de discurso a que chamaremos
precisamente «discursos valorativos». Estes respeitam tanto à produ­
ção de textos como à sua recepção: o vaior, de facto, d guardado como
«memória futura» (como já se disse) cm cada texto, ta! como cm cada
metatexto. Aquiio a que com frequência chamamos «gosto»)ó prccisa-
mente isto: a correspondência mais ou menos confiitual de vatores
presentes nos textos e nos metatextos; a sua homoiogação segundo
«percursos» específicos no seio do sistema de categorias; o eventuai
entre formas textuais e formas dos supracitados percur­
so s^ ).
Vejamos muito genericamente o funcionamento do sistema catego­
ria! apenas aflorado. Tomemos, por exempto, a seguinte tabela:

CATEGORIA JUÍZO SOBRE VALOR VALOR


POSITIVO NEGATIVO

morfológica forma conforme disforme


ótica moral bom mau
estótica gosto belo feio
túnica paix3o eufórico disfórico

(") As categorias «apreciativas» pressupõem um sujeito ajuizador que


exprime uma preferência; as categorias «verificadoras» implicam o simples
reconhecimento de uma qualidade.
f Por outras palavras, qualquer predicado de um objecto que seja predi­
cado de valor consta de um adjcctivo. O adjcctivo é o resultado de uma com­
binação de traços semânticos, cuja globalidade c regulada pelas categorias, pe­
la sua articulação lógica em degraus, pelo cntrecruzar de categorias diferentes,
pela intcracção com outros traços semânticos que pertençam ao contexto em
que o adjcctivo é emitido. A fonte linguística e lógica de uma tal postura é
evidente. Basta pensar que e de um modo muito semelhante que funciona a
.SánantnyKe sn-MtMra/e de Algirdas J. Grcimas (Larousse, Paris, 1966; trad. it.:
Se/nanncnstrMMMrníe, Rizzoli, Milão, 1969).
("*) Entende-se por «isomorfismo» uma analogia ao nível da forma pro­
funda entre objectos pertencentes a sistemas diversos. Em linguística, fala-se
de «isomorfismo» quando as estruturas do plano da expressão e as do plano

37
Na primeira coiuna, inscrevemos os nomes das categorias, na se­
gunda o objecto do juízo, ao passo que na terceira e quarta coiunas es­
tão os pólos da disjunção categorial. Eles têm um «valor» positivo ou
negativo, mas por vezes o significado de «valor» é simplesmente posi­
cionai. Ele assinala de facto as posições segundo um eixo de contradi-
toriedade dos dois termos. Mas tambóm é verdade que um ml valor
«vazio» se toma de igual modo «cheio» quando e feito atravessar por
uma outra categoria, oblíqua em relação à da tabela, ou seja, a catego­
ria «apreciação»/«dcprcciação». Neste sentido, «positivo»/«ncgativo»,
que classificam as polaridades, tomam-se verdadeiros juízos de valor.
Mas tudo isto depende da atribuição do juízo ao seu objccto. O que
significa que «positividade»/«ncgatividadc» não são marcos fixos à
cabeça das duas colunas, mas variáveis. Assim, a tabela aqui apresen­
tada é M/n tipo de juízo, mas não o único. Acrescentemos agora uma
segunda consideração. O tipo de juízo expresso pela tabela põe em or­
dem, homologa, classifica certas polaridades com certas outras. É por
isso, também ele, no seu conjunto, um tipo de sistema axiológico, mas
não o único. Outros tipos poderão homologar as polaridades catcgo-
riais de outro modo, por exemplo, invertendo de vez cm quando o va­
lor de cada um dos termos. Finalmcnte, a última observação. A tabela
perspectiva uma lista de categorias. E dissemos que elas passam por
vários tipos de homologações. Mas a homologação não acontece sem­
pre ao mesmo tempo. É o discurso que a constrói. Discurso que tam­
bém se lança, pois, a pôr cm fila os termos catcgoriais, partindo habt-
tualmcntc de um deles. Por exemplo, o verso «belo era, louro, e de
gentil aspecto» parte da categoria estética para a homologar com a
morfológica e a tímica, às quais depois outros versos acrescentarão a
""ética. O discurso, por outras palavras, canaliza os valores, partindo de
u m a j^ p e c íiv a valorativa. Assim, são as diferentes homologações e
as diferentes perspectivas que permitem construir diversas tipologias
de sistemas axiológicos.
A par das notas precedentes, deve também assinalar-se que homo-
logaçõcs e perspectivas não funcionam apenas segundo as bipolarida-

do conteúdo são idênticas. Cf. Luis Hjelmslev. OwAring spragtcort^s grtanf-


iacggcise. Ejnar Munksgaard. Kobcnhavn. 1943 (trad. it.: //bfKÍamznn deHa
ífw-ta Jc/ /mgaaggia, Einaudi. Turim. 1968). Também Michcl Serres usou
uma noção semelhante, a de «isomorfia», para definir analogias morfológtcas
entre objcctos que têm aparência formal diferente (cf. Michel Serres. Esthén-
gaessta- Carpaccia, Hermann, Paris. 1975).
des dos contrários. Cada categoria pode, de facto, expandir-sc segundo
o procedimento do quadrado semiótico, mostrando possibiiidadcs de
neutralização, complexificação, deixij. E, finalmente, mostrando tam­
bém possibilidades de .wpe/Máo, quando os termos em conflito não
recebem valorização «cheia» em relação à valorização «vazia» que,
apesar de tudo, os diferencia^). Estas últimas reflexões levam-nos
também a reparar como as várias tipologias resultantes dos modos de
construir as axiologias de valores mostram muito bem a função «so­
cial» das mesmas axiologias. Não inutilmente, poderemos sublinhar
como fases históricas socialmcntc muito ordenadas impõem homolo­
gações e perspectivas homologadoras bastante rígidas, enquanto fases
mais duvidosas ou permissivas opõem uma certa liberdade ou relaxa­
mento de juízos de valor. A chamada «evolução dos costumes» lá está
para demonstrar a bondade do assunto g c r a lf).
Aquilo que conta, portanto, é que no caso que aqui nos interessa,
ou seja, a construção de axiologias a partir da perspectiva estética, o
mecanismo funciona como o descrito mais acima. E é sobre esta base
que poderemos tornar a opor, nas páginas que se seguem, um tipo de
gosto «barroco» a um «clássico». Por «clássico» entenderemos subs-
tancialmcnte categorizações dos juízos fortemente orientadas para as
homologações estavclmentc orientadas. Por «barroco» entenderemos,
pelo contrário, categorizações que «excitam» fortemente a ordenação
do sistema e que o desestabilizam em algumas partes, que o submetem
a turbulências e flutuações e que o suspendem quanto à resolubilidadc
dos valores. Com isto, naturalmcntc, fechamos a última porta aberta
nos confrontos da história. Porque a história consente apenas que se
verifique empiricamente o aparecimento de formas cm competição so­
bre uma c outra vertente das duas grandes oposições entre clássico e
barroco, e não que se analisem pontualmcnte as suas figuras (estas
sim, historicamente determinadas). Mas não se torna de modo algum
na/onte de uma classificação exclusiva.

Ç") Pode realmente intcrprctar-sc a articulação de uma categoria tanto do


ponto de vista semântico (o valor c um significado atribuído a um objccto),
como do sintáctico (o valor 6 uma posição de um termo em relação a outros).
Cf., por exemplo, Claude Zilberbcrg, éc.r modrt/úés tensives, Bcnjamin, Bru­
xelas, 1979.
(M) A mudança do «comum sentido do pudor» é um exemplo típico. É
verdade que o «pudor» é um traço comum de uma sociedade, mas os factos
que o assinalam são sempre diferentes, conforme o valor que aquela sociedade
lhes dá.

39
Pronto: dei com isto a úitima definição do procedimento com o
quat este ensaio prosseguira. A pesquisa do «ncobarroco» terá por ob-
jcctivo «figuras» (isto é, manifestações históricas de fenômenos) e por
tipificação formas (modeios morfoiógicos em transformação). Dc!a
obteremos uma geografia de conceitos que nos ilustrarão tanto a uni­
versalidade do gosto ncobarroco como a sua especificidade cpocal.

40
II

RITMO E REPETIÇÃO

t Hcplicantes

t !á uma metáfora no filme R/ar/c que pode servir para as


observações que se seguem. Trata-se da figura dos «replicantcs»0,
que nascem como robôs perfeitamente semelhantes a um original, ò
homem, do qual melhoram algumas características mecânicas (a força,
por exemplo), mas que depois se tornam autônomos do origina), e
i.mthcm prcferfvc! a ele sob o ponto de vista estético c sentimental.
! "t suma, a oposição é entre «autômatos» e «autonómicos». Pois bem
se apenas experimentássemos pensar nos mesmos termos nos produ­
tos de ficção dos mais modernos meios de comunicação social, poder-
se ia extrair dc)es a mesma filosofia: os «rcplicantes» (filme de série,
tvtcfihne, rcwaAc. romances de consumo, bandas desenhadas, can­
hões, c por aí íora) nascem como produto de mecânica repetição c
optimixação do trabaiho, mas o seu aperfeiçoamento produz mais ou
"< "os involuntariamente uma estética. Ou melhor: uma estética da rc-

O senso comum quer que a repetitividade e a scrialidade sejam


consideradas, a seguir ao idealismo, mas também antes das vanguar-

( ) A palavra portuguesa utilizada para designar tais seres da ficção cicn-


!t c que também existe em inglês a qua! surge na tra-
dtição portuguesa de /Marte /?aw:er. Todavia, optámos por traduzir literalmen-
!<- a p.davra itatiana, dado o uso que Ornar Calabrese dela faz. (W. y )

^7
das históricas, no póio oposto c contraposto da originalidade e do ar­
tístico. A obra de arte 6 obra de arte quando é «irrepctívcl», ao ponto
de ser verdadeiramente «indizívcl»f) (isto 6, não repetívei, nem se­
quer num discurso sobre eia). Também na crítica corrente, a dos jor­
nais, acontece com frequência icr juízos sobre objcctos estéticos que
«repiicam» outros objcctos, tidos como arquétipos de uma série ou de
um gênero. No máximo, aprova-se quaiquer produto, admitindo-se
uma boa «artcsanaiidadc» sua, e concorda-se com a atitude de grupos
que eievam produtos de série ás fiiciras dos produtos de culto, mas só
porque estes, ao faze-lo, produzem um vaior estético que nao reside
nas obras cuitivadas, mas na atitude de fruição. A impressão que se
tem é que uma atitude deste tipo é ao mesmo tempo confusa, ultrapas­
sada e inadequada aos fenômenos da produção de objcctos estéticos
dos nossos dias. Confusa: porque aqueta atitude, que nao só é idealis­
ta, mas sobrevive cm muitas outras posições filosóficas, tende a sobre­
por, sem distinguir, diversas acepções de repetitividade. Ultrapassada:
porque a atitude de idealização da unicidade da obra de arte foi sem
dúvida subvertida pelas práticas contemporâneas, que já nos anos,
com a invenção dos múltiplos, davam o golpe de misericórdia no mdo
do original, e que com muitas realizações apelidadas de «pós-moder-
nas» exaltam a citação ou o pm/tc/ic. Finalmcntc, inadequada: porque
o preconceito impede que se reconheça o nascimento de uma nova es­
tética, a estética da repetição.

O É a bem conhecida posição da estética crociana, expressa por Bene-


detto Croce em Estética corne scienza de//'espressione e /ingaistica genera/e,
Laterza, Bari, 1928. Todavia, embora o idealismo de Croce esteja superado
nos tempos modernos, alguns traços permaneceram também na crtttca moder­
na Até em semiótica da arte se admite geralmentc que a descrtçao verbal de
uma obra não « d iz. a obra. e que está aqui a diferença entre o «vistvcl. e o
«dizívcl» cm relação a ela. Cf. Louis Marin et a/it, «La dcscrtpuon de 1 ima-
KC», CatrunanicatiarM, 15. 1970. Mas a cautela dos semtólogos deu lugar a
más interpretações, polêmicas, sobre a própria lcgmmtdadc dos estudos sc-
miológicos sobre arte e literatura, com oportunas «pulvcnxaçoes» de anttgas
aaere/as. já ouvidas nos anos 60. Cf. Altxrto Bcrardinelli. // "testtere deerm -
co. !1 Saggiatorc. Milão. 1983; Franco Brioschi. La carta de// vnpero, B Sag-
giátore, Milão, 1983; Donald Shattuck. «L'intcrpretazione letterana., Corna-
nità, 2,'1982.

42
2. Alguns conceitos gerais

Antes dc enfrentar mais concrctamente alguns princípios funda­


mentais da estética da repetição, será bom que nos detenhamos ainda
no quadro conccptuai adequado para a definir. Antes dc mais nada, é
necessário rever a ideia de «repetição». De facto, n3o há necessidade
de fazer confusão entre três noções: f) a repetitividade como modo de
produção dc uma serie a partir dc uma matriz única, segundo a filoso-
fia da industrialização; 2) a repetitividade como mecanismo estrutural
dc generalizações dc textos; 3) a rcpcLitividade como condição de con­
sumo por parte do público dos produtos comunicativos. Dctenhamo-
nos nos dois primeiros pontos.
O primeiro tipo dc repetitividade tem um sinônimo: cstandardiza-
ção. É aquele mecanismo, relativo à produção de objcctos (também os
do espírito), que permite reproduzir cm série a partir de um protótipo.
Remonta, como é óbvio, aos anos 30 do século XIX e à primeira in­
dustrialização americana e encerra com o taylorismo e o fordismof).
Requer, entre outras coisas, n3o só uma produção e difusão de réplicas
de um protótipo, como também a individualização das componentes
de um todo que sejam produzidas separadamente c cm seguida aglo­
meradas segundo um programa de trabalho. A cstandardixaç3o das
mercadorias é sempre acompanhada pela cstandardizaç3o das merca­
dorias intelectuais: sempre nos anos 30 do século XIX, é este o desti­
no dos jomais e dos folhetins; por volta dos finais do século XIX, s3o
Pulitzer e Hcarst que antecipam Ford; e hoje os meios electrónicos
instituíram a prática do palimpsesto, que mais n3o é do que um pro­
grama dc aglomeração das partes de um produto dc divertimento. É
evidente que a produção em série parte de razões dc optimizaç3o eco-

f ) Para um quadro de referência sobre a estandardixação, bastará que nos


lembremos do livro de Hcnri Ford, Ea /nia vita, Bolonha, 1925, que é uma re­
colha de ensaios esparsos reunidos numa só edição italiana. Um comentário
penetrante encontra-se em Mario Tronti, Operai e Capiiaie, Einaudi, Turim,
1973. No tocante à estandardixação intelectual, os clássicos são Edgar Morin,
Ee (aésir, Scuil, Paris. 1962 (trad. it.: Eindastria ca/taraie, 11 Mulino, B olo­
nha, 1962) c Jcan Baudrillard, Ee sysiéfne des aiyecis, Gallimard, Paris, 1968
(trad. it.: // sisíe/rta degii aggeiii, Bompiani, Milão, 1969). Mais recente: A l­
berto Abruzzese, Saciaiagin dei (avara inieiieitaaie, Marsilio, Veneza, 1980;
Ornar Calabrese, «Le comunicazioni di massa fra informazione e organizza-
zione dei consenso», irt Nicola Tranfaglia (da responsabilidade dc), La .Storia,
Utct, Turim, no prelo.

43
nómica. Basta pensar na cada vez maior fragmentação em pequeníssi­
mas porções dos tclcfilmes americanos actuais para oferecerem a má­
xima cadência de publicidade. Mas é decerto igualmcntc evidente que
a seriaüdade serve também muitíssimo bem para o controlo social. A
redução a componentes elementares c atômicas garante, dc façto. o re­
conhecimento dos produtos acabados c(a_rcgulação «pedagógica»Jdos
sistemas dc valores correspondentes. O jutzõTScõlógico de falta dc
qualidade dos produtos em serie deriva claramcnte daqui: da recusa de
uma baixa da inventividade por razões econômicas e da rejeição da
criação de um consequente consenso social.
Mas existe um segundo conceito de repetição, que é aquele que
concerne à estrutura do produto. Aprofundemos-lhe a definição, põr-
que mais uma vez o risco é o dc abarcar com o termo «repetição» uma
serie dc fenômenos que são, pelo contrário, muito diferentes. Cha-
mam-sc repetições, de facto, não só as continuações das aventuras de
uma pcrsQoagqm, mas também os recursos semelhantes da história,
como o^ temas qu os ccnários-tipo. Tanto os decalques, como os wes­
terns da sSríe B, como as citações ou rcaparições de fragmentos stan­
dard. como «velha cidade texana», ou a «astronave em órbita terres­
tre». Digamos agora que o conceito dc repetição se articula melhor
conforme os parâmetros postos em jogo. Nem sequer se poderia falar
em repetições, de resto, senão despedaçando a rede de modelos com a
qual analisamos os fenômenos, que é prccisamcnte através daquela re­
de que se tomam não já indivíduos localizados, mas sim estados de
coisas abstractos, utilizados como padrões. ,_^
5 primeiro parâmetro pode ser a relação que se instaura entre um
texto e vários textos, entre aquilo que se pode perceber como idêntico )
c aquilo que se pode perceber como diferente. Teremos então duas^J
formulas repetitivas opostas, a variação & ton iãcn/ico e a iãcnririaãc
ãoy mais ãi/cren/esf). Arranjemos exemplos, limitando-nos ao uni­
verso dos telefilmes, que parece ser o terreno mais natural para exem-

C) Para um exame sumário das noções de «identidade» c dc «diferença»


em sentido científico, remeto para a voz homônima de Fernando Gil, in E/rcr-
ci<%?e4<a. Einaudi, Turim, 1979, vol. 6. Quanto ao aspecto filosófico: Gilles
Dclcuze, Di/jercfiCg gr répéritáyn, Prcsscs Universitaircs de Francc, Paris,
1968. Um bom quadro de referência sobre a crise da noção pode encontrar-se
em Maurtzio Fcrraris, Di/jerenze, Multhipla, Milão, 1982. Cf. também Claude
Lcvi-Strauss, Í'i4enriré, Prcsscs Universitaires de France, Paris, 1977 (trad.
it.: Z/i&yrrirà, Sellcrio, Palermo, 1979).

44
plificação. No primeiro caso, podem colocar-se aquelas obras em que
o ponto de partida é um protótipo (ponhamos: /?ót-nn-7m . Taxxie c o
tenente Co/ow/w) que é multiplicado em situações diversas. No se­
gundo, meteremos, pelo contrário, aqueles produtos que nascem como
diferentes dc um original, mas que resultam idênticos (exemplos: f e -
rry Afaron, /ronxiJc e ^fawi/u/:y,' Barelta e O Ca/ninAo tíox E.s-
fre/ax e GaMctíca,' Da/íox c Dí/taxfía).
No interior dos dois grupos, no entanto, é útil inserir um parâmetro
ulterior. Este consiste na maneira de ligar a descontinuidade do tempo
do relato com a continuidade do tempo relatado e do tempo da série.
Teremos então duas fórmulas de repetição: a acía/in/ação e a proxxe-
CMçãof). A primeira pertencem aqueles episódios que se sucedem sem
nunca porem cm jogo o tempo integral da serie, como acontece com
^axxie ou com Ein-Tm-yirt. À segunda pertencem aquelas séries em
cujo fundo, e explicitamente, aparece um objectivo final, como em A
ContyMÍxm <% <? Oexte, ou em A Gnerra Exffe/ax, ou em O /ncrfveí
f/w/Á:, nas quais o tempo da série é escandido precisamente pela lentís­
sima aproximação da Califórnia por parte de uma caravana dc pionei­
ros, pela procura de um antídoto para as terríveis mutações de Hulk,
pela finalidade dc encontrar um planeta habitável para um grupo de
sobreviventes da Humanidade.
Mas deveremos acrescentar ainda um terceiro parâmetro. A saber,
aquele que é constituído pelo nível no qual se instituem as repetições e
as diferenciações. Abramos um parêntese. Faz tempo que a semiótica
narrativa demonstrou como em qualquer relato existem estruturas sub­
jacentes mais profundas e mais abstractas do que a superfície daquilo
que se relata. Greimas, em particular, apontou que uma narrativa se
desenvolve manifestando histórias que têm diferentes níveis de estru­
turação em profundidade. Há um nível de discursividadc. Há um nível
de verdadeira estruturação narrativa. Há um nível ainda mais abastrac-
to, definido còmo «fundamental». É evidente que os níveis mais pro­
fundos são os que reduzem a complexidade a estruturas cada vez mais
elementares. Pois bem, o facto de que estas se repetem tomar-se ób­
vio, e também co-nccessário â teoria. Mas não é relevante para o fim
de se compreender o eventual significado da repetição. Aquilo que in­
teressa, pois, é precisamente o nível discursivo. Aquele que aparece

O Com terminologia diferente, mas análogo conteúdo, cf. Fausto Co-


lombro, «Déjà vu», ín Francesco Casctti, ÍAfaára vo/fa ancora, Eri Roma
1984.

45
repetido é, de facto, substancialmcnte uma configuração quaiquer.
Mas eis que também neste estádio podemos encontrar modos diferen­
tes de repetições. Um modo icónico estrito (o herói tem os oihos azuis,
ou então a astronave é mostrada em órbita terrestre, ou então o poifeia
fala com sotaque meridional); um modo temático (aí estão os bons e
os maus que se defrontam nos negócios, como em e Dina.Ma;
ou, no campo da má vida, como em Miarm' Vice); um modo narrativo
de superfície, de natureza dinâmica (e temos encenaçõcs-tipo, como a
perseguição, o assalto â diligencia, o beijo). Os tipos de repetição des­
tes três modos fornccer-nos-ão ulteriores classes, como o íiec<7Í<yue,
quando vemos repetição total, ou a reprwÍMçáo. quando, ao contrário,
algum modo foi omitido. Na primeira classe poderemos colocar, por
exemplo, O Ca/nm/to Extre/ay e Ga/dctíca e na segunda DaMzr e
DinaMa.
Retomaremos mais tarde estas definições. De momento, elas ser­
vem para sublinhar como as classes ate aqui esboçadas são todas ho­
mogêneas cm relação a dois nós problemáticos principais. O primeiro
concerne ã questão do tempo. O segundo pertence à dialéctica entre
identidade e diferença. O tempo é posto em jogo no momento em que
reflectimosjsohrc a facto-de que afinal não é assim tão interessante
descrcvdç o <yMç é é reggd^p/Mas é rclcvantíssimo definir qual é a
ordem da repetição^). Desde os Líricos gregos ate ao Círculo & Pra­
ga ,!lcTacto, ê bem conhecido que a repetição é o princípio organizati-
vo de uma poética, mas com a condição de se saber reconhecer qual
será a sua ordem. No pensamento antigo, conforme observou Emite
Bcnvénistef), existia um termo para definir tanto a ordem estática
como a ordem dinâmica da repetição: o rtPrto correspondia à ordem
dinâmica e o e.s'<7Mc/Ma â estática. Ritmo e esquema eram, em suma,
quase sinônimos e por isso estreitamente intcr-rclacionados entre si.
Só que o esquema corresponde ao instrumento modular de articulação
do objccto, e o ritmo é, pelo contrário, o seu instrumento formular. O
esquema corresponde à medida espacial, o ritmo à medida temporal.
Para o dizer cm termos musicais (com os quais também hoje é con­
siderado), o riuno é, cm suma, a /r e g ê n c ia ríc aw/caá/ne/ío peridcíico

(') Cf. Stcfan Amsterdamski, «Ripctiziono>, in Enciclopédia, Einaudi,


Turim, 1980, vol. 12; Fernando Gil, CiaMi/Icazione, i6i&vn. vol. 2.
O Emile Bcnvcnistc. EroNc/nar Je iingaisrayae generaie, Gallimard, Pa­
ris. 1966 (trad. it.: froM ew i di iingaiytica generaic, 11 Saggiatore, Milão,
1972).

46
& cardc/cr ottda/atrárto. cotrt wdxttnoj e tnmtwo^' repe/tdoj a tw/erva-
/<?^ regM/arej, ou então ainda 6 a ybwtrt tew^ora/ na ^tta/ todo.r <?.r
tne/nòwy repe/tdos surgem dtverH/tcado.! num ou mais dos seus a/rt-
/rn^osf). Mas sc insistimos no conceito de repetição do ponto de vista
do ritmo, eis que, a maneira dos formaiistas russos nos confrontos da
poesia, nos projcctamos automaticamente para uma concepção da re­
petição em chave estática. Poderemos, de facto, definir as diferenças
de ordem repetitiva como diferenças de ritmos, e, tai como na história
da arte fizeram Wõiffiin, FociHon e Kubier, chegarmos a considerar as
variações de ritmo na história do tcicfiimc como variações de forma
cstóticaf).
O segundo nó ó a diaicctica entre identidade c diferença. Podemos
insistir ainda no facto de que n3o nos interessa muito o <ytte é <yue e re-
pe/tdo, quanto à maneira de segmentar as componentes de um texto e
de as codificar para sc poder cstabcicccr um sistema dc invariantes,
sendo tudo aquiio que não reentre neias definido como variável inde­
pendente. Ora, é frequente que as disciplinas cstruturaiistas sc ocupem
dos sistemas de invariante c dcscurem as variávcis('°). É uma iacuna,
pois a anáüse da rciaçao entre invariante e variávei c fundamentai para
sc compreender o funcionamento dinâmico (e n3o apenas a estrutura
estática) de quaiquer sistema. Eco encontra-se entre os poucos que,
pcio contrário, se deram conta dc tai diaióctica, tanto que ao descrever
o mecanismo da invenção de códigos faia de uma reformuiaçao da for­
ma da expressão, ou da forma do conteúdo, ou de ambas ao mesmo
tcmpo("). A constituição de um novo estiio e de uma nova estética,
por outras paiavras, c considerada como dinâmica dc um sistema, que(*)

(*) Tomo a definição de ritmo no sentido musica] de Gino Barratta, «Rit­


mos, in Enctc/aped/a, Einaudi, Turim. 1981, voi. 12; Jcan-Jacqucs Naticz,
Ritmo-Mctro». in Ene/c/aped/a, Einaudi. Turim. 1981, vol. 12. A noção de
ritmo foi. todavia, muito bem estudada cm linguística c semiótica. Veja-se,
por exemplo: Hcnri Mcschonnic, Ee Eyt/r/ne, Klincksicck, Paris, 1980; id. et
u/ú, Ee //yt/nne. Colóquio dc Albi, Albi. 1983; Marco Jacqucmct, Mater/efs
pottr ane dófm/tion da ryt/:/rte, tb/dern,' Ivan Faragy, Ea npet/z/ane creat/va,
Dcdalo. Bari, 1982.
(') Trata-se das análises formais de Focillon, op. cá., e, mais rccentcmen-
te. dc George Kubier, 77re .STrape q fy /m e, l^rinccton University Press. Cam-
bridgc, 1975 (trad. it.: Ea/br/na de/ tcwpa, Einaudi, Turim, 1978).
('") Jean Pctitot sublinltou-o, c muito bent, em «Sémiotiquc et theorie des
catastrophcs», in Actey ye/nia;içac.s' /Dacarnent.;), 47-48, 1983.
(") Umberto Eco, Yrattata d/ .re/ntbtíca genera/e, Bompiani, Milão, 1975.

d7
passa de um estado para outro reformulando as relações entre as mes­
mas invariantcs c os princípios para os quais se considerará variáveis
os elementos não pertinentes ao sistema mecânico. Como se vê, tam­
bém do ponto de vista da dialéctica entre identidade e diferença o nos­
so alvo diz respeito ao de uma possível definição estética de um siste­
ma (no caso: o de um telefilme) em progressiva evolução através de
estados descontínuos.
Também nos referimos, no início do parágrafo, a um terceiro gru­
po de acepções de receptividade, aquele que investe a esfera do con­
sumo. É frequente entender-se como repetitivo um comportamento
rotineiro solicitado pela criação de situações de expectativa/ofcrta de
satisfações sempre iguais. É o comportamento que Eco definiu como
«consolador»('i), porquanto assegura o sujeito, fazendo-o encontrar
aquilo que já sabe e a que está habituado. Mas estas são outras formas
de comportamento repetitivo de consumo. Por exemplo, existem hoje
cada vez mais fenômenos consistentes de revisitação cultuai do mes­
mo espectáculo (o exemplo mais cabal disto é o /?oc%y //orror Picmre
SAow, que cm certas cidades tem estado a ser repetido há anos no
mesmo cinema, e que deu origem a espectáculos dentro do espectá­
culo, com a intervenção organizada do público durante a exibição da
película). Uma terceira forma, enfim, é aquela que foi baptizada de
«síndrome do botão», que consiste na obsessiva mudança de canais,
de modo a apanhar, em rápida sucessão, uma série de programas dife­
rentes, desenvolvendo reconstituições simultâneas a cada mudança de
cena. O hábito, o culto, a cadência, são assim três comportamentos re­
petitivos, mas cada um deles tem implicações diferentes. N o primeiro
caso, estamos perante um comportamento «proppiano»: a criancinha
quer ouvir a mesma fábula. No segundo, o comportamento não é de
puro consumo, mas sim de consumo produtivo, dado que o fruidor
acrescenta qualquer coisa de seu à própria modalidade do consumo.
No terceiro, o comportamento repetitivo adapta-se às condições de
percepção ambiental, torna-se fragmentado, rápido e recomposto só no
fim, como é fragmentado, rápido e recomposto só no final o panorama
da visão que o fruidor aprendeu a seguir (não é por acaso que o com­
portamento «obsessivo» é típico dos rapazes, que se «educam» com a
televisão de fim de tarde). .

('^) UrnticrK) Eco. í a Granara as.scave. Bompiani, Milão. 1969.


Por comodidade, vottamos a dar agora numa tabela as observações
d e s e n v o lv id a s a té e s t e p on to:

PRO DU ÇÃ O TEXTO C O N SU M O

m o d e lo in varian te e x p e c ta tiv a

p ad rão sé r ie c o n s o la ç ã o

o p c io n a l v a r iá v e l c o n s u m o p ro d u tiv o

Na primeira coluna estão os três elementos da repetição industrial


(produção): ou seja, a existência de um modelo, que é repetido num
padrão, mas que pode ser variado com opções (mesmo nas próximas
séries). Na segunda, estão os três elementos da repetição textual: a in-
variante, a série (os tipos) e a variável. Na terceira, estão os três ele­
mentos da repetição ao consumo: o sistema de expectativa dado por
um modelo ou por uma invariante, a repetição idêntica (consoladora) e
a repetição reorientada, isto é, o gosto pela variante consumidora de
um mesmo objccto.
O problema torna-se agora o de correlacionar as três áreas da re­
petição (produção, texto, consumo) para ver se existem (e quais serão,
evcntualmcntc) as ./iguraí dominantes na repetição simultânea, e se
elas configurarão, se investidas de um valor estético, a mentalidade
ncobarroca. Por outras palavras, poderemos achar a «fábrica televi­
siva», que já não se oculta como tal, um texto que exalta a lógica da
scrialidadc c um consumo que se faz «escolha de vida», estão estrei-
tamente ligados pela existência de códigos superiores do gosto, não
só propostos como modelos, mas também estabilizados como com­
portamentos no saber colectivo. O procedimento de que partiremos
será o de sair das estruturas repetitivas do texto, e em particular do
mais emblemático (o texto do telefilme), e em seguida compreender
se as variedades de modelos descobertos não terão também lugar nas
outras duas colunas, e se não possuem desde logo uma história in­
terna.
3. A ordem da repetição no teiefUme

O telefiime é, desde as suas origens, a miniaturização de um géne-


ro cinematográfico que ao princípio era um filme de aventuras, nas
suas variantes western, exótico, «de capa e espada». Produzido em sé­
ries compridíssimas, era construído tanto como variação do idêntico
como identidade de mais diversos. O modelo imperante, sendo o tcle-
filme um produto originalmcnte para rapazes, baseava-se na presença
de um rapaz, protegido por um animal inteligente (cão, cavalo, maca­
co) e por um substituto de pai muito heróico, quando não por um subs­
tituto de tio, carrancudo mas bondoso. Eis agora os diversos idênticos:
Rusty, Pcna-de-Falcão, o filho de Tarzan, o filho de Jim-das-Selvas; o
tenente Masters, Águia-Negra, Tarzan, Jim; o sargento 0'Hara, uma
porção de indígenas africanos; Rin-Tin-Tin, Cita, o Campeão. A estru­
tura dos episódios era sempre a mesma: cada episódio era uma história
completa e a serie não era dotada de história (não se sabe, por exem­
plo, qual a origem do Rusty dcRin-rin-7'ín, nem qual será o seu desti­
no). A série, em suma, era programávcl até ao infinito, porque o tem­
po de cada história éjD ^higlódcO y-s^nprc igual a si mesmo, c ne­
nhum episódio trazfmcmória de outroslO tempo relatado, por outro
lado, é exdemamcnKrvartável: um& história pode articular-se cm ho­
ras, dias ou meses, dado que conta só a unidade narrativa c temática
das partes funcionais, sem qualquer relação proporcional com uma
unidade de tempo narrado. Do ponto de vista da relação identidade/di-
ferença, os primeiros telefilmes eram frequentemente decalques (caso
típico o de Jim-das-Selvas, que é uma réplica de Tarzan) e outras tan­
tas vezes decalques parciais (desde o momento que o modo icónico
transmigra entre as diversas séries, quer como rostos de actores, quer
como características físico-morais). Muito mais frequente, no entanto,
é o caso da reprodução, baseado sobretudo na manutenção de algumas
identidades temáticas e narrativas de superfícic("). A nível temático,

(") Os semiólogos reconhecerão na terminologia genérica aqui utilizada


alguns conceitos que correspondem a noções semióticas mais precisas. Quan­
do falo de nível temático e de estruturas narrativas, aludo à teoria greimasiana
do «percurso generativo», segundo a qual cada manifestação apresenta uma
superfície discursiva, sob a qual estão prccisamcnte estruturas semionarrativas
de superfície e sob ainda estruturas profundas. Cada nível é, por outro lado,
constituído por uma componente sintática c por uma semântica. A tematização
pertence à componente semântica do nível discursivo. Cf. Algirdas, J. Grei-
mas e Joseph Courtés, Sémioii<7 Me. Dtch<WMÚ*c raisowte de ía t/téwíe dtt ían-

30
por exemplo, é sempre análoga a formulação da oposição bcm/mal: o
herói e o seu í t t # são totaimcnte postos sobre a vertente do bem, cada
um de!es com marcas precisas de reconhecimento; o anti-herói, peto
contrário, para provar a sua compieta maldade, não só é totaimcnte
mau, como também é anônimo. Os malvados não estão encarregados
de desempenhos fixos, mas sim de papéis móveis, sempre diferentes c
renovados, sem que deixem quaiquer memória de episódio para episó­
dio. Por outras paiavras: enquanto o bom é figurativamente invariávei,
o mau muda de figura. A nívei narrativo, as fórmuias de cada um dos
episódios são deveras rígidas. Sc tomarmos /?ÍM-y m-Vin como protóti­
po, encontraremos um esquema dinâmico fortemente repetido: Rusty
descobre por acaso uma ameaça ao fortim de que é a mascote, ou só
aos seus habitantes, tenta opor-se-ihe sozinho e não consegue, acorre
em sua ajuda o cão, que bioqueia a ameaça, pelo menos até ao mo­
mento em que o tenente Mastcrs ou o sargento 0'Hara, inicialmente
impedidos de eliminarem a mesma ameaça, possam intervir, decretan­
do a definitiva derrota dos inimigos. O nível dinâmico mantêm-se
idêntico na série, variando apenas as figuras, mas mantém-se idêntico
nas figuras em relação a outras variantes do gênero. Por exemplo: a
ameaça pode ser um ataque dos índios, uma traição, um ataque dos
bandidos, que são variantes em relação à série, mas são identidades
em relação aos locais conhecidos do western no seu conjunto. O nível
narrativo de superfície, por outro lado, rcpctc-se também entre séries
diversas, porquanto uma mesma estrutura pode pertencer igualmcnte a
7nrznn, fena-de-Fa/cão ou Z-assíe, ainda que o aspecto figurativo seja
nesses casos muitíssimo diferente.
Um segundo grande modelo de telefilme é o que Zorra e /vnn/iae
representam. Nestes, também a origem é desde logo diferente: ambos
são libérrimos resumos de livros. Zarra é mesmo um resumo duplo:
descende do herói criado cm 1919 pelo escritor norte-americano J. Mc
Cullcy, no romance A MnMiçáa de Capiífrana, mas também do filme
de Fairbanks Jr. /vanAae retoma, modifica e amplia as aventuras do

gnge, Hachette, Paris, 1979 (trad. it.: Se/n/ot/ca. Dtz/onar/o rngionata de/ta
naria de/ //agaagg/a, La Casa Usher, Florcnça, 1986); Joscph Courtcs, /;üra-
dachan à /a yé/m'ot/<yMe narrat/ve et di.scaar.sive, Hachette, Paris, 1977. Mais
adiante, faço referência a uni aspecto estático e dinâmico das estruturas. Na
realidade, oculto por detrás da ulterior imprecisão terminológica a implícita
referência a uma concepção «dinâmica dos sistemas^, como a que é proposta
por René Thom, A a M à é sp-aclare/te et /nwp/togénése, Dcnoel-Gonthicr, Pa­
ris, 1978 (trad. it.: á*trth///tà strMtíMra/e e mor/ogenes/, Einaudi, Turim, 1980).
herói homônimo de Waitcr Scott. A novidade deste modcio de telefil-
me consiste no facto de que, mesmo pressupondo uma existência da
personagem num locai enciclopédico fechado e definido, a trama ex­
plicita um horizonte de expectativa também finito. Enquanto a estrutu­
ra de cada episódio repete substancialmente a do modcio precedente, o
tempo geral da série, pelo contrário, muda. Dito por palavras mais téc­
nicas: enquanto toda a série é construída segundo um único programa
narrativo que prevê uma sanção final, cada um dos episódios é forjado
segundo programas narrativos habituais. As personagens têm um pas­
sado c um futuro: Zorro é o segredo de um nobre mexicano, Ivanhoe é
o segredo de um cavaleiro do rei Ricardo; os seus inimigos são usur­
padores do poder; o seu futuro é o restabelecimento da ordem legítima
das coisas. Cada história, então, embora autônoma, coloca-se como
uma etapa parcial de um objectivo final explicitamente relembrado de
cada vez. Começamos a ter, deste modo, não uma cadência dos episó­
dios, como também um ritmo da série, assinalado pela oscilação das
relações de força entre bons e maus e pela sua cic/ic:Wa&. A maneira
temática, entre outras, torna-se ao mesmo tempo mais rígida e menos
rígida. Mais rígida, porque os papéis temáticos se tornam estáveis
(também os maus são representados por figuras fixas). Menos rígida,
porque a diléctica bons/maus se articula mais. Estabiliza-sc muito aqui
o modo icónico, mesmo porque existe um saber sobre as propriedades
das personagens já depositado em outro local (o livro), no qual o tem­
po da série e as personagens são fatalmente assinalados. Por outras pa­
lavras, o sistema das invariantes é mais amplo a todos os níveis e as
variáveis são sempre mais microscópicas.
Chegamos agora a um terceiro modcio de telefilme, Ronanza,
cujos primeiros episódios foram precisamente dirigidos por Robert
Altman. Altman exibe uma grande invenção no seio do gênero we.v-
tera. A nível icónico, reproduz todos os marcos clássicos:
quintas, ^a/ao/f, cidade, igreja, bailes na praça, rebanhos, índios, pra­
darias, etc. Além disso, torna fixo um número elevadíssimo de prota­
gonistas: os quatro Cartwright, as duas mulheres fixas, uma dezena de
personagens de contorno. As variantes figurativas tomam-se assim
minúsculas, mas são surpreendentes: o velho da montanha, o pugilista
que veio de Inglaterra, o pistoleiro que se toma cego, o japonês que
ainda não se integrou, e muitos outros. Em suma, as variáveis são de
facto wMÍto independentes na iconologia bonanziana. Por outro lado, o
modo temático e o narrativo são extremamente libcrtos.de vínculos
Por exemplo, os papéis que personificam o bem e o mal estão em

32
constante redefinição. As encenações-tipos são cfectivamentc típicas
no início, mas chegam à revisão para o fim. Quanto à relação entre
empo do episódio, tempo da serie e tempo rctatado, também aqui as­
sistimos a importantes novidades de ritmo. Modifica-sc o tempo da sé­
rie: a moidura é em si mesma uma história, mas não um objectivo de
que se conhece a conciusão antecipadamente (pelo menos como possi­
bilidade disjuntiva: obtenção ou falência do objectivo declarado). Tra-
ta-se de uma historicidade interior à série não traduzida numa trama,
mas sim de um mecanismo de mutação que modifica o estatuto das
personagens de episódio para episódio, requerendo sempre ao especta­
dor que adapte o seu saber ao mudado-saber das personagens. Não se
pode então perder o apontiuneauiscmanal sem que nada aconteça.
Existe unQvínculo de continuidadej^nas que, no entanto, mantém o
significado dã fustória isolada,"-mesmo para o espectador ocasional.
Pensando bem, esta é uma das características mais fascinantes das sé­
ries americanas: a de saber ser a um tempo narrativa por episódios e
uma narrativa acabada c satisfatória. Neste sentido, a flexibilidade de
Bofianza é verdadeiramente arquetípica: sabe criar de imediato diver­
sos desníveis temporais: a história completa de cada episódio, a histó­
ria aberta da série, e um modcio intermédio que consiste numa história
aberta para um número definido de episódios. E um modcio que tran­
sitou, com vários aperfeiçoamentos, até aos nossos dias, sobretudo nas
séries-sagas, do tipo de A rio 0&s*?e.
O quarto grande modcio é Colombo. Aqui, não temos uma história
que fuja da moldura e continuamos aparentemente no caso da variação
do idêntico. Na verdade, há uma única personagem fixa com o seu
s ir # (por seu tumo, puramente de contorno, até à emblemática figura
da mulher do tenente, que jamais aparece em cena). Depois, ela repro­
duz-se sempre exactamente igual de episódio para episódio: com o seu
impermeável, com o seu automóvel amachucado, as suas maneiras de­
sajeitadas e o seu sotaque de italiano meridional. Temos aqui uma por­
ção do modo icónico fortemente repetitiva. Mas não existem outras de
grande variabilidade, como os adversários do herói, as situações, as
qualidades da cenas ambientais. Também os modos temático e narrati­
vo são muito padronizados: perfeição/imperfeição do delito, o delito,
ocultação das provas, descoberta do delito, luta de inteligência entre o
ocultador e o investigador, erro do culpado, o seu desmascaramento.
Todo o jogo, no entanto, consiste na variação subtilíssima, a nível icó­
nico, temático e narrativo, da fase em que Colombo, a partir das carac­
terísticas situacionais (por exemplo, a especialidade ou o passatempo

M i - C E M E ARIES E LETRAS
SALA DE ESI UDOS
em que o culpado é mestre) consegue bater o seu adversário mesmo
no plano das competências. O sistema narrativo chega a compreender
um altíssimo número de invariantes a cada nível. Tende também a fi­
xá-lo num limite máximo. Ao mesmo tempo, o número das variáveis,
potencialmente também altíssimo, tende ao máximo enquanto tal, mas
tende para o mínimo quanto a dimensões. As variáveis respeitam a
elementos do texto cada vez mais minúsculos: a qualidade do peixe
venenoso japonês utilizado como arma de um crime, o potencial alér­
gico de um creme de beleza, objecto de drama entre duas personagens
do meio da cosmética, o ano de colheita de um Porto saboreado duran­
te uma cena, e assim por diante. O alto número das invariantes, pelo
seu lado, permite também uma combinaçáo muito vasta de componen­
tes c um número geometricamente multiplicado de histórias possíveis.
As histórias de Coio/nòo são articuladas precisamente sobre o gosto
da variante e da combinação. A prova disto é que Coiomíw funciona
quase sempre como um exemplo de literatura oulipoménica, como um
«exercício de estilo» à Qucneau: cada episódio é, de facto, um exer­
cício sobre um tema assinado por um realizador sempre diferente (al­
guns nomes também são famosos, como Cassavetes, Boorman). Exer­
cícios sobre um tema, variações de estilo: é este o primeiro dos princí­
pios da estética ncobarroca, modelado precisamente sobre um geral
princípio barroco do virtuosismo, que em todas as artes consiste na to­
tal fuga de uma realidade organizadora, para se dirigir, através de uma
apertada rede de regras, para a grande combinação policêntrica e para
o sistema das suas mutações.
& Mas vamos agora ao quinto caso, que todos consideram, sem ra­
zão, como o protótipo modemo da repetitividade feita comércio, e
que, pelo contrário nos levará à identificação de uma segunda caracte­
rística da estética ncobarroca. Trata-se de Da/ías. Em Da/ías, parecem
sintetizar-sc perfeitamente os dois últimos modelos analisados. Por
um lado, a técnica de Altman sobre o tempo da série em dialéctica
com o tempo do relato e o tempo relatado. Por outro, a da variável re­
gulada de Colombo. Só que desta vez a organização se toma minto
complexa. Começamos com a relação identidade/diferença. Em Dní-
/ns, temos, antes de mais nada, um número altíssimo de invariantes fi­
gurativas: lugares físicos, propriedades das personagens, cenários-ti-
pos; a tal ponto alto que qualquer variável independente se pode tor­
nar, no correr de dois episódios, numa nova invariante do sistema.
Portanto, é extraordinariamente regulado o modo figurativo, mas em
prejuízo do modo temático e do modo narrativo, que sc tomam de

34
enorme eiementaridade. Só que tais elementaridades podem transferir-
-s e , com uma combinação extremamente improvável, para as várias
personagens. Estas são, de facto, articuladas segundo uma graduação
de flexibilidade. A primeira geração, a dos pais, é a mais imóvel e
igual a si própria, e pode possuir um baixo número de inter-rclações; a
segunda (a de JR) é flexível, mas mantem uma série de características
estáveis, embora podendo ter todo o gênero de relações com todas as
personagens; a terceira geração (a dos jovens) é flexibilíssima, sempre
no limiar entre ser constituída por personagens fixas ou por persona­
gens variáveis. Os diferentes tipos de relação são testemunhos de um
marco temático: são relações de família, de amor, de dinheiro (exacta-
mente como os temas dos horóscopos, ainda que a saúde falte, como
foi inserido nas últimas séries de aventuras da família Ewing). O re­
conhecimento da série é determinado pelo facto de que um sistema tão
complexo parta para a desagregação devido à multiplicidade de forças
internas. Trata-se então de saber como e porquê o sistema se arrisca a
manter-se igualmente estável, não obstante os safanões a que é subme­
tido por causa do seu dinamismo. Tal estabilidade depende de duas ra­
zões substanciais: qualquer percurso narrativo que invista qualquer
uma dos personagens é sempre circular; e cada uma das histórias par­
ciais (cada ciclo intemo) se desenrola como que sobre um plano de in-
tcrsecção em relação ao mapa do jogo das personagens estáveis, mas
recebe a projecção do mapa inteiro.
Vejamos isto melhor. Qualquer série de aventuras já não conduz a
personagem de uma posição para outra, antes a reconduz inevitavel­
mente ao ponto de partida no mapa. A circularidade dos percursos em­
preendidos por cada personagem pode ser muito ampla, como no caso
do conflito entre JR e Sue Ellen, que passa lentamente através de lití­
gios, traições, abandono, divórcio, novos amores, e na segunda série
regressa a um segundo casamento entre os dois. A infelicidade amoro­
sa entre Lucy e Mitch requer, por seu turno, poucos episódios para ser
liquidada. A aventura de Sue Ellen, acabada de se divorciar, com Cliff
Bamcs, dura o espaço de três episódios, o tempo preciso para que JR,
seu odiado inimigo, arruine financeiramente o rival. Todas as his­
tórias, por outro lado, se repetem ciclicamente, e as personagens pa­
recem não colher do passado qualquer nova sabedoria: repetem os
mesmos erros, caem nas mesmas armadilhas, aplicam as mesmas
estratégias. Quanto às projccções de todo o mapa sobre o plano par­
ticular das histórias isoladas, são muitos os sistemas para que elas se
dêm. Por exemplo, quando se narra a guerra entre os dois irmãos, JR e
Bobby, pc!o controto da companhia, aparecem certos locais fixos,
como a residência do rancho, onde o pequeno-almoço matutino ou o
regresso ao fim do dia apresentam sempre todo o sistema familiar,
afectivo e econôm ico que liga os Ewing entre si e aos seus adversá-
rios/aliados.
Também do ponto de vista da temporalidade, Daí/ar é muito com­
plexo. O tempo da série, exactamentc como em Bo/tanza, mas de um
modo mais aperfeiçoado, está potcncialmente no fim, ainda que a sua
chegada seja indefinida. Não há um objectivo preciso para a conclu­
são, e ainda que esta esteja cm vias de se concretizar (a luta pela posse
do império financeiro) é sempre possível uma reabertura do caso. To­
davia, D aííai é construída como uma evolução histórica, segundo uma
trama complexa de que, de tempos a tempos, se deverá descobrir a vi­
ragem. Um segundo aspecto fundamental é o de que o tempo relatado,
o de cada episódio e o da série, é um tempo inversamente proporcio­
nal. O tempo da série é longuíssimo (no limite, a história de três gera­
ções), mas o tempo do episódio é curtíssimo (não compreende mais do
que três ou quatro dias, mas o mais frequente é ser de um só dia). Mas
isto significa a produção de um tempo de relato muito especial. En­
quanto no telefilme clássico a segmentação das cenas persegue a se-
lecção dos elementos focais, e os momentos focais são descritos com
amplidão e lcntamentc, aqui, havendo continuidade de tempo narrado,
encontramo-nos face a uma segmentação cerradíssima do metro (ou
seja, do enquadramento). Nenhuma cena fica imóvel por mais de 45
segundos; nenhuma sequência contém mais de dez enquadramentos; a
velocidade de emissão vocal das personagens supera três a cinco vezes
a das personagens de um filme de televisão normal. A construção de
um metro diferente determina, como é óbvio, a produção de um ritmo
frenético, completamente funcional depois da inserção da publicidade
no espectáculo, mas também extremamente inovador em relação aos
ritmos do passado. Acontece também que Daííaj, que não é particular­
mente aventuroso segundo os normais critérios do gênero, que não ac-
tua com saltos narrativos muito grandes c que levam a grandes traba­
lhos infercnciadorcs, apesar de tudo isto é, do ponto de vista rítmico,
uma espécie de roc% n roí/. Por outro lado. sempre a propósito de
tempo e de ritmo, deve acrcsccntar-se que temos em Da/íay uma série
de construções de continuidade. A primeira é a da moldura, indefini­
da, que obriga a pensar em sequência as modificações das persona­
gens, obriga o espectador a gerar um saber seu e próprio da moldura.
A segunda é a dos ciclos longos, a única a que pode ser confiada a
eventual reformulação do mapa das relações entre as personagens (por
exemplo, foram precisos treze episódios para redefinir as relações fa­
miliares depois da morte do chefe da família, Jock). A terceira é a dos
ciclos restritos (bastaram uns poucos episódios para fazer que Pamela
adoptasse um filho). A quarta ó a das histórias mínimas, concluídas
num só episódio. Estão assim satisfeitos quase todos os tipos de frui­
ção possíveis: ocasional, serial descontínua, serial média e cultuai. Em
cada episódio, os quatro tipos intcrsectam-se e a consequência disso é
um efeito rítmico ulterior: cada história deve scr sempre interrompida
c retomada segundo montagens paralelas ou alternadas, sob pena de
perda de atenção quanto a qualquer dos ciclos. Desta vez, estamos cm
presença de um ritmo determinado da sequência e da montagem. E é o
próprio ritmo a chamar a atenção sobre si próprio, c não já a inferência
narrativa (quando o ritmo serve para construir um não dito). Tudo
aquilo que aqui devíamos saber é-nos de facto explícita e imediata-
mente fornecido. E agora de novo: o gosto será deixado para as mi­
núsculas invenções variáveis de entrecho e iconografia. Um tanto
como na música «disco», onde as melodias cedem o passo a um cerra­
do bum-bum, e onde o prazer passa ao máximo nas variações de intro­
dução, de tom de voz, de acompanhamento, de arranjo. A metáfora
musical é pertinente. A série, mais recente, Miami Vice é apresentada
como «em tempo de roc%». A lição foi aprendida e continuada.

4. Ritmos e estilos

Da longa e talvez incauta excursão pelo exemplo da série de televi­


são parecem emergir, cm conclusão, três elementos fundamentais da­
quela a que hoje chamamos «estética da repetição», por sua vez parte
da estética ncobarroca: a variação organizada, o policcntrismo c a irre­
gularidade regulada, o ritmo insensato. Poderemos dizer que todos os
três são motivados: do ponto de vista histórico, são as consequências
naturais da acumulação do parque dos objectos culturais; do ponto de
vista filosófico, são o ponto de chegada de algumas necessidades ideo­
lógicas; do ponto de vista formal, são componentes de um «universal»
barroco.
Como já se disse no primeiro capítulo, muitos houve a observar
que diferenciação organizada, policcntrismo e ritmo são elementos
constitutivos do gosto barroco. $árduy sublinhou o isomorfismo exis­
tente no século XVII entre formas artísticas e científicas em torno do

37
tema do policcnLrismo. A nova cosmotogia dc Kcplcr, por exemplo,
não só destruiu a idcia dc ccntraiidadc das órbitas dos pianctas de Ga-
iiieu, como introduziu na cultura o gosto pcia forma ciíptica, provida
de centros reais c virtuais múitiplos("). Wõiffiin falou dc ritmo como
componente fundamentai da ideia de movimento na escultura c na ar-
quitcctura barrocas. Cassircr, primeiro, e depois Frye(^), identificaram
nas mutações de ritmo a característica dos gêneros iiterários (por
exempio, em Fryc: o ritmo da recorrência define a epopcia, o da conti­
nuidade a prosa, o do décor o teatro, o da assonância a iírica) ou dos
estiios dc cpoca (ainda cm Frye: há épocas com relações rítmicas cs-
quisomórficas, místicas, sintéticas). Bachtin vai mats ionge: define
formas de riuno específicas (os «cronótipos») como reguiadoras dos
gêneros artísticos e dos estilos('*).
Em termos históricos, para dizer a verdade, a motivação dc um
gosto centrado na variante, no poiiccntrismo, no ritmo, é facilmente
explicável. Pensa-se na enorme quantidade de programas narrativos
transmitidos num ano pelos órgãos de comunicação social. Só em Itá­
lia, calculou-se já que depois de cinco anos dc existência das televi­
sões privadas se tenha consumido o patrimônio de noventa anos de ci­
nema dc ficção. Muito rapidamente, pois, o consumo obrigou à produ­
ção «copiada» do já produzido. Disto deriva uma condição dc produ­
ção e dc recepção definível com o aforismo: jd esíd mdo dí;o. jd
tudo ascrdoC?). Perante a acrescida capacidade do público, so existe
íüma possibilidade para o não saturar: mudar as regras do gosto junta-
mente com as da produção. Como no teatro Kabuki, será agora a mi­
núscula variante aquela que produzirá o prazer do texto, ou a forma da

(") Severo Sarduy, op. cú., pp. 41-45.


(") Ernst Cassirer. f/id ow p /n c der íym òoiijc/tci Formei. Cassirer. Ox­
ford, 1923 (trad. it.: Fi/aro/Io de//e Jbrme w i M c / i e . La Nuova balia, Floren-
ça, 1961); Northrop Frye. /tiddiom y o / Crmei.sm. Pcnguin Books, Londres.
1946 (trad. it.: ztwiomM dedo erdico, Einaudi, Turim, 1964).
('6) Mihail Bachtin, Fsienca e romonzo, Einaudi. Turim. 1979. O «craro-
uopo» da estética moderna poderá ser o/reneiim . como diz Rcné Payant, «La
frénésic dc 1'image. Vers une estltétique dc la video», Fevoe d Fsideh<?Me. 10,
1968. . . . . . . . . .
p?) Eu já exprimi a convenção dc uma oTtgem oitocentista da idéia de
uma consciência da obrigatória rcscrita do fantástico em Cart&tH;. Elccta,
Milão. 1982. Ali. fazia notar como certos «locais» da acção Toma.ncsca (t;tm-
bem à «verdade» da vida) se tomam forçosamente «locais» cnctclopédtcos,
cenários-tipos, que têm o poder de estabelecer uma espccic de contrato enun-
ciativo com o leitor, mediante a construção dc sistemas de atitudes narrativas.
repetição rítmica, ou a mudança da organização intcma. Um fiime
como 0^ SaiittaJorM da Arca f e r id a , obra dc um coiossal emprego
dc citações, n3o poderia ter sido imaginada há alguns anos atrás. E,
provavelmente, não seria noutro tempo imaginável um livro como O
Nome da /?o.sa, imenso fresco dc invariantes semânticas, narrativas, fi­
gurativas, onde tudo é citação e onde a mão do autor sobrevive na
combinação e na inserção dos sistemas de variantes próprias dos di­
versos tipos de leitores-modclos previstos para o romance. 0 Nome da
/?o.M parece, neste tempo, um protótipo, se não mesmo o protótipo da
estética neobarroca, considerando também as suas técnicas dc «perver­
são» da própria citação, que examinaremos noutro capítulo. De resto,
não somos os primeiros a notar a existência dc operações de «poética»
propriamente dita da repetição e variação. Antes dc eu o fazer, foi há
pouco confirmado o conceito dc que a repetição não significa necessa­
riamente um aspecto «de má qualidade» ou pouco original da obra.
Por exemplo, isso fez-se no âmbito dos estudos sobre estctica da es­
cola de Mikcl Dufrcnne. Um seu aluno, René Passeron, dedicou um
volume colectivo de estudos à relação entre criação e repetição. E fez-
-s e também no âmbito da crítica, quando a revista Cotpj Écrà se
ocupou da relação entre repetição c variação. Até a Escola do Louvre
organizou um simpósio para analisar o conflito entre repetição (con­
ceito formal) e imitação (conceito tcmático)C"). Também os objcctos
materiais estão agora a seguir o mesmo caminho pelo campo da pro­
dução. Basta pensar nas novas fórmulas dc fabrico dos automóveis:
um baixo número de invariantes estruturais, denominadas «modelo-
-base», um alto número de invariantes figurativas, um altíssimo nú­
mero de variáveis reguladas, e, finalmente, um imenso número dos
chamados «optional», os pequenos pormenores que dão personalidade
ao automóvel.
Por outro lado, o amor pela variação regulada e pelo ritmo conflui
no virtuosismo, característica cada vez mais exigida no espectáculo e
hoje actualizada pelo uso de uma tecnologia cada vez mais sofisticada.

('*) Mas, de resto, Eco di-lo de um modo explícito nas «Postiüc al Nome
delia rosa», Adabeta, 49. 1983, e embora não use o termo «neobarroco», e tal­
vez também ele pisque o olho à «estética pós-moderna» de cariz literário, pa­
rece-me ter ido muito além no caminho aqui indicado. Cf. também: Daniel
Arasse et adi, L'imitation.' adénation ou soarce de liberte?, La Documcntation
Françaisc, Paris, 1984; Jacqucs Ruffié et aiii, «Répétition ct variation», Cotpy
Éerit, 15, 1985; René Passeron. Création et répétition, Clancier-Gucnaud, Pa­
ris. 1982.

59
Não se cxpticam dc outro modo fUmcs como Lron, ou como í/w ^o-
oo Longo & í/wr Dia, nos quais ficamos decisivamente impressio­
nados com a procura de efeitos variados nas imagens, tai como fica­
mos estupefactos com a pobreza narrativa dos entrechos. Apenas um
aflorar, enfim, dos âmbitos no fundo mais óbvios do ritmo c da estéti­
ca das variações. A publicidade e os vidoo-c/tps. que não procurámos
examinar precisamente devido à sua imediata evidência, são o terreno
da mais obsessiva expressão (mas com resultados por vezes óptimos,
digamo-lo) das características até aqui analisadas. Como conclusão,
diremos apenas que a estética da repetição encontra também uma pos­
sível explicação filosófica. O excesso dc histórias, o excesso do já di­
to, o excesso de regularidade só podem produzir o estilhaçamento.
Dissc-o, no*fundo, Nietzshc, ao observar que a ideia do Eterno Retor­
no depende do carácter repetitivo da história. O tédio, observava o
filósofo, depende frequentemente do facto dc estarmos saturados dc
história. A saturação destrói a ideia de harmonia c scquencialidade e
leva-nos, como notou BachelardC"), não só a reconhecer, como tam­
bém a desejar o carácter corpuscular c granular tanto nas sequências
dos eventos como nas dos produtos de ficção.

(") Gastort Bachelard, La paetipao do /' espaço, Scuil, Paris, 1962 (trad.
it.: La poolica defio spazio, Dedalo, Bari, 1974).

60
1. Limite e excesso: duas geometrias

Se, de acordo com Lotm an, considerarm os a cultura com o


uma organização dc sistem as culturais (de tipo orgânico c bio­
lógico, no seu caso), também é possível entende-la com o uma
organização e s pacial. O m esm o Lotman, de resto, cham a a uma
sem elhante organização «sem iosfera», retomando o conhecido
termo b iológico de «biosfera», ou de «ecosfcra», c o antropo­
lóg ico de «noosfera», entcndcndo-sc precisam ente o aspecto
espacial do sistem a da cultura('). M as se aceitannos uma ideia
espacial da estrutura e da distribuição do saber em sistem as e
subsistem as, ou seja, um espaço global articulado em regiões
localizadas, deverem os também aceitar que este espaço, para
ser organizado, deva ter uma geom etria ou uma topologia. Ou
melhor: que seja provido dc um «confim ».
O c o nfim dc um sistem a (também cultural) é entendido num
sentido abstracto: com o um conjunto dc pontos que pertençam
ao m esm o tem po ao espaço in tem o do um a çw fig u ra çã o c ãõ"
seu espaço externo. Do p o n t u a ^ vista interno, o confim faz
parte do sistem a, m<^s dclimita-oM&o ponto dc vista extem o, o
confim faz parte do eXtcriorrScja este ou não, por sua v ez, um

(') Iuri Lotman, í a AtwHtM/èza, Marsitio, Veneza, 1985.

67
sistem a. A ssim , o exterior é d ele separado ou por oposição (se
for um outro sistem a), ou por privação (não d um sistem a). O
que garante a existên cia de um confim é, portanto: por um lado,
a propriedade separadora dos seus pontos; por outro, a coerên­
cia (inciuindo a dos pontos do coníim ) de todos os pontos per­
tencentes ao sistem a. A lêm d isso, cada confim não é entendido
com o um a barreira im pensável nos confrontos com o exterior.
São tam bém assaz raros o s casos de encerramento total e rígido
em relação àquilo que não pertence ao sistem a. Tam bém se
pode dizer que o coniim articula c gradua as relações entre o
interior e o exterior, entre abertura e fecham ento. È odcm os ter
também sistem as substancialm cnte fechados, mas nos quais o
con fim actua com o filtro ou membrana: tudo aquilo que está
fora do sistem a pode ser nele introduzido na condição de «tra­
duzir» (no sentido próprio: «levar através de») os elem entos e x ­
ternos cm elem en tos internos, adequando-os à coerência do sis­
tem a (por exem p lo, ao seu código). Ou então poderem os ter
sistem as abertos só cm algum as zonas, nas quais há um ailuxo
entre o interior e o exterior, ao passo que nas outras há um fe ­
cham ento m ais ou m en os rígid oÔ .
N o s casos dos sitem as substancialm cnte fechados, o próprio
facto de existir um «perím etro» im plica a existência de um cen ­
tro, a que também poderem os chamar «centro organizador».
Ora, o centro, com o diz A m h cim , não coincide necessariam en­
te com o «m cio»(3). Pclp-qu& pedercm os ter uma nova cla ssifi­
cação dos sistem as eáí*cetnroJosj(quando o centro corresponde
ao m eio) e ^ cscen troS S ylq u an d o existem m ais centros, ou
quando o ccíltro está colocad o perto da fronteira). N o caso dos
sistem as centrados, exactam cnte com o na geom etria, produz-se
uma organização interna ordenada por simetrias: no caso dos
sistem as dcsccntrados, a organizáçãõ-ó. assim étrica c isto co m ­
porta a geração de forcas expansivas. Um pouco com o no
exem p lo lotm aniano dos confins gcopolíticos: quando um Esta­
do co lo ca a sua capital perto da fronteira, ou ainda não se deu
uma ordem central, ou então tem veleidades expansionistas, c o
centro dcscentrado de hoje é uma projccção de um centro ccn-

P) /òtr/e;n, pp. 58-63.


(*) Rudotph Amhcim, 27%; Power p/* :Ae Cenier, Univcrsity o f Califórnia
Press, Bcrkelcy, 1982 (trad. it.: /ipotere &'/ centro, Einaudi, Turim, 1984).

62
trai do futuro. Rcflictamos sobre a questão da dissimctria do
centro organizador. Esta, disse-se, gera forças expansivas. Mas
isto significa então que tais forças começam a exercer pressão,
a partir &? interior, sobre a própria elasticidade do pcrímetro-
-frontcira-confim: ou seja, tentam pôr em crise o conjunto de
pontos comuns entre interior e exterior, levando-os à tensão. É
por isto que poderemos dizer, continuando nas metáforas topo-
lógicas, que o confim se toma num /imite propriamente dito.
Mas na realidade, aceitando-se a definição de «limite», não
analítiça-mas^gjm topológica, de Bourbaki("), pode afirmar-se
que dm limite c um confim dc valores de um «contorno» cm
que toclDsros pontos gozam da mesma função. Sc, pois, se abate
o iimite, com isso mesmo se eliminará o contorno, ou scr-lhc-á
criado um outro. Cada pressão na direcção do limite tem, pois,
o valor de uma tensão.
A nossa linguagem comum regista perfeitamente esta situa­
ção mesmo no campo cultural, c não necessariamente matemá­
tico, e traz consigo uma espócie de memória da sua cspacialida-
de. Tomemos o termo latino /imett.* significa «limiar», por
exemplo, da casa, c define perfeitamente a oposição entre inte­
rior c exterior e aberto e fechado. Sempre espacial ó o próprio
significado da palavra cúmu/o, ou seja, «o máximo sustentá­
vel», enquanto estiver a indicar o ponto mais alto dc uma curva
qualquer. E ainda mais clara ó a imagem de excedo; do latim
ex-ccriere, «ir para lá de», o excesso manifesta a ultrapassagem
dc um limite visto como caminho dc saída dc um sistema fe­
chado. Mas 6 sempre o uso linguístico que faz perceber o facto
dc que a imagem espacial se aplica aos factos culturais. Quando
falamos de «caso-limite», de «limiar de sensibilidade», ou de
«cúmulo da paciência», ou dc «excesso de maldade», manifes­
tamos a tensão, ou o auge, ou a superação do confim de um sis­
tema de normas sociais ou culturais, c os actos que levam às si­
tuações de tensão, auge, ultrapassagem dos confins, são actos
que forçam o perímetro do sistema, ou que o põem em crise.
Neste sentido, podemos também observar que o acto limitativo
e o acto excessivo constituem uma oposição cm relação à pres-

f ) Nicholas Bourbaki, rtAistoire MíAc/naíi<?aM, Hermann,


Paris, 1960.

63
são sobre os confins. O limite d rcalmcntc o trabalho de levar às
extremas consequências a elasticidade do contorno, mas sem o
destruir. O excesso d a saída do contomo, depois de o ter des­
pedaçado. Transposto: franqueado atravds de uma passagem, de
uma brecha.
Disse-se acima que limite c excesso são dois tipos de acção
cultural. Mas trata-se de tipos de acção que uma cultura não ex­
perimenta sempre. Existem períodos mais dirigidos para a esta­
bilização organizada do sistema centrado, e períodos opostos.
Épocas ou zonas da cultura cm que prevalece o gosto por esta­
belecer normas «perimdtricas», e outras em que, pelo contrário,
o prazer ou a necessidade d ensaiar ou quebrar os existentes.
Portanto: de tender para o limite e provar o excesso. Ao segun­
do tipo pertence evidentemente a idade (ou o carácter cultural)
a que chamámos «ncobarroco).

2. Tender para o limite

O carácter de uma tensão no limite das regras que tornam


homogdnco um sistema pcrccbc-se um pouco em todos os cam­
pos do saber contemporâneo, da arte à ciência, da literatura ao
comportamento quotidiano, do desporto ao cinema. E uma
constante sua d o experimentar a elasticidade do confim, pondo
à prova um conjunto a partir r&MAWM extremar.
O caso mais típico, na história da arte, por exemplo, d o tardo-
-rcnascentista, mancirista e depois barroco, de extremar os da­
dos da perspectiva linear, variando «atd ao limite» o ponto de
vista, de fuga, de distânciaf). Consequência: a produção de
uma sdrie de outros modelos, nos quais a perspectiva se auto-
destrói, como o trampe /'oeí/, o enquadramento, a anamorfose,
o escorço(^). No caso da perspectiva, temos um sistema que d já
directamcnte geométrico. Mas podem produzir-sc outros casos,
em sistemas mais directamcnte conccptuais, como as ideologias
ou as idéias filosóficas. E o mecanismo d o mesmo.

P) Cf. Jurgis Battrusaitis, /laa/aarp/íase.;. Scuit, Paris, 1972 (trad. it.:


Adctphi, Mitão, 1976).
(^) Cf. o meu í a /aacc/aaa dettapàíara, Latcrza, Roma-Bari, 1985.

64
Tomemos, como nos outros capítulos deste livro, um exem­
plo emblemático. Trata-se do romance Congo, de Michael
Crichton. Dado tratar-se de uma obra extremamente comercial,
ela tenta duas operações de tensão do limite: uma no que diz
respeito à ciência (que dele constitui o argumento) e a outra nos
confrontos da literatura (na qual se insere como obra). Do pon­
to de vista literário, é difícil denominar a classe a que pertence
este livro, que no entanto se anuncia como «romance de gêne­
ro». É mais ou menos fantástico-cicntífico: cientistas e tecno-
cratas andam à procura de misteriosas minas de diamantes, com
os quais se fabricarão armas inigualáveis. Mas ê também uma
.vpy-jiory: a agência americana Erts luta, ao som de intrigas,
contra um sórdido Consórcio de potências estrangeiras. Mas é
também um romance de aventuras exótico-antropológico: via­
gem pela África misteriosa, procura de uma mítica cidade de­
saparecida, estudo de uma raça de gorilhas «inteligentes». E,
finalmente, é um pouco um romance policial: procura-se o cul­
pado de uma série de massacres, como no caso da Rua Morgue.
Em suma, temos Poe, Conan Doyle e Burroughs, Vcme, Fle­
ming e, obviamente, Sir Hcnry Rider Haggardf). Mas Congo
não é nada disto tudo, ou melhor, é o conjunto disto tudo. O
que é o mesmo que dizer que o novo gênero literário, sem se
identificar com qualquer dos seus predcccssores, os leva a to­
dos ao limite, misturando-os num gigantesco paMic/to. Mas o
paM'c/:e não é obra de pura citação, como na prática literária a
que os americanos chamam «po.vnnodcr^-Ec^o contrário, é
sanção preliminar da existência de urrfgénero devida ao re­
conhecimento de marcos de gêneros tradicionais, e invenção
consequente dojmpcrgéncro (limite de todos os gêneros) como
romance de pesquisa, que extrai dos gêneros precisamente o
momento indiciador.
Mas há um outro aspecto no livro de Crichton, menos evi­
dente mas igualmentc fascinante, que é trabalhar sobre as teo­
rias científicas mais avançadas em alguns campos da pesquisa
modema (infonnática, antropologia, zoologia, geologia, vulca-
nologia, teoria dos jogos, etc.). Os saberes utilizados não são de

(h Ou seja: toda a história do romance de aventuras, ate ao culminar do


gênero: /t! Mina.! d<? .Saia/nãa, precisamente de Haggard.

63
facto imaginários (testemunha-o a bibliografia científica incluí­
da no fim do volume). Só que são levados aay /imitei
veí. São teorias de que se simulam as consequências e as condi­
ções extremas de uso. Resumindo: o fantástico já está entre
nós, basta apenas levá-lo mais alóm. E lícito pensar cm estra­
nhos cntrccruzamcntos de gorilas superdotados e amestrados:
entre os cães, o homem já produziu o do/w/nan. Os símios fa­
lantes já existem nos EUA, como o famosíssimo Arr/mr. Quan­
to à televisão, em tempo não real, mas sim acelerado, ela está
hoje mais predisposta do que nunca com os programas «tele-
text». As simulações electrónicas que produzem imagens «ver­
dadeiras» são hoje usadas.para produzir jogos-vídeo ou cinema
electrónico mediante modulações. As armas de ficção científica
fantástica podem ser por nós encontradas no projecto «guerra
das estrelas» americano. E assim por diante. Por outras pa­
lavras: dado o confim de um certo domínio científico, exami-
nemos-the os rebordos, os susceptíveis de fazerem avançar o
"próprio confim para onde o não havia, c, impücitamcnte^jde-
clara-sc a existência de uma zona de fronteira variável ou irre­
conhecível entré «real» e «possível inactual»(*).
O caso de Co/rgrr representa um procedimento ao limite no
âmbito de grandes proporções de significado. Mas na era das
comunicações de massas estamos acostumados a operações «ao
limite» também de tipo formal. Por exemplo, no modo de re­
presentar o tempo e o movimento por meio das tecnologias de
comunicação. Nos últimos anos, de facto, habituámo-nos cada
vez mais a ver representado um limiar de tempo e movimento
que está nitidamente abaixo ou acima do perceptível, com a
consequência de deslocar o limite da nossa própria imaginação
das acções. Ninguóm se maravilha já ao observar ao rctardador
as fases importantes das partidas de futebol. E assim qualquer -
adepto confia à câmara o juízo sobre a equidade de uma direc­
ção arbitrai: como se também na realidade fosse possível pres­
tar atenção às acções no mesmo modo. Exemplos semelhantes
nos chegam também das produções ticcionais para cinema de
televisão. É cada vez mais normal relacionar o inquérito sobre
momcntos-chavcs de uma cena ao retardamento do seu tempo

(') Iuri Lotman, op. ctí.. p. 62.


«natural». Estamos a pensar no encontro armado com que se
encerra Bmc/i Cn,?.w(y,' ou no duelo entre bons e maus que re­
mata Por í/fH PMM/:a&< ífe Dó/orcj,' ou na última cena de
Aícía PíTío/, onde Burt Reynolds, no fim de uma violenta
partida de rugòy entre detidos e carcereiros de uma prisão, é
obsessivamente retardado para dramatizar a incerteza entre a
sua intenção de fugir e a de simplesmente recolher a bola, tudo
isto através da mira telescópica de uma espingarda e sujeito à
ordem para disparar do director da prisão (batida ao rMgòy).
Mas pensamos igualmcntc nas toneladas de ra/enfi presentes
nos encontros amorosos dos mais variados casais publicitários
da televisão, ou dos heróis das cenas yq/r-core.
Um outro exemplo de análogo superação do limiar inferior
da percepção do tempo é-nos dado pela fotografia. Hoje, somos
indiferentes à técnica do chamado «instantâneo». Mas os «ins­
tantes» do instantâneo fotográfico não são os mesmos de outro-
ra: hoje, estão decididamente abaixo do perceptível. Fotografar
a um milésimo de segundo já não permite de todo prever que
coisa representará a foto mediante o enquadramento através da
objectiva. Todavia, tendo toda a gente acumulado hoje conheci­
mentos sobre este tipo de tecnologia, conseguimos imaginar
mcntalmente a existência de um tempo e de um movimento por
debaixo das nossas capacidades ITsicas para o colhermos. A
ideia de um instante cada vez mais pequeno também leva a uma
poética, a da procura do ac/we da acção: a passagem decisiva no
futebol, o pico entre o sucesso ou o falhanço de um acto, a se­
paração entre a vida e a morte num duelo, o estudo do auge das
emoções ou dos êxtases sexuais. Podcr-se-ia verificar de facto
que o aprofundamento de certas técnicas de representação c do
seu tempo especifico modificou a percepção do mesmo tempo.
Representação c percepção do tempo no seu limiar inferior con-
jugam-sc com a exasperação de uma atitude ana/Mca. O que
cm tempos se considerava como uma unidade de tempo hoje já
o não é, pois somos capazes de a escandir em unidades cada
vez mais pequenas. (Não será este um problema «barroco»?
Também no século XVII é uma problemática fundamental a do
cálculo inlinitesimal e do cálculo do limite.) Uma breve de­
monstração. Se olharmos para a ò/raMd/icg, podemos reparar
que a essência da dança é constituída pela capacidade do dan­
çarino de segmentar os movimentos e o seu tempo cm unidades

67
% Lh4-<^<^dk^4a,

pequeníssimas. Quando em seguida os reúne num movimento e


num tempo globais, vemos que eles não reconstituem uma uni­
dade de acção, mas uma linearidade que deixa separados ins­
tantes e movimentos de outro modo imperceptíveis.
Existe, portanto, um segundo limiar de tempo «natural» que é le­
vado ate ao limite, e 6 superior, o da velocidade de percepção. Existe,
em resumo, uma temjporalidade que, por contraste com a precedente,
poderemos chamar jmténca. Ela consiste em dotar a representação de
uma velocidade inusitada. O exemplo mais óbvio 6 constituído pelos
jogos em vídeo-c v;Jeo-c/i/M. Com as últimas gerações de jogos e fil­
mes musicais, é possível verificar que o tempo de representação da ac­
ção requer respostas extremamente aceleradas, sob pena de acabar
com o próprio jogo, ou com a inteligibilidade da cena filmada. Que se
trata aqui de um limiar superior da percepção c demonstrado pelo fac-
to de que só são hábeis neste tipo de competição ou de visão os ra­
pazes muito jovens, os únicos que podem ter reflexos adequados à
terrível ascensão do ritmo de representação. A destreza muscular das
gerações precedentes vai-se sobrepondo uma destreza sensorial, ba­
seada na velocidade das reacções aos estímulos. Mas limitar a tem-
poralidade sintética aos produtos únicos e à fruição única dos jovens
seria limitativo. Quase todo o universo das comunicações de massas c
dos comportamentos por estas induzidos se está a precipitar para o
abaixamento ou afastamento do limiar superior. O ritmismo analisado
no capítulo precedente é disso uma das características fundamentais.
A possibilidade de esquematização é outra. Tomemos agora o exem­
plo das transmissões desportivas. Hoje julgamos normal a transmissão
de relatos de acontecimento desportivos a velocidade acelerada. Mas
não se trata de uma prática simplesmente funcional (transmitir mais
notícias, poupando tempo). A aceleração permite saborear melhor o
de uma acção dc jogo, a sua «geometria» (não é por acaso
que o termo enuou no calão futebolístico ou basquctcbolístico). Um
lãcíõlcrncíhante sucede a nível comportamcntal. Estamos a pensar na
chamada «síndrome do botão» que se instalou, a nível de consumo te­
levisivo, com a existência dc muitos canais. O espectador está hoje
francamente habituado a saltar de um programa para outro, relacio­
nando-os instantaneamente, inferindo o seu conteúdo de poucas cenas,
recriando os seus palimpsestos pessoais. E sobretudo eliminando as
diferenças «históricas» entre as diversas imagens apercebidas.
A superação dos limiares da percepção temporal comporta, muito
provavelmente, algumajnodificação da visão do mundo. A primeira

63
modificação importante, parece-me, deverá ser procurada no sentido
diferente da história em relação a outras épocas. Não se poderá negar
que vivemos hoje num período de total simuitaneidade dc quaiquer
objecto cultura!. O telecomando, com a possibilidade de esmagar nu­
ma mesma linha produtos provenientes de uma espessura histórica di­
ferente, faz que tudo seja posto automaticamente em vizinhança e em
continuidade. Este fenômeno é bem conhecido dos professores do en­
sino secundário e universitário, que se encontram perante alunos capa­
zes dc passarem, sem quatqucr sentido dc relatividade, de Aristóteles
para Michael Jackson, dc Espinosa para os «novos filósofos», como se
fossem entidades dialogantes. Uma s e g u n d a r ã o do mundo, cm se­
guida, é o sentimento de vcrificabilidade do rcal/As novas tecnologias
audiovisuais anulam a^COiiliança na verificação pessoal dos factos.
Não é a visão directa do jogo de futebol que dá a ilusão da verdade,
mas a sua re-visão na televisão ao rctardador. A técnica dc representa-*
ção produz objectos que são mais reais do que o real, mais verdade do
que a verdade. Mudam deste modo as conotações da certeza: ela já*
não depende da segurança nos próprios aparelhos subjectivos de con­
trolo, é delegada em qualquer coisa de aparentemente mais objcctivo.
No entanto, paradoxalmcntc, a objcctividade assim atingida não é uma
experiência directa do mundo, mas sim a experiência dc uma represen­
tação convencional. A incredulidade de S. Tomé está definitivamente
ultrapassada. Acreditamos nos milagres não por lhes tocarmos, mas
sim se alguém no-los vem contar: por isso, ao rctardador.

3. Excentricidade 4?

Um motivo de pulsão em direcção ao limite dc um sistema, disse­


mo-lo anteriomente, é constituído pela nãorccntraiidade do centro or­
ganizador do sistema. Ou melhor: pela suá^«cxccntricidadc» Também
a excentricidade é uma palavra, a bem dizer, anlbivalcnté. Existe, de
facto, um significado matemático (a relação entre a distância dc uma
cônica a um ponto fixo c a distância da mesma a uma recta fixa), física
(a transformação de um movimento rotativo dc um prato em movi­
mento alternado), mas também comportajncntalf). Um «excêntrico» é

(*) Cf. Lucio Lombardo Radicc e Lina Mancini Proia, /í /neíod<? /waíe/ng-
dco, Principato, Milão, 1979, pp. 68-94.
um senhor (ou então um sujeito) que age nos iimites de um sistema or­
denado, mas sem que ihc ameace a regularidade. Alguém que coloca o
seu próprio «centro» de interesses ou de influencia deslocada para a
periferia do sistema, ou para as suas margens. A moda sancionou um
comportamento semelhante a partir do século XIX, prevendo estilos
vestimentares «fora do comum», como o dos Mas também
no barroco (vejam-se os fatos das festas do Rei-Sol, em França) o esti­
lo excêntrico estava largamente em uso. Hoje, a excentricidade na mo­
da parece ter-se tomado quase uma regra: e o facto de acontecer na
moda testemunha quanto se disse. Ou melhor, que a excentricidade
comanda uma pressão em direcção às margens da ordem, mas sem be­
liscar a ordem, ao passo que a própria excentricidade é prevista pelo
superior organismo das regras do vestir. Excêntrico é também o estilo
casual, o punÁ: revisto e corrigido, o ornamento curioso colocado sobre
um vestido tradicional, o costume de inverter «divisas» tradicional­
mente reservadas a determinandas ocasiões (usar os jeans para uma
cerimória e o s/noAíng para um passcio)("). O exemplo da moda, por
outro,lado, confirma-HfR-aspeete^ndamcntal da excentricidade, a sa­
ber: Ia sua dominante cspcctacularjNào é por acaso que é prccisamcnte
no mundo das cenas (música, televisão, teatro, cinema) que a excentri­
cidade é exibida como um valor. O estar sob os olhos de um polícia
obriga à procura de uma identidade individual separada das outras
(com um centro próprio, pois), mas na manutenção de uma identidade
socialmente aceite.
Um exemplo muito claro deste mecanismo pode ser encontrado
por nós nos processos (aparentemente mais «esquisitos») de denomi­
nações dos grupos artísticos, musicais e teatrais de hoje. Dar-se um
nome, de facto, significa precisamente inventar uma identidade, cons­
truindo-se uma individualidade no interior de uma colcctividadc(^).
Se nos detivermos um pouco nos nomes dos «performers» modemos,
não nos escapará o mecanismo de produção de uma imagem dos sujei­
tos como eles próprios objectos de imaginação espectacular. Eis uma
lista rápida: Rapazolas Mundanos Mecânicos, Capuchos e Cabeleiras,
Grupo Oh! Arte, Ramaxzoti Sisters, Sinestúdio para Motores Gerais,

('") Honoré de Balzac, 77te<?r/e de /a démnrcde, Gallimard, Paris, 1978


(trad. it.: 7eor/ade//'rMd<%Hr<2, Cluva, Veneza, 1987).
(") Franccsco Albcroni e! a/ü, Ps/co/ag/a de/ ve.shrc, Bompiani, Milão,
1972.
('^) Cf. Claude Lévi-Strauss, ap. cd.

70
Nata Ácida, Teatro Momentaneamente Ausente. E na música: Frankie
Gocs to Hollywood, Levei 42, Cuiture Ciub, Art of Noise, Shampoo.
E são apenas alguns pouquíssimos exempios, mas que bastam para de­
monstrar como os nomes se transformaram em quaiquer coisa de mui­
to mais singuiar do que precisamente em nome: tomaram-se /úa/oí.
Isto tem o ciaro significado de entender o grupo, teatrai ou outro,
como se e!e fosse cm primeiro iugar, em si, uma obra de arte, sem
fazer quaiquer distinção entre arte e vida, produção c execução, capa­
cidade e per/õrfnaHce. Mas um uiterior aspecto de excentricidade e
trabaiho nas margens dos sistemas também existe nos mesmos textos,
sobretudo pubiicitários, musicais c teatrais. Os gêneros de espectácuio
viram-se reaimente sempre mais para os seus próprios iimites mate­
riais, e invadem os dos territórios iimítrofes. Para faiar verdade, c tam­
bém difícil faiar de «publicidade)), «música)), «teatros: meios e iin-
guagens estão a interferir reciprocamente numa espécie de intertextua-
iidade na origem, e não numa intcrtextuaiidadc como única hipótese
de funcionamento da cuitura. Um jtpor pubiicitário asscmciha-se hoje
com frequência a um videoc/tp. mesmo quando não coincidem, como
no caso do anúncio da Citroen e de outros produtos em que entra Gra-
ce Jones e que depois foram aproveitados para um vídeo de promoção
seu. O teatro nos Magazzini Criminaii nada mais é do que uma soma
de efeitos visuais provenientes da música, da teievisão, da publicidade
e da arquitectura: um «teatro de superfícies, um teatro das conjunções
intertextuais. Na excentricidade se opera, pois, a passagem tota! para a
margem, a «peles da obra, com uma pesquisa hoje orientada para o
formaiismo c a estetização, contra uma ccntralidade outrora baseada,
por exemplo, na ética ou na cmocionalidade.
Trata-se de um tipo de estetização substancialmente inócua para o
sistema, a menos que não seja levada ao limite e à sua superação, que
investe fortemente também nos comportamentos da vida quotidiana.
Basta pensar nas histórias sobre anômalas «proezass cometidas por
anônimos senhores para entrarem no GMM!ne.M dos recordes ou nas pá­
ginas das revistas de aventuras: atravessar a América a pé, fazer um
mes de sirga em Caxemira, armar em navegador solitário, passar as fé­
rias a fazer turismo equestre, atravessar o oceano em winrf-íM//, conse­
guir sobreviver 52 dias no monte Branco só com as provisões levadas
de casa, ir de trenó até ao Pólo Norte, participar em corridas de ciclis­
mo cm bicicletas experimentais desenhadas como automóveis. E uma
espécie de anedotário (estético, talvez também cm sentido inferior) da
vida quotidiana, cada vez mais vigoroso no mundo contemporâneo, e

77
Icntamcnte industrializado: bastam os exemplos de transmissões tele­
visivas de grande sucesso na America c agora tambcrn aqui entre nós,
na Itália, com Vonat/ar/t c 7?ig Bang, nas quais tais «proezas» fora do
comum são frequentemente impingidas cm nome do amor ao despor­
to, à natureza, pcia aventura. Nos Estados Unidos, chegou-se a arran­
jar situações pagas de «excentricidade» reguiada, como, por exempio,
jogos de guerra de facto feita, embora não com armas ictais, entre gru­
pos de «desportistas» que se apresentam mascarados de «marines» e
travam recontros bélicos cm terrenos delimitados. Ou então competi­
ções com vários meios, mais ou menos mecânicos, cm condições difi­
cílimas, como o Can/to&t??, uma espécie de raii em condições de pura
sobrevivência, ou o Carne? 7'rop/ty, o Pa/is-DaAar c empresas seme­
lhantes, que por vezes se arriscam a transformar-se cm situações de
cfcctivo perigo. De facto, da excentricidade, levada ao limite, consc-
guc-se um «efcito-risco» cada vez mais alto('^). É característico, a este
propósito, o facto de cm Inglaterra se ter criado um «Clube do Risco»,
no qual só se podem inscrever pessoas que tenham levado a cabo um
empreendimento muito perigoso, do gênero mergulhar do alto da To-
wcr Bridgc, lançar-se com um pára-quedas minúsculo cm precipícios
com trezentos metros de altura, atravessar um desfiladeiro sobre uma
corda esticada. E idêntico aspecto vigora hoje no desporto, todo ele
complctamcntc virado para o recorde c a superação dos limites («o li­
mite precedente»).

4. Excesso e antídotos

O excesso, mesmo enquanto superação de um limite e de um con­


fim, é decerto mais dcscstabilizador. De resto, qualquer acção, obra ou
indivíduo excessivo gucr pôr cm causa umaltrdcm qualquer, talvc/.
destruí-la, ou construir outra nova. E, por outro lado, qualquer socie­
dade ou sistema de idéias acusa de excesso aquele que não pode nem
quer absorver. Toda a ordem produz um auto-isolamcnto c define, ba­
nindo-o, todo o excesso. O inimigo toma-sc inimigo cultural, «bárba­
ro», grande invenção da civilização clássicaC**).

('^) Em 1984, a revista Panara/na Afexc dedicou um número inteiro à pro­


cura do risco gratuito como prática de vida. O risco traduz-se, nos casos exa­
minados pela revista, numa estética do comportamento: a pura.
(") Iuri Lotman, <%?. cã., p. 59.
No entanto, c frequente serem acusados de excesso os elementos
exteriores a um sistema, e por isso inaceitáveis. Nas épocas barrocas,
pelo contrário, produz-se um fenômeno endógeno. No próprio interior
dos sistemas, produzem-se forças centrífugas, que se coiocam fora dos
confins do sistema. O excesso é geneticamente intemo. A cultura con­
temporânea está a viver fenômenos de excessividade endógena cada
vez mais numerosos, que vão desde a produção artística à dos meios
de comunicação social c até aos comportamentos políticos e sociais.
Mais uma vez será bom, por isso, diferenciar vários tipos de excesso.
Por exemplo, há um excesso reprayeMKÍo como conteíMo, há um ex-_
cesso enquanto c.wa/Mra de repreje/uaçãa, e há um excesso ea^aanta
yhaçãa de ama repre^e/nação^
À primeira categoria pertencem sobretudo conteúdos que, por seu
turno, representam categorias de valores, como as morfológicas, éti­
cas, tímicas e estéticas, das quais já se falou e ás quais regressaremos.
Um exemplo muito claro será o do renascimento do «monstro», ao
qual dedicaremos mais adiante um capítulo inteiro. E veremos que o
monstro é sempre desestabilizador enquanto é «demasiado», ou «de­
masiado pouco», quer pela quantidade, quer pela qualidade em relação
a uma norma comum.
Um segundo tema no qual nos poderemos, entretanto, deter com
maior demora é o da sexualidade. Que o excesso erótico seja um mo­
do canônico de pôr cm causa e em crise um sistema de valores é coisa
sobejamente conhecida. E que há também um fundamento sexual na
constituição dos «estilos» não está, claro, em discussão, depois das
bem conhecidas análises de Nietzsche sobre a oposição entre «dioni­
síaco» e «apolínco»('^). Mas cm que consiste, mais tecnicamente, o

(*s) Preferi descrever aqui as noções de «limite», «excentricidade» e «ex­


cesso» em termos espaciais e só mediante um grupo de lemas isolados. O que
não é absolutamente correcto. Em primeiro lugar, porque, segundo as técnicas
utilizadas noutro local deste livro, os termos tomam-se sempre segundo o seu
modo de serem interdefinidos com outros, que com eles instauram oposições
com eles. Em segundo lugar, porque a par da espacialidadc (cm calão greima-
siano: um dos momentos da tMpeciMadzaçáo, conjuntamente com a tcmporali-
dade), existe também o problema da tyMZMtii/icaçáo (isto é, quando o excesso,
por exemplo, se opõe ã insuficiência ou ao defeito, cm expressões como «de­
masiado», «demasiado pouco», «um pouco», «muito», «para nada», e assim
por diante). François Bastide, í e s íogúyue.s de /'excés et de /'
«Actes sémiotiqucs (Documcnts)», 79-80, 1986, submeteu a exame a citada
área semântica, precisamente cm termos de quantificação e aspectualização.

7^
^ «excesso»? Podemos dar duas respostas, a segunda peto ponto de vis­
ta sob o qua! se encara a pergunta. A primeira parte da norma vigente
como !ugar de observação do eros. E consistirá então cm avaiiar como
«excesso» não só o que genericamente sai da norma, mas também
uma espécie de espiral inflacionária na quantidade e qualidade de
objcctos «indecentes» produzidos: o excesso será considerado uma
«dcgcncração» do sistema de valores dominante. A segunda, pelo
contrário, parte da oposição à norma vigente como lugar de observa­
ção do eros. E consistirá então em julgar como «excesso» aquilo que
produz «escândalo», etimoiogicamcntc «pedra do tropeço», do grego
jAá/ttZa/o/t, isto c, quntqucr coisa que ameaça fazer cair outra coisa
qualquer durante o seu percurso normal. O tema excessivo do sexo,
portanto, não valerá SQ^etn.sim,e§aio, por aquilo que diz rcferencial-
mente, mas cnquanto^provocação» a ultrapassar os limites dos prin­
cípios sociais correntes. Tanto mais que a sexualidade excessiva, por
exemplo, a de certo cinema da última década, ou um pouco mais, foi
sempre símbolo de outra coisa. E aí está então o sexo como alegria e
libertação de pulsões na trilogia Deca/Meron-Ca/ücrMry-Mi/ <? ÍZ/na
Noites, de Pasolini, ou o sexo como morte nos Cem D ias <Ze Axioma,
do mesmo autor. Eis o sexo como imaginação em O Ditimo ía/tgo em
Paris, de Bcrtolucci. Eis o sexo como denúncia, revolta, no cinema de
vanguarda east-coast americano, ou em Fassbindcr, ou, pelo menos
cm intenção, cm Bcllocchio. O mesmo aspecto inquictante e provoca-
tório, até à ordinaricc, encontramo-lo na sexualidade expressa por cer­
tas personagens do roc% contemporâneo. Estamos a pensar na ambi­
guidade de Prince ou de Michacl Jackson, com o seu violento falismo,
mas unido ao efeminado. Pensamos no difuso hermafroditismo de um
David Bowie. Ou então notemos a tendência de certos grupos de ho­
mossexuais caüfornianos, que produzem espectáculos «escandalo­
sos», como, exemplo clamoroso, o vi& o-ciip yankee roixx, onde ca­
da componente não só canta em posições voluntariamente obscenas,
como também usa os instrumentos musicais como instrumentos de se­
xo (masturbação do microfone ou do braço da guitarra, uso dos cabos
passados entre as pernas, instrumentos de sopro tratados como órgãos
para a/eiiatio, etc.). O travestismo de personagens como Boy Gcorge

Recomendamos o seu ensaio para uma óptima discussão do problema. O que


falta a Bastide, e que pode tomar-se complementar a ele, é um olhar sobre a
dimensão topológica da questão, e aos lemas que a exprimem, e que Bastide
não considera.

74
é um dos pontos extremos do fenômeno. O mesmo sucede com as per­
sonagens femininas, como, por exemplo, a Madonna dos primeiros
tempos, que cantava a explosão do amor físico, ou a mais modesta Joe
Squillo, a nossa compatriota executante de um trecho intitulado Via-
/enfem-Me Dentro Metro, ou as várias Lorcdana Bcrté, Rcttorc,
Spagna. Sempre entre nós, depois, temos o caso de Renato Zero, mui­
to mais inofensivo representante da tendência «homossexual» da mú­
sica.
A par do sexo, a violência, ou, mais em geral, o horror. Cinema,
teatro, música, estão de novo na vanguarda. À parte o desenvolvimen­
to de gêneros específicos de horror, com o triunfo de Dario Argcnto,
cada vez mais á procura de efeitos-açougue, pode dizer-se que nos
últimos anos surgiu um filão inteiro de cincma-tcatro-música «da
crueldade». O mito, hoje ultrapassado, do Bronx c da representação
de «assuntos malditos» invadiu durante longo tempo ecrãs e ribaltas.
Alguns títulos: IVarríors. Wa/t&rers, Faga para Ao va /or^ac, os pelo
menos quatro filmes de Matí Max. Ilustram tais filmes, c não por aca­
so, bandas sonoras ou músicas de grupos homogêneos como os Poli-
ce, talvez os mais típicos representantes de uma cultura de re­
cusa da ordem social por meio da representação (não exaltação) da
violência. Na Itália, as imitações são poucas, como o Kaos Rock ou o
Kandeggina Gang, e, em versão nitidamente irônica, os Skiantos.
Uma violência mais intelectual percorre entretanto certas obras tea­
trais, e acima de todas vale a pena citar o exemplo de Ccnef 7*â/i-
ger, dos únicos Magazzini Criminali, ou as instalações de teatro em
vídeo do Studio Azzurro. No fundo, todos eles revisitações de uma
violência modelo anos 50, mas dotada de uma componente já não ape­
nas ideológica (ou que na ideologia cm si via uma poética), mas tam­
bém estética. Podemos também catalogar todas as formas de excesso
em conteúdo que enumerámos na rcnasccntc categoria de uma «esté­
tica do feio»('^). Monstros físicos e morais, obscenidade, embrute-
cimcnto, violência, não valem só pelo seu significado, valem também
pela sua forma de expressão. Mais ainda: a transgressão no plano da
superfície dos fenômenos toma-se praticamente fundamental, cm ní­
tido prejuízo da transgressão semântica, que é julgada como parte de

(") Karl Rosenkranz, op. cú.. que foi recentemente objccto de estudos de
estética, por exemplo, no âmbito do Centro Internacional de Estética de Paler-
mo, que também tratou da sua tradução para o italiano, em 1984.
uma dimensão idcotógica provavelmente ultrapassada ou a ultra­
passar.
Teremos uma nova prova daquilo que estamos a dizer se nos de­
bruçarmos sobre algumas operações artísticas recentes. Tomemos o
caso de um pintor americano como Keith Haring. Algumas das suas
obras são acumulações excessivas de cor e incrustaçõcs de vemiz.
Mas não se trata do gesto informal — «político» — de qualquer pa­
rente afastado da Action Painting ou dos Informais europeus. Não há
conteúdo trágico nos montões de matéria cromática do Palladium de
Nova Iorque. É antes um «feio» não contraposto polcmicamente a um
«belo» c revalorizado. É um «feio» que é «belo». O mesmo discurso
vale para numerosos «ismos» recentes, quase todos aparentes retoma­
das de temas de há trinta anos atrás, e, pelo contrário, fortemente dife­
renciados. Os grafitistas norte-americanos não são de modo algum
muralistas sul-americanos. Não iremos buscar a Arman os expoentes
da «arte das recusas». Não há que fazer do expressionismo ou do fau-
vismo, nem de Rothko ou Bamett Ncwman, a pintura dos expoentes
da chamada «transvanguarda». Aquilo que desapareceu cm tais expe­
riências talvez tenha sido o rcfcrcncialismo das temáticas representa­
das, a importância do conteúdo. Resultado: uma pesquisa substancial-
mente «decorativa» (termo usado aqui cm sentido absolutamente nada
negativo), de superfície, de materiais, de organizações formais. O ex­
cesso de que se falava toma-se assim cm excesso representado tam­
bém por um excesso de representação, isto c, uma espécie de «dema­
siado» no âmbito da forma. Não c inutilmente, de resto, que mesmo a
forma das obras de artistas actuais requeira um dispêndio e uma quan­
tidade de materiais enormes.
Pode chegar-se a casos de monumentalismo e de gigantismo^):
desde o embrulhar das muralhas aurelianas de Roma c do deserto aus­
traliano feitas por Christo, até à transformação de uma colina cm es­
cultura, como no ambicioso projecto para o cemitério de Urbino por
Arnaldo Pomodoro, até à transformação da praça cm frente do Palais
Royal cm Paris, por parte de Daniel Burcn. Como se vê, estamos ple-
namente chegados à segunda categoria inicial, a do excesso de repre­
sentação, explicando-a como co-ncccssária ao excesso representado.
Configurar um conteúdo excessivo, de facto, modifica a mesma estru-

('?) O gigantismo foi estudado recentemente num número especial da re­


vista Co/nfnMfHcanony (n.- 42, 1984), testemunho de que prática e teoria estão
muitas vezes sujeitas ao mesmo gosto e espírito do tempo.

76
tura do seu contentor e requer dctc uma primeira moda!idade de apa-
rição espacial: a a excedê/teia. Desmcsura c excedência
estão entre as principais constantes formais dos contentores neobarro-
cos, sobretudo no âmbito da civitizaçâo de massas. Basta reflcctir so­
bre a ampiidão cada vez maior de certas manifestações em púbtico.
N o desporto, por exemplo, as olimpíadas e os campeonatos mundiais
de futebol atingiram dimensões organizativas impressionantes e de to­
dos eles o emblema triunfante foram os Jogos Olímpicos de 1984, em
Los Angeles. Espectáculos como o Live Aid ou a «marcha da paz»,
com a ligação simultânea entre as principais cidades do mundo, são
um caso ulterior de procura de um «contentor universal» por meio das
tecnologias de comunicação. Mas também as manifestações artísticas
sofrem o mesmo fascínio. O «efeito Beaubourg» está agora a ganhar
raízes em todo o mundo ocidental, tanto na muscografia como na pre­
paração de exposições temporárias. Uma lista rápida: o projecto do
«grande Louvrc», com a famosa pirâmide de vidro de Pci, cm Paris, o
Museu de Orsay e o Museu de La Villete, sempre na capital francesa;
a circulação das grandes exposições entre a Europa e a América (os
impressionistas entre Londres, Paris e Los Angeles; o século XVII
cmiliano entre Bolonha, Washington c Nova Iorque; Donatcllo entre
Chicago, Dctroit e Florença; o Liberty vienensc entre Veneza, Viena c
Paris; as peregrinações da colecção Thysscn de Lugano e das colec-
ções soviéticas); a programação Fiat do Palaxzo Grassi, em Veneza.
Até a indústria cede à tentação cspectacular: e assim temos o ressurgi­
mento de um espírito «fin de siécle» na organização das Exposições
Universais, que assistiram à afluência, em 1985, a Tsukuba, no Japão,
de cerca de 12 milhões de visitantes, e, cm 1986, em Vancouvcr, no
Canadá, de quase 15 milhões('*).
Mas os conteúdos representativos c a representação dos conteúdos
oferecem meras indicações de comportamento, também elas excessi­
vas. O comportamento adequado aos textos e á sua forma é de facto
«anormal», no sentido da cultualidadc mais desenfreada. Pensamos
cm todos os fenômenos de histerismo de massa a que se tem assistido
nos últimos tempos. Deste ponto de vista, não fazem muita diferença
fenômenos como a criminalidade dos adeptos de futebol britânicos no
estádio de Hcyscl, na Bélgica, durante a final da Taça dos Campeões,

(") Sobre o «fin de siccle», existe um número monográfico da revista


/raver.se.s (n.° 37.1984).

77

SA L A DE E ST U D O S
disputada entre o Juventus c o Liverpool, cm !985, ou o delírio das
massas pelos mcgaconcertos roc/r das stars mais famosas. E no mes­
mo horizonte do excesso poderemos colocar comportamentos rituais
como o dos espectadores que regressam obsessivamente ao mesmo ci­
nema de Nova Iorque e Londres há quase dez anos, c há seis aos de
Paris e Londres, para verem o Poc%y //orror Pictare 5Aow, assumindo
eles próprios a aparência e as acções das personagens da película e en­
cenando «espectáculos de fruição». Ou a cada vez mais frequente
construção de «maratonas de espectáculo», com visionamento de qua­
tro filmes consecutivos à noite, ou quilométricas partidas de bola.
Mais «tranquilas» são, por seu tumo, as maneiras de exibir a própria
vida privada, teatralizando-a. No mesmo plano, então, poderemos
colocar a chamada procura do iooL amplamcnte favorecida pelo ac-
tual desenvolvimento da moda c o renascimento das grandes festas
«de corte», em tempos apanágio da aristocracia de sangue e hoje pos­
tas em circulação pelas mais variadas novas aristocracias. Alguns rá­
pidos exemplos: a festa organizada pelos Rotschild em Paris cm 1985
para a reabertura do Museu das Artes Decorativas, na qual foi servida
uma ceia magnífica a 200 convidados num salão do edifício, enquanto
alguns outros milhares de convidados «não de primeira classe» assis­
tiam das galerias do piso superior, como num fresco de Ticpolo; a fes­
ta de abertura da exposição Patarisrno & f ataris/nos, em Veneza, no
barco Oricní Express, dada pelos Agnclli; a parada da alta sociedade
veneziana em torno do ministro da Indústria, De Michclis; os novos
casamentos em grande estilo, desde o de Carlos e Diana de Inglaterra
até ao de Pippo Baudo c Katia Ricciarelli, aos das vergôntcas dos
Grandes Ricos. Não é por acaso que, à volta destas práticas, chegam a
nascer novos mesteres, como o de «arquitccto das festas», «designers
de culinária», «caHering» (isto é, gestão de banquetes), «arquitccto pi­
rotécnico» (que desenha os fogos-dc-artifício).
Uma outra característica, quanto à desmesura quantitativa, é a da
desmesura qualitativa, ou seja, o virtuosismo. E de novo podemos di­
zer que encontramos este traço em todos os níveis categoriais. Existe
realmente o virtuosismo como tema tratado, por exemplo, no filme so­
bre Diaghilev, ou nos Encontros co/n Personagens Enanentes, de Pc-
ter Brook, ou na série de televisão fa/na. Mas o tratamento do virtuo­
sismo requer também formas textuais virtuosísticas: não serão assim
certos filmes, como Os éa/teadores da /Irca Perdida, ou os últimos
produtos de Fcllini, desde a magistral cena do desfile de moda ecle­
siástica, cm Po/na, até a O /Vavio? E não é virtuosismo a agora impe-
rante característica dc cada pcr/bwMncg, até na pintura a partir do
hiper-reaiismo para alcançar certrts manifestações contemporâneas,
como a citação mais-que-perfeita dos primitivos flamengos no ame­
ricano Murray, a reprodução ligeiramente desviada das naturezas-
-mortas teóricas maneiristas no napolitano Cantone, a representação
metafísica cm Scolari, os «falsos de autor» do Collctivo Falsari de
Cremona? Assim como são virtuosísticos certos comportamentos quo­
tidianos, desde a visão eu/; de certos cinéfilos ao regresso dos AoMies
mais estranhos e dos coleccionismos mais particulares, que implicam
uma «superespccialização fruitiva», nos limites do maníaco. E, repita­
mo-lo, estes comportamentos reais até são sempre induzidos pelos tex­
tos porquanto inscritos neles. Um par dc exemplos: em Fama (no fil­
me, não na série, desta vez), dois alunos da escola de artes que serve
de moldura à história encontram-se precisamente a assistir a uma exi­
bição do /?oc%y //orror Fíctarg 5Aow, na qual outros jovens declamam
a recitação da fruição; e em Grem/ms os monstrinhos de Spiclberg que
ocuparam a cidade assistem do mesmo modo à Franca dc /Veve dc
Walt Disney.
Em conclusão, poder-se-ia referir o facto de que os excessos nco-
barrocos dos nossos tempos, precisamente por incidirem não só sobre
os conteúdos, como também sobre as formas e as estruturas discursi­
vas, e não sobre a recepção dos textos, não produzem necessariamente
inaccitabihdadc social. Só cm alguns casos, de facto, sobretudo dc
conicuífõjã superação dos confins sistêmicos (principalmcntc éticos)
implica a rejeição por parte do mesmo sistema. Noutros casos — desta
vez e em particular os respeitantes às formas e às estruturas — , o der­
rube dos confins não provoca destruição ou exclusão, mas apenas des-
/ocaçdo das /ronteiras. A fronteira, por causa de um excesso «aceitá­
vel», c simplesmente empurrada mais paru lá (até muito mais para lá
do que dantes), com a consequente absorção, mesmo que conllitual.
do excesso. Podemos dar a seguir casos intermédios, nos quais tam­
bém os excessos dc conteúdo permitem a absorção no sistema. Primei­
ro, porque o sistema se torna mais elástico nas suas próprias fronteiras
e isola certos fenômenos na periferia ou nas margens, à maneira dc
gueto. Segundo, porque todo o sistema no seu conjunto se torna elás­
tico (pelo que surgem princípios dc «tolerância», «permissividade»,
«libertarismo», etc.). Terceiro, porque o sistema consegue integrar o
excesso, desviando-o do objcctivo c, assim, tomando substancialmcn-
te normal uma aparência excessiva. Este último princípio, na realida­
de, é uma constante reguladora dc qualquer sistema social (político,

79
dc gosto, religioso) e consiste na criação de antídotos ou anticorpos ao
próprio excesso, ate mesmo nos iocais em que o excesso tenha come­
çado a funcionar. Isto também expiica o caracter inevitavelmente in­
flacionário dc cada movimento que se verifique nos limites dc um sis­
tema: deslocando-se eles cada vez mais além, o trabalho também
deve, por consequência, acertar o ponto de mira, exagerar e exasperar
a acção.
Com as últimas observações, chegamos à introdução de um crité­
rio de diferenciação entre as várias operações ncobarrocas que tenham
como objccto a acção sobre o limite ou por excesso. Antes de mais na­
da, vejamos o seguinte esquema:

épocas

estáticas dinâmicas

centralismo bloco trabalho sobre trabalho por


dos confins o limite excesso

Podcr-se-ia dizer que enquanto as épocas estáticas promovem o


seu centro sistêmico, ou cancelam a possibilidade dc ultrapassar os li­
mites bloqueando a fronteira do sistema, as épocas dinâmicas traba­
lham sobre a periferia e sobre o confim. O limite e o excesso apare­
cem, neste sentido, como duas categorias opostas; a primeira produz
inovação ou expansão do sistema, e a segunda, revolução ou crise do
mesmo. No nosso caso, no entanto, estamos perante uma situação
mais complexa. O gosto ncobarroco parece promover um andamento
ou /nino, utnas vezes permutando os termos da oposição, ou­
tras anulando-os. Por exemplo: usa o limite fazendo-o parecer excesso
porque as ultrapassagens dos confins acontecem no plano formal; ou
então usa o excesso, mas chama-lhe limite para tornar aceitável a re­
volução de conteúdo único; ou, enfim, torna indistinguível e confusa
uma operação ao limite ou por excesso. Ao contrário das épocas pro­
priamente dinâmicas (querería dizer «revolucionárias»), o gosto neo-
barroco configura-se como perenetnente cm suspensão, excitado mas
nem sempre propenso à subversão das categorias de valores. Por este
motivo, não se diz que certas operações de estilo das vanguardas po­
dem entrar no neobarroco. O gesto dadaísta é excessivo, c visa a crise
do sistema. O gesto neodadaísta pode configurar-se até como «accitá-
ve!», se for feito surgir como excesso e 6, por seu tumo, puro trabalho
sobre o limite. Analogamente, o protesto estudantil do tipo «movi­
mento de 86» é excessivo, mas apresenta-se como limite e vai à pro­
cura da aceitabilidade social. Os critérios de juízo, dc consequência,
surgem suspensos, bloqueados, fora de escala.
IV

PORMENOR E FRAGMENTO

1. A parte e o todo

- A tradição filosófica conhece muito bem a dialéctica existente en­


tre a idcia de «todo», ou totalidade, ou globalidadc, e a idcia de «par­
te», ou porção, ou fracção. Sem voltar ao coração do debate, bastará
ao nosso objectivo sublinhar que, do ponto de vista linguístico, o par
«partc»/«tudo» é um par típico de termos interdefinidosf). Um não se
expiica sem o outro. Os dois termos mantem reiações de reciprocida­
de, implicação, pressuposição. Acrescentaremos, por outro lado, que a
sua relação não se esgota na oposição simples do par de termos, mas
que pode também ser ultcriormcnte «estendida», ou alargada, até atin­
gir a máxima expiicitação. Isto acontecerá se o ligame potencial que
reúne os dois pólos da oposição for, por sua vez, concretamente defi­
nido segundo um critério dc pertinência, ou ponto de vista. Mas, de
tacto: na ideia dc «todo», ou dc «inteiro», ou dc «sistema», ou de
«conjunto», existe a pressuposição da «parte», ou do «elemento», ou
do «pormenor», ou do «fragmento» ou da «porção», c por aí fora. N o
entanto, tal pressuposição torna-se inteligível se o par, no seu conjun­
to, for interpretado de maneira «orientada» a partir dc um critério de
observação. Por exemplo, teremos uma interpretação segundo a dia-

(') Cf. Fernando Git e Jcan Petitot, «Uno/motti», in Enctcíoper/ia, Einau-


di. Turim. 1982. vot. 14.
léctica «sistcma»/«clemento» se tornarmos pertinentes o nosso par se­
gundo a ideia de con-sisfcncia. isto 6, de funcionamento simultâneo do
todo e das suas partes. Ou então teremos a do «inteiro»/«fracção» se,
pelo contrário, tornarmos pertinente o mesmo par segundo a ideia de
isto 6, de comportamento do todo e da parte cm conse­
quência dc uma operação de exagero sobre o inteiro. Ou, finalmcnte,
teremos a dc <^pbal^«local» se tornartnqs_pcrtincnte^par a partir da.^
noção de co/ocaçáo das partes em relação ao todo.
Também os termos «pormenor* e «fragmento» sc podem examinar
em relação com as suas específicas relações com certas idéias de «to­
do» c de «parte». Eles são, dc facto, sinônimos «orientados» da pola­
ridade «parte», c opõem-sc a uma qualquer concepção específica de
«todo», ela própria orientada. Como veremos, até mesmo as respecti­
vas interpretações da categoria, por seu turno, sc colocam em oposição
recíproca. Assim, «pormenor» e «fragmento» tomam-sc por sua vez
termos interdefinidos: a partir da sua homologia em relação à polari­
dade «parte» c a partir da sua oposição a respeito da interpretação da
categoria «parte»/«todo».
Esta rápida premissa teórica é necessária para mostrar como a par­
tir dc um nível semântico de base se pode articular um autentico siste­
ma de diferenças lexicais, o qual se pode tornar útil quando, como fa­
remos dentro cm breve, tentarmos analisar não só os termos verbais
como as práticas dc análise ou dc produção dc sentido que possam ser
dedicadas ao «detalhe» e ao «fragmento» como utensílios interpretati-
vos, ou como efeitos estéticos. De particular relevo, de resto, tudo isto
surgirá prccisamcnte no âmbito das práticas críticas ou criativas que
dizem respeito aos objcctos visíveis. Do ponto de vista crítico, de fac­
to, a análise das obras através do uso do pormenor ou do fragmento é
não só comum, como também matcrialmcntc evidente (pensamos cm
todos os pormenores que a história da arte nos mostra, ou cm todos os
fragmentos que a arqueologia utiliza). E, novamente dc um ponto de
vista criativo, é muito frequente os artistas contemporâneos precede­
rem ao fabrico dc obras-pormenor ou dc obras-fragmento. As novas
tecnologias, enfim, propõem-nos hoje maneiras renovadas dc entender
o pormenor c o fragmento, sobretudo no seio dos meios dc comunica­
ção social. Em conclusão: observar o (ou os) critério(s) dc pertinência
segundo os quais sc opera por pormenores ou por fragmentos pode
dizer-nos algo acerca dc um certo gosto no estabelecimento dc estra­
tégias textuais, quer dc gênero descritivo, quer criativo. O primeiro
critério dc pertinência sobre o qual sc baseia a noção dc divisibilidade

34
er^tC, ^ T -tctr-y - Yv ^

dc uma obra ou de um objccto qualquer, e que é pressuposto pela pró­


pria possibilidade de denominar qualquer coisa como pormenor ou
como fragmento, é consútaídoqtcla^difcrcnça entre pelo menos dois ti­
pos de divisibilidad^fo corte c a ruptura^Nas páginas que sc seguem,
tentaremos demonstrar^que não SÓ Os dois conceitos estão cm oposi­
ção, como também eles correspondem a acções efectivas, ou melhor, a
prática significantes, verdadeiras dem arcar epistemológicas, até en­
tão mesmo a duas estéticas. Isto, evidentemente, no geral c no abstrac-
to, porquanto, como sempre, as polaridades de uma categoria já não se
apresentam nos fenômenos, mas podem dar lugar a objcctos mistos c
altamente combinados. Sob a forma de r/egan, designarei a primeira
prática com o nome dc /vddea da arrarrma c a segunda com o de prá­
tica da áctcctivç, até porque seria possível exemplificá-las com os pa­
péis temáticos do mais clássico dos entrechos do gênero, o romance
policial. As analogias e as diferenças entre as duas práticas serão ilus­
tradas através de três secções:

a. a etimologia, que consideraremos como uma espécie dc me­


mória lexical dc um percurso de sentido;
d. o estatuto de algumas ciências humanas, que repensaremos
como práticas mctadiscursivas;
c. o estatuto dc duas estéticas, que observaremos como acto
de valorização dos procedimentos analisados nos pontos
precedentes.

A conclusão será a de observar se, no âmbito de uma oposição ca­


tegoria!, no fim de contas, mais tradicional do que parece, no gosto
contemporâneo se terá aberto caminho a alguma maneira particular de
a realizar, ou a uma orientação tal que se desfaz o seu equilíbrio numa
ou noutra direcção.

2. Etimologia do «detalhe»

«Detalhe» vem do francês renascentista (e, por sua vez, obviamen-


tc, do latim) «de-tail», isto é, «talhar dc»Nsto pressupõe, portanto, um
sujeito que «talha» um objecto. O facto é ulteriormente confirmado
pela existência da forma reflexa «talhar-se», ou seja, talhar-se a si pró­
prio, e não do termo «re-talho», que indica a existência de um talho de
um conjunto já anteriormente efectuado por alguém. Podemos dizer
então que na palavra se manifesta um programa de acção inteiro: a ac­
ção que mudará a rciação entre sujeito e o objccto do talho. A preposi­
ção «de» implica a precedência de um estado anterior ao do talho e
outrossim a provcnicncia do elemento talhado de um conjunto inte­
gral. Por outro lado, o verbo «talhar» foca a atenção sobre a própria
acção do sujeito e, portanto, induz a pensar no facto de que todo o pre­
cedente e a parte sucessiva são concormitantes na acção. Finalmcnte, a
relevância da acção de talhar sublinha o facto de que o detalhe é dado
como tal pela acção do sujeito: daí que a sua configuração dependa do
ponto de vista do «detalhante», que por via de regra explica a razão do
detalhe e lhe esclarece a causa subjectiva e a função.
Uma segunda reflexão respeita ao valor a atribuir ao prefixo «de».
A partícula, de facto, não só manifesta uma anterioridade e uma ori­
gem do detalhe, como também ilustra a natureza da operação. O deta­
lhe, em suma, é «de-finido», isto c, tomado perceptível a partir do in­
teiro e da operação de talho. Só o inteiro e a substância da operação
permitem, de facto, a do detalhe, isto é, o gesto de pôr em
relevo motivado pelo elemento em relação aq todo a que pertence. Por
outras palavras: o detalhe é aproximado por meio de uma precedente
aproximação ao seu inteiro; e percebe-se a forma do detalhe até que
esta fique em relação perceptível com o seu inteiro (até há a mesma
matéria, até há contornos que são também linhas de divisões do intei­
ro, e por aí fora). Existem assim pelo menos dois limiares qualitativos,
acima e abaixo dos quais não se dá detalhe. O limiar inferior é repre­
sentado por um limite propriamente pcrccptivo: por exemplo, o grão
do material em comparação, a textura do inteiro, a consistência eidéti-
ca, que se pressupõem não divisíveis até ao infinito. O limiar superior
é, por seu lado, representado pela dimensão do detalhe ou sua foca­
gem, que se pressupõe constituírem, além disso, uma certa rciação
quantitativa com o inteiro: o detalhe de um quadro grande «quase
como um quadro» é, por assim dizer, o cúmulo do detalhe.
Há um outro mecanismo implícito na operação de detalhar, e este
revela muito mais acerca do modo como se constrói o dMcarw por de­
talhes. Até porque produzir detalhes depende de uma acção explícita
de um sujeito sobre um objccto, c pelo facto de inteiro e partes esta­
rem simultaneamentes presentes, o discurso por detalhes prevê a apa­
rição de marcos na enunciaçãof), isto é, do ea-atyai-agara da produção

(3) Entende-se por «cnunciação» o simulacro da comunicação que surge


num texto em primeiro grau como relação entre obra e leitor (ou entre «autor»
do discurso. Existem casos em que isto c óbvio, como quando assisti­
mos no cinema ou na tcicvisão ao uso do zoom.* a aparição de um es­
paço de cnunciação e de um sujeito manifestado por um «olhar» que
se aproxima é evidente; outro tanto sucede quando, ainda no cinema
ou na televisão, se adoptar um retardador: também aqui imediatamente
nos apercebemos da existência de um sujeito-olhar que retarda a vi­
são, e ainda mais sentimos a existência de um tempo de cnunciação.
Um último esclarecimento c fornecido pela natureza da operação
detalhante, ou melhor, pela sua função. Quando se «lê» um inteiro
qualquer por meio de detalhes, toma-se claro que o objcctivo é uma
espécie de «ver mais» no interior do «todo» analisado. Até ao ponto
de descobrir características do inteiro não observáveis à «primeira vis­
ta». Ã função específica do detalhe, por consequência, é a de re-cons-
tituir o sistema de que o detalhe faz parte, descobrindo-lhes leis ou
pormenores que anteriormente não se revelavam pertinentes para a sua
descrição. A prova disto está cm que existem formas de excesso de
deto/Áe que fazem que o próprio detalhe se torne sistema: neste caso,
perdem-se as coordenadas do sistema de pertença ao inteiro, ou então
o inteiro desaparece por completo.

3. Etimologia do fragmento
/ ^
Completamcnte diferente é a etimologia deí«fragmcnto», que deri­
va do latim «frangerc», ou seja, «quebrar». Dc^frangCrc» derivam
também, entre outros, mais dois vocábulos, que constituem parte em
rciação a um todo: «fracção», e «fractura»^). Note-se que a sua diver­
sidade depende da marca temporal que escande a rotura: o fragmento

e «leitor»), e em segundo grau como rciação comunicativa qualquer (por


exemplo: um diálogo numa história é uma cnunciação enunciada). Sobre a
teoria da cnunciação, cf. Emile Bcnvcniste, ap. cá.,' Algirdas J. Grcimas, ap.
cã..' Oswald Ducrot, «Enunciazione», in Encic/apedta, Einaudi, Turim, 1979,
vol. 3; t'd., D ire et ne pas dire, Hermann, Paris, 1972 (trad. it.: D ire e nart dire,
Officina, Roma. 1979).
P) Na verdade, as palavras citadas derivam de vocábulos latinos diferen­
tes, embora talvez com a mesma raiz: assim, «fragmento» vem de/ragrrtentM,*
do latim jr<Mpere deriva «franger», que significa «quebrar», «violar», e, em
linguagem popular, «ranger»; «fracção» deriva de/racfiofte,' e «fractura» vem
do latim JracíMra. Em italiano, «frangere», igual à palavra latina, significa
«quebrar», «romper», tradução adoptada pelos dicionário. (N. da TJ

37
sucede-lhe, a fracção 6 o ac to divisório, a fractura c uma potencialida­
de de rotura não necessariamente definitiva.
__0 fragmento pressupõe, mais do que o sujeito do romper-sc, o seu
objccto. A prova disto c que o verbo «romper» possui uma forma re-
ftexa passiva. Difcrcntcmcntc do detalhe, o fragmento, embora fazen­
do parte de um inteiro anterior, não contempla, para ser definido, a sua
presença. Assim: o inteiro está in a&R?ntia. E, de facto, do ponto de
vista discursivo, a operação da rotura ó escalonada num discurso his­
tórico c não num discurso com cariz de cnunciação. O fragmento dei­
xa-se assim ver pelo observador tal como é, c não como fruto de uma
aeção de um sujeito. É determinado pelo caso, se assim quisermos di­
zer, e não por uma causa subjectiva. Como é natural, isso acontece no
momento cm que o fragmento surge num discurso, não naquele cm
que evcntualmcntc se rcconstrói a razão do seu ser fragmento. Outras
diferenças em relação ao detalhe são que os confins do fragmento não
são «dc-ftnidos», mas sim «inter-rompidos». Não possui uma linha nt-
tida de confim, mas antes o recorte de uma costa. Assim, podemos di­
zer que ate a oposição^entre caso c causa, que o diferencia do detalhe,
se traduz numa geometria fraccionária, assim como o segundo expri­
me, pelo contrário, uma geometria plana, tradicional c regular^).
Mas, na realidade, a geometria do fragmento é a de uma ruptura
cm que as linhas de lrontcira devem considcrar-sc como motivadas
pór forças (por exemplo, forças físicas) que produziram o «incidente»
que isolou o fragmento do seu «todo» de pertença. A análise da linha
irregular de Ponteira permitirá então nao uma obra de rcrcaastúnicão,
como se disse a propósito do detalhe, mas <(cre-con.MrMção, pela via
de hipóteses, de sistema de pertença. Pressuposto assim, também ele,
como patte de um sistema, o lragmcnto não é eayt/icario. Ao contrário
do pormenor, o qual, pelo contrário, embora pressuposto do mesmo
modo, cxpiica & ama maneira nova o mesmo sistema.
Por estas razões, o fragmento não c metido num discurso deixando
traços de cnunciação. O discurso mediante fragmento ou sobre frag­
mento não exprime um sujetto, um tempo, um espaço ria cnunciação
(cxccpto se o examinarmos cm detalhe). E os seus limiares são, por
isso, puramente quantitativos: um limiar microscópico (acima do qual
não se reconhece um objccto como fragtncnto, mas apenas como
«poeira») c um macroscópico (acima do qual se percebe apenas o in-

'
(") Cf. in/ra.S VI.

&S L *YY*re t rTT


teiro a que falta algum pormenor). Por exemplo, uma pequena pedra
não colorida, nào trabalhada, é como poeira se o objectivo c chegar â
reconstrução da forma de um templo. E, do mesmo modo, uma cstãtua
a que falta apenas o dedo mínimo do pé esquerdo não é um fragmento,
mas sim um total com uma lacuna.
Finalmcnte, também para o fragmento existe uma forma de exces­
so que modifica a sua natureza: o fragmento torna-se ele próprio sis­
tema no caso de se renunciar à pressuposição da sua pertença a um
sistcm a0.

4. A propósito de algumas ciências humanas

Como foi prometido, procuraremos agora transferir para um plano


gera! as considerações desenvolvidas até este ponto. E notamos ime-
diatamente que, no âmbito das ciências humanas, podemos retomar
práticas de análise facilmente denomináveis por meio de uma semân­
tica do pormenor ou do fragmento. Por outras palavras: existem for­
mas de análise que utilizam uma intrumento-detalhe ou um instrumen-
to-lragmcnto como estratégia de pesquisa, descrição ou explicação
dos fcnómcnos. A oposição categorial encontrada lcxicalmcnte conti­
nua a funcionar do mesmo modo. E isto permite então contrapor uma
epistcmologia do pormenor a uma epistcmologia do fragmento.
Em linhas mutio gerais, poderemos dizer que a análise dos fenô­
menos «cm pormenor» resulta de tipo substancialmcnte dedutivo, ou
hipotético-dcdutivo. O detalhe é, de facto, pensado como porção de
um conjunto, que permite, mediante o exame mais de perto, regressar
sobre, ou reler o ststcma global de que foi provisoriamente extraído.
Existem disciplinas, no interior das ciências humanas ou das próprias
matérias científicas, que são quase naturalmentc levadas â análise em
pormenor. Por exemplo, o estruturalismo cm linguística, semiótica,
antropologia, parté da concepção de um fenômeno como pormenor de
um sistema provido de uma estrutura^). O fenômeno, permitindo uma

(5) isto é, quando se apresenta uma obra fragmentária de aspecto verda­


deiramente inteiro. Neste caso. falta a sua referência, e o «fragmento» nada
pressupõe fora dele, remete para a sua pura fenomenologia.
(6) Cf. Giovanni Carcri, «!1 dettaglio patético», Mcíq/brg, t, 1986, no
qual se mostra como os pormenores dos quadros se podem tomar obras autô­
nomas. Mas isto depende da natureza da análise. Na realidade, parte-se do

39
leitura aproximada, por um lado é explicado pelo sistema (ou pela es­
trutura) e, por outro, permite verificar ou reformular a própria estrutu­
ra. Idêntico princípio serve para o fenômeno em si: este manifesta as
regras gerais sistêmicas sendo sistema na primeira pessoa, isto é, dota­
do de uma estrutura; assim, os seus detalhes permitirão verificar a sua
estrutura, por um lado, e, por outro, serão analisados a partir da ideia
de que o conjunto estará estruturado. Mas o mesmo princípio serve
também para as disciplinas que não nascem como estruturalistas. No
âmbito da história da arte, por exemplo, a iconologia funciona da mes­
ma maneira. Ela contempla uma teoria dos níveis de significado: a
análise prc-iconográfica, a iconográfica e a iconológica. Na primeira,
reconhecem-se numa obra os «motivos», como figuras naturalmente
reconhecíveis; na segunda, a combinação dos motivos conduz ao re­
conhecimento dos temas; na terceira, rcmonta-sc ao conteúdo simbó­
lico c â atitude deste produto num ambiente determinado^). Mas isto
nada mais é do que uma observação de porções da obra segundo um
sistema de aproximação ao particular com o objectivo de reler e rein-
terpretar o inteiro. A obra é considerada como um sistema dotado de
um conteúdo mais ou menos oculto, no qual cada porção é remetida
ao significado global, e produz sentido a mais níveis, segundo o siste­
ma de relações pelo qual estas se integram com as outras.
A que se baseia no exame dos fenômenos como fragmentos/é uma
prática analítica dc tipo, pelo contrário, substanctalmetue indutivo, ou
abdutivo(^). O fragmento c cm geral uma porção presente que reenvia
para um sistema suposto como ausente. A mediante fragmentos tem
mais o aspecto de um inquérito do que de uma pesquisa analítica. Não
é por acaso que cm certas disciplinas naturalmcnte dirigidas ao frag­
mento se tem muitas vezes a impressão da procura do sM.spe/Me, isto é,
de uma progressão aventurosa em direcção a uma solução suposta e
eventualmcnte confirmada. Nas mesmas ciências da linguagem, que
primeiro até tínhamos dedicado ao detalhe, existe também uma verten-

pressuposto de que a parte mostrada diga qualquer coisa «mais» sobre o siste­
ma de pertença apenas porque detalhe e inteiro partilham em cada parte o
mesmo «sentido».
C) Ornar Calabrese, // /t/tgMtrggío Bompiani, Milão, 1985.
f ) Entcndc-sc por «abdução» a escolha de uma hipótese que possa servir
para explicar factos empíricos; a verificação de parte destes últimos transfor­
ma-a em lei. Cf. Umbcrto Eco, 7raMrM<?..., cit.; Charles Sandcrs Pcircc, Co/íec-
tedPupers, HarvaTd University Press, Cambridgc, 1931-1936.

90
tc oposta. Pode pcnsar-se, por exemplo, numa semiótica «fragmentá­
ria»: a que parte do conceito de aMação de Pcirce, e que, pelo menos
nas manifestações modemas, parece mais uma prática de detecção do
que de dedução. Não é por acaso que numerosos semiólogos de matriz
pcirciana dedicaram um volume de pesquisa, O -Sina/ doy ), à in­
vestigação dos grandes narradores, ou melhor, ás personagens de
Shcrlock Holmes e Auguste Dupin. E Cario Cinzburg tentou definir a
existência de um «modelo conjectural» do conhecimento que seria
acolhido, no final do século XIX, por três grandes pensadores em três
âmbitos disciplinares diferentes: Peirce, na lógica e na semiótica,
1-rcud na psicanálise e Giovanni Morelli na história da artc('°). Da se­
miótica, já se falou. No que concerne à psicanálise, efcctivamentc a
prática freudiana concebe o relato do sonho como objccto indiciador.
<) sonho é reconduzido a um inteiro que é a personalidade do paciente,
mas este inteiro não c conhecível, e só sc pode reconstruir a partir do
próprio sonho, que c um fragmento daquele intciro("). Quanto â arte,
rucontramo-nos perante o mesmo princípio. Todo o atribuicionismo
ou prática de connoi.MeMrj/iip considera a obra monumcntalmente
anônima como fragmento de um sistema do qual se deve reconstruir o
conjunto em falta (a «pertença» a algo, ou até a pertença a uma obra se
o objccto de que dispomos for ele próprio um fragmento concreto). Ou
então, pensa também que pequenos pormenores pertencentes à obra
podem literalmente ser extraídos dela e analisados como «fósseis-
guia»: são, de facto, eles que manifestam melhor do que a obra com­
pleta a outra e mais fundamental integridade que é a pertença a um au­
tor, ou a um estilo, ou a uma época. Também certa crítica de arte pare­
cerá empenhada na ideologia do fragmento. Por exemplo, a crítica que
numa obra privilegia certas posições do texto, e não outras, exaltando
só aquelas e cancelando a própria obra como global idadc(^).

f ) Umbcrto Eco e Thomas Sebeok (organizado por), /i segno dei ire,


Mompiani, Milão, 1985.
('") Cario Ginzburg, «Spie», in Aldo Gargani (organizado por), Cri.si dei-
/a rngione, Einadudi, Turim, 1979; agora também cm Cario Ginzburg, Afúi,
e/n/demi, .spie, Einaudi, Turim, 1986.
(") Sigmund Frcud, Dic irau/ndetUa/rg, 1915 (trad. it: Z/ifUerpreínzioMe
dei .wgni, Boringhieri. Milão, 1966).
Q ) A obra é, em suma, lida fragmentariamente, como se fosse observada
a partir de uma hipótese parcial, singular e local. A sua produção e o seu con­
sumo são sujeitos ao caso e à ocasião. Assim, com efeito, teoriza Anne Cau-
quetin, Coar! traiié da)èeg/nent, Aubicr, Paris, 1986.

97
É evidentemente no âmbito das discipiinas históricas em gerai, no
entanto, que a crítica «fragmentária» tem o seu máximo desenvolvi­
mento. Não é por acaso que a arqueoiogia trababaiha com hipóteses e
reconstituições precisamcntc a partir de fragmentos reais de obras do
passado. Trata-se, neste caso, de uma necessidade: o tempo destruiu
os inteiros e deixou-nos precisamcntc os fragmentos. O nome de Cario
Ginzburg, citado mais acima, permite-nos recordar que a chamada
«micro-história» funciona ideaimente com fragmentos. De facto, a
pesquisa «não-acontccimentai» prefere o micro-acontecimcnto, en­
quanto, por um iado, eie permite o controio do facto examinado e, por
outro iado, exprime mcihor do que o macro-acontccimento o «espíri­
to» de uma cpoca, que supostamente se mantém mais ou menos anáio-
go em todos os compartimentos c níveis de uma sociedade dada num
momento dadof^).

5. Um esquema de reiações

Com base nas notas precedentes, surge agora ciaro que o uso do
pormenor ou do fragmento como prática anaiítica contempia uma
pressuposição de vaioj^que-sc-dá á relação entre a porção c o sistema a
que cia pertence. Q «regresso» da partejao todo impiica, cm suma,
uma avaiiação diferente, nos dois casos, do cicmcnto e do inteiro.
Quando depois o inteiro, ou «todo», ou sistema, for uma obra de arte,
a avaiiação da mesma rciação tornar-sc-á então uma estética. No caso
do pormenor, de facto, teremos uma tendência para sobreavaiiar o eie-
mento enquanto capaz de fazer repensar o sistema: o detaihe é então,
por assim dizer, «cxcepcionaiizado». No caso do fragmento, pcio con­
trário, a porção toma-se como um acidente, do quai se parte para re­
construir o todo: o fragmento será agora reconduzido a uma sua hipo­
tética «normaiidadc», a que está no interior do sistema suposto.
«Êxccpcionáiidade» contra «normaiidadc», cm suma, tomam-sc
numa nova categoria, que preside ao uso do pormenor c do fragmento.
Vamos aprofundar a sua oposição e expandi-ia, ou articuiá-ia. Para o
fazermos, devemos esquematizá-ia com o emprego de uma terminoio-

(") Para uma panorâmica sobre a escoia histórica que provém do grupo
da revista cf., entre outros, Georges Duby, í e J?êve de f ái.stoire, Pa­
ris, 1983 (trad. it.: // .so^no .storia. Garzanti, Miião, 1986).

92
gia coerente. E tomemos, com este objectivo, uma metáfora científica.
Em topoiogia, pode considerar-se como sistema uma quaiquer curva
controlada pcios parâmetros dos seus valores nas abeissas c nas orde­
nadas, c que digam respeito a uma função. A curva c, por sua vez,
constituída por uma serie de pontos. A esses pontos chama-se «regula­
res» quando obedecem, apenas e somente, à lei da função representada
pela curva. São, pelo contrário, chamados «singulares» aqueles pontos
que, embora obedecendo à função, nela também seguem ao mesmo
tempo uma outra. Pontos a que, por palavras mais cxactas, chamare­
mos «triplos», ou «n-p]i»('"). pontos regulares e singulares podem rc-
presentar-se assim:

Consideramos agora rcgularidadcs c singularidades não já como


tecnicismos matemáticos, mas como metáforas de fenômenos culturais
(no limite, estéticos). A operação é permitida, dado que no uso da lín­
gua isto acontece continuamente. Do ponto de vista lexical comum,
podemos, em resumo, colocar os lemas «singular» c «regular» cm
oposição. Agora, mediante o procedimento de expansão previsto pelo
«quadrado scmiótico»('^), podemos também articular as relações entre
as duas polaridades em contraste, encontrando os seus contraditórios,

(") Sobre os problemas das singularidades, tratados de uma maneira que


não é banal e genérica como aqui, vide René Thom, Aa&i/úé..., cit. Alguns
dos problemas aqui tratados de modo metafórico podem rcconduzir-sc ã pro-
htcmática do indeterminado/não-indeterminado. Em geometria, um «ponto
tulo genérico» é um ponto que muda a ordem que o rodeia, se sujeito ã mínima
perturbação, enquanto um «ponto genérico» não faz mudar a forma de uma
r ontiguração, ainda que submetido a perturbações mais consistentes. Cf. a no­
ta ã margem ao artigo de Thomas Martonc feita por Jcan Petitot, tn Ornar Ca-
l.ihrcsc (organizado por), fie r o ícorico de//'ar<e, Gangemi, Roma. 1986.
(") Sobre a concepção do «quadrado scmiótico», vide cap. 1. 4, nota 45.
genérico

Debruccmo-nos sobre os termos isoladamente. «Singular» e «regu­


lar» são os dois contrários principais. Os seus termos contraditórios
são «não regular» e «não singular», por sua vez cm relação dc subcon-
trariedade. As combinações são a expansão mais interessante. A sin­
gularidade unida à regularidade dá lugar ao «individual», que de facto
realça da singularidade o aspecto individualizador, mas que da regula­
ridade mantem o carácter dc não-evasão da norma. A combinação
oposta une a não-singularidade e a não-regularidadc: os dois aspectos
são, cm certo sentido, neutralizados, c o fenômeno analisado não é
singular, como a sua singularidade também faz perder de vista o resí­
duo de regularidade que conserva. Proponho que se utilize neste caso
o termo «excepcional», que de facto tem em conta a singularidade,
mas que prevê que ela seja também fruto dc uma não-rcgularidade
(por exemplo, a liberdade poética, que é singular por fugir à norma
linguística, mas que se dá utilizando a exccpção gramatical). Final-
mente, o lado oposto nega a singularidade, afirmando a regularidade.
Proponho que se designe este caso com o termo «normal», pois desse
modo será possível ter em conta quer a ausência de afastamento da re­
gra, quer da insistência sobre a adesão à regra.
O esquema serve muito bem para descrever as operações analíticas
conduzidas mediante as estratégias dc pormenor c de fragmchl3i_0_
pormenor consiste na opcRíÇão dc fazer'passar um fenúmeno da área
da individualidade para a da excepcional idade, ou melhor, da polari­
dade do regular para a do excepcional. A prática «detalhante», dc fac-
to, consiste cm «pôr cm relevo», como facto excepcional, uma porção
do fenômeno que dc outro modo surgiria como normal, Complctamcn-
te oposto é olnccánism o que preside à estratégia do fragmento. Dc

94
tacto, o fragmento verifica-sc sempre inicialmcnte como singularida-
de, tatvez por causa da sua própria geometria. Mas da singutaridade o
anatista tenta voitar para a normatidade do sistema dc origem, dc que
o fragmento fazia parte. O fragmento, no seu estado inicia!, í então
uma «emergência», mas esta 6 anulada peta operação de regresso ao
inteiro.

6. Duas estéticas contrapostas


e muitos fenômenos mistos

Já disse anteriormente que a estratégia do pormenor c a do frag­


mento também dão tugar a posições estéticas. A motivação parece-me
bana!. Quando uma prática analítica quaiquer serve dc suporte para a
avaliação dc uma obra («dc artc»^.peio menos), automaticamente tere­
mos a manifestação de um investimento dc vator^O va!or diz respeito
á obra, é verdade, mas o SCtrcrítênO rcsidc tam bem na estratégia dc
base utilizada. Retomemos, para mcihor compreender este assunto, o
esquema de expansão da categoria «singu!ar»/«regu!ar». A combina­
ção que dá lugar ao «excepcional», ou ao «normal», em si e por si não
é necessariamente dotada dc valor estético. Toma-se tal se e só se os
vários termos forem por sua vez investidos dc tal valor, como se se in­
serissem em implícitas proposições que lhe garantem a aprovação ou a
reprovação por parte de um sujeito, individual ou colectivo. Certas
poéticas interpretativas, com efeito, funcionam precisamente deste
modo. Por exemplo, as vanguardas deste século contribuíram para va-
torizar enormemente a «cxcepcionalidade» contra a «normalidade»:
basta pensarmos no princípio da «fuga à norma» enunciado por Sklov-
sky e pelos formalistas russos, na qual consistiría a própria função
estética da linguagcmC"). Pelo contrário, outras poéticas (por vezes
definidas como «classicistas») insistiram mais na valorização prcci-
samente da norma ou do cânone dc beleza. Uma prova: a explícita

(' ) Sobre este tema, cf. Tzvctan Todorov, / yàr/na/tyn Einaudi, Tu-
' im. 1964; Viktor Sklovski, Tearia ;M/a praya, Einaudi, Turim. 1964; Roman
takobson, -Saggi <á ángaLtica gcw ra/e, Fcftrinclli, Milão. 1966.
C l J"hn Summerson, V/te C/a.wára/ Langaage a f /trcM ecíare, Methuen
& t o., Londres, 1963 (trad. it.: // /ingaaggiac/aMÍcade/Farc/táeHtta-a, Einau­
di. 1 urim, 1970); Bruno Zevi, V/ /ingMaggia /naderna deí/'arc/:áettara, Einau­
di. Turim. 1973.

93
contraposição dc títulos c conteúdos em dois livros, agora antigos, de
historiografia «formai» da arquitectura, o dc John Summerson, com o
títuio A Linguage/r: CM,r.Hca r/a /trr/ttàectMra. e o de Bruno Zevi, inti­
tulado A íátgMdgtvn Aío&raa tia Ar<yMÍrecmra('^). No primeiro caso,
intcrprctam-sc as várias «gratnáticas» dos ciassicismos históricos
como diferentes adaptações à norma identificada com o racionaiismo
da antiguidade grcco-romana. N o segundo, entende-se a modernidade
(toda a modernidade, e não apenas a contemporânea) como desvio ao
dogma, à regra, â repetição formular(^). , r
—Í^A s duas estéticas, do excepciona!'c do norma!, ainda não descre­
vem, no entanto, dc que modo c!as se tomam estéticas do pormenor e
do fragmento. E aqui é preciso introduzir agora um princípio ulterior.
A saber: que quatqucr categoria pode ser investida dc valorizações (no
nosso caso, estéticas). Assim sendo, também-categorias que sejam
combinadas entre si, e que possam revclar-^e/òr/wat/orajac uma esté­
tica e serem valorizadas mediante opcraçOeS-simultâncas ou sucessi­
vas. Vejamos. Dissemos que existem duas estéticas, uma do excepcio­
na! e uma do normal. Elas podem manifestar-se de muitas maneiras.
Uma delas é a análise dos fenômenos a partir dos seus ele­
mentos. Eis que a própria categoria «partc»/«todo» pode ser investida
de valor, caso se escolha, por exemplo, que «pequeno é b elo»/em
oposição à ideia globalista da beleza. Mas, por sén tumo, vimos que a
categoria «partc»/«todo» pode manifestar a polaridade «parte» quer
como pormenor, quer como fragmento. A nova categoria «pormenor»/
«fragmento» pode ser agora ulteriormente investida de valores estéti­
cos. E dar lugar, por exemplo, a poéticas que — no conjunto — privi­
legiam a excepcionalidade da obra, a feitura das suas partes, e a emer­
gência de um detalhe ou a constituição dc um fragmento (a obra como
fragmento, ou as partes da obra como fragmento).
Mais uma vez, no entanto, as definições obtidas mc parecem gené­
ricas ou banais: modelos muito flutuantes de interpretação avaliativa.
Duas considerações se devem acrescentar, para se chegar a descrições
mais concretas. A primeira: que tod,o-o-in\<cstimcnto^4ç valores se
pode dar dc duas maneiras: ou comtQave.Mimeato na/bnte^momento
dc produção dc obras cm qqg se imiicnfrpoêttcas*'subjacentes), ou
comtflfive.vmMCfUo na rcce/rçào (momento dc fruição das obras em

(") O tema da pura eoncepção de uma linguagem arquitcctónica como


«fuga» foi debatido no número especial da revista C asaM ia dedicado à arqui­
tectura como linguagem (430, 1978).
que a própria recepção constitui uma poctica)('"). A segunda: que todo
o investimento dc vaiores se toma emergente como «gosto» quando o
modcio gera) de interpretação avaliativa se toma excedente ou enfáti­
co. Deste modo, obteremos quatro tipos de fenômenos de gosto: uma
poética de produção de pormenores; uma poética de produção dc frag­
mentos; uma poética dc recepção dc pormenores; uma poética de
recepção dc fragmentos. Todos os quatro tipos scrao, por outro )ado,
caracterizados pc)o facto de os dctathcs tenderem para se tomarem
cada vez mais autônomos cm relação aos inteiros, e os fragmentos
para sublinhar a sua ruptura cm relação aos inteiros sem qualquer
hipótese ou desejo de reconstrução dos mesmos. Neste sentido, aque-
!cs que eram simples modelos gerais dc interpretação avaliativa, orien-
táveis para preferências classicistas ou anticlassicistas, tomam-se na
forma específica de um novo gosto que os abrange a todos. E que, em
meu parecer, é uma ulterior manifestação daquilo que estamos a de­
nominar aqui dc «neobarroco», como veremos melhor no fim deste
capítulo.
Tentemos operar alguma verificação sobre fenômenos concretos.
Partamos da produção dc detalhes, que cada vez mais se tornem autô­
nomos, inteiros. No âmbito das comunicações de massa, e em parti­
cular do cinema e da televisão, nos últimos tempos os exemplos surgi-
tam cm grande número. Estamos a pensar, por exemplo, na extrema
valorização formal dc algumas maneiras de «detalhar» fornecidas pe­
las inovações tecnológicas. O que me parece ser o mais importante é o
-detalhe temporal», que ocorre com o efeito-moviola. O uso do retar-
dador passou agora de uma função analítica (observar a acção de jogo
num matc/t desportivo) para uma função estetizante. O aspecto esté­
tico consiste na procura obsessiva dc um instante-aeme defuma acç3o
diamática: o golo ou a falta no futebol, o disparo e o grito de morte
num crime, o abraço depois de uma corrida no encontro entre apaixo­
nados. o espasmo final nutna cena scxual^c assim por diante. Mas a
tentativa dc isolamento dp tal instante-aeme (raz consigo uma conse­
quência: a de que o tcmpotErneçao decisiva é decomposto minuciosa-
mente ao retardador e como tal representado no interior de uma tem-
poralidade normal; todavia, deste modo toda a sequência retardada
ocupa maior espaço no fluxo do tempo normal; assim, este último é

(") Sobre este tema, pode ler-se: Umbcrto Eco et a/tt, <?Semiótica delia
ricc/ionc». Corte sc/rnotir/ie. 2. 1986; e, naturalmcntc, Hans Robert Jauss,
une MtAétáyae de /o receptiva, Gallúnard. Paris, 1978.

97
reduzido no interior das temporalidades padrão dos produtos dos ma-M
media. Houve filmes, nos tempos recentes, exemplares deste ponto de
vista. Nove Se/nanaj e Meia, por exemplo, tendia para a multiplicação
dos pormenores temporais como uma função estetizante precisa. Idên­
tica função cm Ejía Suja Meta Fina/, de Robert Aldrich, no qual o re­
lato de uma dramática partida de futebol americano quase impunha a
escolha de forma (ou a escolha do tema será derivada do prazer da
forma?). Uma variante do detalhe temporal obtido por meio de efei-
tos-moviola c a do pormenor narrativo. Tambóm neste caso nos en­
contramos perante uma prática analítica que transforma os tempos do
relato por causa da procura de uma cadência de acontecimentos que se
aproxima da do tempo real. Bastará pensar, desta vez, no caso das te­
lenovelas. Aqui, há de novo uma dilatação do tempo, mas a nível do
conteúdo narrativo cm vez do da forma representativa, e, não obstante,
o detalhe novamente avança para a sua autonomização: toda a trama
avança por pormenores minúsculos. Finalmcntc, existem ulteriores
manifestações de detalhe, poderemos, desta feita, dizer espaciais, e
mais uma vez distinguíveis em pormenor forma! e pormenor de con­
teúdo. Primeiro exemplo: o acréscimo dos planos próximos. Sempre
no âmbito dos meios de comunicação social, estamos na verdade a as­
sistir à enfatização daquilo a que poderemos chamar o efeito-pomo.
Uma característica da pornografia é pôr cm evidência o pormenor es­
candaloso. Pois bem, isto está a acontecer também na produção de fil­
mes íq/i-care de autor: eis de novo Sete Se/nanas e Meia. ou o filme
de Tino Brass, ou as recentes séries com Stefania Sandrctli, ou BeMy
B/ne. centrado na acção sexual do duo Betty-Beinix. Mas o efeito-por-
no não respeita apenas ao sexo, respeita também a outros procedimen­
tos de detalhe que se apresentem escandalosos, como os que incidem
sobre as acções de violência. Aqui, o filme de acção c o jornalismo
impresso ou televisivo procedem da mesma maneira, isto é, procuram
pormenores que se tornem cada vez mais autônomos e não o inteiro de
referencia. Brian de Palma, com a sua dcccMpage a todo o transe, sur­
ge como mestre desse cinema. Dois filmes se anteciparam muitíssimo
a esta tendência, dcslrutando-a magistralmcnte como potencial narrati­
vo. O primeiro foi B/osv í/p. de Antonioni, no qual não é cm vão que
o detalhe de um crime descoberto por acaso por um fotógrafo se toma­
va o objccto do entrecho, com a conclusão moral da impossibilidade
de regressar ao conjunto. E o segundo é a homenagem a Antonioni ro­
dada por Brian de Palma, 6/orv Oar, filme cm que o detalhe se toma
num som e a moral permanece a mesma.
Também no campo mais precisamente artístico assistimos a opera­
ções semelhantes. Se tomarmos algumas obras de artistas conceptuais
dos anos 70, por exemplo, encontramos pontualmente a prática au-
tonomizadora do pormenor. Giulio Paolini fornece pelo menos um ca­
so deveras exemplar. Estamos a pensar no dove/n Qae Oi/ta íorenzo
Lodo e no posterior Coatra/igara. respectivamente de 1967 e 1981.
Trata-se, como se sabe, de duas obras de citação de um retrato do Lot-
to. Mas elas foram executadas trabalhando o detalhe: na primeira, me­
diante o título, que convida a considerar o retrato sob o puro aspecto
da pose do jovem e, assim, do facto de que deve estar a olhar para o
artista; na segunda, mediante uma forma desfocada, que o título convi­
da a considerar como núcleo autônomo da pintura (o «agravamento» é
considerado em si mesmo, e como «outro» em relação ao primeiro
quadro). Na exposição Arre ao E.spei/to, organizada, por Maurizio Cal-
vesi em 1984 para a Bienal de Veneza(^), temos outros exemplos de
processos para autonomização do detalhe, e todos eles praticados so­
bre citações. Por exemplo, Tano Festa isolava pormenores de Miguel
Ângelo ou de Van Eyck. O argentino Osvaldo Romberg prodnzia
obras «analíticas» da Grande Odaiisca de Ingres, o francês Jean-Mi-
chcl Alberola isolava pormenores de Ticiano, Tintoretto e Veronese
numa obra constituída por sete painéis e intitulada Acteon Fecit.
A estética do fragmento como fonte pertence também tanto aos
meios de comunicação social como às artes. Nos media, manifcsta-sc
sobretudo na agora vulgarizadíssima prática de produzir objcctos-con-
tentores, os quais, no interior, não apresentam já produtos acabados,
mas acima de tudoTramnentos de outras obrag^As variedades domini­
cais das maiores redes nacionais italianas têm todas este carácter, o
qual, no entanto, é sempre corrigido pelo facto de a fragmentação pos­
suir um momento de recomposição final, que é o próprio programa-
contentor, a sua realização, a sua condução. Neste caso, poderemos di­
zer que nos encontramos perante um modelo tradicional: o fragmento,
é reconduzido ao próprio inteiro^ E o contrário não, pois o inteiro per-
icncc a uma lógica complctamcntc diferente da dos fragmentos e a re­
composição é pretexto. Um caso de recomposição cm que o pretexto
é, todavia, ulteriormente transformado em ironia e virtuosismo é o do
Idme (9 Mistério do Caddver Desaparecido, no qual assistimos à ver-
dadeira criação de um filme policial a partir de fragmentos de grandes

f ) Maurizio Calvesi, Arte ado speccMo, Elccta, Milão, 1984.

99
filmes policiais do passado. Mas estamos aqui mais perante um efeito
de colagem, diferente das operações cubistas ou dadaístas pelo facto
de o jogo implicar um prazer receptivo do espectador, levado a re­
conhecer os fragmentos originais. Divertimento este levado talvez ao
máximo limite por Peter Greenway cm O Mistério &<s Varai/M &
Coynpton //oase e ainda mais em O Zoo do Véntts, no qual o carácter
citacionista é sublinhado e, ao mesmo tempo, escondido. E, finalmcn-
te, o exemplo mais curioso c magistral: o filme Trtte -Stories, de David
Byrne. Aqui, a ideologia do fragmento é precisamente constitutiva. De
facto, Byrne rodou a película a partir de uma verdadeira recolha de re­
cortes de jomais que relatavam minúsculos factos de crônica da vida
americana, sem qualquer relação entre si. O filme reunifica-os: mas
precisamente segundo um princípio fragmentário, dado que não existe
sequer uma aparência de moldura ou de trama a reagrupá-los que não
seja a voz (e o rosto, o do próprio Byrne) do narrador. Tudo se proces­
sa por saltos, ou «intervalos», como lhes chamaria Dorfles, de um ex­
tremo ao outro da América, tal como de um tema para outro da vida
social. A reunificação (admitindo-se que exisiaj está apenas na justa­
posição dos pcdaço&^o prazer está na descrição sem unicidãde^
Os exemplos no âmbito artístico são, neste scctor, mais numero­
sos. E quase todos dizem respeito, mais uma vez, a práticas de citação.
Esta última anotação não é relevante para se compreender a própria
natureza da poética do fragmento. Como é que muitos outros artistas,
desde Cláudio Parmiggiani aos cônjuges Poirier, de Michelangelo Pis-
toletto ao único Giulio Paolini, do belga Didier Vermeiren ao chccos-
locavo Jiri Andcrle, fazem um tal uso explícito de fragmentos de obras
do passado? Permito-me não dar ao fenômeno a mesma avaliação de
Maurizio Calvesi, implícita na própria denominação de artistas cita-
cionistas, que é a de «anacronistas». Não me parece, de facto, que na
última série de personagens há pouco anotadas haja qualquer nostalgia
do passado. A citação, no nosso caso, é muito diferente da operada,
por exemplo, pelo grupo assinalado no parágrafo anterior. Aqui, de
facto, estamos perante a voluntária fragmentação das obras do passado
para i/tes extrair wateriais. Se por um instante pensarmos na extrema
dificuldade para o artista contemporâneo de fazer obras renovando os
materiais expressivos, verficaremos que — supondo a impossibilidade
de encontrar «nova» matéria plástica — os fragmentos do passado co­
meçam por ser e/er o novo material da hipotética paleta do artista. Por
outras palavras, a arte do passado é apenas um depósito de materiais,
por cima, implica necessariamente a fragmentação. Só fragmentando o
que já está feito é que se anula o efeito, e só tornando autônomo o
fragmento em relação aos precedentes inteiros é que a operação é pos­
sível. O fragmento torna-se então um matéria), por assim dizer, «dc-
sarqucologizado»: mantóm a forma fracta! devida ao acaso, mas não é
reconduzido ao seu hipotético inteiro, mantcndo-sc antes na sua forma
doravante autônoma.
O fragmento, como se acabou de dizer, tem uma forma sua, uma
geometria sua. Também a valorização do seu aspecto faz parte da esté­
tica do fragmento. Não foi cm vão que ela foi experimentada por nu­
merosos escritores contemporâneos. A primeira menção, naturalmente
vai para o Roland Barthcs dos Fragmentos & í/m Discaso Amoroso.
Eis o que dele nos diz o autor em BartAe.s & 7?o/an<7 Rart/tes.' «Escre­
ver por fragmentos: os fragmentos são agora pedras sobre a circunfe­
rência do círculo: espalho-mc cm redondo: todo o meu pequeno uni­
verso em peças; ao centro, o q u c ? » f) Por outras palavras, a estética
tio fragmento é um espalhar evitando o centro, ou a ordem, do discur­
so. Não é por acaso que Barthcs escolhe prccisamcntc como emblema
uma frase de Gidc: ^ A incoerência ç preferíve! à ordem que deforma.»^
O fragmento como material criativo corresponde também a uma exi­
gência formal e de conteúdo. Formal: exprimir o caos, a casualidade, o
ritmo, o intervalo da cscritq^De conteúdo;, cvttar a ordem das cone­
xões, afastar para longe (<o monstro da totalidade». A escrita fragmen­
tar barthcsiana tornou-se, após Barthcs, núm gesto criativo cada vez
mais frequente, que seguiu as mais variadas manifestações, todas elas
preconizadas pelo crítico francês: o diário «à la Gidc», os aforismos,
os pensamentos esparsos. Até atingir uma dimensão maciça nas edi­
ções de «não-livros» continuamente publicadas, sobretudo no nosso
país, tanto de ensaístas de segunda como de personagens dos mass-
/ner7ia. Um breve elenco, antes de os abandonarmos: Maurizio Costan-
/o , Roberto D'Agostino, Nino Frassica, Pino Caruso, c por aí fora.
Mas aqui, necessário se torna dizê-lo, o fragmento desceu à vulgarida­
de do papel de antc-cspcctáculo do compasso único. Diferente é, pelo
contrário, o caso cm que o fragmento retomou por sua vez o papel, tal­
vez mais autêntico e original, da poesia. Os nossos maiores poetas rc-

0 ') Roland Banhes, FragmerUs d'an díscoars* a/noMreax, Scuit, Paris,


I'179 (trad. it.: Frawnenn A aa discar,w a/noro.so, Einaudi, Turim. 1981). Id.:
Rurt/ie.v par /ai-même, Seuil, Paris, 1977 (trad. it.: RarOtes A Ro/and RartRes,
t inaudi, Turim, 1982).

707
começaram hoje a prática do fragmento poético. Vai-se de aiguns cx-
Novíssimos, como Antonio Porta e Nanni Baiestrini, até a autores me­
nos classificáveis, como Andréa Zanzotto, Giovanni Raboni, Giovanni
Giudici. E cm todos estes casos a expressão fragmentar tem o mesmo
sabor da dos artistas visuais: fragmentação para reencontrar tanto uma
«paicta» de paiavras e frases, como para recuperar a poesia inerente à
anuiação do princípio da ordem e das suas geometrias regutares. O
fragmento toma-se autônomo: mas o sentido de integridade da obra
fragmentária é diferente da primeira, põe a tônica sobre a irregularida­
de e sobre a falta de sistcmaticidadc, tem o sentimento de «estar cm
pedaços». Concluindo: a suspensão da fragmentaridade bloqueia o ca­
minho para o normal c deixa intacto o excepcional: a autonomia do
pormenor faz, pelo contrário, que se torne hipcrexcepcional o normal.
O sistema estético que dele deriva é um sistema eternamente em cxci-

Do lado oposto em relação às estéticas na fonte estão as duas es­


téticas da recepção. A*quc está ligada aq detalhe poderá ser por nós
chamada de «estética da alta-fidelidade»-, c direi que se trata de uma
yalori/açâo do prazer da perfeita reprodução técnica dc uma obra. O
detalhe^ com efeito, é sempre uma reprodução, uma vez que se trata dc
isolamento de uma porção da obra. Insistir nos prazeres do pormenor
significa, portanto, insistir também na qualidade da própria reprodu­
ção, que permitirá ao fruidor perceber sempre melhor o pormenor.
Certos instrumentos ocultam espccificamcntc o símbolo do prazer do
pormenor. Por exemplo: o gira-discos com alta-fidelidade, o gravador
profissional, o videogravador, o wa/Aman, o cowpact disc, o televisor
de écran plano, o eidóforo, a televisão dc alta definição, os auscultado­
res, o rctardador e a imagem parada inseridos no gravador dc vídeo, o
zoom da máquina fotográfica e o ampliador no laboratório de revela­
ção e impressão fotográficas, a estereofonia e a estereofonia aplicada
ao televisor, e por aí fora, segundo uma progressão que hoje viaja a
uma velocidade impressionante, fornecendo instrumentos tecnologica-
mente ultrapassados no correr dc poucos meses. Este aspecto da tec­
nologia não pode deixar dc ser acompanhado por autênticas mutações
nas atitudes perceptivas c de gosto. A fruição, de facto, está já prevista
(até mesmo «inscrita» nas próprias obras) como fruição aproximada e
atenta ao pormenor. Algumas vezes, como notámos em capítulos ante­
riores, ela é transmutada cm narração: como na cena de O/aJc
cm que se tira a prova dc que uma das personagens é um replicante
através do pormenor cada vez mais aproximado de uma fotografia; ou

702
como nos já citados B/ow í/p e B/ow OMt,' ou ainda em certos tclcfil-
tnes populares (o tenente Colombo trabalha cxclusivamcnte com o
pormenor, o tenente Koester resolve um caso reconhecendo o detalhe
dc uma execução musical). Até mesmo na fruição da arte se chegou à
estética do pormenor. Não se explica dc outro modo a multiplicação
da edição especializada, que produz cada vez mais livros com imagens
dc pormenores. Ou o sucesso das exposições sobre restauros de obras
dc arte, que expõem grandes quantidades de matérias de detalhe (ra­
diografias, fotos do grão das pinturas, imagens minúsculas dc lacunas
c falhas, etc.).
Igualmentc se pode reconhecer uma estética da recepção baseada
no fragmento. Esta consiste na quebra casual da continuidade c da in­
tegridade dc uma obra, e no gozar das partes assim ^ tid asetorn ad as
autônomas. Banal, a este propósito, é a chamqda «síndrome do b o t ã o ^
na fruição da televisão. Um acto que poderia noutro local dcfmir-se
como neurótico pode tmnsiormar-sc num autentico programn j^stctico
dc consumo. É idêntica a atitude que preside à aquisição de antolo­
gias: onde, com este termo, se entenderá toda a forma dc compilação,
desde a musical (que não é por acaso que se lhe chama «compilação»),
à literária, á cinematográfica e à televisiva, à fotográfica. O prazer, cm
todos estes caso^consistc naex/racção dos fragmentos dos seus con­
textos dc pertence e na eventual recomposição dentro dc uma moldura
de «variedade» ou dc multiplicidade. Assim sendo, trata-se sempre dc
perda dc valores de contexto, de gosto pela incerteza c casualidade dos
confins da obra assim obtida. E de aquisição dc novas valorizações
provenientes do ivp/n/w/no rios Iragmentos, tia sua entraria cm cena.
Por vezes, este prazer é coincidente com a fonte e com a recepção: por
exemplo, na encenação arquitcctónica, onde o fragmento (do passado,
ou citado do passado) é litcralmcntc posto em cena com uma constru­
ção neutra, que faça dc fundo c consinta o relevo do próprio fragmen­
to. Arquitcctos como Cario Scarpa ou Franco Albini transformaram
esta prática numa autêntica poética do construir, consistente no jogo
dc sublinhado do úrcRü/nr mediante a neutralização do fundo c do
contexto. Verdadeira metáfora do próprio prazer do fragmento: cancc-
lamento damemória sistémictLe_ÇQRÇMKuaL.
1-an conclusão, podemos observar agora que pormenor e fragmen­
to, cjnbora-tãü^ifcrcntcs entre si, acabam por participar do mesmo
«Éspfrito do tem po^ a perda da totalidade. No ncobarroco, as distin­
ções continuam, obviamente, a valer, mas a aceleração e exageração
das suas características leva a dar-lhe /mancc-s de uma opção geral,

^ -S s d W fM WSM. CENTRO OE ARTES ELE18AS


o ^ SALA DE ESTUDOS
que é precMa/nc/Ug a do fina! ou do declínio da inteireza. É também
esta uma das possíveis explicações (entre muitas) do declínio dos
grande sistemas ideológicos «fortes». Não se trata apenas de uma
decadência de modeios face à modernidade (ou pós-modernidade).
O facto é o que o pormenor dos sistemas, ou a sua fragmentação,
se tomam factos autônomos, com as suas valorizações próprias, e fa­
zem, literalmente, «perder de vista» os grandes quadros de referência
geral.
V

INSTABILIDADE E METAMORFOSES

I. Monstros

Partamos de um dado rca). Nos últimos anos, temos assistido, e


continuamos a assistir, à criação de universos fantásticos que pululam
de monstros. Cinema, televisão, literatura, publicidade, música, têm-
nos fornecido uma impressionante galeria de exemplares, embora as-
sax diversos entre si. Rapidamente: vimos os lagartos de pelo menos
duas series de televisão de Visi/ors,' o ser proteiforme de A Corra, de
( arpenter; o inimigo de Connn, o Eari^aro. que se transforma cm ser­
pente gigantesca; o cruel AZien e a sua versão feminina, AZiens; os
colossais vermes de Dune; o ente verde cm que se transforma o prota­
gonista de O ZncrZveZ ZZuZZ:.' o povo extraterrestre dos vários episódios
dc Guerra das Er/reZa.r c de G Caminiio dar Ertro/ar,* o herói irônico
<ie Gm ToNromen Americano em Londres e a sua paródia cm JLriZ-
/er. c/;/7 da canção homônima dc MichacI Jackson c rodado pelo mes­
mo John Landis; os espectros dc G/rortimr/err.- as aparições dc f oZíer-
çcisi, os diabos ruins dc Dario Argcnto cm Demdnios,* os monstros
bons, ou quase, dc Encomro.r imediatos do Terceiro Grau a ET e
GrcmZins.- o micro-aiicnígcna dc íú /u id .S/jy; o homem-robot dcEanA-
rerox,' c a lista ainda vai no principio. Já esta verificação seria sufi­
ciente para nos iaxer rcftcctir numa supcrficia! relação com o barroco
c com outras épocas «semelhantes)), produtoras dc monstros: latinida-

ZZH
r

dc tarda, baixa I d ^ M c í ^ romantismo, cxpressionismo. Todos etcs


períodos cm quo^m onstro serve para representar não só o sobrenatu­
ral ou o fantásticolComo, acima dc tudo, o «maravilhoso», que depen­
de da raridade c casualidade da sua gênese na natureza c da oculta e
misteriosa tcleologia da sua forma.
E c este, com efeito, o ponto mais interessante. Se recordarmos a
própria etimologia da palavra «monstro», cncontrar-lhe-cmos dois sig­
nificados dc fundo. Primeiro: a cspcctacularidadc, proveniente do fac-
to dc que o monstro se mostra para além dc uma norma («mons-
trum»). Segundo: o mistério, causado pelo facto dc a sua existência
nos fazer pensar numa advertência oculta da natureza e que podere­
mos adivinhar («monitum»). Todos os grandes protótipos dc monstro,
os da mitologia clássica, como o minotauro ou a esfinge, são ao mes­
mo tempo maravilhas c princípios enigmáticos. São reptos levados a
dois campos ttC-.espocu]ação que constituem a experiência humana. ^
domínio dp «objectivo» (isto é, o mundo fora dc nós), c dó «subjecti­
vo» (isto c, o nosso espírito). Repto, cm suma, lançado à rcgulartdadc
da natureza c àquela outra regularidade que se lhe ajusta, a inteligên­
cia humana.
Daqui o grande principio fundador da teratologia, ou ciêncta dos
monstros: basear-se no estudo da irregularidade, ocupar-sc da r/esme-
AH/a. E, dc facto, os monstros, cm quaisquer descrições, da Antigui­
dade até aos nossos dias, são sempre excedentes ou excessivos, cm
grandeza ou pequenez: gigantes, centauros, ciclopes, anões, gnomos,
pigmeus; com muitas partes cm falta: gastrópodes, isquiópodes, etc. A
perfeição natural é uma medida média c aquilo que dela ultrapassa os
limites é «imperfeito» c monstruoso('). Mas imperlcito c monstruoso
é também aquilo que ultrapassa os confins da mediría média que dis­
tingue a outra perfeição, a espiritual. Perfeição c mediania, sobretudo
cm outras épocas do gosto, são quase sinônimos, como salienta ironi­
camente Jcan Paulhan, quando diz que «nada se assemelha !antpjà_!R6-
diocridadc como a perfeição»^). Daí o enigma do monstro, mas tam­
bém a süa earccr/é/tcia espiritar!/. Esta última característica faz do
monstro um ser não só anormal, como ainda por cima negativo. Um
ser para o qual o juízo dc excesso físico ou morfológico se translorma

(') Gilbert Lascault, í e /nonstre t/nrts /'nr! cccà/entn/e, Klincksicck, Pa­


ris, 1976.
(q Esn citação é cm segunda mão: fui buscá-la a Robert i! lanche, Les
cattígories..., cit.

706

1
em juízo de excesso dc valores espirituais. E eis a razão por que a tera-
tologia da ciência «positiva» se torna disciplina morai c se baseia so­
bre sistemas dc vaiores aceites por uma sociedade^).
As sociedades muito normalizadas estabeiecem frequentemente
homologações entre as várias categorias dc vaior. Tomemos, como
exempio, quatro categorias: ética, estética, morfoiógica c tímicaC). As
duas primeiras são categorias apreciativas, no sentido dc que contem
um juízo que implica o louvor c a reprovação. As duas seguintes são
categorias constatativas, no sentido de que dão um juízo dc realidade.
Todavia, notar-se-á que existem, sobretudo cm períodos de maior «or­
dem», homologações rígidas entre os termos positivos e os termos ne­
gativos de todas as quatro categorias. As apreciativas informam as
constatativas e, por sua vez, estas dão conteúdo às apreciativas. Por
exemplo: aquilo que é conforme de um ponto dc vista físico é também
bom, belo e portador de euforia; aquilo que é belo será também con­
forme, bom e eufórico: aquilo que é eufórico é também belo, confor­
me e bom. E vice-versa, como na tabela que se segue e que já discuti­
mos na introdução a este livro:

CATEGORIA JUÍZO SOBRE VALOR VALOR


POSITIVO N EG ATIV O

m o r fo ió g ic a form a c o n fo r m e d is fo r m e

é tic a m oral b om m au

e s té tic a g o sto b e lo fe io

tím ic a p a ix ã o e u fó r ic o d is fó r ic o

(') Cf. Corrado Bologna, «Mostro», in Eucic/opcdia, Einaudi, Turim,


thttt). v o l.9 .
f ) Não existe qualquer critério para considerar estas dc preferência a
quaisquer outras categorias, senão o facto de o bem, o belo, a forma e a emo-
\ áu serem mais ou menos, por agora segundo o bom senso, parâmetros de juí­
zo dc um fenômeno muito homogêneo. Tcríamos podido acrescentar a catcgo-
ita da «verdade» que as coisas não se teriam modificado muito; mas o juízo
obre a verdade é um pouco mais complicado do que o dos outros quatro, que
aparecem com maior evidência na sua homologação recíproca.

707
Notc-se, no entanto, que de vez em quando é possível o desvio a
semelhantes homologações. E há de facto grupos ou sociedades intei­
ras que por vezes propõem homologações diferentes, ou que mais sim­
plesmente neutralizam as homologações existentes. Sc regressarmos
aos monstros, veremos que, segundo a homologação «mais ordenada»,
se tratará de seres em princípio disformes e, por isso, maus, feios, dis-
fóricos. Mas podem dar-se mutações na homologação: qualquer um
pode começar a dizer que o monstro é perfeitamente conforme e, en­
tão, perfeitamente belo, mas também disfórico c, então, substancial-
mente mau. Um protótipo: o retrato de Dorian Gray. A moral católica
sugeriu por vezes uma tal mudança de perspectiva. Por outro lado, po­
de sustentar-se que a disform idade c a disforia são, pelo contrário, por­
tadoras de beleza c de bondade. Muitas obras românticas seguem esta
regra. Pode então começar-se a ver uma verdadeira combinação de va­
lores, capaz de definir diversas atitudes de grupos, indivíduos e socie­
dades nas áreas do juízo da forma, da ética, da estética e da paixão dos
fenômenos. É evidente, claro está, que a simples e tosca axiomática
acima apresentada toma depois forma em categorias cada vez menos
gerais. Por exemplo: a conformidade pode ser representada mediante
simetria, medidas do homem, cores pálidas, cabelos louros, magreza,
etc. Aquilo que num período de conformidade semelhante se define
como «disforme» é o seu oposto. Dá-se um afastamento se o disforme,
socialmcntc homologo como mau, feio c disfórico, é repentinamente
associado por qualquer um ao bom, ou ao belo, ou ao eufórico. Quan­
do, por sua vez, as figuras do afastamento se estabilizam numa socie­
dade, são precisamente elas que se tomam regra do conforme e enve-
reda-se cm seguida por uma geral dialéctica dos valores colcctivos nas
várias épocas.
Posta esta premissa, podemos voltar aos monstros contemporâneos
e interrogar-nos finahncntc se eles correspondem a uma qualquer mu­
dança que se tenha dado no regime das homologações. E a resposta
que podemos dar é a de que, de facto, existe um caráctcr específico na
teratosfera moderna. Os novos monstros, longe de se adaptarem a
quaisquer homologações das categorias de valor, jMxpenífe/n-nnj, ann-
in/n-na.?, neMtrniiza/n-nnx. Aprcscntam-sc como fortnas que não se
consolidam cm qualquer ponto do esquema, que não se estabilizam.
São, portanto, formas que não têm propriamente uma forma, andam
antes â procura de uma. O que nos faz rcflcctir sobre a necessidade de
um novo capítulo a acrescentar â história da teratologia. Um capítulo
sobre a «natural» instabilidade c infonnidadc do monstro contemporâ-
neo. E sendo, como já se viu, a tcratologia uma ciência fundamenta!
do socia!: o capítulo sobre a «natural» instabilidade c informidadc da
nossa sociedade.

2. As formas informes

Para classificar os novos monstros com um mínimo de pertinência,


partamos de um critério descritivo qualquer. Por exemplo, a escolha
de uma denominação. Como «baptizaremos» a forma de ET, do Yoda
da CMerra r&M de A/icn, do ser de A Corja? Digo «baptizare­
mos» porquanto inevitavelmente, cm presença de uma forma inusitada
no quadro das que são já conhecidas, muitas vezes a única maneira de
a encerrar e tornar perceptível e comunicável é dar-lhe um nome, tal­
vez precedido por «semelhante a...». E de facto a linguagem verbal
que habitualmente permite estabilizar qualquer forma. Pois bem: no-
tar-sc-á que estamos de todo incapacitados de denominar os monstros
contemporâneos como outra coisa que não seja o nome de «mons­
tros». O que, no fundo, os distingue dos do passado, visto que nos tan­
tos catálogos das teratologias antigas encontramos, pelo contrário, au­
tênticas listas de propriedades: asas de morcego, cabeça de leão, corpo
de lobo, cauda de réptil, garras de ave de rapina. Em suma, o monstro
era um somatório de propriedades por norma inconciliáveis entre si,
mas apesar de tudo reconhecíveis.
Não se julgue que aos produtores de monstros cinematográficos
não se tenha posto o problema. Há pelo menos um monstro contcmpo-
i .meo que espelha perfeita e conscientemente a questão. É o alienígena
th' A Coíja, de Carpcntcr. A certa altura da primeira parte, o médico
<ta expedição americana à Antárctida que encontrou o ser descobre o
.eu segredo. A coisa não tem uma forma autônoma, mas as suas célu­
las imitam as dos seres que lhe passam mais de perto, até as engolirem
e se transformarem nelas. O que faz que, quando a coisa é enquadrada,
<'ia na realidade ora um cão, ora um membro da expedição. Ou me­
lhor uma massa amorfa num estado de transformação c de metamor-
loses. O doutor exprime o conceito precisamente com um programazi-
nltt) no computador, no qual vemos um espaço de acção csquemático,
obre o qual se movem símbolos das verdadeiras células e das parasi-
i.t. Quando uma célula chega perto do predador, este captura-a, engo-
l' a c depois transforma-sc nela. Mas, em si c por si, a coisa não tem
huuta própria.

709
Um mecanismo deveras análogo se encontra numa outra pelícuia
recente, de um gcncro totaimente diferente: Ze/ig. de Woody A!tcn().
Zelig ê uma personagem dos anos 30 que a natureza dotou de uma
particularidade: não possui ou, pelo menos, não parece possuir perso­
nalidade c aspecto próprios c transforma-se cm alma e físico, imitando
os próximos. Assim, vemo-lo, por exemplo, de camisa castanha ao la­
do de Adolf Hitlcr num comício, mas depois reconhecemo-lo judeu
entre judeus, ou músico negro num conjunto de jazz. O todo num cres­
cendo de situações cm que Zeling se toma magro, gordo, nco, pobre,
magnata do petróleo, atleta, político, alemão, italiano, americano, e ate
mesmo psicanalista, quando c obrigado, para se «curar*, a submeter-
-s e a análise. O filme conta, pois, um caso de camalcomsmo humano.
Mas também Ze/ig. como'filme, é camalconístico. Woody Allcn cons­
truiu, de facto, uma perfeita obra de montagem, na qual assistimos as
transformações do filme cm outro filme. A película de base c o branco
c preto, ligeiramente/ioa. a imitar os filmes dos anos 30, e as partes
novas são constituídas por documentários autênticos, ate se tornarem
indistinguíveis. Até se repetem os ruídos, os cortes c as velocidades do
cinema de então. Alguns documentários intercalados são depots a
cores c contem entrevistas a conhecidas ggrsonagens da cultura amert-
cana contemporânea, com o^usan Sontag õq Bruno Bettelhenn. Mas
as misturas com entrevistas a personagens imagmártas pertencentes a
história inventada contribuem para a indizibitidade do verdadeiro e do
falso sociológico proposto pelo filme. Até as entrevistas são camalco-
nicas: imitam, por exemplo, dois filmes muitíssimo diferentes, como
de Warrcn Bcatty, intervalado com entrevistas sobre a persona­
lidade do jornalista John Reed, e O Meu 7io da América, de Alain
Resnais, que fazia intervir reflexões gravadas do biólogo Hcnri Labo-
rit acerca dos ratos. O tema e a sua própria feitura estão ainda centra­
dos na informidade c na instabilidade. Explica-o, de resto, muitíssimo
bem, uma personagem de Ze/ig. a doutora Eudora Flctchcr: «Desde
pequeno que Zelig foi um caráctcr absolutamente m.ríáve/. Para se
sentir aceite, começou a transformar-se cm qualquer coisa que fosse
sentida como normal c reconhecida por todos.*
Mas Carpenter também revela consciência do mecanismo dinâmi­
co que se está a construir. Revela-o um pormenor não secundário do
filme. Como se sabe, a película é um remate de A Corra Que Veio do

(!) Vide também o meu «Zelig !'uomo nessuno*. Panorama me^e. 14.
1983.

770
Oa/ro AÍMHí/o. assinado em 1950 por Christian Nyby c Howard Ha-
wks. Mas o scr alienígena, naquele caso, mantém um aspecto huma-
nóide, embora venhamos a descobrir que tem uma estrutura biológica
vegetal e que se alimenta de sangue. A mudança c tão radical que Car-
penter o deve ter estudado a fundo, tal v e/ também a pensar na maneira
mais brilhante de representar o mesmo fenômeno linguístico do seu
nome. Entre todas as palavras utilizáveis, cscolhcu prccisamcntc a que
significa_o não definido por excelência: «a coisa», extraindo-lhe tam­
bém aquelas especificações que no original se mantinham no vago,
mas não na incerteza absoluta. Também do ponto de vista figurativo a
informidade da coisa produz um fenômeno de suspensão e de neutrali­
zação, desde o momento cm que não se trata nem de um scr conforme,
nem de um scr disforme. Mas dali partem outros acontecimentos
curiosos que dizem respeito a outras categorias homologadas à física.
Do ponto de vista ético: a coisa não é classificada nem de boa, nem de
má pelos membros da expedição; trata-se simplesmente de um preda­
dor de quem a presa (os homens) tenta fugir, talvez transformando-se
por seu turno predador (o herói Mac Rcary) da presa (o monstro), na­
quilo a que cicntificamcntc se chamaria um «ciclo de histérese». Pode
por isso, de algum modo, sustentar-se que a categoria ética é substan-
cialmcntc suspensa. Qualquer coisa mais acontece à categoria tímica.
Tratando-se de um filme de terror, qualquer um poderá objcctar que o
monstro é claramcntc disfórico. Mas não é assim, dado que também as
paixões são, pelo contrário, constantemente suspensas. Só é disforia
quando o monstro está cm acção, e então transforma-se à custa de
qualquer outro, mas quanto ao resto o espectador c as personagens do
relato são sempre vistos numa situação de expectativa, isto é, de sus­
pensão, ou, como melhor diz o mesmo termo literário e cinematográfi­
co: de sa.spe/Me. Isto é tanto mais verdade quanto a história não tem
conclusão, uma vez que não ficamos certos de que o monstro tenha
\tdo eliminado, de que os heróis sobrevivam, se haverá outro episó­
dio. Do ponto de vista das categorias física, ética c tímica, o filme de
Carpenter também se afasta muito do seu predccessor. Eticamente,
Nyby-Hawks apresentavam só uma personagem (o cientista da base),
que tinha o scr por uma criatura superior. Timicamcnte, o mesmo fil­
me preferia euforizar o espectador, declarando disfórica a coisa e fa­
zendo-a eliminar por meio de uma armadilha. Resta o ponto de vista
estético. Também aqui a categoria, se não surge suspensa, aparece pe­
to menos complexa. De facto, por um lado, a monstruosidade do scr é
expressa por meio de elementos «feios» (tentáculos, viscosidade, ruí-

7/7
dos desagradáveis, deformações tocais): mas, por outro, há o maravi-
thoso dos efeitos especiais com que foi realizada. Quatqucr coisa de
scmethante acontece com um outro monstro cétebre do cinema actuat:
Atien. Também aqui há uma forma informe, que ora parece um gigan­
tesco mandrit, ora um robot mecânico, ora ainda um dragão. Mas o to­
do permanece indizível, dado que o monstro nunca é dado por inteiro,
nem durante o tempo suficiente para que a percepção dele se estabe-
teça. Eticamente, c verdade que a informidade está associada à malda­
de: mas por pane das personagens que tendem para a «conservação»
(embora a actriz Sigourncy Wcavcr se ponha indubitavelmente do la­
do da homologação «confonne-bcla-cufórica-boa»). E até o cientista
da expedição espacial (ainda ele!) sustenta que não se deve matar o
monstro, uma vez que c verdade que se trata de uma «máquina para
matar», mas enquanto tal «perfeita». Tipicamente, o discurso é equi­
valente àquele que acima se fez. E esteticamente estamos no costume:
viscosidade, ruídos desagradáveis, redução dos humanos a massas de
camc. Mas: um Óscar para o realizador Cario Rambaldi c para os de-
senhadores, entre os quais o cclebérrimo Gigcr, autor, por outro lado,
de ulteriores provas pictóricas, com os ambíguos monstros polimór-
ficos e polissexuados que foram publicados sob o título de JVecrono-

Mas com o nome de Rambaldi chegamos sem dar por isso ao terri­
tório dos monstros de mais alto grau moderno: ET, o Jedi, os gre/n-
b'/M. Aparentemente, trata-se de «monstros» como-qucm-diz: são an­
tes cachorrinhos de váris materiais infantis. Na realidade, representam
os mesmos princípios acabados de ilustrar. Vejamos isto de mais per­
to. Já numa série de entrevistas dadas entre 1981 c 1983 Rambaldi de­
clarava que tanto a ideia dos marcianos de Encc/aros /wcbíaMJ como
a do ET provinha não só da sua antiga experiência de artista, como
também do seu gato himalaio. Comecemos pelo gato. De desenhos na
mão, Rambaldi provou repetidamente que o ET, peto menos no que
respeita à cabeça, provém do gato, mediante duas reduções. A primei­
ra: uma simplificação da figura do gato mediante um perfil quase cari­
catural. A segunda: eliminação de algumas propriedades felinas, como
as orelhas, o pelo, os bigodes, a dentadura. Conclui-se daqui que a
morfologia do ET é o resultado não tanto de uma deformação quanto
de uma «perda de forma». Tcstcmunha-o um outro episódio. O autor
contou sempre que o primeiro protótipo do extraterrestre tinha um ra-
biosque como o de um bebé, a fim de permitir o processo de identifi­
cação por parte tanto dos espectadores adultos como das crianças. Mas
Spiclbcrg obrigou-o a modificá-lo, preferindo um posterior menos re­
conhecível, «algo de intermédio» entre um réptil e o Pato Donald. V e­
nhamos agora à arte. O mesmo Rambaldi declarou que quando traba­
lhava como artista tanto pintava como fazia escultura. Interessantes,
estas prccisõcs: enquanto se percebe que como pintor era mais ou me­
nos um neo-realista, como escultor era muito mais um informal, muito
preocupado em produzir objectos grosseiros, que quando ficavam
imóveis não sugeriam qualquer significado, mas que quando se lhes
fomccia movimento começavam a «dizer» qualquer coisa como «an­
gústia», «ânsia», «alegria», «emoção». Se voltarmos a ET com esta
chave, verificaremos que Rambaldi a utilizou largamente no seu bone­
co. De facto, Rambaldi escreveu que por ocasião de uma exposição
em Los Angeles sobre os seus efeitos especiais não o expôs para não
correr dois riscos. O primeiro era o de que, devendo o ET permanecer
imóvel, as pessoas já não experimentassem emoções. O segundo era o
de que, habituando-se as crianças à sua existência estática, se deixasse
de esperar uma continuação da história.
Traduzamos agora, segundo as nossas categorias, as notas que aca­
bámos de ilustrar. Para começar, surge clara a derivação do ET do in­
formal. O que equivale a dizer que a personagem nasce cxplicitamentc
como m/or/ne. Por outro lado, esta informidade é posta em relevo pelo
medo de a apresentar estática, para se evitar uma percepção dela esta­
bilizada e estereotipada. O ET tem necessidade de continuar a ser <%-
nó/níco (o dinamismo é considerado prccisamcntc como garantia da
produção de errroçõex no espectador). Há ainda uma outra prova da in­
formidade do extraterrestre rambaldiano, que está mesmo no filme.
Pelo menos cm três ocasiões, o ET comporta-se como camaleão. A
primeira é nos encontros com o garoto no meio do campo de milho, no
princípio da história. A segunda é nos encontros com a mãe, quando,
para o esconderem, os garotos o colocam no meio da montanha de bo­
necos do seu armário c a mulher é incapaz de o distinguir. A terceira é
nos encontros com toda a cidade no dia do Hallowccn, quando todas
as crianças vêm para a rua mascaradas e nenhuma o reconhece como
um ser autêntico c o confundem com um miúdo mascarado (o que per­
ante a Spiclbcrg a saborosa cena inversa: o ET a reconhecer uma
criança mascarada de Yoda como pertencente à sua própria raça). Se
quisermos, será também mais uma prova externa da informidade de
ET c dos seus colegas. Num belo ensaio intitulado A Smioare rio A/ie-
MÍgcfia, Renato Giovannoli apontou como quase sempre a forma canô­
nica dos novos monstros, incluindo os dos jogos cm vídeo, ó elástica,
gomosa e transformávct(^). É uma espccie de figura-póiipo, capaz de
se inflar, de se difatar, de se restringir, de se modificar como quer: e de
se dividir (como acontece cm certos jogos em vídeo) se levada a situa­
ções de crise extrema.
Mas que fazem Spielbcrg c Rambafdi da informidade física dos
seus monstros? Quafquer coisa de absolutamente especial, que difere
muito da manutenção da «suspensão» também nos planos ético, estéti­
co e tímico, que vimos para /M en e <4 Coíxa. A forma informe do alie­
nígena não só não permanece suspensa nas suas homologações com
outras categorias, mas também é precisamente ela que é julgada boa,
eufórica e bela. Mas não por completo: como sucede com cada inven­
tor de formas, só alguns são capazes de reconhecer o valor. Os outros
firmam-sc numa posição de conflito. Os pais, pelo menos no início, os
adultos em geral e o governo estão do lado da recusa da ética, da esté­
tica c da euforia do ET c até mesmo o garoto, numa primeira fase, tem
medo do alienígena, tal como este dele. A forma informe, em resumo,
provoca bimodalidade de comportamentos também na sociedade cm
que se insere. Neste sentido, Grcw/ínx é uma autentica extensão de
E7. É o extremar de uma estética da informidade. Recordarei que os
animais-bonccos nascem com uma forma «estável», a do brinquedo de
pelúcia, totalmente aceite por todos porquanto sempre dotado de eufo­
ria, graça, enjoativa doçura. Mas a distracção c a estupidez humanas
farão que a manutenção da forma dos Grcmlins seja rompida e estes
mctamorfosciam-se em criaturas más, feias, disfóricas e disformes.
Mas, na verdade, para <yMe/n o xaióa cowprcenJer, transformaram-se
em personágens magníficas, euforizantes, pcrfcitamcntc conformes à
natureza de «monstrinhos» c não de verdadeiros monstros, e a seu mo­
do «bons» (desde o momento cm que punem as personagens odiosas
da comunidade do Midwcst, como a crudclíssima dona do banco lo­
cal). Algumas cenas do filme, longe de provocarem medo ou desgos­
to, constituem uma pequena obra-prima da história do cinema: a cena
do jogo de pôquer entre os monstros c um chefe de bandidos com a fi­
gura de Humphrcy Bogart: a cena do visionamento de Branca Neve
c .Scíc /tnõe.s* no cinema da vila; o duelo final na loja de brinque­
dos; a cena da execução musical dos Grcmlins cm fatos de grupos de
roda Aqui, a capacidade de Spielbcrg para jogar sobre a crista das ca­
tegorias de valor, sobre a sua bimodalidade, sobre a sua instabilidade,

(') Renato Giovannoli, «La sintasse dclPalicno», in La ycíen 2 a <7e/ía/aa-


ía-scíenza. Esprcsso Strumcnti, Roma, 1983.

774
parecc-me atingir uma aitura incomparável. Mas não incomparável
por as formas criadas serem «belas». De preferência, por o juízo de
valor ser transferido da forma em si para o seu dinamismo, para a sua
capacidade de construir incerteza, complexidade, variabilidade de ati­
tudes.
É estranho, no entanto, que quase toda a crítica tenha vislumbrado
nos produtos de Spielbcrg, Lucas c companhia obras «conformistas».
Que isto tenha qualquer fundamento, é inegável. Mas o conformismo
spilberguiano-lucasiano dá-se só a um nível, c talvez o mais superfi­
cial, dos seus filmes. Por baixo, há quase uma segunda pele de uma
natureza de todo diferente. Uma segunda pele que recusa ou, pelo me­
nos, põe cm discussão as homologações ordenadas, tradicionais, rígi­
das, das categorias de valor da nossa sociedade. Disse-se desde o iní­
cio que a tcratologia contemporânea não só se apresenta como nova
cm relação ao passado, como induz a pensar num novo capítulo final
respeitante à relação dos monstros com o ambiente cultural. O modo
de pensar os montros, de facto, oculta os modos de pensar as catego­
rias de valor. N o caso que temos estado a examinar, parece-me evi­
dente que já não nos encontramos mais perante a clássica homolo­
gação disforme-fcio-mau-disfórico. Mas tão-pouco perante a homo­
logação que poderemos definir como «anticlássica»: disforme-bom-
-bclo-cufórico. Nem perante as homologações características, por
exemplo, a alguns «gêneros» de discurso (o cômico: disforme-mau-
-bom-eufórico; c assim todos os outros). Deve ainda, pelo contrário,
vincar-sc o surgimento de novas poéticas ligadas à incerteza e à não-
-definição de formas c de valores, ao jogo levado aos seus vértices ca-
tegoriais.

3. Outras instabilidades: os jogos em vídeo

Referimos de passagem que existem monstros nos jogos em vídeo.


Mas, na verdade, deveriamos dizer que, seguindo o princípio da poéti­
ca da instabilidade, «monstros» são mais propriamente os ditos jogos
cm vídeo, sobretudo aquele seu subgéncro que é definido como «de
guerra». De facto, nada como estes jogos é governado pelo princípio
tia dinâmica das formas e da bimodalidade das suas estruturas. Passe­
mos à análise de algumas das suas características.
Num dos gaJgetr electrónicos mais famosos do passado recente,
D f/en& r, da Williams, surge no écran, introduzida a ficha, um auten-
r
tico cinematográfico. Aparece, de facto, a paiavra
que se compõe tridimensionaimente, c a fórmula «Witiiams presents»
com destaque e mudança de imagem, que forma a paiavra
com novo destaque c mudança de imagem, c a descrição dos persona­
gens c interpretes (a astronave do jogador, depois os diversos inimigos
e as suas propriedades, c também os seus nomes e a pontuação relativa
à sua ciiminação). É evidente que o jogo se asscmciha ao fitme de ac­
ção. É um sujeito que toma a responsabilidade do texto seguinte,
como se dissesse: «eu, que tc digo que...». E nós somos os destinatá­
rios situados no exterior, num espaço de cspcctáculof). O texto que se
segue apresenta-se, por conseguinte, como o relato de qualquer um,
mas a história está na terceira pessoa, com um protagonista (a astrona­
ve), do qual veremos a viagem e as suas peripécias. Não é por acaso
que a observação dos espectadores, que somos nós, está no exterior da
astronave e dos seus inimigos, bem como no exterior do mundo relata­
do. Todavia, outros pormenores do jogo negam esta «posição». Por
exemplo, existe um quadro de comandos que de facto se projccta no
interior do jogo, tornando-nos «pilotos» da astronave. Mas os dois es­
paços (de pilotagem, portanto, subjectivo; de jogo, portanto, objccti-
vo) só coincidem parcialmcntc no écran c, por isso mesmo, tornam a
percepção constantcmcntc oscilante entre as duas posições. Não só.
também de um ponto de vista meramente narrativo a existência dos
dois espaços contraditórios torna instalávcl a narração. Por um lado,
somos quem manobra o jogo, ou melhor, assumimos projcctivamcntc
o papel de narradores: somos nós que, com os nossos movimentos,
criamos uma história para qualquer um. Por outro lado, somos nós os
manobradores da astronave, ou melhor, as personagens submetidas
aos acontecimentos da história, relatados pela história. O jogo-narra-
ção toma-se assim uma espécie de percurso que o fruidor percorre não
só matcrialmcntc, no concrctismo das provas impostas, mas também
teoricamente, nas provas de destreza narrativa necessárias para gozar
cm simultâneo do jogo,pelo lado de fora, como espectáculo, e por den­
tro, como aventura. O todo depende precisamente da diferente estrutu­
ra geométrica, embora no mesmo espaço de video, das duas regiões
em que o fruidor-actor é colocado. Só certos jogos que simulam uma

(?) A mecânica da construção espacial do espectador 6 decerto mais com­


plicada. e aqui faço que se tome banal uma observação que tem muito maior
relevo c articulação cm Francisco Casetti, Dicfr# Aguardo, Bompiani, M i­
lão, 1986.

776
visão do espaço em subjectiva e em perspectiva resoivem a instabiii-
dade das duas geometrias coincidentes.
Não se trata, no entanto, da única forma de instabiiidadc prevista
peios jogos em vídeo heróicos. Também existem outras, ncies, quer no
piano estritamente figurativo, quer no piano da rciação entre jogo e jo-
g adpre&.-Nam a ioria dos jogos cm vídeo, de facto, existem peio menos
trê^cicmcntos de instabiiida(}e)0 primeiro consiste nas características
dos próprios actorcs. Os «inimigos» da astronave, por exempio, são
com muitíssima frequência dptados da capacidade de se transforma­
rem e de aumentarem progressivamente as suas próprias capacidades
ofensivas, atingindo aitos graus de imprcvisibiiidade na sua acção. O
segundo, peio contrário, consiste ainda num conflito de espaços. Ao
nosso aicance e sob o nosso controio está somente o espaço que se de­
senha no ccran. Mas o «inimigo» pertence também um espaço exterior
(aqueie que não é visívef), que é entendido como uma continuidade do
interno. Continuidade, sim, mas de todo imprevisíve! para nós, e por
isso de facto uma continuidade prometida mas não mantida, tanto
mais que as acções inimigas provenientes do espaço «exterior» são ac­
ções de surpresa^). O terceiro, enfim, consiste na rciação entre jogo e
jogador. Ao contrário do /ít/tper. ou de certos jogos em vídeo «fan-
tasy», nos quais, em teoria, com suficiente habiiidadc e fortuna, o jo­
gador poderia continuar a partida até ao infinito, nos jogos «heróicos»
compete-se sempre sobre o fio da morte. Por outras paiavras, quer
como dificuldade técnica, quer como configurações narrativas, o joga­
dor vive como que à beira de um abismo, esperando um fim ineiutáve!
tio qual procurará adiar a chegada e no quat a morte do herói e a morte
(io jogo acabarão por coincidir^).

(*) O fora-de-campo funciona aqui não como «qualquer coisa que não é»,
mas como implícito. Quanto ao funcionamento do implícito, cf. Oswaldo Du-
crot, Dire et nepu.sdire. cit., e Catherine Kcrbrat-Orecchioni, 7,'imp/iciíe, Co­
tio. Paris, 1985. Quanto ao funcionamento do implícito visual, cf. Francesco
( asetti, «1 bordi delFimagine», Versícs, 29, 1981, depois reelaborado em D en­
tro /o .sgMgrdc, cit.
f ) Tem-se afirmado com frequência que os jogos em vídeo heróicos são
omito «japoneses» prccisamcntc nisto: o jogador deve assumir uma posição
semelhante à de um santurai revestido de trapos tecnológicos, ou seja, do
combatente solitário contra um universo de inimigos. Por isto é que os jogos
em vídeo heróicos, ainda que possuam também eles um «ciclo» de quadros
sucessivos, não permitem, todavia, chegar alguma vez ao completamento cir­
cular. pois aumentam constantemente a velocidade de acção dos «inimigos».
Para se aprofundar o argumento, pode ver-se a série de «recensões» dos novos

777 UfSM-KMlRONAMKEUlMS
SA L A DE E ST U D O S
4. Outras instabilidades:
figuras, estruturas, comportamentos bimodais

Falámos ate agora dc dois grandes fenômenos de instabilidade, dos


quais um é constituído por um tema c o outro por um objccto que in­
clui a instabilidade como tema, c que para mais se comporta ele mes­
mo instávelmente, atingindo, por outro lado, instabilidade às acções
dos seus utentes. Devemos deter-nos nesta obscrvaçào, antes de pros­
seguirmos. Dc facto, deve sublinhar.-sc que o fenômeno da instabilidá:
dc aparece nos objcctos «ncobarrocos» pelo menos a três níveis. Um:
o dos temas e das figuras representadas. Dois: o das estruturas textuais
<yac contendam ar represeirtdções. Três: o da rclaçào entre figuras, tex­
to e tipo de jhtição dos mesmos. Os três níveis podem ser mais ou
menos concomitantes. Um facto, todavia, aparece claro: que figuras,
estruturas textuais e comportamentos de consumo nào podem ser se­
parados senão por análise, mas são frequentemente coincidentes nos
objectos neobarrocos. Dito de outro modo: se se representa a instabi­
lidade, 6 fatal que também as suas representações sejam instáveis e c
fatal que as instruções para o uso de tais representações (os programas
dc uso, claro, não os usos cfcctivos) indiquem usos que são, precisa-
mente, instáveis.
Os exemplos que ate aqui utilizámos parecem muito pertinentes à
matéria tratada. Todavia, será bom oferecer mais alguns exemplos,
ainda que sob a forma de uma lista a custo fundamentada. Monstros
dc cinema e televisão c jogos em vídeo podem realmcnte fazer-nos
crer que só o âmbito dos media foi tocado pela poética do informe e
do instável. Não foi cxactamcnte assim. Tomemos alguns exemplos,
para começar, tirados da literatura mais recente. Em particular, três ro­
mances em que o estilo pode parecer, sob outros aspectos, muitíssimo
diferente, mas no qual o espírito das metamorfoses funciona infati­
gavelmente. Trata-se de ée Nttma Noite de inverno í/m Viajante, dc
ítalo Calvino, O Nome da /?osa, de Umbcrto Eco, e Daiat/t, de Gore
Vidal('°). Dc todos os três, cm confirmação da sua natureza ncobarro-

jdppers c jogos em vídeo que eu desenvolví, com Renato Giovannoli, cm Z,i-


nu.r, no ano de 1980. Cf. também Alberto Abruzzcsc et adi, Vtdeoga/ne.s'.' sto
rin e strattara, Basaia Editore, Roma, 1982.
('") ítalo Calvino, -Se ona notte d'inverno <tn viaggiaiore, Einaudi, Turim.
1979; Umbcrto Eco, /t no/ne deita rosa, Bompiani, Milão, 1981; Gore Vidal,
Daíatd. Milão. 1984.
ca, se fa!a também noutros tocais deste livro. Comecemos por Calvi-
no. Como se recordarão, o romance consiste numa série de reiatos di­
ferentes no ambiente, nas personagens, nos tempos, que se entrelaçam
uns nos outros, sem que nunca cheguem a uma conclusão. Mas o ew-
/w&eTwem é permitido pcio facto dc todos os relatos serem, na realida­
de, uma manifestação diferente da mesma estrutura subjacente. Assim
sendo, ainda que as representações mudem, o relato mantém-se perfei-
tamente homogêneo. Cada história narrada coloca-se num segmento
diferente do próprio programa narrativo. Corolário: cada história é a
metamorfose figurativa potencial de cada uma das outras, e no roman­
ce isto é expresso fazendo realmentc darem-se metamorfoses narrati­
vas umas nas outras e todas elas na moldura, que também é uma histó­
ria da mesma classe, apenas elevada à classe superior dc «contentor».
Ligeiramente diferente é o caso de Eco. Também aqui, conforme
notou Cario Ossola("), estamos perante um processo de metamorfo­
ses. Mas com uma base teórica mais específica. Em vez de partir da
mesma hipótese que Calvino (extraida da semiótica dc Grcimas)('^),
tia equivalência estrutural de todas as histórias com a mesma matriz,
Eco parte mais da ideia dc que estrutura e figuras são transportáveis
para dentro de uma outra história, «nova», que resultará na combinató-
t ia de um material enciclopédico mais ou menos já existente. Assim,
com níveis dc especulação diversamente patenteados, Eco cfcctua uma
«montagem» de muitíssimos textos (narrativos, figurativos, filosófi­
cos, científicos, etc.), encaixados todos num novo texto que, traduzin­
do-os c obrigando-os ao objcctivo, os homogeneiza também figurati-
vamente.
O terceiro exemplo, o dc Vidal, embora dc menor «qualidade» lite-
tária (o que não está em discussão), parece reunir entre ambos os prin­
cípios mctamórficos acima expostos. Em DaÍMl/t. dc facto, imagina-se
a história dc uma cidade, que dá o título ao romance, a qual se estende
ptaticamcntc por todos os Estados Unidos. Nesta mcgalópolc se dc-
enrolam as peripécias de alguns grupos dc personagens, que repre-
cutam a metamorfose literária dos protótipos dos filmes americanos.
Até este ponto, estamos no nível da técnica de Eco. Salvo que Vidal

(") Cario Ossola, «'La rosa profunda'. Mctamorfosi c variazoni sul 'No­
me delia rosa'», in Giuscppc Barbicri c Paolo Vida! (organizado por), Meía-
mw/b.vi. Da//a verúá a / MffMO ventà, Laterza, Roma-Bari, 1986.
(") Como se deduz dc Ítalo Calvino. «Commcnt j'ai écrit un de mes li-
v n 'S » ,/ t c t e .!,S é / M ÍO / Íq M C S ( D oC M /fiZ'fU .S'), 51, 1984.

779
introduz na cocrcncia da moidura dc base a incoerência aparente (e
apenas figurativa) à maneira dc Caivino. Dc facto, cm Du/ufÍ!, as per­
sonagens podem entrecruzar-se de uma história para outra, interagir,
mesmo que pertençam a épocas diferentes e a enredos afastados entre
si, transferindo a sua «memória» romanesca (ou seja, as configurações
em que se encontram) para outros entrechos concomitantes. Para mais,
existe um nívei dc cnunciação (o autor identificado com o nome na
capa que se dirige aos próprios icitores) que é continuamente atirado
para dentro e para fora do romance, ató se tomar iiteraimente iniden-
tificávci a sua aparição enquanto tai. Nívei que cm Eco existia só
como jogo de moidura c dc cncaixamcnto de mais vozes narradores,
ate atingir a de Adso dc Mcik, e que em Caivino só surgia como faisa
distinção entre história-moidura e história-emoidurada.
Os três mecanismos metamórficos poderíam dar iugar a uma ti­
pologia aproximada. Em Caivino, temos uma autêntica tradução de
motivos narrativos. Em Eco, assistimos ao princípio da sua traas/eríòí-
graças à passagem que cies sofrem desde as fontes cm que esta­
vam, até ao destino «novo», através da fase da sua hipcrcodificação na
«enciclopédia», ou meihor, no saber comum e organizado dc uma so­
ciedade. Em Vidai, enfim, convivem tradução c transferência. Mas es­
tamos apenas ao nívei das figuras, ou meihor, dos motivos narrativos,
tornados instáveis enquanto sujeitos a passarem dc um iugar para ou­
tro, w!o<^/ica/!&)-A'e o trq/ecto. O segundo nívei é o da máqui­
na narrativa. Em Caivino, esta máquina é instáve) peto simpies facto
dc que, dcvcndo-sc demonstrar o princípio de tradução, a própria nar­
ração produz saitos que competirá ao ieitor reconduzir à continuidade
mediante a intciigência do texto. Em Eco, encontramo-nos perante
uma continuidade aparente: mas se iançamos contínuos desafios ao
ieitor dc tipo inverso, visto que o texto é «bordado» com traços que
conduzem à muitipiicidadc das fontes, que o ieitor reconhecerá ou
não, ou pcias quais será enganado ou não (dado que muitas vezes as
citações podem ser faisas, como se pode icr num outro capítuio deste
iivro, dedicado aos mecanismos dc «perversão»). Em Vidai, enfim, es­
tamos na descontinuidade mais total, e o texto toma-se numa espécie
dc «amontoado» quase informe, causado por saltos nos motivos, nos
estiios de citação, dc estrutura supcrficiai, e no qual c quase impossí-
vei operar reunificações. O terceiro nívei, finaimente, é o do compor­
tamento do ieitor, não enquanto tai, mas enquanto previsto peio texto.
Já o aflorámos impiicitamente nas tinhas precedentes. No romance dc
Caivino, encontramos um ieitor desafiado a reencontrar a unidade

720
ocu!ta na variedade, mas convidado a «gozar» o confino entre dois
planos. Em Eco, o desafio é inverso: reencontrar o diverso no homo­
gêneo e o prazer na distanciaçáo necessária à operação, com as ar­
madilhas que isto permite. A principai, como veremos num próximo
capítuio, c a de confundir constantemente a verdade c a mentira dos
«achados» textuais utiiizados. N o voiume de Vidai, enfim, encontra­
mos um Ieitor convidado a comprazcr-sc com a indizibiiidade c a ver­
tigem por esta provocada a propósito dos papéis e das características
das personagens. Por outras paiavras, exige-se ao ieitor que quase se
abandone ao detírio das metamorfoses c das instabiiidadcs daquüo que
é narrado.
Exempios anáiogos podem também encontrar-se nas artes figura­
tivas e, mais uma vez, nos três níveis diferentes que acabámos de re­
ferir. Tomemos um caso embicmático cm arquitcctura, o do grupo
americano Site. Os Site construíram, a partir do finai dos anos 70, uma
série dc edifícios para os armazéns Bcii's, dos quais o mais importante
se encontra cm Richmond, e outros um pouco por toda a parte nos Es­
tados Unidos. O caráctcr csscnciai dc todos os edifícios é o dc terem
uma base simpies, a forma de um paraicicpípcdo, que é o aspecto
«normai» dos edifícios industriais. Mas o aspecto exterior está tratado
dc uma maneira espcciai, como se se tratasse dc uma espécie de «pe-
!c», à quai se fizeram sofrer transformações catastróficas. Os paiácios
aparecem assim como que atacados de uma forma quaiquer dc destrui­
ção, devida ao tempo, a um cicione, a um terramoto, etc. Por exemplo,
as fachadas foram pensadas como foihas c feitas cncaracoiar a um
canto, como se fosse causado peia humidade. Ou então o paraicicpípe-
do não foi construído «apoiado» sobre o terreno, mas desviado do seu
centro de gravidade, como se se tivesse afundado no terreno. Ou ainda
certos ânguios do edifício foram previamente rcaiçados, como ruínas,
com biocos de tijolos que parecem caídos das cornijas, e faitas de
estuque nos pontos de ruína, quase como se tivesse saitado devido à
vioiência dos ciementos naturais. Ou, finaimente, os parques de esta­
cionamento fronteiros foram cobertos de pó de cimento cinzento, que
forneceu também uma cobertura totai ou parciai de aiguns automó­
veis, a evidenciar uma presumívei incúria pós-catástrofc. Como se ve,
estamos neste caso em presença dc uma instabilidade das figuras ar-
qmtcctónicas. Ou meihor. ãinstahiiidadc foi rc/vMCfUraár.
Um outro exempio vem da arte contemporânea. Em !9 8 i, Saiva-
(ior Daii compôs seis desenhos, todos eies intituiados Caf&frq/e, c que
representam um espaço geométrico piano, mas eiástico, com uma ou

727
mais pregas internas. Pela dedicatória («a Rcné Thom»), percebe-se
muitíssimo bem que se trata de algumas entre as chamadas «catástro­
fes» elementares, ou seja, sete modelos geométricos elaborados pelo
matemático francês para descrever as várias formas de dinamismo es­
trutural. Neste caso, um modelo científico representante da instabilida­
de torna-se «figura» de uma obra de arte, também ela manipulada, por
seu turno, dado que Dali não se limita a reproduzir as figuras canôni­
cas dos modelos, claborando-as, por sua vez, tomando-as não reco­
nhecíveis de imediato c, portanto, pcrccptivamcntc instáveis. Por ou­
tras palavras, é uma estrutura que se torna em figura, ou motivo artísti­
co, e para mais aquela mesma estrutura determina a entrada em crise
da representação da mesma estrutura.
A*- < ^ ^

Dirigindo-nos, ao invés, para um nível mais estrutural, poderemos


colocar uma série de obras que vão da pintura à fotogra­
fia, à arquitectura, ao teatro, à televisão, como «gêneros» portadores
sobre os quais se inserem outros materiais. Nesta série de exemplos,
há um dado de fundo: é a estrutura da obra a trabalhar sobre a instabi­
lidade da sua aparência. Tomemos o caso do fotógrafo italiano Cario
Fabrc. Rcccntcmcntc, Fabre utilizou materiais fotográficos que tomam
não durável a imagem fotografada, ainda que, pelo contrário, esta últi­
ma, no período em que é permanente, represente figuras pcrceptiva-
mente estáveis e «normais» para uma fotografia. A imagem, cm subs­
tância, desaparece lcntamcntc, um tanto à maneira das pinturas tumu-
larcs trazidas à luz por escavações cfcctuadas sem precauções técni­
cas. Um caso semelhante é o do pintor Filippo Panseca, que, quase
pretendendo representar a pouca duração da vida, começou a produzir
quadros «de duração limitada», isto é, a pouca duração da vida estéti­
ca, mediante obras que iam perdendo a cor. Depois, as obras começa­
vam a desaparecer, um tanto à maneira dos frescos de Leonardo, que,
involuntariamente, mas devido à cor experimental que utilizava, não
resistiram à passagem do tempo. Uma certa instabilidade estrutural
programada pode ser também a que se experimenta cm certos produ­
tos de ví&'octwipMter-grH/tc, como os dos Giovannotti Mondani Mcc-
canici. Aqui, assistimos a programas cm que as figuras, tratadas por
meio de utna técnica de ponta, já não são representações projcctivas
de objcctos reduzidos a objcctos simples c geométricos (tridimensio­
nais). Trata-se, pelo contrário, de um autêntico tratamento da superfí­
cie do écran, sem qualquer relação com um «real» qualquer, embora

722
as imagens ate possam ser cxtrcmamcntc «verosímeis». Ora, acontece
que um mesmo programa eidomático possa operar sobre a superfície
do écran de modo dúplice ou n-piice: assim, uma imagem «realista»
que surja num dado momento pode transformar-se segundo um certo
ritmo imposto às modificações de cada lugar isolado do próprio ccran
numa imagem «realista» diferente. O próprio écran faz ver a dinâmica
da transformação da imagem, que surge dominada por uma espécie de
«proteiformismo» interno. Um caso deveras semelhante aconteceu
num espectáculo experimental do grupo florentino Krypton, com o
emblemático título de Afetamor/rMM, no qual, com diversas técnicas
experimentais, entre as quais o /rMer, o ctwi/mtcr gmp/iic. a holografia,
etc., se transformam as estruturas arquitcctónicas dos locais cm que se
realizam os espectáculos (por exemplo, a Praça de Linz, a Praça da
Senhora da Anunciada de Bruncllcschi, em Florença, etc.). Também
aqui, porquanto no último exemplo também tínhamos uma dinâmica
das figuras, ainda é focada sobretudo a intervenção sobre a programa­
da instabilidade do aparelho textual, mais do que das figuras que ele
contém.
Finalmcnte, podemos falar do último nível de instabilidade, o
pragmático. Os exemplos mais probatórios aparecem ao nível do es­
pectáculo, como é óbvio. De facto, é aqui que se consegue operar de
tuna maneira mais concreta um «faz fazer» instável do leitor. Comece-
se por um concerto rocA de grupos /írrrri contemporâneos, desde os
1'olicc até aos mais violentos pttnA que se lhes seguiram. Aqui, pro­
cura-se aparentemente uma intcracção cotn o público mediante acções
conflituais: provocações verbais, disputas, objectos lançados sobre a
multidão, e por aí fora. Um tanto como nas sessões nocturnas futuris­
tas ou dadaístas dos anos 10, que não em vão se poderiam entender
como fenômenos barrocos. O mesmo acontece cm certas formas de
teatro «de vanguarda», como no caso de Leopoldo Mastclloni, que so­
be ao palco para correr as pessoas à bofetada, ou do mimo francês
Yves Lebreton, que termina o espectáculo com lançamentos de bolas
de papel entre o palco e a sala, ou do espectáculo Morte rio Geometria,
de Picr'AHi, sobre texto de Giuliano Scabia, no qual as pessoas são
provocadas» a rcacção pcrccptivas pelo insistente trabalho de faróis
directamentc nos olhos dos espectadores. Mas, em geral, formas do
teatro baseadas no «comprometimento» dos espectadores são antigas:
provem ou dos anos experimentais de 68 (como o Living Theater), ou
de ainda antes, da ideia de «teatro total» da Alemanha dos anos 20.
Nas artes figurativas, este fenômeno desapareceu por algum tempo
com o período das pcTjfbr/naMcey dos anos 70 (tipo: os comportamen­
tos perversos de uma Kctty La Rocca, ou de um Gino De Dominicis,
ou de um Wotf Vostcü, ou de John Cage; modelo: o mongolóide apre­
sentado na Bicna) de Veneza, ou o touro de cobrição exposto na mes­
ma, ou o cavato abatido dos Magazzini Criminaü, um pouco mais
rcccntcmcntc)('3). Resiste, todavia, no âmbito da aprcjcnMção de
exposições ou na preparação de manifestações por parte de críticos e
arquitcctos. É, em suma, o «comportamcntaüsmo» por parte de crí­
ticos como Achiite Bonito Oiiva, ou de encenadores como Luciano
Damiani, ou ate mesmo na organização de percursos muscológicos
como o do Museu Picasso, de Paris, ou do Museu de Orsay, na mesma
cidade, ou do Stadtmuscum, de Estugarda, projcctado por Stcrlingf").
Podcr-sc-ia dizer, no entanto, que é o cinema o sector em que recen-
temente a ambivalência do público é mais procurada, através do au­
mento maciço, sobretudo, do gênero de terror c das técnicas de .rtrs-
/xfM.yg. A fórmuta scteccntista de misturar prazer e dor é banalizada
num cinema de efeitos cm que o espectador é deixado em suspenso,
como programaticamente defende Stcvcn King no filme de apresenta­
ção de Ca/q/rio, ou como implicitamente faz Dario Argcnto cm Dcwb-
níoy, situando utn filme de terror num cinema.

5. Teorias científicas da instabilidade

Alguns dos exemplos relatados nas páginas precedentes, como o


camalconismo de Zelig ou o amorlismo da «coisa», são extraordina­
riamente equiparáveis a algumas teorias científicas desenvolvidas nos
últimos anos, ou a alguns âmbitos de pesquisa aplicada igualmcnte
«explosivos» de tempos recentes. Refiramos a chamada «teoria das

(") Sobre o tenra da per/ormartee, cf. Lea Vergine, // corpo cootc /m-
gMgggio. Prearo, Milão, 1974; Renato Barillí, /n/brota/c, oggcMo. c<?/nporta-
/ncrUo, Feltrinelli, Milão, 1979.
('") O caso de Stcrling é emblemático: a secção de arte moderna tem ape­
nas dois pisos; há um elevador a ligá-los; normalmcntc, o elevador deveria ser
usado por aqueles que transportam pesos, ou por aqueles que fisicamente não
conseguem suportar sequer um lanço de escadas; mas o elevador é totalmcnte
«artístico*, de tal modo semelhante a uma «máquina celibatária* que os visi­
tantes do museu se aglomeram à sua volta e o adoptaram, não mais funcional­
mente. mas sim esteticamente, talvez repetindo de maneira obsessiva saídas e
descidas.
catástrofes», conhecida sobretudo graças ao nome de Rcné Thom, ci­
tado há pouco, e, entre outras, à análise do camalconismo anitnal cm
etologia('S). Antes de ilustrar as suas semelhanças com os nossos ob-
jectos culturais, todavia, torna-se necessária precisar cm que sentido
tais âmbitos científicos são associados com os humanísticos de que até
agora nos ocupámos. E digamos desde já que as teorias ou as análises
científicas da instabilidade e da metamorfose nos interessam pelo me­
nos de dois pontos de vista diferentes. O primeiro, e talvez o mais ób­
vio: se aceitarmos a ideia de que uma elaboração cultural qualquer, c
então tanto humanística como científica, manifesta uma dimensão
conccptual intema, poderemos dizer que qualquer objecto cultural terá
uma «forma» ou uma «estrutura» abstracta independente da sua mani­
festação c aplicação. Neste sentido, uma obra de arte c uma fórmula
química podem ter tranquilamente o mesmo «modelo» de articulação
intema. Esta é uma maneira diferente de falar do fenômeno da «recaí­
da» de que tratava Sarduy(^), evitando o risco de ter de estabelecer
um nexo causai entre dois ou mais âmbitos da cultura. Não diremos,
portanto, que uma teoria científica provoca mudanças de gosto, ou
vice-versa. Mas diremos que uma teoria e uma mudança de gosto esté­
tico podem pertencer a um mesmo «ambiente» ou «mentalidade», in­
telectuais, compartilhando a sua estrutura abstracta, aúuTa <7tu? cada
«/a <7os autores cie o/vas ou cie teorias cie ancíZises eteatt/teas não co-
uâeçarri o ca/apo ii/aítrq/e. De facto, cada um de nós sabe muito mais
do que aquilo que crc ou sabe saber, e pode exprimi-lo indcpcndcntc-
mente da sua própria vontade ou da consciência de o fazcr('^). Em
conclusão: os âmbitos específicos aqui cm exame são associávcis aos
objcctos culturais anteriormente assinalados por uma espécie de «si­
milaridade» na forma da sua expressão conceptual.
Mas há também um segundo aspecto. Os modelos científicos, so­
bretudo os teóricos, podem ter, devido a um seu necessário esquema-
ttsmo interno, uma ulterior capacidade, que é não só a de «exprimir»

(") Cf. o belíssimo livro de John L. Cloudsley-Thompson, Tootlt o/td


< t«tv. Dc/cuxive .Strotcgic.s in t/te /t/umat U'orM, Dent & Sons, Londres, 1980
Otítd. it.: LazcwMae farhg/io, Boringhicri, Turim, 1982.
("*) Severo Sarduy, Barroco, cit.
('^) Eco exprimiu este conceito com o termo técnico «enciclopédia». En-
u mie se por «enciclopédia» um modelo das capacidades realizadas num de-
n uuinado momento histórico, que o dicionário (modelo das capacidade ideais
dr um falante ideal) não pode explicar absolutamente. Umbcrto Eco, Yrattato
,t< KVHiohcagenerate, Bomipiani. Milão. 1975, p. 43.

723
um gosto igua! ao de outros objectos culturais, mas tambcm a de o
poder «descrever», ou então «cxplicar»('S). Por outras palavras: a par
da «semelhança», existe nos modelos científicos a capacidade de se­
rem usados como teoria dos próprios modelos, ou melhor, a de serem
auto-explicativos. Este último caso é claramcnte o da «teoria das ca­
tástrofes», que por isso tambcm pode utilizar-sc como explicação ou
descrição intrínseca de si mesma e dos outros objectos a ela associa-
dos(").
Continuando na «teoria das catástrofes». E digamos sem rebuço
que o seu miolo consiste nisto: qualquer fenômeno tem uma morfolo-
gia estrutural intema; esta morfologia é estável pelo simples motivo de
que variando-a, ainda que pouco, o fenômeno continua a ser o mesmo;
todavia, em primeiro lugar, existem fenômenos que não são de facto
estabelecidos, e cm segundo lugar tambcm as morfologias estáveis
estão sujeitas a transformações, ou melhor, sofrem mudanças na sua
duração. Muitas vezes, o modo de explicar as mudanças foi o de, a
partir do cvolucionismo e do determinismo, explicar a mudança como
uma serie de diversos, cada um deles sendo a causa dos ou­
tros, que seriam dele os efeitos. Em resumo: a diversidade de duas
morfologias conexas entre si num sistema foi sempre explicada cm
termos de Thom c outros matemáticos tentaram, pelo
contrário, fornecer modelos diferentes de descrições da mudança de
forma. Acima de tudo, Thom teorizou a J/nâ/níca das morfologias:
uma lortna estável actua no tempo uma cspccic de percurso que a leva
a sofrer perturbações. Quando, apesar das perturbações, ela não muda,
então mantém-se estável. Mas quando perante as perturbações se dá
uma mudança, então isso significa que aquela forma atravessou um li-

(") Refiro-me ao debate, deveras clássico, sobre função descritiva e fun­


ção explicativa dos modelos científicos. Na «teoria das catástrofes», tal dis­
cussão tem sido retomada com posições variadas. Rcnc Thom, por exemplo,
propende para a função descritiva, ao passo que Jcan Pctitot assevera que a
novidade da teoria está na sua capacidade explicativa dos fenômenos.
('*) A tese c a seguinte: enquanto muitas vezes o modelo científico de
dcscrição/explicação do fenômeno c completamcntc cxtrínscco a este (por
exemplo, a estatística não tem nada a fazer com os comportamentos dos elei­
tores de que faz a média), o modelo catastrófico c órtanen/e aos fenômenos,
no sentido tle que as geotnetrias catastróficas são geometrias deles. Mas isto
significa que este tipo de modelo é capaz de ser aplicado tanto aos fenômenos
como a si próprio. Cf. Giulio Ciorello, «Thom e la nozionc di spiegazione,
ow cro cosa i filosofi delia seienza possono impararc dalla teoria delle catas-
trofi», PrometAzus. 1, 1985.

/26

\
miar dc «catástrofe» que mudou a sua estrutura. Mas como é que isto
pode acontecer? Porque num mesmo espaço flexível podem existir
mais formas cm competição, separadas prccisamcnte por um «limiar».
Sc no seu percurso uma forma chega à beira de uma detas, então «pre­
cipita-se» no âmbito de atracção da ou das formas cm conflito, estabi­
lizando-se sobre o seu modelo. Por exemplo, se tomarmos a transfor­
mação do girino em rã, não deveremos dizer que a rã passa cm conti­
nuidade do estado-girino para o estado-rã, mas sim que a forma-girino
c a forma-rã coexistiam num plano geométrico elástico, e que a forma-
girino, no seu percurso histórico, chega ao limiar da forma-rã c preci­
pita-se nela, estabilizando-se. Poderemos apresentar este processo
como passagem entre dois estados estáveis, representada pelas zonas
deste plano^):

Em todos os locais â direita, mantém-se a primeira forma, em to­


dos os da esquerda mantém-se a segunda. No meio, encontra-se uma
prega. Quando o trajccto leva a nossa forma para a orla da prega, ela
prccipita-sc dc súbito do estado A para o estado B. Em geometria, este
"dc súbito» é traduzido por «catastroficamente», c indica toda a série
de pontos em que o brusco salto formal pode vir a dar-se. O modelo
binário acima representado é apenas um dos sete possíveis e a muta­
ção pode ocorrer não só entre duas formas, como também entre mais
lormas. Diremos, a concluir, que a aquisição dc uma forma depende
de um conflito, durante o qual um sujeito, como diz Thom, «escolhe o
u próprio futuro».

P°) Estou aqui a aplicar uma das sctc catástrofes elementares, a chamada
«atrástrofe de cúspidc», que é a segunda em termos dc complexidade c que
pode representar-se num espaço a três dimensões. Mas, naturalmcnte, existem
' iiastrofes mais complexas e de dimensões superiores. Cf. Rcné Thom.
M<f... cit.

727
Uma parte não muito aprofundada, mas, no entanto, aflorada, da
teoria das catástrofes diz também uma outra coisa, muito pertinente
para os casos que examinámos nos parágrafos precedentes. A saber:
que também existem morfologias que não são propriamente das for­
mas, mas das entidades cm busca da sua própria forma: as «formas in-
fo r m c s» f). Estas possuem um estatuto muito especial: não são dota­
das de qualquer estabilidade estrutural, mas assumem o aspecto de
qualquer atractivo estável que surja no seu campo dc acção. Sc os
atractivos forem mais do que um, são capazes de assumirem as carac­
terísticas de qualquer deles. Em suma: uma forma informe só pode
tornar-se forma formada por causa da atracção exercida por uma for­
ma estável. O caso mais evidente de formas informes é o das formas
totalmentc bimodais, como o cubo de Ncckcrf^):

do qual é indizível se se trata de um cubo vazio do qual vemos a es­


quina interna, ou se dc um cubo cheio do qual vemos a esquina exte­
rior, virada para nós. Uma tal «informidade» perceptiva também se
verifica nas figuras produzidas por Magrittc ou Escher, sobretudo nas
obras do segundo, nas quais a indizibilidade da forma estável domi­
nante dá lugar a paradoxos perccptivos. Como se vê, dado que os mo­
delos catastrofistas são autenticas representações, elas próprias podem
seguir a sorte da representação que modelam, mas, ao mesmo tempo,
fornecem-lhe a descrição estrutura! (e até mesmo «intuitiva» enquanto
geométrica).

f ) Thom rcfcre-se-lhc cxplicitamcntc cm SiaM ité.... cit., a propósito tlc


pintores como Eschcr ou Magrittc. Ver também Ornar Calabrcsc e Renato
Giovannoli, «Gcomctric delia paura», /tZ/aácfa, 43, 1982; Ornar Calabrcsc,
«Catastrofi c teorie delfartc», Ícctítrer, 15, 1984.
(3i) Para além dos textos já citados, cf. a propósito, Tito Tonietti, Cpías-
;ro/i, Dcdalo, Bari, 1983; Picro Mcldini (organizado por), /fan-axtro/c', Cap-
pclli, Bolonha, 1984.

728
E, dc resto, mesmo em termo de teoria das catástrofes são dcscrití-
veis alguns fenômenos morfogenéticos como aqueles que enunciámos
um pouco mais acima, os dc etologia. Num livro que rapidamente se
tomou um clássico, o zoólogo Lconard Cloudslcy-Thompson(^) ofe­
rece-nos uma fascinante panorâmica dos fenômenos de predação e fu­
ga no mundo animal. Em muitíssimas circunstâncias, e independente­
mente do gênero c da espécie dos sujeitos, os animais transformam-se
para melhor capturarem ou evitarem o inimigo. Alguns casos, como o
dos camaleões, são muito conhecidos. Mas outros, pouco sabidos, são
completamcntc espantosos c dc muito longe mais complexos. Há cria­
turas, por exemplo, que se mimetizam com o meio ambiente. As per­
dizes mudam dc plumagem conforme as estações; certas aranhas te­
cem teias com muitos centros para desviarem as atenções dos preda­
dores; muitos insectos mascaram-sc dc folhas e dc excrementos; há até
mesmo um verme que abre o seu próprio posterior para se assemelhar
a uma Mor. E há ainda outros animais que procuram assemelhar-se a
outros animais. Uma dada aranha transporta sobre as costas cadáveres
dc formigas para se parecer com uma formiga vista do alto; um outro
insecto assume a forma de um minúsculo crocodilo; outros ainda to­
mam o aspecto do rosto de um macaco. Mas não acaba aqui: certos in­
divíduos transformam partes do seu próprio corpo. Há pequenos verte­
brados da pradaria que fazem aparecer olhos e boca sobre o traseiro
para desviarem o ataque do inimigo c ganharem tempo para fugir, pre­
ferindo o ferimento à morte; outros invertem o alto c o baixo com
cores apropriadas, para enganar o inimigo quanto à posição do corpo
mediante a deslocação da sombra. Mas os atacantes também se masca-
t;tm para enganarem a presa. Existem serpentes da família das casca­
véis que fingem ter duas cabeças, a fim dc deixarem a presa indecisa
sobre qual o lado de onde deve aparar o golpe. E existem felinos que
se mimetizam, que se mascaram, que emanam odores despistantes.
Um outro zoólogo, Dcsmond Morris, diz-nos que o camaleonismo
i.imbém se verifica numa esfera humana, a do sexo (onde nós e os ani­
mais parecemos rcalmcnte parentes próxim os)^). Tanto para seduzir
uma femea como para engodar um macho, dc facto, o transformismo é
dc rigor. Um único exemplo, que não é por acaso que foi tirado dos
mnndris: os machos imitam sobre o rosto a forma das partes proibidas,

(") John L. Cloudslcy-Thompson, 0 /7 . cú., §§ 1-4.


(") Dcsmond Morris. M a/waíc/ung, /I fíeM Gtudg to //urnaM Re/iavior,
) Iscvicr. Londres, 1977.

729
enquanto as fêmeas de uma determinada subcspécic imitam a vagina
sobre o peito. Morris documenta exccientcmcntc que qualquer coisa
de semelhante acontece também entre nós, quando certas posições
corporais repetem a forma do traseiro nas mulheres e do falo dos ho­
mens.
Também os casos de etologia nada mais são do que conflitos entre
formas cm competição, que se tomam fenômenos efectivos quando
existe uma perturbação que os «provoca» (sexualidade, predação).
Factos de instabilidade morfológica, em suma. Claro, eles também
existem na natureza sem fazer recurso a períodos de «gosto». Mas é
um certo gosto que faz que sejam estes c não outros os fenômenos
analisados pelo cientista na miríade de factos não ainda estudados na
natureza. E mais ainda: embora se bate de pesquisas empíricas, expe­
rimentais e de campo, elas nascem, todavia, do facto de precisamente
neste momento se estarem a elaborar hipóteses capazes de distinguir
qual o tipo exacto de outros factos possíveis. O (Rjccrnir certas coisas
de outras no curso da natureza depende também, cm suma, da instau­
ração de determinados pontos de vista sobre o mundo, que o tomam
mais ou menos pertinente. E certos aSpcctos do mundo podem vir a
ser reconhecidos apenas porque existe aquele, e não outro, gosto da
pesquisa e da descoberta.

730
VI

DESORDEM E CAOS

[. A ordem da desordem

Poderiamos dizer que, desde as origens do pensamento fiiosófico e


científico c durante todo o percurso da história ocidental, nos temos
confrontado com duas series de noções: a de ordem, regra, causa, cos­
mo, perfeição, e por aí fora; e a de desordem, irregularidade, caso,
caos, imperfeição, e assim por diantcC). As duas séries opõem-se uma
ã outra por evidenciarem duas orientações diferentes para o mesmo
problema, que é o de descrever, interpretar, explicar os fenômenos já
ocorridos (encontrar a causa deies), ou profetizar os que não se deram
(encontrar a sua ocorrência). A primeira serie de noções leva crer que
podemos definir a origem e a previsão dos fenômenos. A segunda ser­
ve, peto contrário, para justificar a imprevisibiiidadc ou a inintcligibi-
!idade dos mesmos. Todavia, existem também múltiplas maneiras de
entender — por seu turno — prccisamcntc a imprevisibiiidadc e inin-
tcligibilidade. Por isto, as próprias noções de desordem, irregularida­
de, caso, caos, imperfeição podem receber definições diferentes. Entre
as muitas, existem peto menos três posições que podem conccbcr-se
como «clássicas» no interior da história do pensamento ocidental. À
primeira, poderemos chamar-lhe ideia «da origem ou do fim» dos fe-

(') Giorgio Carcri, OríArx; e nz*//a /na/eria, Latcrza, Roma-Bari,


I')H3.

737
nómcnos. Consiste cm pensar a ordem como um princípio de regulari­
dade que se sobrepõe a um instinto originário, ou inversamente, como
uma condição que, no entanto, tende para a dissoiução final, absoluta
equiprobabilidade dos fenômenos. Toda a filosofia pró-socrática ima­
ginava a ordem do cosmo como derivada de um caos original. E, in­
versamente, a teoria da informação habituou-nos, entre os anos 40 e os
anos 50 do nosso século, ao conceito de; «entropia», isto é, de estado
equiprovável dos elementos de um sistema de informação para o qual
este fatalmente tende. A segunda posição é, pelo contrário, mais deter­
minista. Consiste em pensar que qualquer fenômeno será regido por
uma ordem necessária. Só a ausência de informações suficientes nos
impede, cm certos casos, de entrever aquela ordem: e por isso a defini­
mos, por comodidade, com(fj<irrcgular». Também neste caso se trata
de uma concepção antiga e moderna, ao mesmo tempo: tanto a encon­
tramos na física aristotélica como na mecânica pré-newtoniana, como
no positivismo, como no marxismo dogmático. A terceira posição é
mais rclativista e esbatida, mas também a mais contemporânea. Con­
siste cm pensar que os princípios de irregularidade, casualidade, caoti-
cidadc, irregularidade, imperfeito, dependem do facto de a descrição
de um fenômeno (e por isso mesmo também a sua eventual interpreta­
r ã o e explicação) derivar do sistema de referência em que o inserimos.
Um aspecto de um acontecimento que não. seja perceptível soí) ama
certa descrição, isto é, segundo certa^regras de pcrtincnclS? será defi­
nido como casual, variável, irregular, e assim por diantef). Mudando
as regras de pertinência, a casualidade também pode desaparecer.
No âmbito das ciências humanas, tal como no das ciências da natu­
reza, a contraposição entre as duas séries de conceitos foi entretanto
complicada por um outro factor. Quase sempre as disciplinas científi­
cas (e também as humanísticas que integrámos no estatuto de «cicnti-
ficidade» modelado sobre as ciências sociais) produziram teorias ani-
/teadas da ordem. e, por corolário, teorias a/ti/iradas da desordem.
Neste sentido: que, por um lado, as disciplinas científicas pensaram o
seu próprio fim como orientado para a descoberta de uma ordem uni­
versal das coisas; e, por outro, como orientado para a descoberta da
ordem interna do sistema local de referência específica. A desordem

()) Benoit Mandelbrot, í e s ob/ecis/raciais. Flammarion, Paris, 1977; id.,


«Des monstres de Cantor et de Peano à la geométrie fractale de la nature», in
François Guénard-Gilbert Lelièvre (organizado por). Penser irs maiAcmaii-
<7 Mes, Seuil, Paris, 1982.
tornou-se, por um !ado, uma margem exterior à ideia da ordem única
de coisas, com a aposta implícita no seu afastamento cada vez maior
(oi então na eliminação), c, por outro lado, o lugar da não-pcrtincncia
local da ordem específica analisada por cada disciplina^).
Nos últimos dez anos, a partir da pressão concomitante de algumas
descobertas científicas, a serie desordem-caso-caos-irregularidade-im-
perfeito sofreu uma modificação radical na ciência e na ciência da cul­
tura. Na ciência, antes de mais nada: tem tido uma cada vez maior im­
plantação a ideia de que os fenômenos não seguem todos e necessaria­
mente uma só ordem da natureza; e, além disso, concebeu-se o princí­
pio de que muitas vezes fenômenos de aparência sistêmica simples po­
dem ser susceptíveis de uma dinâmica de tal modo complexa que os
transforma por completo, a ponto de a turbulência de tal dinâmica,
longe de ser inexplicável, ser também o seu princípio de transforma­
ção específico e requerer instrumentos ad /M>c para ser descrita, inter­
pretada ou explicada. E a dinâmica de certos fenômenos que tendem
para a máxima complexidade que tomou hoje o nome <%c caar.)e cons­
titui o princípio dos estudos sobre «desordem)) (as teorias do caos),
que anteriormente à denominação que lhe foi dada por James York e
Ticn Yicn Li, em 1975, nem sequer tinha nomc("). Na ciência da cul­
tura, em segundo lugar: aquele que certa crítica idealista pregava
como «incfabilidado) ou «indizibiüdado) de alguns fenômenos cultu­
rais (como os criativos) foi mais traduzido como «princípio da com­
plexidade)). E a partir de filósofos como Niklas Luhmann, até chegar
aos estetólogos, começou-se a pregar o princípio da relatividade das
expíicaçõgg c a orientação para o da comp/exidade^). De res­
to, o passo era curto: se se queria refutar o idealismo da inefabilidade
da arte, mas mantendo um horizonte de explicabilidade da própria ar-

(b Ilya Prigoginc c Isabclle Stcnghers, í a noaveí/c adíaace, Gallimard,


Paris, 1979 (trad. port.: /I Nova Ada/tça, Gradiva, Lisboa, 1987).
f ) Rcinhardt Breuer, «Das Chãos)), Ceo, 7,1985; Heinz G. Schuster, De-
<<77Mou.snc C7rao.s. /la Aarodacnon, Physik Verlag, Weinhcim, 1982; Robcrt
May, «Simple mathematical modcls whit very eomplicatcd dynamics)), Nata-
?í'. 21,1976; James Crutchfield ei a/ii, «11 caos)), Le .Sctcnze, 2 2 2,1987.
(b O síogart, muito bem escolhido, é o de um seminário cujas actas se
tornaram precisamcntc no 3/ida deda comp/M.súà, Fcltrinclli, Milão, 1985. As
teorias de Luhmann, mais do que «aumentarem)) a complexidade, estão orien­
tadas para o problema da sua redução, por vezes também drástica. Cf. Niklas
t tthmann, Gesedscda/t and .Sema/UiA, Francofortc-sobre-o-Mcno, 1980 (trad.
it : MraMara deda socieíà e se/aaauca, Laterza, Roma-Bari, 1983).

733
te não se podia chegar ao conceito de «complexidade» arraigada em
cada fenômeno estático. Estará talvez neste «espírito do tempo» o pa­
rentesco de idéias ou de concepções filosóficas, como o «dcsconstru-
cionismo» ou o «pensamento fraco», recentes protagonistas da cena
cultural contcmporancaC). Acrcsccntc-sc, para completar, que os fe­
nômenos complexos, ou «desordenados» sao analisados cm ciência
nor meio de teorias também diferentes e cm competição entre si, con­
forme se acentue o aspecto sistêmico dos objcctos axammados, ou o
da sua forma de superfície, ou ainda o da sua morfologia estrutural. E
por isto que o capítulo precedente e os dois que se seguem são dedica­
dos ao mesmo objcctivo, que é o de seguir na cultura a articulação de
concepções da complexidade ao mesmo tempo analogas c d.lercn-
tesf). No precedente, a complexidade morfológica estrutural. Neste
capítulo c no próximo, a complexidade formal de superfície. No se­
guinte, a complexidade sistêmica.

2. A beleza dos fractais

Num dos livros de «nova» matemática de maior êxito nos últimos


anos Í.M O/jyecM /rücm/cy, Bcnoit Mandclbrot faz uma observaçao
* * -o s interessa H. perto. Dia Mantleibrot. .
des do seu livro: «No pior dos casos, se certas aplicações [da teoria] se
revelassem sem contacto com a realidade, o leitor teria de algum mo­
do travado conhecimento com numerosos problemas cicntilicos ve
lhos belos e difíceis, c com mrHemdítcrM M a s em s: me.sma.s.»() O
itálico c meu c visa sublinhar a indicação da existência de uma «cstéti-

(') Para uma panorâmica destes temas. cf. Maurizio Fcrraris La


l e y i í íe. cit.; Picr Aldo Rovatti e Gianni Vattimo (organizado por), //peayiera
Fcltrinclli, Milão, 1983. ..... . -
O A analogia consiste, em primeiro lugar, na .ndiv.duahzaçaodofcno-
meno da complexidade e cm o conceber como fruto da mstabiltdadc. polidt
mcnsionaiidadc. conflitualidadc. A diferença está: a) nos modelos pnvdeg ^
dos nela extensão a quatquer forma de complexidade (para 1 ngogm e trata-se
&mático- . d.LLi.^-i,,
R Kpara&Mandclbrot. de um modelo geométrico, e por ar fora), 6) no m
de articulação privilegiado pela análise dos fenômenos (Thom olha para a scs-
truturas profundas. Mandclbrot para as estruturas de superfície. Pr.gogme pen­
sa no aspecto sistemático que provoca um fenomeno).
(S) Bcnoit Mandelbrot, Ler ObjeH/racm/M. cit., p. v.

734
ca da matemática». Noção esta, já bem conhecida e ate agora expressa
com o termo de «elegância» (a exemplo de uma demonstração), mas
que no volume de Mandclbrot assume mu valor diverso em relação
à história da disciplina. Nas mesmas páginas, o autor já a tinha reba­
tido: «Em certas aplicações, terei simplesmente dado forma e bapti-
zado conceitos já expressos por investigadores que mc precederam, e
isto arrisca-se a ter apenas um interesse estético, se c que não apenas
cosm ético.»f) Mas o interesse cosmético de que fala Mandelbrot pos­
sui uma novidade: não se trata do clássico princípio, que há pouco de­
nominei «elegância», c que consiste na rapidez de formulação de um
conceito, ou na sua evidencia negativa, ou na sua racionalidade sim-
plificantc. No nosso caso, o fascínio da matemática provém antes da
das leis encontradas ou conseguidas, c trata-se de uma forma
decididamente «barroca».
Expliquemos de modo muito rude cm que consi^c um «objccto
lractal». Em sentido intuitivo, cntcndc-sc pqr^«fractal»_qualqucr coisa
cuja forma seja extremamente irregular, extremamente interrompida
,,u descontínua, seja qual for a escala cm que a examinemos. Um «ob-
lecto fractal» é, pois, um objccto físico (natural ou artificial) que mos­
tra intuitivamente uma forma fractal. Objcctos semelhantes são muito
frequentes na natureza: a descontinuidade de urna costa, o perfil dos
llocos de neve, a distribuição dos buracos do queijo gruyérc, a forma
das crateras da Lua, uma rede fluvial, c a lista poderia prosseguir inde-
tmidamente. Habitualmcntc, considerou-se a forma destes objcctos
naturais como devida ao acaso, c não previsível, dcscritívcl ou cal­
culável. De facto, as noções da geometria euclidiana tradicional não
pareciam suficientes (ou que, como veremos, é mais im­
portante) para tais escopos. Como se mede, de resto, uma costa cheia
de reentrâncias, para a reproduzir num mapa geográfico? Simplifican­
do ou aproximando os seus contornos de segmentos rcctilíncos segun­
do certa escaía, que é depois uma vista aérea realizada a uma dis­
tância útil para fins definidos. Mas, na verdade, jamais teremos, em
semelhantes procedimentos, uma mensuração «real» de uma costa
descontínua: para toda a escala se poderá provar que existe uma escala
mferior (uma vista mais aproximada) na qual a descontinuidade au­
mentará sempre o valor da distância entre dois pontos, rclativamente à
aproximação estabelecida àquela mesma escala. O facto de que os ins-
umncutos geométricos comuns admitem apenas mensurações aproxi-

(") //adem, p. 7.
madas dos objcctos fractais não significa que não possam existir ins­
trumentos mais precisos. Pelo contrário, muitas vezes, os fenômenos
naturais, como os acima indicados, demonstram-nos que a natureza os
requerería. Mas isto quer então dizer que poderemos imaginar a exis­
tência de «geometrias atí Aoc» adequadas ao tipo de complexidade dos
fenômenos para os quais elas poderiam oferecer descrições mais preci­
sas. Por outras palavras: geometrias fundadas na natureza dos fenôme­
nos físicos. Acerca deste ponto, naturalmcntc, os matemáticos estão
divididos. De um lado, põem-se os fautores da ideia ha pouco exposta
e, do outro, colocam-se os que defendem antes a necessária separação
da matemática relativamentc aos fenômenos naturais e concretos. En­
tre os primeiros, encontra-se justamente Benoit Mandclbrot, «inven­
tor» (mas é melhor dizer «rcformulador», como veremos agora) de
uma teoria geométrica adaptada à descrição dos objcctos fractaisf").
Na realidade, ó desde 1877 (20 de Junho, uma carta de Cantor a
DcdckindX") que se pensa na ideia de impugnar uma serie de princí­
pios da geometria e espccialmcnte a concepção da Jíwte/tsão. E nos
anos imediatamente posteriores àquela famosa carta de Cantor, outros
matemáticos tomaram conhecimento de fenômenos (não naturais, mas
teóricos) que contradiziam a ideia de dimensão. Isto aconteceu a Pca-
no, a Von Koch, a Hausdorftf^), e todos lhes chamaram «monstros
matemáticos», ou «quimeras». Tratava-se de figuras geométricas que
não correspondiam às regras gerais da topologia: por exemplo, curvas
especialíssimas — como as descobertas por Pcano — que funciona­
vam como figuras intermédias entre a recta e o plano. Outras figuras
eram, pelo contrário, intermédias entre a dimensão do ponto e da li­
nha, ou entre a da superfície c do volume. Mas isto queria dizer que a

('") D e facto, Mandclbrot «não inventou» propriamente coisa alguma.


Mas propôs uma reformulação dc certos problemas matemáticos já existentes
enquanto modelo para a construção dc matemáticas «ad hoc» para certos fenô­
menos reais.
(") Reproduzida m Jacqucs Cavallès, P/u/o.wpAie Hcr-
mann. Paris, 1962.
('*) Para Pcano. trata-se da famosa «curva», que enche um plano. Peano
descreve, de facto, o caso paradoxal de uma série de polígonos que enchem
um quadrado dc um modo sempre mais denso, dc tal maneira que o seu perí­
metro passa por cada um dos pontos do quadrado. Também Von Koch cons­
truiu uma curva «monstruosa» mediante a inserção de um dado aleatório na
função da curva; cm termos mais modestos, a curva de Koch é uma curva
fechada que se assemelha a um floco de neve ou a uma ilha cheia de reen­
trâncias.

736
nossa definição de «dimensão» estava correcta. Habituámo-nos, efcc-
tivamente, a pensar na dimensão em termos dc unidade: zero dimen­
são para o ponto, um para a tinha, dois para a superfície, três para o
votume. Em contrapartida, um caso de «monstruosidade» geométrica
c a exigência de dimensões não inteiras, correspondentes a fracçõcs.
Justamente: as dimensões fractais. Só hoje, com a recaída dos que, na
attura, pareciam apenas jogos matemático^ em disciplinas científicas
que tinham por objccto fenômenos concretos, a noção dc dimensão
fractat veio para a ribatta da ciência. Os resuttados obtidos em hidrolo­
gia, botânica, anatomia, informática e outros territórios disciplina­
res^ ) alteraram acima dc tudo a própria percepção dos fractais, que
arribaram ao limiar da estética c das comunicações dc massa. Parecem
ser três, cm particular, as propriedades dos objcctos fractais — natu-

(") Alguns exemplos: em meteorologia, o cientista americano Edward


Lorcnz, do Massachusscts instituto o f Technology, estudou, desde os anos 60,
os mecanismos de turbulência da atmosfera, chegando à conclusão de que as
turbulências são, certamentc, imprevisíveis e caóticas, mas seguem «uma certa
metodicidade»; responsável pelas fases de transição ao caos seria o facto de
que. contrariamente a qualquer sistema que se dirige para estados estáveis ou
<txos, o atmosférico c um sistema demasiado complexo para ser «atraído» cm
pomos precisos; Lorcnz fez então a hipótese da existência de um «atractor bi­
zarro»; cm engenharia aeronáutica, os projectistas utilizam este princípio para
'.mmtar certos paradoxos, como os «vórtices instáveis»; o vótice é. de facto,
uma forma regularíssima, que na atmosfera, porém, se pode tomar por vezes
irregular, como muito bem sabem os pilotos de jactos; a projcctação de asas e
iuireos deve, pois, ter cm conta a transição imprevista de estados regulares
p ira estados caóticos; em ctologia, Robcrt May, da Princeton University, es­
tudou, por meio da ideia dc «limiares de transição ao caos», as mutações im­
previstas dc densidade de população de certos insectos em presença dos parâ­
metros dc controlo da quantidade dc comidadc c da densidade da população
esr.tcntc; em medicina, um físico do Massachusscts instituto o f Technology,
i u ltard Cohcn, conseguiu explicar o aparente caos da fibrilhação cardíaca,
i'.o<[u/indo no computador simulações dc um alto número de distúrbios que
!' "u ao fenômeno; outros físicos e matemáticos, como o americano Mitchcll
! etgenhaum, cm Los Alamos, c o italiano Valtcr Franccschini, encontraram
ttum série dc limiares numéricos que constituem as equações para a transição
"" caos; em matemática, um americano ainda, Joseph Ford, da Atlanta Uni-
' ity, um russo, Boris Chirikov, c o milanês Giulio Casati levaram a cabo
r quisas intcrdisciplinarcs em Como, onde decorreram, em 1977 e em 1983,
! us gnmdes colóquios sobre o tema; nem todas as aplicações fazem uso da
t "na dos fractais, mas a descoberta das «leis do caos» confirmou de algum
..... .. " extensibilidade da noção matemática reelaborada por Mandelbrot. Cf.,
' uite outros, Robert M. May, Aínthc/nnncü/..., cit.

737
rais ou construídos — que rcccbcui uma valorização cstétictt, nos nos­
so dias. /-***
A primeira c o scu^caráctcr casuaí, não no sentido vagamente in-
quictãntcl: metafísico quT§e dá a esta versão quando é invocada para
justificar a impossibilidade de previsão de um fenômeno, mas no sig­
nificado científico de ou de casMaíí&i& prímá-
ría. Ou seja: o acaso como c definido no cálculo das probabilidades, e
que c artificiálmcntc introduzido cm qualquer sistema simulado. Em
informática, este tipo de operação de dominante casual chama-se raa-
damízaçãa. Randomizar uma colccção de objcctos significa, por
exemplo, substituir a sua ordem original por uma outra qualquer or­
dem escolhida ao acaso, mas sempre ordenada e prevista estatistica­
mente. ................ '***'"*',
A segunda é, pelo contrário, o scu(caráctcr escn/a/ue. Entende-se
por esta palavra o facto de que os objeefos fractais tem uma forma ou
uma estrutura irregular, mas esta repete-se sempre quase igual, tanto
no conjunto como nas suas partes, c cm qualquer escala que se obser­
ve o objecto analisado. /"** *
A terceira, por fim, c o scuçcaráctcr íeragdnico. Isto significa que
os objcctos fractais tem semprerniTarforma poligonal «monstruosa»,
ou seja, com elevadíssimo número de lados. Um «terágono» c, de fac­
to, um polígono desse gênero, e o nome indica, com a sua etimologia
grega, tanto o monstro ( * c omo o prefixo numérico f/ern), que ac-
tualmcntc designa no sistema decimal o número 10'^ c e o último pre­
fixo verbal existente para «dizer» uma potência de dez.
Como se vê, todas as três características pertencem a uma mesma
área estética, a que seguimos também no capítulo precedente dedicado
aos monstros. Os fractais são aqui monstros particulares: monstros de
elevadíssima fragmentação Itgurativa, monstros dotados de ritmo c
repetitividade escalar não obstante a irregularidade, c monstros cuja
forma se deve ao acaso, mas só como variável cquiprovávcl de um sis­
tema ordenado. Poderia então dizer-se que também as formas descon­
tínuas casuais c de dimensão fracta que se realizam cm certos objcctos
sofrem o mesmo processo de investimento de valor, que havíamos no­
tado sempre no capítulo precedente e que explicámos na «Introdu­
ção». Em certos períodos, eles sofrem um tratamento de desfavor, c
noutros vêcm atribuir-sc-lhcs vt epíteto de «belas». Não foi cm vao que
os matemáticos, desde o fim do século XIX até hoje, as consideraram
entidades quiméricas c «monstros», cm sentido negativo, enquanto
justamente hoje dois matemáticos alemães, Heinz-Otto Pcitgcn c Peter

733
H. Richtcr, conseguiram preparar uma exposição de objcctos fractais
obtidos por meio do computador e oportunamente cotoridos com siste­
mas cromáticos sobre uma superfície, que se intitulou de Feauty o /
Fracía/s e que deu a volta à Europa("*).

3. Dimensões fractas da cultura

Ate aqui, falámos de coa/igaraçãe^ /raciais, indicando como elas


existem em objcctos naturais ou cm objcctos artificiais, por exemplo,
do ponto de vista dos seus contornos figurativos. E também assinalá­
mos como é que tais configurações podem sofrer valorizações ao sa­
bor da época c do gosto. A frequência de objectos fractais na nossa
época contemporânea permite-nos definir como «ncobarroca» também
este tipo de produção substancialmcnte cultural. Todavia, podcr-sc-ia
neste ponto prosseguir na metáfora analógica sugerindo a existência
de «dimensões fractas» no processo global de produção-consumo da
cultura, e não apenãs cm certos objcctos específicos. De resto, se se
aceita a hipótese inicial de uma «forma» de cultura, também poderia
dar-se o caso de que «tal forma» assuma aspectos análogos aos da ir­
regularidade de certos objcctos seus.
Ocorre-nos à lembrança, de resto, que à volta de 1968 era moda fa­
lar de «dimensão» cultural. Um livro famosíssimo de Hcrbcrt Marcuse
chama-se (9 //o/we/n c dcnunciava-sc aí, justa­
mente, a ideia de que todos os poderes totalitários — sobretudo tam­
bém o capitalismo — tendiam para a construção de uma «sociedade
unidimensional» e também de um «pensamento unidimcnsional».
Marcuse contrapunha então à unidimensionalidade do Ocidente tccno-
crático ocidental a «catástrofe libertadora» das múltiplas dimensões da
consciência crítica. Mas o uso metafórico do termo «dimensão», to­
mado da geometria, pcrmancccria, se assim se pode dizer, euclidiano.
A dimensão única do poder e as dimensões plurais da libertação eram
dc algum modo metáforas tomadas de números inteiros. Poderemos,
pelo contrário, imaginar dimensões fractas da cultura? A que coisa
poderiam corresponder?

(") Hcins-Otto Pcitgcn c Pctcr Hans Richtcr (comp.), /A c ZleaMty o /


/ rur/aír. Springcr, Berlim, 1986.
('9 Hcrbcrt Marcuse, One-Dwte/tHOMa/ Mar:, Beacon Press, Bóston,
1964.

739
Retomemos por um instante os termos científicos da questão. O
nascimento da geometria fractal aparenta-sc com muitas investi­
gações, de diferente natureza, sobre fenômenos caóticos. Em subs­
tância, pode dizer-se que o interesse primário que têm em comum 6
o de examinar causas, funcionamento e previsibiüdadc das iMr&H/êa-
cíar. A turbulência c um modo de aparecer (caótico) de um fenômeno
cíclico qualquer em que à regularidade comum se substitui o caos den­
tro & um ccr/o ii/aiar & comp/MÍ&tJe (por exemplo, o ritmo acelera­
do de um ciclo). Matemáticos e físicos denominaram fenômenos se­
melhantes como «linhas de tendência para o caos» ou «linhas de tran­
sição para o caos»('% Não é só a aparência descontínua da forma,
pois, que qualifica o caráctcr caótico, mas também o seu aspecto de
turbulência. Para o desenvolvimento das nossas metáforas culturais,
podemos então concluir que qualquer fçnómcno comunicativo (ou
qualquer fenômeno cultural) que tenha ou uma geometria irregular ou
uma turbulência no próprio fluxo é um /endateno caótico. Não só os
objcctos, portanto, mas também o seu processo de produção e de re­
cepção.
E, com eleito, como veremos nos parágrafos seguintes, podemos
identificar com facilidade na cultura contemporânea casos de verda­
deiros e genuínos objectos fractais, e também de turbulências ou inter-
mitências na fonte, e ainda de desejada caoticidadc na recepção ou no
consumo. Objectos fractais, produções comunicativas irregulares, flu­
xos turbulentos constituem o horizonte de uma estética irregular c de
dimensão fracta.

4. Caos corno arte

Mencionei há pouco a exposição alemã 7/te Bcnníy o/* Fracm/x.


Naquele caso, não obstante a atitude cauta de Hcrbcrt Frankc c a ainda
mais céptica de um outro criador de imagens fractais (o americano
Bob D cvancyjf'), estamos perante a produção intencional de figuras
abstractas que atingiam a explícita função estética. Outros investiga­
dores, de resto, começaram a falar de «beleza dos fractais», como se

('6) Cf. Brcuer, cit. ia/ra.


('?) Cf. o texto de Frankc ia Peitgen e Richter, op. cir., c o trabalho de
Dcvancy, matemático da Boston University, ia Gary Taubcs, «C'è troppo
caos. facciamo ordine», .Seaim, 2. 1984.
ela fosse um caracter congênito a semelhantes configuraçõesC"). Tal
perspectiva, evidentemente, não é aceitável: como repetimos no final
da «Introdução», um objccto qualquer objecto estético só de­
pois de uma valorização por parte de um sujeito individual ou colec-
tivo. No entanto, também é verdade que as figuras fractais possuem
pelo menos um caracter capaz de ser valorizado como estético: o ma­
ravilhoso^ De facto, os objectos fractais, nas figuras realizadas com
um computador por Peitgen, Richtcr, Frankc, Dcvaney e na Itália por
Daniele Marini, constituem a versão tecnológica e sofisticada do anti­
go caleidoscópio, um objccto quase por definição surpreendente. Mas,
prccisamcnte, só cm certas épocas. Noutras, o caráctcr caleidoscópico
da produção visual considera-se, pelo contrário, só como um fenôme­
no de feira.
São, pois, numerosos outros casos cm que os artistas vão ã busca
de objectos descontínuos como material para a arte. Por exemplo, isto
acontece muitas vezes na escultura contemporânea (se assim é permi­
tido chamá-la). Pense-se nos objectos cobertos de verniz multicolor de
Kcith Haring. Ou então na produção de grandes obras de parede em
materiais trabalhosos de um Marco Gastini. Ou nas terracotas de Cor­
tado Morelli, ou nos fragmentos de auto-retratos de Cario Alfano
(produzidos desta vez cm superfícies acrílicas).
Muito mais frequentemente, porém, os artistas orientam-se para
tuna intermitcncia da produção da mensagem. É sobretudo o caso de
obras que utilizam como suporte um écran qualquer (televisivo, de
computador, cinematográfico^'"). Por exemplo, nas instalações do
)'."tpo milanes Studio Azzurro encontramos às vezes o uso da máquina
dc tomadas com função caótica. Efeito idêntico, com materiais diver­
sos, aparece nas elaborações mediante computador dos Giovanotti
Mondani Meccanicci, onde justamente o uso dos fractais permite a
contínua formação c dissolução de imagens «realistas». Também nas
produções sonoras assistimos ao fenômeno de intermitcncia na fonte.
Muita da vanguarda musical, a começar pela grande escola tnilanesa

(") Por exemplo, um outro jovem matemático americano, Pcter Oppe-


titieimcr, neto do famoso físico Robert, começou a produzir obras fractais que
'.< utitixam de modo misto entre a arte e a decoração. Oppcnhcimcr produziu,
por exemplo, um gigantesco vMieoc/tp fractal, que figura bem à vista na mais
luxuosa discoteca de Nova Iorque, o Palladium.
(") Sobre o tema. cf. o número monográfico «Video-Vidco», Revue
./'/ x<én<7 Me, 10, 1986. e. em particular. Robert tellczand, //nagas Prá/xáres,
frucía/es.
de Dcmctrio Stratos para acabar com as experiências dc Franco Battia-'
to, on sem mais na vanguarda cuita dos Danicttc Lombardi, Franco
Cardini, Bcppc Chiari, introduziu a dimensão «partida» do ruído na
música. Na origem, naturaimente, encontra-se o futurista Russoio e,
mais recentemente, John Cage.
Mas, dc um modo oxtremamente mais gastronômico, operações
anátogas podem encontrar-se iguatmente nas comunicações dc massa.
As sigtas teievisivas, por exempio, utifizam sempre mais procedimen­
tos dc abstracção da imagem cm movimento, que se aproximam da
transição para o caos. Um cfcito-caos, ou dc aigum modo dc mtcrmi-
tencia acontece com a introdução dc pubücidadc nos programas das
TV privadas, com a consequência dc interromper a emissão e pensa-fa
iá numa dimensão quebrada. E quanto aos fractais, esses sao agora
comummente utifizados nas grandes produções cinematográficas para
o fabrico (paradoxatmente) dc efeitos dc reatidade. Com os fractais,
cfcctivamcntc, c possívef produ/.ir imagens «do mundo», mas se lo-
rem dc natureza irregutar: justamente, costas descontínuas, superfícies
dc pianctas como a Lua, árvores c florestas, constcfaçõcs ccfestcs, sis­
temas dc nuvens. No fifmc Smr 7'rc* /f. por excmpfo, 6 totafmcnte
produzido com o computador c com equações fractais um segmento
dc cinco minutos no quaf se observa o bombardeamento dc um pfancta
morto com um míssi! dc ogivas múftipfas cheias dc um rcvofucionario
produto rcgcncrador c assiste-se ao renascimento do pfancta com siste­
mas dc oceanos e terras emersas, ifhas, florestas, e assim por diante.
Em geraf, todos os fitmes de ficção científica uüfizam a produção
fracta! computadorizada dc imagens, que resuftam muito menos truca-
das do que adoptando grandes cenografias no estúdio. Em suma: a tur­
bulência c a regufaridade governam a produção dc objcctos com fun­
ção estética cm quase todos os níveis dc sofisticação culturaf, desde as
práücas dos meios dc comunicação às mais rarefeitas das gafenas dc
arte ou das safas dc concerto.

5. Recepções descontínuas

Mas existe ainda uma uiterior dimensão fractaf na cuftura, a da re­


cepção. Já várias vezes evoquei o^ p n ccit^ -d e^ oasu m o produtivo»
nas páginas precedentes. Por (g o n su m o produtivo») pefo menos
apoiando-nos nas diversas formubçõcs s o c io lo g ia q u e defe se pro-

742
põem(^), entende-se uma forma deconsum o que não permanece pas­
siva, mas que, no próprio acto dc consumir um objccto cuiturai, pro­
duz uma interpretarão que muda a própria natureza do objccto. Por
exemplo, um consumo particuiarmcnte lúdico dos chamados «fitmes
trampa» (prcccdcntcmcnte vituperados enquanto muito aquém da qua-
iidade dos filmes dc gênero) pode transformar esses fitmes noutro tipo
de espectáculo. Na Itália, este modo «ncobarroco» dc consumir a cui-
tura dc massa conjugou-sc com uma particular política cultural, por
vezes também denominada «efêmero». Muitas manifestações organi­
zadas a partir dc 1975 no nosso país surgiram como recepção não pas­
siva, mas intcrpietativa, ou directamente como recepção estética.
Exemplos análogos, porém, existem também noutros lugares, cm mui­
tos casos de fruição cultural dos espectáculos de massa. O mais típico
é o já muitas vezes citado do í?oc%y /forror RicMre que recru­
desce desde há vários anos nas mais variadas metrópoles (Nova Ior­
que, Londres, Paris, Milão), e no qual o verdadeiro espectáculo não é
0 que se passa no écran, mas o que acontece na sala em relação à pro-
jecção. Os espectadores interrompem, recortam, fragmentam o fluxo
da acção no écran, com sublinhados c repetições, paródias e explici­
tações feitas ao vivo. Um outro caso de fraccionamcnto dc um fluxo
comunicativo, desta vez tanto na fonte como na recepção, teve lugar
numa série dc transmissões radiofônicas a partir da emissora milanesa
Radio Popolare. A rádio, uma primeira vez cm 1984, por ocasião de
1 .os Angeles, c uma segunda — mais clamorosa — na época do Cam­
peonato Mundial dc Futebol no México, mandava para o ar um pro­
grama chamado R w é /w ;. O jogo consistia cm sobrepor-se ao progra­
ma televisivo cm directo pela RAI substituindo as palavras com um
comentário sempre em directo das imagens que apareciam no televi­
sor. ou também das palavras originais. O resultado era que, de um
ponto de vista da produção, o programa imitava o fraccionamcnto de
uma recepção televisiva cm grupo no Rtv,- mas, de um ponto dc vista
de recepção, convidava o próprio público (pressupunha-se que havia
contemporancamcntc um público televisivo) à eliminação das palavras
da RAI cm favor do discurso radiofônico, que, no entanto, tornava
complctamcnte paródica a escuta e dcmencial a imagem televisiva.

f°) Ver, entre outros. Alberto Abruzzese, La grande xrúrwua, Nappoleo-


ii. , Koma, ]979. Com outra linguagem, e não apenas dedicado à recepção, tra-
i i do tema. também, o recente Gillo Dorfes, L/ogio da Dexar/nonra (Milão,
l'Wt), Edições 70, Lisboa, 1988.
Em todo o caso e para além do exemplo há pouco fornecido, a re-
cepção interrompida parece hoje ter-se tornado uma característica
constante dá csEmílc lc v is tv a . parücularmcnte nos países que pos­
suem muitos canais, c muitos canais privados com fortes frequências
de ypotr pubücitários a fraccionar os programas. A elevadíssima pos­
sibilidade de csçolirarde-íacto j c v a o espectador a viver aqudo que se
chama agora(<<síndromc d o b o lã q p O u seja, o espectador já não segue
de modo constante e unitário uma transmissão, mas salta de canal para
canal de uma maneira obsessiva, reconstruindo um genuíno palunp-
sesto individual feito de fragmentos de vária medida das imagens
transmitidas. Deste modo, obtém-se provavelmente uma recepção que
já não segue uma interpretação linear dos textos, porque o texto obtido
c complctamcntc diverso, e funciona por ocasionais, rapidíssimas c
também casuais abordagens de imagens, mais do que de conteúdos
completos. Uma recepção descontínua deste tipo, que se torna uma
colagem de fragmentos, pode igualmcntc transformar-se num com­
portamento estético, que dota o micropalimpscsto obtido com novos
significados e novos valores.
A comunicação intermitente (na fonte, na destinação c na men­
sagem) funda-sc assim cm formas gerais de turbulência, dimensão
fraccionada, vórtice, que destroem a ordem normal da comunicação c
propõem uma nova. Só que esta «ordem nova» da comunicação fun­
ciona, contanto que se realize contcmporancamente, também uma es­
pécie de mutação pcrccptiva. A percepção tradicionaU^estática — j á _
não chega. Tem lugar um crescimento de destreza pcrccptiva e de vc-
locidadcgestáUica. É por isso, talvez, que uma estética do caos e mais
adequada às jovens gerações, fisiologicamcntc dotadas do mecanismo
necessário para a sua realização c compreensão. Mas, com esta ultima
observação, saímos do campo, embora nos seja possível perguntar se
por acaso as mutações de valores estéticos não conterão também algo
de necessariamente gcneracional.
V II

NÓ E LABIRINTO

I. A imagem da complexidade

Existe uma passagem no AiepA, de Borges, em que a personagem


principal, Joscph Cartaphilus, opõe o labirinto ao caos. Aquele surge-
-Ihe dotado de sentido, mas a Cidade dos Imortais, com a sua inextri-
cávcl mistura de tráfego, está dele privada('). Borges ó um cultor de
iabirintos, devemos prestar-lhe fó. Mas neste caso enganava-se: o labi­
rinto é apenas uma das muitas figuras do caos, entendido como com­
plexidade, cuja ordem existe, mas 6 complicada ou oculta.
Poderemos antes dizer que o labirinto 6 uma típica representação
figurativa de uma ccwipiaxi&t& mieíigenie. Todas as lendas, mitos,
usos, jogos fundados na figura do labirinto se apresentam, de facto,
com duas características intelectuais: o prazer da obnubilação perante
a sua inextricabilidadc (acompanhado do medo eventual), e o gosto de
a vencer com as astúcias da razão. Picrre Roscnstichi, um dos mais fa­
mosos labirintólogos do mundo, observou, aliás, que a língua inglesa
possui um vestígio evidente do aspecto de «agudeza» intrínseco à fi­
gura do labirintoQ. O seu sinônimo mais imediato 6, de facto, maze,

(') Jorge Luís Borges, E/ /tiepA. Editoria] Losada, Buenos Aires, 1952.
P) Pierre Rosenstiehl, «Labirinto» in Enciclopédia, Einaudi, Turim,
!979, volume 8. Cf. também JcarI Walker, «Expérienccs d'Amateur», 5cicn-
-c.v. t!2 , 1987.

743
isto é, «maravilha». A mesma coisa acontece com outros tipos de con­
figuração aparentáveis ao labirinto, por exemplo, o nó, o meandro, a
trança. Também aqui deparamos com o mesmo princípio da perda de
uma visão globaf de um percurso raciona), e de contemporâneo exercí­
cio de uma inteligência aguda para encontrar a «resolução» final, isto
é, a descoberta de uma ordem.
«Agudc/.a», «astúcia», «maravilha», «entrançamento»: a simples
recorrência destes termos é suficiente para indicar que as figuras do nó
e do labirinto são figuras profundamente barrocas. Não são precisas
muitas provas. Bastará trazer á mente algumas obras do barroco his­
tórico fundadas precisamente nessas palavras-chave. Um dos textos
mais fascinantes da cultura barroca — não é por acaso que hoje voltou
clamorosamente à ribalta — chama-se Agudeza y arte <7e? iagenío.
obra do jesuíta catalão Baltliasar Grazian. Na maravilha se inspirava o
maior poeta barroco italiano, Giambattista Marino, enquanto quase
todos os filósofos do século XVII, até Vico, cantam a virtude do en­
genho.
Mas é a própria sorte das figuras do nó e do labirinto que nos per­
mite sair do âmbito do barroco histórico e interpretá-las como mani­
festações de um barroco mais universal c meta-histórico. Se se pegar
cm alguns dos mais monumentais estudos sobre labirintos, como os de
Paolo Santarcangeli e Hermann Kcrn(^), notar-se-á cfcctivamcnte que
a sua representação se desenvolve historicamente segundo picos de
frequência cm que as alturas máximas correspondem a momentos
«barrocos» da história: Antiguidade Pré-Clássica, Cultura Latina Tar­
dia, Período Alexandrino, Última Idade Média, Mancirismo c Barro­
co, até chegarmos a certos momentos barrocos do século XX. Por ou­
tras palavras: onde quer que ressurja o espírito da perda de si, da argú­
cia, da agudeza, aí reencontramos pontualmcntc labirintos. E também
nós, se pelo menos prestarmos fé ao longo ensaio de Suzannc Allcn
sobre o tema, que faz reaparecer os seus motivos (estreitamente arti­
culados com uma metáfora sexual) nos mais diversos momentos da
história e da geografia da cultura(*).

(3) Paolo Santarcangeli, /i Li6r<? dai La&iffrui, Frassinelli, Milão. 1984; e


Hermann Kcrn, LaFirinti, Fcltrinclli, Milão, 1981.
(") Suzanne Allcn, «Pctit traité du Nocud», in Jcan-Maric Bcnoist, Figu­
ras du Barac, Prcsscs Universitaires de France, Paris, 1983 (são as actas do
colóquio de Cerisy de 1976). Cf. também Picrrc Roscnstiehl, «I Nodi Immatc-
riali», Mataria/; Fi/oso/ici, 1, 1983.

746
Dizcr quc os nós e iabirintos são figuras da cotnp!cxidade não 6
ainda suhcicntc. E preciso tambcm especificar de gac compiexidade
sSo eies representação. Existem, de facto. tipos de compiexidade cuia
natureza c muno d.fcrcntc da dos nós e iabirintos. As formas caóticas
da natureza não são necessariamente iabirintos, por exempio. O caos
tio mdcfmido não toma forçosamente a figura de um nó. A mudança
sistermea no interior de uma ordem que, em vez de caminhar para a
cquiprobabiiidadc, se transforma numa ordem diversa, não toma a
estrutura das nossas figuras minóicas. Ora, se pcnsarmosbeHh-nó&-e
labirintos são antes representações de uma co m p icx id (n iclim A ^ i^
t or um iado (a perda de orientação iniciai), negam o valBr de uma
ordem giobai, de uma topografia gerai. Mas, por outro, constituem
um desafio cm encontrar ainda uma ordem, c não induzem à dúvida
sobre a existência da própria ordem. Observemos, pois, mcihor a na­
tureza do desafio. Ela parte de um prazer (pcrdcr-sc)O c termina
num prazer (rccncontrar-sc), consistindo ambos no princípio da subs-
otuição de ordem: anuiação na primeira fase, reconstrução na segun­
da. Mas a anuiação consiste na anuiação da giobaiidadc: não se tem
o controio sobre o sistema topográfico, não se possuem mapas para
se chegar ao centro do iabirinto, não se reconhecem os percursos
como diversos, ou os fios para desenredar primeiro ou depois um cm
rclaçao ao outro. Arcconstrução procede de resto por inferências
locais. Bate-se o iabirinto ou desfaz-se o nó unicamente deduzindo
certos movimentos cm cada cruzamento ou entrançado. Em suma,
estamos perante um tipo de probiemas muito especiais que Rosen-
stiehi chamou «probiemas de rede resoiviveis com miopia» Trata-se
<la iuiopta de um cáicuio que funciona só face a face c sem recurso à
memória (giobaiidadc do sistema). Ser «míope» não significa, pois,
\er menos»: quer dizer ver de modo diverso, «saber não ver». Eis
a lundamentai ambiguidade surgindo: continuar-sc-á sempre a recorrer
i< alguma ideia de giobaiidadc, mas a soiução do probiema singuiar
c\tgc que eia se ponha entre parênteses, ou a anuiar a sua formuiação
egutntc, como único meio de passar à «miopia» da iocaiidadc. Por
""uns palavras, encontramo-nos novamente perante uma situação de
m tabilidadc. O que é confirmado por um caracter do nó e do iabi-
o de ser unia /m-ní/b/m 'w w m w o . Sc aceitarmos, de facto
exemplos de Hermann Kern, que são todos iabirintos im/cazjd-

. ^ ***" o -°*
747
ve^C), isto é, sem cruzamentos e, portanto, sem possibilidade de erro,
veremos que ao sentido de enigma associado aos labirintos de tradição
modcma se substitui justamente a concepção de movimento rítmico,
em vez de um movimento direito. E se pegarmos em algum nó entre
os mais simples, veremos que o verdadeiro problema não é desfazê-lo,
mas distinguir por meio de que movimento um único fio parece tor­
nar-se dois. Mais uma vez nos encontramos perante uma oposição en­
tre a estabilidade e o seu contrário, a transformação.

2. Nós e labirintos como figuras

A grande rcssurgência do prazer dos nós e dos labirintos é teste­


munhada por uma serie de textos da mais variada natureza (literária,
mnasso-mcdiológica, artística e até musical), que se condensaram no
último decênio, e também do renascimento paralelo dos estudos sobre
o tema (históricos ou teóricos). Citaremos agora alguns exemplos en­
tre os mais conhecidos, recordando que se trata apenas dos casos mais
clamorosos, e sublinhando como neles o nó ou o labirinto são substan-
cialmentc worivoí /i'gHra;;'v<M.
Mais uma vez, para a demonstração do seu caráctcr intrinsecamcn-
te «neobarroco», vem em nossa ajuda O M?/ne Rosa, de Umbcrto
Eco. Como se recordará, Guilherme e Adso, na visita à Biblioteca da
Abadia, introduzem-se num labirinto de que saem graças à costumada
habilidade intelectual do protagonista. O labirinto de Eco é uma fi­
gura, mas também uma estrutura. Trata-se, cfcctivamcntc, de um ver­
dadeiro labirinto, do qual se sai mediante a famosa regra do «virar
sempre á direita cm todo o cruzamento» (regra, aliás, errada ou ingê­
nua). Mas o labirinto é cvidcntcmcnte também metáfora da cultura,
visto que se encontra na biblioteca e serve de chave enciclopédica para
a sua organização. Além disso, o labirinto de Eco é citação do labirin­
to medieval, como se depreende dc um ensaio publicado após a redac­
ção do romance. Curiosamente, o homônimo filme que Jean-Jacques
Annaud dele tirou prefere uma forma labiríntica mais recente, a dos
cárceres dc Pirancsi, e também a dc certos desenhos dc labirintos de
Eschcr. Digo «curiosamente» porque estes últimos são justamente la­
birintos não monoplanarcs nos quais não tem vigência a regra do virar
sempre à direita.

(') Kem, op. cá., p. 9.

V4S
Outros dois labirintos em figura aparecem em dois famosos filmes
contemporâneos. O primeiro c cm 5/u'nÍMg, de Stanley Kubrick, justa-
mente no final, quando o protagonista, Jack Torrance, persegue o filho
para o matar, e este se refugia nos meandros formados por altos arbus­
tos fora do albergue isolado pela neve, de que Jack é o guarda. Ambas
as personagens possuem a «vidcncia», isto é, a possibilidade de ver o
passado, o presente e o futuro. Mas Jack vê apenas um futuro imedia­
to, o filho dccifra-o a mais longa distância. Assim, no labirinto, Jack
nâo será capax dc exercitar a miopia teórica c permanecerá embaraça­
do, ao passo que o filho, dotado de saber local, se salvaráf). Em ter­
mos de labirinto vem, em seguida, uma produção de George Lucas,
rodada por Jim Henson, inventor dos Muppcts, e explicitamente cha­
mada Laóyróu/:. Alice no País das Maravilhas surge aqui transposta
para um mundo mais moderno, e a sua viagem é interpretada como
um vaguear entre corredores e cruzamentos ató chegar a uma saída fi­
nal. Um percurso-jogo, em suma, no qual em cada encruzilhada se en­
contram subitamente numerosos obstáculos e aventuras a vencer. O la­
birinto brinquedo tornou-se moderno, tornou-se o análogo de todos os
video-jogos existentes no mercado, cuja estrutura é precisamente
constituída por uma viagem no interior dos becos (mesmo sem saída)
dc um labirinto, por vezes apresentado como tal, e por vezes construí­
do à medida que a viagem prossegue, como no famoso Dígger, no
qual uma toupeira é perseguida por proteiformes monstrosinhos, e os
corredores escavados traçam o labirinto minóico clássico. O mais fa­
moso desses labirintos electrónicos é Tron, nascido ao mesmo tempo
que o filme homônimo, no qual se narram os feitos sucessivos de um
herói que se libertará de um labirinto não só encontrando as saídas jus­
tas, mas superando empreendimentos heróicos e individualizando os
próprios movimentos com uma velocidade sempre crescente. Os re­
quisitos do labirinto (perder-se, ausência de mapa, miopia teórica, mo­
vimento) são todos respeitados.
Os mesmos vídeo-jogos apresentam muitas vezes a figura do nó.
Como se sabe, os jogos electrónicos são construídos por uma série fi­
nita de quadros. O jogador entra num quadro posterior depois de ter
esgotado as possibilidades do quadro precedente. Aparentemente, o
percurso move-se até ao infinito. Na realidade, os diversos quadros
estão ligados entre si, e haverá sempre um final que se religa ao pri-

f) Ver sobre o tema o meu «!1 Linguaggio dei Cinema*. Prome/eo, 16,
)<J86.

749
mciro. A viagem que parece mover-se ao tongo de segmentos diferen­
tes, ou numa só tinha, vai de um ponto de partida a um de chegada, 6
na reatidade circutar e cada quadro representa um nó no descnvolvi-
mento.
Também nas representações artísticas assistimos hoje ao retorno
das figuras dos nós e dos tabirintos. Por alguma coisa foi que, atem da
exposição várias vezes citada de Hcrmann Kem sobre unicursávcis
clássicos, Milão organizou cm 1981 também uma exposição de Arte
Contemporânea, preparada por Achille Bonito Oliva, onde se desen­
volvia a história da interpretação das nossas figuras, por parte dos
maiores artistas do nosso séculof"). Assim, eis nomes conhecidíssimos
como os de Jackson Pollock, de Giulio Paolini, de Giacomo Baila, de
Giorgio De Chirico, de Pict Mondrian, e de outros até aos nossos dias.
Mas o mesmo Kem, num artigo intitulado «Labyrinths: Tradition and
Contcmporary Works», assinala a quantidade de motivos análogos
presentes na produção mais rcccntcf). São aqui sufictcntes os nomes
de Adrian Fischcr, autor de um projecto para um labirinto na Catedral
de Saint Alban cm 1979, ou Randall Coatc que, como o precedente,
constrói também industrialmcnte labirintos como jogos-presente, c
que é autor de um labirinto para jardim cm Varmlands Sáby, na Sué­
cia, ou Richard Flcischcr, ou John WiHcnbcchcr. Entre os Italianos, ci­
tarei apenas de memória: as figuras labirínticas de Enrico Pulsari e de
Antonio Passa, os nós de Marco Tirclli, nós c labirintos de Maria Gra-
zia Braccati. Até mesmo na música podemos encontrar «nós», como o
que foi inventada pelo compositor D'Anglcbcrt na época de Luís
X1V('°). Por exemplo, nas circunvoluçõcs de um Branduardi no que
respeita à música ligeira, ou nas nodosidades das partituras de Luciano
Bcrio, sobretudo na famosa peça StrípjoJy, escrito para Katy Bcrbc-
rian com a combinação entrelaçada de elementos musicais, ruídos c
efeitos figurativos tirados das bandas desenhadas.
Entre a banda desenhada, a ilustração c a arte se coloca, cm segui­
da, a obra do mais «nodoso» e labiríntico dos autores modemos, Saul
Stèinbcrg. Roland Barthcs, ao introduzir um catálogo seu, referta-se
justamente ao labirinto como matriz essencial da obra do artista amen-

(!) Achille Bonito Oliva. Si/enzto /wparzia/e. Fcltrinelli, M i­


lão, 1981. ... .
(9) Hcrmann Kem. «Labyrinths: Tradition and Contcmporary Works»,
Artc/brK/n, 1981.
('") /bit!., p. 251.

750
cano("). Mas aqui intcrvcm um uiterior cicmento figurativo que se so­
brepõe ao motivo que estamos a examinar. Trata-se do uso da carta
geográfica imaginária: uma vez que, pcia imaginação, se destruíram as
coordenadas «realistas», a carta imaginária torna-se efectivamente um
labirinto. E então, ao lado de Stcinberg, eis que podemos colocar a
obra de Alcchinsky, os nós cartográficos de Christian Tobas, os mapas
ideológicos de Oyvind Fahlstrõm, as cartas riscadas de Emílio
Isgrò('3).

3. Nós e labirintos como estruturas

Até aqui observámos a recorrência do nó e do labirinto, enquanto


directamentc representado por certos autores. Mas o motivo não se es­
gota aqui. Ao lado da figura de superfície, podemos efectivamente
colocar também a figura estrutural. Tomamos três exemplos, um cn-
saístico, outro «criativo» e outro ainda mass-mediológico. O primeiro
é constituído pela organização da enciclopédia Não se tra­
ta certamente de uma novidade (a mesma casa editora de Turim reali­
zou um seminário cm Modcna com o título O Saber como 7?e& de
M ode/oí, cm seguida tornado livre, onde se explicitavam os princípios
que estamos a enunciar)('").A enciclopédia foi pensada não como lista
de entradas finita, nem como bloco fechado de temas, mas como geo­
grafia de ndí temáticos, cada um deles representado por uma conden­
sação de temas entrelaçados entre si, e colocávcis no sistema global de
um modo ccntrípcto. Cada entrada, portanto, refere-se a um nó, e a
passagem entre os termos constitui um labirinto. Nó e labirinto tor­
nam-se assim a imagem estrutural do próprio saber: um saber aberto

(") Roland Barthcs e Saul Steinberg, Ad Excepí fo u . Repcre Editions


d'Art, Paris, 1983.
('i) Omar Calabrcse, Picrluigi Cerri, Renato GiovanoHi e Isabclla Petzini,
//ic .SuMí /eones, Electa, Milão, 1983.
(O) o facto é até explícito, pelo menos atendendo à estrutura das entradas
do volume 16, Séuema, que se fez para mostrar os «percursos» temáticos no
interior da obra; mas a mesma casa editora organizou um seminário recolhido
depois em volume, para discutir precisamente «a forma» cm rede da obra: O
saber coma rede de mode/os, cit.
(") Em particular, podem pôr-se em relação com o convênio as entradas:
Fernando Gil, «Sistemática», vol. 12, 1981; Fernando Gil e Jean Pctitot, «Um/
Muitos», vol. 14, 1982; Giulio Giorellio, «Modelo», vol. 9, 1980; Picrrc Ro-
scnstichl, «Rede», vol. 11. 1980.

73/
interdiscipiinar, em movimento, sempre sujeito ao risco da perda de
orientação.
O segundo exempto c um romance, Du/ut/i, de Gore VidaL A dei­
xa de base já a expusemos no capúuto precedente (Duluth é a imagem
da América traduzida em forma de uma única cidade, e em Duiuth
convivem todas as personagens das histórias transmitidas peios tcle-
filmcs dos Estados Unidos). Importa aqui assinalar que Vidal não
apresenta uma sucessão linear. As suas personagens conservam o seu
caracter, mas mudando o nome e a situação narrativa. Pode assim su­
ceder que o mesmo actor se encontre projectado cm tramas diversas,
se, por acaso, a sucessão chegou a um ponto nodal qualquer, no qual
muitas histórias se ramificam e se entrecruzam: simplesmente, em vez
de percorrer um caminho iinear, o actor em questão ingressou num
corredor de outra natureza ou dimensão. O labirinto c, por conseguin­
te, a forma da obra e o nó é o seu instrumento que se substitui aos cru­
zamentos monopianares. Em seu redor, porém, o nó acaba por subs­
tituir-se à forma labiríntica gerai, porque um traço fundamentai de
Duiuth é que não existem nem entradas nem saídas para a trama. O
icitor-viajante cncontrar-se-á perante a idéia de um infinito potcnciai
da narraçâo('^).

('3) Refiro integraimente uma passagem de Vidai em que é muito eviden­


te a consciência deste princípio por parte do autor, que parece ter iido Eco e as
suas teorias da narratividade: «De modo semeihante a numerosas icis absolu­
tas, a ici romanesca da absoiuta unicidade é relativa. Se bem que cada perso­
nagem em qualquer romance — como também a vida — seja absolutamente
única (embora nesse caso não se consiga distinguir uma personagem da outra),
a verdade cfectiva é a este respeito bastante mais complexa. Quando uma per­
sonagem de fantasia morre ou desaparece de um romance, reaparecerá pronta­
mente numa outra narração, pois as personagens — c as tramas — disponíveis
são apenas aquelas e não mais, em qualquer momento. Da lei relativa roma­
nesca da absoluta unicidade deriva, à maneira de corolário, o e/eúo da si/md-
lanctdade, que está para a narrativa como a lei de Miriam Hcisenbcrg está para
a física. Quer isto dizer que qualquer personagem pode aparecer, simultanea­
mente, em tantas histórias de fantasia quantas o caso considerar oportunas.
Este corolário c inquietante c não devemos votar-lhe uma reflexão excessiva,
limitando-nos a notar de passagem que cada leitor, como cada escritor, se en­
contra, a partir de ângulos diversos e em tempos diversos, num certo número
de narrações, em que ele é sempre o mesmo e, no entanto, sempre diverso.
Chama-se a isto <%vás-pós-estruturalismo. Os numerosos estudos actualmente
em curso sobre o ç/eúo da swtMdaMcidade demonstram, claramente — como
se tivesse lugar uma demonstração! — que, por mais que a língua inglesa pos­
sa declinar e corromper-se, os estudos sobre o inglês são mais do que nunca

732
Semelhante mecanismo ocorre muitas vezes nas séries de tcicfiime
modeio Da/ias (mas é também óbvio porque o tcicfiime contém a re­
ferência cxpiícita de Vida!). Também em DaMzr. de facto, nos encon­
tramos perante cntrccruzamcntos diversos de episódio cm episódio
que são, porém, «desempenhados» pcias mesmas personagens. Encon­
tramos nesse tcicfiime três séries de protagonistas: uma geração de
«anciões», sempre repetida; uma geração secundária, repetida por sai-
tos; e uma geração de «terceiros» que imperam excepcionaimente na
série (por «geração» não entendo árvores gcncaiógicas, mas jerarquias
de papéis). O espectador que se encontra a icr a série comporta-se
cxactamcnte como no labirinto. Cada episódio é efectivamente uma
sccção do edifício compieto, que é icgívcl e compreensível por si só,
tuas também em reiação ao conjunto c a um potência! aivo final, mes­
mo se este jamais chega. Muito simpiesmente, neste segundo caso,
tratar-se-á de ver como a sucessão imediata faz parte de um dos três
grandes percursos do tciefiimc, o econômico, os acontecimentos da fa-
míiia Ewing, o sentimentai (os amores de J. R. e de outros protagonis­
tas), o sanitário (saúde das personagens). A imensa duração da série,
no entanto, impede, exccpto em casos de visão excepcionaimente fiei
c nmcmónica, reconstruir de cada vez em que pronto exacto do labi-
nnto nos encontramos, ou seja, reconstruir o inteiro mapa do edifício,
for conseguinte, para a compreensão não só do episódio, mas também
tia fase da série cm que nos encontramos, importa ievar a cabo um

complexos e remuneradores. A lei da absoluta unicidade exige — excepto nos


<;cos em que não o exige — a perda totai da memória por parte da persona­
gem que morreu no romance ou num conto, ou que aí teve um desaparecimen­
to fugaz. Naturaimente, quando a redacção do livro chega ao fim, todas as per­
sonagens juntas vivas no epílogo estão à disposição de outros escritores, para
"utrarem em cenas algures, por assim dizer. Às vezes, chama-se a isto plágio,
inc. é um termo demasiado severo, se nos lembrarmos de quão poucas são as
l <amagens c as tramas, na praça. No fim de contas, o plágio é simplesmente,
t' na talar como Rosemary Klein Kantor, criação com oaíros meios. As perso-
'"gens que povoam um dado livro — se bem que abandonadas pelos autores
"l«')s a palavra/m is — continuarão ainda a andar de página em página para
quer que se dc-ao.iraba]ho de ler o livro. Esta é a prova — ou uma prova
.!o .-feito de simultancidade. Uma vez terminada pelo autor a presente ver-
í <!- u i /irtioM (ou fictícia verdade) f..] Ias personagens] passarão a novas
.mm ."es, desconhecidas entre si e também ao autor. Esquccc lo-ão e ele (o au
não as reconhecerá, excepto no caso de plágio evidente, quando os advo-
t 'dos submeterem o texto a um exame mais minucioso do que o dos meti-
<utosos críticos de Yale.» Gore Vidal. Da/Mlá, cit., pp. 22-23.
exercício de «miopia», e coniiar nos singulares sabcrcs locais forneci­
dos peto iabirinto. A exposição tende, de resto, a confirmar tudo isto:
nenhuma das personagens principais age como se fosse provida de
memória, ou como se aprendesse aigo com a experiência passada.
Tambóm cias parecem mover-se de um modo «miope». Além disso,
ainda em Da/ías, cada episódio congrega a figura do iabirinto e a do
nó. Cada dcseniacc. cfcctivamcntc, é funcionai quer em relação à saí­
da da história imediata, quer quanto à prossccuçâo num outro nívei,
mediante a nodosidade dos acontecimentos, numa ideia, anáioga aD a-
ha/:. como se viu, de infinito potcnciai da narração.
É o paradoxo do iabirinto c do nó contemporâneo, o mais «bar­
roco» que existe justamente cm virtude da sua indccidibiiidade cons­
truída. Um exempio ainda mais indicativo deste fenômeno é o que
encontramos numa narração de Robcrt Schcckicy, o mais científico
de todos os autores modernos de ficção científica. Em O imperador
doí Úítímoy D iaj(^) conta-se a história de um desafio entre um im­
perador e um candidato tirado à sorte para o matar, c que depois de
o matar irá ocupar o seu iugar. O imperador dcfcnde-sc no seu paiá-
ciocom numerosos estratagemas. O principai consiste cm coniigurar
o edifício como um gigantesco iabirinto de apartamentos e corredores
em cujo centro se encontra a residência do detentor do poder. Mas
porque cada iabirinto pode ser percorrido a partir de fora, o imperador
compiica-o: encarrega uma equipa de operários de derrubarem e rci-
dificarcm quotidianamente as paredes interiores. Por sua vez, de cada
nova topografia, uma equipa de cartógrafos desenha o mapa todos os
dias. Mas, evidentemente, o mapa resultará sempre /u/so, e induzirá
em engano o eventuai detentor. O iabirinto, assim, não só deve ser
percorrido sem memória, sem mapa e com teoria míope, mas só pode
resoiver-se caminhando mais veiozmcnte do que as remodeiações dos
operários e anuiando sem mais a única regra gerai dos iabirintos:
«nunca percorrer duas vezes um mesmo corredor no mesmo sentido».
Por outras paiavras, só o teorema que Roscnstichi chamou «Ariadne
iouca» continua a vaier. Teorema que consiste cm caminhar o mais
veiozmcnte possível para a descoberta, entrando sempre num corredor
novo cm cada cruzamento. O teorema compicmcntar, «Ariadne sá-

('6) o volume foi pubticado várias vezes na série «Urania» da Mondadori


e na série «Capolavori di Urania», do mesmo editor.
bia», não pode cfcctivamente funcionar: nunca haverá cruzamentos já
descobertos em que seja preferível enredar de novo o fio para o com­
primento de um corredor('*').

4. O prazer da ofuscação e do enigma

O apólogo de Schecktey parece ciaríssimo. O mais modemo e «es­


tético» dos tabirintos e dos nós não c aquele cm que prcvaiccc o pra­
zer da solução, mas aqueie cm que domina o gosto da ofuscação e o
mistério do enigma. Um pouco como queria Borges: «A solução do
mistério é sempre inferior ao próprio mistério. O mistério é o que tem
a ver dircctamcnte com o divino; a soiução, com um truque de pres-
tidigítador.»('S) Por outras paiavras, o que mais do que qualquer ou­
tra coisa preside ao nó e ao labirinto moderno é o claro prazer do per­
der-se c do vagabundear, renunciando, se possível, ao último princípio
de conexão que é a chave de solução do cnigma(^). Houve quem, nos
últimos dez anos, teorizasse esta atitude. Acima de todos, Gillcs Dc-
leuze e Félix Guattari, que chamaram ao seu modelo de estrutura rtzo-
tttrt, como o paradoxo de natureza de uma raiz com fuste, que não se­
gue uma lógica de conexão com a árvore, mas em que cada segmento
se pode ligar a outro segmento e em que todo o percurso é livre e pos­
sível. Os famosos seis princípios rizomáticos são sugestivos: a concc-
tabilidade múltipla de cada ponto, a hctcrogcncidadc das componentes
do sistema, a multiplicidade sem unidade geradora, a rotura assignifi-
cante, a cartograficidade e a dccalcom aniaf).
Daí se tira um modelo não casual, irracional-natural, do fenômeno,
mas um modelo «nômada» ou «vagabundo», cujo motor é o desejo, ou
a assistcmaticidade conatrttLbt. Princípio de prazer, princípio estético.
Não é, então, mero acaso que à La Créunan Vaga&wíc se tenha dedi­
cado um heterogêneo grupo de pensadores (cientistas, como René

('D Cf. Picrre RoscnsticM, Labirinto, cit., e «Labirinti», in Paolo Fabbri e


l.ib clla Pcxxini (compilação de), Mitoiogie di Loianri Bartbc.T, Pratichc, Par-
ma, 1986.
CD Jorge Luis Borges. Li /licpb, cit., p. 86.
('D Cf. ainda, acerca da relação labirinto-enigma, Roscnstichl, op. cit., e
Kcm, op. cit.
C°) Gilles Deleuze e Félix Guattari, Lbizôtwc. Minuit, Paris, 1976; mas
também Gilles Deleuze e Félix Guattari (comp. de), ct Vagaborai.s*,
fhristian Bourgois, Paris, 1976.
Thom críticos, como Rcné Huyghc. artistas como Poi Bury c muitos
outros')f) à pesquisa do nomadismo co-neccssano a enaçao tanto
d o n S L oomo I s i i o a . O p .m cíp i. o s ií.io . da ^ * * * " *
não é a investigação do irracional, como cm tantas estéticas idealistas,
mas a ou a de toda a solução de um sis-
tema 36 nós ou labiríntico, tfuc não constitui um horizonte fmal exis­
tente mas que c adiado ou posto entre parênteses. Do principio de ra-
a l i S S c rof,.,.-so c insimmom.. a momo o .m . a chama
Grccory Batcson(^), mas o reordenamento do sistema (o truque do
nrcJtidigitador de Borges) permanece indeciso. Resta apenas a ofusca-
eão e o S i o , tanto mais aprazível quanto a conclusão existe em a -
L m a parte Não existe, aliás, enigma mais divertido do que aquele
acerca do qual se supõe uma solução, mas cuja solução jamais aconm-
cc Os «prLtidigitadores» Édipo, Tcscu e Perseu não são demasiado
simpáticas á mente ncobarroca. Agrada cm excesso o risco intelectual

^ A t ê ^ m % i m o s como o mesmo gosto preside ao desenvolvimen­


to nucr dts teorias científicas dos nós e dos labirintos (c bom insistir
no Permo «desenvolvimento,, porque também
fractais a descoberta é antiga: remonta oficialmentc a 1926) quer a
elaboração de «m otivos, c «estruturas, da própria forma interna No
entanto é bom concluir este capítulo, precisando que o caracter ultimo
das nossas figuras (o prazer da ofuscação c do enigma) reside também
cm práticas que, aparentemente, são as mais ordenadas e sistón.cas
auc^e possam imaginar. Refiro-me a um âmbito que, no curso do vo-
himc fm tratado de um modo bastante esporádico e casual: a difusão
^ eompumdores pessoais. Pensemos por um momento que coisa se-
^ p ^ e o utente e . programador, um calculad.r e l e c ^ co^E
efcctivamcntc um «ordenador, (como o chamam os franceses), mas
visi.ois. ^ a « h d . «<= os P-ópn°s
Princípios binários elementares. A introdução dos dados tem, de facto,
fuea, .le um m c.u roeulado. sim. mas «hs
<to materiais numa espccie de «buraco negro,. Toda a operação oc
manipulação e reencontro dos dados acontece como percorrendo
mcamlros de um labirinto o fios de um novelo ^ m poMinr c mapa

f) Jacques-Louis Bin.1 (cm p. de). La Créali.a Hermann.

S e g o r y Batcs.n, «A Theory o f Play and Phantasy., fsychim ric /?c-


íMrc/i Pepori, 2.1955.
gíoóa/ dos percMrwy, mas só as instruções para os movimentos. Tenho
a impressão de que até mesmo esta espécie de «voo cego» (cm que um
bana! erro de tecia pode constituir um «fatai error», ou em que uma
simpies interrupção de corrente pode fazer desaparecer meses de tra-
baiho) produz uma espécie de inebriamento que se evade à natureza da
«máquina estúpida», como se chamou ao caicuiador. De resto, circuia
agora uma iiteratura ancdótica ampia sobre incidentes intciectuais de
computadores. Justamente como na mitoiogia clássica do iabirinto e
do nó(^).
Um outro eiemento «estetizante» pode consistir no facto de que a
«máquina estúpida» consegue reaiizar operações de aparente altíssima
complexidade, a partir de princípios absolutamente elementares. Tal
como na matemática dos nós onde, dado um fio e um suporte, a com­
plicação dos nós construídos é enorme. Imaginar para si se os fios
se tomam dois, três ou mais ainda. Em suma, como diz Rosenstiehl,
o cômico é que os elementos em número pequeno e controlado, e com
regras combinatórias limitadas, podem chegar a produzir o caos
social. Por outro lado, um facto semelhante (de todo implícito e in­
consciente) foi simulado para produzir um acaso literário c um efeito
estético explícito. Em 1985, no decurso de um Verão cultural em Avi-
gnon, um grupo de editores franceses pôs à prova sete escritores fran-
cófonos residentes cm várias partes do mundo para ver se, mediante o
uso do caicuiador instalado numa rede c por meio de uma série de re­
gras de jogo, eles conseguiam produzir um romance «aleatório». A
coisa funcionava assim. Cada escritor dispunha de uma descrição de
começo, e podia inserir no computador o primeiro capítulo da sua
obra. Depois, lendo os capítulos de outrem, devia continuar um só à
sua escolha. Podiam manter-se sete continuações, ou também as pri­
meiras sete rcduzir-sc a duas (nenhum podia continuar a própria narra­
tiva) e rctransformar-sc em sete. E tudo isto enquanto um autor não
conseguia produzir um final aceitável. A competição complicava-se
cm virtude de os três autores ulteriores funcionarem como ex-
mac/tina, isto, é, podiam fazer sair cm qualquer momento da história
descrições conexas, que cada autor devia inserir a seu bel-prazer no
romance (do tipo: hoje, deve chover ás cinco). O livro completo cha­
mou-se depois Marco fo /o , como se fosse uma viagem dentro da es­
crita.

(") Pierrc Rosenstiehl, / M xá ///vrta/eria/i, cit.

757
Tratou-se de uma experiência que, sem dúvida, não vai muito atem
da mais tradicional literatura ,oulipo de há trinta anos. Mas é uma ex­
periência que demonstra a estética potencial que reside no uso às ce­
gas da máquina ordenadora. Mesmo na operaçáo mais elementar, de
facto, o resultado não está à vista, a não ser localmcntc. E só uma
pressão final («print») garantirá o resultado. Por outras palavras: o que
muda com o computador não é só a maior velocidade operativa, nem a
capacidade de arquivação dos dados, nem um produto (por exemplo,
de escrita) tecnicamente perfeito. Estes resultados darão, quando mui­
to, a satisfação de ter exercido bem a racionalidade. Mas prÚMWo?
Primeiro, existe o diferente prazer do trabalho sem controlo do apare­
lho; da imersão cm pequenas interrupções, zonas, áreas c sem visão
panóptica das partes da própria inteligência criativa. É por isso talvez
que, como sublinhava Eco num artigo de jomal, com o computador
muda o nosso modo de usar c pensar a linguagem c as suas aplicações,
os textos. Ao periodar conexo c paratáctico substitui-se um pensamen­
to «em pequenos pedaços», hipotáctico, e no qual as ligações se tor­
nam lógicas a pcMfenori, c não lógicas gramatical e sintacticamentc. E
este o único modo de se assegurar contra a potencial «queda livre»
que acontece ao entrar, um pouco como Alice, no calculador.
VIII

COMPLEXIDADE E DISSIPAÇÃO

!. Estruturas dissipativas: da ciência à cultura

Na introdução à obra A Mova A/ía/iça, Hya Prigoginc c Isabelle


Stcnghers ilustram dc modo claríssimo uma (mas talvez a principal)
tias grandes mutações da ciência contemporânea. Enquanto de Ncwton
a Boltxmann a ciência andou â procura de princípios universais e eter­
nos que regem o funcionamento da natureza, hoje o panorama está a
mudar dc um modo revolucionário. O universo já não se explica em
termos dc leis gerais c imutáveis. «[...] Só leis eternas pareciam ex­
pressar a racionalidade da ciência. A temporalidade era desprezada
como uma ilusão. Isto já não c hoje verdadeiro. Descobrimos que, lon­
ge dc ser uma ilusão, a irreversibilidade desempenha um papel essen­
cial na natureza e está na origem dc muitos processos espontâneos
[ ...]. Hoje, dcscobrimo-nos num mundo cheio de riscos, um mundo cm
que a reversibilidade c o determinismo se aplicam apenas a simples e
hmitados casos, ao passo que a irreversibilidade e a determinação são
a rcgra.»(')
Por outras palavras: enquanto o projecto de discussão c explicação
da natureza conto concatcnação dc «comportamentos» gerados por um
pequeno número de regras repetidas fracassou, faz o seu aparecimento
a ideia de um universo fragmentado, composto de comportamentos )o-

(') Hya Prigoginc c Isabclic Stenghcrs, La Moave/íe AMaace, Gallimard,


Paris, 1979 (trad. port. A Mova A/rança, Gradiva, Lisboa. 1987), p. 10.

739
cais diferentes pcia qualidade. O princípio geral mais resistente a mor­
rer, e justamente por isso tombado com maior fragor, d o segundo
princípio da termodinâmica. Como se sabe, ele consiste na ideia da
conservação da energia de um sistema dado, c de transformação da
própria energia num estado de total equilíbrio no interior do sistema,
estado que se denomina «entropia». No conceito de entropia reside
nâo só o aspecto de equilíbrio, mas tambdm o de evolução final de
qualquer sistema termodinâmico (o inventor do termo, Clausius, e o
seu aperfeiçoador, Boltzmann, pensavam na raiz grega enlropd, que
significa justamente «cvolu ção)0. O processo de entropia realiza-se
dentro de qualquer microssistcma, mas foi também teorizado como
orientação gera! de todo o universo, que tenderia, portanto, para a in-
difcrcnciação final, do ponto de vista da distribuição de energia.
Ora bem, as descobertas de Prigoginc e de outros investigadores
dizem justamente respeito a este ponto. Em sistemas ainda alastados
do equilíbrio, não c necessariamente verdadeiro que tenha lugar uma
evolução para o máximo de entropia. Longe do equilíbrio, um sistema
pode transformar-se encontrando uma ordem diversa da de partida.
Em suma, podem originar-se novos estados dinâmicos do sistema, que
dependem da intcracção com o ambiente que o circunda. Prigoginc,
paradoxalmcntc, deu âs novas estruturas o nome de esirMiuras díysípa-
nvas. O paradoxo consiste no facto de que, enquanto um sistema está
a dissi/Mr energia, a dissipação, cm vez de levar à entropia, conduz à
formação de uma nova ordem, isto é, de novas estruturas. Por via de
regrü, as estruturas dissipativas produzem-se num sistema cm que se
introduziu instabilidade: enquanto, a nível molecular, as outras estru­
turas existentes se comportam de modo tradicional, ao nível molar, o
sistema começa a ter memória do seu estado flutuante; geram-se assim
as novas estruturas, c o sistema dirige-se para uma nova ordem. Há al­
go de clássico na imagem deste processo: e, de facto, Prigogine e
Stcnghcrs citam repetidamente a ideia de címnwc/t de Lucrccio, isto é,
o comportamento casual dos átomos no espaço, que c porem responsá­
vel pelo mundo organizado. Obviamente, as estruturas dissipativas
aparecem sobretudo cm sistemas altamente complexos, nos quais exis­
tem turbulências, flutuações ou caos. E o seu aparecimento é governa­
do por uma serie de leis. Por exemplo: a ocorrência de biturcaçõcs, cm
cuja proximidade um sistema começa a tornar-se capaz de «escolher o
próprio futuro»; a flutuação cm tomo de regiões de instabilidade, a ro-

O /6Í<7., pp. 109-133.

760
tura das simetrias (que parece dircctamcnte responsável pelo nasci­
mento dos sistemas vivos!).
Ora, sucede entre outras coisas que a nova imagem do mundo fí-
Sico leva facdmcnte a realizar comparações com o mundo social. Os
«ststcmas» humanos, de resto, parecem sistemas de complexidade al­
tíssima, c justamente no âmbito das organizações humanas dir-sc-ia
que a lei de tendência para o equilíbrio (isto c, para o caos como equi-
probabilidadc dos elementos) deve necessariamente verificar-se. E se
certos sistemas se mantem, outros também se transformam. Não será
possível individualizar também para o mundo social e a existência de
estruturas dissipativas? Prigoginc parece estar certo de que sim. Sem­
pre na obra A M?va Aí/ança, chega ao ponto de fazer esta afirmação:
«Há quem se interrogue como pode acontecer que sistemas comple­
xos, como os sistemas ecológicos ou as organizações humanas, se pos­
sam conservar. Como procedem tais sistemas para se esquivarem ao
caos permanente? É provável que nos sistemas muito complexos, em
que as espécies ou os indivíduos interagem dc modo muito diversifi­
cado, a difusão, isto é, a comunicação entre todos os pontos do siste­
ma seja igualmcnte rápida 'como nos sistemas físicos' [...]. Nesse sen­
tido, a complexidade máxima que a organização dc um sistema pode
atingir, sem se tomar instável, seria determinada pela velocidade de
comunicaçao.>>f) O exemplo mais claro é o que diz respeito à inova­
ção social no interior de uma qualquer sociedade organizada. Sc a so­
ciedade atravessa uma fase dc instabilidade, também a inovação tra-
ztda por pequenos grupos minoritários tem a possibilidade dc investir
o sistema global, por causa da velocidade com que a inovação é comu­
nicada a cada indivíduo. Mas se a sociedade atravessa uma fase alta-
mente estável, então a inovação perde-se, como se fosse algo dc anc-
dótico, justamente por causa da grande velocidade de comunicação
mterna do sistema. A história das vanguardas políticas parece rcflcc-
hr-sc perfeitamente neste esquema.

( ) /táá.. p. [75. O debate sobre a imagem da complexidade e a sua trans-


terencta para os sistemas sociais tomou-se, aliás, amplo nestes últimos tem­
pos. Cf., por exemplo, as Actas do Convento de Montepellier. Science et Pra-
ia)uc de la Complextté. 1984, com a participação, entre outros, de Edgar
Morm. N.klas Luhmann. llya Prigoginc e Henry Laborit, e em que a quarta
parte do convento era dedicada aos problemas do social, dos sistemas huma­
no'. complexos, da gestão, das obras sociais espontâneas, da democracia e do
governo, da polmca de previsão, e o convênio análoga. Ea s/I<7a
/t/c.ndd. Fcltrinelli, Milão, 1984.

76?
As indicações de Prigoginc sobre a transferibiiidade da noção de
estruturas dissipativas do mundo físico para o humano fccham-sc a
considerações de natureza idcoiógica ou sociológica, mesmo se, por
ocasião da exposição LArt et /e Te/n/M. de 1985, o próprio Prigogine
tivesse introduzido a ideia de que nas artes figurativas existe uma
convergência com as ciências da complexidade, enquanto ambas se
ocupam do tempo não como movimento, mas como duração(). E a es­
te propósito o autor sublinhava a obsessão bergsoniana da duração em
todas as vanguardas do século XIX(^). Todavia, podería antes tentar-se
um reconhecimento no âmbito da cultura contemporânea com o fim de
descobrir se. na produção estética (sobretudo no âmbito dos meios de
comunicação), se poderá falar com sentido de aparecimento de estru­
turas dissipativas.

2. Entropia ou re-criação?

Na minha opinião, a metáfora não é nem banaLncmJarçada. To­


me-se como exemplo a tradicional concepção do^^cneros>) na cultu­
ra de massa. Habitualmcntc, os gêneros interpretam-se como objcctos
repetitivos de uma forma ou de um contéudo que o uso torna insignifi-
cativos ou inexpressivos. Por vezes, os gêneros pensam-se como ver­
dadeiras c genuínas «dcgcncraçõcs» a partir de um original que perde
valor por causa da sua estandardização ou cstcrcotipificaçãof). Neste
sentido, os gêneros poderiam entender-se de dois modos. Primeiro:
como orientação para a total entropia do ponto de vista da força se­
mântica ou expressiva (c a sua etapa final deveria ser a anulação, a in-

(*) Michcl Baudson (comp. de). í'/lr t et /e Tempj, Sociétè des Exposi-
tions du Palais des Bcaux-Arts. Bruxelas. 1984. llya Prigogine e Serge Pahaut
escreveram um ensaio no catálogo, com o título «Rcdécouvnr !c Temps*.
(!) Hya Prigogine c Serge Pahaut, op. cit.. p. 24. Cf. dircctamcnte Henry
Bergson. Li/è artd CarnciousaeM. Huxlcy Memorial Lccturc. Londres, 1911,
retomada também na edição do centenário. Oeavres. Presses Universttaires de
France, Paris, 1970.
(') Gerard Genette c Tzvctan Todorov (comp. de), 7 /teoriM des* g tw e s,
Seuil. Paris, 1986; Tzvctan Todorov, íe.s Genre.s du dircoar.s. Seuil, Parts.
1978; Maria Cotti. Prmcipí de//a comMnicaz<aae /etterana, Bomptani. Milão.
1972; Cesarc Segre, «Gcncri", in Enctc/opedta. Einaudi, Turim, 1979, vol. 6;
Gianfranco Bettetini et a//ü. Cantn&Mtt bf^/iogra/ici ad a/tpragectto dt "cerca
xai generi teíeviyívt. Apuntto dei Servizio Opinioni. n." 299, RA1. Roma,
1977.
significância). Em segundo lugar: como situação dc baixíssima entro­
pia, a partir do momento em que usuatmente se associa a entropia, a
partir do momento em que usuatmente se associa a entropia com a in­
formação (na homônima teoria cibcm cticas)f). O primeiro modo inte­
ressa-nos dircctamcnte. De facto, é habituatmente verdade que os gê­
neros, atingida a insignificância, morrem. Mas é também verdade que
muitas vezes não só os gêneros não desaparecem, mas até recebem de
atguma parte uma revitalização. E isto, a propósito, justamente na cul­
tura de massa contemporânea. Citarei dois exemplos tirados da publi­
cidade, que me parecem os mais adequados, porque a publicidade de­
veria ser por definição o lugar de chegada (e a queda) dos gêneros.
Exemplo número um: os .spoM dos rebuçados E/a/t. que apresentam
uma série de reelaboraçõcs de grandes campanhas de outras marcas,
só com a substituição dos actores adultos por crianças e dos produtos
pelos rebuçados. Os spoí.! individuais citados (o café Eavazza com N i­
no Manffrcdi, a aguardente Bocc/unc com Mike Bongiomo, o deter­
gente Da.!/: com Paolo Villaggio) não só não decaem, como deveria
acontecer para cada reclame após um certo período de uso, mas dão
lugar a uma publicidade nova. Exemplo número dois: os rpoM para as
peles Armabe/ía assinados por Zcffirclli, que se construíram segundo
duas séries; a primeira pré-anunciava o advento da publicidade, como
nos «proximamente» cinematográficos; a segunda eram os anúncios
verdadeiros c genuínos. Acontecia assim que a «mctapublicidadc» ti­
nha o poder de reclassificar a publicidade futura não como é habitual
intercalar entre outros «eventos» televisivos, mas como próprio acon­
tecimento televisivo.
Nesta altura, há que interrogar-se sobre sc a regra «degenerativa»
dos gêneros terá verdadeiramente valor, isto é, se o princípio de entro­
pia será capaz de definir alguns fenômenos contemporâneos que pare­
cem antes constituir-se — se bem que de modo não exclusivo, é certo

f ) Rudolph Amhcint. Enlrapy and Ari. The Regents o f lhe University of


Califórnia, Bcrkeley, 1971; Abraham Moles, Vácarie de /'ift/àratalian eí per-
repítan c.'</:é:içMe, Flammarion, Paris, 1978; Uniberio Eco (comp. de), E.s:e:i-
ra c '/caria dc//'in/àrmaziac, Bompiani, Milão, 1972; Ugo Volli (comp. de),
ba srienza e /'arfe, Mazzotta, Milão, 1972; Umbcrto Eco, Ba S/ra/ara AMenTe,
Bompiani, Milão, 1968; para o aspecto matemático da teoria da informação,
cf. C. E. Shannon-Shannon e W. Weawer, 77te Mat/tcataiica/ /Aeary a f Ca/n-
maaicatiaa, Urbana University Press, 1949, c Colin Chcrry, Oa //a w a a Cam-
ataaica/iaa, Wilcy, Nova Iorque, 1961; para o aspecto físico da entropia, cf.
llya Prigogine e isabclle Stenghers, ap. cá.

763
— comQje -c r mçúoyA lém disso, admitindo como boa esta segunda hi­
pótese, importa perguntar como c que tal rc-criação tem lugar. Veja­
mos se algumas das condições do aparecimento de estruturas dissipati-
vas no mundo físico se reproduzem também na cultura. Há pelo me­
nos duas que se aplicam ao nosso caso. A primeira é a condição da
distância quanto ao equilíbrio. Com efeito, notar-se-á que todo o siste­
ma dos gêneros na cultura de massa se manteve à força longe do pró­
prio equilíbrio. Com efeito, toda a repetição de gêneros é habitualmcn-
tc acompanhada pela investigação apaixonada de algum elemento,
uma variante ainda que minúscula (como se viu no segundo capítulo),
que permite /naníe/* o produto dos gêneros longe da entropia. A segun­
da é a condição de instabilidade introduzida no sistema. Notar-se-á
novamente que na cultura de massa, sobretudo cinematográfica e tele­
visiva, existe hoje uma altíssima produção (à distância quase imediata
do sucesso de um produto de qualquer gênero) de paródia do próprio
produto. Mas a paródia pode muito bem entender-se ou como estádio
final da dcgcncração dos gêneros (como queria uma certa crítica posi­
tivista), ou como introdução de turbulência no sistema desse gênero
determinado. Em tomo dos fenômenos da turbulência de um gênero
começam então verdadeiras e genuínas flutuações, que conduzem por
vezes ao nascimento de produtos de gêneros novos. Rcccntcmcntc,
deu-se um caso bastante clamoroso na televisão italiana. Todos conhe­
cem obviamente a transmissão FontdMico, dirigida por Pippo Baudo.
E todos sabem que o apresentador mais conhecido da Itália construiu
sempre os seus programas com o máximo controlo interno, de direc­
ção no estúdio. Na edição de 1986 ocorreram alguns episódios de de-
sestabilização das variedades televisivas. Alguns vieram do exterior:
paródias múltiplas cm Drive irt, cm Da/tro varietd, e assim por diante.
Alguns, a partir de dentro: a partir das situações cômicas do trio So-
lcnghi-Marchcsini-Lopez, que incorrem nas fulminações de Khomei-
ni, até ao incidente de Bcppc Grillo, a propósito de uma anedota sobre
os socialistas. Ora bem, a partir daquele momento, Baudo começou a
revolucionar a transmissão. Inaugurou a improvisação, intensificou as
grr^e.r. cantou até esganiçadamente e cometeu de bom grado erros de
linguagem, mudando radicalmcntc (para o seu padrão, entenda-se) o
modo de condução.
Peço desculpa pela pouca seriedade do exemplo. Mas foi em vista
da clareza que expressamente o escolhi numa manifestação cultural
muito popular. Não se creia que um fenômeno análogo não assalte
com igual força em parte todos os níveis da cultura. A turbulência in-
troduzida num sistema criativo quaiquer não será necessariamente
provocada pc!a paródiaf), mas o resuitado não muda. Em vez da paró­
dia, a flutação e o nascimento de estruturas dissipativas podem ser
causados também por icituras anómatas do produto cultura! estabiliza­
do. Recentcmcnte, isto aconteceu cm muitos scctores artísticos justa­
mente mediante a icitura «desorientada» do texto de Jean-François
Lyotard, A C o n d ã o fát-Aíot/erna^). Já se ilustrou como é que o pró­
prio Lyotard ignorou a enortne produção de textos artísticos «cita-
cionistas» cm nome da etiqueta «pós-modemo». E também sublinhei
que a noção por ele baptizada não se propunha, efcctivamcntc, liqui­
dar o experimentalismo de certa modernidade, por exemplo, as van­
guardas. E uma geral leitura em termos de ironia sobre o modernismo,
de redcscoberta do passado, da superfície, da decoração, provocou não
a continuação de uma crítica, mas o nascimento de um gênero de ob-
jcctos.

1. () consumo produtivo da cultura

Esta consideração a propósito do fenômeno pragmático das /cita­


ras* aiserra/ite.sf) leva-nos a reconsiderar uma variante na origem das
estruturas dissipativas cm âmbito cultural. A turbulência pode, com
efeito, introduzir-se num sistema cultural aparentemente estável, cons­
tante, fluído, a partir da recaída cm textos das suas leituras aberrantes,
ou de algum modo não autorizadas pelos próprios textos.
Nos capítulos precedentes já se falou na noção de co/Mo/no /v o -
Jtaivo. Retomo-a ainda grosseiramente: sempre que pegamos num
objccto cultura] qualquer, não o lemos passivamente, mas enriquccc-
mo-nos com ele("). Polemizamos com ele, tiramos dele só uma parte,
com ela nos conformamos, compreendemos só a superfície, agrada-

(") Para um exame da paródia como flutuação do sistema da citação, cf.


Antoinc Compagnon, La Secaade Main, Scuil, Paris. 1979.
O Jean-François Lyotard, La CaraM/an..., cit.; mas vejam-se também as
"'[b xões contidas em Le fa.Mnadern exp/t<yaé aax ea/àni.;, cit., e o comentá-
t lo de Tomas Maldonado, // Fa/ara de//a AJader/mià. Feltrinelli, Milão, 1987.
('") Acerca do fenômeno podem !cr-se as páginas de Umbcrto Eco, Lec-
a; FaFa/a, Bompiani, Milão. 1979; «Postille al nome delia rosa». A//aLeta,
19. 1983; «Appunti sulla Semiótica delta ricczioni». Carie yc/níai/cLe 2
1986.
(") V e m . 19, § 6 .

/6 ó
nos dc)e só o aspecto pior e assim por diante. Em suma, toda a leitura
produz cultura, mesmo se diversa da do texto lido. A interpretação
sociológica, porem, pode sofisticar-se com algumas indicações su­
plementares. Para que um consumo seja «produtivo», dcprccndc-se
dele que deve ocorrer uma espécie de conflito entre objecto «lido» e
competências ou atitudes do leitor. Corolário: c a conflitualidade cul­
tural do leitor que torna instável o objccto da leitura enquanto «per-
ccpto». Após o que o «pcrccpto» c instável c potcncialmcntc trans­
formado. Pode igualmentc haver muitas leituras não autorizadas ou
aberrantes de um mesmo sistema de objectos culturais. Se forem nu­
merosas, mais ainda do que as autorizadas, poder-se-á dizer que o sis­
tema começa a flutuar. Se, em seguida, alguma leitura anômala dá
lugar a «perccptos» estáveis c comummcnte aceites, estaremos em
presença de uma nova ordem cultural. E, paradoxalmcntc, acontecerá
que as novas obras individuais que se teriam podido atribuir à ordem
precedente serão antes produzidas sob o signo da nova.
Já me referi várias vezes ao caráctcr ncobarroco da atitude cultural
que se inclui sob o nome de «efemero» c que, não por acaso, reduz ao
mesmo denominador comum tanto os modos de leitura dos textos
como a afirmação de leituras aberrantes de certos textos de preferência
a outras, como ainda, por fim, a produção de novos textos adequados à
afirmação das leituras aberrantes. Não se retomará este tema senão pa­
ra assinalar algum exemplo cinematográfico específico. A partir da se­
gunda metade dos anos 70, aconteceu que o grande período de filme
de gênero americano foi revisto em chave não tanto de nostalgia,
quanto de revisão do princípio de prazer que aquele tipo de cinema
trazia consigo. Assim, as famosas manifestações públicas que vão des­
de o programa-Massenzio do Município de Roma aos festivais em to­
do o mundo, às revisitações televisivas, aos regressos críticos cm re­
vistas especializadas e na imprensa periódica, distinguiram-se todas
pela revalorização não só do gênero, mas também do tipo de prazer
suscitado. Os filmes americanos dos anos 50 e 60 já não se apontam
como instrumentos de organização do consenso. Isto já se tinha com­
preendido. Expulso o potencial veneno, a rclcitura orientada podia sal­
var o prazer. Mas este comportamento crítico (de massa) provocou o
nascimento de produções coniventes com o novo gosto. Cito, a propó­
sito: na obra /í BcxcMr e í n Stanley Donen reconstrói o esti­
lo do cinema dos anos 30, com o grande espectáculo que vai do circo
às variedades passando pelo filme de guerra. Em /í Mistero Ca&r-
vere Scowparso assistimos directamcntc à rc-criação de um episódio

76ó
completo com pedaços montados das melhores interpretações dos he­
róis do policiai, com Bogart à cabeça; e, para permanecer na Itália,
Francesco Nuti foi primeiro à caça dc um célebre Paul Ncwman com
/o, C/tíara c /<? ienro. cm seguida, do igualmcntc mítico Humphrcy
com Ca-MÓ/anca, Ca.raó/anca. A nossa tese é assim confirmada. Um
gênero projcctado «normalmcntc» para a insignificância torna-sc
instável mediante intervenção externa, jjo ambiente. E daqui surge o
aparecimento de^estruturas dissipativas, isto é, estruturas que, ao
acelerarem justamente o seu esgotamento semântico, produzem pelo
contrário novas estruturas fortes.

4. Nos antípodas da teoria da informação estética

Podemos agora regressar ao duplo conceito dc entropia que aban­


donámos ainda há pouco. Até aqui, pusemos efectivamente cm relevo
a geração dc sistemas culturais a partir de n/na certa/orwa dc entro­
pia, a que esbate a força c a energia significativa dc um texto. Mas as­
sinalámos que existe uma segunda noção de entropia, a que congrega
o máximo dc equilíbrio com o máximo dc informação cibernética.
Como muitos recordarão, a esta segunda noção se referiram nos anos
50 e 60 muitos teóricos da Arte, e em particular da vanguarda. Bastará
citar entre todos Max Bcnsc c Abraham Molcs(^). Nas suas teorias, a
produção de entropia num texto estético era garantia da originalidade
c da auto-reflexibidade da obra de arte. O fundamento da própria esté­
tica. Não se pode deixar dc observar como essa concepção está litcral-
mente nos antípodas da que até agora descrevemos. Mas a razão pare-
ce-me clara. Tal como na ciência, também na arte se andava â busca
dc um principio gerai da estetie idade. Dc leis constantes e imutáveis.
Era esse o erro. E tanto mais curioso, se pensarmos que o mundo da
criatividade conservou sempre uma complexidade acima do dizível.
Além disso, as teorias da informação estética eram também afcctadas
pelo desejo de adequação ao espírito da vanguarda, isto é, o da origi­
nalidade como fundamento da obra, da experimentação como sua ma-
triz('3). Hoje, os artistas habituaram-se ao facto dc que a obra pode

C l Abraham Moles, <?p. cá.,' Max Bense, /tcsíitwii:, Agis Vcrlag, Badcn
Baden, 1965.
C l No fundo, é esta a matriz comum com a teoria do «afastamento da
norntao dos formalistas russos, transferida também para muitas teorias estéti

767
continuar a engendrar-se por meio da busca de ambiguidade, mas que
pode também derivar do esgotamento c da rc-criação: da re-semantifi-
cação.
Trcs exempios artísticos, tomados como sempre entre os muitos
que se poderiam citar, podem servir para ilustrar o conceito. Trata-se
de três arquitectos que pintam, Arduino Cantafora, Massimo Scolari,
Luigi Serafini. Não pertencem à mesma família. Cantafora reproduz
objectos quase sempre arquitectónicos com algumas referências aos
anos 30. Scolari refere-se explicitamente a De Chirico, mas construin­
do imagens míticas, como a Torre de Babel ou a Arca de Noé, edifí­
cios lendários da Antiguidade perdida. Serafini remonta mais às arqui-
tccturas fantásticas aguardadas do fim do século XIX, eclécticas c
utópicas ao mesmo tempo. No entanto, os três têm algo em comum e é
precisamcntc a tentativa de exgotar (e não banalmcnte de citar) um es­
tilo. Mas, ao esgotá-lo, eis que o contacto com o ambiente da contcm-
poraneidade faz deles os portadores de uma nova ordem, o da «pintura
fantástica», se assim me é permitido chamá-la
A informação estética, como se vê, conta muito pouco. Aqui, esta­
mos perante uma matriz diferente. Mas é isto o que interessa: a ordem
da arte não é única e imutável, os seus sistemas podem ser irreversí­
veis e indeterminados. E não só a ordem da arte, como se viu, mas
também a ordem global da cultura. O universo cultural apresenta-se-
-n os fragmentário e originado por estruturas contraditórias, que con­
vivem perfeitamente ao mesmo tempo. Algumas seguem a lei do
afastamento da norma. Outras produzcm-sc por dissipação. Mas estas
últimas são hoje sempre mais numerosas c assinalam, no fundo, o gos­
to da nossa época.

cas posteriores de cunho informacional-estrutural. Cf. o próprio Umbcrto Eco,


Opera Aperta, Bompiani, Milão. 1962; id., La De/intztwte de//'Arte, Mursia,
1968 (A D e/õnção da Arte, Edições 70, Lisboa, 1982).

763
!X

QUASE E NÃO-SEI-QUÊ

I . O prazer th) imprecisão

Nas recentes /.eçores zí'd peu prds, o matemático francês Georges


Guilbaud-áêSCy^vc aigumas grandes etapas do pensamento relativo á
;iproximação('). Etapas que dizem respeito à beieza de vinte e quatro
sécuios de humanidade. E consegue assim rcabiiitar uma nocão^ a do
quase», que o nosso léxico quaiifica negativamente, relegando-a para
ptáticas de imprecisão que se contraporiam ãs «cxactas» das ciências
c, sobretudo, da matemática, cujo vaior seria, pcio contrário, optima).
Na reaiidadc, defende Guiibaud, a matemática ocupou-se sempre do
cálculo aproximado c fê-lo sempre de um modo fascinante. Mas o que
mais conta: de modo rigoroAo. Sc, pois, a aproximação se pode revalo­
rizar, isso acontece sob a condição de se estabelecer de cada vez de
</«<- xe fu/tr, e quais são as condições sob as quais ela se
investiga. Há cfcctivamcntc diferentes níveis de significado do quase:
I Aquele pelo qual a definição de um objccto se conhece como «não
complctamcntc verdadeira». É o nível do senso comum. 2: A defini­
ção de um objccto surge como «intervalo entre dois limiares extre­
mos». E o nível do enquadramento, que funciona substituindo a um
demento preciso um intervalo entre o qual ele se colocaf). 3: Define-

(') Georges Guiibaud, Aeçons prè.s, Bourgois, Paris, 1986.


(b Também o utilizamos na vida de todos os dias, por exemplo, quando
tomecemos uma indicação «entre as oito e as oito c dez».

769
se a aproximação peta relação com o «grau de precisão exigido pela
procura do objccto». Estamos perante o critério «das aproximações
sucessivas», segundo o qual a aproximação se pode deter ou pros­
seguir cm relação à pertença da pesquisaf). O cálculo infinitcsimal
pertence a esta espécie. 4: O lugar do segundo nível, também chamado
«intervalo de tolerância», é substituído pelo chamado «intervalo de
confiança», que consiste cm conjecturar que um objccto é aproximá-
vcl entre dois limiares dados, e cm pensar ter bons ensejos de que a hi­
pótese seja vcrdadciraC). Muitas novas descobertas da Matemática
apontam na direcção desta última regra geral, como as funções aleató­
rias, as dimensões fractas, c até certos algoritmos utilizados por com­
putadores.
Mas então deve daí dcduzir-sc, como a seu tempo fez Alexandre
Koyré, que a série crescente: «valor aproximado-intervalo de tolcrân-
çia<qM^ 4maç õcs--sncc3SÍvas-intcrvalo de confiança» dependem de
^critérios de funcionalidade?^) Não, ccrtamcntc. O mesmo Guilbaud
obscrvãl[uSTtt6ma4nstóriâ da Matemática se andou à procura de apro­
ximações que não tinham qualquer relação com necessidades concre­
tas. Um exemplo é estrepitoso, o das tábuas babilónicas de vinte e
quatro séculos, empreendido para aproximar o cálculo das raízes qua­
dradas. Chcgava-sc a uma precisão da ordem de um milionésimo, para
a qual não existia na altura nenhuma exigência técnica. Trata-se então,
evidentemente, de uma verdadeira c genuína «curiosidade científica».
O desenvolvimento da matemática conheceu muitíssimos casos análo­
gos, nos quais o princípio de descoberta era quase ditado pelo prazer
do maravilhoso matemático. Um prazgLqucpqdcrcmos definir no cru­
zamento entre a imprecisão e o rigor da aproximação, um prazer-desa-
fio, um prazer estético.
Notar-sc-á imediatamente, no entanto, que semelhante prazer nem
sempre foi aceite, sobretudo pelo senso comum. Há até períodos cm
que prevalece uma ideia de racionalidade científica penetrada de
«cxactidão» e de confiança, cm que a matemática realize semelhante
exactidão. A matemática é, sem mais, o símbolo da ordem perfeita das*()

f ) Este critério consiste cm fixar-se, definindo a aproximação, na quanti­


dade suficiente: por exemplo, fixando os decimais de uma divisão num certo
número depois da vírgula.
(") Por exemplo, quando procuramos definir a idade aparente de uma
pessoa, que «terá entre trinta e trinta e cinco anos».
(*) Alexandre Koyré, á u d e s d f/ó te ir e de Pertree P/níosopiçMe, Le-
clercq & C., Paris, 1961.

770
medidas. A oposição emre ordem e desordem toma, em suma, a figura
de oposição entre precisão c imprecisão, entre vatores fixos e vatores
osciiantes, e, por conseguinte, surge revestida de sentido também do
ponto de vista das categorias ctica, estética, fisica, passionai, catego­
rias que já são conhecidas desde o início deste voiumc. Não é, pois,
despropositado, com base cm raciocínios desenvoividos até agora, as­
sociar a um gosto barroco o prazer peios «monstros» matemáticos pro­
duzidos pcia aproximação (um prazer que ievará mesmo a exactidão a
tornar-se, como sugere Guübaud, «o grau zero do quase»), c a um
gosto clássico, o desejo de precisão e de ordem.
O que c certo e que a actua) «nova ciência» está fortemente a re-
descobrir a virtude do quase. Prova disso c um esplendido convênio,
realizado no Verão de 1986 em UrbinoO, cm que os matemáticos da
escola de Guilbaud se encontraram para discutir a aproximação junta­
mente com psicólogos, semiólogos, historiadores, teóricos da arte,
mostrando a grande extensibilidade do conceito e o seu fascínio em
todos os ramos do saber humano. O universo do impreciso, do inde­
finido, do vago mostra-se pois rico de sedução para a wrrnm/idade
contemporânea. E, de resto, foi sempre o matemático francês que de­
fendeu que o desenvolvimento do quase tem muitíssimo a ver com o
aparecimento de uma «mentalidade».
E curioso, ademais, que justamente hoje a aproximação seja assim
tão valorizada. Precisamcntc hoje que as tecnologias se introduziram
no universo que parece sempre mais dominável, dcscritívcl, controlá­
vel com instrumentos de precisão. Calculadoras de cristais líquidos,
relógios de quartzo, televisão electrónica c de alta definição, computa­
dores, autômatos c robôs: eis uma breve lista de objcctos que parecem
construídos para práticas cxactas cm todos os campos do conhecimen­
to. E, no entanto, cada um deles funciona desafiando o quase, utilizan­
do-o até rigorosamente. A calculadora automática produz arredonda­
mentos até ao undécimo algarismo. O relógio de quartzo calcula o
tempo até ao milionésimo de segundo, isto é, para além do perceptí­
vel, mas o seu modo de mcnsuraçâo é impreciso. A alta definição tele­
visiva produz melhores eleitos de realidade, mas não a reproduz, antes
.1 segmenta conveneionalmenie ainda mais do que as tomadas de ima­
gens prcccdentcs^Os algoritmos da inteligência artificial funcionam

C) Centro íntemazionalc de Semiótica e Linguistica, // prevM/j/wco, cm


mrso de publicação. Comunicações, entre outros, de Eco, Fabbri, Lc Gotf,
Marin, Petitot, Rosenstiehl, Dcsclés.

777
muitas vezes por «randomização», isto c, introdução de alcatoriedade.
Autômatos c robôs simuiam o trabaiho humano, mas a sua exactidão
está estritamente [imitada à operação desenvoivida, ao passo que a
própria simulação c gerada por uma aproximação ergonômica.
Talvez por isso mesmo, para nos tibertarmos de uma «ilusão de
precisão», se acentua o gosto peto quase cons/z-Máfo, ou sob coníro/o.
Um gosto que, nos vastos territórios da criatividade (estéticos em sen­
tido tato), assume por vezes a conotação de um verdadeiro c genuíno
programa de acção.
Um livro de filosofia (cuja origem, para dizer a verdade, não é re­
cente, porque o primeiro esboço remonta a 1967) de Vladimir Jankclc-
vitch apresenta perfeitamente este tema. O título é emblemático: í e
Ve-fic-sais-<yM<7Í et íe-fre.!<?HC-t*iea, e fora precedido, vários anos antes
de 1980 (dattt de rcescrita do volume), por uma r/u/osop/uepre/ntére.-
iíitroíÍMctioM d Mae p/ttíospp/tíe du « f res<?Me»f). O «nao sei quê» e o
«quasc-nada» tornaram-se princípios da ética, com, base numa refle­
xão que (ainda as coincidências!) se funda numa quantidade de obras
filosóficas barrocas, a começar pela de Balthasar Gracian, que, ao fim
e ao cabo, não era tão desconhecido dos especialistas como se pen­
sava. O programa filosófico de Jankélévitch aparece nítido logo desde
as primeiras linhas: tratar daquele «algo» que, por assim dizer, é a má
consciência da boa consciência racionalista c o escrúpulo último dos
espíritos fortes; algo que protesta c «remurmura» dentro de nós contra
o êxito dos empreendimentos rcducionistas...»(*) Por outras palavras:
o sentido de mal-estar que experimentamos perante o que é incom­
pleto, a inquietação qne sentimos por aquilo que é imprccisávcl, in-
definível, inexplicável. Um sentimento que provem, pois, de um
«resto» ou de um «resíduo» da nossa actividadc de redução, explica­
ção, controlo do conhecimento. É fácil reconduzir a filosofia antes
mencionada ao âmbito do idealismo ou do pensamento negativo. (E,
dc resto, cm termos próprios, assim deveria ser.) No entanto, podem
também cnfrcntar-sc o pensamento «modal» dc Jankclévitchf) numa

(') Vladimir Jankélévitch, L c J<?-zMt-.Mà'-<?M<a e / Scuil.


Paris, 1980; PMzzMzp/ue pz-czznéz-e.' /zMt-adMcncrt à /a /z/u/ojopAtg «Pz*M-
<7 Mc», Prcsscs Universitaircs dc Francc, Paris, 1960.
(') Vladimir Jankélévitch. íeJe-zM;-.H3i's-<7Moz.... cit..p . 11.
( 9 ) É o próprio Jankélévitch que assim denomina a sua filosofia, a partir
do momento cm que ela se funda numa reflexão sobre-ttmõdal idades^ (querer,
dever, poder, saber, ser, fazer). ' ***^

772
serie não já de «sentimentos», mas de práticas que visam a produção
do «não-sci-quc». Um «não-sci-quc» controiado c, se assim se pode
dizer, rigoroso.
4 Sc rcUcctirmos no ateanee das idéias dc Jankélévitch, efcctivamcn-
te, cairemos na conta de que sempre existiu (e mais do que nunca em
épocas barrocas) uma precisa prática teórica: a de desafiar as leis da
representação, propondo-se representar o irrcprescntávcl, dizer o indi-
zívcl, mostrar o não vísivcl, c assim por diante. Ora, semelhantes prá­
ticas derivam sem dúvida de um substrato filosófico, mas, ao mesmo
tempo, produzem um gosto, e realizam-no mediante um uso artificial
da linguagem (dc toda a linguagem, no sentido mais amplo). Por ou­
tras palavras: é uma teoria da significação que nos indica os próprios
paradoxos (representar o irrcprescntávcl, etc.) e nos induz ao desafio
da sua superação; é no interior da própria linguagem que se procuram
os meios para chegar àquele çuiíf (uso o termo no sentido dc Jankélé­
vitch) para aproximações sucessivas; mas a operação, uma vez tornada
«dc estilo», pode inverter-se, e mediante a linguagem podcr-sc-á co/rs-
trair a aproximação crwto e/eí/o e s t i c o .
Não será esta talvez a matriz reversível dc poéticas como as da
vaguidade, do indefinido, do «quasc-como»?C°) E esta poética origi­
nal não poderá talvez traduzir-se também em operações estercotípicas
ou de gênero, como aquele slogan para um sabonete que diz «aquele
não-sei-quê, que faz girar a cabeça»? A difusão, no nosso aparente
universo da precisão, de poéticas do quase artificial exige então que
não só se r$disem os processos dc valorização ética, estética, física e
passional sobretudo do quase, mas também as técnicas da sua produ­
ção discursiva, visto que é justamente através do discurso que as ope­
rações de estilo ou de gosto sg.reaü^gm plcnamenlg,
Sc, até agora, unificámos o quasç.e onão-sci-qué)tlo ponto dc vista
dc um espírito que os torna namogcncosTscrS bomapresentar também
as diferenças oportunas, cm virtude das quais o gosto da aproximação,
que derivámos da matemática, não é a mesma coisa que o gosto do
impreciso, por nós divisado nos últimos exemplos. Por conseguinte,
será preciso distinguir entrea.itu$í^dc uma representação-r/MaR?
que corrcspondç^ a p r o xim ação^o sentido mais «matemático»"
c u busca explícita dc uma (ão, que responde, pelo
contrário, ao sentido do indefinido c da vaguidade no sentido mais fi-

C°) Guido Almansi e Guido Fink. cowe. Bompiani, Milão, 1976.

J7J
losófico, e que compreende, também, como ponto de chegada, a «ren­
dição» do irrcprcscntávc!. Os dois efeitos tem de considerar-se diver­
gentes como resultado, mas convergentes como motivação e matriz.
De resto, o mecanismo que os realiza no discurso é absolutamente
análogo.
Entre as técnicas discursivas, um lugar priveligiado é atribuído à
enunciação. O quase e o não-sei-quê, cfcctivamente, não propriedades
inerentes aos objcctos representados no discurso, mas dependem estri­
tamente do seu sujeito. Quase e não-sei-que concernem a um sentir,
um dizer, um ver, um ouvir, um perceber do sujeito perante um objcc-
to. E dirão respeito, pois, à sua actuação, cspacialização, tcmporaliza-
ção(") de dois modos diversos e concomitantes. O quase resultará de
uma parcial «incapacidade» de definição do objecto por parte de um
sujeito «débil». Actuação: não se consegue pôr cm foco o objecto, ou
então, desfoca-sc propositadamente. Espacialização: não se consegue
captar o contomo, o perfil, o conlim do objecto por causa da distância
errada entre sujeito e objecto, ou então produz-se uma distância ina­
dequada. Temporalização: falta a capacidade de fixar a duração do
objecto (c cm particular o seu caráctcr instantâneo), mas também este
efeito pode ser construído. Nas três especificações precedentes, enten­
demos a incapacidade como carência, deleito. A incapacidade pode
ser também por excesso, no entanto: não se consegue definir o objecto
cm virtude da impossibilidade de discriminação entre as suas caracte­
rísticas excessivas, ou por não ter um critério de pertinência discrimi-
nante. O objecto pode cspacializar-sc como dcmasiado%)róximo. A
sua duração torna-se incalculável por excesso de pormenor temporal.
E assim por diante.
São, pelo contrário, poucos os casos cm que o quase depende da
natureza do objecto. Todavia, estes existem c traduzem-se cm figuras
do quase, tanto reconhecíveis na natureza como construívcis artificial-
mente. Na natureza, a percepção do sublime é sempre causada pela
aproximação do pcrccpto temporal c espacial, mesmo se esta se com­
bina necessariamente com um aspecto passional (que veremos melhor
no não-sei-quê). Artificialmcntc, podem criar-se formas temporais ou

(") Ou seja: a expressão gramatical do sujeito («eu»), a sua expressão


temporal («agora»), c a sua expressão espacial («aqui»). Para uma visão com-
plexiva da problemática do sujeito no discurso, cf. Jcan-Claude Coquet, í e
di.scours' et .suje/. Klincksicck. Paris. 1985.

774
espaciais não claramcntc perceptíveis: indistintas, amorfas, incxtricá-
veis. São figuras, por exemplo, privadas de contornos, ou não saücntcs
quanto ao seu fundo, ou informes (isto 6, indccidíveis entre mais con­
figurações, como vimos no capítuio sobre monstros). Em suma, existe
uma iconografia (c uma cronografia) do indistinto, que vai do esfuma-
do iconardcsco ao famoso de Turncr, do «ripetere sfumando» das
cláusutas musicais ao ritmo iivre.
Em contrapartida, o não-sei-que comporta aigo mais, o que Janke-
ióvitch denominou «a quodidade da quididade». Enquanto no quase
nos encontramos perante uma carência que pode valorizar-se como
Pat&tR!., tnais ou menos necessária e mais ou menos temporária, com o
não-sci-quctestamos perante um «resto» inexorimívet. Mas este 6
acompanhado por dois tactos concernentes ao sujeito: um, a sua situa­
ção cognitiva; dois, o seu investimento passionat. O sujeito, de facto
da existência de um resíduo na definição do ser, mas não di-
/ê-!o. E tal desequilíbrio gera paixão. O sujeito é, cm suma, /no&r/iza-
de modo conflitual, ou seja, está no interior da tensão en­
tre duas modalidades diversas. Por exemplo, entre um .saòcr e
um wão /wííer entre um /tão querer ja&er c um ríever c to­
da a outra composição modal tensiva. Dizíamos antes que o sentimen­
to do sublime, pelo menos na sua definição mais clássica, consiste na
realização quase final da tensividade a que se submete o sujeito. Não
foi em vão que o sublime se abordou por vezes como convergência
conflitual de paixões opostas, ou seja, como resíduo emocional c ime­
diato (intuitivo) para toda a explicação racional. Também aqui nos de­
frontamos com uma dupla tipologia: um p â o -sc á ^ êjio r defeito, que,
sempre com Jankclcvitch, chamaremos ^quasc-nada»^)quc consiste cm
sentir a importância de uma inépcia.qucJgD ayvfsãó total do objecto;
c um não-sei-quê por excesso, t/^quasc-tudo7)]uc reside na incapaci­
dade de abranger o pormenor pef-exagcfõ da visão panóptica do
objecto.
A percepção do não-sei-quê pressupõe, pois, uma específica con-
dtção scnsorial igualmcnte definida por Jankélévitch com o nome de
mnwi.Hío. uma espécie de olhar «entre» as coisas e «dentro» do su­
jeito. Por um lado, o não-sei-quê exige o dote da intravisão e. por*
outro, provoca-o (mais uma vez: o não-sei-quê pode rcconhcccr-sc ou
t. onstruir-sc, por exemplo, construindo um sujeito como sujeito pas­
sional).

77J
2. Obscuridade

Passaremos agora rapidamente cm revista episódios de criatividade


tirados dos âmbitos mais diversos cm que o aspecto do quase e do
não-sei-que surge construído como efeito de discurso. Observaremos,
de passagem, que a busca de tai efeito toma figura de modos diversos,
mas que é uma constante estética de hoje cm dia, e também ainda de
um ponto de vista estatístico. Um primeiro gênero de figuras discur­
sivas do quase e do não-sei-que pode denominar-se efeito de obscuri­
dade ou, se o quisermos mencionar cm gíria cinematográfica, «efeito-
-nuvem». De resto, até mesmo a nuvem artificiai parece ser o ícone
simbóiico seu, produzido muitas vezes numa orgia de efeitos especiais
fíimicos. Pense-se na sensação de gravidade causada pcia nuvem em
ApocaZip.se ZVow, no quai a viagem em busca do mítico coronci Kurz
por parte do capitão Wiitard se toma densa e passionai pcia impreci­
são dos contornos na nuvem, mas também pcia grande quantidade de
dissoivcncias cruzadas, de sobreposições de imagens, e peia própria
escassez de iiuminação nas cenas principais. Ao fim c ao cabo, o sen­
tido da obra de Coppoia é precisamente o da desesperada prossecução
de um significado que foge sempre continuamente (ate mesmo ao rca-
iizador que, como se sabe, rodou três finais diversos). Há em Coppoia,
pois, uma dupia nuvem: a nuvem-cnunciado (nuvem representada) c
uma nuvcm-cnunciação (representação nebuiosa). E enquanto depa­
ramos com outras nuvens de efeito um pouco em todo o cinema fan­
tástico c de gênero (com o ciímax em Fog onde a nuvem se toma pro­
tagonista), as nuvens cnunciativas podem seguir o dupio andamento.
O da cstcreotipificação: e teremos toda uma série de esfumados, dis­
soivcncias, desfocagcns, obscurccimcntos da cena, que desembocam
na estandardização publicitária do não-sei-quê. O da criatividade; c te­
remos enevoamentos de autor como no Caranova, de Fciiini, ou nos
episódios de «cintiiação de ,S'Záamg. de Kubrick, ou nos ccgamcntos
iuminosos de Z/ao/no c/tc ca&Ze raZ/a terra.
Um efeito discursivo «obscuridade» pode, pois, conseguir-se sin-
táctica c scmanticamentc. Por exempio, subvertendo ou subtraindo as
. conexões entre as partes do discurso; ou ciiminando a evidencia da
pertença recíproca das unidades semânticas. O resuitado pode encami-

(*i) Há disso vestígios na tese de AchiUc Bonito-Oliva. Ver, por exem-


pto, MaaaaZe di voZo, Fcltrinelii, Milão, 1982.

776
nhar-se em diversas direcções. Podemos ter um efeito cômico, como
em muito do cinema de Woody AHcn, ou no filão «dcmcncial» à John
Bciushi. A destruição da pertença cria uma obscuridade paródica, uma
«impertinência» (pcnsc-sc na perda de sentido dos monóiogos de
Woody AHen em Awor e Gacrra, Ea e Aa/iie, ou MaaAatm/:. Um ou­
tro efeito é, peto contrário, o que Roiand Barthcs chamara o «rumor da
língua»: um efeito estiiístico e üterário que hoje entrou na ensaística
ou na iiiosofia. Os textos de Jacqucs Dcrridas são um exempio perfei­
to de pesquisa criativa deste tipo, sobretudo A e/n ou
a Carta a ara amigo japoaêj. Além disso, por fim, a destruição das
conexões sintácticas ou semânticas produz um discurso obscuro de gê­
nero mcdiúnico (desde a astroiogia ate certa psicanálise contempo­
rânea), ou produz o sentido do enigma verdadeiro e genuíno. Os dois
fiimcs de Grccnaway, O Afijtcrio rio Jardim ComptoaAoaje e o
Zoo Véntcr, funcionam de facto pcia impossibilidade imediata de
ligar frases e imagens num fio lógico linear.
Ironizou-sc muitas vezes (com maior ou menor justificação) a pro­
pósito dos estilos obscuros quer no âmbito literário, cinematográfico e
artístico, quer no filosófico, crítico e metodológico. Em muitos casos,
indiscutivelmente, quando a obscuridade se toma estereótipo, aproxi­
ma-se do humorismo involuntário. Mas aqui não se trata de exprimir
juízos de valor sobre a perda do «esprit de clartó». Pelo contrário, tra­
ta-se de sublinhar mais uma vez quanto cia rcílccte um princípio esté­
tico generalizado. Não foi cm vão, há já alguns anos, que assistimos à
explícita reivindicação, por parte dos críticos, do seu papel intrínseco
â criação da obra de arte ao lado, ou mais ainda, a respeito do papel do
artista(^). Nesse sentido, o primado na instauração do que podemos
denominar «crítica ncobarroca» pertence a Achillc Bonito-Oliva, que
mais do que todos proclamou uma concepção criativa do crítico, c que
utaugurou comportamentos a cia adequados, isto c, os comportamen­
tos de exibição e provocação.

I. Vago, indefinido, indistinto

Nao c, pois, só a obscuridade que produz um prazer estético no


disturso aproximativo c na insignia do não-sei-que. Já vimos que, uo
discurso, se podem produzir figuras do enunciado e figuras da cmm
nação, que levam â perda do contorno dos objcctos representados I .
to é. lazem perder a imediatidade da Jí/creaça, cancelam pnn t.dm. m.

777
a ra/iência das coisas entre si e em relação aos seus contornos e fun­
dos a favor da simpics pregMá/rciaC^). A percepção do discurso e dos
objcctos representados no discurso toma-se vaga, indefinida e indis­
tinta. O conceito de «vago», por exemplo, é digno de interesse. O ad-
jectivo implica cfcctivamente um movimento, uma errância: que pode
pertencer ao objccto do discurso, ao sujeito do discurso ou ao próprio
discurso, cuja manifestação 6 a de um vagabundear em tomo do pró­
prio conteúdo. O resultado de tal discurso errante pode captar-se me­
lhor com um exemplo. O tipo de transmissão televisiva actualmcntc
mais çm voga 6 o que se funda na improvisação e na transmissão
dircctaC"). Dc resto, já muitos notaram que o que importa na trans­
missão directa (e, por conseguinte, na improvisação que lhe dá mais
corpo) não ó tanto o efeito dc realidade ou dc verdade que aí se ex­
prime, mãsluntcs a estética do risco: risco dc falhar, risco dc ficar
parado, risco dc dizer ou dc fazer o que c proibido. Sucede então que
este risco é aumentado pelos cfcitos-dircctos, como justamente a im­
provisação. Na improvisação, os cxccutantcs de uma qualquer/w^br-
mance pcrdcnfJcontrolo da sua cxactidão c precisão, estão suspensos
no fluxo menos definido e distinto. Há quem consiga jogar cõm seme­
lhantes efeitos. Por exemplo, toda a unanimemente aclamada trans­
missão Que//: beiia aoae. de Renzo Arborc, funcionava produzindo
imprecisões e valorizando-as como jogo, divertimento e prazer. Em
particular, o efeito mais conspícuo era o do caráctcr «errático» do dis­
curso dos protagonistas, aparentemente sempre à busca de um tema
(com o ponto central da discussão frívola entre Catalano, Frassica e
companheiros).
O desaparecimento da diferença, da saliência c da distinção não
é, pois, só um momento relativo ã cultura de massa (onde, porem, ele
é importantíssimo). Também nas artes assistimos a algo do gênero.
Sc, por exemplo, encararmos algumas novas gerações de pintores,
descobrimos que em certos casos o regresso ao cavalete é também
acompanhado por um abandono voluntário e explícito da precisão ex­
pressiva. Grupos como o que foi baptizado por Renato Barilli de os
«nuovi-nuovi» tendem para uma refiguração nai?*, que no entanto não
é ingênua, mas antes busca a imprecisão aaijfcomo efeito culto. Entre
os chamados artistas citacionistas há alguns, como Cario Maria Maria-

(") René Thom. «I Contomi in Pittura», /lZ/àbeía, 44, 1981.


('") Jordi Prat, Nora Rixxa, Patrizia Violi e Mauro Wolf, «La Ripresa Di-
Tetta», Dari per /a veri/ica dei prag/YMWH íras/Hersi, 52,1954.

77S
ni, que, embora trabalhando de maneira neociássica, «cmbrutcccm» a
seu pintura para criar um efeito dc imprecisão provocatória. Nos Es­
tados Unidos, em seguida, apareceram os chamados «bad painters»,
artistas da incúria ou da «dump art», que, por exemplo, em Jan Bo-
rofsky, David Saite ou Juiian Schnabci, repetem voluntariamente, até
ao excesso, os materiais da po/r arr, do expressionismo, do hipcr-rca-
lismo, e assim por diante. Mas à mesma origem se podem fazer re­
montar, sempre na America os «graffitistas»: nas suas realizações am­
bientais (metropolitano, passeios, locais públicos), existe quase uma
ideia de «pintura cm directo» e, portanto, rápida, veloz, imprecisa e ar­
riscada^).
Idêntico fenômeno domina na literatura. Se abordarmos a mais jo­
vem geração de romancistas italianos, por exemplo, encontramos um
gosto explícito pelo quase linguístico, com o efeito dc fazer nascer um
não-sci-quê literário. É exemplar o caso dc Busi, cuja Vim smn&MYÍ tíi
um víwidorc provw.sdrio Je coí/ants é revigorada por erros dc gramá­
tica e defeitos sintácticos. São escolhas expressivas que noutros auto­
res se orientam, pelo contrário, para a ironia como no uso de fraseolo­
gia juvenil dc Enrico Palandri e Picr Vittorio Tondelli. No âmbito da
poesia, acontece, pois, o mesmo, por exemplo, na chamada «poesia
selvagem» praticada por jovens autores em afinidade talvez com o
mesmo efeito sulfúrico que acontece na música com os grupos rocA,
levados à imprecisão musical c também à linguística. O grupo dos
Skiantos é talvez o mais típico, mas poder-se-ia citar o belíssimo
exemplo dos napolitanos Shampoo, que conseguiram realizar em na­
politano dois discos dc canções dos Beatles repetindo «mais ou me­
nos» a dicção do texto inglês, c assim com aquela «bcatlcsidade» um
nadinha definível da sua música dos anos 60.
Sempre no âmbito literário — e com resultados muitas vezes ex­
celente — , podem relacionar-se não já com a pesquisa da imprecisão,
mas com a realização do não-sci-quê, certas experiências dc tradução
teoricamente intraduzíveis. Estou a pensar nos Exercises & Aty/e, de
Maymond Qucncau, na versão italiana dc Umberto Eco("). Aqui, ne­
nhuma precisão era possível, c o tradutor teve antes de se aproximar
do efeito de analogia, refazendo os seus pessoais exercícios dc estilo
cm italiano. Algum exemplo antigo e recente pode aproximar-sc do

(") Para um panorama sobre a arte contemporânea, cf. Renato Barilli,


? /tr/cCcvUcfnpwwMM, FcltrincHi, Milão, 1984.
('") Raymond Qucncau, Esercizt <%.m/c, Einaudi, Turim, 1984.

779
empreendimento de Eco. Antigo: a tradução de C/oc%wc?% Orwtge, de
Anthony B urgcss('l, criador de uma gíria irrepetívei cm itaiiano que
forçou à recriação de termos novos para a edição da Einaudi. Recente:
o «iouco» empreendimento da tradução do Firmegan',? iVaAc. de Ja­
mes Joycc, por parte de Luigi Schcnoni(^), necessariamente transfor­
mado numa outra obra cm itaiiano, numa obra autônoma, visto que o
interesse do originai reside justamente no dciírio inventivo da iíngua,
não transponívei para outro idioma. Em definitivo, todos os exempios
referidos não consistem justamente cm «traduções» (produção de qua-
se-aná!ogos iinguísticos), mas antes cm recriações de um espírito e de
uma aura: do não-sei-que do artista.

4. Vaiores negativos:
as iinguagens da aproximação e a sua ironia
— '*^"**\
Dizia eu antes que a imprecisãojtstá sobretudo presente nos pro-
dutos das comunicaçõciTdc massa. O que c óbvio: só a imprecisão
consegue dãFlTúma mensagem que parece necessariamente artificiai
o caracter quotidiano da «natureza». Conceito este, mais uma vez,
mancirista e barroco. Batdcsar Castigiione chamava-o, no Corh-.sãa.
«sprezzatura» (aitivez desdenhosa); Vasari chamava-ihc «naturaiida-
dc», no VratarTo t7a Fí/Mara,* e Torquato Accetto dava-ihc o nome de
«dissimuiação honesta» no iivrinho homônimo de vida de cortc(^). E
também verdade, porem, que a imprecisão resuitante da iinguagem
dos meios de comunicação se pode transformar num uso de massa,
sem quaiquer função estática, mas só como caracter sociai. Eis um
facto que se difundiu no nosso país (mas creio que também nos países
angio-saxões e na França) nos úitimos anos com o puiuiar das rádios
privadas. Efcctivamcntc, hoje, uma ncoiíngua irrompe pcia Itáiia. Pe-
ias características que iremos ver agora, proponho que se baptize com
o nome de «esquaiores», termo que descreve aiguns dos seus traços
essenciais. 1 : O facto de ser uma iíngua cspcciai, como as gírias: o
«psicanaics», o «burocratcs», e assim por diante. 2 : O facto de perma­
necer, no entanto, coincidente com o idioma nacionai. De facto, o es-

(") Anthony Burgess, f/n a ra teia a ara/ageria, Einaudi, Turim, 1972.


(") James Joyce, FiwMgan'^ Wa%e. Mondadori, Miião, 1982.
(") Torquato Accetto. D e//a di&sima/azíaae anfíta, Costa e Nolan, Gêno­
va, 1984.

730
qualorôs não cunha palavras novas e de uso circunscrito, mas toma an­
tes genéricas e imprecisas as da comunicação normal; mas o csqualo-
rês está mais em uso cm alguns ambientes do que noutros.
O csqualorês é um somatório de porções da lfngua, mas sem qual­
quer caracter secreto ou especial, e antes com a tendência para a proli­
feração cm todos os outros âmbitos de uso. Vejamos um mapa das
suas áreas internas. A mais evidente zona saqueada é a dos represen­
tantes do comércio. Mas não só de modo directo: antes através da me­
diação das inumeráveis e cansativas antenas televisivas. A palavra-
emblcma é o objectivo vãiião. com apostos superlativos (extre/namen-
tc vãiião). Não é usada para definir um bilhete novo de comboio.
Adopta-se, pelo contrário, para significar a qualidade de uma obra de
arte ou de um objccto de ãesign, ou de um investimento financeiro, ou
de um projecto arquitcctónico. À mesma família pertence o adjectivo
particaiar (superlativo: extrema/Mente particMiar). Um objecto parti­
cular é um objecto extremamente válido, mas que poderia não agradar
a todos porque tem uma forma insólita. O que, em contrapartida, re­
colhe a universalidade de favor é vcrãaãcira/ncntc notãvei. De facto,
responãe a todas as exigências. O que responde às exigências, sem ser
notável, rcvclar-sc-á apenas correcto. Recordarei ainda entre as pala­
vras da neolíngua o verbo acpMÍ.sire (adquirir), que surge em vez de
«aquistarc» (obter), e, por extensão, no lugar de «prendere», «ottene-
re», «conquistare», «comprare» (tomar, obter, conquistar, comprar), e
o substantivo proposta, que se reduziu à categoria da simples «oferta»
não necessariamente comercial, mas ainda comunicativa (um quadro
dc autor «propõe» um valor artístico). É de notar, com origem ainda
nas antenas televisivas, também o hábito de alongar as frases com inú­
teis concctivos, que deriva da necessidade da transmissão directa ou
tia transmissão diferida dc não mostrar pausas no discurso, um pouco
como na oralidade do vendedor ambulante. Daí as perífrases como
m/neies <7ac são os, a/ga/na coisa ãe, aigné/n, ant certo tipo ãe. Uma
pequena área de palavras procede da gíria da restauração, sobretudo
nas sinestesias retomadas pela publicidade («o gosto mórbido», «o
perfume flautcado»), ou no uso de certos sufixos criados para o efeito.
A linguagem burocrática, em seguida, faz a sua parte. Os objectivos
.ao fundamentais: propositivo é uma qualquer mensagem cheia de
conceitos; negativo e positivo são os dois pólos de qualquer juízo de
valor. Da política provêm o hábito de falar de sitoação e ainda de
/'MÓ/ica opinião (invertendo os termos). Os meios dc comunicação tor­
nam-se cM/tMra ãi/asa,* as massas, o vasto ptiMco. O consumo é cha-
mado do !ado católico cuinrrrr e do lado laico se/no
cowMW. Uma última área de levantamento c recolha 6, por fim, a das
ciências humanas. A partir da semiótica generalizam-se ítgno c ?ncn-
.ragefM. sem qualquer conteúdo técnico; da psicologia provem exfrin-
jecar, iníri.secar, rcrriizor-.se, da sociologia emergem rfe^/rMtoJore.s e o
rfesvianíc (tudo o que c apenas diverso do costumado). Uma grande
fortuna teve o termo-pc-de-cabra JM/eitox, diversamente scmiótico, fi­
losófico, psicanalítico e, ate mesmo, um pouco político.
Detenhamo-nos aqui com os exemplos do vocabulário csqualorês,
cada um poderá cnriquccc-lo com a própria experiência. O corpres,
efcctivamcnte, basta-nos para definir duas das suas qualidades. Por
um lado, c a falta d e propriedade: os termos não correspondem às afir­
mações específicas c tornam-se genéricos. Por outro, existe porém
uma vogo aura de sofisticação. Mas então torna-se claro, no conflito
entre dot^frãçõs. õ critério do csqualorês. Ponto de partida, toma for­
ma uma nova classe social, que já não se identifica pelo grupo como
toda a «classe» que se respeite, mas pelo tipo de consumo, c nos con­
sumos específicos e determinados de cultura. E é uma classe totalmen­
te modelada pela comunicação de massa. Mas a nova classe, para pro­
duzir identidade (isto é, diferença), não usa termos comuns (ou seja,
impróprios). Usa um léxico que se apresenta como «mais elevado»,
mas só como aspecto exterior, porque, cm seguida, uma vez que a
identidade provém justamente dos roo.s.s roerão, se deve reconstituir o
caráctcr genérico que o toma de amplo uso.
Se o quase é o caráctcr da linguagem até aqui definido rndepen-
dcntcmcntc por uma sua função estética, é também verdade que este
mesmo caráctcr se pode tornar ponto de partida para operações criati­
vas. Também a partir deste ponto de vista se poderão então reler as
operações primeiramente registadas por Woody Allcn ou pelo nosso
Roberto Benigni. Mais ainda, na Itália, a ironia acerca do csqualorês
tornou-se um gênero de espectáculo. Vejamos. Cario Verdone c Nanni
Moretti apropriaram-se dos traços da gíria dos jovens de 77. Nino
Frassica retoma com justeza as tentativas de construção de língua
«ilustre» nos discursos populares. Os vários cômicos de Drive in resti-
tucm as deformações do vernáculo juvenil, da circunlocução política,
da dcsscmantificação publicitária. O mundo dos meios de comunica­
ção produz deficiências, c consegue logo a seguir delas fruir.
5. Valores negativos: o «quase nada»

Num divertido ensaio de Cario Ossoia, L7ogá? do /Vodaf"), inven-


tariam-se e comentam-se com finura os muitos tratadistas que, só na
Itália, se ocuparam da exaltação do nada, durante o século XVII. Exal­
tação do Nada, bem entendido, que só parcialmcntc se pode referir a
uma matriz filosófica niilista, porque o outro fundamento seu é o exer­
cício de estilo, a retórica lúdica, a invenção sobre o tema do zero. O
Nada dos Luigi Manzini, Marin Da!l'Angelo, Giuscppe Castiglione,
Antonio Rocco vai / w i pa&H* com a filosofia da va/utas vaaáaíM?H,
sem dúvida; mas também com os pensamentos de Pascal e com as
descobertas de Torricclli e com o experimentalismo das academias
dos «engenhos».
Os regressos do Nada sucederam-se na história do pensamento tan­
to filosófico como estético, também nos séculos posteriores. E sempre
mantiveram o seu caráctcr barroco. Basta pensar, como justamente ob­
serva sempre Ossoia, no capitão Nemo de Julcs Vcme. E hoje parece
repetir-se um novo apogeu não tanto do Nada, quanto da sua versão
barroca mais sofistica, isto é, o tema da chamada «annihilatio». Al­
guns exemplos, embora atinentes apenas às artes figurativas, são-nos
proporcionados por Christine Buci-Glucksmann em La <7a
Em particular, ao citar dois artistas alemães, Arnult Rciner e
Ansclm Kicfcr, que nos seus quadros neo-expressionistas praticam
amplamcnte «a redução ao nada» das figuras, mediante anulação,
cobertura c ustão. Não se trata propriamente da eliminação da figura
em favor do abstracto, como noutros momentos do experimentalismo
europeu, mas de um verdadeiro c genuíno trabalho de aniquilamento:
as figuras são rfM/igaraJaj. Na Itália, algo de semelhante tinha talvez
produzido Emilio Isgrò com as suas anulações: se bem que, no seu
caso, a anulação se tornava por sua vez uma nova figura, embora de
tipo diverso. Eventualmcntc, certos retornos do Nada podem rccncon-
trar-se em alguns filmes de vanguarda dos primeiros anos 70, quando
a câmara se colocava sem operador nos mais diversos lugares c as
suas tomadas de imagem eram puramente cegas, porque «nada» ou
«quase nada» aí acontecia. E, rcccntemcnte, algo de semelhante acon­
tece na literatura c sempre no cinema. Os chamados «minimalistas»

(^") Cario Ossoia, «Elogio dcl Nulla», Gigliola Nocera (comp. dc). 7/
.S'eg?K7 Baracco, Bulzoni, Roma, 1983.
(^') Christine Buci-Gluksmann, La jõ /ie <7a voir, cit.
americanos, rapidamente imitados também na Europa, procedem jus­
tamente pela anulação do texto narrativo, mas sem o substituírem peta
experimentação, como aconteceu nos anos 50-60. E atendo-nos à críti­
ca idêntico aspecto encontramos, por exemplo, num fitme como ReHy
E/àe. de Beincix, onde praticamente não existe sucessão, ou ela 6 re­
duzida ao mínimo.
Outra manifestação do aniquilamento pode talvez ser a «pro­
dução)) de silencio. Muitos músicos, a partir dos anos 70 (de Cage a
Cardini), levaram a cabo provocações silenciosas. Mas também neste
caso se tratava de um conceito talvez diferente. Tratava-se aí de valo­
rizar a crije da /mgMügem mm/ca/. N3o era uma verdadeira e genuína
cxaltaçao do Nada. O que, pelo contrário, parece caracterizar hoje a
produção musical (por exemplo, ligeira) é antes o Nada como som. O
indistinto, o ruidoso sem harmonia. O que equivale, n3o a produzir
graduações, mas justamente n3o-distinçao.
É o Nada como n3o definido, ent3o, uma outra possível caracterís­
tica neobarroca? Uma confirmação parece chegar-nos de Jcan Baudril-
lard e Jean-François Lyotard. Baudrillard, cm insiste muito
na figura do deserto como emblema da America, c n3o foi em v3o que
o mesmo Baudrillard já há algum tempo animou um número especial
da revista sobre o mesmo tema. Baudrillard refere-se ainda,
no âmbito da sexualidade, ao facto de que, após tantos movimentos de
libertação (heterossexual, feminista, homossexual), se tenha hoje che­
gado à «indiferença sexuab). Por outro lado. Jean-François Lyotard
organizou uma completa exposição no Bcaubourg sobre o tema Lei
ifnmaterieKX. Importa sublinhar que a época do computador trouxe
consigo a eliminação da própria matéria da arte. Trouxe a estética do
Nada(^).

())) Jean-François Lyotard. Le.s Mwnateriettx. Centre Pompidou. Paris.


1984; Jean Baudrillard, Paris, 1986.

7S4
X

DISTORÇÃO E PERVERSÃO

t . Uma geometria não euclidiana da cultura

Nos capítulos precedentes, quis insistir na rotulação de várias ra­


mificações de neobarroco com categorias tomadas de empréstimo das
disciplinas científicas. Mais ainda, das disciplinas científicas que as­
sistiram a uma mais maciça intervenção daquela que os epistemólogos
chamam hoje a «nova ciência». Este capítulo, pelo contrário, utiliza
uma quantidade significativa de substantivas não necessariamente
científicos. Há uma razão para isso. Prccedcntemente, quis de facto
acentuar a semelhança formal-conccptual que existe entre o estilo de
pensamento da «nova ciência» e muitos produtos da estética, na era
das comunicações de massa. No presente capítulo, quero proporcionar
a mim o prazer da operação inversa: ver se tanto os objcctos da «nova
ciência» como os analisados pelas ciências humanas podem ou não
tdcntificar-se mediante um procedimento comum. Que é que, de facto,
observámos nas páginas anteriores? Pelo menos dois grandes prin­
cípios. O primeiro: a «nova ciência» convida-nos a não produzir mo­
delos exageradamente unificados e simplificados. O universo, tanto o
físico como o humano, não é um múltiplo reduzível ao unç^Q univer­
so c um múltiplo fragmentário, em que muitos modelos se confrontam
e competem entre si. Também o mundo da cultura «criativa» está a
suscitar o mesmo fenômeno. São, porém, ainda poucos os cultores de

7&S
ciências humanas que perccpci.naram a mutaçao. O segundo, a maio­
ria dos fenômenos do universo não 6 atribuível a modelos estáveis,
mas antes à instabiiidade derivada do facto de que são mais numero­
sos os sistemas compicxos do que os hncrares. Mas também aqui: a
cuitura «criativa» está a oferecer-nos neste breve momento de século o
Pm de todo o modelo normativo c a produção de objcctos mstaveis,
complexos pluridimcnsionais. As displinas humamsticas, porém, pou-
co cücrn nu conm n tül respeito.
Em conclusão, estamos a assistir a uma fractura que tem algo de
paradoxal. Por um lado, a nova ciência e o cstctismo dos produtos eu -
L a i s mostram-nos todas as facetas da complexidade. Por outro pelo
contrário, as ciências humanas revelam-se justamente pobres c atrasa­
das na interpretação dos fenômenos complexos. Por um lado, mais
uma ve/., a «nova ciência» c a estética surgem complctamcnte ocupa­
das com problemas da nwis/bwMçdo e da da/açao das coisas, com o
coralário de se ocupar da nature/a da mudança e de ^ ? n ^ a s u a
origem cof#íM d/. Por outro, as ciências humanas ou nao dao cfcctiva-
mente pela questão, ou ao advertirem-na fornecem respostas ultrapas­
sadas, como aquelas que se referem ao velho idealismo, ao velho
cionalismo, à velha recusa de modelos rigorosos. Repito: " ^ . ^ 0
que não significa ám c.s ou Por outras palavras: en^e pou­
cas excepções (que muitas vezes tentei ilustrar nas entrel.nhasj as
ciências da cultura permaneceram numa fase comparável a ^ 'c a c h c
sica isto é, ancoradas numa visão «euclidiana» da própria cultura. E
no entanto, cm paralelo, está a nascer uma geometria nao-euclidiana
do saber Os termos utilizados como titulo dos capítulos precedentes
são talvez puras metáforas. Mas tenho a ambição de pensar que são
adequados para exemplificar a situação.
Para além das metáforas, porém, será possível indicar pelo monos
um caráctcr que unifique as produções intelectuais (cientificas c estéti­
cas) que, como dissemos, constituem a msígma da complexidade, da
mudança e da instabilidade? Mencionarei apenas um: a busca de uma
diferente conformação do espaça caítara/. Daí cs termos do titulo des­
te capítulo: distorção c perversão. Distorção, porque o espaço de re­
presentação da cultura de hoje parece justamente estar sujeito a forças
que o flectem, o dobram; o curvam e tratam como se fora um espaço
elástico. Perversão, porque a ordem das coisas (nos modelos cienüli-
cos) e a ordem dos discursos (nas produções intelectuais) não são ba­
nalmente desordenados, mas tornados perversos. Não derrubados,
opostos, invertidos: transformados na sua ordem de um modo que as
lógicas precedentes não os conseguem reconhecer sequer como «outro
diferente de si». Encontrar-lhes uma lógica pode ser o novo desafio à
ciência da cultura.

2. A citação «neobarroca»

Para ilustrar de modo concreto o conceito de distorção e perversão,


recorrerei agora a um exemplo extremamente delimitado. Como se sa­
be, muitos exegetas do «pós-moderno» sublinharam que um dos seus
principais modos de expressão é a citação^). Há algo de verdade nis­
to. É verdade, por exemplo, que a estatística das citações apresenta va­
lores em aumento. Mas a mim parece-me que a observação é absoluta­
mente banal. A citação é um modo tradicional de construir um texto,
que existe em todas as épocas e estilos. E a quantidade de citações não
c um bom critério discriminante. Toda a época clássica, por exemplo,
sobreabunda cm citações, visto que se baseia cm princípios de autori­
dade. Importaria então saber antes é <? ãpo e a natureza da citação
actuai. Esta revela-se um elemento relevante, de facto, só e somente se
difere cm alguns traços da citação do passado.
Vamos agora, muito rapidamente, examinar dois casos em que o
papel da citações surge como fundamental, tanto de um ponto dc vista
quantitativo como (pelo menos intuitivamente) qualitativo. Os exem­
plos escolhidos são — mais uma vez ainda! — O JVotne dtt de
Umbcrto Eco, c Os 5a/teaãores ãtt <4rca ferãidu. dc Stevcn Spielberg.
Todos sabem, com reconhecimento dos autores e com a demonstração
dos críticos, que o livro e o filme são literalmcnte amontoados dc cita­
ções. Eco sustenta que no romance não há uma só palavra sua. Spicl-
berg encheu o filme com cerca dc 350 referencias a outras obras, cine­
matográficas ou não.
Existe um primeiro elemento problemático, porém, na abordagem
dos dois textos. Enquanto no literário mais claramente se vê que a coi­
sa é uma citação (pelo menos na forma mais simples ela é introduzida
por comas, ou seja, para indicação dc uma fonte diversa dc origem),
num texto visivo que coisa pode corresponder às aspas ou aos seus
análogos? A questão exige então um parênteses teórico, que empregue

(') Basta ver o longuíssimo debate cm /lyàbcM a partir de 1983. em que.


ao lado da dimensão mais genuinamente filosófica, se via com muita nitidez
este tipo dc interpretação, por parte dos críticos de arte e da literatura.
todavia também as comas iitcrárias, enquanto, por extensão, podere­
mos também interrogar-nos se a própria citação é contradistinguida
por um indicador extratcxtual (que sucede então às citações implíci­
tas?) c se é reconhecível somente por meio de um saber enciclopédico
do leitor (por que é que muitas vezes compreendemos que há citação
mesmo na total ignorância do que é citado?). Em suma, poderemos di­
zer que, ainda antes da sua ver&rcíc, a citação é tr/n e/etto Jo texto. A
demonstração é simples: por vezes, pomos aspas, mesmo quando não
citamos, mas, por exemplo, escrevemos uma frase imprópria ou em
virtude do significado ambíguo, ou pelo belo efeito. Em suma, usamos
o critério da citação porque ttos citamos para futura memória. Antes
de desenvolver então uma tipologia da citação, será bom esclarecer al­
guns elementos sobre a sua natureza textual.
A primeira descrição banal de uma citação é que ela consiste na in­
serção de uma parte do texto Y num texto X e o texto X assinala tal
inserçãof). Como? Justamente, pondo entre aspas o texto Y; ou então
mencionando o nome do seu autor. Em ambos os casos, trata-se de
uma operação que tem lugar a nível de enunciação. De facto, nos dois
casos, aparece um simulacro comunicativo que não coincide com o
enunciado Y. Obteremos assim um esquema como o seguinte:

—------------------- — -------------------- , ------------------- — --------------------- 1


Enunciado Enunciação Enunciado Enunctação

! 1 2__________________ 2

A relação entre X e Y constrói-se assim:

a. Pondo cm relação os dois enunciados mediante a constru­


ção de uma isotopia;
í?. Pondo cm re/evo o enunciado 2;

(i) Sobre o tema da citação visiva não existe praticamente nada, a não ser
as diversas reflexões de Renato Barilli sobre Lichtenstein «citacionista» em
/n/orma/e, oggetio, comportamento, Feltrinelli, Milão, 1976; sobre o modelo
da «ausência* como prática da retomada do passado em Fra pre.scnza c assew-
za, Bompiani, Milão. 1974; e sobre a citação literária í'a zto n e e festast, Fel-
trineli, Milão, 1967.
P) Cf. sobre o mesmo tema o esquema de Antoine Compagnon, op. ctt.,
que se serve, no entanto, de um procedimento complicado e teoricamente de­
masiado «misto* entre semiótica greimasiana e semiótica pcirciana.
c. Fazendo aparecer a instância da enunciação no texto X con­
tinente;
d. Assinalando a aiteridade do enunciado 2;
e. Ou então assinatando a aiteridade da enunciação 2;
/ . Ou então assinatando a aiteridade de todo o sistema Y.

Retomemos o esquema. A rciação entre os dois textos c construída


por meio de umá isotopiadlsto significa que, de um ponto de vista se­
mântico, os donrtextos se devem «harmonizar». Ou seja: a citação
será sempre «pcrspícua» em relação ao enunciado cm que se insere,
importa observar que, embora seja necessário a criação de algum nívei
isotópico cm comum entre os dois enunciados sobre o perfii semân­
tico, isso acontece inversamente do ponto de vista da forma da ex­
pressão. Aqui, efcctivamente, para o reconhecimento da citação, é
quase-neccssário o conflito de isotopias formais (mas estamos já no
ponto d ). A segunda passagem significa que no texto X, que contem
a citação, se porá cm acção uma(ew;dráyagè. isto é, subiinhar-se-á o
aparecimento do sujeito da enunciãçaõ. Âs aspas, de facto, embora
assinaiem uma «voz» de outrem inserida no texto, impiicam um «eu-
-aqui-agora» que opõe. Obviamente, também pode dar-se um caso
mais compiicado no quai a citação é pronunciada por uma personagem
do texto X e então teremos uma enunciação enunciada. O princípio
permanece de algum modo anáiogo. A quarta passagem tem anaiogias
com a segunda. De facto, trata-se de uma indicação da diferença de
enunciado, que pode rcaiizar-se mediante o conflito de isotopias da
expressão (o relevo formai), ou seja, que se ieva a cabo assinaiando
simpiesmente o enunciado 2 como outro cm reiação ao enunciado 1
(uma citação sem aspas e não precisa, mas retomada). Em alternativa,
ou contemporaneamcnte, assinalar-se-á a autoridade da enunciação 2
(por exempio, quando se cita o nome do autor do texto citado, ou ain­
da quando as aspas mostram a sua «voz»). A aiteridade pode natural-
mente ocorrer em ambos os planos do enunciado e da enunciação.
isto, muito rudemente, para tudo o que concerne à citação «nor-
mai». Mas o mecanismo não está ainda esgotado. Há ainda, de facto,
outros dois princípios necessários ao funcionamento da citação e são
ambos princípios pragmáticos, isto é, rciação entre texto c leitor implí­
cito no texto. O primeiro é relativo justamente ao aspecto de rcleva-
mento do enunciado citado. Ao lado do relevo semântico, cnunciativo,
expressivo, tem lugar efcctivamente um tratamento persuasivo do lei­
tor que consiste cm fazer-lhe crer que a citação c verdadeira (o que
acontece, com a inserção de referencias bibiiográiicas com o objecttvo
de fornecer etementos de controio), c cm torná-la reíew/de (de outro
modo por que é que seria preciso citar alguém /). Esta segunda carac­
terística reveste uma grande importância justamente onde faltam algu-
mas das regras textuais registadas antes, isto c, quando a citação está
ocuita. A relevância de uma inserção pode, de facto, por si só produzir
o efeito de citação mesmo quando eia não foi indicada.
A averiguação tem iugar expiorando o enunciado mediante as cha­
madas wo&r/ídndcj epijtcnacíMC). Tomemos a estrutura que mostra a
sua articulação:
verdadeiro
)^ ^ aparecer* *]

segredo

A citação explora-se a partir do alto do quadrado, ou, quando mui­


to, do lado esquerdo. Uma citação «normal» não será por definição
nem falsa nem mentirosa. No entanto, deve notar-se que a linguagem
prevê esta possibilidade, à qual regressaremos mais à frente.
Pelo contrário, a relevância conceme a um outro quadrado, que ja
ficámos a conhecer no capítulo relativo ao pormenor e ao fragmento.
É o quadrado da singularidade:

individual

normal

não regular não singular


— V—
indefinido

(") As modalidades cpistímicas são, segundo Algirdas J. Greimas e Jo


seph Courtes. D icn.r^m re rm.Miné de U ",e.rie da 'angfcge
Hachcuc, Paris. 1979, a expressão e expansão da catcgona moda! do crer c dt
sn^er ser, que dão lugar à crença ou à averiguação.

790
E tambcm aqui a citação sc explora desde a parte alta do quadrado,
ou da sua polaridade esquerda, ou da parte esquerda (isto no maior nú­
mero das ocasiões). Note-se, no entanto, que a linguagem também
prevê o jogo oposto, como nas modalidades cpistémicas.
Mas venhamos agora àquela que chamei «citação ncobarroca», e
aos dois casos que prometi examinar. Limitemo-nos, por brevidade, à
introdução do livro de Eco. Rccordar-sc-á que ela finge a descoberta
de um livro «de um tal abade Vallct», por sua vez traduzido a partir de
uma tradução latina scisccntista de J. Mabillon, que seria o copista do
manuscrito de Adso de Melk. Ela finge ainda a perda do livro, de tal
modo que apenas restaria a tradução cm italiano do autor escrita cm
cademos da Pappeterie Gibert. E apesar de uma escrupulosa investiga­
ção não se encontram nem outras cópias do livro de Vallct, nem a edi­
ção de Mabillon que continha também o manuscrito, Além disso, um
livro cruzado de Milo Temesvar contem citações de Adso atribuídas
porém ao Padre Kirchcr, o conhecido fantasioso jesuíta de Seiscentos.
Por fim, quanto ao estilo a adoptar para a publicação, o autor declara a
absoluta incerteza a propósito da autenticidade da fonte, que aparece
complctamcntc contaminada por remodelações, pela cultura de Adso,
pelas manipulações cm fontes cvcntualmcnte desenvolvidas a partir de
anteriores transcritorcs e tradutores. Por outras palavras: temos aqui
uma das chaves mais poderosas (c estranhamente menos analisadas
pela crítica) do romance «da rosa». Esta chave é a dúvida sobre a
autenticidade ou a contrafacção da verdade. A obra do escritor é, efec-
tivamente, «escrever por puro amor da escrita», «simples gosto fabu-
latório», que suspende — /M 6Mvá7a — toda a distinção entre o verda­
deiro e o falso. «Em conclusão, estou cheio de duvidas», termina Eco.
E pouco antes tinha avançado a hipótese (naturalmcntc bem apoiada
em citações não explicitadas): «Há momentos mágicos [...] em que
têm lugar visões de pessoas conhecidas no passado [.. ] há igualmcntc
visões de livros ainda não escritos.»^) A citação de Eco é. de facto,
sempre uma citação ambígua. Constrói efeitos de verdade, mas nega o
seu controlo. Ou então, constrói efeitos de falsificação, mas leva a ve-
riticá-los como falsos. Ou, por fim, cita verdadeiramente, mas elimi­
nando os vestígios do citado. Tudo sc torna fortemente m&cáííve/.
Para cada bloco do enunciado (também na continuação do romance)
ent que sc de eleito de citação, esta não será investida por valores dos
nossos quadrados precedentes, nem pelos «normais» nem pelos inver-

(') Umberto Eco. /t MwM? Roxa, Bompiani, Milão. 1981, p. 12.

797
sos A Citação será, pelo contrário, ou t o r c i d a epervern-
á , O caso mais clamoroso 6 talvez o episódio cm que Cudhcrmc &,
Baskcrvillc resolve o pequeno enigma do dcsaparcctmcnto de u< .
valo preto na proximidade da Abadia. O todo surge como um normal
e x e u L narrativo. E, no entanto, trata-se da Citação da novela Zar/rg.
de Voltairc, cm que o cavalo c branco. E não so: trata-se tambem da
autocitação de um ensaio de Eco sobre esta mesma novela a propósito
da pesquisa dos indíciosC). Mas o todo aparece condimentado de m-
dccibilidadc, de ucronização. de suspensão da etiqueta de propriedade

^ ^ Arca f e r i d a depara-se com fenômenos aná­


logos Como já disse, ao longo de todo o filme podem contar-sc pelo
menos 350 excertos ürados de modo diverso de outros textos. Algu
mas vezes, são casos quase explícitos (como no .m e o a proposnode
A, M inai da Rei Saiamáa). Noutros lados, bastante menos. Mas c
ouasc todas as imagens temos a sensação, c ate o efeito da citação.
L tam en te onde esta não existe (como no duelo entre Ind.ana Jones c
f m ^ m a n o negro com cimitarra) Alguns — r ^
como citações para futura .ncmór.a: de facto, aquele duelo será reto
m ^ o em L J . a Vancx c a 7 crnpia Aía/dàa. E prat.camente nunca se
^m uma possibilidade directa de decidir sobre o quem, . cmno e o
ouando dJuma porção textual que remete para fora do texto. A chave
da poética da autenticidade pervertida encontramo-la porém, de modo
cxt^nplar, numa cena de E. 7'. Num certo ponto dos acontcc.mcnms,
as crianças levam para fora de casa o extraterrestre e escolhem o mo­
mento tíi festa de Hallowcn, quando todos estão mascarados de mons-
S L s E- T. Vê uma criança travestida de Yoda (a personagem de
Gnerra E ^ /<i.t). To.na-o por vcrdadc,ro e p ^ ip .tm se para
abraçar O caso inverso encontra-se sempre no mesmo filme. E. 1. cs
condcu-sc no armário das bonecas de pelúcia das cr.anças. A mae do
rapazes abre o armário, .nas não reconhece E. T. como ser v.vo. Tm _
J dc dois casos complementares: no primeiro, joga-se com a rclaçao
c ^ e verdadeiro e falso por meio da citação do fi me < < p n - , e, no
segundo joga-se com a relação entre falso c vcrdade.ro (E. T. c to .
do por falso) por meio tia citação dos Marretas ou de outros bonecos
de cinema.

(') Umbert. Eco. «11 canc c il cavallo; un testo v isiv . e alcuni equiv.ci
verbali». Vcrsüs', 25, 1980.

792
3. Distopias do passado

Os dois exemplos prccedenlc^introduzcm-nos, dc resto, numa im-


portantíssim^dimensao da citação)*, ou seja, ser instrutnento para uma
rcscrita do passado. Com efeito, rjualquer época rescrevc o próprio,
uma vez, tal como dizia Himmclmann, falar do passado significa sem­
pre fazer «utopia do p assad o»0. Em suma, toda a cpoca refere o pas­
sado ao interior tia própria cultura e, portanto, reformula-o num siste­
ma do saber cm que cada conhecimento convive contcmporancamcntc
com todos os outros. N o entanto, há muitos modos dc a nós fazer vol­
ver o passado: o histórico que rcconstrói, o crítico que interpreta, o di­
vulgador que explica, c todas as coisas ao mesmo tempo. Mas o artista
faz mais alguma coisa: «renova» o passado. O que significa que não o
reproduz, mas antes, tirando dele como de um depósito formas c con­
teúdos esparsos, o toma novamente ambíguo, denso, opaco, relacio­
nando os seus aspectos c significados com a modernidade
A esta operação podemos dar-lhe o nome dc(«dcslocamcntõ»T^
Consiste ela cm atribuir ao que foi desvelado do passado um slgnifíca-
do a partir do presente, ou cm proporcionar ao presente um significado
a partir do que foi desvelado no passado. A citação tem um papel cm
ambas as operações. Mediante a citação pode, cfcctivamcntc, autori-
/ar-sc uma interpretação do presente (o passado tem autoridade), ou
pode tazer-se o inverso (valorizando o presente para reformular o pas­
sado). Mas cm ambos os casos podem ter-se resultados diversos. O
primeiro consiste cm usar o deslocamento para cjmMizar ou a ideia
dc passado, ou a ideia dc presente. Por exemplo: posso recorrer ao
passado para mc referir a valores c modelos que mc parecem faltar na
actualidadc; ou então, posso scrvir-mc dc um presente considerado es­
tável para «normalizar» os conhecimentos relativos ao passado (tento
«explicar os seus mistérios»). O segundo, pelo contrário, consiste cm
desestabilizar o passado ou o presente: adopto ousadamente um acha­
do incerto do passado para interpretações anômalas dc hoje; ou então,
utilizo uma teoria improvável contemporânea para uma ideia fantasio­
sa rio passado. Cito ao acaso, utilizando o material respeitante aos
I truscos que nos assediou nas celebrações do antigo povo cm 1 9 8 5 0 .
O uso publicitário dos caracteres ctruscos para desfrutar o «genius lo-

(1 Nikolaus Himmclmann, Cmpin A /pa.nato, Dc Donato, Bari, 1981.


(") Ornar Calabrcsc (comp. dc). «L'Etrusco immaginario», m Franco
ttorsi (comp. dc), FwíM/M A g á /aravc/n, Elccta, Milão, 1985.
ci» na Toscana pode considerar-se um ctcmento forma! que está no !u-
f l oscan-^ ^ ^ estabitizada c rcduztda a
X ter^ tip o O trabatho do historiador pode iguaimente entender-se
estcrcoupo. forma como de conteúdos, porque

da idéia ctrusca da morte pode ser desesutbthzadora a n.vc!

" " Rmómcnos scmdhantcs recorrcn na história da cuhum quc se


........................ . uma sucessão (nãQ^tçhça c não casuat) oç_
^ °
mesmo ainda hoje? Tenho a impressão rlc que o metamsmo se tornou
U i d ó e U r t i d o . par. continuar a asm a nossa terrntn. ogta. O
q U U de descrèse, é.

asststtmus, . b como muitas vezes se repettu — ejus-

Mas não c nó nos meios de comuntcaçao que se dao aco

Não sao Kcuauomstas* no se ^ 1979; c também não

U U : e U U o l o s modernos são antes os qn, frn

(.) tZ u r iz i. C dvesi (conrp. de). ÓWe d / . Milão. 1974.


zem do passado uma isto é, um uso temerário, improvável,
votado à anulação da história, mais do que à sua revalorização. São os
que pervertem os vectores conectivos da história, eliminam as flechas
temporais das conexões (causa-efcito, re-construção, nostalgia). E dc-
dicam-se à mais moderna das tentativas: a conexão improvável, a sin­
taxe meta-histórica, eliminando o valor da crono-logia em favor da
unidade das partes do saber. Mas isto está implícito no próprio meca­
nismo do «deslocamento», que antes evocámos. O «deslocamento»
neobarroco tem o caráctcr da deriva, não já do significado, como que­
rem certos filósofos franceses, mas da história. Os objcctos ncobar-
rocos ou relidos por uma poética ncobarroca adquirem o carácter de
«estar sempre aqui». Onde o «aqui» inclui indistintamente toda a his­
tória, e consiste numa acíMa/â&M/e como concomitância de todos os
tempos e dircctamentc como coexistência até do possível com o efcc-
tivo. O sentido da Jwnçáo torna-se sempre mais subjectivo, como
queria Bcrgson, sobretudo aquele que foi relido por Dclcuze. As dura­
ções da história dependem, efcctivamente, da colocação da contcmpo-
rancidade decidida por um sujeito actual. O que não espanta. A idade
das comunicações de massa ctjoucstc efeito de modo quasc-ncccssá-
rio. Se sc pensar quc(ac;Ma/áia&,.bntcndida em sentido jornalístico,
começou a determinar a total visão do mundo, pode muito bem
aprccndcr-sc como c que toda a história c concebida a partir da sua re­
lação com o eixo de tudo, que c o hoje. Hoje, a rcpcscagcm do passa­
do é valorizada só s c Cxtstc uma sua conexão com o presente. Poderia
por isso dizer-se que a história ou ncnóoM. como querem alguns, ou
anda â deriva cm busca do seu novo significado('°).

SALA CE ESTUOOS

('") Cf-, por exemplo, os artigos do número monográíico «Politique fin­


de sièele», Yravcr.sgy. 33-34, 1985.

793
X!

A QUALQUER UM AGRADA O CLÁSSICO

!. Existe uma «forma do clássico»?

No capítulo dedicado à instabilidade e à metamorfose, defendí que


na nossa cultura se está a delinear um mecanismo de turbulência das
íormas, que é provavelmente responsável por uma mudança de «men­
talidade». Às formas estáveis, ordenadas, regulares c simétricas estão
a substituir-se formas instáveis, desordenadas, irregulares e assimétri­
cas. Tudo isto acontece porque o sistema de valores vigentes é asse­
diado por fenômenos de flutuação, que o desestabilizam. Mas não é
preciso crer que a instabilidade seja a única característica do universo
cultura! contemporâneo. Mais ainda, mesmo na fase de afastamento
do equilíbrio que favorece os processos há pouco assinalados, de pon­
to de vista da quantidade a menor parte do nosso universo cultura! é
antes constituída por subsistemas muito tradicionais, muito estáveis e
muito ordenados. As formas irregulares e as superestáveis estão, pois,
cm competição e as suas manifestações figurativas também se opõem
cm igua! medida. Mas, ao iim e ao cabo, não é esta a característica
umvcrsa! do pensamento? O aparecimento de uma subforma cspecífi-
' ;t nno deve !cvar a pensar que não haja outras a ela antagônicas. Mais
unda, torna-se interessante observar crwM? é que as diversas formas
cm competição se estruturam não só cm si, mas também cm relação
tom as formas «outras». Ao !ongo de todo este volume observámos

797
como é que um hipotético sistema «ncobarroco»» funciona tanto in-
trinsccamcntc como em rctação ao seu póio oposto, o igualmcntc
evcntua) sistema «clássico». Agora, a única conclusão possível é a de
verificar rapidamente se se dá o contrário: uma conformação do «clás­
sico» devida à existência de um universo «ncobarroco».
Especifiquemos agora melhor como se deve entender o termo
«clássico». Não entendo neste caso a simples repetição de figuras da
antiguidade grega ou romana, ou então renascentista, ou ainda sete-
centista. Exactamente como já defenderam Wõlfflin, Fossillon, D Ors,
não se trata de encontrar reaparecimentos iconográficos de objectos de
um passado ideal para se poder falar de «classicismo». Este consiste
antes na realização de certas morfologias subjacentes aos fenômenos
dotados de ordem, estabilidade e simetria. E, como procurei defender
ao longo do livro, no caráctcr de coerência dos respectivos juízos de
valor sobre esses fenômenos. Os vários classicismos jamais são sim­
ples retornos ao passado, como se viu no capítulo precedente. Todo o
classicismo c uma nova forma de ordem, que a antiga eventualmcntc
relê para dela fazer uma componente idealizada da cultura contempo­
rânea. Por isso, todo o classicismo pode ser constituído tanto por figu­
ras que pertencem ao passado de modo directo como por figuras que
aparentemente com ele não têm qualquer relação. Permanece idêntica
apenas a morfologia interna e a estrutura dos juízos de valor ordenada
pela coerência dos termos catcgoriais positivos e negativos. O que é
conforme ao ideal lísico torna-se necessariamente também bom, culó-
rico e belo; o que é disforme toma-se por torça também mau, disforico
e grosseiro. Um sistema «clássico» assim concebido é de modo habi­
tual rigorosamente normativo c prcscritivo. Sistemas anticlássicos ou
barrocos são, pelo contrário, gerados pela rotura das simetrias e pelo
aparecimento de flutuações no interior das várias ordens catcgoriais, c
por isso são muito menos regulados. No caso do nosso «ncobarroco»,
ressaltou directamcntc a oposição rígida com o clássico e a instabilida­
de manifesta-sc como suspensão das categorias.

2. A qualquer um agrada o clássico

Uma ulterior distinção se estabelece entre os termos «clássico» e


«tradicional». Já asseverei que o classicismo não implica necessaria­
mente um regresso ao passado. Muitos, antes de mim, observaram de
resto que todo o bom classicismo evita levantar o problema da história
dos factos cutturaisC). A revalorização do passado (por excmpto, na
Arqueologia) c muitíssimas vezes apoiada por uma idealização, mes­
mo quando o estudioso afirma querer «restituir uma civilização antiga
à compreensão do presente». Em suma, no classicismo, não há neces­
sariamente impuisos conservadores ou nostáigicos, mesmo se, quanto
ao mais, aconteceu que os ciassicismos acabaram por abraçar a recusa
do novo c do moderno em favor de um retorno aos princípios preexis­
tentes. Mas trata-se apenas de consequências. Se o conceito fun­
damentai c o da universaiidade do ciássico, então acontecerá muitas
vezes que se queira sancionar com a ideia de uma sua existência já
transcorrida. Digo isto porque, nos próximos parágrafos, iremos à pro­
cura de clássicos introduzidos na cultura contemporânea, e haverá
mesmo alguém que se poderá espantar de ver simultaneamente anali­
sados objectos de aparência discordante: os Bronzes de Riace c o seu
êxito, o modelo físico de Stallone-Norris-Schwarzcncggcr, as práticas
do «body building». Historicamente, c difícil unificar semelhantes fe­
nômenos. Não é, de facto, demasiado plausível que o corpo de Rambo
derive dos dois bronzes guerreiros, quando para explicar a sua icono­
grafia se têm modelos mais próximos como os diversos Sansõcs-Hér-
cules-Macistes dos anos 50. O próprio «body building» encontra pre­
cedentes na tradição americana do higienismo e do culturismo. E, no
entanto, as analogias existem a um nível morfológico subjacente. Tra­
ta-se, nos três casos, da descoberta ou da constituição de um subgene-
ro do clássico: a iden/ização do corpo Acrdiçg, O que de resto se har­
moniza com o sistema de ordem característico do clássico, a que nos
referimos no começo. Efcctivamcnte, estamos perante a proposta de
um cânon extremamente prcscritivo, modelado segundo leis de pro­
porção, ao qual se pode comparar todo o outro corpo concreto. E o to­
do harmoniza-se perfeitamente com outras propostas de ordem que ca­
da vez mais se apresentam na nossa sociedade: desde o êxito de livros
que contêm prescrições de etiqueta (o «Bon Ton», os preceitos do
conde Nuvolctti, as receitas de psicologia ou sobre o amor, os manuais
de comportamento, os livros de «Faça Você Mesmo») até às várias
obsessões divulgativas presentes na edição, na televisão, na escola e
até na universidade.
Não só existe, pois, uma forma do clássico, mas a qualquer um tal
forma agrada, c prccisamcnte em contraposição com as morfologias

(') Cf. O próprio Hcinrich Wólftlin. AcAe


' ii . p. 56 da edição italiana.

799
irregulares e instáveis, que chamámos «ncobarrocas». Poderemos tam­
bém interrogar-nos sobre o porque de tanto êxito, visto que não c de­
fensável atribuí-lo apenas a uma organização do consenso por parte do
poder. E a resposta é uma só: o mesmo afastamento do equilíbrio do
sistema social, se, por um lado, favorece o aparecimento de corpos ir­
regulares, justamente por isso provoca, por outro lado, também parale­
los desejos de estabilidade. Não porque a estabilidade tenha de ser
«melhor do que a instabilidade» (isso é determinado a períeriori pelo
sistema das categorias de valor), mas porque é extremamente mais
econômico. A estabilidade admite previsões mais simples, e assim
comportamentos mais seguros. Da mesma forma que a bolsa reage
bem à tranquilidade política sem que necessariamente as forças econô­
micas atribuam aos governos a responsabilidade e penaliza qualquer
revolução institucional, assim é no fundo também a sociedade. Prova­
velmente, é preciso reconhecer que «a bolsa do social», embora valo­
rize mesmo certos derrubes do sistema, ao mesmo tempo exige in-
conscicntcmcntc a sua estabilização e a sua continuidade.

3. Breve fenomenologia do Bronze

Um primeiro objccto clássico a examinar com atenção são os


Bronzes de Riace. Não enquanto achado aqueológico-artístico, evi­
dentemente, mas neste fenômeno de recepção colectiva. Raramente,
na história da arte, a descoberta de uma «obra-prima» foi capaz de
suscitar rcacçõcs de massa como os Bronzes. O que equivale a dizer
que a beleza das duas estátuas não é suficiente para explicar a sua for­
tuna crítica e de público. Aliás, vale a prova contá-la: a exposição so­
bre os Etruscos realizada em Florcnça cm 1985 foi quase um fracasso
enquanto afluência de público cm relação às previsões, não obstante a
apresentação de muitas c não de uma só obra-prima; e a descoberta de
um barco inteiro do povo misterioso nos mares da Toscana não em o­
cionou em igual medida os meios de comunicação. Por conseguinte
deve haver outras razões que levaram os Bronzes ao poder na imagi­
nação contemporânea, razões ocultas no simbólico da sua forma. Ten­
temos examiná-los, com espírito de inventário. E logo notamos algo
de familiar no seu aspecto. Os dois guerreiros estão nax. Como na
maior parte da cultura grega, dir-se-á. Sem dúvida. Mas acima de tu­
do, o nu grego exerceu sempre um extraordinário espírito sedutor,
como nos ensina Francis Haskell a propósito da retomada da estatuária

200
antiga ao !ongo dos sécuios por causa do caracter idea) atribuído ao
corpo humanof). A tai ponto que se podem ciassificar os tipos extraí­
dos do nu grcgo(3). Há o Apoio, ou seja, o narcisismo da forma perfei­
ta. Há a Vcnus, nas duas variantes piatónicas de terrestre e ccicste (os
sentidos e o espírito). Existe o nu hcróico-cncrgético, nas outras duas
variantes do aticta c do guerreiro. Há o nu patético, com o iangor e o
abandono. E, por fim, existe o nu estático, com a transcendência da
paixão. Como é óbvio, os Bronzes pertencem cssenciaimcntc à ca­
tegoria do nu energético, ievando ao apogeu as duas categorias do
guerreiro e do atiético. Todavia, não apresentam nenhuma das li­
nhas de torção típicas do nu heróico, destinadas a representar o movi­
mento. Também não existe aí nem a «diagonai heróica», nem a «es-
pirai heróica». Os Bronzes não iibertam, pois, uma ideia de força, mas
exprimem uma energia cm expectativa de expiosão, uma energia
potcnciai, contida c medida. Ao mesmo tempo, a sua posição é antes
apoiínea: perfeita nas proporções, coerente nas partes, imóvei e hic-
rática perante o oihar do espectador. Os Bronzes são rawOéw Apo­
io, isto é, oferecidos à admiração. Heróicos e apoiíncos, perfeitamen-
te idcaiizados no seu microcosmo como aiusão à metáfora do macro-
cosmo, são o perfeito protótipo da ideia de cspectácuio. Em senti­
do ctimoiógico: objcctos para contcmpiar, quadros de uma exposição.
Por conseguinte, objcctos universais, porque aspiram a uma adesão
do oihar para si mesmos como modeios. Obviamcntc, é justamente es­
ta a rcacção que se verificou na sua exposição cm púbiico. O espírito
com que a Grécia produzia os seus monumentos já não é certamcnte o
mesmo de hoje. Então, provaveimente, o sentido da admiração orien­
tava-se para o conteúdo ideai da perfeição. Hoje cm dia, o espcctácuio
induz não à abstracta medida do universo, mas à mais prosaica cons­
trução do icitiço. Poderemos taivez dizer que esta é a tranformação
operada pcio presente no passado: na medida do universai para o seu
totem.
E aqui intervém a história externa dos Bronzes para vaiorizar o
universai fciticizado. Os Bronzes reapareceram, por sorte, após vinte
c cinco sécuios (mais ou menos) rias /rrq/M/iriiriaries rios aòi.wros.
! ransparccc também de modo óbvio a vaicncia narrativa do evento.
Separemo-ia em duas sequências iguaimente importantes. Primeira sc-

( ) Francis Haskcil e Nieholas Penny, Tostr? anri r/ir? Vaie t !tn


versity Press, New Haven. )981.
( ) Kcnneth Ciark, 7 /]g Mrrir:, Nationai Gaiiery, Washington, t')S t

207
quência: «após vinte e cinco séculos». A forma dos Bronzes resistiu à
intempérie do tempo, à dcscontinuidadc da história, à dcgcncração dos
acontecimentos. Os Bronzes exprimem, pois, uma duração que vai
muito além da vida dos homens e dos seus comuns artefactos. Segun­
da sequência: «da profundidade dos abismos». Aquela forma reemer-
gc não obstante um cancelamento, reaparece apesar da profundidade
da queda, ressurge apesar do nada cm que mergulhara. Atesta, portan­
to, a sua i/td&UrMdMidadc. Os Bronzes, efcctivamentc, resistem a
qualquer sentido de actualidadc, a partir do momento em que nos abis­
mos se perdeu todo o contacto com a realidade que os gerara. Nada sa­
bemos deles, nem o seu autor, nem o seu proprietário, nem o lugar de
origem ou de chegada, nem o título que indicava o seu significado.
São se/n <7Ma/<7Mer /torne, isto é, se/rt propriedade. Têm a mes­
ma configuração de um milagre c de uma lenda. A confirmação proce­
de de uma particularidade: muitos críticos referiram-sc a autores míti­
cos, como Fídias. E ao fazerem assim contaram a saga dos dois heróis,
como os tratadistas antigos nas suas anedotas ideais, à Plínio. Os
Bronzes tomaram-se, em suma, um mito de origcmC).
Universal, ideal, eterno, miraculoso. São estes os atributos dos
Bronzes de Riace avaliados a partir da sua forma substancial e da sua
forma narrativa actual. Mas vejamos o que sucede quando o universal
simbólico ganha concreção numa forma física. Esta última torna-se
imediamente um cânon de conformidade, beleza, cticidadc, euforia.
De facto, jamais se proferiram tantos juízos enfáticos sobre um valor
estético como neste caso. Além disso, à volta dos Bronzes, nasceram
histórias viradas para o seu conteúdo ético. Por exemplo, conjccturou-
- s c a seu respeito um papel ritual para alguma cidade da Magna Gré­
cia, ou que seriam representações de divindades de fundação, ou até
um sinal do poder do «novo mundo» (como devia ser a Península para
os Gregos). A nível popular, em seguida, nas revistas de banda dese­
nhada ou cm publicações mistcriosóficas irromperam narrativas mo­
deladas cm torno dos Bronzes, com proezas de amor fatal, de sacrifí­
cios pagãos, de revelações mcdiúnicas. Quanto ao juízo passional, já
se falou. Os Bronzes próvocaram, cfcctivamcnte, um timismo genera­
lizado. Basta pensar no delírio colectivo por altura das duas exposi-

(") Sobre o mito de origem, podem ler-se: Charles Morazd. «Saint Ccor-
ges, une éxpéricncc allcgorique», Con/ruiwrmce des /Irts, 1, 1970; Albcrt Van
Gennep, te.s Pites de Passage, Émite Nourry, Paris 1900; Vietor Tumcr, 77te
Porest qfSy/n&ds, Comell Univcrsity Press, Ithaca, 1977.

202
çõcs dc Florcnça c Roma após o restauro, ou nos inumeráveis pedidos
de empréstimo das mais diversas partes do mundo, a começar cm Los
Angeles para as Olimpíadas dc 1984.

4. Rambo e os seus irmãos

Nos anos 50 e ainda antes, muitos f/zrívcr.M entraram na ce­


na cinematográfica. O mais famoso foi ml vez Steve Rccvcs, interprete
dc Macistc c Sansão cm versão americana. Mas estes tipos muscula­
res, e os seus primos dc menor nome, embora mostrassem bicfpctcs
deslizantes c toraxes lora de medida, não representavam cm verdade
nenhum ideal clássico. Eram antes selvagens: mergulhados numa jun­
gia ou num passado mitológico bárbaro, ou numa história antiga san-
guinolcnta e cruel. Eram excessivos c exóticos, longe, pois, do sentido
clássico do herói c dos seus empreendimentos atléticos. Também se
podería observar que Rambo acaba numa jungia e combate contra os
«selvagens vietnamitas». Podcr-sc-ia acrescentar que Chuk Norris in­
terpreta um ivcncívcl adversário dos Bárbaros Russos que invadem a
América. Seria também possível analisar cm pormenor que Schwarze-
neger interpreta cm Co/HHnJo exactamcntc como Co/M/t. o OdrOaro.
ou cm , onde é quase um monstro. E este é, certamente o
aspecto dc continuidade com os Filties, que não é subvalorizado. Mas,
enquanto não era possível enamorar-se dc Hércules e dos companhei­
ros, porque de um homem cotn pele de leopardo é difícil fazer outra
coisa a não ser um fenômeno dc circo, dc Rambo, pelo contrário, pode
la/cr-sc um fenômeno dc civilização. Por outras palavras, é lícito fa­
zer dele um fMOííe/o. Efcctivamcntc, não se pode negar que, enquanto
os lutóicos Hércules eram todos carne e plástico, agora os nossos tem
o extasiamento típico do objccto dc admiração, utópico c idealizado. É
duro pensar cm Eiscnhowcr que recebe Rccvcs na Casa Branca. É
normal» aceitar Stalone que aperta a mão a Rcagan. Rambo é uma
verdadeira estátua» um «verdadeiro» monumento. Maciste é um ani­
mal dc criação.
Mas também a nível dc imagens podemos prosseguir na diferença
Nos anos 50, os vários Rccvcs não produziram o divismo. Rambo. ho
te. stnt. A interpretação dc Stallonc, como clássico, poder-se ia oh)..
t u que os seus lilmcs são, no tim dc contas, excessivos e. poii.uti"
homologávcis antes ao «ncobarroco» até agora longatuent, ..............
Mas também aqui é preciso entender-nos. Uma cot .a .ao ,, ,n, i.

203
menos que verdadeiramente excedem os sistemas regutados e ordena­
dos, ievando-os a precipitar-se numa transformação; outra é, porem, a
simples ênfase ou a hiperbote, que corrobora o sistema na iuta contra
as turbulências. Continuemos então as observações. O herói america­
no, primo dos Bronzes, 6 sem dúvida uma personagem estatual. Her-
cuies e Maciste são grandes troncos com perixoma animal. Os novos
heróis, não. O seu tísico emerge poderosa e harmonicamcntc seja qual
for a coisa que se lhe ponha cm cima. São capazes de se tomar ícones.
Rambo pode ter cartuchcira e bazuca, ou estar equipado de fita cm tor­
no da fronte, ou com camisa militar e mochila, ou com calções de rin­
gue. O seu corpo exprime de todos os modos uma espécie de «tensão»
cm movimento ou cm expectativa explosiva. Hercules era um culturis-
ta ou um levantador de pesos. A Rambo poder-se-ia fornecer um pe­
destal.
Por fim, a dimensão do tempo. Hércules não sobrevive a não ser
numa época (ainda que fantástica) muito precisa. Rambo existe fora
do tempo. Pode pertencer a uma/a/ttasy ncogótica e metafísica e cha­
mar-se Conan, a um presente possível e chamar-se Rocky, a um futuro
mcdievaüzante c chamar-se Terminator. Por isso, resulta universal, in-
dcpcndcntcmcntc das figuras que o representam. Possui, como os
Bronzes de há pouco, uma duração e, por consequência, uma indes-
trutibil idade. Como eles, provém de um abismo: o da memória cm
Cona/t, o do possível cm ícwÚHa/or.

5. Faces de bronze

O «body building» é o terceiro elemento que entra cm jogo na nos­


sa revisitação do ideal do corpo heróico. Não os aparentamos aos
Bronzes ou a Rambo para banais analogias iconográficas, mas de no­
vo para morfologias subjacentes. O «body building» nao é uma revisi­
tação do culturismo. Aí tinhamos um conceito «pobre»: a intumcscên-
cia do corpo era estritamente quantitativa, e por isso mesmo muito
material. A verificação é fornecida pelo modo como o culturismo toi
sempre promovido. Encontramo-lo na pequena publicidade dos jornal-
zecos de baixo consumo. Apreendemo-lo como um substituto de iden­
tidade sexual ou como um sucedâneo de carências de personalidade. O
«body building» está, no entanto, na moda, é luxuoso, higienista, c
tanto que se estende também ao corpo leminino. Deveremos pensar
então que é apoiado por alguma lorma de ideal, ainda que fraco c dc-

204
formado. Mas, efectivamente, se o caracter ciássico dos Bronzes de­
riva de um ideai estético (a medida) que homoioga também ideais fí­
sicos (o cânon), éticos (a perfeição) e passionais (a admiração); se o
caracter ciássico de Rambo procede de um ideai ctico (a pureza), que
homoioga ideais físicos (o cânon costumado), estéticos (a sedução) e
passionais (a identificação); o homem ideai do «body building» deri­
va, pcio contrário, de um absoiuto físico (o bem-estar), que homologa
os habituais ideais éticos (a saúde), estéticos (a sedução) c passionais
(de novo, a admiração). O «body buiiding», por outro iado, contém de
ciássico também o aspecto de etiqueta e normativo. Para construir o
corpo perfeito é preciso seguir uma série de exercícios, mas para se­
guir os exercícios é necessária uma espécie de fiiosofia interior. Por
fim, também o título do «body bulding» é ciássico. O corpo é eJí/ica-
ífo como uma arquitectura: respeitando aqui pienamente também a
ideia antiga de físico, como metáfora da perfeição de todo o artcfacto,
até ao maior possívei que é a natureza. No veiho cuiturismo faitava
um semeihante conceito de harmonia universa), subiinhado peio con­
trário hoje em virtude de as práticas gímnicas serem acompanhadas
por apiicaçõcs musicais e coreográficas. Em suma, o veiho cuiturismo
era enfático; o novo é harmônico e proporcionai. O cânon físico, além
disso, transmuta-se cm ideai estético. Eiimina-se a ideia de um beio
variávei e cstandardiza-sc o beio somático. Obviamcntc, isto sai fora
da paiestra e toma-se regra sociai, propagandeada indirectamcnte pe-
ias transmissões teievisivas com base em jovens pares, ou peia pubii-
cidade dos cosméticos, ou por fiimes como Nove SeoM/iaj e Aícia, ou
pcio cstiio cstcticizantc das fotografias por Armani.
Utilizei o adjectivo «esteticizante». Considero-o apropriado para o
nosso caso. E, de facto, inevitávei que a proposta de um cânon ideal se
traduza na ideaiização estética, substituindo à ideia de beieza como
produto de vários elementos físicos e morais a de uma beieza superfi­
cial material, como sinai de beleza também moral.

6. Conciusões tímidas: tudo e o contrário de tudo

A observação precedente permite apressar aigumas úitimas conciu­


sões. Que significa o facto de se querer encontrar um cânon estético,
físico, passionai, ético na superfície das coisas mais do que noutras
combinações? Que significa a busca de uma universaiidade e de uma
duração dos fenômenos? Na minha opinião, devemos descobrir no
modelo do clássico uma fundamental posição filosófica (seja o que for
que se pense a tal respeito, dado o tipo de exemplos até agora utiliza­
dos). Enquanto as homologações não regulares dos juízos de valor
exaltam a subjectividade e a relatividade dos juízos, as homologações
do clássico tendem antes a minimizar o sujeito que julga e a buscar
um (?;&/ objectivo nas próprias coisas. Se este objcctivo existe,
então todo o sistema dos juízos de valor se torna orgânico, porque não
requer invenção por parte do sujeito, mas adequação de todo o sujeito
a princípios a ele externos. Todo o sistema dos juízos se revela assim
plcnamcntc auto-regulado c funcionalizado: tende por si a eliminar as
turbulências c as flutuações. A crise, a dúvida, a experimentação são
uma caractcrístiça.barrqça. À certeza é característica do clássico.
Podería assim chegar-se à explicação de por que c que o clássico
se projccta naturalmcntc para uma dimensão conservadora. Mas tal
conclusão fica em aberto, porquanto não é necessária e é talvez sim-
plificadora. É, porem, interessante tomar cm consideração o que al­
guns regimes autoritários explicitaram como slogan cm favor de uma
arte clássica contra os anticlassicismos experimentais. Tanto o regime
nazi como o estalinista baptizaram as vanguardas com o epíteto de
«arte degenerada». Com efeito, se se esquecer por um instante a cono­
tação depreciativa que Hitlcr e Estaline davam à frase, o significado é
surpreendentemente justo do ponto de vista morfológico. De facto, da
nossa ncrspcctiva. todo o fenômeno «barroco» surge justamente por
«dcgcncração» (ou dcsçstabilização) de um sistema ordenado, ao pas­
so que todo o fenômeno «clássico» surge por manutenção do sistema
"perante as mais pequenas perturbações! Assim, enquanto o barroco
cfcctlvamcntc às vezes degenera, o clássico produz gêneros. E a fatal
lei do cânon.
A última conclusão, por fim, destina-se às relações entre o clássico
c barroco. Como se viu, aqui eles reduziram-se a ntorleloj mor/olõgi-
de go.rto*)Por conseguinte, abstraiu-se de uma qualquer
posiçaotSmpõráfa*!avordo seu funcionamento formal. Todavia, por­
que a definição formal exige justamente a construção de um sistema
categorial interdefinido, torna-se evidente que clássico e barroco —
pelo menos de um ponto de vista analítico — são igualmente interde-
íínidos. Um não existe sem o outro e, mais ainda, um põe necessaria­
mente o outro de modo implícito (ou até explícito). Por^uHQ-iadg^
clássico e barroco não se seguem um ao outro na h istória. Conyivcm.
A história é evcntualmente o terreno em que terá lugar uma prevalên­
cia. quer seja quantitativa quer qualitativa. Observá-la dará lugar a

206
uma história das formas. Descrever os seus fundamentos suscita uma
teoria das formas. Neste üvro, procurou-se timidamente fazer ambas
as coisas, co g t todos os defeitos das ambições çxccssivãs)' Quanto à
história das formas, porem, poder-se-ia desenvolver também de outro
modo, evitando a abordagem do problema social da prevalência. De
facto, seria possível muito simplesmente fixar-se, congclando-o, num
fM07ne/{ío(S) determinado e localizado da história, e assistir aí à mani­
festação necessariamente conflituosa do contraste entre sistemas, que
se materializa em figuras precisas, específicas e datadas. História e
teoria da cultura poderiam deste modo associar-se, visto que as formas
da cultura existem, encontram-se cm competição e definem-se, enre­
dando-se umas nas outras.
Dito isto, ou seja, dito do modo como os objcctos do gosto e valo­
res correspondentes se interconectam e competem numa sociedade,
permanece aberto o problema do juízo. Desde a introdução se subli­
nhou que não se tratava aqui de construir jerarquias e classificações.
Ou seja, a necessidade de descrição vinha antes da valorativa, e por is­
so mesmo os valores dcscrevcr-se-iam nos termos da sua construção
cultural. O importante era apreender o «espírito do tempo» e articular
os seus territórios de explicitação. Isso não impede, no entanto, que
existam muitos fenômenos, entre os que foram examinados, que são
«melhores» do que outros. O problema é conseguir defini-los, esqui-
vando-se a critérios predeterminados, embora na consciência da sub-
jcctividadc do juízo. N o sistema das categorias de valor que sugeri
desde o primeiro capítulo existe porventura um elemento de interesse.
Isto c, os juízos que ali formavam uma matriz categoria! eram conce­
bidos como va/ortzaçdo para /atara memdria já contida nos textos exa­
minados. Era sim possível associá-la aos mecanismos de funciona­
mento dos próprios textos. Diferente é, porém, aderir à matriz e aos
juízos implicitamente predispostos por um texto. Qualquer fenômeno,
cfcctivamente, se pode propor como indivíduo excelente de um espíri­
to do tempo, e inserir-se assim mais numa poética do que noutra. Im­
porta, pois, ver se a sugestão do texto consegue deparar com um con­
trolo cfcctivo, realizar verdadeiramente um valor.
Ao longo de todos os capítulos, de facto, viu-se como os princípios
constitutivos do «ncobarroco» se manifestam em produções, obras e
comportamentos receptivos. Tudo isto descreve o processo de forma-

(') Como defende, por exemplo, um historiador da arte. como George


Kuhlcr, Y7ic Mape o/7áwe. Yale University Press, New Haven, 1972.

207
ção de uma poética como «instrução para o uso» e, no nosso caso, em
particular, mostra que a poética neobarroca brota da difusão das comu­
nicações de massa. Mas viu-se também sempre cm cada capítulo que
os textos examinados levam a cabo a operação co/a gratcr t/ttcayt-
dade diversar. Nos parágrafos dedicados ao limite e ao excesso, por
exemplo, observou-se que muitas vezes as duas categorias surgem
configuradas de modo ambíguo, uma simulando a outra. Isto significa
que existe algum princípio diferencial no interior de um «gosto geral»:
por exemplo, a observação de que é rca/ o risco mtc/cctaa/ que se vota
à poética de rotura do limite ou do excesso. No capítulo sobre a insta­
bilidade e a metamorfose, entrevimos igualmente uma segunda carac­
terística neobarroca. Mas também aqui com alguma diferença possível
entre os objectos: mais normal parece, de facto, a inversão das catego­
rias de valor cm novas homologações, mais árdua a sua total suspen­
são, porque isso implica uma interpretação mais forçada do sistema,
um conflito de acettaMtdatíe. Noutros lugares ainda, sublinhámos que
a oferta de um novo princípio formal se podia realizar de um modo di­
recto e simples, ou seja, de modo expressivamente complexo e cons­
ciente. Também esta é uma auterior chave do juízo sobre a intensidade
de uma mudança.
Como se vê, estou no fundo a propor uma chave final interpreta-
tiva não já no sentido hermenêutico, mas prccisamcnte em sentido va-
lorativo. E, desta vez, estou a fazê-lo de um modo pessoal, fora dos
critérios com que elaborei este livro. As três palavras-cmblcma há
pouco pronunciadas são de facto: risco tntc/ectaa/, coa/Ztto & accita-
bt/t&tde. traba/Aa sobre o watéria estética. Mas se o meu sistema indi­
vidual de preferências funciona segundo estas três regras e se elas não
são mecanicamente derivadas do método dc análise dos fenômenos,
pode ao mesmo tempo dizer-se que existe aí dc algum modo uma rela­
ção com ele.
Como poderiam, cfcctivamcntc, formular-se os wetts juízos, a não
ser com base numa boa descrição e interpretação dos fenômenos?
Como poderei chegar a fazer uma escolha segundo um princípio dc
qualidade, se não conhecesse algum critério que me permita tfiscritru-
nar c assim rcconbccer as características dos objectos examinados? E
só a existência de um tal critério que me permite aderir a uma obra
mais do que a outra, crttt'cd-/a. Do mesmo modo que é apenas a exis­
tência de semelhante critério que permite superar o limiar dc juízos
prc-fabricados, que nada mais seriam do que a fotocópia dc um siste­
ma dc vaiorcs já constituído. Creio verdadeiramente que a actividadc
crítica só pode fundar-se numa actividade interpretativa, a quai restitui
um sentido dc überdade e de independência dos juízos dc vaior, o sen­
tido da investigação da quaiidadc isenta dc preconceitos, o sentido da
aventura das idéias estéticas.
/N D /C E
/ntrodaçõc.................................................................................. 9

J. 0 gosto e o método......................................................... 13
1. Questões preliminares, p.13? - 2 . 0 termo «neobarro-
co», p. 24 - 3. Clássico e barroco, p. 29 - 4. As catego­
rias de valor, p. 35

II. Piímo e repetição................................................................... 41


1. Replicantes, p. 41 - 2. Alguns conceitos gerais, p. 43
- 3. A ordem da repetição no telefilme, p. 50 - 4. Rit­
mos e estilos, p. 57

III. Limite e excesso..................................................................... 61


1. Limite e excesso: duas geometrias, p. 61 - 2. Tender
para o limite, p. 64 - 3. Excentricidade, p. 69 - 4. Ex­
cesso e antídotos, p. 72

IV. Pormenor e/ragm en to.......................................................... 83


1. A parte e o todo, p. 83 - 2. Etimologia do pormenor,
p. 85 - 3. Etimologia do fragmento, p. 87 - 4. A propó­
sito de algumas ciências humanas, p. 89 —5. Um esque­
ma de relações, p. 92 - 6. Duas estéticas contrapostas e
muitos fenômenos mistos, p. 95

V. /nstobiiiãoãe e m cfowor/bscs............................................ 105


1. Monstros, p. 105 - As formas informes, p. 109 -
3. Outras instabilidades: os jogos cm vídeo, p. 115 -
4. Outras instabilidades: figuras, estruturas, comporta­
mentos bimodais, p. 118 - 5. Teorias científicas da ins­
tabilidade, 118
VI. Dasor&wi e c a o s ................................................... "..... .......
1. A ordem da desordem, p. 131 - 2. A beleza dos frac-
tats, p. 134 - 3- Dimensões fractas da cultura, p. 139 -
4. Caos como arte, p. 140 - 5. Recepções descontínuas,
p. 142

VII. M3 e /aòiriwM................................................ ................. i'7-'


1 A imagem da complexidade, p. 145 - 2. Nos e labi­
rintos como figuras, p. 148 - 3. Nós e labirintos como
estruturas, p. 151 - 4. O prazer do ofuscamento e do
enigma, p. 155

VIII. e riissipação.....- ----.......................... """ "


1 Estruturas dissipativas: da ciência à cultura, p. 159 -
2* Entropia ou rc-criação?. p. 162 - 3. O consumo pro­
dutivo da cultura, p. 165 - Nos antípodas da teoria da
informação estética, p. 167

IX. OíM-H? C nÕO-Sei-^MC....................................... "".........


1. O prazer da imprecisão, p. 169 - 2. Obscuridade,
p. 176 - 3. Vago, indefinido, indistinto, p. 177 - 4. Va­
lores negativos: as linguagens da aproximação e a sua
ironia, p. 180 - 5. Valores negativos: o «quase nada»,
p. 183

X. Distorção e perversão......... -----................................ ..


1. Uma geometria não euclidiana da cultura, p. 185
2. A citação «neobarroca», p. 187 - 3. Distopias do pas­
sado, p. 193

XI. A u/n agraria o ciãssico...................................... .


1. Existe uma «forma do clássico»?, p. 197 - 2. A qual­
quer um agrada o clássico, p. 198 - Breve fenomeno-
iogia do Bronze, p. 200 - 4. Rambo e os seus irmãos,
p. 203 - 5. Faces de bronze, p. 204 - 6. Conclusões tí­
midas: tudo e o contrário de tudo, p. 205
Impresso por Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
para EDIÇÕES 70
em Julho de 1988
Depósito legal n.s 22562/88

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