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OMAR CALABRESE
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toca): BSCAL
irtdusán 2/11/2006
n controía
00019123
INTRODUÇÃO
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o que conta na descrição dos fenômenos é a intcncionalidadc dos seus
autores. O que nem sempre se diz. Cada um de nós «sabe» muito mais
do que aquito que «crc» saber, c diz muito mais do que aquiio que crê
dizer. A cubara inteira de uma época faia, em quantidades maiores ou
menores e de maneiras mais ou menos profundas, nas obras de quem
quer que seja. Mesmo evitando hierarquias e guetos entre cabeças, é
possível descobrir a repetição de aiguns traços que distinguem a «nos
sa» mentalidade (o nosso gosto, neste caso) da de outros períodos. E
justamente ao ir no encalce de conexões improváveis, dcscobrir-se-á,
ainda que com o benefício da dúvida, à eventual extensão daquela
mentalidade e daquele gosto.
Mas existirá, e qual será ele, o gosto predominante deste nosso
tempo, aparentemente tão confuso, fragmentado, indecifrável? Creio
tê-lo encontrado, e também proponho para ele um nome, o do Meo&v-
roco. Mas preciso desde já que a etiqueta não significa que tenhamos
«retornado» ao barroco, nem que o que eu defino por «neobarroco»
seja a totalidade das manifestações estéticas desta sociedade, ou o seu
âmbito dominante, ou o mais positivo. O «neobarroco» é simplesmen
te um «ar do tempo» que alastra a muitos fenômenos culturais de hoje,
em todos os campos do saber, tomando-os parentes uns dos outros, e
que, ao mesmo tempo, os faz diferir de todos os outros fenômenos de
cultura de um passado mais ou menos rcccntc\É por causa deste espí
rito que mc permito associar certas teorias científicas de hoje (catás
trofes, fractais, estruturas dissipativas, teorias do caos, teorias da com
plexidade, c assim por diante) a certas formas da arte, da literatura, da
filosofia c até do consumo cultural. Isto não quer dizer que a sua asso
ciação seja directa. Significa apenas que análogo era o seu m óM c que
este se transferiu das maneiras mais específicas em toda a área intelec
tual.
No que consiste o «neobarroco» está quase dito. Encontra-se na
procura de formas — e na sua valorização — , cm que assistimos â
perda da integridade, da globalidade, da sistcmaticidadc ordenada cm
troca da instabilidade, da polidimensionalidade, da mutabilidade. E
por isso que uma teoria científica que diz respeito a fenômenos de flu
tuação e turbulência, c um filme que concerne a mutantes de ficção
científica são aparentados: porque cada âmbito fala de uma orientação
comum do gosto. Não se descobriu a ordem do caos, não só por não se
poder fazê-lo, como, e principalmcnte, porque interessava pouco. Do
mesmo modo que Alicn.
Mas como se faz para compreender quais são as características
comuns de fenômenos tão diferentes? Pode avançar-sc ao acaso, f
zendo uma lista daquilo que conseguimos intuir e arriscando-nos pas
so a passo. Ou então, como se fará aqui, partir-se-á de um principio
geral. O seguinte: se estamos em posição de nos apercebermos de «se
melhanças» e de «diferenças» entre fenômenos que têm, no entanto,
uma aparência muitíssimo distante, então isto significa que «há qual
quer coisa lá debaixo». Que para além da superfície existe uma-íortqa
subjacente que permite as comparações e os parentcsco^Uma /b w M l'
Ou seja, um princípio de organização abstracto dos fcnómcnôS.' Que
preside ao seu sistema intemo de rclaçõcs.l
Chegámos agora ao fundamento deste livro, que não só é a ambi
ção de encontrar o gosto do nosso tempo, mas também a de o í/tcM/w
métoJo. Isto é tão verdade que o tema dos capítulos é articulado
segundo um critério. Os títulos respeitam todos quer a um conceito
formal do «neobarroco», quer a uma palavra de ordem científica. A ra
zão disto é simples: o conceito formal em questão é análogo a uma
teoria física ou matemática. Mas não por uma veneta do autor, e sim
porque a escolha de descrever a^owM dos fenômenos culturais corres
ponde à natureza das teorias chamadas a capítulo. Elas são todas, de
facto, teorias que se referem a um critério espacial. São todas teorias
que não só se «assemelham» àqueles conceitos formais, mas também
são capazes de os explicar. Deste modo, atingimos um segundo objcc-
tivo: as nossas explicações resultam coerentes e metódicas.
O desejo de coerência e pertinência nas descrições das ciências hu
manas parece-me ser, indcpcndentcmentc do resultado deste trabalho,
um desejo legítimo. D e facto, um vento antimetódico percorreu nos
últimos tempos o universo do saber humanístico e, pcssoalmcntc, sin-
to-me muitíssimo afastado dele. O declínio de certas formas da racio
nalidade não pode ter como consequência a liquidação da racionalida
de, mas apenas a procura de formas de racionalidade diferentes c mais
adequadas ao contemporâneo. Nas ciências humanas, isto surge como
cada vez mais necessário, pelo menos se se quiser evitar um sentido
de renúncia à compreensão dos fenômenos e o mal-estar do advento
da «idade do mexerico». E por isto que o primeiro capítulo do livro
afligirá o leitor com muitas reflexões sobre método, antes de entrar no
campo directamentc. E é sempre por isto que entre as várias dimen
sões gerais através das quais se poderia examinar o «neobarroco» é
privilegiada a mais complicada, ou seja, a estética. O território da esté
tica parece de facto, quase que por definição, o menos abordávcl por
uma análise não intuitiva. E, finalmcntc, é por isto que, além dos te
mas escolhidos em primeiro lugar, se enfileirarão exemplos na aparên-
cia «impertinentes»: para aumentar o sabor do desafio, para iiustrar
melhor o que significa arriscar-se no terreno das «conexões imprová
veis».
Em suma: por um !ado, este livro pretende ocupar-se da maneira
como a sociedade contemporânea manifesta os seus próprios produtos
intelectuais, independentemente da sua qualidade e da sua função; por
outro, entrevê o seu horizonte comum no gosto com que são expres
sos, comunicados, recebidos. Desejando sintetizar com um riogon, di
rei que este volume constitui uma tentativa para identificar uma «estêi.
tica social». E agradeço a Paolo Fabri pela invenção desta definição,
que representa perfeitamente o espírito do trabalho.
O .C .
Aíiiõo, 24 & Janeiro & 79R7
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I
O GOSTO E O MÉTODO
1. Questões preliminares
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por acaso que e h c adoptada com toda a cautela, por exemplo, com a
advertência de que se usa por convenção ou para simplificar. E de fac-
to o conceito de «época», ou «idade», ou «período», contrasta com
muitas maneiras tradicionais de entender o íluir dos acontecimentos.
A história seria antes composta por cadeias de causas e efeitos, e não
por cesuras repentinas e ciaramcnte advertíveis. Reagrupar aconteci
mentos sob categorias que os separam dos seus antecedentes e dos
acontecimentos seguintes surge como um paradoxo^). Aliás, é tam
bém verdade que existe uma historiografia mais interpretativa que se
ocupa, efn princípio, precisamcntc do reconhecimento dos efeitos da
sua definição, da sua articulação, muito mais do que da explicação das
suas causas ou origens. A história da arte, da literatura, da música c de
todas as outras práticas criativas é muitas vezes assim. Antes de pro
curar a motivação que antecedeu um facto ou um conjunto de factos, é
obrigada a tfe/t/ttr os factos. É por isso, por exemplo, que existem no
ções como a de «estilo», ou «motivo», ou «tipo», ou «gosto», que fa
zem sucederem-se os eventos em blocos mais compactos e cujo início
é estabelecido de modo convencional, sem que se lhes dê demasiada
importância, c cuja duração é variadíssima, na condição de que o con
junto dos «efeitos» (isto é, dos objcctos produzidos) seja numerica
mente relevante, pelo menos de modo a permitir a sua categorização.
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tes. É frequente, na história do gosto ou dos estdos, dcnommarcm-se
os períodos por meio de paiavras-chaves que os tomam extremamente
simplificados e abstractos. É o caso da Idade Média, com os seus sé
culos de obscurantismo, ignorância e superstição. E o caso do Renas
cimento com o seu racionalismo e o seu humanismo. E logo a seguir
vem o barroco,-involuto, absolutista e enigmático. E assim por diante,
apenas para só falar das etiquetas dentro da história da arte. Mas seme
lhantes simplificações não servem em absoluto para a compreensão da
história da cultura, apenas servem para a cmpastclarem em formalis
mos que pouco tem a ver com a realidade e a que falta o vigor. Sena
ainda pior propô-las para a análise do presente, quando ainda não e
possível por falta de «boa distância»^), distinguir com certeza aquilo
mie é importante daquilo que o não é. Cada momento histórico, de res
to não se pode reduzir a uma única etiqueta pelo simples motivo d
nue a história é consütuída pela confrontação de fenômenos distintos,
conflituais, globais, quando não absolutamente incomcnsuravcis c não
comparáveis entre si. Disto isto, é também verdade, todavia, que os fe
nômenos se constituem «em série», ou por «famílias», devido a perti-
ncncias recíprocas. Por exemplo, não se pode negar que o período 01-
toccntista da Restauração assistiu ao aparecimento na cena europcia,
tanto em política como cm arte, tanto na economia como nas letras, de
uma série de acontecimentos, os quais levam todos a um projecto de
«regresso à ordem» continental. Nem tudo o que aconteceu depois de
1815 foi coerente com tal projecto, mas muitos dos acontecimentos
sim, e por isso é lícito agrupá-los como tal. Por outro lado, uma vez
que a Restauração foi a ideia dominante c a mais dilund.da, e mais do
que possível definir como restaurador um certo período do século.
L a lm c n tc óbvio, no entanto, é o facto de que, mudando quer os pon
tos de vista, quer os grupos sociais interessados, quer o objcctivo dis
ciplinar, poderemos classificar como «qualidade» da epoca também
algumas outras coisas, como, por exemplo, o novo espirito intelectual
do rom antism o.!) problema, pois, é simplesmente definir com prcci-
(6) A ideia de que a cultura seja um sistema como o sistema vivo é anti
ga. Por exemplo, encontramo-la em Kant, na Kritik der Urtcilskraft. 1790.
Modcmamente. um conceito análogo penetrou a chamada «teoria geral dos
sistemas». Um dos seus fundadores, em particular, Ludwig von Bcrtalanffy,
tentou transferir uma concepção «organísmica» da biologia para todos os cam
pos do saber e da realidade. Cf. Ludwig von Bcrtalanffy, D as bioiogisciíe
Weitbiid, Frankc, Bema. 1949; id., C entra/ System Táeory, Brazillcr, Nova
Iorque, 1968 (trad. it.: Teoria generaie dei sistemi, Isedi, Milão, 1971). O bio-
logismo extremo está hoje refutado, mas a metáfora cultural-biológica perma
neceu na linguagem comum. Para uma discussão sobre o amadurecimento da
ideia de «sistema», cf. Tomas Maldonado, fo iitica e scieaza deiie ricerca sis
têmica, «Problcmi delia transizione». 5,1 9 8 0 ; e Giacomo Marramao, 7,'ordirte
disiacaatato, Editori Riuniti, Roma, 1985.
(i) Entende-se por «enciclopédia» um modelo das competências sociali
zadas num determinado momento histórico, que o dicionário (modelo das
competências ideais de um falante ideal) não pode de todo explicar. Cf. Um-
berto Eco, Trattato di semiótica geaeraie, Bompiani. Milão, 1975.
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dos, dificilmente estaremos a examinar roda a enciclopédia. Apenas
recorreremos ao postulado da sua organização geral, mas de facto
ocupar-nos-cmos só de uma região sua, mais ou menos grande. Isto é,
analisaremos só uma «localidade» suaO. Mas a localidade é, no en
tanto, organizada segundo as redes de modclosf): estas são a «quali
dade» que torna localmcnte comuns certos objcctos culturais. A uma
certa escala, a qualidade poderá por isso ser única, mudando a escala
poderá multiplicar-se.
Mas tomemos à questão do carácter de época c ao corolário da ter
ceira interrogação, ou seja, se será permitido separar tão nitidamente
os blocos históricos entre si. Já abordámos aqui a discussão sobre uma
das idéias fundamentais de Foucault, por um lado, e dos «micro-his-
toriadores», por outro. Resumindo isto a uma linguagem comum, re
cordemos agora que um dos pontos mais contestados (até há pouco
tempo) do pensamento de Foucault foi prccisamcnte a sua ideia de
«episteme»('°). Segundo Foucault, estamos de facto numa época em a
mudança das mentalidades é tão radical (como no século XVÍI) que se
pode falar de um corte cm relação ao passado. Trata-se de uma tdeia
forte, que derruba um dos princípios da historiografia tradicional, ou
seja, a causalidade entendida como relação necessária entre um antes e
um depois. No entanto, também se reconhece que o princípio foucaul-
tiano pode fazer correr riscos: por exemplo, o de entrever nos acon
tecimentos ttm tímeo (JenoffMnaJor comum, com a consequência de
79
do)('*). Como conciliar as duas necessidades? E digamos que só atra
vés de uma intcrdcónição dos conceitos operativos é que e possívei
garantir o controlo sobre objcctos analisados. Os fenômenos já não fa
lam por si sós e pela evidencia. É preciso «provocá-los». O que equi
vale a dizer que é preciso construí-los como objcctos teóricos (^). Por
outras palavras, não existe uma objcctividade imediata dos factos,
existe só a coerência da perspectiva segundo a qual os interrogamos,
do horizonte dentro do qual os incitamos a responder. Em ciência, tra-
ta-sc de um velho problema. A objcctividade do sistema dos elemen
tos químicos foi estabelecida por Lavoisicr com o critério da untcida-
de da «pesagem», isto é, com o mais subjectivo e convencional dos
procedimcntosf').; Também na cultura se poderia dizer, metaforica
mente, que se devem «pesar» os elementos, fazendo-os tomar-se co-
mensuráveis. Sem metáforas: eles só constituiríam um sistema na con
dição de serem colocados em relação com um sistema de conceitos.
Ora, sistemas de conceitos podem existir muitos, e as ciências huma
nas oferecem-nos um vasto espectro deles. Não se tratará aqui de pro
por um como melhor do que os outros. Tratar-se-á simplesmente de
fazer/uncionar Mia. Vejamos de que modo.
Se considerarmos cada objecto da cultura como qualquer coisa de
comunicável, veremos imediatamente que ele se integra numa cadcta
de comunicação. É criado por um sujeito, individual ou colcctivo, é
produzido segundo certos mecanismos de produção, manifcsta-sc se
gundo certas formas e conteúdos, passa através de certos canats, c re
cebido por um destinatário, individual ou colectivo, e determina certos
comportamentos. Para cada um dos pontos da série, podemos desen-
volver as oportunas análises. Existem, de facto, ulteriores diferenças
('<) para uma resenha da crítica de «tipo» histórico, cf. ainda Cario Ginz-
burg, /Z frowaggio e i vermi. cit. , , ^.
(H) No campo da teoria da arte, isto está a acontecer desde ha tempos, so
bretudo no grupo de História e Teoria da Arte da Escola de Altos Estudos de
Paris que compreende Hubert Damisch e Louis Marin, e muttos estudiosos
mais jovens, como Maurice Brock, Gcorges Didi-Hubcrman. Jcan-Claudc
Bonne, Philippe Morei, Daniel Arasse e outros.
(") A pesagem química é um método coerente e constante, mas e es
colhido convencionalmentc pelo analista e depende, por tsso, do seu enterto
«subjectivo». Não pertence de modo imanente aos objectos anahsadtM. umea
contlição para o definir como «objectivo». Sobre esta questão, cE llia rigogi-
ne e Isabelle Stenghers. «Sistema», in Enciclopédia. Einaudi, Turim. 1981.
vol. 12.
pertinentes com que examinar as diferentes polaridades da cadeia. Por
exempto, o emissor poderá considerar-se como fisicamente existente
e, então, poderemos rcconstitui-io com análisqs empíricas de tipo so-
cio-cconómico; ou, peto contrário, entendê-lo como aparetho de pro
dução c distinguir as suas rotinas profissionais e decisionais; ou então,
pcnsá-!o como autor e atribuir-lhe uma fitotogia e uma história indivi-
duat. O mesmo se pode dizer quanto ao receptor: poderá ser avaliado
como «público» e dar-se-the-á uma sociologia ou uma psicologia,
considerando os efeitos de certas mensagens sobre ele; ou ainda po
derá pcnsar-sc como abstracto, construído segundo uma estratégia de
comunicação c uma pragmática itustrará as maneiras de ser chamado
por causa de um texto. Quanto à mensagem, é ainda a mesmíssima
coisa: poderá ver-se como determinada por outras mensagens, e tere
mos novamente uma filologia ou uma crítica textual, ou uma história;
e poderá imaginar-se como conjunto de formas e de conteúdos, arran-
jando-se-lhe uma semiótica(^)]
Chegamos agora, pelo contrário, à questão do corpo de objcctos a
tomar para exame. O princípio que se pretende aqui refutar é o da ho
mogeneidade por gêneros, tipos ou artes. Por exemplo, não é de inte
resse neste local (não que o não seja em outros) verificar a existência
de redes de relações de gosto ou de mentalidade para objcctos jão
co/!Jt/*MÍríor d partida coma /tomogéncor a oatror. Pode muitíssimo
bem estabelecer-se a existência de um gosto cinematográfico, ou artís
tico, ou literário, no interior de uma história, de uma estética, de uma
crítica disciplinar. Mas isto é um pouco mais óbvio do que não procu
rar as conexões (frequentemente escondidas) entre objectos que nas
çam como diferentes entre si, e não já como pertencentes a uma série
cultural. 0_progrcsso das idéias nasce quase sempre da descoberta de
relações impensadas, de ligações inauditas, de redes inimaginadá&.„
Uma descoberta é frequentemente descoberta de sentido onde primei
ro parecia reinar não já a insensatez, mas sim a ausência de sentido^
Claro, actuar deste modo significa correr riscos. Significa, por exem
plo, fazer que as coisas analisadas digam mais do que dizem. Mas tra
ta-se de um risco fascinante e produtivo, e acima de tudo não infunda
do. Cada um de nós, de facto, diz sempre muito mais do que sabe e até
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volucionar, como uma espécie de «origem»^*), a mentalidade de um
período. Mas tatnbém se pode dar o contrário, que um gosto artístico,
literário ou proveniente das comunicações de massas incida sobre o
próprio corpo das idéias científicas. Estabelecer o antes e o depois, a
causa e o efeito, toma-se então ininteligível (se precisamente não se
pretende pensar que seja .tcwtpre ininteligível). Regressando a um cír
culo ou a uma espiral de conexões recíprocas, qualquer ponto poderá
entender-se como causa dos que se lhe sucedem, pois servirá sucessi-
vamente para o pôr cm perspectiva, para os enquadrar numa fuga de
conceitos. Em cada caso, surge já como interessante chegar a uma for
mulação de parentescos (talvez audaciosos, não importa), que outros
poderão enriquecer com outros métodos e outros objectivos. Dos ca
racteres de tais parentescos provirá a formulação de um «gosto» típico
da nossa época, provavelmente em conflito com outros gostos, e não
necessariamente gosto dominante.
Uma última advertência. Falou-se insistentemente de «gosto» e de
«formas». É melhor esclarecer, então, prccisamcnte por causa das hi
póteses de partida, no fundo orientadas para a pesquisa de um «carác-
ter de época» substancialmente estético, o ponto fundamental da nossa
pesquisa não só é descrever as formas, como também compreender
quais os tipos de julgamento de valores que eles provocam na socieda
de. Cada sociedade delineia sistemas de valores, mais ou menos nor
mativos, com os quais se julga a si própria. Aqui, procuraremos com
preender qual será um dos recorrentes na nossa. Não o faremos a partir
das sanções (ou a ventura crítica, o sucesso, o sistema jurídico, a reli
gião, a política). Fá-lo-emos, pelo contrário, a partir da prqposía Je
vn/orer que, inevitavelmente, todo o texto contém. Não existe obra, de
facto, que não sugira a maneira de a ler e de a julgar: que não conte
nha uma coacção a uma futura memória. Mas, uma vez que a nossa
perspectiva é examinar predominantemente textos criativos ou inven
tivos, eis aí a razão pela qual o sistema inteiro das categorias axiológi-
2. O termo «neobarroco»
24
O segundo é o âmbito estritamente filosófico c está rctacionado
com a conhecidíssima obra de Jean-François Lyotard, A Condição
Pós-Afoder/:a(^), que na origem era simplesmente um relatório ao
Conselho do Estado canadiano de Quebec sobre sociedades ocidentais
avançadas e a sua forma de desenvolvimento do saber. O adjectivo
«pós-modemo» era explicitamente colhido na sociologia americana
dos anos 60, mas como conceito, e rcelaborado como noção filosófica
original(^). De resto, Lyotard escreveu: «Ele designava o estado da
cultura, depois das transformações súbitas nas regras dos jogos da
ciência, da literatura e das artes, a partir dos finais do século XIX. Tais
transformações seriam aqui postas em relação com a crise das narrati
vas Simplificando ao máximo, poderemos considerar 'pós-mo-
dema' a incredulidade nos confrontos das mctanarrativas.»(^)
O terceiro, enfim, c o campo da arquitcctura e, cm geral, das disci
plinas projcctistas, e teve sucesso sobretudo em Itália e nos Estados
Unidos. O seu ponto de partida foi a famosa exposição da Bienal de
Veneza dedicada à «Strada Novíssima», cujo catálogo foi intitulado
Po.srmo&rn(^) pelo seu organizador, Paolo Portoghesi. Neste scctor,
«pós-modemo» começou a significar qualquer coisa de ideologica
mente preciso, ou seja, a rebelião contra os princípios do Movimento
Modernista, o seu funcionalismo e racionalismo.
' Como se vê, o ligame entre os três âmbitos decerto que existe, mas
c tênue. Em literatura, «pós-modemo» quer dizer anticxpcrimcntalis-
mo, mas cm filosofia quer dizer pôr cm dúvida uma cultura baseada
cm narrativas que se tornam prescrições, c cm arquitcctura significa
projecto que regressa às citações do passado, à decoração, à superfície
do objecto projectado contra a sua estrutura e a sua função. Coisas, cm
suma, deveras afastadas entre si. E indefinidas, porquanto sob a cober
tura de etiquetas demasiado vastas estão aparentadas, como se disse,
as operações mais variadas/A citação, por exemplo: mas sem explicar
is s a s á sssx =
ldmicas dos anos 60 em tomo do «pop. arquitectómco, ou na " ° ^ a «arqunec-
tura radical, dos anos 70. Cf., nesla matéria, a ^ 'n u c a q u e
vro de Tomas Maldonado. La ^peranza progellaa^. Emaudi. Turim .
o ^ reunia, por um lado, os americanos (B .b Vcntun. D e m s e S c .t B r.^ m
S e H e n d t s e outros), e por outro, os italianos (Alessandr. Mendmi. A id .
Rossi, e depois Paolo Portoghesi).
26
dos objectos denominados «pós-modemos»? A uma exposição pcdc-
se qualquer coisa mais, pede-se que parta peto menos de uma descri
ção coerente daquilo de que fala e que explicite as próprias maneiras
de descrever. Por isso, proporei aqui uma etiqueta diferente para al
guns objectos culturais do nosso tempo (não é realmente obrigatório
que sejam os mesmos denorpinados «pós-modemos»), Esta etiqueta
será a palavra «ncobarroco».J
Entcndamo-nos desde já. Não tenho apego a este nome de modo
particular. Considcro-o simplesmente um j/ogan como qualquer outro,
mas capaz de exprimir de maneira rccapitulativa os conteúdos concre
tos que entendo dar-lhe. A minha tese geral c de que muitos importan
tes fenômenos de cultura do nosso tempo são marcas de uma «forma»
interna específica que pode trazer à mente o barroco.
Só a evocação do termo pode fazer nascer mais do que uma ob-
jecção imediata. Quanto ao prefixo «nco». Assim como o «pós» de
«pós-modemo» fazia pensar num «depois», ou num «contra» a mo
dernidade, também «neo» poderá levar a crer na ideia de repetição,
regresso, reciclagem de um período específico do passado, que seria
então precisamente o barroco. Naturalmente, a referência ao barroco
funciona por analogia, e em numerosos casos procurarei tomá-lo evi
dente. Mas isto não significa realmente que a hipótese seja a de uma
«retomada» daquele período. Assim como se refuta a ideia de um de
senvolvimento ou de um progresso da civilização, porque demasiado
determinista, também a dos ciclos históricos é inaceitável porque me-
ta-histórica e idealista. «Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo
rio», em suma. E a mesma maneira de compreender o termo «barro
co» que, pois, se torna mais preciso.
Mais uma vez, para o fazermos seguiremos algumas intuições de
Sarduy. Este define o «barroco» não só, ou não tanto, como um perío
do específico da história da cultura, mas como uma atitude generaliza
da e uma qualidade formal dos objectos que o exprimem. Neste senti
do, pode haver barroco em qualquer época da civilização. «Barroco»
quase se toma numa categoria do espírito, oposta à de «clássico»^').
f ) Severo Sarduy, ap. cá., que, naturalmente, retoma toda a tradição for-
malista de Wólfflin a D O rs. Cf. também Claude-Gilbert Dubois, í c ílarra-
<yae. Pra/ândears de /apparence, Larousse, Paris. 1973; Gcrard de Cortanze,
Ée bara^ae, M. A. Éditions, Paris, 1987; Cristine Genci-Glucksmann, La rat-
san bara^ae, Éditions Galilée, Paris, 1984; id.. La /b /ie da vair, Éditions Gali-
lée. Paris, 1986.
27
Aqui, não quero chegar a indicações novamente mcta-históricas. No
entanto, tentarei traduzir a ideia de Sarduy noutro sentido. Por exem
plo: se conseguíssemos demonstrar que existem formas subjacentes
aos fenômenos culturais e que consistem no seu andamento estrutural;
e se conseguíssemos também demonstrar que tais formas coexistem,
conflitualmente, com outras de diferente natureza e estabilidade inter
na, então poderiamos dizer que atribuímos ao «barroco» o valor de
uma certa morfologia e, admitamo-lo, ao «clássico» o de uma morfo-
logia com ele em competição. «Barroco» e «clássico» já não seriam
categorias do espírito, mas sim categorias da forma (da expressão ou
do conteúdo). Neste sentido, qualquer fenômeno seria ou clássico ou
barroco, e idêntica sorte cabcria à época ou episteme que vissem a
emergência de um ou outro. Isto não cxcluiria o facto de as manifesta
ções de cada momento histórico isolado manterem a sua especificida
de e diferenças como casos singulares.
Para dizer a verdade, não é a primeira vez que se emprega o termo
«neobarroco». Gillo Dorflcs, por exemplo, já o usou num livrinho inti
tulado O Barroco na ar^MÍtectara moderna, por sua vez retomando um
termo de Brinkmann. E ainda em mais outro livro, E/ogio da desarmo
nia. no qual não encontramos referências explícitas ao termo, mas on
de alguns dos princípios que serão expostos aqui já vinham de algum
modo tratados. Na época contemporânea, de facto, Dorflcs identifica o
abandono (ou queda) de todas as características de ordem e simetria, e
vislumbra o advento (nem sempre positivo, mas também não necessa
riamente negativo) do dcsarmónico e do assim étrico^. Encontrare
mos ccrtamcntc muitas semelhanças entre os conceitos expressos por
Dorfles e quanto virá tratado aqui, como a rclcitura com a chave mo
derna de alguns intérpretes (Wolfflin, D Ors, Anccschi, Focillon).
Mas encontraremos também profundas diferenças. Dorfles inclina-se
para uma dimensão histórica específica a atribuir ao «neobarroco»,
que seria um período deste século já decorrido, como no caso do
cubismo, do organicismo ou do nco-empirismo cm arquitcctura. E sa-
(32) Gillo Dorfles, ArcM ecmre omíngMe, Dedalo, Bari, 1985, onde vem
rcimpresso um trabalho de 1951 do próprio Dorflcs. Barocco ne//'arcMeimra
moderna, com os oportunos acrescentos e uma ligação à discussão mais recen
te; e sobretudo E/ogio de/ia di.sarmonia. Garzanti, Milão. 1986 (trad. port.:
E/ogio da Desarmonia. Edições 70, Lisboa 1988). O termo surge accúe tam
bém por Pierluigi Cervellati. Aria di neoftarocco, «L'informazione bibliográfi
ca». 1.1986.
23
lienta que o «pós-modcrno» será um fenômeno que sucedeu a este.
Uma tal colocação numa espccie de história implícita dos estilos não
será aqui de todo aceite. Tal como não será completamcnte aceite nem
sequer a ideia (tirada de Focillon e Wõlfílin) de um «ritmo» ou de «ci
clos» históricos. Clássico e barroco admitir-se-ão como constantes
formais, e accitar-sc-á igualmente a sua predominância muito mais
num período do que noutro. O princípio da sua reversibilidadc será,
pelo contrário, rejeitado. A história, na realidade, não demonstra —
senão à custa de um exagero — a alternância das duas constantes
(como pretendem precisamente Wõlfflin e Focillon). E ainda menos
permite que se estabeleça — senão às vezes à custa de fantasias sem
motivo — que o clássico seja um momento de perfeição de um siste
ma cultural e o barroco o seu corrclativo momento degenerado (como
queria Focillon).
Um outro elemento presente em Dorfles e que não será considera
do pertinente é o juízo de valor sobre o barroco. Dorflcs, como já ou
tros críticos nos anos 50, e como Sarduy, «reavalia» o barroco quer
como época determinada, quer como constante formal. No nosso caso,
não se trata de julgar, mas sim de reconhecer o reaparecimento daque
la constante. E mais: de compreender ou explicar os próprios motivos
pelos quais pode haver sanções negativas ou positivas sobre um tipo
de gosto. A atribuição de juízos é, cm meu entender, coerente com a
aparição de objectos a eles homogêneos. O julgamento estético faz,
cm suma, estreitamente parte das «características de época», exacta-
mente como as obras que julga. O que, pensando bem, até é banal: to
da a obra, como já se disse, contém sempre também as instruções para
o uso próprio, até o estético^).
Clássico e barroco
29
formalismo fizeram o seu fundamento. A primeira menção vai, natu-
ralmcnte, para Hcinrich Wõlfflin. Em conceiKM /Mntfamc/tmíj tfa
/ujtória arte, Wõifflin esclarece pcrfcitamcntc o significado do ter
mo «formal»: «O presente estudo não analisa a beleza de um Leo
nardo ou de um Dürer, mas o elemento em que esta beleza tomou for
ma [...] estuda o caracter da concepção artística que está na base das
artes figurativas nos diversos scculos.»f") É a partir destes princípios
que Wõfflin elabora o seu método, que resumiremos nestes termos: a.
cada obra ou série de obras é a manifestação complexa e combinada
de algumas «formas» abstractas e elementares; 0. tais formas elemen
tares podem definir-se como uma lista de oposições, porquanto uma
forma não é perceptível cm si, mas através de um sistema de diferen
ças; Í-. um «estilo», toma-sc então a maneira específica de operar as es
colhas através dos pólos das categorias formais de base, e corresponde
frequentemente a princípios de coerência individual, colcctiva, de épo
ca, até mesmo de raça. Sucede assim que podemos definir um estilo
AAtórico como conjunto das maneiras de tomar forma escolhidos nu
ma determinada época c traduzidos cm figuras^). Mas, ao mesmo
tempo, existirá um estilo aàrfracfo, que consistirá na lógica de conjun
to das escolhas possíveis. É precisamente este o caso de dois estilos
que resultam, ao mesmo tempo, históricos e abstractos: o clássico c o
barroco. Eles tomam forma, por exemplo, no Renascimento e naquilo
a que chamamos «barroco histórico». Mas, num sentido mais geral,
também se pode dizer que clássico c barroco são conjuntos de esco
lhas categoriais que podem encontrar-se, embora com resultados indi
viduais diversos, cm toda a história da arte.
«Rescrevi» de certo modo a ideia de fundo de Wólfflin, porque
com o correr do tempo ela foi por muitos rejeitada em nome de uma
presumida «metafisicidadc» ou de uma «mcta-historicidade». Pelo
contrário, talvez seja caso para lhe fazer justiça. Outros formalistas te-
30
rao provavelmente corrido aquele risco, mas não Wõlfflin, que, se de
alguma coisa pode ser acusado, c precisamente de um exagerado ape
go ã ideia de historicidade dos estilos. Ou melhor: de continuidade
evolutiva entre eles, de forma que, por exemplo, a oposição entre clás
sico e barroco como escolha entre as categorias de «lincar»/«pictóri-
co», «supcrfícic»/«profundidade», «forma fechada»/«forma aberta»,
«multiplicidade»/«unidadc», «clareza absoluta»/«clareza relativa» c
concebida com uma cadência, um ritmo da história.
Com maior razão poderia ser acusada de excessivo evolucionismo
a concepção de um outro formalista, Hcnri Focillon. De facto, Focil-
lon chega a comparar o sistema das formas a um sistema biológico
(talvez não tanto de um ponto de vista cientifico quanto de um filosó
fico, de harmonia com as idéias de Kant sobre o argumento)^). Toda
via, tambóm Focillon, cm A ViJa das Forwas(^), distingue nitidamen
te entre categorias estilísticas historicamente definidas c princípios
formais a que damos simbolicamente o mesmo nome. Os famosos
«estádios» evolutivos (idade experimental, idade clássica, idade do re
quinte, idade barroca) são na verdade irans/br/nações fnc/ybídgicas,
válidas no interior de qualquer estilo histórico. Poderemos até mesmo
deduzir delas que o estilo histórico «barroco» possui uma idade clássi
ca, ou que o estilo histórico «clássico» possui uma idade barroca. A
que Focillon descortina é, em suma, uma implícita íágien da
wese. Isto é tão verdade que, ao considerar os quatro grandes âmbitos
que constituem uma forma (espaço, matéria, espírito c tempo), se
preocupa sobretudo em observar a mudança de configurações indivi
duais, e não tanto dos estilos, no sentido geral do termo. O aspecto
propriamente histórico da arte c reduzido por Focillon muito mais ao
estudo de /nomenias como aglomerados de diversas formas cm «está
dios» diferentes de evolução c em competição entre si, e não recondu
zido a uma história dos estilos como princípio de periodização. Resta
ainda o facto de que a lógica das formas de Focillon segue um princí
pio um pouco causalista, isto c, o da sucessão predeterminada da «ge-
(") Desde o fim do século XIX que existe uma retomada da ideia kantia-
na, expressa na Á 'r á d e r í/rfeils%ra/i, da «organicidade» das obras humanas.
Data de 1886, para dar um exemplo, o livro de Arsène Darmestetcr, La vie dei
wotx (reeditado pela Livraria Dclgrave em 1950), no qual a metáfora biológi
ca c aplicada à linguagem.
(") Hertri Focillon, La vie d ei /arw es, Flammarion, Paris, 1934 (trad.
port.: A Vida das For/nax, Edições 70, Lisboa, 1988).
ração»-«acabamcnto»-«aperfeiçoamento»-«degenerescência» das for
mas.
A historicidadc é, por seu tumo, tota!mcnte negada por Eugênio
d'Ors(^). A sua ideia de barroco 6 de facto, desta vez, decididamente
meta-histórica. O barroco torna-se categoria do espírito, formada por
constantes, denominadas por D'Ors «eões». Deste modo, pode alar-
gar-se esta noção a qualquer movimento artístico concreto da história,
independentemente do seu tempo c da sua situação geográfica. D e fac
to, tomando como modelo o princípio de classificação de Lineu,
D'Ors consegue pensar o barroco como gênero, subdividido em nume
rosas espécies. Contar-se-iam, no final de O Barroco, bem vinte e
duas. Mas é mesmo aqui que reside a debilidade da classificação, por
quanto as diversas espécies têm uma denominação pouco coerente,
quase casual. Não existe homogeneidade, cm suma, entre um barroco
«maccdonicus», «alexandrinus», «romanus», «budicus», e um barro
co, digamos, «vulgaris», ou «officinalis» (senão, justamente um re
gresso a dimensões histórico-gcográficas do fcnómeno)(^).
Como se vê (e como, de resto, em finais dos anos 50 já notara Lu-
ciano Anceschi), nas posições formalistas há sempre uma contradição
não resolvida entre um conceito abstracto de estilo ou de forma artísti
ca e a sua situação material. O abandono da historicidade em benefício
da classificação (por exemplo, a oposição entre «clássico» e «barro
co») é importante, mas muitas vezes é escolhido sem que se utilize um
critério de rigorosa interdefinição dos conceitos. Por outro lado, a exi
gência evolucionista ou biologista obriga a arriscados retornos no pla
no da história. No que diz respeito ao critério de coerência c interdefi-
nição dos conceitos: nem Wõlfflin, nem Focilloti, c ainda menos
D'Ors sc arriscam a construir um «quadro» articulado. Wõlfflin, por
exemplo, inventa os seus cinco pares formais a partir da ideia de obra
de arte como aspecto, aparência, superfície sob a qual estão subjacen
tes formas mais abstractas. Mas não explica a pertinência recíproca de
conceitos como «linearidade», «fecho formal», «superficialidade»,
«clareza», e assim por diante. O resultado é, por isso, um formalismo
pouco operativo, o qual poderá ser sempre contestado com a oposição
de outros pares classificativos. A Focillon, para além do claro determi
nismo, poder-se-ia de igual modo criticar a ausência de homogcncida-
P*) Eugcnio d'Ors, í o Barroco, Madrid, 1933 (trad. it.: D el Borocco, Ro
sa & Bailo, Milão, 1945).
(") VBidc/n, no capítulo «Las espccics dei barroco».
de dos termos de referencia de «espaço», matéria», «espirito» e «tem
po». E finalmcntc, a D'Ors poder-se-ia contestar a muitipiicação sem
necessidade das subclassiEcaçõcs do barroco, que se tomam numa
s.mp!cs hsta que se pode prosseguir até ao infinito, na sequência do
acto de se querer focar um ciemcnto qualquer de um barroco quai-
quer. Enfim, como já se disse, continua a ser criticáve) a sobreposição
do aparato formai sobre a história concreta em demonstração do facto
dc que aos vários formaiismos subjaz no fundo uma JÍ/oM/ia da /,/j-
(") Por outras palavras: um qualquer facto cultural tem uma sua manifes
tação concreta e precisa, que é a sua «forma» na acepção tradicional c genéri
ca do termo; mas os factos culturais também tem «formas» subjacentes mutto
mais abstractas, que fogem aos modos com que os factos isolados «surgem»
nas épocas específicas; neste sentido, pode supor-se que cm tempos diferentes,
mas também no mesmo tempo, surgem «formas» que diferem entre si enquan
to pertencentes a um mesmo conjunto lógico, as classificações. Um exemplo,
neste sentido, é dado pelo trabalho de James Sacré sobre o mancirismo e o
barroco. De facto, Sacrc chega a dar-lhes definições formais (mancutsmo:
poética das categorizações conflituais; barroco: poética da suspensão das opo-
sições) que são gerais c concretas, ao mesmo tempo. Cf. James Sacré, P<w
une dé/initton sémioti^ae da ntaniérisnte et da bareque. in «Actes sémtoUqucs
(Documcnts). 4, 1979; id., í/n rung manièriste, À la Baconnicrc, Neuchâtel,
1977; sobre este tema, podem também ver-se as actas do simpósio internacio
nal dá Chicago University, baroíyaer Mode/s and Concepts. 1978 (mimeogra-
fadas).
34
4. As categorias de vaior
15
ca. Sc, de facto, tomarmos os quatro âmbitos de juízo mais tradicio
nais, o do bem, o do beio, o do passional e o do juízo de forma, acha
remos que todos se articulam através de categorias qprecíartvar, como
lhes chamava AristótclcsC**), susceptíveis, por outro lado, de expan
são, segundo o princípio do quadrado semiótico(^). Os valores passio
nal (tímico) e morfológico, por seu turno, apoiam-se em categorias
aparentemente (sempre para permanecermos em Aristóte
le s)^ ), onde não aparece apreciação por parte de um sujeito do dis
curso: parecem descrições da natureza de uma forma e de uma paixão.
Qualquer termo avaliativo, como sugeriu para este caso Robcrt Blan-
ché nas Categoriar vem da combinação de marcos semânti
cos provenientes da expansão das categorias, e não do entrecruzar de
senkranz, AestAgtd: des 7/dss/icAen, Kõnigsberg, 1853 (trad. it.: Estética dei
òratto, 11 Mulino, Bolonha, 1984); Robert Blanché, Ees catégories estMti^üg.s',
Vrin, Paris, 1979. Cf. sobre o tema também Jean Lacoste, E idee de &e<3M,
Bordas, Paris, 1986; Muricl Gagnebin, Fascittation de /a iaidear, !'Age
d'Homme, Lausana, 1978.
(^) Aristóteles, cp. cit., 16, 25 e segs.
("3) O quadrado semiótico é um esquema lógico com quatro posições,
configurado segundo dois eixos de termos contrários (horizontais), dois ter
mos contraditórios (diagonais) e dois de implicações (verticais), como na figu
ra seguinte:
con trários
37
Na primeira coiuna, inscrevemos os nomes das categorias, na se
gunda o objecto do juízo, ao passo que na terceira e quarta coiunas es
tão os pólos da disjunção categorial. Eles têm um «valor» positivo ou
negativo, mas por vezes o significado de «valor» é simplesmente posi
cionai. Ele assinala de facto as posições segundo um eixo de contradi-
toriedade dos dois termos. Mas tambóm é verdade que um ml valor
«vazio» se toma de igual modo «cheio» quando e feito atravessar por
uma outra categoria, oblíqua em relação à da tabela, ou seja, a catego
ria «apreciação»/«dcprcciação». Neste sentido, «positivo»/«ncgativo»,
que classificam as polaridades, tomam-se verdadeiros juízos de valor.
Mas tudo isto depende da atribuição do juízo ao seu objccto. O que
significa que «positividade»/«ncgatividadc» não são marcos fixos à
cabeça das duas colunas, mas variáveis. Assim, a tabela aqui apresen
tada é M/n tipo de juízo, mas não o único. Acrescentemos agora uma
segunda consideração. O tipo de juízo expresso pela tabela põe em or
dem, homologa, classifica certas polaridades com certas outras. É por
isso, também ele, no seu conjunto, um tipo de sistema axiológico, mas
não o único. Outros tipos poderão homologar as polaridades catcgo-
riais de outro modo, por exemplo, invertendo de vez cm quando o va
lor de cada um dos termos. Finalmcnte, a última observação. A tabela
perspectiva uma lista de categorias. E dissemos que elas passam por
vários tipos de homologações. Mas a homologação não acontece sem
pre ao mesmo tempo. É o discurso que a constrói. Discurso que tam
bém se lança, pois, a pôr cm fila os termos catcgoriais, partindo habt-
tualmcntc de um deles. Por exemplo, o verso «belo era, louro, e de
gentil aspecto» parte da categoria estética para a homologar com a
morfológica e a tímica, às quais depois outros versos acrescentarão a
""ética. O discurso, por outras palavras, canaliza os valores, partindo de
u m a j^ p e c íiv a valorativa. Assim, são as diferentes homologações e
as diferentes perspectivas que permitem construir diversas tipologias
de sistemas axiológicos.
A par das notas precedentes, deve também assinalar-se que homo-
logaçõcs e perspectivas não funcionam apenas segundo as bipolarida-
39
Pronto: dei com isto a úitima definição do procedimento com o
quat este ensaio prosseguira. A pesquisa do «ncobarroco» terá por ob-
jcctivo «figuras» (isto é, manifestações históricas de fenômenos) e por
tipificação formas (modeios morfoiógicos em transformação). Dc!a
obteremos uma geografia de conceitos que nos ilustrarão tanto a uni
versalidade do gosto ncobarroco como a sua especificidade cpocal.
40
II
RITMO E REPETIÇÃO
t Hcplicantes
^7
das históricas, no póio oposto c contraposto da originalidade e do ar
tístico. A obra de arte 6 obra de arte quando é «irrepctívcl», ao ponto
de ser verdadeiramente «indizívcl»f) (isto 6, não repetívei, nem se
quer num discurso sobre eia). Também na crítica corrente, a dos jor
nais, acontece com frequência icr juízos sobre objcctos estéticos que
«repiicam» outros objcctos, tidos como arquétipos de uma série ou de
um gênero. No máximo, aprova-se quaiquer produto, admitindo-se
uma boa «artcsanaiidadc» sua, e concorda-se com a atitude de grupos
que eievam produtos de série ás fiiciras dos produtos de culto, mas só
porque estes, ao faze-lo, produzem um vaior estético que nao reside
nas obras cuitivadas, mas na atitude de fruição. A impressão que se
tem é que uma atitude deste tipo é ao mesmo tempo confusa, ultrapas
sada e inadequada aos fenômenos da produção de objcctos estéticos
dos nossos dias. Confusa: porque aqueta atitude, que nao só é idealis
ta, mas sobrevive cm muitas outras posições filosóficas, tende a sobre
por, sem distinguir, diversas acepções de repetitividade. Ultrapassada:
porque a atitude de idealização da unicidade da obra de arte foi sem
dúvida subvertida pelas práticas contemporâneas, que já nos anos,
com a invenção dos múltiplos, davam o golpe de misericórdia no mdo
do original, e que com muitas realizações apelidadas de «pós-moder-
nas» exaltam a citação ou o pm/tc/ic. Finalmcntc, inadequada: porque
o preconceito impede que se reconheça o nascimento de uma nova es
tética, a estética da repetição.
42
2. Alguns conceitos gerais
43
nómica. Basta pensar na cada vez maior fragmentação em pequeníssi
mas porções dos tclcfilmes americanos actuais para oferecerem a má
xima cadência de publicidade. Mas é decerto igualmcntc evidente que
a seriaüdade serve também muitíssimo bem para o controlo social. A
redução a componentes elementares c atômicas garante, dc façto. o re
conhecimento dos produtos acabados c(a_rcgulação «pedagógica»Jdos
sistemas dc valores correspondentes. O jutzõTScõlógico de falta dc
qualidade dos produtos em serie deriva claramcnte daqui: da recusa de
uma baixa da inventividade por razões econômicas e da rejeição da
criação de um consequente consenso social.
Mas existe um segundo conceito de repetição, que é aquele que
concerne à estrutura do produto. Aprofundemos-lhe a definição, põr-
que mais uma vez o risco é o dc abarcar com o termo «repetição» uma
serie dc fenômenos que são, pelo contrário, muito diferentes. Cha-
mam-sc repetições, de facto, não só as continuações das aventuras de
uma pcrsQoagqm, mas também os recursos semelhantes da história,
como o^ temas qu os ccnários-tipo. Tanto os decalques, como os wes
terns da sSríe B, como as citações ou rcaparições de fragmentos stan
dard. como «velha cidade texana», ou a «astronave em órbita terres
tre». Digamos agora que o conceito dc repetição se articula melhor
conforme os parâmetros postos em jogo. Nem sequer se poderia falar
em repetições, de resto, senão despedaçando a rede de modelos com a
qual analisamos os fenômenos, que é prccisamcnte através daquela re
de que se tomam não já indivíduos localizados, mas sim estados de
coisas abstractos, utilizados como padrões. ,_^
5 primeiro parâmetro pode ser a relação que se instaura entre um
texto e vários textos, entre aquilo que se pode perceber como idêntico )
c aquilo que se pode perceber como diferente. Teremos então duas^J
formulas repetitivas opostas, a variação & ton iãcn/ico e a iãcnririaãc
ãoy mais ãi/cren/esf). Arranjemos exemplos, limitando-nos ao uni
verso dos telefilmes, que parece ser o terreno mais natural para exem-
44
plificação. No primeiro caso, podem colocar-se aquelas obras em que
o ponto de partida é um protótipo (ponhamos: /?ót-nn-7m . Taxxie c o
tenente Co/ow/w) que é multiplicado em situações diversas. No se
gundo, meteremos, pelo contrário, aqueles produtos que nascem como
diferentes dc um original, mas que resultam idênticos (exemplos: f e -
rry Afaron, /ronxiJc e ^fawi/u/:y,' Barelta e O Ca/ninAo tíox E.s-
fre/ax e GaMctíca,' Da/íox c Dí/taxfía).
No interior dos dois grupos, no entanto, é útil inserir um parâmetro
ulterior. Este consiste na maneira de ligar a descontinuidade do tempo
do relato com a continuidade do tempo relatado e do tempo da série.
Teremos então duas fórmulas de repetição: a acía/in/ação e a proxxe-
CMçãof). A primeira pertencem aqueles episódios que se sucedem sem
nunca porem cm jogo o tempo integral da serie, como acontece com
^axxie ou com Ein-Tm-yirt. À segunda pertencem aquelas séries em
cujo fundo, e explicitamente, aparece um objectivo final, como em A
ContyMÍxm <% <? Oexte, ou em A Gnerra Exffe/ax, ou em O /ncrfveí
f/w/Á:, nas quais o tempo da série é escandido precisamente pela lentís
sima aproximação da Califórnia por parte de uma caravana dc pionei
ros, pela procura de um antídoto para as terríveis mutações de Hulk,
pela finalidade dc encontrar um planeta habitável para um grupo de
sobreviventes da Humanidade.
Mas deveremos acrescentar ainda um terceiro parâmetro. A saber,
aquele que é constituído pelo nível no qual se instituem as repetições e
as diferenciações. Abramos um parêntese. Faz tempo que a semiótica
narrativa demonstrou como em qualquer relato existem estruturas sub
jacentes mais profundas e mais abstractas do que a superfície daquilo
que se relata. Greimas, em particular, apontou que uma narrativa se
desenvolve manifestando histórias que têm diferentes níveis de estru
turação em profundidade. Há um nível de discursividadc. Há um nível
de verdadeira estruturação narrativa. Há um nível ainda mais abastrac-
to, definido còmo «fundamental». É evidente que os níveis mais pro
fundos são os que reduzem a complexidade a estruturas cada vez mais
elementares. Pois bem, o facto de que estas se repetem tomar-se ób
vio, e também co-nccessário â teoria. Mas não é relevante para o fim
de se compreender o eventual significado da repetição. Aquilo que in
teressa, pois, é precisamente o nível discursivo. Aquele que aparece
45
repetido é, de facto, substancialmcnte uma configuração quaiquer.
Mas eis que também neste estádio podemos encontrar modos diferen
tes de repetições. Um modo icónico estrito (o herói tem os oihos azuis,
ou então a astronave é mostrada em órbita terrestre, ou então o poifeia
fala com sotaque meridional); um modo temático (aí estão os bons e
os maus que se defrontam nos negócios, como em e Dina.Ma;
ou, no campo da má vida, como em Miarm' Vice); um modo narrativo
de superfície, de natureza dinâmica (e temos encenaçõcs-tipo, como a
perseguição, o assalto â diligencia, o beijo). Os tipos de repetição des
tes três modos fornccer-nos-ão ulteriores classes, como o íiec<7Í<yue,
quando vemos repetição total, ou a reprwÍMçáo. quando, ao contrário,
algum modo foi omitido. Na primeira classe poderemos colocar, por
exemplo, O Ca/nm/to Extre/ay e Ga/dctíca e na segunda DaMzr e
DinaMa.
Retomaremos mais tarde estas definições. De momento, elas ser
vem para sublinhar como as classes ate aqui esboçadas são todas ho
mogêneas cm relação a dois nós problemáticos principais. O primeiro
concerne ã questão do tempo. O segundo pertence à dialéctica entre
identidade e diferença. O tempo é posto em jogo no momento em que
reflectimosjsohrc a facto-de que afinal não é assim tão interessante
descrcvdç o <yMç é é reggd^p/Mas é rclcvantíssimo definir qual é a
ordem da repetição^). Desde os Líricos gregos ate ao Círculo & Pra
ga ,!lcTacto, ê bem conhecido que a repetição é o princípio organizati-
vo de uma poética, mas com a condição de se saber reconhecer qual
será a sua ordem. No pensamento antigo, conforme observou Emite
Bcnvénistef), existia um termo para definir tanto a ordem estática
como a ordem dinâmica da repetição: o rtPrto correspondia à ordem
dinâmica e o e.s'<7Mc/Ma â estática. Ritmo e esquema eram, em suma,
quase sinônimos e por isso estreitamente intcr-rclacionados entre si.
Só que o esquema corresponde ao instrumento modular de articulação
do objccto, e o ritmo é, pelo contrário, o seu instrumento formular. O
esquema corresponde à medida espacial, o ritmo à medida temporal.
Para o dizer cm termos musicais (com os quais também hoje é con
siderado), o riuno é, cm suma, a /r e g ê n c ia ríc aw/caá/ne/ío peridcíico
46
& cardc/cr ottda/atrárto. cotrt wdxttnoj e tnmtwo^' repe/tdoj a tw/erva-
/<?^ regM/arej, ou então ainda 6 a ybwtrt tew^ora/ na ^tta/ todo.r <?.r
tne/nòwy repe/tdos surgem dtverH/tcado.! num ou mais dos seus a/rt-
/rn^osf). Mas sc insistimos no conceito de repetição do ponto de vista
do ritmo, eis que, a maneira dos formaiistas russos nos confrontos da
poesia, nos projcctamos automaticamente para uma concepção da re
petição em chave estática. Poderemos, de facto, definir as diferenças
de ordem repetitiva como diferenças de ritmos, e, tai como na história
da arte fizeram Wõiffiin, FociHon e Kubier, chegarmos a considerar as
variações de ritmo na história do tcicfiimc como variações de forma
cstóticaf).
O segundo nó ó a diaicctica entre identidade c diferença. Podemos
insistir ainda no facto de que n3o nos interessa muito o <ytte é <yue e re-
pe/tdo, quanto à maneira de segmentar as componentes de um texto e
de as codificar para sc poder cstabcicccr um sistema dc invariantes,
sendo tudo aquiio que não reentre neias definido como variável inde
pendente. Ora, é frequente que as disciplinas cstruturaiistas sc ocupem
dos sistemas de invariante c dcscurem as variávcis('°). É uma iacuna,
pois a anáüse da rciaçao entre invariante e variávei c fundamentai para
sc compreender o funcionamento dinâmico (e n3o apenas a estrutura
estática) de quaiquer sistema. Eco encontra-se entre os poucos que,
pcio contrário, se deram conta dc tai diaióctica, tanto que ao descrever
o mecanismo da invenção de códigos faia de uma reformuiaçao da for
ma da expressão, ou da forma do conteúdo, ou de ambas ao mesmo
tcmpo("). A constituição de um novo estiio e de uma nova estética,
por outras paiavras, c considerada como dinâmica dc um sistema, que(*)
d7
passa de um estado para outro reformulando as relações entre as mes
mas invariantcs c os princípios para os quais se considerará variáveis
os elementos não pertinentes ao sistema mecânico. Como se vê, tam
bém do ponto de vista da dialéctica entre identidade e diferença o nos
so alvo diz respeito ao de uma possível definição estética de um siste
ma (no caso: o de um telefilme) em progressiva evolução através de
estados descontínuos.
Também nos referimos, no início do parágrafo, a um terceiro gru
po de acepções de receptividade, aquele que investe a esfera do con
sumo. É frequente entender-se como repetitivo um comportamento
rotineiro solicitado pela criação de situações de expectativa/ofcrta de
satisfações sempre iguais. É o comportamento que Eco definiu como
«consolador»('i), porquanto assegura o sujeito, fazendo-o encontrar
aquilo que já sabe e a que está habituado. Mas estas são outras formas
de comportamento repetitivo de consumo. Por exemplo, existem hoje
cada vez mais fenômenos consistentes de revisitação cultuai do mes
mo espectáculo (o exemplo mais cabal disto é o /?oc%y //orror Picmre
SAow, que cm certas cidades tem estado a ser repetido há anos no
mesmo cinema, e que deu origem a espectáculos dentro do espectá
culo, com a intervenção organizada do público durante a exibição da
película). Uma terceira forma, enfim, é aquela que foi baptizada de
«síndrome do botão», que consiste na obsessiva mudança de canais,
de modo a apanhar, em rápida sucessão, uma série de programas dife
rentes, desenvolvendo reconstituições simultâneas a cada mudança de
cena. O hábito, o culto, a cadência, são assim três comportamentos re
petitivos, mas cada um deles tem implicações diferentes. N o primeiro
caso, estamos perante um comportamento «proppiano»: a criancinha
quer ouvir a mesma fábula. No segundo, o comportamento não é de
puro consumo, mas sim de consumo produtivo, dado que o fruidor
acrescenta qualquer coisa de seu à própria modalidade do consumo.
No terceiro, o comportamento repetitivo adapta-se às condições de
percepção ambiental, torna-se fragmentado, rápido e recomposto só no
fim, como é fragmentado, rápido e recomposto só no final o panorama
da visão que o fruidor aprendeu a seguir (não é por acaso que o com
portamento «obsessivo» é típico dos rapazes, que se «educam» com a
televisão de fim de tarde). .
PRO DU ÇÃ O TEXTO C O N SU M O
m o d e lo in varian te e x p e c ta tiv a
p ad rão sé r ie c o n s o la ç ã o
o p c io n a l v a r iá v e l c o n s u m o p ro d u tiv o
30
por exemplo, é sempre análoga a formulação da oposição bcm/mal: o
herói e o seu í t t # são totaimcnte postos sobre a vertente do bem, cada
um de!es com marcas precisas de reconhecimento; o anti-herói, peto
contrário, para provar a sua compieta maldade, não só é totaimcnte
mau, como também é anônimo. Os malvados não estão encarregados
de desempenhos fixos, mas sim de papéis móveis, sempre diferentes c
renovados, sem que deixem quaiquer memória de episódio para episó
dio. Por outras paiavras: enquanto o bom é figurativamente invariávei,
o mau muda de figura. A nívei narrativo, as fórmuias de cada um dos
episódios são deveras rígidas. Sc tomarmos /?ÍM-y m-Vin como protóti
po, encontraremos um esquema dinâmico fortemente repetido: Rusty
descobre por acaso uma ameaça ao fortim de que é a mascote, ou só
aos seus habitantes, tenta opor-se-ihe sozinho e não consegue, acorre
em sua ajuda o cão, que bioqueia a ameaça, pelo menos até ao mo
mento em que o tenente Mastcrs ou o sargento 0'Hara, inicialmente
impedidos de eliminarem a mesma ameaça, possam intervir, decretan
do a definitiva derrota dos inimigos. O nível dinâmico mantêm-se
idêntico na série, variando apenas as figuras, mas mantém-se idêntico
nas figuras em relação a outras variantes do gênero. Por exemplo: a
ameaça pode ser um ataque dos índios, uma traição, um ataque dos
bandidos, que são variantes em relação à série, mas são identidades
em relação aos locais conhecidos do western no seu conjunto. O nível
narrativo de superfície, por outro lado, rcpctc-se também entre séries
diversas, porquanto uma mesma estrutura pode pertencer igualmcnte a
7nrznn, fena-de-Fa/cão ou Z-assíe, ainda que o aspecto figurativo seja
nesses casos muitíssimo diferente.
Um segundo grande modelo de telefilme é o que Zorra e /vnn/iae
representam. Nestes, também a origem é desde logo diferente: ambos
são libérrimos resumos de livros. Zarra é mesmo um resumo duplo:
descende do herói criado cm 1919 pelo escritor norte-americano J. Mc
Cullcy, no romance A MnMiçáa de Capiífrana, mas também do filme
de Fairbanks Jr. /vanAae retoma, modifica e amplia as aventuras do
gnge, Hachette, Paris, 1979 (trad. it.: Se/n/ot/ca. Dtz/onar/o rngionata de/ta
naria de/ //agaagg/a, La Casa Usher, Florcnça, 1986); Joscph Courtcs, /;üra-
dachan à /a yé/m'ot/<yMe narrat/ve et di.scaar.sive, Hachette, Paris, 1977. Mais
adiante, faço referência a uni aspecto estático e dinâmico das estruturas. Na
realidade, oculto por detrás da ulterior imprecisão terminológica a implícita
referência a uma concepção «dinâmica dos sistemas^, como a que é proposta
por René Thom, A a M à é sp-aclare/te et /nwp/togénése, Dcnoel-Gonthicr, Pa
ris, 1978 (trad. it.: á*trth///tà strMtíMra/e e mor/ogenes/, Einaudi, Turim, 1980).
herói homônimo de Waitcr Scott. A novidade deste modcio de telefil-
me consiste no facto de que, mesmo pressupondo uma existência da
personagem num locai enciclopédico fechado e definido, a trama ex
plicita um horizonte de expectativa também finito. Enquanto a estrutu
ra de cada episódio repete substancialmente a do modcio precedente, o
tempo geral da série, pelo contrário, muda. Dito por palavras mais téc
nicas: enquanto toda a série é construída segundo um único programa
narrativo que prevê uma sanção final, cada um dos episódios é forjado
segundo programas narrativos habituais. As personagens têm um pas
sado c um futuro: Zorro é o segredo de um nobre mexicano, Ivanhoe é
o segredo de um cavaleiro do rei Ricardo; os seus inimigos são usur
padores do poder; o seu futuro é o restabelecimento da ordem legítima
das coisas. Cada história, então, embora autônoma, coloca-se como
uma etapa parcial de um objectivo final explicitamente relembrado de
cada vez. Começamos a ter, deste modo, não uma cadência dos episó
dios, como também um ritmo da série, assinalado pela oscilação das
relações de força entre bons e maus e pela sua cic/ic:Wa&. A maneira
temática, entre outras, torna-se ao mesmo tempo mais rígida e menos
rígida. Mais rígida, porque os papéis temáticos se tornam estáveis
(também os maus são representados por figuras fixas). Menos rígida,
porque a diléctica bons/maus se articula mais. Estabiliza-sc muito aqui
o modo icónico, mesmo porque existe um saber sobre as propriedades
das personagens já depositado em outro local (o livro), no qual o tem
po da série e as personagens são fatalmente assinalados. Por outras pa
lavras, o sistema das invariantes é mais amplo a todos os níveis e as
variáveis são sempre mais microscópicas.
Chegamos agora a um terceiro modcio de telefilme, Ronanza,
cujos primeiros episódios foram precisamente dirigidos por Robert
Altman. Altman exibe uma grande invenção no seio do gênero we.v-
tera. A nível icónico, reproduz todos os marcos clássicos:
quintas, ^a/ao/f, cidade, igreja, bailes na praça, rebanhos, índios, pra
darias, etc. Além disso, torna fixo um número elevadíssimo de prota
gonistas: os quatro Cartwright, as duas mulheres fixas, uma dezena de
personagens de contorno. As variantes figurativas tomam-se assim
minúsculas, mas são surpreendentes: o velho da montanha, o pugilista
que veio de Inglaterra, o pistoleiro que se toma cego, o japonês que
ainda não se integrou, e muitos outros. Em suma, as variáveis são de
facto wMÍto independentes na iconologia bonanziana. Por outro lado, o
modo temático e o narrativo são extremamente libcrtos.de vínculos
Por exemplo, os papéis que personificam o bem e o mal estão em
32
constante redefinição. As encenações-tipos são cfectivamentc típicas
no início, mas chegam à revisão para o fim. Quanto à relação entre
empo do episódio, tempo da serie e tempo rctatado, também aqui as
sistimos a importantes novidades de ritmo. Modifica-sc o tempo da sé
rie: a moidura é em si mesma uma história, mas não um objectivo de
que se conhece a conciusão antecipadamente (pelo menos como possi
bilidade disjuntiva: obtenção ou falência do objectivo declarado). Tra-
ta-se de uma historicidade interior à série não traduzida numa trama,
mas sim de um mecanismo de mutação que modifica o estatuto das
personagens de episódio para episódio, requerendo sempre ao especta
dor que adapte o seu saber ao mudado-saber das personagens. Não se
pode então perder o apontiuneauiscmanal sem que nada aconteça.
Existe unQvínculo de continuidadej^nas que, no entanto, mantém o
significado dã fustória isolada,"-mesmo para o espectador ocasional.
Pensando bem, esta é uma das características mais fascinantes das sé
ries americanas: a de saber ser a um tempo narrativa por episódios e
uma narrativa acabada c satisfatória. Neste sentido, a flexibilidade de
Bofianza é verdadeiramente arquetípica: sabe criar de imediato diver
sos desníveis temporais: a história completa de cada episódio, a histó
ria aberta da série, e um modcio intermédio que consiste numa história
aberta para um número definido de episódios. E um modcio que tran
sitou, com vários aperfeiçoamentos, até aos nossos dias, sobretudo nas
séries-sagas, do tipo de A rio 0&s*?e.
O quarto grande modcio é Colombo. Aqui, não temos uma história
que fuja da moldura e continuamos aparentemente no caso da variação
do idêntico. Na verdade, há uma única personagem fixa com o seu
s ir # (por seu tumo, puramente de contorno, até à emblemática figura
da mulher do tenente, que jamais aparece em cena). Depois, ela repro
duz-se sempre exactamente igual de episódio para episódio: com o seu
impermeável, com o seu automóvel amachucado, as suas maneiras de
sajeitadas e o seu sotaque de italiano meridional. Temos aqui uma por
ção do modo icónico fortemente repetitiva. Mas não existem outras de
grande variabilidade, como os adversários do herói, as situações, as
qualidades da cenas ambientais. Também os modos temático e narrati
vo são muito padronizados: perfeição/imperfeição do delito, o delito,
ocultação das provas, descoberta do delito, luta de inteligência entre o
ocultador e o investigador, erro do culpado, o seu desmascaramento.
Todo o jogo, no entanto, consiste na variação subtilíssima, a nível icó
nico, temático e narrativo, da fase em que Colombo, a partir das carac
terísticas situacionais (por exemplo, a especialidade ou o passatempo
M i - C E M E ARIES E LETRAS
SALA DE ESI UDOS
em que o culpado é mestre) consegue bater o seu adversário mesmo
no plano das competências. O sistema narrativo chega a compreender
um altíssimo número de invariantes a cada nível. Tende também a fi
xá-lo num limite máximo. Ao mesmo tempo, o número das variáveis,
potencialmente também altíssimo, tende ao máximo enquanto tal, mas
tende para o mínimo quanto a dimensões. As variáveis respeitam a
elementos do texto cada vez mais minúsculos: a qualidade do peixe
venenoso japonês utilizado como arma de um crime, o potencial alér
gico de um creme de beleza, objecto de drama entre duas personagens
do meio da cosmética, o ano de colheita de um Porto saboreado duran
te uma cena, e assim por diante. O alto número das invariantes, pelo
seu lado, permite também uma combinaçáo muito vasta de componen
tes c um número geometricamente multiplicado de histórias possíveis.
As histórias de Coio/nòo são articuladas precisamente sobre o gosto
da variante e da combinação. A prova disto é que Coiomíw funciona
quase sempre como um exemplo de literatura oulipoménica, como um
«exercício de estilo» à Qucneau: cada episódio é, de facto, um exer
cício sobre um tema assinado por um realizador sempre diferente (al
guns nomes também são famosos, como Cassavetes, Boorman). Exer
cícios sobre um tema, variações de estilo: é este o primeiro dos princí
pios da estética ncobarroca, modelado precisamente sobre um geral
princípio barroco do virtuosismo, que em todas as artes consiste na to
tal fuga de uma realidade organizadora, para se dirigir, através de uma
apertada rede de regras, para a grande combinação policêntrica e para
o sistema das suas mutações.
& Mas vamos agora ao quinto caso, que todos consideram, sem ra
zão, como o protótipo modemo da repetitividade feita comércio, e
que, pelo contrário nos levará à identificação de uma segunda caracte
rística da estética ncobarroca. Trata-se de Da/ías. Em Da/ías, parecem
sintetizar-sc perfeitamente os dois últimos modelos analisados. Por
um lado, a técnica de Altman sobre o tempo da série em dialéctica
com o tempo do relato e o tempo relatado. Por outro, a da variável re
gulada de Colombo. Só que desta vez a organização se toma minto
complexa. Começamos com a relação identidade/diferença. Em Dní-
/ns, temos, antes de mais nada, um número altíssimo de invariantes fi
gurativas: lugares físicos, propriedades das personagens, cenários-ti-
pos; a tal ponto alto que qualquer variável independente se pode tor
nar, no correr de dois episódios, numa nova invariante do sistema.
Portanto, é extraordinariamente regulado o modo figurativo, mas em
prejuízo do modo temático e do modo narrativo, que sc tomam de
34
enorme eiementaridade. Só que tais elementaridades podem transferir-
-s e , com uma combinação extremamente improvável, para as várias
personagens. Estas são, de facto, articuladas segundo uma graduação
de flexibilidade. A primeira geração, a dos pais, é a mais imóvel e
igual a si própria, e pode possuir um baixo número de inter-rclações; a
segunda (a de JR) é flexível, mas mantem uma série de características
estáveis, embora podendo ter todo o gênero de relações com todas as
personagens; a terceira geração (a dos jovens) é flexibilíssima, sempre
no limiar entre ser constituída por personagens fixas ou por persona
gens variáveis. Os diferentes tipos de relação são testemunhos de um
marco temático: são relações de família, de amor, de dinheiro (exacta-
mente como os temas dos horóscopos, ainda que a saúde falte, como
foi inserido nas últimas séries de aventuras da família Ewing). O re
conhecimento da série é determinado pelo facto de que um sistema tão
complexo parta para a desagregação devido à multiplicidade de forças
internas. Trata-se então de saber como e porquê o sistema se arrisca a
manter-se igualmente estável, não obstante os safanões a que é subme
tido por causa do seu dinamismo. Tal estabilidade depende de duas ra
zões substanciais: qualquer percurso narrativo que invista qualquer
uma dos personagens é sempre circular; e cada uma das histórias par
ciais (cada ciclo intemo) se desenrola como que sobre um plano de in-
tcrsecção em relação ao mapa do jogo das personagens estáveis, mas
recebe a projecção do mapa inteiro.
Vejamos isto melhor. Qualquer série de aventuras já não conduz a
personagem de uma posição para outra, antes a reconduz inevitavel
mente ao ponto de partida no mapa. A circularidade dos percursos em
preendidos por cada personagem pode ser muito ampla, como no caso
do conflito entre JR e Sue Ellen, que passa lentamente através de lití
gios, traições, abandono, divórcio, novos amores, e na segunda série
regressa a um segundo casamento entre os dois. A infelicidade amoro
sa entre Lucy e Mitch requer, por seu turno, poucos episódios para ser
liquidada. A aventura de Sue Ellen, acabada de se divorciar, com Cliff
Bamcs, dura o espaço de três episódios, o tempo preciso para que JR,
seu odiado inimigo, arruine financeiramente o rival. Todas as his
tórias, por outro lado, se repetem ciclicamente, e as personagens pa
recem não colher do passado qualquer nova sabedoria: repetem os
mesmos erros, caem nas mesmas armadilhas, aplicam as mesmas
estratégias. Quanto às projccções de todo o mapa sobre o plano par
ticular das histórias isoladas, são muitos os sistemas para que elas se
dêm. Por exemplo, quando se narra a guerra entre os dois irmãos, JR e
Bobby, pc!o controto da companhia, aparecem certos locais fixos,
como a residência do rancho, onde o pequeno-almoço matutino ou o
regresso ao fim do dia apresentam sempre todo o sistema familiar,
afectivo e econôm ico que liga os Ewing entre si e aos seus adversá-
rios/aliados.
Também do ponto de vista da temporalidade, Daí/ar é muito com
plexo. O tempo da série, exactamentc como em Bo/tanza, mas de um
modo mais aperfeiçoado, está potcncialmente no fim, ainda que a sua
chegada seja indefinida. Não há um objectivo preciso para a conclu
são, e ainda que esta esteja cm vias de se concretizar (a luta pela posse
do império financeiro) é sempre possível uma reabertura do caso. To
davia, D aííai é construída como uma evolução histórica, segundo uma
trama complexa de que, de tempos a tempos, se deverá descobrir a vi
ragem. Um segundo aspecto fundamental é o de que o tempo relatado,
o de cada episódio e o da série, é um tempo inversamente proporcio
nal. O tempo da série é longuíssimo (no limite, a história de três gera
ções), mas o tempo do episódio é curtíssimo (não compreende mais do
que três ou quatro dias, mas o mais frequente é ser de um só dia). Mas
isto significa a produção de um tempo de relato muito especial. En
quanto no telefilme clássico a segmentação das cenas persegue a se-
lecção dos elementos focais, e os momentos focais são descritos com
amplidão e lcntamentc, aqui, havendo continuidade de tempo narrado,
encontramo-nos face a uma segmentação cerradíssima do metro (ou
seja, do enquadramento). Nenhuma cena fica imóvel por mais de 45
segundos; nenhuma sequência contém mais de dez enquadramentos; a
velocidade de emissão vocal das personagens supera três a cinco vezes
a das personagens de um filme de televisão normal. A construção de
um metro diferente determina, como é óbvio, a produção de um ritmo
frenético, completamente funcional depois da inserção da publicidade
no espectáculo, mas também extremamente inovador em relação aos
ritmos do passado. Acontece também que Daííaj, que não é particular
mente aventuroso segundo os normais critérios do gênero, que não ac-
tua com saltos narrativos muito grandes c que levam a grandes traba
lhos infercnciadorcs, apesar de tudo isto é, do ponto de vista rítmico,
uma espécie de roc% n roí/. Por outro lado. sempre a propósito de
tempo e de ritmo, deve acrcsccntar-se que temos em Da/íay uma série
de construções de continuidade. A primeira é a da moldura, indefini
da, que obriga a pensar em sequência as modificações das persona
gens, obriga o espectador a gerar um saber seu e próprio da moldura.
A segunda é a dos ciclos longos, a única a que pode ser confiada a
eventual reformulação do mapa das relações entre as personagens (por
exemplo, foram precisos treze episódios para redefinir as relações fa
miliares depois da morte do chefe da família, Jock). A terceira é a dos
ciclos restritos (bastaram uns poucos episódios para fazer que Pamela
adoptasse um filho). A quarta ó a das histórias mínimas, concluídas
num só episódio. Estão assim satisfeitos quase todos os tipos de frui
ção possíveis: ocasional, serial descontínua, serial média e cultuai. Em
cada episódio, os quatro tipos intcrsectam-se e a consequência disso é
um efeito rítmico ulterior: cada história deve scr sempre interrompida
c retomada segundo montagens paralelas ou alternadas, sob pena de
perda de atenção quanto a qualquer dos ciclos. Desta vez, estamos cm
presença de um ritmo determinado da sequência e da montagem. E é o
próprio ritmo a chamar a atenção sobre si próprio, c não já a inferência
narrativa (quando o ritmo serve para construir um não dito). Tudo
aquilo que aqui devíamos saber é-nos de facto explícita e imediata-
mente fornecido. E agora de novo: o gosto será deixado para as mi
núsculas invenções variáveis de entrecho e iconografia. Um tanto
como na música «disco», onde as melodias cedem o passo a um cerra
do bum-bum, e onde o prazer passa ao máximo nas variações de intro
dução, de tom de voz, de acompanhamento, de arranjo. A metáfora
musical é pertinente. A série, mais recente, Miami Vice é apresentada
como «em tempo de roc%». A lição foi aprendida e continuada.
4. Ritmos e estilos
37
tema do policcnLrismo. A nova cosmotogia dc Kcplcr, por exemplo,
não só destruiu a idcia dc ccntraiidadc das órbitas dos pianctas de Ga-
iiieu, como introduziu na cultura o gosto pcia forma ciíptica, provida
de centros reais c virtuais múitiplos("). Wõiffiin falou dc ritmo como
componente fundamentai da ideia de movimento na escultura c na ar-
quitcctura barrocas. Cassircr, primeiro, e depois Frye(^), identificaram
nas mutações de ritmo a característica dos gêneros iiterários (por
exempio, em Fryc: o ritmo da recorrência define a epopcia, o da conti
nuidade a prosa, o do décor o teatro, o da assonância a iírica) ou dos
estiios dc cpoca (ainda cm Frye: há épocas com relações rítmicas cs-
quisomórficas, místicas, sintéticas). Bachtin vai mats ionge: define
formas de riuno específicas (os «cronótipos») como reguiadoras dos
gêneros artísticos e dos estilos('*).
Em termos históricos, para dizer a verdade, a motivação dc um
gosto centrado na variante, no poiiccntrismo, no ritmo, é facilmente
explicável. Pensa-se na enorme quantidade de programas narrativos
transmitidos num ano pelos órgãos de comunicação social. Só em Itá
lia, calculou-se já que depois de cinco anos dc existência das televi
sões privadas se tenha consumido o patrimônio de noventa anos de ci
nema dc ficção. Muito rapidamente, pois, o consumo obrigou à produ
ção «copiada» do já produzido. Disto deriva uma condição dc produ
ção e dc recepção definível com o aforismo: jd esíd mdo dí;o. jd
tudo ascrdoC?). Perante a acrescida capacidade do público, so existe
íüma possibilidade para o não saturar: mudar as regras do gosto junta-
mente com as da produção. Como no teatro Kabuki, será agora a mi
núscula variante aquela que produzirá o prazer do texto, ou a forma da
('*) Mas, de resto, Eco di-lo de um modo explícito nas «Postiüc al Nome
delia rosa», Adabeta, 49. 1983, e embora não use o termo «neobarroco», e tal
vez também ele pisque o olho à «estética pós-moderna» de cariz literário, pa
rece-me ter ido muito além no caminho aqui indicado. Cf. também: Daniel
Arasse et adi, L'imitation.' adénation ou soarce de liberte?, La Documcntation
Françaisc, Paris, 1984; Jacqucs Ruffié et aiii, «Répétition ct variation», Cotpy
Éerit, 15, 1985; René Passeron. Création et répétition, Clancier-Gucnaud, Pa
ris. 1982.
59
Não se cxpticam dc outro modo fUmcs como Lron, ou como í/w ^o-
oo Longo & í/wr Dia, nos quais ficamos decisivamente impressio
nados com a procura de efeitos variados nas imagens, tai como fica
mos estupefactos com a pobreza narrativa dos entrechos. Apenas um
aflorar, enfim, dos âmbitos no fundo mais óbvios do ritmo c da estéti
ca das variações. A publicidade e os vidoo-c/tps. que não procurámos
examinar precisamente devido à sua imediata evidência, são o terreno
da mais obsessiva expressão (mas com resultados por vezes óptimos,
digamo-lo) das características até aqui analisadas. Como conclusão,
diremos apenas que a estética da repetição encontra também uma pos
sível explicação filosófica. O excesso dc histórias, o excesso do já di
to, o excesso de regularidade só podem produzir o estilhaçamento.
Dissc-o, no*fundo, Nietzshc, ao observar que a ideia do Eterno Retor
no depende do carácter repetitivo da história. O tédio, observava o
filósofo, depende frequentemente do facto dc estarmos saturados dc
história. A saturação destrói a ideia de harmonia c scquencialidade e
leva-nos, como notou BachelardC"), não só a reconhecer, como tam
bém a desejar o carácter corpuscular c granular tanto nas sequências
dos eventos como nas dos produtos de ficção.
(") Gastort Bachelard, La paetipao do /' espaço, Scuil, Paris, 1962 (trad.
it.: La poolica defio spazio, Dedalo, Bari, 1974).
60
1. Limite e excesso: duas geometrias
67
sistem a. A ssim , o exterior é d ele separado ou por oposição (se
for um outro sistem a), ou por privação (não d um sistem a). O
que garante a existên cia de um confim é, portanto: por um lado,
a propriedade separadora dos seus pontos; por outro, a coerên
cia (inciuindo a dos pontos do coníim ) de todos os pontos per
tencentes ao sistem a. A lêm d isso, cada confim não é entendido
com o um a barreira im pensável nos confrontos com o exterior.
São tam bém assaz raros o s casos de encerramento total e rígido
em relação àquilo que não pertence ao sistem a. Tam bém se
pode dizer que o coniim articula c gradua as relações entre o
interior e o exterior, entre abertura e fecham ento. È odcm os ter
também sistem as substancialm cnte fechados, mas nos quais o
con fim actua com o filtro ou membrana: tudo aquilo que está
fora do sistem a pode ser nele introduzido na condição de «tra
duzir» (no sentido próprio: «levar através de») os elem entos e x
ternos cm elem en tos internos, adequando-os à coerência do sis
tem a (por exem p lo, ao seu código). Ou então poderem os ter
sistem as abertos só cm algum as zonas, nas quais há um ailuxo
entre o interior e o exterior, ao passo que nas outras há um fe
cham ento m ais ou m en os rígid oÔ .
N o s casos dos sitem as substancialm cnte fechados, o próprio
facto de existir um «perím etro» im plica a existência de um cen
tro, a que também poderem os chamar «centro organizador».
Ora, o centro, com o diz A m h cim , não coincide necessariam en
te com o «m cio»(3). Pclp-qu& pedercm os ter uma nova cla ssifi
cação dos sistem as eáí*cetnroJosj(quando o centro corresponde
ao m eio) e ^ cscen troS S ylq u an d o existem m ais centros, ou
quando o ccíltro está colocad o perto da fronteira). N o caso dos
sistem as centrados, exactam cnte com o na geom etria, produz-se
uma organização interna ordenada por simetrias: no caso dos
sistem as dcsccntrados, a organizáçãõ-ó. assim étrica c isto co m
porta a geração de forcas expansivas. Um pouco com o no
exem p lo lotm aniano dos confins gcopolíticos: quando um Esta
do co lo ca a sua capital perto da fronteira, ou ainda não se deu
uma ordem central, ou então tem veleidades expansionistas, c o
centro dcscentrado de hoje é uma projccção de um centro ccn-
62
trai do futuro. Rcflictamos sobre a questão da dissimctria do
centro organizador. Esta, disse-se, gera forças expansivas. Mas
isto significa então que tais forças começam a exercer pressão,
a partir &? interior, sobre a própria elasticidade do pcrímetro-
-frontcira-confim: ou seja, tentam pôr em crise o conjunto de
pontos comuns entre interior e exterior, levando-os à tensão. É
por isto que poderemos dizer, continuando nas metáforas topo-
lógicas, que o confim se toma num /imite propriamente dito.
Mas na realidade, aceitando-se a definição de «limite», não
analítiça-mas^gjm topológica, de Bourbaki("), pode afirmar-se
que dm limite c um confim dc valores de um «contorno» cm
que toclDsros pontos gozam da mesma função. Sc, pois, se abate
o iimite, com isso mesmo se eliminará o contorno, ou scr-lhc-á
criado um outro. Cada pressão na direcção do limite tem, pois,
o valor de uma tensão.
A nossa linguagem comum regista perfeitamente esta situa
ção mesmo no campo cultural, c não necessariamente matemá
tico, e traz consigo uma espócie de memória da sua cspacialida-
de. Tomemos o termo latino /imett.* significa «limiar», por
exemplo, da casa, c define perfeitamente a oposição entre inte
rior c exterior e aberto e fechado. Sempre espacial ó o próprio
significado da palavra cúmu/o, ou seja, «o máximo sustentá
vel», enquanto estiver a indicar o ponto mais alto dc uma curva
qualquer. E ainda mais clara ó a imagem de excedo; do latim
ex-ccriere, «ir para lá de», o excesso manifesta a ultrapassagem
dc um limite visto como caminho dc saída dc um sistema fe
chado. Mas 6 sempre o uso linguístico que faz perceber o facto
dc que a imagem espacial se aplica aos factos culturais. Quando
falamos de «caso-limite», de «limiar de sensibilidade», ou de
«cúmulo da paciência», ou dc «excesso de maldade», manifes
tamos a tensão, ou o auge, ou a superação do confim de um sis
tema de normas sociais ou culturais, c os actos que levam às si
tuações de tensão, auge, ultrapassagem dos confins, são actos
que forçam o perímetro do sistema, ou que o põem em crise.
Neste sentido, podemos também observar que o acto limitativo
e o acto excessivo constituem uma oposição cm relação à pres-
63
são sobre os confins. O limite d rcalmcntc o trabalho de levar às
extremas consequências a elasticidade do contorno, mas sem o
destruir. O excesso d a saída do contomo, depois de o ter des
pedaçado. Transposto: franqueado atravds de uma passagem, de
uma brecha.
Disse-se acima que limite c excesso são dois tipos de acção
cultural. Mas trata-se de tipos de acção que uma cultura não ex
perimenta sempre. Existem períodos mais dirigidos para a esta
bilização organizada do sistema centrado, e períodos opostos.
Épocas ou zonas da cultura cm que prevalece o gosto por esta
belecer normas «perimdtricas», e outras em que, pelo contrário,
o prazer ou a necessidade d ensaiar ou quebrar os existentes.
Portanto: de tender para o limite e provar o excesso. Ao segun
do tipo pertence evidentemente a idade (ou o carácter cultural)
a que chamámos «ncobarroco).
64
Tomemos, como nos outros capítulos deste livro, um exem
plo emblemático. Trata-se do romance Congo, de Michael
Crichton. Dado tratar-se de uma obra extremamente comercial,
ela tenta duas operações de tensão do limite: uma no que diz
respeito à ciência (que dele constitui o argumento) e a outra nos
confrontos da literatura (na qual se insere como obra). Do pon
to de vista literário, é difícil denominar a classe a que pertence
este livro, que no entanto se anuncia como «romance de gêne
ro». É mais ou menos fantástico-cicntífico: cientistas e tecno-
cratas andam à procura de misteriosas minas de diamantes, com
os quais se fabricarão armas inigualáveis. Mas ê também uma
.vpy-jiory: a agência americana Erts luta, ao som de intrigas,
contra um sórdido Consórcio de potências estrangeiras. Mas é
também um romance de aventuras exótico-antropológico: via
gem pela África misteriosa, procura de uma mítica cidade de
saparecida, estudo de uma raça de gorilhas «inteligentes». E,
finalmente, é um pouco um romance policial: procura-se o cul
pado de uma série de massacres, como no caso da Rua Morgue.
Em suma, temos Poe, Conan Doyle e Burroughs, Vcme, Fle
ming e, obviamente, Sir Hcnry Rider Haggardf). Mas Congo
não é nada disto tudo, ou melhor, é o conjunto disto tudo. O
que é o mesmo que dizer que o novo gênero literário, sem se
identificar com qualquer dos seus predcccssores, os leva a to
dos ao limite, misturando-os num gigantesco paMic/to. Mas o
paM'c/:e não é obra de pura citação, como na prática literária a
que os americanos chamam «po.vnnodcr^-Ec^o contrário, é
sanção preliminar da existência de urrfgénero devida ao re
conhecimento de marcos de gêneros tradicionais, e invenção
consequente dojmpcrgéncro (limite de todos os gêneros) como
romance de pesquisa, que extrai dos gêneros precisamente o
momento indiciador.
Mas há um outro aspecto no livro de Crichton, menos evi
dente mas igualmentc fascinante, que é trabalhar sobre as teo
rias científicas mais avançadas em alguns campos da pesquisa
modema (infonnática, antropologia, zoologia, geologia, vulca-
nologia, teoria dos jogos, etc.). Os saberes utilizados não são de
63
facto imaginários (testemunha-o a bibliografia científica incluí
da no fim do volume). Só que são levados aay /imitei
veí. São teorias de que se simulam as consequências e as condi
ções extremas de uso. Resumindo: o fantástico já está entre
nós, basta apenas levá-lo mais alóm. E lícito pensar cm estra
nhos cntrccruzamcntos de gorilas superdotados e amestrados:
entre os cães, o homem já produziu o do/w/nan. Os símios fa
lantes já existem nos EUA, como o famosíssimo Arr/mr. Quan
to à televisão, em tempo não real, mas sim acelerado, ela está
hoje mais predisposta do que nunca com os programas «tele-
text». As simulações electrónicas que produzem imagens «ver
dadeiras» são hoje usadas.para produzir jogos-vídeo ou cinema
electrónico mediante modulações. As armas de ficção científica
fantástica podem ser por nós encontradas no projecto «guerra
das estrelas» americano. E assim por diante. Por outras pa
lavras: dado o confim de um certo domínio científico, exami-
nemos-the os rebordos, os susceptíveis de fazerem avançar o
"próprio confim para onde o não havia, c, impücitamcnte^jde-
clara-sc a existência de uma zona de fronteira variável ou irre
conhecível entré «real» e «possível inactual»(*).
O caso de Co/rgrr representa um procedimento ao limite no
âmbito de grandes proporções de significado. Mas na era das
comunicações de massas estamos acostumados a operações «ao
limite» também de tipo formal. Por exemplo, no modo de re
presentar o tempo e o movimento por meio das tecnologias de
comunicação. Nos últimos anos, de facto, habituámo-nos cada
vez mais a ver representado um limiar de tempo e movimento
que está nitidamente abaixo ou acima do perceptível, com a
consequência de deslocar o limite da nossa própria imaginação
das acções. Ninguóm se maravilha já ao observar ao rctardador
as fases importantes das partidas de futebol. E assim qualquer -
adepto confia à câmara o juízo sobre a equidade de uma direc
ção arbitrai: como se também na realidade fosse possível pres
tar atenção às acções no mesmo modo. Exemplos semelhantes
nos chegam também das produções ticcionais para cinema de
televisão. É cada vez mais normal relacionar o inquérito sobre
momcntos-chavcs de uma cena ao retardamento do seu tempo
67
% Lh4-<^<^dk^4a,
63
modificação importante, parece-me, deverá ser procurada no sentido
diferente da história em relação a outras épocas. Não se poderá negar
que vivemos hoje num período de total simuitaneidade dc quaiquer
objecto cultura!. O telecomando, com a possibilidade de esmagar nu
ma mesma linha produtos provenientes de uma espessura histórica di
ferente, faz que tudo seja posto automaticamente em vizinhança e em
continuidade. Este fenômeno é bem conhecido dos professores do en
sino secundário e universitário, que se encontram perante alunos capa
zes dc passarem, sem quatqucr sentido dc relatividade, de Aristóteles
para Michael Jackson, dc Espinosa para os «novos filósofos», como se
fossem entidades dialogantes. Uma s e g u n d a r ã o do mundo, cm se
guida, é o sentimento de vcrificabilidade do rcal/As novas tecnologias
audiovisuais anulam a^COiiliança na verificação pessoal dos factos.
Não é a visão directa do jogo de futebol que dá a ilusão da verdade,
mas a sua re-visão na televisão ao rctardador. A técnica dc representa-*
ção produz objectos que são mais reais do que o real, mais verdade do
que a verdade. Mudam deste modo as conotações da certeza: ela já*
não depende da segurança nos próprios aparelhos subjectivos de con
trolo, é delegada em qualquer coisa de aparentemente mais objcctivo.
No entanto, paradoxalmcntc, a objcctividade assim atingida não é uma
experiência directa do mundo, mas sim a experiência dc uma represen
tação convencional. A incredulidade de S. Tomé está definitivamente
ultrapassada. Acreditamos nos milagres não por lhes tocarmos, mas
sim se alguém no-los vem contar: por isso, ao rctardador.
3. Excentricidade 4?
(*) Cf. Lucio Lombardo Radicc e Lina Mancini Proia, /í /neíod<? /waíe/ng-
dco, Principato, Milão, 1979, pp. 68-94.
um senhor (ou então um sujeito) que age nos iimites de um sistema or
denado, mas sem que ihc ameace a regularidade. Alguém que coloca o
seu próprio «centro» de interesses ou de influencia deslocada para a
periferia do sistema, ou para as suas margens. A moda sancionou um
comportamento semelhante a partir do século XIX, prevendo estilos
vestimentares «fora do comum», como o dos Mas também
no barroco (vejam-se os fatos das festas do Rei-Sol, em França) o esti
lo excêntrico estava largamente em uso. Hoje, a excentricidade na mo
da parece ter-se tomado quase uma regra: e o facto de acontecer na
moda testemunha quanto se disse. Ou melhor, que a excentricidade
comanda uma pressão em direcção às margens da ordem, mas sem be
liscar a ordem, ao passo que a própria excentricidade é prevista pelo
superior organismo das regras do vestir. Excêntrico é também o estilo
casual, o punÁ: revisto e corrigido, o ornamento curioso colocado sobre
um vestido tradicional, o costume de inverter «divisas» tradicional
mente reservadas a determinandas ocasiões (usar os jeans para uma
cerimória e o s/noAíng para um passcio)("). O exemplo da moda, por
outro,lado, confirma-HfR-aspeete^ndamcntal da excentricidade, a sa
ber: Ia sua dominante cspcctacularjNào é por acaso que é prccisamcnte
no mundo das cenas (música, televisão, teatro, cinema) que a excentri
cidade é exibida como um valor. O estar sob os olhos de um polícia
obriga à procura de uma identidade individual separada das outras
(com um centro próprio, pois), mas na manutenção de uma identidade
socialmente aceite.
Um exemplo muito claro deste mecanismo pode ser encontrado
por nós nos processos (aparentemente mais «esquisitos») de denomi
nações dos grupos artísticos, musicais e teatrais de hoje. Dar-se um
nome, de facto, significa precisamente inventar uma identidade, cons
truindo-se uma individualidade no interior de uma colcctividadc(^).
Se nos detivermos um pouco nos nomes dos «performers» modemos,
não nos escapará o mecanismo de produção de uma imagem dos sujei
tos como eles próprios objectos de imaginação espectacular. Eis uma
lista rápida: Rapazolas Mundanos Mecânicos, Capuchos e Cabeleiras,
Grupo Oh! Arte, Ramaxzoti Sisters, Sinestúdio para Motores Gerais,
70
Nata Ácida, Teatro Momentaneamente Ausente. E na música: Frankie
Gocs to Hollywood, Levei 42, Cuiture Ciub, Art of Noise, Shampoo.
E são apenas alguns pouquíssimos exempios, mas que bastam para de
monstrar como os nomes se transformaram em quaiquer coisa de mui
to mais singuiar do que precisamente em nome: tomaram-se /úa/oí.
Isto tem o ciaro significado de entender o grupo, teatrai ou outro,
como se e!e fosse cm primeiro iugar, em si, uma obra de arte, sem
fazer quaiquer distinção entre arte e vida, produção c execução, capa
cidade e per/õrfnaHce. Mas um uiterior aspecto de excentricidade e
trabaiho nas margens dos sistemas também existe nos mesmos textos,
sobretudo pubiicitários, musicais c teatrais. Os gêneros de espectácuio
viram-se reaimente sempre mais para os seus próprios iimites mate
riais, e invadem os dos territórios iimítrofes. Para faiar verdade, c tam
bém difícil faiar de «publicidade)), «música)), «teatros: meios e iin-
guagens estão a interferir reciprocamente numa espécie de intertextua-
iidade na origem, e não numa intcrtextuaiidadc como única hipótese
de funcionamento da cuitura. Um jtpor pubiicitário asscmciha-se hoje
com frequência a um videoc/tp. mesmo quando não coincidem, como
no caso do anúncio da Citroen e de outros produtos em que entra Gra-
ce Jones e que depois foram aproveitados para um vídeo de promoção
seu. O teatro nos Magazzini Criminaii nada mais é do que uma soma
de efeitos visuais provenientes da música, da teievisão, da publicidade
e da arquitectura: um «teatro de superfícies, um teatro das conjunções
intertextuais. Na excentricidade se opera, pois, a passagem tota! para a
margem, a «peles da obra, com uma pesquisa hoje orientada para o
formaiismo c a estetização, contra uma ccntralidade outrora baseada,
por exemplo, na ética ou na cmocionalidade.
Trata-se de um tipo de estetização substancialmente inócua para o
sistema, a menos que não seja levada ao limite e à sua superação, que
investe fortemente também nos comportamentos da vida quotidiana.
Basta pensar nas histórias sobre anômalas «proezass cometidas por
anônimos senhores para entrarem no GMM!ne.M dos recordes ou nas pá
ginas das revistas de aventuras: atravessar a América a pé, fazer um
mes de sirga em Caxemira, armar em navegador solitário, passar as fé
rias a fazer turismo equestre, atravessar o oceano em winrf-íM//, conse
guir sobreviver 52 dias no monte Branco só com as provisões levadas
de casa, ir de trenó até ao Pólo Norte, participar em corridas de ciclis
mo cm bicicletas experimentais desenhadas como automóveis. E uma
espécie de anedotário (estético, talvez também cm sentido inferior) da
vida quotidiana, cada vez mais vigoroso no mundo contemporâneo, e
77
Icntamcnte industrializado: bastam os exemplos de transmissões tele
visivas de grande sucesso na America c agora tambcrn aqui entre nós,
na Itália, com Vonat/ar/t c 7?ig Bang, nas quais tais «proezas» fora do
comum são frequentemente impingidas cm nome do amor ao despor
to, à natureza, pcia aventura. Nos Estados Unidos, chegou-se a arran
jar situações pagas de «excentricidade» reguiada, como, por exempio,
jogos de guerra de facto feita, embora não com armas ictais, entre gru
pos de «desportistas» que se apresentam mascarados de «marines» e
travam recontros bélicos cm terrenos delimitados. Ou então competi
ções com vários meios, mais ou menos mecânicos, cm condições difi
cílimas, como o Can/to&t??, uma espécie de raii em condições de pura
sobrevivência, ou o Carne? 7'rop/ty, o Pa/is-DaAar c empresas seme
lhantes, que por vezes se arriscam a transformar-se cm situações de
cfcctivo perigo. De facto, da excentricidade, levada ao limite, consc-
guc-se um «efcito-risco» cada vez mais alto('^). É característico, a este
propósito, o facto de cm Inglaterra se ter criado um «Clube do Risco»,
no qual só se podem inscrever pessoas que tenham levado a cabo um
empreendimento muito perigoso, do gênero mergulhar do alto da To-
wcr Bridgc, lançar-se com um pára-quedas minúsculo cm precipícios
com trezentos metros de altura, atravessar um desfiladeiro sobre uma
corda esticada. E idêntico aspecto vigora hoje no desporto, todo ele
complctamcntc virado para o recorde c a superação dos limites («o li
mite precedente»).
4. Excesso e antídotos
7^
^ «excesso»? Podemos dar duas respostas, a segunda peto ponto de vis
ta sob o qua! se encara a pergunta. A primeira parte da norma vigente
como !ugar de observação do eros. E consistirá então cm avaiiar como
«excesso» não só o que genericamente sai da norma, mas também
uma espécie de espiral inflacionária na quantidade e qualidade de
objcctos «indecentes» produzidos: o excesso será considerado uma
«dcgcncração» do sistema de valores dominante. A segunda, pelo
contrário, parte da oposição à norma vigente como lugar de observa
ção do eros. E consistirá então em julgar como «excesso» aquilo que
produz «escândalo», etimoiogicamcntc «pedra do tropeço», do grego
jAá/ttZa/o/t, isto c, quntqucr coisa que ameaça fazer cair outra coisa
qualquer durante o seu percurso normal. O tema excessivo do sexo,
portanto, não valerá SQ^etn.sim,e§aio, por aquilo que diz rcferencial-
mente, mas cnquanto^provocação» a ultrapassar os limites dos prin
cípios sociais correntes. Tanto mais que a sexualidade excessiva, por
exemplo, a de certo cinema da última década, ou um pouco mais, foi
sempre símbolo de outra coisa. E aí está então o sexo como alegria e
libertação de pulsões na trilogia Deca/Meron-Ca/ücrMry-Mi/ <? ÍZ/na
Noites, de Pasolini, ou o sexo como morte nos Cem D ias <Ze Axioma,
do mesmo autor. Eis o sexo como imaginação em O Ditimo ía/tgo em
Paris, de Bcrtolucci. Eis o sexo como denúncia, revolta, no cinema de
vanguarda east-coast americano, ou em Fassbindcr, ou, pelo menos
cm intenção, cm Bcllocchio. O mesmo aspecto inquictante e provoca-
tório, até à ordinaricc, encontramo-lo na sexualidade expressa por cer
tas personagens do roc% contemporâneo. Estamos a pensar na ambi
guidade de Prince ou de Michacl Jackson, com o seu violento falismo,
mas unido ao efeminado. Pensamos no difuso hermafroditismo de um
David Bowie. Ou então notemos a tendência de certos grupos de ho
mossexuais caüfornianos, que produzem espectáculos «escandalo
sos», como, exemplo clamoroso, o vi& o-ciip yankee roixx, onde ca
da componente não só canta em posições voluntariamente obscenas,
como também usa os instrumentos musicais como instrumentos de se
xo (masturbação do microfone ou do braço da guitarra, uso dos cabos
passados entre as pernas, instrumentos de sopro tratados como órgãos
para a/eiiatio, etc.). O travestismo de personagens como Boy Gcorge
74
é um dos pontos extremos do fenômeno. O mesmo sucede com as per
sonagens femininas, como, por exemplo, a Madonna dos primeiros
tempos, que cantava a explosão do amor físico, ou a mais modesta Joe
Squillo, a nossa compatriota executante de um trecho intitulado Via-
/enfem-Me Dentro Metro, ou as várias Lorcdana Bcrté, Rcttorc,
Spagna. Sempre entre nós, depois, temos o caso de Renato Zero, mui
to mais inofensivo representante da tendência «homossexual» da mú
sica.
A par do sexo, a violência, ou, mais em geral, o horror. Cinema,
teatro, música, estão de novo na vanguarda. À parte o desenvolvimen
to de gêneros específicos de horror, com o triunfo de Dario Argcnto,
cada vez mais á procura de efeitos-açougue, pode dizer-se que nos
últimos anos surgiu um filão inteiro de cincma-tcatro-música «da
crueldade». O mito, hoje ultrapassado, do Bronx c da representação
de «assuntos malditos» invadiu durante longo tempo ecrãs e ribaltas.
Alguns títulos: IVarríors. Wa/t&rers, Faga para Ao va /or^ac, os pelo
menos quatro filmes de Matí Max. Ilustram tais filmes, c não por aca
so, bandas sonoras ou músicas de grupos homogêneos como os Poli-
ce, talvez os mais típicos representantes de uma cultura de re
cusa da ordem social por meio da representação (não exaltação) da
violência. Na Itália, as imitações são poucas, como o Kaos Rock ou o
Kandeggina Gang, e, em versão nitidamente irônica, os Skiantos.
Uma violência mais intelectual percorre entretanto certas obras tea
trais, e acima de todas vale a pena citar o exemplo de Ccnef 7*â/i-
ger, dos únicos Magazzini Criminali, ou as instalações de teatro em
vídeo do Studio Azzurro. No fundo, todos eles revisitações de uma
violência modelo anos 50, mas dotada de uma componente já não ape
nas ideológica (ou que na ideologia cm si via uma poética), mas tam
bém estética. Podemos também catalogar todas as formas de excesso
em conteúdo que enumerámos na rcnasccntc categoria de uma «esté
tica do feio»('^). Monstros físicos e morais, obscenidade, embrute-
cimcnto, violência, não valem só pelo seu significado, valem também
pela sua forma de expressão. Mais ainda: a transgressão no plano da
superfície dos fenômenos toma-se praticamente fundamental, cm ní
tido prejuízo da transgressão semântica, que é julgada como parte de
(") Karl Rosenkranz, op. cú.. que foi recentemente objccto de estudos de
estética, por exemplo, no âmbito do Centro Internacional de Estética de Paler-
mo, que também tratou da sua tradução para o italiano, em 1984.
uma dimensão idcotógica provavelmente ultrapassada ou a ultra
passar.
Teremos uma nova prova daquilo que estamos a dizer se nos de
bruçarmos sobre algumas operações artísticas recentes. Tomemos o
caso de um pintor americano como Keith Haring. Algumas das suas
obras são acumulações excessivas de cor e incrustaçõcs de vemiz.
Mas não se trata do gesto informal — «político» — de qualquer pa
rente afastado da Action Painting ou dos Informais europeus. Não há
conteúdo trágico nos montões de matéria cromática do Palladium de
Nova Iorque. É antes um «feio» não contraposto polcmicamente a um
«belo» c revalorizado. É um «feio» que é «belo». O mesmo discurso
vale para numerosos «ismos» recentes, quase todos aparentes retoma
das de temas de há trinta anos atrás, e, pelo contrário, fortemente dife
renciados. Os grafitistas norte-americanos não são de modo algum
muralistas sul-americanos. Não iremos buscar a Arman os expoentes
da «arte das recusas». Não há que fazer do expressionismo ou do fau-
vismo, nem de Rothko ou Bamett Ncwman, a pintura dos expoentes
da chamada «transvanguarda». Aquilo que desapareceu cm tais expe
riências talvez tenha sido o rcfcrcncialismo das temáticas representa
das, a importância do conteúdo. Resultado: uma pesquisa substancial-
mente «decorativa» (termo usado aqui cm sentido absolutamente nada
negativo), de superfície, de materiais, de organizações formais. O ex
cesso de que se falava toma-se assim cm excesso representado tam
bém por um excesso de representação, isto c, uma espécie de «dema
siado» no âmbito da forma. Não c inutilmente, de resto, que mesmo a
forma das obras de artistas actuais requeira um dispêndio e uma quan
tidade de materiais enormes.
Pode chegar-se a casos de monumentalismo e de gigantismo^):
desde o embrulhar das muralhas aurelianas de Roma c do deserto aus
traliano feitas por Christo, até à transformação de uma colina cm es
cultura, como no ambicioso projecto para o cemitério de Urbino por
Arnaldo Pomodoro, até à transformação da praça cm frente do Palais
Royal cm Paris, por parte de Daniel Burcn. Como se vê, estamos ple-
namente chegados à segunda categoria inicial, a do excesso de repre
sentação, explicando-a como co-ncccssária ao excesso representado.
Configurar um conteúdo excessivo, de facto, modifica a mesma estru-
76
tura do seu contentor e requer dctc uma primeira moda!idade de apa-
rição espacial: a a excedê/teia. Desmcsura c excedência
estão entre as principais constantes formais dos contentores neobarro-
cos, sobretudo no âmbito da civitizaçâo de massas. Basta reflcctir so
bre a ampiidão cada vez maior de certas manifestações em púbtico.
N o desporto, por exemplo, as olimpíadas e os campeonatos mundiais
de futebol atingiram dimensões organizativas impressionantes e de to
dos eles o emblema triunfante foram os Jogos Olímpicos de 1984, em
Los Angeles. Espectáculos como o Live Aid ou a «marcha da paz»,
com a ligação simultânea entre as principais cidades do mundo, são
um caso ulterior de procura de um «contentor universal» por meio das
tecnologias de comunicação. Mas também as manifestações artísticas
sofrem o mesmo fascínio. O «efeito Beaubourg» está agora a ganhar
raízes em todo o mundo ocidental, tanto na muscografia como na pre
paração de exposições temporárias. Uma lista rápida: o projecto do
«grande Louvrc», com a famosa pirâmide de vidro de Pci, cm Paris, o
Museu de Orsay e o Museu de La Villete, sempre na capital francesa;
a circulação das grandes exposições entre a Europa e a América (os
impressionistas entre Londres, Paris e Los Angeles; o século XVII
cmiliano entre Bolonha, Washington c Nova Iorque; Donatcllo entre
Chicago, Dctroit e Florença; o Liberty vienensc entre Veneza, Viena c
Paris; as peregrinações da colecção Thysscn de Lugano e das colec-
ções soviéticas); a programação Fiat do Palaxzo Grassi, em Veneza.
Até a indústria cede à tentação cspectacular: e assim temos o ressurgi
mento de um espírito «fin de siécle» na organização das Exposições
Universais, que assistiram à afluência, em 1985, a Tsukuba, no Japão,
de cerca de 12 milhões de visitantes, e, cm 1986, em Vancouvcr, no
Canadá, de quase 15 milhões('*).
Mas os conteúdos representativos c a representação dos conteúdos
oferecem meras indicações de comportamento, também elas excessi
vas. O comportamento adequado aos textos e á sua forma é de facto
«anormal», no sentido da cultualidadc mais desenfreada. Pensamos
cm todos os fenômenos de histerismo de massa a que se tem assistido
nos últimos tempos. Deste ponto de vista, não fazem muita diferença
fenômenos como a criminalidade dos adeptos de futebol britânicos no
estádio de Hcyscl, na Bélgica, durante a final da Taça dos Campeões,
77
SA L A DE E ST U D O S
disputada entre o Juventus c o Liverpool, cm !985, ou o delírio das
massas pelos mcgaconcertos roc/r das stars mais famosas. E no mes
mo horizonte do excesso poderemos colocar comportamentos rituais
como o dos espectadores que regressam obsessivamente ao mesmo ci
nema de Nova Iorque e Londres há quase dez anos, c há seis aos de
Paris e Londres, para verem o Poc%y //orror Pictare 5Aow, assumindo
eles próprios a aparência e as acções das personagens da película e en
cenando «espectáculos de fruição». Ou a cada vez mais frequente
construção de «maratonas de espectáculo», com visionamento de qua
tro filmes consecutivos à noite, ou quilométricas partidas de bola.
Mais «tranquilas» são, por seu tumo, as maneiras de exibir a própria
vida privada, teatralizando-a. No mesmo plano, então, poderemos
colocar a chamada procura do iooL amplamcnte favorecida pelo ac-
tual desenvolvimento da moda c o renascimento das grandes festas
«de corte», em tempos apanágio da aristocracia de sangue e hoje pos
tas em circulação pelas mais variadas novas aristocracias. Alguns rá
pidos exemplos: a festa organizada pelos Rotschild em Paris cm 1985
para a reabertura do Museu das Artes Decorativas, na qual foi servida
uma ceia magnífica a 200 convidados num salão do edifício, enquanto
alguns outros milhares de convidados «não de primeira classe» assis
tiam das galerias do piso superior, como num fresco de Ticpolo; a fes
ta de abertura da exposição Patarisrno & f ataris/nos, em Veneza, no
barco Oricní Express, dada pelos Agnclli; a parada da alta sociedade
veneziana em torno do ministro da Indústria, De Michclis; os novos
casamentos em grande estilo, desde o de Carlos e Diana de Inglaterra
até ao de Pippo Baudo c Katia Ricciarelli, aos das vergôntcas dos
Grandes Ricos. Não é por acaso que, à volta destas práticas, chegam a
nascer novos mesteres, como o de «arquitccto das festas», «designers
de culinária», «caHering» (isto é, gestão de banquetes), «arquitccto pi
rotécnico» (que desenha os fogos-dc-artifício).
Uma outra característica, quanto à desmesura quantitativa, é a da
desmesura qualitativa, ou seja, o virtuosismo. E de novo podemos di
zer que encontramos este traço em todos os níveis categoriais. Existe
realmente o virtuosismo como tema tratado, por exemplo, no filme so
bre Diaghilev, ou nos Encontros co/n Personagens Enanentes, de Pc-
ter Brook, ou na série de televisão fa/na. Mas o tratamento do virtuo
sismo requer também formas textuais virtuosísticas: não serão assim
certos filmes, como Os éa/teadores da /Irca Perdida, ou os últimos
produtos de Fcllini, desde a magistral cena do desfile de moda ecle
siástica, cm Po/na, até a O /Vavio? E não é virtuosismo a agora impe-
rante característica dc cada pcr/bwMncg, até na pintura a partir do
hiper-reaiismo para alcançar certrts manifestações contemporâneas,
como a citação mais-que-perfeita dos primitivos flamengos no ame
ricano Murray, a reprodução ligeiramente desviada das naturezas-
-mortas teóricas maneiristas no napolitano Cantone, a representação
metafísica cm Scolari, os «falsos de autor» do Collctivo Falsari de
Cremona? Assim como são virtuosísticos certos comportamentos quo
tidianos, desde a visão eu/; de certos cinéfilos ao regresso dos AoMies
mais estranhos e dos coleccionismos mais particulares, que implicam
uma «superespccialização fruitiva», nos limites do maníaco. E, repita
mo-lo, estes comportamentos reais até são sempre induzidos pelos tex
tos porquanto inscritos neles. Um par dc exemplos: em Fama (no fil
me, não na série, desta vez), dois alunos da escola de artes que serve
de moldura à história encontram-se precisamente a assistir a uma exi
bição do /?oc%y //orror Fíctarg 5Aow, na qual outros jovens declamam
a recitação da fruição; e em Grem/ms os monstrinhos de Spiclberg que
ocuparam a cidade assistem do mesmo modo à Franca dc /Veve dc
Walt Disney.
Em conclusão, poder-se-ia referir o facto de que os excessos nco-
barrocos dos nossos tempos, precisamente por incidirem não só sobre
os conteúdos, como também sobre as formas e as estruturas discursi
vas, e não sobre a recepção dos textos, não produzem necessariamente
inaccitabihdadc social. Só cm alguns casos, de facto, sobretudo dc
conicuífõjã superação dos confins sistêmicos (principalmcntc éticos)
implica a rejeição por parte do mesmo sistema. Noutros casos — desta
vez e em particular os respeitantes às formas e às estruturas — , o der
rube dos confins não provoca destruição ou exclusão, mas apenas des-
/ocaçdo das /ronteiras. A fronteira, por causa de um excesso «aceitá
vel», c simplesmente empurrada mais paru lá (até muito mais para lá
do que dantes), com a consequente absorção, mesmo que conllitual.
do excesso. Podemos dar a seguir casos intermédios, nos quais tam
bém os excessos dc conteúdo permitem a absorção no sistema. Primei
ro, porque o sistema se torna mais elástico nas suas próprias fronteiras
e isola certos fenômenos na periferia ou nas margens, à maneira dc
gueto. Segundo, porque todo o sistema no seu conjunto se torna elás
tico (pelo que surgem princípios dc «tolerância», «permissividade»,
«libertarismo», etc.). Terceiro, porque o sistema consegue integrar o
excesso, desviando-o do objcctivo c, assim, tomando substancialmcn-
te normal uma aparência excessiva. Este último princípio, na realida
de, é uma constante reguladora dc qualquer sistema social (político,
79
dc gosto, religioso) e consiste na criação de antídotos ou anticorpos ao
próprio excesso, ate mesmo nos iocais em que o excesso tenha come
çado a funcionar. Isto também expiica o caracter inevitavelmente in
flacionário dc cada movimento que se verifique nos limites dc um sis
tema: deslocando-se eles cada vez mais além, o trabalho também
deve, por consequência, acertar o ponto de mira, exagerar e exasperar
a acção.
Com as últimas observações, chegamos à introdução de um crité
rio de diferenciação entre as várias operações ncobarrocas que tenham
como objccto a acção sobre o limite ou por excesso. Antes de mais na
da, vejamos o seguinte esquema:
épocas
estáticas dinâmicas
PORMENOR E FRAGMENTO
1. A parte e o todo
34
er^tC, ^ T -tctr-y - Yv ^
2. Etimologia do «detalhe»
3. Etimologia do fragmento
/ ^
Completamcnte diferente é a etimologia deí«fragmcnto», que deri
va do latim «frangerc», ou seja, «quebrar». Dc^frangCrc» derivam
também, entre outros, mais dois vocábulos, que constituem parte em
rciação a um todo: «fracção», e «fractura»^). Note-se que a sua diver
sidade depende da marca temporal que escande a rotura: o fragmento
37
sucede-lhe, a fracção 6 o ac to divisório, a fractura c uma potencialida
de de rotura não necessariamente definitiva.
__0 fragmento pressupõe, mais do que o sujeito do romper-sc, o seu
objccto. A prova disto c que o verbo «romper» possui uma forma re-
ftexa passiva. Difcrcntcmcntc do detalhe, o fragmento, embora fazen
do parte de um inteiro anterior, não contempla, para ser definido, a sua
presença. Assim: o inteiro está in a&R?ntia. E, de facto, do ponto de
vista discursivo, a operação da rotura ó escalonada num discurso his
tórico c não num discurso com cariz de cnunciação. O fragmento dei
xa-se assim ver pelo observador tal como é, c não como fruto de uma
aeção de um sujeito. É determinado pelo caso, se assim quisermos di
zer, e não por uma causa subjectiva. Como é natural, isso acontece no
momento cm que o fragmento surge num discurso, não naquele cm
que evcntualmcntc se rcconstrói a razão do seu ser fragmento. Outras
diferenças em relação ao detalhe são que os confins do fragmento não
são «dc-ftnidos», mas sim «inter-rompidos». Não possui uma linha nt-
tida de confim, mas antes o recorte de uma costa. Assim, podemos di
zer que ate a oposição^entre caso c causa, que o diferencia do detalhe,
se traduz numa geometria fraccionária, assim como o segundo expri
me, pelo contrário, uma geometria plana, tradicional c regular^).
Mas, na realidade, a geometria do fragmento é a de uma ruptura
cm que as linhas de lrontcira devem considcrar-sc como motivadas
pór forças (por exemplo, forças físicas) que produziram o «incidente»
que isolou o fragmento do seu «todo» de pertença. A análise da linha
irregular de Ponteira permitirá então nao uma obra de rcrcaastúnicão,
como se disse a propósito do detalhe, mas <(cre-con.MrMção, pela via
de hipóteses, de sistema de pertença. Pressuposto assim, também ele,
como patte de um sistema, o lragmcnto não é eayt/icario. Ao contrário
do pormenor, o qual, pelo contrário, embora pressuposto do mesmo
modo, cxpiica & ama maneira nova o mesmo sistema.
Por estas razões, o fragmento não c metido num discurso deixando
traços de cnunciação. O discurso mediante fragmento ou sobre frag
mento não exprime um sujetto, um tempo, um espaço ria cnunciação
(cxccpto se o examinarmos cm detalhe). E os seus limiares são, por
isso, puramente quantitativos: um limiar microscópico (acima do qual
não se reconhece um objccto como fragtncnto, mas apenas como
«poeira») c um macroscópico (acima do qual se percebe apenas o in-
'
(") Cf. in/ra.S VI.
39
leitura aproximada, por um lado é explicado pelo sistema (ou pela es
trutura) e, por outro, permite verificar ou reformular a própria estrutu
ra. Idêntico princípio serve para o fenômeno em si: este manifesta as
regras gerais sistêmicas sendo sistema na primeira pessoa, isto é, dota
do de uma estrutura; assim, os seus detalhes permitirão verificar a sua
estrutura, por um lado, e, por outro, serão analisados a partir da ideia
de que o conjunto estará estruturado. Mas o mesmo princípio serve
também para as disciplinas que não nascem como estruturalistas. No
âmbito da história da arte, por exemplo, a iconologia funciona da mes
ma maneira. Ela contempla uma teoria dos níveis de significado: a
análise prc-iconográfica, a iconográfica e a iconológica. Na primeira,
reconhecem-se numa obra os «motivos», como figuras naturalmente
reconhecíveis; na segunda, a combinação dos motivos conduz ao re
conhecimento dos temas; na terceira, rcmonta-sc ao conteúdo simbó
lico c â atitude deste produto num ambiente determinado^). Mas isto
nada mais é do que uma observação de porções da obra segundo um
sistema de aproximação ao particular com o objectivo de reler e rein-
terpretar o inteiro. A obra é considerada como um sistema dotado de
um conteúdo mais ou menos oculto, no qual cada porção é remetida
ao significado global, e produz sentido a mais níveis, segundo o siste
ma de relações pelo qual estas se integram com as outras.
A que se baseia no exame dos fenômenos como fragmentos/é uma
prática analítica dc tipo, pelo contrário, substanctalmetue indutivo, ou
abdutivo(^). O fragmento c cm geral uma porção presente que reenvia
para um sistema suposto como ausente. A mediante fragmentos tem
mais o aspecto de um inquérito do que de uma pesquisa analítica. Não
é por acaso que cm certas disciplinas naturalmcnte dirigidas ao frag
mento se tem muitas vezes a impressão da procura do sM.spe/Me, isto é,
de uma progressão aventurosa em direcção a uma solução suposta e
eventualmcnte confirmada. Nas mesmas ciências da linguagem, que
primeiro até tínhamos dedicado ao detalhe, existe também uma verten-
pressuposto de que a parte mostrada diga qualquer coisa «mais» sobre o siste
ma de pertença apenas porque detalhe e inteiro partilham em cada parte o
mesmo «sentido».
C) Ornar Calabrese, // /t/tgMtrggío Bompiani, Milão, 1985.
f ) Entcndc-sc por «abdução» a escolha de uma hipótese que possa servir
para explicar factos empíricos; a verificação de parte destes últimos transfor
ma-a em lei. Cf. Umbcrto Eco, 7raMrM<?..., cit.; Charles Sandcrs Pcircc, Co/íec-
tedPupers, HarvaTd University Press, Cambridgc, 1931-1936.
90
tc oposta. Pode pcnsar-se, por exemplo, numa semiótica «fragmentá
ria»: a que parte do conceito de aMação de Pcirce, e que, pelo menos
nas manifestações modemas, parece mais uma prática de detecção do
que de dedução. Não é por acaso que numerosos semiólogos de matriz
pcirciana dedicaram um volume de pesquisa, O -Sina/ doy ), à in
vestigação dos grandes narradores, ou melhor, ás personagens de
Shcrlock Holmes e Auguste Dupin. E Cario Cinzburg tentou definir a
existência de um «modelo conjectural» do conhecimento que seria
acolhido, no final do século XIX, por três grandes pensadores em três
âmbitos disciplinares diferentes: Peirce, na lógica e na semiótica,
1-rcud na psicanálise e Giovanni Morelli na história da artc('°). Da se
miótica, já se falou. No que concerne à psicanálise, efcctivamentc a
prática freudiana concebe o relato do sonho como objccto indiciador.
<) sonho é reconduzido a um inteiro que é a personalidade do paciente,
mas este inteiro não c conhecível, e só sc pode reconstruir a partir do
próprio sonho, que c um fragmento daquele intciro("). Quanto â arte,
rucontramo-nos perante o mesmo princípio. Todo o atribuicionismo
ou prática de connoi.MeMrj/iip considera a obra monumcntalmente
anônima como fragmento de um sistema do qual se deve reconstruir o
conjunto em falta (a «pertença» a algo, ou até a pertença a uma obra se
o objccto de que dispomos for ele próprio um fragmento concreto). Ou
então, pensa também que pequenos pormenores pertencentes à obra
podem literalmente ser extraídos dela e analisados como «fósseis-
guia»: são, de facto, eles que manifestam melhor do que a obra com
pleta a outra e mais fundamental integridade que é a pertença a um au
tor, ou a um estilo, ou a uma época. Também certa crítica de arte pare
cerá empenhada na ideologia do fragmento. Por exemplo, a crítica que
numa obra privilegia certas posições do texto, e não outras, exaltando
só aquelas e cancelando a própria obra como global idadc(^).
97
É evidentemente no âmbito das discipiinas históricas em gerai, no
entanto, que a crítica «fragmentária» tem o seu máximo desenvolvi
mento. Não é por acaso que a arqueoiogia trababaiha com hipóteses e
reconstituições precisamcntc a partir de fragmentos reais de obras do
passado. Trata-se, neste caso, de uma necessidade: o tempo destruiu
os inteiros e deixou-nos precisamcntc os fragmentos. O nome de Cario
Ginzburg, citado mais acima, permite-nos recordar que a chamada
«micro-história» funciona ideaimente com fragmentos. De facto, a
pesquisa «não-acontccimentai» prefere o micro-acontecimcnto, en
quanto, por um iado, eie permite o controio do facto examinado e, por
outro iado, exprime mcihor do que o macro-acontccimento o «espíri
to» de uma cpoca, que supostamente se mantém mais ou menos anáio-
go em todos os compartimentos c níveis de uma sociedade dada num
momento dadof^).
5. Um esquema de reiações
Com base nas notas precedentes, surge agora ciaro que o uso do
pormenor ou do fragmento como prática anaiítica contempia uma
pressuposição de vaioj^que-sc-dá á relação entre a porção c o sistema a
que cia pertence. Q «regresso» da partejao todo impiica, cm suma,
uma avaiiação diferente, nos dois casos, do cicmcnto e do inteiro.
Quando depois o inteiro, ou «todo», ou sistema, for uma obra de arte,
a avaiiação da mesma rciação tornar-sc-á então uma estética. No caso
do pormenor, de facto, teremos uma tendência para sobreavaiiar o eie-
mento enquanto capaz de fazer repensar o sistema: o detaihe é então,
por assim dizer, «cxcepcionaiizado». No caso do fragmento, pcio con
trário, a porção toma-se como um acidente, do quai se parte para re
construir o todo: o fragmento será agora reconduzido a uma sua hipo
tética «normaiidadc», a que está no interior do sistema suposto.
«Êxccpcionáiidade» contra «normaiidadc», cm suma, tomam-sc
numa nova categoria, que preside ao uso do pormenor c do fragmento.
Vamos aprofundar a sua oposição e expandi-ia, ou articuiá-ia. Para o
fazermos, devemos esquematizá-ia com o emprego de uma terminoio-
(") Para uma panorâmica sobre a escoia histórica que provém do grupo
da revista cf., entre outros, Georges Duby, í e J?êve de f ái.stoire, Pa
ris, 1983 (trad. it.: // .so^no .storia. Garzanti, Miião, 1986).
92
gia coerente. E tomemos, com este objectivo, uma metáfora científica.
Em topoiogia, pode considerar-se como sistema uma quaiquer curva
controlada pcios parâmetros dos seus valores nas abeissas c nas orde
nadas, c que digam respeito a uma função. A curva c, por sua vez,
constituída por uma serie de pontos. A esses pontos chama-se «regula
res» quando obedecem, apenas e somente, à lei da função representada
pela curva. São, pelo contrário, chamados «singulares» aqueles pontos
que, embora obedecendo à função, nela também seguem ao mesmo
tempo uma outra. Pontos a que, por palavras mais cxactas, chamare
mos «triplos», ou «n-p]i»('"). pontos regulares e singulares podem rc-
presentar-se assim:
94
tacto, o fragmento verifica-sc sempre inicialmcnte como singularida-
de, tatvez por causa da sua própria geometria. Mas da singutaridade o
anatista tenta voitar para a normatidade do sistema dc origem, dc que
o fragmento fazia parte. O fragmento, no seu estado inicia!, í então
uma «emergência», mas esta 6 anulada peta operação de regresso ao
inteiro.
(' ) Sobre este tema, cf. Tzvctan Todorov, / yàr/na/tyn Einaudi, Tu-
' im. 1964; Viktor Sklovski, Tearia ;M/a praya, Einaudi, Turim. 1964; Roman
takobson, -Saggi <á ángaLtica gcw ra/e, Fcftrinclli, Milão. 1966.
C l J"hn Summerson, V/te C/a.wára/ Langaage a f /trcM ecíare, Methuen
& t o., Londres, 1963 (trad. it.: // /ingaaggiac/aMÍcade/Farc/táeHtta-a, Einau
di. 1 urim, 1970); Bruno Zevi, V/ /ingMaggia /naderna deí/'arc/:áettara, Einau
di. Turim. 1973.
93
contraposição dc títulos c conteúdos em dois livros, agora antigos, de
historiografia «formai» da arquitectura, o dc John Summerson, com o
títuio A Linguage/r: CM,r.Hca r/a /trr/ttàectMra. e o de Bruno Zevi, inti
tulado A íátgMdgtvn Aío&raa tia Ar<yMÍrecmra('^). No primeiro caso,
intcrprctam-sc as várias «gratnáticas» dos ciassicismos históricos
como diferentes adaptações à norma identificada com o racionaiismo
da antiguidade grcco-romana. N o segundo, entende-se a modernidade
(toda a modernidade, e não apenas a contemporânea) como desvio ao
dogma, à regra, â repetição formular(^). , r
—Í^A s duas estéticas, do excepciona!'c do norma!, ainda não descre
vem, no entanto, dc que modo c!as se tomam estéticas do pormenor e
do fragmento. E aqui é preciso introduzir agora um princípio ulterior.
A saber: que quatqucr categoria pode ser investida dc valorizações (no
nosso caso, estéticas). Assim sendo, também-categorias que sejam
combinadas entre si, e que possam revclar-^e/òr/wat/orajac uma esté
tica e serem valorizadas mediante opcraçOeS-simultâncas ou sucessi
vas. Vejamos. Dissemos que existem duas estéticas, uma do excepcio
na! e uma do normal. Elas podem manifestar-se de muitas maneiras.
Uma delas é a análise dos fenômenos a partir dos seus ele
mentos. Eis que a própria categoria «partc»/«todo» pode ser investida
de valor, caso se escolha, por exemplo, que «pequeno é b elo»/em
oposição à ideia globalista da beleza. Mas, por sén tumo, vimos que a
categoria «partc»/«todo» pode manifestar a polaridade «parte» quer
como pormenor, quer como fragmento. A nova categoria «pormenor»/
«fragmento» pode ser agora ulteriormente investida de valores estéti
cos. E dar lugar, por exemplo, a poéticas que — no conjunto — privi
legiam a excepcionalidade da obra, a feitura das suas partes, e a emer
gência de um detalhe ou a constituição dc um fragmento (a obra como
fragmento, ou as partes da obra como fragmento).
Mais uma vez, no entanto, as definições obtidas mc parecem gené
ricas ou banais: modelos muito flutuantes de interpretação avaliativa.
Duas considerações se devem acrescentar, para se chegar a descrições
mais concretas. A primeira: que tod,o-o-in\<cstimcnto^4ç valores se
pode dar dc duas maneiras: ou comtQave.Mimeato na/bnte^momento
dc produção dc obras cm qqg se imiicnfrpoêttcas*'subjacentes), ou
comtflfive.vmMCfUo na rcce/rçào (momento dc fruição das obras em
(") Sobre este tema, pode ler-se: Umbcrto Eco et a/tt, <?Semiótica delia
ricc/ionc». Corte sc/rnotir/ie. 2. 1986; e, naturalmcntc, Hans Robert Jauss,
une MtAétáyae de /o receptiva, Gallúnard. Paris, 1978.
97
reduzido no interior das temporalidades padrão dos produtos dos ma-M
media. Houve filmes, nos tempos recentes, exemplares deste ponto de
vista. Nove Se/nanaj e Meia, por exemplo, tendia para a multiplicação
dos pormenores temporais como uma função estetizante precisa. Idên
tica função cm Ejía Suja Meta Fina/, de Robert Aldrich, no qual o re
lato de uma dramática partida de futebol americano quase impunha a
escolha de forma (ou a escolha do tema será derivada do prazer da
forma?). Uma variante do detalhe temporal obtido por meio de efei-
tos-moviola c a do pormenor narrativo. Tambóm neste caso nos en
contramos perante uma prática analítica que transforma os tempos do
relato por causa da procura de uma cadência de acontecimentos que se
aproxima da do tempo real. Bastará pensar, desta vez, no caso das te
lenovelas. Aqui, há de novo uma dilatação do tempo, mas a nível do
conteúdo narrativo cm vez do da forma representativa, e, não obstante,
o detalhe novamente avança para a sua autonomização: toda a trama
avança por pormenores minúsculos. Finalmcntc, existem ulteriores
manifestações de detalhe, poderemos, desta feita, dizer espaciais, e
mais uma vez distinguíveis em pormenor forma! e pormenor de con
teúdo. Primeiro exemplo: o acréscimo dos planos próximos. Sempre
no âmbito dos meios de comunicação social, estamos na verdade a as
sistir à enfatização daquilo a que poderemos chamar o efeito-pomo.
Uma característica da pornografia é pôr cm evidência o pormenor es
candaloso. Pois bem, isto está a acontecer também na produção de fil
mes íq/i-care de autor: eis de novo Sete Se/nanas e Meia. ou o filme
de Tino Brass, ou as recentes séries com Stefania Sandrctli, ou BeMy
B/ne. centrado na acção sexual do duo Betty-Beinix. Mas o efeito-por-
no não respeita apenas ao sexo, respeita também a outros procedimen
tos de detalhe que se apresentem escandalosos, como os que incidem
sobre as acções de violência. Aqui, o filme de acção c o jornalismo
impresso ou televisivo procedem da mesma maneira, isto é, procuram
pormenores que se tornem cada vez mais autônomos e não o inteiro de
referencia. Brian de Palma, com a sua dcccMpage a todo o transe, sur
ge como mestre desse cinema. Dois filmes se anteciparam muitíssimo
a esta tendência, dcslrutando-a magistralmcnte como potencial narrati
vo. O primeiro foi B/osv í/p. de Antonioni, no qual não é cm vão que
o detalhe de um crime descoberto por acaso por um fotógrafo se toma
va o objccto do entrecho, com a conclusão moral da impossibilidade
de regressar ao conjunto. E o segundo é a homenagem a Antonioni ro
dada por Brian de Palma, 6/orv Oar, filme cm que o detalhe se toma
num som e a moral permanece a mesma.
Também no campo mais precisamente artístico assistimos a opera
ções semelhantes. Se tomarmos algumas obras de artistas conceptuais
dos anos 70, por exemplo, encontramos pontualmente a prática au-
tonomizadora do pormenor. Giulio Paolini fornece pelo menos um ca
so deveras exemplar. Estamos a pensar no dove/n Qae Oi/ta íorenzo
Lodo e no posterior Coatra/igara. respectivamente de 1967 e 1981.
Trata-se, como se sabe, de duas obras de citação de um retrato do Lot-
to. Mas elas foram executadas trabalhando o detalhe: na primeira, me
diante o título, que convida a considerar o retrato sob o puro aspecto
da pose do jovem e, assim, do facto de que deve estar a olhar para o
artista; na segunda, mediante uma forma desfocada, que o título convi
da a considerar como núcleo autônomo da pintura (o «agravamento» é
considerado em si mesmo, e como «outro» em relação ao primeiro
quadro). Na exposição Arre ao E.spei/to, organizada, por Maurizio Cal-
vesi em 1984 para a Bienal de Veneza(^), temos outros exemplos de
processos para autonomização do detalhe, e todos eles praticados so
bre citações. Por exemplo, Tano Festa isolava pormenores de Miguel
Ângelo ou de Van Eyck. O argentino Osvaldo Romberg prodnzia
obras «analíticas» da Grande Odaiisca de Ingres, o francês Jean-Mi-
chcl Alberola isolava pormenores de Ticiano, Tintoretto e Veronese
numa obra constituída por sete painéis e intitulada Acteon Fecit.
A estética do fragmento como fonte pertence também tanto aos
meios de comunicação social como às artes. Nos media, manifcsta-sc
sobretudo na agora vulgarizadíssima prática de produzir objcctos-con-
tentores, os quais, no interior, não apresentam já produtos acabados,
mas acima de tudoTramnentos de outras obrag^As variedades domini
cais das maiores redes nacionais italianas têm todas este carácter, o
qual, no entanto, é sempre corrigido pelo facto de a fragmentação pos
suir um momento de recomposição final, que é o próprio programa-
contentor, a sua realização, a sua condução. Neste caso, poderemos di
zer que nos encontramos perante um modelo tradicional: o fragmento,
é reconduzido ao próprio inteiro^ E o contrário não, pois o inteiro per-
icncc a uma lógica complctamcntc diferente da dos fragmentos e a re
composição é pretexto. Um caso de recomposição cm que o pretexto
é, todavia, ulteriormente transformado em ironia e virtuosismo é o do
Idme (9 Mistério do Caddver Desaparecido, no qual assistimos à ver-
dadeira criação de um filme policial a partir de fragmentos de grandes
99
filmes policiais do passado. Mas estamos aqui mais perante um efeito
de colagem, diferente das operações cubistas ou dadaístas pelo facto
de o jogo implicar um prazer receptivo do espectador, levado a re
conhecer os fragmentos originais. Divertimento este levado talvez ao
máximo limite por Peter Greenway cm O Mistério &<s Varai/M &
Coynpton //oase e ainda mais em O Zoo do Véntts, no qual o carácter
citacionista é sublinhado e, ao mesmo tempo, escondido. E, finalmcn-
te, o exemplo mais curioso c magistral: o filme Trtte -Stories, de David
Byrne. Aqui, a ideologia do fragmento é precisamente constitutiva. De
facto, Byrne rodou a película a partir de uma verdadeira recolha de re
cortes de jomais que relatavam minúsculos factos de crônica da vida
americana, sem qualquer relação entre si. O filme reunifica-os: mas
precisamente segundo um princípio fragmentário, dado que não existe
sequer uma aparência de moldura ou de trama a reagrupá-los que não
seja a voz (e o rosto, o do próprio Byrne) do narrador. Tudo se proces
sa por saltos, ou «intervalos», como lhes chamaria Dorfles, de um ex
tremo ao outro da América, tal como de um tema para outro da vida
social. A reunificação (admitindo-se que exisiaj está apenas na justa
posição dos pcdaço&^o prazer está na descrição sem unicidãde^
Os exemplos no âmbito artístico são, neste scctor, mais numero
sos. E quase todos dizem respeito, mais uma vez, a práticas de citação.
Esta última anotação não é relevante para se compreender a própria
natureza da poética do fragmento. Como é que muitos outros artistas,
desde Cláudio Parmiggiani aos cônjuges Poirier, de Michelangelo Pis-
toletto ao único Giulio Paolini, do belga Didier Vermeiren ao chccos-
locavo Jiri Andcrle, fazem um tal uso explícito de fragmentos de obras
do passado? Permito-me não dar ao fenômeno a mesma avaliação de
Maurizio Calvesi, implícita na própria denominação de artistas cita-
cionistas, que é a de «anacronistas». Não me parece, de facto, que na
última série de personagens há pouco anotadas haja qualquer nostalgia
do passado. A citação, no nosso caso, é muito diferente da operada,
por exemplo, pelo grupo assinalado no parágrafo anterior. Aqui, de
facto, estamos perante a voluntária fragmentação das obras do passado
para i/tes extrair wateriais. Se por um instante pensarmos na extrema
dificuldade para o artista contemporâneo de fazer obras renovando os
materiais expressivos, verficaremos que — supondo a impossibilidade
de encontrar «nova» matéria plástica — os fragmentos do passado co
meçam por ser e/er o novo material da hipotética paleta do artista. Por
outras palavras, a arte do passado é apenas um depósito de materiais,
por cima, implica necessariamente a fragmentação. Só fragmentando o
que já está feito é que se anula o efeito, e só tornando autônomo o
fragmento em relação aos precedentes inteiros é que a operação é pos
sível. O fragmento torna-se então um matéria), por assim dizer, «dc-
sarqucologizado»: mantóm a forma fracta! devida ao acaso, mas não é
reconduzido ao seu hipotético inteiro, mantcndo-sc antes na sua forma
doravante autônoma.
O fragmento, como se acabou de dizer, tem uma forma sua, uma
geometria sua. Também a valorização do seu aspecto faz parte da esté
tica do fragmento. Não foi cm vão que ela foi experimentada por nu
merosos escritores contemporâneos. A primeira menção, naturalmente
vai para o Roland Barthcs dos Fragmentos & í/m Discaso Amoroso.
Eis o que dele nos diz o autor em BartAe.s & 7?o/an<7 Rart/tes.' «Escre
ver por fragmentos: os fragmentos são agora pedras sobre a circunfe
rência do círculo: espalho-mc cm redondo: todo o meu pequeno uni
verso em peças; ao centro, o q u c ? » f) Por outras palavras, a estética
tio fragmento é um espalhar evitando o centro, ou a ordem, do discur
so. Não é por acaso que Barthcs escolhe prccisamcntc como emblema
uma frase de Gidc: ^ A incoerência ç preferíve! à ordem que deforma.»^
O fragmento como material criativo corresponde também a uma exi
gência formal e de conteúdo. Formal: exprimir o caos, a casualidade, o
ritmo, o intervalo da cscritq^De conteúdo;, cvttar a ordem das cone
xões, afastar para longe (<o monstro da totalidade». A escrita fragmen
tar barthcsiana tornou-se, após Barthcs, núm gesto criativo cada vez
mais frequente, que seguiu as mais variadas manifestações, todas elas
preconizadas pelo crítico francês: o diário «à la Gidc», os aforismos,
os pensamentos esparsos. Até atingir uma dimensão maciça nas edi
ções de «não-livros» continuamente publicadas, sobretudo no nosso
país, tanto de ensaístas de segunda como de personagens dos mass-
/ner7ia. Um breve elenco, antes de os abandonarmos: Maurizio Costan-
/o , Roberto D'Agostino, Nino Frassica, Pino Caruso, c por aí fora.
Mas aqui, necessário se torna dizê-lo, o fragmento desceu à vulgarida
de do papel de antc-cspcctáculo do compasso único. Diferente é, pelo
contrário, o caso cm que o fragmento retomou por sua vez o papel, tal
vez mais autêntico e original, da poesia. Os nossos maiores poetas rc-
707
começaram hoje a prática do fragmento poético. Vai-se de aiguns cx-
Novíssimos, como Antonio Porta e Nanni Baiestrini, até a autores me
nos classificáveis, como Andréa Zanzotto, Giovanni Raboni, Giovanni
Giudici. E cm todos estes casos a expressão fragmentar tem o mesmo
sabor da dos artistas visuais: fragmentação para reencontrar tanto uma
«paicta» de paiavras e frases, como para recuperar a poesia inerente à
anuiação do princípio da ordem e das suas geometrias regutares. O
fragmento toma-se autônomo: mas o sentido de integridade da obra
fragmentária é diferente da primeira, põe a tônica sobre a irregularida
de e sobre a falta de sistcmaticidadc, tem o sentimento de «estar cm
pedaços». Concluindo: a suspensão da fragmentaridade bloqueia o ca
minho para o normal c deixa intacto o excepcional: a autonomia do
pormenor faz, pelo contrário, que se torne hipcrexcepcional o normal.
O sistema estético que dele deriva é um sistema eternamente em cxci-
702
como nos já citados B/ow í/p e B/ow OMt,' ou ainda em certos tclcfil-
tnes populares (o tenente Colombo trabalha cxclusivamcnte com o
pormenor, o tenente Koester resolve um caso reconhecendo o detalhe
dc uma execução musical). Até mesmo na fruição da arte se chegou à
estética do pormenor. Não se explica dc outro modo a multiplicação
da edição especializada, que produz cada vez mais livros com imagens
dc pormenores. Ou o sucesso das exposições sobre restauros de obras
dc arte, que expõem grandes quantidades de matérias de detalhe (ra
diografias, fotos do grão das pinturas, imagens minúsculas dc lacunas
c falhas, etc.).
Igualmentc se pode reconhecer uma estética da recepção baseada
no fragmento. Esta consiste na quebra casual da continuidade c da in
tegridade dc uma obra, e no gozar das partes assim ^ tid asetorn ad as
autônomas. Banal, a este propósito, é a chamqda «síndrome do b o t ã o ^
na fruição da televisão. Um acto que poderia noutro local dcfmir-se
como neurótico pode tmnsiormar-sc num autentico programn j^stctico
dc consumo. É idêntica a atitude que preside à aquisição de antolo
gias: onde, com este termo, se entenderá toda a forma dc compilação,
desde a musical (que não é por acaso que se lhe chama «compilação»),
à literária, á cinematográfica e à televisiva, à fotográfica. O prazer, cm
todos estes caso^consistc naex/racção dos fragmentos dos seus con
textos dc pertence e na eventual recomposição dentro dc uma moldura
de «variedade» ou dc multiplicidade. Assim sendo, trata-se sempre dc
perda dc valores de contexto, de gosto pela incerteza c casualidade dos
confins da obra assim obtida. E de aquisição dc novas valorizações
provenientes do ivp/n/w/no rios Iragmentos, tia sua entraria cm cena.
Por vezes, este prazer é coincidente com a fonte e com a recepção: por
exemplo, na encenação arquitcctónica, onde o fragmento (do passado,
ou citado do passado) é litcralmcntc posto em cena com uma constru
ção neutra, que faça dc fundo c consinta o relevo do próprio fragmen
to. Arquitcctos como Cario Scarpa ou Franco Albini transformaram
esta prática numa autêntica poética do construir, consistente no jogo
dc sublinhado do úrcRü/nr mediante a neutralização do fundo c do
contexto. Verdadeira metáfora do próprio prazer do fragmento: cancc-
lamento damemória sistémictLe_ÇQRÇMKuaL.
1-an conclusão, podemos observar agora que pormenor e fragmen
to, cjnbora-tãü^ifcrcntcs entre si, acabam por participar do mesmo
«Éspfrito do tem po^ a perda da totalidade. No ncobarroco, as distin
ções continuam, obviamente, a valer, mas a aceleração e exageração
das suas características leva a dar-lhe /mancc-s de uma opção geral,
INSTABILIDADE E METAMORFOSES
I. Monstros
ZZH
r
706
1
em juízo de excesso dc valores espirituais. E eis a razão por que a tera-
tologia da ciência «positiva» se torna disciplina morai c se baseia so
bre sistemas dc vaiores aceites por uma sociedade^).
As sociedades muito normalizadas estabeiecem frequentemente
homologações entre as várias categorias dc vaior. Tomemos, como
exempio, quatro categorias: ética, estética, morfoiógica c tímicaC). As
duas primeiras são categorias apreciativas, no sentido dc que contem
um juízo que implica o louvor c a reprovação. As duas seguintes são
categorias constatativas, no sentido de que dão um juízo dc realidade.
Todavia, notar-se-á que existem, sobretudo cm períodos de maior «or
dem», homologações rígidas entre os termos positivos e os termos ne
gativos de todas as quatro categorias. As apreciativas informam as
constatativas e, por sua vez, estas dão conteúdo às apreciativas. Por
exemplo: aquilo que é conforme de um ponto dc vista físico é também
bom, belo e portador de euforia; aquilo que é belo será também con
forme, bom e eufórico: aquilo que é eufórico é também belo, confor
me e bom. E vice-versa, como na tabela que se segue e que já discuti
mos na introdução a este livro:
m o r fo ió g ic a form a c o n fo r m e d is fo r m e
é tic a m oral b om m au
e s té tic a g o sto b e lo fe io
tím ic a p a ix ã o e u fó r ic o d is fó r ic o
707
Notc-se, no entanto, que de vez em quando é possível o desvio a
semelhantes homologações. E há de facto grupos ou sociedades intei
ras que por vezes propõem homologações diferentes, ou que mais sim
plesmente neutralizam as homologações existentes. Sc regressarmos
aos monstros, veremos que, segundo a homologação «mais ordenada»,
se tratará de seres em princípio disformes e, por isso, maus, feios, dis-
fóricos. Mas podem dar-se mutações na homologação: qualquer um
pode começar a dizer que o monstro é perfeitamente conforme e, en
tão, perfeitamente belo, mas também disfórico c, então, substancial-
mente mau. Um protótipo: o retrato de Dorian Gray. A moral católica
sugeriu por vezes uma tal mudança de perspectiva. Por outro lado, po
de sustentar-se que a disform idade c a disforia são, pelo contrário, por
tadoras de beleza c de bondade. Muitas obras românticas seguem esta
regra. Pode então começar-se a ver uma verdadeira combinação de va
lores, capaz de definir diversas atitudes de grupos, indivíduos e socie
dades nas áreas do juízo da forma, da ética, da estética e da paixão dos
fenômenos. É evidente, claro está, que a simples e tosca axiomática
acima apresentada toma depois forma em categorias cada vez menos
gerais. Por exemplo: a conformidade pode ser representada mediante
simetria, medidas do homem, cores pálidas, cabelos louros, magreza,
etc. Aquilo que num período de conformidade semelhante se define
como «disforme» é o seu oposto. Dá-se um afastamento se o disforme,
socialmcntc homologo como mau, feio c disfórico, é repentinamente
associado por qualquer um ao bom, ou ao belo, ou ao eufórico. Quan
do, por sua vez, as figuras do afastamento se estabilizam numa socie
dade, são precisamente elas que se tomam regra do conforme e enve-
reda-se cm seguida por uma geral dialéctica dos valores colcctivos nas
várias épocas.
Posta esta premissa, podemos voltar aos monstros contemporâneos
e interrogar-nos finahncntc se eles correspondem a uma qualquer mu
dança que se tenha dado no regime das homologações. E a resposta
que podemos dar é a de que, de facto, existe um caráctcr específico na
teratosfera moderna. Os novos monstros, longe de se adaptarem a
quaisquer homologações das categorias de valor, jMxpenífe/n-nnj, ann-
in/n-na.?, neMtrniiza/n-nnx. Aprcscntam-sc como fortnas que não se
consolidam cm qualquer ponto do esquema, que não se estabilizam.
São, portanto, formas que não têm propriamente uma forma, andam
antes â procura de uma. O que nos faz rcflcctir sobre a necessidade de
um novo capítulo a acrescentar â história da teratologia. Um capítulo
sobre a «natural» instabilidade c infonnidadc do monstro contemporâ-
neo. E sendo, como já se viu, a tcratologia uma ciência fundamenta!
do socia!: o capítulo sobre a «natural» instabilidade c informidadc da
nossa sociedade.
2. As formas informes
709
Um mecanismo deveras análogo se encontra numa outra pelícuia
recente, de um gcncro totaimente diferente: Ze/ig. de Woody A!tcn().
Zelig ê uma personagem dos anos 30 que a natureza dotou de uma
particularidade: não possui ou, pelo menos, não parece possuir perso
nalidade c aspecto próprios c transforma-se cm alma e físico, imitando
os próximos. Assim, vemo-lo, por exemplo, de camisa castanha ao la
do de Adolf Hitlcr num comício, mas depois reconhecemo-lo judeu
entre judeus, ou músico negro num conjunto de jazz. O todo num cres
cendo de situações cm que Zeling se toma magro, gordo, nco, pobre,
magnata do petróleo, atleta, político, alemão, italiano, americano, e ate
mesmo psicanalista, quando c obrigado, para se «curar*, a submeter-
-s e a análise. O filme conta, pois, um caso de camalcomsmo humano.
Mas também Ze/ig. como'filme, é camalconístico. Woody Allcn cons
truiu, de facto, uma perfeita obra de montagem, na qual assistimos as
transformações do filme cm outro filme. A película de base c o branco
c preto, ligeiramente/ioa. a imitar os filmes dos anos 30, e as partes
novas são constituídas por documentários autênticos, ate se tornarem
indistinguíveis. Até se repetem os ruídos, os cortes c as velocidades do
cinema de então. Alguns documentários intercalados são depots a
cores c contem entrevistas a conhecidas ggrsonagens da cultura amert-
cana contemporânea, com o^usan Sontag õq Bruno Bettelhenn. Mas
as misturas com entrevistas a personagens imagmártas pertencentes a
história inventada contribuem para a indizibitidade do verdadeiro e do
falso sociológico proposto pelo filme. Até as entrevistas são camalco-
nicas: imitam, por exemplo, dois filmes muitíssimo diferentes, como
de Warrcn Bcatty, intervalado com entrevistas sobre a persona
lidade do jornalista John Reed, e O Meu 7io da América, de Alain
Resnais, que fazia intervir reflexões gravadas do biólogo Hcnri Labo-
rit acerca dos ratos. O tema e a sua própria feitura estão ainda centra
dos na informidade c na instabilidade. Explica-o, de resto, muitíssimo
bem, uma personagem de Ze/ig. a doutora Eudora Flctchcr: «Desde
pequeno que Zelig foi um caráctcr absolutamente m.ríáve/. Para se
sentir aceite, começou a transformar-se cm qualquer coisa que fosse
sentida como normal c reconhecida por todos.*
Mas Carpenter também revela consciência do mecanismo dinâmi
co que se está a construir. Revela-o um pormenor não secundário do
filme. Como se sabe, a película é um remate de A Corra Que Veio do
(!) Vide também o meu «Zelig !'uomo nessuno*. Panorama me^e. 14.
1983.
770
Oa/ro AÍMHí/o. assinado em 1950 por Christian Nyby c Howard Ha-
wks. Mas o scr alienígena, naquele caso, mantém um aspecto huma-
nóide, embora venhamos a descobrir que tem uma estrutura biológica
vegetal e que se alimenta de sangue. A mudança c tão radical que Car-
penter o deve ter estudado a fundo, tal v e/ também a pensar na maneira
mais brilhante de representar o mesmo fenômeno linguístico do seu
nome. Entre todas as palavras utilizáveis, cscolhcu prccisamcntc a que
significa_o não definido por excelência: «a coisa», extraindo-lhe tam
bém aquelas especificações que no original se mantinham no vago,
mas não na incerteza absoluta. Também do ponto de vista figurativo a
informidade da coisa produz um fenômeno de suspensão e de neutrali
zação, desde o momento cm que não se trata nem de um scr conforme,
nem de um scr disforme. Mas dali partem outros acontecimentos
curiosos que dizem respeito a outras categorias homologadas à física.
Do ponto de vista ético: a coisa não é classificada nem de boa, nem de
má pelos membros da expedição; trata-se simplesmente de um preda
dor de quem a presa (os homens) tenta fugir, talvez transformando-se
por seu turno predador (o herói Mac Rcary) da presa (o monstro), na
quilo a que cicntificamcntc se chamaria um «ciclo de histérese». Pode
por isso, de algum modo, sustentar-se que a categoria ética é substan-
cialmcntc suspensa. Qualquer coisa mais acontece à categoria tímica.
Tratando-se de um filme de terror, qualquer um poderá objcctar que o
monstro é claramcntc disfórico. Mas não é assim, dado que também as
paixões são, pelo contrário, constantemente suspensas. Só é disforia
quando o monstro está cm acção, e então transforma-se à custa de
qualquer outro, mas quanto ao resto o espectador c as personagens do
relato são sempre vistos numa situação de expectativa, isto é, de sus
pensão, ou, como melhor diz o mesmo termo literário e cinematográfi
co: de sa.spe/Me. Isto é tanto mais verdade quanto a história não tem
conclusão, uma vez que não ficamos certos de que o monstro tenha
\tdo eliminado, de que os heróis sobrevivam, se haverá outro episó
dio. Do ponto de vista das categorias física, ética c tímica, o filme de
Carpenter também se afasta muito do seu predccessor. Eticamente,
Nyby-Hawks apresentavam só uma personagem (o cientista da base),
que tinha o scr por uma criatura superior. Timicamcnte, o mesmo fil
me preferia euforizar o espectador, declarando disfórica a coisa e fa
zendo-a eliminar por meio de uma armadilha. Resta o ponto de vista
estético. Também aqui a categoria, se não surge suspensa, aparece pe
to menos complexa. De facto, por um lado, a monstruosidade do scr é
expressa por meio de elementos «feios» (tentáculos, viscosidade, ruí-
7/7
dos desagradáveis, deformações tocais): mas, por outro, há o maravi-
thoso dos efeitos especiais com que foi realizada. Quatqucr coisa de
scmethante acontece com um outro monstro cétebre do cinema actuat:
Atien. Também aqui há uma forma informe, que ora parece um gigan
tesco mandrit, ora um robot mecânico, ora ainda um dragão. Mas o to
do permanece indizível, dado que o monstro nunca é dado por inteiro,
nem durante o tempo suficiente para que a percepção dele se estabe-
teça. Eticamente, c verdade que a informidade está associada à malda
de: mas por pane das personagens que tendem para a «conservação»
(embora a actriz Sigourncy Wcavcr se ponha indubitavelmente do la
do da homologação «confonne-bcla-cufórica-boa»). E até o cientista
da expedição espacial (ainda ele!) sustenta que não se deve matar o
monstro, uma vez que c verdade que se trata de uma «máquina para
matar», mas enquanto tal «perfeita». Tipicamente, o discurso é equi
valente àquele que acima se fez. E esteticamente estamos no costume:
viscosidade, ruídos desagradáveis, redução dos humanos a massas de
camc. Mas: um Óscar para o realizador Cario Rambaldi c para os de-
senhadores, entre os quais o cclebérrimo Gigcr, autor, por outro lado,
de ulteriores provas pictóricas, com os ambíguos monstros polimór-
ficos e polissexuados que foram publicados sob o título de JVecrono-
Mas com o nome de Rambaldi chegamos sem dar por isso ao terri
tório dos monstros de mais alto grau moderno: ET, o Jedi, os gre/n-
b'/M. Aparentemente, trata-se de «monstros» como-qucm-diz: são an
tes cachorrinhos de váris materiais infantis. Na realidade, representam
os mesmos princípios acabados de ilustrar. Vejamos isto de mais per
to. Já numa série de entrevistas dadas entre 1981 c 1983 Rambaldi de
clarava que tanto a ideia dos marcianos de Encc/aros /wcbíaMJ como
a do ET provinha não só da sua antiga experiência de artista, como
também do seu gato himalaio. Comecemos pelo gato. De desenhos na
mão, Rambaldi provou repetidamente que o ET, peto menos no que
respeita à cabeça, provém do gato, mediante duas reduções. A primei
ra: uma simplificação da figura do gato mediante um perfil quase cari
catural. A segunda: eliminação de algumas propriedades felinas, como
as orelhas, o pelo, os bigodes, a dentadura. Conclui-se daqui que a
morfologia do ET é o resultado não tanto de uma deformação quanto
de uma «perda de forma». Tcstcmunha-o um outro episódio. O autor
contou sempre que o primeiro protótipo do extraterrestre tinha um ra-
biosque como o de um bebé, a fim de permitir o processo de identifi
cação por parte tanto dos espectadores adultos como das crianças. Mas
Spiclbcrg obrigou-o a modificá-lo, preferindo um posterior menos re
conhecível, «algo de intermédio» entre um réptil e o Pato Donald. V e
nhamos agora à arte. O mesmo Rambaldi declarou que quando traba
lhava como artista tanto pintava como fazia escultura. Interessantes,
estas prccisõcs: enquanto se percebe que como pintor era mais ou me
nos um neo-realista, como escultor era muito mais um informal, muito
preocupado em produzir objectos grosseiros, que quando ficavam
imóveis não sugeriam qualquer significado, mas que quando se lhes
fomccia movimento começavam a «dizer» qualquer coisa como «an
gústia», «ânsia», «alegria», «emoção». Se voltarmos a ET com esta
chave, verificaremos que Rambaldi a utilizou largamente no seu bone
co. De facto, Rambaldi escreveu que por ocasião de uma exposição
em Los Angeles sobre os seus efeitos especiais não o expôs para não
correr dois riscos. O primeiro era o de que, devendo o ET permanecer
imóvel, as pessoas já não experimentassem emoções. O segundo era o
de que, habituando-se as crianças à sua existência estática, se deixasse
de esperar uma continuação da história.
Traduzamos agora, segundo as nossas categorias, as notas que aca
bámos de ilustrar. Para começar, surge clara a derivação do ET do in
formal. O que equivale a dizer que a personagem nasce cxplicitamentc
como m/or/ne. Por outro lado, esta informidade é posta em relevo pelo
medo de a apresentar estática, para se evitar uma percepção dela esta
bilizada e estereotipada. O ET tem necessidade de continuar a ser <%-
nó/níco (o dinamismo é considerado prccisamcntc como garantia da
produção de errroçõex no espectador). Há ainda uma outra prova da in
formidade do extraterrestre rambaldiano, que está mesmo no filme.
Pelo menos cm três ocasiões, o ET comporta-se como camaleão. A
primeira é nos encontros com o garoto no meio do campo de milho, no
princípio da história. A segunda é nos encontros com a mãe, quando,
para o esconderem, os garotos o colocam no meio da montanha de bo
necos do seu armário c a mulher é incapaz de o distinguir. A terceira é
nos encontros com toda a cidade no dia do Hallowccn, quando todas
as crianças vêm para a rua mascaradas e nenhuma o reconhece como
um ser autêntico c o confundem com um miúdo mascarado (o que per
ante a Spiclbcrg a saborosa cena inversa: o ET a reconhecer uma
criança mascarada de Yoda como pertencente à sua própria raça). Se
quisermos, será também mais uma prova externa da informidade de
ET c dos seus colegas. Num belo ensaio intitulado A Smioare rio A/ie-
MÍgcfia, Renato Giovannoli apontou como quase sempre a forma canô
nica dos novos monstros, incluindo os dos jogos cm vídeo, ó elástica,
gomosa e transformávct(^). É uma espccie de figura-póiipo, capaz de
se inflar, de se difatar, de se restringir, de se modificar como quer: e de
se dividir (como acontece cm certos jogos em vídeo) se levada a situa
ções de crise extrema.
Mas que fazem Spielbcrg c Rambafdi da informidade física dos
seus monstros? Quafquer coisa de absolutamente especial, que difere
muito da manutenção da «suspensão» também nos planos ético, estéti
co e tímico, que vimos para /M en e <4 Coíxa. A forma informe do alie
nígena não só não permanece suspensa nas suas homologações com
outras categorias, mas também é precisamente ela que é julgada boa,
eufórica e bela. Mas não por completo: como sucede com cada inven
tor de formas, só alguns são capazes de reconhecer o valor. Os outros
firmam-sc numa posição de conflito. Os pais, pelo menos no início, os
adultos em geral e o governo estão do lado da recusa da ética, da esté
tica c da euforia do ET c até mesmo o garoto, numa primeira fase, tem
medo do alienígena, tal como este dele. A forma informe, em resumo,
provoca bimodalidade de comportamentos também na sociedade cm
que se insere. Neste sentido, Grcw/ínx é uma autentica extensão de
E7. É o extremar de uma estética da informidade. Recordarei que os
animais-bonccos nascem com uma forma «estável», a do brinquedo de
pelúcia, totalmente aceite por todos porquanto sempre dotado de eufo
ria, graça, enjoativa doçura. Mas a distracção c a estupidez humanas
farão que a manutenção da forma dos Grcmlins seja rompida e estes
mctamorfosciam-se em criaturas más, feias, disfóricas e disformes.
Mas, na verdade, para <yMe/n o xaióa cowprcenJer, transformaram-se
em personágens magníficas, euforizantes, pcrfcitamcntc conformes à
natureza de «monstrinhos» c não de verdadeiros monstros, e a seu mo
do «bons» (desde o momento cm que punem as personagens odiosas
da comunidade do Midwcst, como a crudclíssima dona do banco lo
cal). Algumas cenas do filme, longe de provocarem medo ou desgos
to, constituem uma pequena obra-prima da história do cinema: a cena
do jogo de pôquer entre os monstros c um chefe de bandidos com a fi
gura de Humphrcy Bogart: a cena do visionamento de Branca Neve
c .Scíc /tnõe.s* no cinema da vila; o duelo final na loja de brinque
dos; a cena da execução musical dos Grcmlins cm fatos de grupos de
roda Aqui, a capacidade de Spielbcrg para jogar sobre a crista das ca
tegorias de valor, sobre a sua bimodalidade, sobre a sua instabilidade,
774
parecc-me atingir uma aitura incomparável. Mas não incomparável
por as formas criadas serem «belas». De preferência, por o juízo de
valor ser transferido da forma em si para o seu dinamismo, para a sua
capacidade de construir incerteza, complexidade, variabilidade de ati
tudes.
É estranho, no entanto, que quase toda a crítica tenha vislumbrado
nos produtos de Spielbcrg, Lucas c companhia obras «conformistas».
Que isto tenha qualquer fundamento, é inegável. Mas o conformismo
spilberguiano-lucasiano dá-se só a um nível, c talvez o mais superfi
cial, dos seus filmes. Por baixo, há quase uma segunda pele de uma
natureza de todo diferente. Uma segunda pele que recusa ou, pelo me
nos, põe cm discussão as homologações ordenadas, tradicionais, rígi
das, das categorias de valor da nossa sociedade. Disse-se desde o iní
cio que a tcratologia contemporânea não só se apresenta como nova
cm relação ao passado, como induz a pensar num novo capítulo final
respeitante à relação dos monstros com o ambiente cultural. O modo
de pensar os montros, de facto, oculta os modos de pensar as catego
rias de valor. N o caso que temos estado a examinar, parece-me evi
dente que já não nos encontramos mais perante a clássica homolo
gação disforme-fcio-mau-disfórico. Mas tão-pouco perante a homo
logação que poderemos definir como «anticlássica»: disforme-bom-
-bclo-cufórico. Nem perante as homologações características, por
exemplo, a alguns «gêneros» de discurso (o cômico: disforme-mau-
-bom-eufórico; c assim todos os outros). Deve ainda, pelo contrário,
vincar-sc o surgimento de novas poéticas ligadas à incerteza e à não-
-definição de formas c de valores, ao jogo levado aos seus vértices ca-
tegoriais.
776
visão do espaço em subjectiva e em perspectiva resoivem a instabiii-
dade das duas geometrias coincidentes.
Não se trata, no entanto, da única forma de instabiiidadc prevista
peios jogos em vídeo heróicos. Também existem outras, ncies, quer no
piano estritamente figurativo, quer no piano da rciação entre jogo e jo-
g adpre&.-Nam a ioria dos jogos cm vídeo, de facto, existem peio menos
trê^cicmcntos de instabiiida(}e)0 primeiro consiste nas características
dos próprios actorcs. Os «inimigos» da astronave, por exempio, são
com muitíssima frequência dptados da capacidade de se transforma
rem e de aumentarem progressivamente as suas próprias capacidades
ofensivas, atingindo aitos graus de imprcvisibiiidade na sua acção. O
segundo, peio contrário, consiste ainda num conflito de espaços. Ao
nosso aicance e sob o nosso controio está somente o espaço que se de
senha no ccran. Mas o «inimigo» pertence também um espaço exterior
(aqueie que não é visívef), que é entendido como uma continuidade do
interno. Continuidade, sim, mas de todo imprevisíve! para nós, e por
isso de facto uma continuidade prometida mas não mantida, tanto
mais que as acções inimigas provenientes do espaço «exterior» são ac
ções de surpresa^). O terceiro, enfim, consiste na rciação entre jogo e
jogador. Ao contrário do /ít/tper. ou de certos jogos em vídeo «fan-
tasy», nos quais, em teoria, com suficiente habiiidadc e fortuna, o jo
gador poderia continuar a partida até ao infinito, nos jogos «heróicos»
compete-se sempre sobre o fio da morte. Por outras paiavras, quer
como dificuldade técnica, quer como configurações narrativas, o joga
dor vive como que à beira de um abismo, esperando um fim ineiutáve!
tio qual procurará adiar a chegada e no quat a morte do herói e a morte
(io jogo acabarão por coincidir^).
(*) O fora-de-campo funciona aqui não como «qualquer coisa que não é»,
mas como implícito. Quanto ao funcionamento do implícito, cf. Oswaldo Du-
crot, Dire et nepu.sdire. cit., e Catherine Kcrbrat-Orecchioni, 7,'imp/iciíe, Co
tio. Paris, 1985. Quanto ao funcionamento do implícito visual, cf. Francesco
( asetti, «1 bordi delFimagine», Versícs, 29, 1981, depois reelaborado em D en
tro /o .sgMgrdc, cit.
f ) Tem-se afirmado com frequência que os jogos em vídeo heróicos são
omito «japoneses» prccisamcntc nisto: o jogador deve assumir uma posição
semelhante à de um santurai revestido de trapos tecnológicos, ou seja, do
combatente solitário contra um universo de inimigos. Por isto é que os jogos
em vídeo heróicos, ainda que possuam também eles um «ciclo» de quadros
sucessivos, não permitem, todavia, chegar alguma vez ao completamento cir
cular. pois aumentam constantemente a velocidade de acção dos «inimigos».
Para se aprofundar o argumento, pode ver-se a série de «recensões» dos novos
777 UfSM-KMlRONAMKEUlMS
SA L A DE E ST U D O S
4. Outras instabilidades:
figuras, estruturas, comportamentos bimodais
(") Cario Ossola, «'La rosa profunda'. Mctamorfosi c variazoni sul 'No
me delia rosa'», in Giuscppc Barbicri c Paolo Vida! (organizado por), Meía-
mw/b.vi. Da//a verúá a / MffMO ventà, Laterza, Roma-Bari, 1986.
(") Como se deduz dc Ítalo Calvino. «Commcnt j'ai écrit un de mes li-
v n 'S » ,/ t c t e .!,S é / M ÍO / Íq M C S ( D oC M /fiZ'fU .S'), 51, 1984.
779
introduz na cocrcncia da moidura dc base a incoerência aparente (e
apenas figurativa) à maneira dc Caivino. Dc facto, cm Du/ufÍ!, as per
sonagens podem entrecruzar-se de uma história para outra, interagir,
mesmo que pertençam a épocas diferentes e a enredos afastados entre
si, transferindo a sua «memória» romanesca (ou seja, as configurações
em que se encontram) para outros entrechos concomitantes. Para mais,
existe um nívei dc cnunciação (o autor identificado com o nome na
capa que se dirige aos próprios icitores) que é continuamente atirado
para dentro e para fora do romance, ató se tomar iiteraimente iniden-
tificávci a sua aparição enquanto tai. Nívei que cm Eco existia só
como jogo de moidura c dc cncaixamcnto de mais vozes narradores,
ate atingir a de Adso dc Mcik, e que em Caivino só surgia como faisa
distinção entre história-moidura e história-emoidurada.
Os três mecanismos metamórficos poderíam dar iugar a uma ti
pologia aproximada. Em Caivino, temos uma autêntica tradução de
motivos narrativos. Em Eco, assistimos ao princípio da sua traas/eríòí-
graças à passagem que cies sofrem desde as fontes cm que esta
vam, até ao destino «novo», através da fase da sua hipcrcodificação na
«enciclopédia», ou meihor, no saber comum e organizado dc uma so
ciedade. Em Vidai, enfim, convivem tradução c transferência. Mas es
tamos apenas ao nívei das figuras, ou meihor, dos motivos narrativos,
tornados instáveis enquanto sujeitos a passarem dc um iugar para ou
tro, w!o<^/ica/!&)-A'e o trq/ecto. O segundo nívei é o da máqui
na narrativa. Em Caivino, esta máquina é instáve) peto simpies facto
dc que, dcvcndo-sc demonstrar o princípio de tradução, a própria nar
ração produz saitos que competirá ao ieitor reconduzir à continuidade
mediante a intciigência do texto. Em Eco, encontramo-nos perante
uma continuidade aparente: mas se iançamos contínuos desafios ao
ieitor dc tipo inverso, visto que o texto é «bordado» com traços que
conduzem à muitipiicidadc das fontes, que o ieitor reconhecerá ou
não, ou pcias quais será enganado ou não (dado que muitas vezes as
citações podem ser faisas, como se pode icr num outro capítuio deste
iivro, dedicado aos mecanismos dc «perversão»). Em Vidai, enfim, es
tamos na descontinuidade mais total, e o texto toma-se numa espécie
dc «amontoado» quase informe, causado por saltos nos motivos, nos
estiios de citação, dc estrutura supcrficiai, e no qual c quase impossí-
vei operar reunificações. O terceiro nívei, finaimente, é o do compor
tamento do ieitor, não enquanto tai, mas enquanto previsto peio texto.
Já o aflorámos impiicitamente nas tinhas precedentes. No romance dc
Caivino, encontramos um ieitor desafiado a reencontrar a unidade
720
ocu!ta na variedade, mas convidado a «gozar» o confino entre dois
planos. Em Eco, o desafio é inverso: reencontrar o diverso no homo
gêneo e o prazer na distanciaçáo necessária à operação, com as ar
madilhas que isto permite. A principai, como veremos num próximo
capítuio, c a de confundir constantemente a verdade c a mentira dos
«achados» textuais utiiizados. N o voiume de Vidai, enfim, encontra
mos um Ieitor convidado a comprazcr-sc com a indizibiiidade c a ver
tigem por esta provocada a propósito dos papéis e das características
das personagens. Por outras paiavras, exige-se ao ieitor que quase se
abandone ao detírio das metamorfoses c das instabiiidadcs daquüo que
é narrado.
Exempios anáiogos podem também encontrar-se nas artes figura
tivas e, mais uma vez, nos três níveis diferentes que acabámos de re
ferir. Tomemos um caso embicmático cm arquitcctura, o do grupo
americano Site. Os Site construíram, a partir do finai dos anos 70, uma
série dc edifícios para os armazéns Bcii's, dos quais o mais importante
se encontra cm Richmond, e outros um pouco por toda a parte nos Es
tados Unidos. O caráctcr csscnciai dc todos os edifícios é o dc terem
uma base simpies, a forma de um paraicicpípcdo, que é o aspecto
«normai» dos edifícios industriais. Mas o aspecto exterior está tratado
dc uma maneira espcciai, como se se tratasse dc uma espécie de «pe-
!c», à quai se fizeram sofrer transformações catastróficas. Os paiácios
aparecem assim como que atacados de uma forma quaiquer dc destrui
ção, devida ao tempo, a um cicione, a um terramoto, etc. Por exemplo,
as fachadas foram pensadas como foihas c feitas cncaracoiar a um
canto, como se fosse causado peia humidade. Ou então o paraicicpípe-
do não foi construído «apoiado» sobre o terreno, mas desviado do seu
centro de gravidade, como se se tivesse afundado no terreno. Ou ainda
certos ânguios do edifício foram previamente rcaiçados, como ruínas,
com biocos de tijolos que parecem caídos das cornijas, e faitas de
estuque nos pontos de ruína, quase como se tivesse saitado devido à
vioiência dos ciementos naturais. Ou, finaimente, os parques de esta
cionamento fronteiros foram cobertos de pó de cimento cinzento, que
forneceu também uma cobertura totai ou parciai de aiguns automó
veis, a evidenciar uma presumívei incúria pós-catástrofc. Como se ve,
estamos neste caso em presença dc uma instabilidade das figuras ar-
qmtcctónicas. Ou meihor. ãinstahiiidadc foi rc/vMCfUraár.
Um outro exempio vem da arte contemporânea. Em !9 8 i, Saiva-
(ior Daii compôs seis desenhos, todos eies intituiados Caf&frq/e, c que
representam um espaço geométrico piano, mas eiástico, com uma ou
727
mais pregas internas. Pela dedicatória («a Rcné Thom»), percebe-se
muitíssimo bem que se trata de algumas entre as chamadas «catástro
fes» elementares, ou seja, sete modelos geométricos elaborados pelo
matemático francês para descrever as várias formas de dinamismo es
trutural. Neste caso, um modelo científico representante da instabilida
de torna-se «figura» de uma obra de arte, também ela manipulada, por
seu turno, dado que Dali não se limita a reproduzir as figuras canôni
cas dos modelos, claborando-as, por sua vez, tomando-as não reco
nhecíveis de imediato c, portanto, pcrccptivamcntc instáveis. Por ou
tras palavras, é uma estrutura que se torna em figura, ou motivo artísti
co, e para mais aquela mesma estrutura determina a entrada em crise
da representação da mesma estrutura.
A*- < ^ ^
722
as imagens ate possam ser cxtrcmamcntc «verosímeis». Ora, acontece
que um mesmo programa eidomático possa operar sobre a superfície
do écran de modo dúplice ou n-piice: assim, uma imagem «realista»
que surja num dado momento pode transformar-se segundo um certo
ritmo imposto às modificações de cada lugar isolado do próprio ccran
numa imagem «realista» diferente. O próprio écran faz ver a dinâmica
da transformação da imagem, que surge dominada por uma espécie de
«proteiformismo» interno. Um caso deveras semelhante aconteceu
num espectáculo experimental do grupo florentino Krypton, com o
emblemático título de Afetamor/rMM, no qual, com diversas técnicas
experimentais, entre as quais o /rMer, o ctwi/mtcr gmp/iic. a holografia,
etc., se transformam as estruturas arquitcctónicas dos locais cm que se
realizam os espectáculos (por exemplo, a Praça de Linz, a Praça da
Senhora da Anunciada de Bruncllcschi, em Florença, etc.). Também
aqui, porquanto no último exemplo também tínhamos uma dinâmica
das figuras, ainda é focada sobretudo a intervenção sobre a programa
da instabilidade do aparelho textual, mais do que das figuras que ele
contém.
Finalmcnte, podemos falar do último nível de instabilidade, o
pragmático. Os exemplos mais probatórios aparecem ao nível do es
pectáculo, como é óbvio. De facto, é aqui que se consegue operar de
tuna maneira mais concreta um «faz fazer» instável do leitor. Comece-
se por um concerto rocA de grupos /írrrri contemporâneos, desde os
1'olicc até aos mais violentos pttnA que se lhes seguiram. Aqui, pro
cura-se aparentemente uma intcracção cotn o público mediante acções
conflituais: provocações verbais, disputas, objectos lançados sobre a
multidão, e por aí fora. Um tanto como nas sessões nocturnas futuris
tas ou dadaístas dos anos 10, que não em vão se poderiam entender
como fenômenos barrocos. O mesmo acontece cm certas formas de
teatro «de vanguarda», como no caso de Leopoldo Mastclloni, que so
be ao palco para correr as pessoas à bofetada, ou do mimo francês
Yves Lebreton, que termina o espectáculo com lançamentos de bolas
de papel entre o palco e a sala, ou do espectáculo Morte rio Geometria,
de Picr'AHi, sobre texto de Giuliano Scabia, no qual as pessoas são
provocadas» a rcacção pcrccptivas pelo insistente trabalho de faróis
directamentc nos olhos dos espectadores. Mas, em geral, formas do
teatro baseadas no «comprometimento» dos espectadores são antigas:
provem ou dos anos experimentais de 68 (como o Living Theater), ou
de ainda antes, da ideia de «teatro total» da Alemanha dos anos 20.
Nas artes figurativas, este fenômeno desapareceu por algum tempo
com o período das pcTjfbr/naMcey dos anos 70 (tipo: os comportamen
tos perversos de uma Kctty La Rocca, ou de um Gino De Dominicis,
ou de um Wotf Vostcü, ou de John Cage; modelo: o mongolóide apre
sentado na Bicna) de Veneza, ou o touro de cobrição exposto na mes
ma, ou o cavato abatido dos Magazzini Criminaü, um pouco mais
rcccntcmcntc)('3). Resiste, todavia, no âmbito da aprcjcnMção de
exposições ou na preparação de manifestações por parte de críticos e
arquitcctos. É, em suma, o «comportamcntaüsmo» por parte de crí
ticos como Achiite Bonito Oiiva, ou de encenadores como Luciano
Damiani, ou ate mesmo na organização de percursos muscológicos
como o do Museu Picasso, de Paris, ou do Museu de Orsay, na mesma
cidade, ou do Stadtmuscum, de Estugarda, projcctado por Stcrlingf").
Podcr-sc-ia dizer, no entanto, que é o cinema o sector em que recen-
temente a ambivalência do público é mais procurada, através do au
mento maciço, sobretudo, do gênero de terror c das técnicas de .rtrs-
/xfM.yg. A fórmuta scteccntista de misturar prazer e dor é banalizada
num cinema de efeitos cm que o espectador é deixado em suspenso,
como programaticamente defende Stcvcn King no filme de apresenta
ção de Ca/q/rio, ou como implicitamente faz Dario Argcnto cm Dcwb-
níoy, situando utn filme de terror num cinema.
(") Sobre o tenra da per/ormartee, cf. Lea Vergine, // corpo cootc /m-
gMgggio. Prearo, Milão, 1974; Renato Barillí, /n/brota/c, oggcMo. c<?/nporta-
/ncrUo, Feltrinelli, Milão, 1979.
('") O caso de Stcrling é emblemático: a secção de arte moderna tem ape
nas dois pisos; há um elevador a ligá-los; normalmcntc, o elevador deveria ser
usado por aqueles que transportam pesos, ou por aqueles que fisicamente não
conseguem suportar sequer um lanço de escadas; mas o elevador é totalmcnte
«artístico*, de tal modo semelhante a uma «máquina celibatária* que os visi
tantes do museu se aglomeram à sua volta e o adoptaram, não mais funcional
mente. mas sim esteticamente, talvez repetindo de maneira obsessiva saídas e
descidas.
catástrofes», conhecida sobretudo graças ao nome de Rcné Thom, ci
tado há pouco, e, entre outras, à análise do camalconismo anitnal cm
etologia('S). Antes de ilustrar as suas semelhanças com os nossos ob-
jectos culturais, todavia, torna-se necessária precisar cm que sentido
tais âmbitos científicos são associados com os humanísticos de que até
agora nos ocupámos. E digamos desde já que as teorias ou as análises
científicas da instabilidade e da metamorfose nos interessam pelo me
nos de dois pontos de vista diferentes. O primeiro, e talvez o mais ób
vio: se aceitarmos a ideia de que uma elaboração cultural qualquer, c
então tanto humanística como científica, manifesta uma dimensão
conccptual intema, poderemos dizer que qualquer objecto cultural terá
uma «forma» ou uma «estrutura» abstracta independente da sua mani
festação c aplicação. Neste sentido, uma obra de arte c uma fórmula
química podem ter tranquilamente o mesmo «modelo» de articulação
intema. Esta é uma maneira diferente de falar do fenômeno da «recaí
da» de que tratava Sarduy(^), evitando o risco de ter de estabelecer
um nexo causai entre dois ou mais âmbitos da cultura. Não diremos,
portanto, que uma teoria científica provoca mudanças de gosto, ou
vice-versa. Mas diremos que uma teoria e uma mudança de gosto esté
tico podem pertencer a um mesmo «ambiente» ou «mentalidade», in
telectuais, compartilhando a sua estrutura abstracta, aúuTa <7tu? cada
«/a <7os autores cie o/vas ou cie teorias cie ancíZises eteatt/teas não co-
uâeçarri o ca/apo ii/aítrq/e. De facto, cada um de nós sabe muito mais
do que aquilo que crc ou sabe saber, e pode exprimi-lo indcpcndcntc-
mente da sua própria vontade ou da consciência de o fazcr('^). Em
conclusão: os âmbitos específicos aqui cm exame são associávcis aos
objcctos culturais anteriormente assinalados por uma espécie de «si
milaridade» na forma da sua expressão conceptual.
Mas há também um segundo aspecto. Os modelos científicos, so
bretudo os teóricos, podem ter, devido a um seu necessário esquema-
ttsmo interno, uma ulterior capacidade, que é não só a de «exprimir»
723
um gosto igua! ao de outros objectos culturais, mas tambcm a de o
poder «descrever», ou então «cxplicar»('S). Por outras palavras: a par
da «semelhança», existe nos modelos científicos a capacidade de se
rem usados como teoria dos próprios modelos, ou melhor, a de serem
auto-explicativos. Este último caso é claramcnte o da «teoria das ca
tástrofes», que por isso tambcm pode utilizar-sc como explicação ou
descrição intrínseca de si mesma e dos outros objectos a ela associa-
dos(").
Continuando na «teoria das catástrofes». E digamos sem rebuço
que o seu miolo consiste nisto: qualquer fenômeno tem uma morfolo-
gia estrutural intema; esta morfologia é estável pelo simples motivo de
que variando-a, ainda que pouco, o fenômeno continua a ser o mesmo;
todavia, em primeiro lugar, existem fenômenos que não são de facto
estabelecidos, e cm segundo lugar tambcm as morfologias estáveis
estão sujeitas a transformações, ou melhor, sofrem mudanças na sua
duração. Muitas vezes, o modo de explicar as mudanças foi o de, a
partir do cvolucionismo e do determinismo, explicar a mudança como
uma serie de diversos, cada um deles sendo a causa dos ou
tros, que seriam dele os efeitos. Em resumo: a diversidade de duas
morfologias conexas entre si num sistema foi sempre explicada cm
termos de Thom c outros matemáticos tentaram, pelo
contrário, fornecer modelos diferentes de descrições da mudança de
forma. Acima de tudo, Thom teorizou a J/nâ/níca das morfologias:
uma lortna estável actua no tempo uma cspccic de percurso que a leva
a sofrer perturbações. Quando, apesar das perturbações, ela não muda,
então mantém-se estável. Mas quando perante as perturbações se dá
uma mudança, então isso significa que aquela forma atravessou um li-
/26
\
miar dc «catástrofe» que mudou a sua estrutura. Mas como é que isto
pode acontecer? Porque num mesmo espaço flexível podem existir
mais formas cm competição, separadas prccisamcnte por um «limiar».
Sc no seu percurso uma forma chega à beira de uma detas, então «pre
cipita-se» no âmbito de atracção da ou das formas cm conflito, estabi
lizando-se sobre o seu modelo. Por exemplo, se tomarmos a transfor
mação do girino em rã, não deveremos dizer que a rã passa cm conti
nuidade do estado-girino para o estado-rã, mas sim que a forma-girino
c a forma-rã coexistiam num plano geométrico elástico, e que a forma-
girino, no seu percurso histórico, chega ao limiar da forma-rã c preci
pita-se nela, estabilizando-se. Poderemos apresentar este processo
como passagem entre dois estados estáveis, representada pelas zonas
deste plano^):
P°) Estou aqui a aplicar uma das sctc catástrofes elementares, a chamada
«atrástrofe de cúspidc», que é a segunda em termos dc complexidade c que
pode representar-se num espaço a três dimensões. Mas, naturalmcnte, existem
' iiastrofes mais complexas e de dimensões superiores. Cf. Rcné Thom.
M<f... cit.
727
Uma parte não muito aprofundada, mas, no entanto, aflorada, da
teoria das catástrofes diz também uma outra coisa, muito pertinente
para os casos que examinámos nos parágrafos precedentes. A saber:
que também existem morfologias que não são propriamente das for
mas, mas das entidades cm busca da sua própria forma: as «formas in-
fo r m c s» f). Estas possuem um estatuto muito especial: não são dota
das de qualquer estabilidade estrutural, mas assumem o aspecto de
qualquer atractivo estável que surja no seu campo dc acção. Sc os
atractivos forem mais do que um, são capazes de assumirem as carac
terísticas de qualquer deles. Em suma: uma forma informe só pode
tornar-se forma formada por causa da atracção exercida por uma for
ma estável. O caso mais evidente de formas informes é o das formas
totalmentc bimodais, como o cubo de Ncckcrf^):
728
E, dc resto, mesmo em termo de teoria das catástrofes são dcscrití-
veis alguns fenômenos morfogenéticos como aqueles que enunciámos
um pouco mais acima, os dc etologia. Num livro que rapidamente se
tomou um clássico, o zoólogo Lconard Cloudslcy-Thompson(^) ofe
rece-nos uma fascinante panorâmica dos fenômenos de predação e fu
ga no mundo animal. Em muitíssimas circunstâncias, e independente
mente do gênero c da espécie dos sujeitos, os animais transformam-se
para melhor capturarem ou evitarem o inimigo. Alguns casos, como o
dos camaleões, são muito conhecidos. Mas outros, pouco sabidos, são
completamcntc espantosos c dc muito longe mais complexos. Há cria
turas, por exemplo, que se mimetizam com o meio ambiente. As per
dizes mudam dc plumagem conforme as estações; certas aranhas te
cem teias com muitos centros para desviarem as atenções dos preda
dores; muitos insectos mascaram-sc dc folhas e dc excrementos; há até
mesmo um verme que abre o seu próprio posterior para se assemelhar
a uma Mor. E há ainda outros animais que procuram assemelhar-se a
outros animais. Uma dada aranha transporta sobre as costas cadáveres
dc formigas para se parecer com uma formiga vista do alto; um outro
insecto assume a forma de um minúsculo crocodilo; outros ainda to
mam o aspecto do rosto de um macaco. Mas não acaba aqui: certos in
divíduos transformam partes do seu próprio corpo. Há pequenos verte
brados da pradaria que fazem aparecer olhos e boca sobre o traseiro
para desviarem o ataque do inimigo c ganharem tempo para fugir, pre
ferindo o ferimento à morte; outros invertem o alto c o baixo com
cores apropriadas, para enganar o inimigo quanto à posição do corpo
mediante a deslocação da sombra. Mas os atacantes também se masca-
t;tm para enganarem a presa. Existem serpentes da família das casca
véis que fingem ter duas cabeças, a fim dc deixarem a presa indecisa
sobre qual o lado de onde deve aparar o golpe. E existem felinos que
se mimetizam, que se mascaram, que emanam odores despistantes.
Um outro zoólogo, Dcsmond Morris, diz-nos que o camaleonismo
i.imbém se verifica numa esfera humana, a do sexo (onde nós e os ani
mais parecemos rcalmcnte parentes próxim os)^). Tanto para seduzir
uma femea como para engodar um macho, dc facto, o transformismo é
dc rigor. Um único exemplo, que não é por acaso que foi tirado dos
mnndris: os machos imitam sobre o rosto a forma das partes proibidas,
729
enquanto as fêmeas de uma determinada subcspécic imitam a vagina
sobre o peito. Morris documenta exccientcmcntc que qualquer coisa
de semelhante acontece também entre nós, quando certas posições
corporais repetem a forma do traseiro nas mulheres e do falo dos ho
mens.
Também os casos de etologia nada mais são do que conflitos entre
formas cm competição, que se tomam fenômenos efectivos quando
existe uma perturbação que os «provoca» (sexualidade, predação).
Factos de instabilidade morfológica, em suma. Claro, eles também
existem na natureza sem fazer recurso a períodos de «gosto». Mas é
um certo gosto que faz que sejam estes c não outros os fenômenos
analisados pelo cientista na miríade de factos não ainda estudados na
natureza. E mais ainda: embora se bate de pesquisas empíricas, expe
rimentais e de campo, elas nascem, todavia, do facto de precisamente
neste momento se estarem a elaborar hipóteses capazes de distinguir
qual o tipo exacto de outros factos possíveis. O (Rjccrnir certas coisas
de outras no curso da natureza depende também, cm suma, da instau
ração de determinados pontos de vista sobre o mundo, que o tomam
mais ou menos pertinente. E certos aSpcctos do mundo podem vir a
ser reconhecidos apenas porque existe aquele, e não outro, gosto da
pesquisa e da descoberta.
730
VI
DESORDEM E CAOS
[. A ordem da desordem
737
nómcnos. Consiste cm pensar a ordem como um princípio de regulari
dade que se sobrepõe a um instinto originário, ou inversamente, como
uma condição que, no entanto, tende para a dissoiução final, absoluta
equiprobabilidade dos fenômenos. Toda a filosofia pró-socrática ima
ginava a ordem do cosmo como derivada de um caos original. E, in
versamente, a teoria da informação habituou-nos, entre os anos 40 e os
anos 50 do nosso século, ao conceito de; «entropia», isto é, de estado
equiprovável dos elementos de um sistema de informação para o qual
este fatalmente tende. A segunda posição é, pelo contrário, mais deter
minista. Consiste em pensar que qualquer fenômeno será regido por
uma ordem necessária. Só a ausência de informações suficientes nos
impede, cm certos casos, de entrever aquela ordem: e por isso a defini
mos, por comodidade, com(fj<irrcgular». Também neste caso se trata
de uma concepção antiga e moderna, ao mesmo tempo: tanto a encon
tramos na física aristotélica como na mecânica pré-newtoniana, como
no positivismo, como no marxismo dogmático. A terceira posição é
mais rclativista e esbatida, mas também a mais contemporânea. Con
siste cm pensar que os princípios de irregularidade, casualidade, caoti-
cidadc, irregularidade, imperfeito, dependem do facto de a descrição
de um fenômeno (e por isso mesmo também a sua eventual interpreta
r ã o e explicação) derivar do sistema de referência em que o inserimos.
Um aspecto de um acontecimento que não. seja perceptível soí) ama
certa descrição, isto é, segundo certa^regras de pcrtincnclS? será defi
nido como casual, variável, irregular, e assim por diantef). Mudando
as regras de pertinência, a casualidade também pode desaparecer.
No âmbito das ciências humanas, tal como no das ciências da natu
reza, a contraposição entre as duas séries de conceitos foi entretanto
complicada por um outro factor. Quase sempre as disciplinas científi
cas (e também as humanísticas que integrámos no estatuto de «cicnti-
ficidade» modelado sobre as ciências sociais) produziram teorias ani-
/teadas da ordem. e, por corolário, teorias a/ti/iradas da desordem.
Neste sentido: que, por um lado, as disciplinas científicas pensaram o
seu próprio fim como orientado para a descoberta de uma ordem uni
versal das coisas; e, por outro, como orientado para a descoberta da
ordem interna do sistema local de referência específica. A desordem
733
te não se podia chegar ao conceito de «complexidade» arraigada em
cada fenômeno estático. Estará talvez neste «espírito do tempo» o pa
rentesco de idéias ou de concepções filosóficas, como o «dcsconstru-
cionismo» ou o «pensamento fraco», recentes protagonistas da cena
cultural contcmporancaC). Acrcsccntc-sc, para completar, que os fe
nômenos complexos, ou «desordenados» sao analisados cm ciência
nor meio de teorias também diferentes e cm competição entre si, con
forme se acentue o aspecto sistêmico dos objcctos axammados, ou o
da sua forma de superfície, ou ainda o da sua morfologia estrutural. E
por isto que o capítulo precedente e os dois que se seguem são dedica
dos ao mesmo objcctivo, que é o de seguir na cultura a articulação de
concepções da complexidade ao mesmo tempo analogas c d.lercn-
tesf). No precedente, a complexidade morfológica estrutural. Neste
capítulo c no próximo, a complexidade formal de superfície. No se
guinte, a complexidade sistêmica.
734
ca da matemática». Noção esta, já bem conhecida e ate agora expressa
com o termo de «elegância» (a exemplo de uma demonstração), mas
que no volume de Mandclbrot assume mu valor diverso em relação
à história da disciplina. Nas mesmas páginas, o autor já a tinha reba
tido: «Em certas aplicações, terei simplesmente dado forma e bapti-
zado conceitos já expressos por investigadores que mc precederam, e
isto arrisca-se a ter apenas um interesse estético, se c que não apenas
cosm ético.»f) Mas o interesse cosmético de que fala Mandelbrot pos
sui uma novidade: não se trata do clássico princípio, que há pouco de
nominei «elegância», c que consiste na rapidez de formulação de um
conceito, ou na sua evidencia negativa, ou na sua racionalidade sim-
plificantc. No nosso caso, o fascínio da matemática provém antes da
das leis encontradas ou conseguidas, c trata-se de uma forma
decididamente «barroca».
Expliquemos de modo muito rude cm que consi^c um «objccto
lractal». Em sentido intuitivo, cntcndc-sc pqr^«fractal»_qualqucr coisa
cuja forma seja extremamente irregular, extremamente interrompida
,,u descontínua, seja qual for a escala cm que a examinemos. Um «ob-
lecto fractal» é, pois, um objccto físico (natural ou artificial) que mos
tra intuitivamente uma forma fractal. Objcctos semelhantes são muito
frequentes na natureza: a descontinuidade de urna costa, o perfil dos
llocos de neve, a distribuição dos buracos do queijo gruyérc, a forma
das crateras da Lua, uma rede fluvial, c a lista poderia prosseguir inde-
tmidamente. Habitualmcntc, considerou-se a forma destes objcctos
naturais como devida ao acaso, c não previsível, dcscritívcl ou cal
culável. De facto, as noções da geometria euclidiana tradicional não
pareciam suficientes (ou que, como veremos, é mais im
portante) para tais escopos. Como se mede, de resto, uma costa cheia
de reentrâncias, para a reproduzir num mapa geográfico? Simplifican
do ou aproximando os seus contornos de segmentos rcctilíncos segun
do certa escaía, que é depois uma vista aérea realizada a uma dis
tância útil para fins definidos. Mas, na verdade, jamais teremos, em
semelhantes procedimentos, uma mensuração «real» de uma costa
descontínua: para toda a escala se poderá provar que existe uma escala
mferior (uma vista mais aproximada) na qual a descontinuidade au
mentará sempre o valor da distância entre dois pontos, rclativamente à
aproximação estabelecida àquela mesma escala. O facto de que os ins-
umncutos geométricos comuns admitem apenas mensurações aproxi-
(") //adem, p. 7.
madas dos objcctos fractais não significa que não possam existir ins
trumentos mais precisos. Pelo contrário, muitas vezes, os fenômenos
naturais, como os acima indicados, demonstram-nos que a natureza os
requerería. Mas isto quer então dizer que poderemos imaginar a exis
tência de «geometrias atí Aoc» adequadas ao tipo de complexidade dos
fenômenos para os quais elas poderiam oferecer descrições mais preci
sas. Por outras palavras: geometrias fundadas na natureza dos fenôme
nos físicos. Acerca deste ponto, naturalmcntc, os matemáticos estão
divididos. De um lado, põem-se os fautores da ideia ha pouco exposta
e, do outro, colocam-se os que defendem antes a necessária separação
da matemática relativamentc aos fenômenos naturais e concretos. En
tre os primeiros, encontra-se justamente Benoit Mandclbrot, «inven
tor» (mas é melhor dizer «rcformulador», como veremos agora) de
uma teoria geométrica adaptada à descrição dos objcctos fractaisf").
Na realidade, ó desde 1877 (20 de Junho, uma carta de Cantor a
DcdckindX") que se pensa na ideia de impugnar uma serie de princí
pios da geometria e espccialmcnte a concepção da Jíwte/tsão. E nos
anos imediatamente posteriores àquela famosa carta de Cantor, outros
matemáticos tomaram conhecimento de fenômenos (não naturais, mas
teóricos) que contradiziam a ideia de dimensão. Isto aconteceu a Pca-
no, a Von Koch, a Hausdorftf^), e todos lhes chamaram «monstros
matemáticos», ou «quimeras». Tratava-se de figuras geométricas que
não correspondiam às regras gerais da topologia: por exemplo, curvas
especialíssimas — como as descobertas por Pcano — que funciona
vam como figuras intermédias entre a recta e o plano. Outras figuras
eram, pelo contrário, intermédias entre a dimensão do ponto e da li
nha, ou entre a da superfície c do volume. Mas isto queria dizer que a
736
nossa definição de «dimensão» estava correcta. Habituámo-nos, efcc-
tivamente, a pensar na dimensão em termos dc unidade: zero dimen
são para o ponto, um para a tinha, dois para a superfície, três para o
votume. Em contrapartida, um caso de «monstruosidade» geométrica
c a exigência de dimensões não inteiras, correspondentes a fracçõcs.
Justamente: as dimensões fractais. Só hoje, com a recaída dos que, na
attura, pareciam apenas jogos matemático^ em disciplinas científicas
que tinham por objccto fenômenos concretos, a noção dc dimensão
fractat veio para a ribatta da ciência. Os resuttados obtidos em hidrolo
gia, botânica, anatomia, informática e outros territórios disciplina
res^ ) alteraram acima dc tudo a própria percepção dos fractais, que
arribaram ao limiar da estética c das comunicações dc massa. Parecem
ser três, cm particular, as propriedades dos objcctos fractais — natu-
737
rais ou construídos — que rcccbcui uma valorização cstétictt, nos nos
so dias. /-***
A primeira c o scu^caráctcr casuaí, não no sentido vagamente in-
quictãntcl: metafísico quT§e dá a esta versão quando é invocada para
justificar a impossibilidade de previsão de um fenômeno, mas no sig
nificado científico de ou de casMaíí&i& prímá-
ría. Ou seja: o acaso como c definido no cálculo das probabilidades, e
que c artificiálmcntc introduzido cm qualquer sistema simulado. Em
informática, este tipo de operação de dominante casual chama-se raa-
damízaçãa. Randomizar uma colccção de objcctos significa, por
exemplo, substituir a sua ordem original por uma outra qualquer or
dem escolhida ao acaso, mas sempre ordenada e prevista estatistica
mente. ................ '***'"*',
A segunda é, pelo contrário, o scu(caráctcr escn/a/ue. Entende-se
por esta palavra o facto de que os objeefos fractais tem uma forma ou
uma estrutura irregular, mas esta repete-se sempre quase igual, tanto
no conjunto como nas suas partes, c cm qualquer escala que se obser
ve o objecto analisado. /"** *
A terceira, por fim, c o scuçcaráctcr íeragdnico. Isto significa que
os objcctos fractais tem semprerniTarforma poligonal «monstruosa»,
ou seja, com elevadíssimo número de lados. Um «terágono» c, de fac
to, um polígono desse gênero, e o nome indica, com a sua etimologia
grega, tanto o monstro ( * c omo o prefixo numérico f/ern), que ac-
tualmcntc designa no sistema decimal o número 10'^ c e o último pre
fixo verbal existente para «dizer» uma potência de dez.
Como se vê, todas as três características pertencem a uma mesma
área estética, a que seguimos também no capítulo precedente dedicado
aos monstros. Os fractais são aqui monstros particulares: monstros de
elevadíssima fragmentação Itgurativa, monstros dotados de ritmo c
repetitividade escalar não obstante a irregularidade, c monstros cuja
forma se deve ao acaso, mas só como variável cquiprovávcl de um sis
tema ordenado. Poderia então dizer-se que também as formas descon
tínuas casuais c de dimensão fracta que se realizam cm certos objcctos
sofrem o mesmo processo de investimento de valor, que havíamos no
tado sempre no capítulo precedente e que explicámos na «Introdu
ção». Em certos períodos, eles sofrem um tratamento de desfavor, c
noutros vêcm atribuir-sc-lhcs vt epíteto de «belas». Não foi cm vao que
os matemáticos, desde o fim do século XIX até hoje, as consideraram
entidades quiméricas c «monstros», cm sentido negativo, enquanto
justamente hoje dois matemáticos alemães, Heinz-Otto Pcitgcn c Peter
733
H. Richtcr, conseguiram preparar uma exposição de objcctos fractais
obtidos por meio do computador e oportunamente cotoridos com siste
mas cromáticos sobre uma superfície, que se intitulou de Feauty o /
Fracía/s e que deu a volta à Europa("*).
739
Retomemos por um instante os termos científicos da questão. O
nascimento da geometria fractal aparenta-sc com muitas investi
gações, de diferente natureza, sobre fenômenos caóticos. Em subs
tância, pode dizer-se que o interesse primário que têm em comum 6
o de examinar causas, funcionamento e previsibiüdadc das iMr&H/êa-
cíar. A turbulência c um modo de aparecer (caótico) de um fenômeno
cíclico qualquer em que à regularidade comum se substitui o caos den
tro & um ccr/o ii/aiar & comp/MÍ&tJe (por exemplo, o ritmo acelera
do de um ciclo). Matemáticos e físicos denominaram fenômenos se
melhantes como «linhas de tendência para o caos» ou «linhas de tran
sição para o caos»('% Não é só a aparência descontínua da forma,
pois, que qualifica o caráctcr caótico, mas também o seu aspecto de
turbulência. Para o desenvolvimento das nossas metáforas culturais,
podemos então concluir que qualquer fçnómcno comunicativo (ou
qualquer fenômeno cultural) que tenha ou uma geometria irregular ou
uma turbulência no próprio fluxo é um /endateno caótico. Não só os
objcctos, portanto, mas também o seu processo de produção e de re
cepção.
E, com eleito, como veremos nos parágrafos seguintes, podemos
identificar com facilidade na cultura contemporânea casos de verda
deiros e genuínos objectos fractais, e também de turbulências ou inter-
mitências na fonte, e ainda de desejada caoticidadc na recepção ou no
consumo. Objectos fractais, produções comunicativas irregulares, flu
xos turbulentos constituem o horizonte de uma estética irregular c de
dimensão fracta.
5. Recepções descontínuas
742
põem(^), entende-se uma forma deconsum o que não permanece pas
siva, mas que, no próprio acto dc consumir um objccto cuiturai, pro
duz uma interpretarão que muda a própria natureza do objccto. Por
exemplo, um consumo particuiarmcnte lúdico dos chamados «fitmes
trampa» (prcccdcntcmcnte vituperados enquanto muito aquém da qua-
iidade dos filmes dc gênero) pode transformar esses fitmes noutro tipo
de espectáculo. Na Itália, este modo «ncobarroco» dc consumir a cui-
tura dc massa conjugou-sc com uma particular política cultural, por
vezes também denominada «efêmero». Muitas manifestações organi
zadas a partir dc 1975 no nosso país surgiram como recepção não pas
siva, mas intcrpietativa, ou directamente como recepção estética.
Exemplos análogos, porém, existem também noutros lugares, cm mui
tos casos de fruição cultural dos espectáculos de massa. O mais típico
é o já muitas vezes citado do í?oc%y /forror RicMre que recru
desce desde há vários anos nas mais variadas metrópoles (Nova Ior
que, Londres, Paris, Milão), e no qual o verdadeiro espectáculo não é
0 que se passa no écran, mas o que acontece na sala em relação à pro-
jecção. Os espectadores interrompem, recortam, fragmentam o fluxo
da acção no écran, com sublinhados c repetições, paródias e explici
tações feitas ao vivo. Um outro caso de fraccionamcnto dc um fluxo
comunicativo, desta vez tanto na fonte como na recepção, teve lugar
numa série dc transmissões radiofônicas a partir da emissora milanesa
Radio Popolare. A rádio, uma primeira vez cm 1984, por ocasião de
1 .os Angeles, c uma segunda — mais clamorosa — na época do Cam
peonato Mundial dc Futebol no México, mandava para o ar um pro
grama chamado R w é /w ;. O jogo consistia cm sobrepor-se ao progra
ma televisivo cm directo pela RAI substituindo as palavras com um
comentário sempre em directo das imagens que apareciam no televi
sor. ou também das palavras originais. O resultado era que, de um
ponto de vista da produção, o programa imitava o fraccionamcnto de
uma recepção televisiva cm grupo no Rtv,- mas, de um ponto dc vista
de recepção, convidava o próprio público (pressupunha-se que havia
contemporancamcntc um público televisivo) à eliminação das palavras
da RAI cm favor do discurso radiofônico, que, no entanto, tornava
complctamcnte paródica a escuta e dcmencial a imagem televisiva.
NÓ E LABIRINTO
I. A imagem da complexidade
(') Jorge Luís Borges, E/ /tiepA. Editoria] Losada, Buenos Aires, 1952.
P) Pierre Rosenstiehl, «Labirinto» in Enciclopédia, Einaudi, Turim,
!979, volume 8. Cf. também JcarI Walker, «Expérienccs d'Amateur», 5cicn-
-c.v. t!2 , 1987.
743
isto é, «maravilha». A mesma coisa acontece com outros tipos de con
figuração aparentáveis ao labirinto, por exemplo, o nó, o meandro, a
trança. Também aqui deparamos com o mesmo princípio da perda de
uma visão globaf de um percurso raciona), e de contemporâneo exercí
cio de uma inteligência aguda para encontrar a «resolução» final, isto
é, a descoberta de uma ordem.
«Agudc/.a», «astúcia», «maravilha», «entrançamento»: a simples
recorrência destes termos é suficiente para indicar que as figuras do nó
e do labirinto são figuras profundamente barrocas. Não são precisas
muitas provas. Bastará trazer á mente algumas obras do barroco his
tórico fundadas precisamente nessas palavras-chave. Um dos textos
mais fascinantes da cultura barroca — não é por acaso que hoje voltou
clamorosamente à ribalta — chama-se Agudeza y arte <7e? iagenío.
obra do jesuíta catalão Baltliasar Grazian. Na maravilha se inspirava o
maior poeta barroco italiano, Giambattista Marino, enquanto quase
todos os filósofos do século XVII, até Vico, cantam a virtude do en
genho.
Mas é a própria sorte das figuras do nó e do labirinto que nos per
mite sair do âmbito do barroco histórico e interpretá-las como mani
festações de um barroco mais universal c meta-histórico. Se se pegar
cm alguns dos mais monumentais estudos sobre labirintos, como os de
Paolo Santarcangeli e Hermann Kcrn(^), notar-se-á cfcctivamcnte que
a sua representação se desenvolve historicamente segundo picos de
frequência cm que as alturas máximas correspondem a momentos
«barrocos» da história: Antiguidade Pré-Clássica, Cultura Latina Tar
dia, Período Alexandrino, Última Idade Média, Mancirismo c Barro
co, até chegarmos a certos momentos barrocos do século XX. Por ou
tras palavras: onde quer que ressurja o espírito da perda de si, da argú
cia, da agudeza, aí reencontramos pontualmcntc labirintos. E também
nós, se pelo menos prestarmos fé ao longo ensaio de Suzannc Allcn
sobre o tema, que faz reaparecer os seus motivos (estreitamente arti
culados com uma metáfora sexual) nos mais diversos momentos da
história e da geografia da cultura(*).
746
Dizcr quc os nós e iabirintos são figuras da cotnp!cxidade não 6
ainda suhcicntc. E preciso tambcm especificar de gac compiexidade
sSo eies representação. Existem, de facto. tipos de compiexidade cuia
natureza c muno d.fcrcntc da dos nós e iabirintos. As formas caóticas
da natureza não são necessariamente iabirintos, por exempio. O caos
tio mdcfmido não toma forçosamente a figura de um nó. A mudança
sistermea no interior de uma ordem que, em vez de caminhar para a
cquiprobabiiidadc, se transforma numa ordem diversa, não toma a
estrutura das nossas figuras minóicas. Ora, se pcnsarmosbeHh-nó&-e
labirintos são antes representações de uma co m p icx id (n iclim A ^ i^
t or um iado (a perda de orientação iniciai), negam o valBr de uma
ordem giobai, de uma topografia gerai. Mas, por outro, constituem
um desafio cm encontrar ainda uma ordem, c não induzem à dúvida
sobre a existência da própria ordem. Observemos, pois, mcihor a na
tureza do desafio. Ela parte de um prazer (pcrdcr-sc)O c termina
num prazer (rccncontrar-sc), consistindo ambos no princípio da subs-
otuição de ordem: anuiação na primeira fase, reconstrução na segun
da. Mas a anuiação consiste na anuiação da giobaiidadc: não se tem
o controio sobre o sistema topográfico, não se possuem mapas para
se chegar ao centro do iabirinto, não se reconhecem os percursos
como diversos, ou os fios para desenredar primeiro ou depois um cm
rclaçao ao outro. Arcconstrução procede de resto por inferências
locais. Bate-se o iabirinto ou desfaz-se o nó unicamente deduzindo
certos movimentos cm cada cruzamento ou entrançado. Em suma,
estamos perante um tipo de probiemas muito especiais que Rosen-
stiehi chamou «probiemas de rede resoiviveis com miopia» Trata-se
<la iuiopta de um cáicuio que funciona só face a face c sem recurso à
memória (giobaiidadc do sistema). Ser «míope» não significa, pois,
\er menos»: quer dizer ver de modo diverso, «saber não ver». Eis
a lundamentai ambiguidade surgindo: continuar-sc-á sempre a recorrer
i< alguma ideia de giobaiidadc, mas a soiução do probiema singuiar
c\tgc que eia se ponha entre parênteses, ou a anuiar a sua formuiação
egutntc, como único meio de passar à «miopia» da iocaiidadc. Por
""uns palavras, encontramo-nos novamente perante uma situação de
m tabilidadc. O que é confirmado por um caracter do nó e do iabi-
o de ser unia /m-ní/b/m 'w w m w o . Sc aceitarmos, de facto
exemplos de Hermann Kern, que são todos iabirintos im/cazjd-
. ^ ***" o -°*
747
ve^C), isto é, sem cruzamentos e, portanto, sem possibilidade de erro,
veremos que ao sentido de enigma associado aos labirintos de tradição
modcma se substitui justamente a concepção de movimento rítmico,
em vez de um movimento direito. E se pegarmos em algum nó entre
os mais simples, veremos que o verdadeiro problema não é desfazê-lo,
mas distinguir por meio de que movimento um único fio parece tor
nar-se dois. Mais uma vez nos encontramos perante uma oposição en
tre a estabilidade e o seu contrário, a transformação.
V4S
Outros dois labirintos em figura aparecem em dois famosos filmes
contemporâneos. O primeiro c cm 5/u'nÍMg, de Stanley Kubrick, justa-
mente no final, quando o protagonista, Jack Torrance, persegue o filho
para o matar, e este se refugia nos meandros formados por altos arbus
tos fora do albergue isolado pela neve, de que Jack é o guarda. Ambas
as personagens possuem a «vidcncia», isto é, a possibilidade de ver o
passado, o presente e o futuro. Mas Jack vê apenas um futuro imedia
to, o filho dccifra-o a mais longa distância. Assim, no labirinto, Jack
nâo será capax dc exercitar a miopia teórica c permanecerá embaraça
do, ao passo que o filho, dotado de saber local, se salvaráf). Em ter
mos de labirinto vem, em seguida, uma produção de George Lucas,
rodada por Jim Henson, inventor dos Muppcts, e explicitamente cha
mada Laóyróu/:. Alice no País das Maravilhas surge aqui transposta
para um mundo mais moderno, e a sua viagem é interpretada como
um vaguear entre corredores e cruzamentos ató chegar a uma saída fi
nal. Um percurso-jogo, em suma, no qual em cada encruzilhada se en
contram subitamente numerosos obstáculos e aventuras a vencer. O la
birinto brinquedo tornou-se moderno, tornou-se o análogo de todos os
video-jogos existentes no mercado, cuja estrutura é precisamente
constituída por uma viagem no interior dos becos (mesmo sem saída)
dc um labirinto, por vezes apresentado como tal, e por vezes construí
do à medida que a viagem prossegue, como no famoso Dígger, no
qual uma toupeira é perseguida por proteiformes monstrosinhos, e os
corredores escavados traçam o labirinto minóico clássico. O mais fa
moso desses labirintos electrónicos é Tron, nascido ao mesmo tempo
que o filme homônimo, no qual se narram os feitos sucessivos de um
herói que se libertará de um labirinto não só encontrando as saídas jus
tas, mas superando empreendimentos heróicos e individualizando os
próprios movimentos com uma velocidade sempre crescente. Os re
quisitos do labirinto (perder-se, ausência de mapa, miopia teórica, mo
vimento) são todos respeitados.
Os mesmos vídeo-jogos apresentam muitas vezes a figura do nó.
Como se sabe, os jogos electrónicos são construídos por uma série fi
nita de quadros. O jogador entra num quadro posterior depois de ter
esgotado as possibilidades do quadro precedente. Aparentemente, o
percurso move-se até ao infinito. Na realidade, os diversos quadros
estão ligados entre si, e haverá sempre um final que se religa ao pri-
f) Ver sobre o tema o meu «!1 Linguaggio dei Cinema*. Prome/eo, 16,
)<J86.
749
mciro. A viagem que parece mover-se ao tongo de segmentos diferen
tes, ou numa só tinha, vai de um ponto de partida a um de chegada, 6
na reatidade circutar e cada quadro representa um nó no descnvolvi-
mento.
Também nas representações artísticas assistimos hoje ao retorno
das figuras dos nós e dos tabirintos. Por alguma coisa foi que, atem da
exposição várias vezes citada de Hcrmann Kem sobre unicursávcis
clássicos, Milão organizou cm 1981 também uma exposição de Arte
Contemporânea, preparada por Achille Bonito Oliva, onde se desen
volvia a história da interpretação das nossas figuras, por parte dos
maiores artistas do nosso séculof"). Assim, eis nomes conhecidíssimos
como os de Jackson Pollock, de Giulio Paolini, de Giacomo Baila, de
Giorgio De Chirico, de Pict Mondrian, e de outros até aos nossos dias.
Mas o mesmo Kem, num artigo intitulado «Labyrinths: Tradition and
Contcmporary Works», assinala a quantidade de motivos análogos
presentes na produção mais rcccntcf). São aqui sufictcntes os nomes
de Adrian Fischcr, autor de um projecto para um labirinto na Catedral
de Saint Alban cm 1979, ou Randall Coatc que, como o precedente,
constrói também industrialmcnte labirintos como jogos-presente, c
que é autor de um labirinto para jardim cm Varmlands Sáby, na Sué
cia, ou Richard Flcischcr, ou John WiHcnbcchcr. Entre os Italianos, ci
tarei apenas de memória: as figuras labirínticas de Enrico Pulsari e de
Antonio Passa, os nós de Marco Tirclli, nós c labirintos de Maria Gra-
zia Braccati. Até mesmo na música podemos encontrar «nós», como o
que foi inventada pelo compositor D'Anglcbcrt na época de Luís
X1V('°). Por exemplo, nas circunvoluçõcs de um Branduardi no que
respeita à música ligeira, ou nas nodosidades das partituras de Luciano
Bcrio, sobretudo na famosa peça StrípjoJy, escrito para Katy Bcrbc-
rian com a combinação entrelaçada de elementos musicais, ruídos c
efeitos figurativos tirados das bandas desenhadas.
Entre a banda desenhada, a ilustração c a arte se coloca, cm segui
da, a obra do mais «nodoso» e labiríntico dos autores modemos, Saul
Stèinbcrg. Roland Barthcs, ao introduzir um catálogo seu, referta-se
justamente ao labirinto como matriz essencial da obra do artista amen-
750
cano("). Mas aqui intcrvcm um uiterior cicmento figurativo que se so
brepõe ao motivo que estamos a examinar. Trata-se do uso da carta
geográfica imaginária: uma vez que, pcia imaginação, se destruíram as
coordenadas «realistas», a carta imaginária torna-se efectivamente um
labirinto. E então, ao lado de Stcinberg, eis que podemos colocar a
obra de Alcchinsky, os nós cartográficos de Christian Tobas, os mapas
ideológicos de Oyvind Fahlstrõm, as cartas riscadas de Emílio
Isgrò('3).
73/
interdiscipiinar, em movimento, sempre sujeito ao risco da perda de
orientação.
O segundo exempto c um romance, Du/ut/i, de Gore VidaL A dei
xa de base já a expusemos no capúuto precedente (Duluth é a imagem
da América traduzida em forma de uma única cidade, e em Duiuth
convivem todas as personagens das histórias transmitidas peios tcle-
filmcs dos Estados Unidos). Importa aqui assinalar que Vidal não
apresenta uma sucessão linear. As suas personagens conservam o seu
caracter, mas mudando o nome e a situação narrativa. Pode assim su
ceder que o mesmo actor se encontre projectado cm tramas diversas,
se, por acaso, a sucessão chegou a um ponto nodal qualquer, no qual
muitas histórias se ramificam e se entrecruzam: simplesmente, em vez
de percorrer um caminho iinear, o actor em questão ingressou num
corredor de outra natureza ou dimensão. O labirinto c, por conseguin
te, a forma da obra e o nó é o seu instrumento que se substitui aos cru
zamentos monopianares. Em seu redor, porém, o nó acaba por subs
tituir-se à forma labiríntica gerai, porque um traço fundamentai de
Duiuth é que não existem nem entradas nem saídas para a trama. O
icitor-viajante cncontrar-se-á perante a idéia de um infinito potcnciai
da narraçâo('^).
732
Semelhante mecanismo ocorre muitas vezes nas séries de tcicfiime
modeio Da/ias (mas é também óbvio porque o tcicfiime contém a re
ferência cxpiícita de Vida!). Também em DaMzr. de facto, nos encon
tramos perante cntrccruzamcntos diversos de episódio cm episódio
que são, porém, «desempenhados» pcias mesmas personagens. Encon
tramos nesse tcicfiime três séries de protagonistas: uma geração de
«anciões», sempre repetida; uma geração secundária, repetida por sai-
tos; e uma geração de «terceiros» que imperam excepcionaimente na
série (por «geração» não entendo árvores gcncaiógicas, mas jerarquias
de papéis). O espectador que se encontra a icr a série comporta-se
cxactamcnte como no labirinto. Cada episódio é efectivamente uma
sccção do edifício compieto, que é icgívcl e compreensível por si só,
tuas também em reiação ao conjunto c a um potência! aivo final, mes
mo se este jamais chega. Muito simpiesmente, neste segundo caso,
tratar-se-á de ver como a sucessão imediata faz parte de um dos três
grandes percursos do tciefiimc, o econômico, os acontecimentos da fa-
míiia Ewing, o sentimentai (os amores de J. R. e de outros protagonis
tas), o sanitário (saúde das personagens). A imensa duração da série,
no entanto, impede, exccpto em casos de visão excepcionaimente fiei
c nmcmónica, reconstruir de cada vez em que pronto exacto do labi-
nnto nos encontramos, ou seja, reconstruir o inteiro mapa do edifício,
for conseguinte, para a compreensão não só do episódio, mas também
tia fase da série cm que nos encontramos, importa ievar a cabo um
757
Tratou-se de uma experiência que, sem dúvida, não vai muito atem
da mais tradicional literatura ,oulipo de há trinta anos. Mas é uma ex
periência que demonstra a estética potencial que reside no uso às ce
gas da máquina ordenadora. Mesmo na operaçáo mais elementar, de
facto, o resultado não está à vista, a não ser localmcntc. E só uma
pressão final («print») garantirá o resultado. Por outras palavras: o que
muda com o computador não é só a maior velocidade operativa, nem a
capacidade de arquivação dos dados, nem um produto (por exemplo,
de escrita) tecnicamente perfeito. Estes resultados darão, quando mui
to, a satisfação de ter exercido bem a racionalidade. Mas prÚMWo?
Primeiro, existe o diferente prazer do trabalho sem controlo do apare
lho; da imersão cm pequenas interrupções, zonas, áreas c sem visão
panóptica das partes da própria inteligência criativa. É por isso talvez
que, como sublinhava Eco num artigo de jomal, com o computador
muda o nosso modo de usar c pensar a linguagem c as suas aplicações,
os textos. Ao periodar conexo c paratáctico substitui-se um pensamen
to «em pequenos pedaços», hipotáctico, e no qual as ligações se tor
nam lógicas a pcMfenori, c não lógicas gramatical e sintacticamentc. E
este o único modo de se assegurar contra a potencial «queda livre»
que acontece ao entrar, um pouco como Alice, no calculador.
VIII
COMPLEXIDADE E DISSIPAÇÃO
739
cais diferentes pcia qualidade. O princípio geral mais resistente a mor
rer, e justamente por isso tombado com maior fragor, d o segundo
princípio da termodinâmica. Como se sabe, ele consiste na ideia da
conservação da energia de um sistema dado, c de transformação da
própria energia num estado de total equilíbrio no interior do sistema,
estado que se denomina «entropia». No conceito de entropia reside
nâo só o aspecto de equilíbrio, mas tambdm o de evolução final de
qualquer sistema termodinâmico (o inventor do termo, Clausius, e o
seu aperfeiçoador, Boltzmann, pensavam na raiz grega enlropd, que
significa justamente «cvolu ção)0. O processo de entropia realiza-se
dentro de qualquer microssistcma, mas foi também teorizado como
orientação gera! de todo o universo, que tenderia, portanto, para a in-
difcrcnciação final, do ponto de vista da distribuição de energia.
Ora bem, as descobertas de Prigoginc e de outros investigadores
dizem justamente respeito a este ponto. Em sistemas ainda alastados
do equilíbrio, não c necessariamente verdadeiro que tenha lugar uma
evolução para o máximo de entropia. Longe do equilíbrio, um sistema
pode transformar-se encontrando uma ordem diversa da de partida.
Em suma, podem originar-se novos estados dinâmicos do sistema, que
dependem da intcracção com o ambiente que o circunda. Prigoginc,
paradoxalmcntc, deu âs novas estruturas o nome de esirMiuras díysípa-
nvas. O paradoxo consiste no facto de que, enquanto um sistema está
a dissi/Mr energia, a dissipação, cm vez de levar à entropia, conduz à
formação de uma nova ordem, isto é, de novas estruturas. Por via de
regrü, as estruturas dissipativas produzem-se num sistema cm que se
introduziu instabilidade: enquanto, a nível molecular, as outras estru
turas existentes se comportam de modo tradicional, ao nível molar, o
sistema começa a ter memória do seu estado flutuante; geram-se assim
as novas estruturas, c o sistema dirige-se para uma nova ordem. Há al
go de clássico na imagem deste processo: e, de facto, Prigogine e
Stcnghcrs citam repetidamente a ideia de címnwc/t de Lucrccio, isto é,
o comportamento casual dos átomos no espaço, que c porem responsá
vel pelo mundo organizado. Obviamente, as estruturas dissipativas
aparecem sobretudo cm sistemas altamente complexos, nos quais exis
tem turbulências, flutuações ou caos. E o seu aparecimento é governa
do por uma serie de leis. Por exemplo: a ocorrência de biturcaçõcs, cm
cuja proximidade um sistema começa a tornar-se capaz de «escolher o
próprio futuro»; a flutuação cm tomo de regiões de instabilidade, a ro-
760
tura das simetrias (que parece dircctamcnte responsável pelo nasci
mento dos sistemas vivos!).
Ora, sucede entre outras coisas que a nova imagem do mundo fí-
Sico leva facdmcnte a realizar comparações com o mundo social. Os
«ststcmas» humanos, de resto, parecem sistemas de complexidade al
tíssima, c justamente no âmbito das organizações humanas dir-sc-ia
que a lei de tendência para o equilíbrio (isto c, para o caos como equi-
probabilidadc dos elementos) deve necessariamente verificar-se. E se
certos sistemas se mantem, outros também se transformam. Não será
possível individualizar também para o mundo social e a existência de
estruturas dissipativas? Prigoginc parece estar certo de que sim. Sem
pre na obra A M?va Aí/ança, chega ao ponto de fazer esta afirmação:
«Há quem se interrogue como pode acontecer que sistemas comple
xos, como os sistemas ecológicos ou as organizações humanas, se pos
sam conservar. Como procedem tais sistemas para se esquivarem ao
caos permanente? É provável que nos sistemas muito complexos, em
que as espécies ou os indivíduos interagem dc modo muito diversifi
cado, a difusão, isto é, a comunicação entre todos os pontos do siste
ma seja igualmcnte rápida 'como nos sistemas físicos' [...]. Nesse sen
tido, a complexidade máxima que a organização dc um sistema pode
atingir, sem se tomar instável, seria determinada pela velocidade de
comunicaçao.>>f) O exemplo mais claro é o que diz respeito à inova
ção social no interior de uma qualquer sociedade organizada. Sc a so
ciedade atravessa uma fase dc instabilidade, também a inovação tra-
ztda por pequenos grupos minoritários tem a possibilidade dc investir
o sistema global, por causa da velocidade com que a inovação é comu
nicada a cada indivíduo. Mas se a sociedade atravessa uma fase alta-
mente estável, então a inovação perde-se, como se fosse algo dc anc-
dótico, justamente por causa da grande velocidade de comunicação
mterna do sistema. A história das vanguardas políticas parece rcflcc-
hr-sc perfeitamente neste esquema.
76?
As indicações de Prigoginc sobre a transferibiiidade da noção de
estruturas dissipativas do mundo físico para o humano fccham-sc a
considerações de natureza idcoiógica ou sociológica, mesmo se, por
ocasião da exposição LArt et /e Te/n/M. de 1985, o próprio Prigogine
tivesse introduzido a ideia de que nas artes figurativas existe uma
convergência com as ciências da complexidade, enquanto ambas se
ocupam do tempo não como movimento, mas como duração(). E a es
te propósito o autor sublinhava a obsessão bergsoniana da duração em
todas as vanguardas do século XIX(^). Todavia, podería antes tentar-se
um reconhecimento no âmbito da cultura contemporânea com o fim de
descobrir se. na produção estética (sobretudo no âmbito dos meios de
comunicação), se poderá falar com sentido de aparecimento de estru
turas dissipativas.
2. Entropia ou re-criação?
(*) Michcl Baudson (comp. de). í'/lr t et /e Tempj, Sociétè des Exposi-
tions du Palais des Bcaux-Arts. Bruxelas. 1984. llya Prigogine e Serge Pahaut
escreveram um ensaio no catálogo, com o título «Rcdécouvnr !c Temps*.
(!) Hya Prigogine c Serge Pahaut, op. cit.. p. 24. Cf. dircctamcnte Henry
Bergson. Li/è artd CarnciousaeM. Huxlcy Memorial Lccturc. Londres, 1911,
retomada também na edição do centenário. Oeavres. Presses Universttaires de
France, Paris, 1970.
(') Gerard Genette c Tzvctan Todorov (comp. de), 7 /teoriM des* g tw e s,
Seuil. Paris, 1986; Tzvctan Todorov, íe.s Genre.s du dircoar.s. Seuil, Parts.
1978; Maria Cotti. Prmcipí de//a comMnicaz<aae /etterana, Bomptani. Milão.
1972; Cesarc Segre, «Gcncri", in Enctc/opedta. Einaudi, Turim, 1979, vol. 6;
Gianfranco Bettetini et a//ü. Cantn&Mtt bf^/iogra/ici ad a/tpragectto dt "cerca
xai generi teíeviyívt. Apuntto dei Servizio Opinioni. n." 299, RA1. Roma,
1977.
significância). Em segundo lugar: como situação dc baixíssima entro
pia, a partir do momento em que usuatmente se associa a entropia, a
partir do momento em que usuatmente se associa a entropia com a in
formação (na homônima teoria cibcm cticas)f). O primeiro modo inte
ressa-nos dircctamcnte. De facto, é habituatmente verdade que os gê
neros, atingida a insignificância, morrem. Mas é também verdade que
muitas vezes não só os gêneros não desaparecem, mas até recebem de
atguma parte uma revitalização. E isto, a propósito, justamente na cul
tura de massa contemporânea. Citarei dois exemplos tirados da publi
cidade, que me parecem os mais adequados, porque a publicidade de
veria ser por definição o lugar de chegada (e a queda) dos gêneros.
Exemplo número um: os .spoM dos rebuçados E/a/t. que apresentam
uma série de reelaboraçõcs de grandes campanhas de outras marcas,
só com a substituição dos actores adultos por crianças e dos produtos
pelos rebuçados. Os spoí.! individuais citados (o café Eavazza com N i
no Manffrcdi, a aguardente Bocc/unc com Mike Bongiomo, o deter
gente Da.!/: com Paolo Villaggio) não só não decaem, como deveria
acontecer para cada reclame após um certo período de uso, mas dão
lugar a uma publicidade nova. Exemplo número dois: os rpoM para as
peles Armabe/ía assinados por Zcffirclli, que se construíram segundo
duas séries; a primeira pré-anunciava o advento da publicidade, como
nos «proximamente» cinematográficos; a segunda eram os anúncios
verdadeiros c genuínos. Acontecia assim que a «mctapublicidadc» ti
nha o poder de reclassificar a publicidade futura não como é habitual
intercalar entre outros «eventos» televisivos, mas como próprio acon
tecimento televisivo.
Nesta altura, há que interrogar-se sobre sc a regra «degenerativa»
dos gêneros terá verdadeiramente valor, isto é, se o princípio de entro
pia será capaz de definir alguns fenômenos contemporâneos que pare
cem antes constituir-se — se bem que de modo não exclusivo, é certo
763
— comQje -c r mçúoyA lém disso, admitindo como boa esta segunda hi
pótese, importa perguntar como c que tal rc-criação tem lugar. Veja
mos se algumas das condições do aparecimento de estruturas dissipati-
vas no mundo físico se reproduzem também na cultura. Há pelo me
nos duas que se aplicam ao nosso caso. A primeira é a condição da
distância quanto ao equilíbrio. Com efeito, notar-se-á que todo o siste
ma dos gêneros na cultura de massa se manteve à força longe do pró
prio equilíbrio. Com efeito, toda a repetição de gêneros é habitualmcn-
tc acompanhada pela investigação apaixonada de algum elemento,
uma variante ainda que minúscula (como se viu no segundo capítulo),
que permite /naníe/* o produto dos gêneros longe da entropia. A segun
da é a condição de instabilidade introduzida no sistema. Notar-se-á
novamente que na cultura de massa, sobretudo cinematográfica e tele
visiva, existe hoje uma altíssima produção (à distância quase imediata
do sucesso de um produto de qualquer gênero) de paródia do próprio
produto. Mas a paródia pode muito bem entender-se ou como estádio
final da dcgcncração dos gêneros (como queria uma certa crítica posi
tivista), ou como introdução de turbulência no sistema desse gênero
determinado. Em tomo dos fenômenos da turbulência de um gênero
começam então verdadeiras e genuínas flutuações, que conduzem por
vezes ao nascimento de produtos de gêneros novos. Rcccntcmcntc,
deu-se um caso bastante clamoroso na televisão italiana. Todos conhe
cem obviamente a transmissão FontdMico, dirigida por Pippo Baudo.
E todos sabem que o apresentador mais conhecido da Itália construiu
sempre os seus programas com o máximo controlo interno, de direc
ção no estúdio. Na edição de 1986 ocorreram alguns episódios de de-
sestabilização das variedades televisivas. Alguns vieram do exterior:
paródias múltiplas cm Drive irt, cm Da/tro varietd, e assim por diante.
Alguns, a partir de dentro: a partir das situações cômicas do trio So-
lcnghi-Marchcsini-Lopez, que incorrem nas fulminações de Khomei-
ni, até ao incidente de Bcppc Grillo, a propósito de uma anedota sobre
os socialistas. Ora bem, a partir daquele momento, Baudo começou a
revolucionar a transmissão. Inaugurou a improvisação, intensificou as
grr^e.r. cantou até esganiçadamente e cometeu de bom grado erros de
linguagem, mudando radicalmcntc (para o seu padrão, entenda-se) o
modo de condução.
Peço desculpa pela pouca seriedade do exemplo. Mas foi em vista
da clareza que expressamente o escolhi numa manifestação cultural
muito popular. Não se creia que um fenômeno análogo não assalte
com igual força em parte todos os níveis da cultura. A turbulência in-
troduzida num sistema criativo quaiquer não será necessariamente
provocada pc!a paródiaf), mas o resuitado não muda. Em vez da paró
dia, a flutação e o nascimento de estruturas dissipativas podem ser
causados também por icituras anómatas do produto cultura! estabiliza
do. Recentcmcnte, isto aconteceu cm muitos scctores artísticos justa
mente mediante a icitura «desorientada» do texto de Jean-François
Lyotard, A C o n d ã o fát-Aíot/erna^). Já se ilustrou como é que o pró
prio Lyotard ignorou a enortne produção de textos artísticos «cita-
cionistas» cm nome da etiqueta «pós-modemo». E também sublinhei
que a noção por ele baptizada não se propunha, efcctivamcntc, liqui
dar o experimentalismo de certa modernidade, por exemplo, as van
guardas. E uma geral leitura em termos de ironia sobre o modernismo,
de redcscoberta do passado, da superfície, da decoração, provocou não
a continuação de uma crítica, mas o nascimento de um gênero de ob-
jcctos.
/6 ó
nos dc)e só o aspecto pior e assim por diante. Em suma, toda a leitura
produz cultura, mesmo se diversa da do texto lido. A interpretação
sociológica, porem, pode sofisticar-se com algumas indicações su
plementares. Para que um consumo seja «produtivo», dcprccndc-se
dele que deve ocorrer uma espécie de conflito entre objecto «lido» e
competências ou atitudes do leitor. Corolário: c a conflitualidade cul
tural do leitor que torna instável o objccto da leitura enquanto «per-
ccpto». Após o que o «pcrccpto» c instável c potcncialmcntc trans
formado. Pode igualmentc haver muitas leituras não autorizadas ou
aberrantes de um mesmo sistema de objectos culturais. Se forem nu
merosas, mais ainda do que as autorizadas, poder-se-á dizer que o sis
tema começa a flutuar. Se, em seguida, alguma leitura anômala dá
lugar a «perccptos» estáveis c comummcnte aceites, estaremos em
presença de uma nova ordem cultural. E, paradoxalmcntc, acontecerá
que as novas obras individuais que se teriam podido atribuir à ordem
precedente serão antes produzidas sob o signo da nova.
Já me referi várias vezes ao caráctcr ncobarroco da atitude cultural
que se inclui sob o nome de «efemero» c que, não por acaso, reduz ao
mesmo denominador comum tanto os modos de leitura dos textos
como a afirmação de leituras aberrantes de certos textos de preferência
a outras, como ainda, por fim, a produção de novos textos adequados à
afirmação das leituras aberrantes. Não se retomará este tema senão pa
ra assinalar algum exemplo cinematográfico específico. A partir da se
gunda metade dos anos 70, aconteceu que o grande período de filme
de gênero americano foi revisto em chave não tanto de nostalgia,
quanto de revisão do princípio de prazer que aquele tipo de cinema
trazia consigo. Assim, as famosas manifestações públicas que vão des
de o programa-Massenzio do Município de Roma aos festivais em to
do o mundo, às revisitações televisivas, aos regressos críticos cm re
vistas especializadas e na imprensa periódica, distinguiram-se todas
pela revalorização não só do gênero, mas também do tipo de prazer
suscitado. Os filmes americanos dos anos 50 e 60 já não se apontam
como instrumentos de organização do consenso. Isto já se tinha com
preendido. Expulso o potencial veneno, a rclcitura orientada podia sal
var o prazer. Mas este comportamento crítico (de massa) provocou o
nascimento de produções coniventes com o novo gosto. Cito, a propó
sito: na obra /í BcxcMr e í n Stanley Donen reconstrói o esti
lo do cinema dos anos 30, com o grande espectáculo que vai do circo
às variedades passando pelo filme de guerra. Em /í Mistero Ca&r-
vere Scowparso assistimos directamcntc à rc-criação de um episódio
76ó
completo com pedaços montados das melhores interpretações dos he
róis do policiai, com Bogart à cabeça; e, para permanecer na Itália,
Francesco Nuti foi primeiro à caça dc um célebre Paul Ncwman com
/o, C/tíara c /<? ienro. cm seguida, do igualmcntc mítico Humphrcy
com Ca-MÓ/anca, Ca.raó/anca. A nossa tese é assim confirmada. Um
gênero projcctado «normalmcntc» para a insignificância torna-sc
instável mediante intervenção externa, jjo ambiente. E daqui surge o
aparecimento de^estruturas dissipativas, isto é, estruturas que, ao
acelerarem justamente o seu esgotamento semântico, produzem pelo
contrário novas estruturas fortes.
C l Abraham Moles, <?p. cá.,' Max Bense, /tcsíitwii:, Agis Vcrlag, Badcn
Baden, 1965.
C l No fundo, é esta a matriz comum com a teoria do «afastamento da
norntao dos formalistas russos, transferida também para muitas teorias estéti
767
continuar a engendrar-se por meio da busca de ambiguidade, mas que
pode também derivar do esgotamento c da rc-criação: da re-semantifi-
cação.
Trcs exempios artísticos, tomados como sempre entre os muitos
que se poderiam citar, podem servir para ilustrar o conceito. Trata-se
de três arquitectos que pintam, Arduino Cantafora, Massimo Scolari,
Luigi Serafini. Não pertencem à mesma família. Cantafora reproduz
objectos quase sempre arquitectónicos com algumas referências aos
anos 30. Scolari refere-se explicitamente a De Chirico, mas construin
do imagens míticas, como a Torre de Babel ou a Arca de Noé, edifí
cios lendários da Antiguidade perdida. Serafini remonta mais às arqui-
tccturas fantásticas aguardadas do fim do século XIX, eclécticas c
utópicas ao mesmo tempo. No entanto, os três têm algo em comum e é
precisamcntc a tentativa de exgotar (e não banalmcnte de citar) um es
tilo. Mas, ao esgotá-lo, eis que o contacto com o ambiente da contcm-
poraneidade faz deles os portadores de uma nova ordem, o da «pintura
fantástica», se assim me é permitido chamá-la
A informação estética, como se vê, conta muito pouco. Aqui, esta
mos perante uma matriz diferente. Mas é isto o que interessa: a ordem
da arte não é única e imutável, os seus sistemas podem ser irreversí
veis e indeterminados. E não só a ordem da arte, como se viu, mas
também a ordem global da cultura. O universo cultural apresenta-se-
-n os fragmentário e originado por estruturas contraditórias, que con
vivem perfeitamente ao mesmo tempo. Algumas seguem a lei do
afastamento da norma. Outras produzcm-sc por dissipação. Mas estas
últimas são hoje sempre mais numerosas c assinalam, no fundo, o gos
to da nossa época.
763
!X
QUASE E NÃO-SEI-QUÊ
769
se a aproximação peta relação com o «grau de precisão exigido pela
procura do objccto». Estamos perante o critério «das aproximações
sucessivas», segundo o qual a aproximação se pode deter ou pros
seguir cm relação à pertença da pesquisaf). O cálculo infinitcsimal
pertence a esta espécie. 4: O lugar do segundo nível, também chamado
«intervalo de tolerância», é substituído pelo chamado «intervalo de
confiança», que consiste cm conjecturar que um objccto é aproximá-
vcl entre dois limiares dados, e cm pensar ter bons ensejos de que a hi
pótese seja vcrdadciraC). Muitas novas descobertas da Matemática
apontam na direcção desta última regra geral, como as funções aleató
rias, as dimensões fractas, c até certos algoritmos utilizados por com
putadores.
Mas então deve daí dcduzir-sc, como a seu tempo fez Alexandre
Koyré, que a série crescente: «valor aproximado-intervalo de tolcrân-
çia<qM^ 4maç õcs--sncc3SÍvas-intcrvalo de confiança» dependem de
^critérios de funcionalidade?^) Não, ccrtamcntc. O mesmo Guilbaud
obscrvãl[uSTtt6ma4nstóriâ da Matemática se andou à procura de apro
ximações que não tinham qualquer relação com necessidades concre
tas. Um exemplo é estrepitoso, o das tábuas babilónicas de vinte e
quatro séculos, empreendido para aproximar o cálculo das raízes qua
dradas. Chcgava-sc a uma precisão da ordem de um milionésimo, para
a qual não existia na altura nenhuma exigência técnica. Trata-se então,
evidentemente, de uma verdadeira c genuína «curiosidade científica».
O desenvolvimento da matemática conheceu muitíssimos casos análo
gos, nos quais o princípio de descoberta era quase ditado pelo prazer
do maravilhoso matemático. Um prazgLqucpqdcrcmos definir no cru
zamento entre a imprecisão e o rigor da aproximação, um prazer-desa-
fio, um prazer estético.
Notar-sc-á imediatamente, no entanto, que semelhante prazer nem
sempre foi aceite, sobretudo pelo senso comum. Há até períodos cm
que prevalece uma ideia de racionalidade científica penetrada de
«cxactidão» e de confiança, cm que a matemática realize semelhante
exactidão. A matemática é, sem mais, o símbolo da ordem perfeita das*()
770
medidas. A oposição emre ordem e desordem toma, em suma, a figura
de oposição entre precisão c imprecisão, entre vatores fixos e vatores
osciiantes, e, por conseguinte, surge revestida de sentido também do
ponto de vista das categorias ctica, estética, fisica, passionai, catego
rias que já são conhecidas desde o início deste voiumc. Não é, pois,
despropositado, com base cm raciocínios desenvoividos até agora, as
sociar a um gosto barroco o prazer peios «monstros» matemáticos pro
duzidos pcia aproximação (um prazer que ievará mesmo a exactidão a
tornar-se, como sugere Guübaud, «o grau zero do quase»), c a um
gosto clássico, o desejo de precisão e de ordem.
O que c certo e que a actua) «nova ciência» está fortemente a re-
descobrir a virtude do quase. Prova disso c um esplendido convênio,
realizado no Verão de 1986 em UrbinoO, cm que os matemáticos da
escola de Guilbaud se encontraram para discutir a aproximação junta
mente com psicólogos, semiólogos, historiadores, teóricos da arte,
mostrando a grande extensibilidade do conceito e o seu fascínio em
todos os ramos do saber humano. O universo do impreciso, do inde
finido, do vago mostra-se pois rico de sedução para a wrrnm/idade
contemporânea. E, de resto, foi sempre o matemático francês que de
fendeu que o desenvolvimento do quase tem muitíssimo a ver com o
aparecimento de uma «mentalidade».
E curioso, ademais, que justamente hoje a aproximação seja assim
tão valorizada. Precisamcntc hoje que as tecnologias se introduziram
no universo que parece sempre mais dominável, dcscritívcl, controlá
vel com instrumentos de precisão. Calculadoras de cristais líquidos,
relógios de quartzo, televisão electrónica c de alta definição, computa
dores, autômatos c robôs: eis uma breve lista de objcctos que parecem
construídos para práticas cxactas cm todos os campos do conhecimen
to. E, no entanto, cada um deles funciona desafiando o quase, utilizan
do-o até rigorosamente. A calculadora automática produz arredonda
mentos até ao undécimo algarismo. O relógio de quartzo calcula o
tempo até ao milionésimo de segundo, isto é, para além do perceptí
vel, mas o seu modo de mcnsuraçâo é impreciso. A alta definição tele
visiva produz melhores eleitos de realidade, mas não a reproduz, antes
.1 segmenta conveneionalmenie ainda mais do que as tomadas de ima
gens prcccdentcs^Os algoritmos da inteligência artificial funcionam
777
muitas vezes por «randomização», isto c, introdução de alcatoriedade.
Autômatos c robôs simuiam o trabaiho humano, mas a sua exactidão
está estritamente [imitada à operação desenvoivida, ao passo que a
própria simulação c gerada por uma aproximação ergonômica.
Talvez por isso mesmo, para nos tibertarmos de uma «ilusão de
precisão», se acentua o gosto peto quase cons/z-Máfo, ou sob coníro/o.
Um gosto que, nos vastos territórios da criatividade (estéticos em sen
tido tato), assume por vezes a conotação de um verdadeiro c genuíno
programa de acção.
Um livro de filosofia (cuja origem, para dizer a verdade, não é re
cente, porque o primeiro esboço remonta a 1967) de Vladimir Jankclc-
vitch apresenta perfeitamente este tema. O título é emblemático: í e
Ve-fic-sais-<yM<7Í et íe-fre.!<?HC-t*iea, e fora precedido, vários anos antes
de 1980 (dattt de rcescrita do volume), por uma r/u/osop/uepre/ntére.-
iíitroíÍMctioM d Mae p/ttíospp/tíe du « f res<?Me»f). O «nao sei quê» e o
«quasc-nada» tornaram-se princípios da ética, com, base numa refle
xão que (ainda as coincidências!) se funda numa quantidade de obras
filosóficas barrocas, a começar pela de Balthasar Gracian, que, ao fim
e ao cabo, não era tão desconhecido dos especialistas como se pen
sava. O programa filosófico de Jankélévitch aparece nítido logo desde
as primeiras linhas: tratar daquele «algo» que, por assim dizer, é a má
consciência da boa consciência racionalista c o escrúpulo último dos
espíritos fortes; algo que protesta c «remurmura» dentro de nós contra
o êxito dos empreendimentos rcducionistas...»(*) Por outras palavras:
o sentido de mal-estar que experimentamos perante o que é incom
pleto, a inquietação qne sentimos por aquilo que é imprccisávcl, in-
definível, inexplicável. Um sentimento que provem, pois, de um
«resto» ou de um «resíduo» da nossa actividadc de redução, explica
ção, controlo do conhecimento. É fácil reconduzir a filosofia antes
mencionada ao âmbito do idealismo ou do pensamento negativo. (E,
dc resto, cm termos próprios, assim deveria ser.) No entanto, podem
também cnfrcntar-sc o pensamento «modal» dc Jankclévitchf) numa
772
serie não já de «sentimentos», mas de práticas que visam a produção
do «não-sci-quc». Um «não-sci-quc» controiado c, se assim se pode
dizer, rigoroso.
4 Sc rcUcctirmos no ateanee das idéias dc Jankélévitch, efcctivamcn-
te, cairemos na conta de que sempre existiu (e mais do que nunca em
épocas barrocas) uma precisa prática teórica: a de desafiar as leis da
representação, propondo-se representar o irrcprescntávcl, dizer o indi-
zívcl, mostrar o não vísivcl, c assim por diante. Ora, semelhantes prá
ticas derivam sem dúvida de um substrato filosófico, mas, ao mesmo
tempo, produzem um gosto, e realizam-no mediante um uso artificial
da linguagem (dc toda a linguagem, no sentido mais amplo). Por ou
tras palavras: é uma teoria da significação que nos indica os próprios
paradoxos (representar o irrcprescntávcl, etc.) e nos induz ao desafio
da sua superação; é no interior da própria linguagem que se procuram
os meios para chegar àquele çuiíf (uso o termo no sentido dc Jankélé
vitch) para aproximações sucessivas; mas a operação, uma vez tornada
«dc estilo», pode inverter-se, e mediante a linguagem podcr-sc-á co/rs-
trair a aproximação crwto e/eí/o e s t i c o .
Não será esta talvez a matriz reversível dc poéticas como as da
vaguidade, do indefinido, do «quasc-como»?C°) E esta poética origi
nal não poderá talvez traduzir-se também em operações estercotípicas
ou de gênero, como aquele slogan para um sabonete que diz «aquele
não-sei-quê, que faz girar a cabeça»? A difusão, no nosso aparente
universo da precisão, de poéticas do quase artificial exige então que
não só se r$disem os processos dc valorização ética, estética, física e
passional sobretudo do quase, mas também as técnicas da sua produ
ção discursiva, visto que é justamente através do discurso que as ope
rações de estilo ou de gosto sg.reaü^gm plcnamenlg,
Sc, até agora, unificámos o quasç.e onão-sci-qué)tlo ponto dc vista
dc um espírito que os torna namogcncosTscrS bomapresentar também
as diferenças oportunas, cm virtude das quais o gosto da aproximação,
que derivámos da matemática, não é a mesma coisa que o gosto do
impreciso, por nós divisado nos últimos exemplos. Por conseguinte,
será preciso distinguir entrea.itu$í^dc uma representação-r/MaR?
que corrcspondç^ a p r o xim ação^o sentido mais «matemático»"
c u busca explícita dc uma (ão, que responde, pelo
contrário, ao sentido do indefinido c da vaguidade no sentido mais fi-
J7J
losófico, e que compreende, também, como ponto de chegada, a «ren
dição» do irrcprcscntávc!. Os dois efeitos tem de considerar-se diver
gentes como resultado, mas convergentes como motivação e matriz.
De resto, o mecanismo que os realiza no discurso é absolutamente
análogo.
Entre as técnicas discursivas, um lugar priveligiado é atribuído à
enunciação. O quase e o não-sei-quê, cfcctivamente, não propriedades
inerentes aos objcctos representados no discurso, mas dependem estri
tamente do seu sujeito. Quase e não-sei-que concernem a um sentir,
um dizer, um ver, um ouvir, um perceber do sujeito perante um objcc-
to. E dirão respeito, pois, à sua actuação, cspacialização, tcmporaliza-
ção(") de dois modos diversos e concomitantes. O quase resultará de
uma parcial «incapacidade» de definição do objecto por parte de um
sujeito «débil». Actuação: não se consegue pôr cm foco o objecto, ou
então, desfoca-sc propositadamente. Espacialização: não se consegue
captar o contomo, o perfil, o conlim do objecto por causa da distância
errada entre sujeito e objecto, ou então produz-se uma distância ina
dequada. Temporalização: falta a capacidade de fixar a duração do
objecto (c cm particular o seu caráctcr instantâneo), mas também este
efeito pode ser construído. Nas três especificações precedentes, enten
demos a incapacidade como carência, deleito. A incapacidade pode
ser também por excesso, no entanto: não se consegue definir o objecto
cm virtude da impossibilidade de discriminação entre as suas caracte
rísticas excessivas, ou por não ter um critério de pertinência discrimi-
nante. O objecto pode cspacializar-sc como dcmasiado%)róximo. A
sua duração torna-se incalculável por excesso de pormenor temporal.
E assim por diante.
São, pelo contrário, poucos os casos cm que o quase depende da
natureza do objecto. Todavia, estes existem c traduzem-se cm figuras
do quase, tanto reconhecíveis na natureza como construívcis artificial-
mente. Na natureza, a percepção do sublime é sempre causada pela
aproximação do pcrccpto temporal c espacial, mesmo se esta se com
bina necessariamente com um aspecto passional (que veremos melhor
no não-sei-quê). Artificialmcntc, podem criar-se formas temporais ou
774
espaciais não claramcntc perceptíveis: indistintas, amorfas, incxtricá-
veis. São figuras, por exemplo, privadas de contornos, ou não saücntcs
quanto ao seu fundo, ou informes (isto 6, indccidíveis entre mais con
figurações, como vimos no capítuio sobre monstros). Em suma, existe
uma iconografia (c uma cronografia) do indistinto, que vai do esfuma-
do iconardcsco ao famoso de Turncr, do «ripetere sfumando» das
cláusutas musicais ao ritmo iivre.
Em contrapartida, o não-sei-que comporta aigo mais, o que Janke-
ióvitch denominou «a quodidade da quididade». Enquanto no quase
nos encontramos perante uma carência que pode valorizar-se como
Pat&tR!., tnais ou menos necessária e mais ou menos temporária, com o
não-sci-quctestamos perante um «resto» inexorimívet. Mas este 6
acompanhado por dois tactos concernentes ao sujeito: um, a sua situa
ção cognitiva; dois, o seu investimento passionat. O sujeito, de facto
da existência de um resíduo na definição do ser, mas não di-
/ê-!o. E tal desequilíbrio gera paixão. O sujeito é, cm suma, /no&r/iza-
de modo conflitual, ou seja, está no interior da tensão en
tre duas modalidades diversas. Por exemplo, entre um .saòcr e
um wão /wííer entre um /tão querer ja&er c um ríever c to
da a outra composição modal tensiva. Dizíamos antes que o sentimen
to do sublime, pelo menos na sua definição mais clássica, consiste na
realização quase final da tensividade a que se submete o sujeito. Não
foi em vão que o sublime se abordou por vezes como convergência
conflitual de paixões opostas, ou seja, como resíduo emocional c ime
diato (intuitivo) para toda a explicação racional. Também aqui nos de
frontamos com uma dupla tipologia: um p â o -sc á ^ êjio r defeito, que,
sempre com Jankclcvitch, chamaremos ^quasc-nada»^)quc consiste cm
sentir a importância de uma inépcia.qucJgD ayvfsãó total do objecto;
c um não-sei-quê por excesso, t/^quasc-tudo7)]uc reside na incapaci
dade de abranger o pormenor pef-exagcfõ da visão panóptica do
objecto.
A percepção do não-sei-quê pressupõe, pois, uma específica con-
dtção scnsorial igualmcnte definida por Jankélévitch com o nome de
mnwi.Hío. uma espécie de olhar «entre» as coisas e «dentro» do su
jeito. Por um lado, o não-sei-quê exige o dote da intravisão e. por*
outro, provoca-o (mais uma vez: o não-sei-quê pode rcconhcccr-sc ou
t. onstruir-sc, por exemplo, construindo um sujeito como sujeito pas
sional).
77J
2. Obscuridade
776
nhar-se em diversas direcções. Podemos ter um efeito cômico, como
em muito do cinema de Woody AHcn, ou no filão «dcmcncial» à John
Bciushi. A destruição da pertença cria uma obscuridade paródica, uma
«impertinência» (pcnsc-sc na perda de sentido dos monóiogos de
Woody AHen em Awor e Gacrra, Ea e Aa/iie, ou MaaAatm/:. Um ou
tro efeito é, peto contrário, o que Roiand Barthcs chamara o «rumor da
língua»: um efeito estiiístico e üterário que hoje entrou na ensaística
ou na iiiosofia. Os textos de Jacqucs Dcrridas são um exempio perfei
to de pesquisa criativa deste tipo, sobretudo A e/n ou
a Carta a ara amigo japoaêj. Além disso, por fim, a destruição das
conexões sintácticas ou semânticas produz um discurso obscuro de gê
nero mcdiúnico (desde a astroiogia ate certa psicanálise contempo
rânea), ou produz o sentido do enigma verdadeiro e genuíno. Os dois
fiimcs de Grccnaway, O Afijtcrio rio Jardim ComptoaAoaje e o
Zoo Véntcr, funcionam de facto pcia impossibilidade imediata de
ligar frases e imagens num fio lógico linear.
Ironizou-sc muitas vezes (com maior ou menor justificação) a pro
pósito dos estilos obscuros quer no âmbito literário, cinematográfico e
artístico, quer no filosófico, crítico e metodológico. Em muitos casos,
indiscutivelmente, quando a obscuridade se toma estereótipo, aproxi
ma-se do humorismo involuntário. Mas aqui não se trata de exprimir
juízos de valor sobre a perda do «esprit de clartó». Pelo contrário, tra
ta-se de sublinhar mais uma vez quanto cia rcílccte um princípio esté
tico generalizado. Não foi cm vão, há já alguns anos, que assistimos à
explícita reivindicação, por parte dos críticos, do seu papel intrínseco
â criação da obra de arte ao lado, ou mais ainda, a respeito do papel do
artista(^). Nesse sentido, o primado na instauração do que podemos
denominar «crítica ncobarroca» pertence a Achillc Bonito-Oliva, que
mais do que todos proclamou uma concepção criativa do crítico, c que
utaugurou comportamentos a cia adequados, isto c, os comportamen
tos de exibição e provocação.
777
a ra/iência das coisas entre si e em relação aos seus contornos e fun
dos a favor da simpics pregMá/rciaC^). A percepção do discurso e dos
objcctos representados no discurso toma-se vaga, indefinida e indis
tinta. O conceito de «vago», por exemplo, é digno de interesse. O ad-
jectivo implica cfcctivamente um movimento, uma errância: que pode
pertencer ao objccto do discurso, ao sujeito do discurso ou ao próprio
discurso, cuja manifestação 6 a de um vagabundear em tomo do pró
prio conteúdo. O resultado de tal discurso errante pode captar-se me
lhor com um exemplo. O tipo de transmissão televisiva actualmcntc
mais çm voga 6 o que se funda na improvisação e na transmissão
dircctaC"). Dc resto, já muitos notaram que o que importa na trans
missão directa (e, por conseguinte, na improvisação que lhe dá mais
corpo) não ó tanto o efeito dc realidade ou dc verdade que aí se ex
prime, mãsluntcs a estética do risco: risco dc falhar, risco dc ficar
parado, risco dc dizer ou dc fazer o que c proibido. Sucede então que
este risco é aumentado pelos cfcitos-dircctos, como justamente a im
provisação. Na improvisação, os cxccutantcs de uma qualquer/w^br-
mance pcrdcnfJcontrolo da sua cxactidão c precisão, estão suspensos
no fluxo menos definido e distinto. Há quem consiga jogar cõm seme
lhantes efeitos. Por exemplo, toda a unanimemente aclamada trans
missão Que//: beiia aoae. de Renzo Arborc, funcionava produzindo
imprecisões e valorizando-as como jogo, divertimento e prazer. Em
particular, o efeito mais conspícuo era o do caráctcr «errático» do dis
curso dos protagonistas, aparentemente sempre à busca de um tema
(com o ponto central da discussão frívola entre Catalano, Frassica e
companheiros).
O desaparecimento da diferença, da saliência c da distinção não
é, pois, só um momento relativo ã cultura de massa (onde, porem, ele
é importantíssimo). Também nas artes assistimos a algo do gênero.
Sc, por exemplo, encararmos algumas novas gerações de pintores,
descobrimos que em certos casos o regresso ao cavalete é também
acompanhado por um abandono voluntário e explícito da precisão ex
pressiva. Grupos como o que foi baptizado por Renato Barilli de os
«nuovi-nuovi» tendem para uma refiguração nai?*, que no entanto não
é ingênua, mas antes busca a imprecisão aaijfcomo efeito culto. Entre
os chamados artistas citacionistas há alguns, como Cario Maria Maria-
77S
ni, que, embora trabalhando de maneira neociássica, «cmbrutcccm» a
seu pintura para criar um efeito dc imprecisão provocatória. Nos Es
tados Unidos, em seguida, apareceram os chamados «bad painters»,
artistas da incúria ou da «dump art», que, por exemplo, em Jan Bo-
rofsky, David Saite ou Juiian Schnabci, repetem voluntariamente, até
ao excesso, os materiais da po/r arr, do expressionismo, do hipcr-rca-
lismo, e assim por diante. Mas à mesma origem se podem fazer re
montar, sempre na America os «graffitistas»: nas suas realizações am
bientais (metropolitano, passeios, locais públicos), existe quase uma
ideia de «pintura cm directo» e, portanto, rápida, veloz, imprecisa e ar
riscada^).
Idêntico fenômeno domina na literatura. Se abordarmos a mais jo
vem geração de romancistas italianos, por exemplo, encontramos um
gosto explícito pelo quase linguístico, com o efeito dc fazer nascer um
não-sci-quê literário. É exemplar o caso dc Busi, cuja Vim smn&MYÍ tíi
um víwidorc provw.sdrio Je coí/ants é revigorada por erros dc gramá
tica e defeitos sintácticos. São escolhas expressivas que noutros auto
res se orientam, pelo contrário, para a ironia como no uso de fraseolo
gia juvenil dc Enrico Palandri e Picr Vittorio Tondelli. No âmbito da
poesia, acontece, pois, o mesmo, por exemplo, na chamada «poesia
selvagem» praticada por jovens autores em afinidade talvez com o
mesmo efeito sulfúrico que acontece na música com os grupos rocA,
levados à imprecisão musical c também à linguística. O grupo dos
Skiantos é talvez o mais típico, mas poder-se-ia citar o belíssimo
exemplo dos napolitanos Shampoo, que conseguiram realizar em na
politano dois discos dc canções dos Beatles repetindo «mais ou me
nos» a dicção do texto inglês, c assim com aquela «bcatlcsidade» um
nadinha definível da sua música dos anos 60.
Sempre no âmbito literário — e com resultados muitas vezes ex
celente — , podem relacionar-se não já com a pesquisa da imprecisão,
mas com a realização do não-sci-quê, certas experiências dc tradução
teoricamente intraduzíveis. Estou a pensar nos Exercises & Aty/e, de
Maymond Qucncau, na versão italiana dc Umberto Eco("). Aqui, ne
nhuma precisão era possível, c o tradutor teve antes de se aproximar
do efeito de analogia, refazendo os seus pessoais exercícios dc estilo
cm italiano. Algum exemplo antigo e recente pode aproximar-sc do
779
empreendimento de Eco. Antigo: a tradução de C/oc%wc?% Orwtge, de
Anthony B urgcss('l, criador de uma gíria irrepetívei cm itaiiano que
forçou à recriação de termos novos para a edição da Einaudi. Recente:
o «iouco» empreendimento da tradução do Firmegan',? iVaAc. de Ja
mes Joycc, por parte de Luigi Schcnoni(^), necessariamente transfor
mado numa outra obra cm itaiiano, numa obra autônoma, visto que o
interesse do originai reside justamente no dciírio inventivo da iíngua,
não transponívei para outro idioma. Em definitivo, todos os exempios
referidos não consistem justamente cm «traduções» (produção de qua-
se-aná!ogos iinguísticos), mas antes cm recriações de um espírito e de
uma aura: do não-sei-que do artista.
4. Vaiores negativos:
as iinguagens da aproximação e a sua ironia
— '*^"**\
Dizia eu antes que a imprecisãojtstá sobretudo presente nos pro-
dutos das comunicaçõciTdc massa. O que c óbvio: só a imprecisão
consegue dãFlTúma mensagem que parece necessariamente artificiai
o caracter quotidiano da «natureza». Conceito este, mais uma vez,
mancirista e barroco. Batdcsar Castigiione chamava-o, no Corh-.sãa.
«sprezzatura» (aitivez desdenhosa); Vasari chamava-ihc «naturaiida-
dc», no VratarTo t7a Fí/Mara,* e Torquato Accetto dava-ihc o nome de
«dissimuiação honesta» no iivrinho homônimo de vida de cortc(^). E
também verdade, porem, que a imprecisão resuitante da iinguagem
dos meios de comunicação se pode transformar num uso de massa,
sem quaiquer função estática, mas só como caracter sociai. Eis um
facto que se difundiu no nosso país (mas creio que também nos países
angio-saxões e na França) nos úitimos anos com o puiuiar das rádios
privadas. Efcctivamcntc, hoje, uma ncoiíngua irrompe pcia Itáiia. Pe-
ias características que iremos ver agora, proponho que se baptize com
o nome de «esquaiores», termo que descreve aiguns dos seus traços
essenciais. 1 : O facto de ser uma iíngua cspcciai, como as gírias: o
«psicanaics», o «burocratcs», e assim por diante. 2 : O facto de perma
necer, no entanto, coincidente com o idioma nacionai. De facto, o es-
730
qualorôs não cunha palavras novas e de uso circunscrito, mas toma an
tes genéricas e imprecisas as da comunicação normal; mas o csqualo-
rês está mais em uso cm alguns ambientes do que noutros.
O csqualorês é um somatório de porções da lfngua, mas sem qual
quer caracter secreto ou especial, e antes com a tendência para a proli
feração cm todos os outros âmbitos de uso. Vejamos um mapa das
suas áreas internas. A mais evidente zona saqueada é a dos represen
tantes do comércio. Mas não só de modo directo: antes através da me
diação das inumeráveis e cansativas antenas televisivas. A palavra-
emblcma é o objectivo vãiião. com apostos superlativos (extre/namen-
tc vãiião). Não é usada para definir um bilhete novo de comboio.
Adopta-se, pelo contrário, para significar a qualidade de uma obra de
arte ou de um objccto de ãesign, ou de um investimento financeiro, ou
de um projecto arquitcctónico. À mesma família pertence o adjectivo
particaiar (superlativo: extrema/Mente particMiar). Um objecto parti
cular é um objecto extremamente válido, mas que poderia não agradar
a todos porque tem uma forma insólita. O que, em contrapartida, re
colhe a universalidade de favor é vcrãaãcira/ncntc notãvei. De facto,
responãe a todas as exigências. O que responde às exigências, sem ser
notável, rcvclar-sc-á apenas correcto. Recordarei ainda entre as pala
vras da neolíngua o verbo acpMÍ.sire (adquirir), que surge em vez de
«aquistarc» (obter), e, por extensão, no lugar de «prendere», «ottene-
re», «conquistare», «comprare» (tomar, obter, conquistar, comprar), e
o substantivo proposta, que se reduziu à categoria da simples «oferta»
não necessariamente comercial, mas ainda comunicativa (um quadro
dc autor «propõe» um valor artístico). É de notar, com origem ainda
nas antenas televisivas, também o hábito de alongar as frases com inú
teis concctivos, que deriva da necessidade da transmissão directa ou
tia transmissão diferida dc não mostrar pausas no discurso, um pouco
como na oralidade do vendedor ambulante. Daí as perífrases como
m/neies <7ac são os, a/ga/na coisa ãe, aigné/n, ant certo tipo ãe. Uma
pequena área de palavras procede da gíria da restauração, sobretudo
nas sinestesias retomadas pela publicidade («o gosto mórbido», «o
perfume flautcado»), ou no uso de certos sufixos criados para o efeito.
A linguagem burocrática, em seguida, faz a sua parte. Os objectivos
.ao fundamentais: propositivo é uma qualquer mensagem cheia de
conceitos; negativo e positivo são os dois pólos de qualquer juízo de
valor. Da política provêm o hábito de falar de sitoação e ainda de
/'MÓ/ica opinião (invertendo os termos). Os meios dc comunicação tor
nam-se cM/tMra ãi/asa,* as massas, o vasto ptiMco. O consumo é cha-
mado do !ado católico cuinrrrr e do lado laico se/no
cowMW. Uma última área de levantamento c recolha 6, por fim, a das
ciências humanas. A partir da semiótica generalizam-se ítgno c ?ncn-
.ragefM. sem qualquer conteúdo técnico; da psicologia provem exfrin-
jecar, iníri.secar, rcrriizor-.se, da sociologia emergem rfe^/rMtoJore.s e o
rfesvianíc (tudo o que c apenas diverso do costumado). Uma grande
fortuna teve o termo-pc-de-cabra JM/eitox, diversamente scmiótico, fi
losófico, psicanalítico e, ate mesmo, um pouco político.
Detenhamo-nos aqui com os exemplos do vocabulário csqualorês,
cada um poderá cnriquccc-lo com a própria experiência. O corpres,
efcctivamcnte, basta-nos para definir duas das suas qualidades. Por
um lado, c a falta d e propriedade: os termos não correspondem às afir
mações específicas c tornam-se genéricos. Por outro, existe porém
uma vogo aura de sofisticação. Mas então torna-se claro, no conflito
entre dot^frãçõs. õ critério do csqualorês. Ponto de partida, toma for
ma uma nova classe social, que já não se identifica pelo grupo como
toda a «classe» que se respeite, mas pelo tipo de consumo, c nos con
sumos específicos e determinados de cultura. E é uma classe totalmen
te modelada pela comunicação de massa. Mas a nova classe, para pro
duzir identidade (isto é, diferença), não usa termos comuns (ou seja,
impróprios). Usa um léxico que se apresenta como «mais elevado»,
mas só como aspecto exterior, porque, cm seguida, uma vez que a
identidade provém justamente dos roo.s.s roerão, se deve reconstituir o
caráctcr genérico que o toma de amplo uso.
Se o quase é o caráctcr da linguagem até aqui definido rndepen-
dcntcmcntc por uma sua função estética, é também verdade que este
mesmo caráctcr se pode tornar ponto de partida para operações criati
vas. Também a partir deste ponto de vista se poderão então reler as
operações primeiramente registadas por Woody Allcn ou pelo nosso
Roberto Benigni. Mais ainda, na Itália, a ironia acerca do csqualorês
tornou-se um gênero de espectáculo. Vejamos. Cario Verdone c Nanni
Moretti apropriaram-se dos traços da gíria dos jovens de 77. Nino
Frassica retoma com justeza as tentativas de construção de língua
«ilustre» nos discursos populares. Os vários cômicos de Drive in resti-
tucm as deformações do vernáculo juvenil, da circunlocução política,
da dcsscmantificação publicitária. O mundo dos meios de comunica
ção produz deficiências, c consegue logo a seguir delas fruir.
5. Valores negativos: o «quase nada»
(^") Cario Ossoia, «Elogio dcl Nulla», Gigliola Nocera (comp. dc). 7/
.S'eg?K7 Baracco, Bulzoni, Roma, 1983.
(^') Christine Buci-Gluksmann, La jõ /ie <7a voir, cit.
americanos, rapidamente imitados também na Europa, procedem jus
tamente pela anulação do texto narrativo, mas sem o substituírem peta
experimentação, como aconteceu nos anos 50-60. E atendo-nos à críti
ca idêntico aspecto encontramos, por exemplo, num fitme como ReHy
E/àe. de Beincix, onde praticamente não existe sucessão, ou ela 6 re
duzida ao mínimo.
Outra manifestação do aniquilamento pode talvez ser a «pro
dução)) de silencio. Muitos músicos, a partir dos anos 70 (de Cage a
Cardini), levaram a cabo provocações silenciosas. Mas também neste
caso se tratava de um conceito talvez diferente. Tratava-se aí de valo
rizar a crije da /mgMügem mm/ca/. N3o era uma verdadeira e genuína
cxaltaçao do Nada. O que, pelo contrário, parece caracterizar hoje a
produção musical (por exemplo, ligeira) é antes o Nada como som. O
indistinto, o ruidoso sem harmonia. O que equivale, n3o a produzir
graduações, mas justamente n3o-distinçao.
É o Nada como n3o definido, ent3o, uma outra possível caracterís
tica neobarroca? Uma confirmação parece chegar-nos de Jcan Baudril-
lard e Jean-François Lyotard. Baudrillard, cm insiste muito
na figura do deserto como emblema da America, c n3o foi em v3o que
o mesmo Baudrillard já há algum tempo animou um número especial
da revista sobre o mesmo tema. Baudrillard refere-se ainda,
no âmbito da sexualidade, ao facto de que, após tantos movimentos de
libertação (heterossexual, feminista, homossexual), se tenha hoje che
gado à «indiferença sexuab). Por outro lado. Jean-François Lyotard
organizou uma completa exposição no Bcaubourg sobre o tema Lei
ifnmaterieKX. Importa sublinhar que a época do computador trouxe
consigo a eliminação da própria matéria da arte. Trouxe a estética do
Nada(^).
7S4
X
DISTORÇÃO E PERVERSÃO
7&S
ciências humanas que perccpci.naram a mutaçao. O segundo, a maio
ria dos fenômenos do universo não 6 atribuível a modelos estáveis,
mas antes à instabiiidade derivada do facto de que são mais numero
sos os sistemas compicxos do que os hncrares. Mas também aqui: a
cuitura «criativa» está a oferecer-nos neste breve momento de século o
Pm de todo o modelo normativo c a produção de objcctos mstaveis,
complexos pluridimcnsionais. As displinas humamsticas, porém, pou-
co cücrn nu conm n tül respeito.
Em conclusão, estamos a assistir a uma fractura que tem algo de
paradoxal. Por um lado, a nova ciência e o cstctismo dos produtos eu -
L a i s mostram-nos todas as facetas da complexidade. Por outro pelo
contrário, as ciências humanas revelam-se justamente pobres c atrasa
das na interpretação dos fenômenos complexos. Por um lado, mais
uma ve/., a «nova ciência» c a estética surgem complctamcnte ocupa
das com problemas da nwis/bwMçdo e da da/açao das coisas, com o
coralário de se ocupar da nature/a da mudança e de ^ ? n ^ a s u a
origem cof#íM d/. Por outro, as ciências humanas ou nao dao cfcctiva-
mente pela questão, ou ao advertirem-na fornecem respostas ultrapas
sadas, como aquelas que se referem ao velho idealismo, ao velho
cionalismo, à velha recusa de modelos rigorosos. Repito: " ^ . ^ 0
que não significa ám c.s ou Por outras palavras: en^e pou
cas excepções (que muitas vezes tentei ilustrar nas entrel.nhasj as
ciências da cultura permaneceram numa fase comparável a ^ 'c a c h c
sica isto é, ancoradas numa visão «euclidiana» da própria cultura. E
no entanto, cm paralelo, está a nascer uma geometria nao-euclidiana
do saber Os termos utilizados como titulo dos capítulos precedentes
são talvez puras metáforas. Mas tenho a ambição de pensar que são
adequados para exemplificar a situação.
Para além das metáforas, porém, será possível indicar pelo monos
um caráctcr que unifique as produções intelectuais (cientificas c estéti
cas) que, como dissemos, constituem a msígma da complexidade, da
mudança e da instabilidade? Mencionarei apenas um: a busca de uma
diferente conformação do espaça caítara/. Daí cs termos do titulo des
te capítulo: distorção c perversão. Distorção, porque o espaço de re
presentação da cultura de hoje parece justamente estar sujeito a forças
que o flectem, o dobram; o curvam e tratam como se fora um espaço
elástico. Perversão, porque a ordem das coisas (nos modelos cienüli-
cos) e a ordem dos discursos (nas produções intelectuais) não são ba
nalmente desordenados, mas tornados perversos. Não derrubados,
opostos, invertidos: transformados na sua ordem de um modo que as
lógicas precedentes não os conseguem reconhecer sequer como «outro
diferente de si». Encontrar-lhes uma lógica pode ser o novo desafio à
ciência da cultura.
2. A citação «neobarroca»
! 1 2__________________ 2
(i) Sobre o tema da citação visiva não existe praticamente nada, a não ser
as diversas reflexões de Renato Barilli sobre Lichtenstein «citacionista» em
/n/orma/e, oggetio, comportamento, Feltrinelli, Milão, 1976; sobre o modelo
da «ausência* como prática da retomada do passado em Fra pre.scnza c assew-
za, Bompiani, Milão. 1974; e sobre a citação literária í'a zto n e e festast, Fel-
trineli, Milão, 1967.
P) Cf. sobre o mesmo tema o esquema de Antoine Compagnon, op. ctt.,
que se serve, no entanto, de um procedimento complicado e teoricamente de
masiado «misto* entre semiótica greimasiana e semiótica pcirciana.
c. Fazendo aparecer a instância da enunciação no texto X con
tinente;
d. Assinalando a aiteridade do enunciado 2;
e. Ou então assinatando a aiteridade da enunciação 2;
/ . Ou então assinatando a aiteridade de todo o sistema Y.
segredo
individual
normal
790
E tambcm aqui a citação sc explora desde a parte alta do quadrado,
ou da sua polaridade esquerda, ou da parte esquerda (isto no maior nú
mero das ocasiões). Note-se, no entanto, que a linguagem também
prevê o jogo oposto, como nas modalidades cpistémicas.
Mas venhamos agora àquela que chamei «citação ncobarroca», e
aos dois casos que prometi examinar. Limitemo-nos, por brevidade, à
introdução do livro de Eco. Rccordar-sc-á que ela finge a descoberta
de um livro «de um tal abade Vallct», por sua vez traduzido a partir de
uma tradução latina scisccntista de J. Mabillon, que seria o copista do
manuscrito de Adso de Melk. Ela finge ainda a perda do livro, de tal
modo que apenas restaria a tradução cm italiano do autor escrita cm
cademos da Pappeterie Gibert. E apesar de uma escrupulosa investiga
ção não se encontram nem outras cópias do livro de Vallct, nem a edi
ção de Mabillon que continha também o manuscrito, Além disso, um
livro cruzado de Milo Temesvar contem citações de Adso atribuídas
porém ao Padre Kirchcr, o conhecido fantasioso jesuíta de Seiscentos.
Por fim, quanto ao estilo a adoptar para a publicação, o autor declara a
absoluta incerteza a propósito da autenticidade da fonte, que aparece
complctamcntc contaminada por remodelações, pela cultura de Adso,
pelas manipulações cm fontes cvcntualmcnte desenvolvidas a partir de
anteriores transcritorcs e tradutores. Por outras palavras: temos aqui
uma das chaves mais poderosas (c estranhamente menos analisadas
pela crítica) do romance «da rosa». Esta chave é a dúvida sobre a
autenticidade ou a contrafacção da verdade. A obra do escritor é, efec-
tivamente, «escrever por puro amor da escrita», «simples gosto fabu-
latório», que suspende — /M 6Mvá7a — toda a distinção entre o verda
deiro e o falso. «Em conclusão, estou cheio de duvidas», termina Eco.
E pouco antes tinha avançado a hipótese (naturalmcntc bem apoiada
em citações não explicitadas): «Há momentos mágicos [...] em que
têm lugar visões de pessoas conhecidas no passado [.. ] há igualmcntc
visões de livros ainda não escritos.»^) A citação de Eco é. de facto,
sempre uma citação ambígua. Constrói efeitos de verdade, mas nega o
seu controlo. Ou então, constrói efeitos de falsificação, mas leva a ve-
riticá-los como falsos. Ou, por fim, cita verdadeiramente, mas elimi
nando os vestígios do citado. Tudo sc torna fortemente m&cáííve/.
Para cada bloco do enunciado (também na continuação do romance)
ent que sc de eleito de citação, esta não será investida por valores dos
nossos quadrados precedentes, nem pelos «normais» nem pelos inver-
797
sos A Citação será, pelo contrário, ou t o r c i d a epervern-
á , O caso mais clamoroso 6 talvez o episódio cm que Cudhcrmc &,
Baskcrvillc resolve o pequeno enigma do dcsaparcctmcnto de u< .
valo preto na proximidade da Abadia. O todo surge como um normal
e x e u L narrativo. E, no entanto, trata-se da Citação da novela Zar/rg.
de Voltairc, cm que o cavalo c branco. E não so: trata-se tambem da
autocitação de um ensaio de Eco sobre esta mesma novela a propósito
da pesquisa dos indíciosC). Mas o todo aparece condimentado de m-
dccibilidadc, de ucronização. de suspensão da etiqueta de propriedade
(') Umbert. Eco. «11 canc c il cavallo; un testo v isiv . e alcuni equiv.ci
verbali». Vcrsüs', 25, 1980.
792
3. Distopias do passado
SALA CE ESTUOOS
793
X!
797
como é que um hipotético sistema «ncobarroco»» funciona tanto in-
trinsccamcntc como em rctação ao seu póio oposto, o igualmcntc
evcntua) sistema «clássico». Agora, a única conclusão possível é a de
verificar rapidamente se se dá o contrário: uma conformação do «clás
sico» devida à existência de um universo «ncobarroco».
Especifiquemos agora melhor como se deve entender o termo
«clássico». Não entendo neste caso a simples repetição de figuras da
antiguidade grega ou romana, ou então renascentista, ou ainda sete-
centista. Exactamente como já defenderam Wõlfflin, Fossillon, D Ors,
não se trata de encontrar reaparecimentos iconográficos de objectos de
um passado ideal para se poder falar de «classicismo». Este consiste
antes na realização de certas morfologias subjacentes aos fenômenos
dotados de ordem, estabilidade e simetria. E, como procurei defender
ao longo do livro, no caráctcr de coerência dos respectivos juízos de
valor sobre esses fenômenos. Os vários classicismos jamais são sim
ples retornos ao passado, como se viu no capítulo precedente. Todo o
classicismo c uma nova forma de ordem, que a antiga eventualmcntc
relê para dela fazer uma componente idealizada da cultura contempo
rânea. Por isso, todo o classicismo pode ser constituído tanto por figu
ras que pertencem ao passado de modo directo como por figuras que
aparentemente com ele não têm qualquer relação. Permanece idêntica
apenas a morfologia interna e a estrutura dos juízos de valor ordenada
pela coerência dos termos catcgoriais positivos e negativos. O que é
conforme ao ideal lísico torna-se necessariamente também bom, culó-
rico e belo; o que é disforme toma-se por torça também mau, disforico
e grosseiro. Um sistema «clássico» assim concebido é de modo habi
tual rigorosamente normativo c prcscritivo. Sistemas anticlássicos ou
barrocos são, pelo contrário, gerados pela rotura das simetrias e pelo
aparecimento de flutuações no interior das várias ordens catcgoriais, c
por isso são muito menos regulados. No caso do nosso «ncobarroco»,
ressaltou directamcntc a oposição rígida com o clássico e a instabilida
de manifesta-sc como suspensão das categorias.
799
irregulares e instáveis, que chamámos «ncobarrocas». Poderemos tam
bém interrogar-nos sobre o porque de tanto êxito, visto que não c de
fensável atribuí-lo apenas a uma organização do consenso por parte do
poder. E a resposta é uma só: o mesmo afastamento do equilíbrio do
sistema social, se, por um lado, favorece o aparecimento de corpos ir
regulares, justamente por isso provoca, por outro lado, também parale
los desejos de estabilidade. Não porque a estabilidade tenha de ser
«melhor do que a instabilidade» (isso é determinado a períeriori pelo
sistema das categorias de valor), mas porque é extremamente mais
econômico. A estabilidade admite previsões mais simples, e assim
comportamentos mais seguros. Da mesma forma que a bolsa reage
bem à tranquilidade política sem que necessariamente as forças econô
micas atribuam aos governos a responsabilidade e penaliza qualquer
revolução institucional, assim é no fundo também a sociedade. Prova
velmente, é preciso reconhecer que «a bolsa do social», embora valo
rize mesmo certos derrubes do sistema, ao mesmo tempo exige in-
conscicntcmcntc a sua estabilização e a sua continuidade.
200
antiga ao !ongo dos sécuios por causa do caracter idea) atribuído ao
corpo humanof). A tai ponto que se podem ciassificar os tipos extraí
dos do nu grcgo(3). Há o Apoio, ou seja, o narcisismo da forma perfei
ta. Há a Vcnus, nas duas variantes piatónicas de terrestre e ccicste (os
sentidos e o espírito). Existe o nu hcróico-cncrgético, nas outras duas
variantes do aticta c do guerreiro. Há o nu patético, com o iangor e o
abandono. E, por fim, existe o nu estático, com a transcendência da
paixão. Como é óbvio, os Bronzes pertencem cssenciaimcntc à ca
tegoria do nu energético, ievando ao apogeu as duas categorias do
guerreiro e do atiético. Todavia, não apresentam nenhuma das li
nhas de torção típicas do nu heróico, destinadas a representar o movi
mento. Também não existe aí nem a «diagonai heróica», nem a «es-
pirai heróica». Os Bronzes não iibertam, pois, uma ideia de força, mas
exprimem uma energia cm expectativa de expiosão, uma energia
potcnciai, contida c medida. Ao mesmo tempo, a sua posição é antes
apoiínea: perfeita nas proporções, coerente nas partes, imóvei e hic-
rática perante o oihar do espectador. Os Bronzes são rawOéw Apo
io, isto é, oferecidos à admiração. Heróicos e apoiíncos, perfeitamen-
te idcaiizados no seu microcosmo como aiusão à metáfora do macro-
cosmo, são o perfeito protótipo da ideia de cspectácuio. Em senti
do ctimoiógico: objcctos para contcmpiar, quadros de uma exposição.
Por conseguinte, objcctos universais, porque aspiram a uma adesão
do oihar para si mesmos como modeios. Obviamcntc, é justamente es
ta a rcacção que se verificou na sua exposição cm púbiico. O espírito
com que a Grécia produzia os seus monumentos já não é certamcnte o
mesmo de hoje. Então, provaveimente, o sentido da admiração orien
tava-se para o conteúdo ideai da perfeição. Hoje cm dia, o espcctácuio
induz não à abstracta medida do universo, mas à mais prosaica cons
trução do icitiço. Poderemos taivez dizer que esta é a tranformação
operada pcio presente no passado: na medida do universai para o seu
totem.
E aqui intervém a história externa dos Bronzes para vaiorizar o
universai fciticizado. Os Bronzes reapareceram, por sorte, após vinte
c cinco sécuios (mais ou menos) rias /rrq/M/iriiriaries rios aòi.wros.
! ransparccc também de modo óbvio a vaicncia narrativa do evento.
Separemo-ia em duas sequências iguaimente importantes. Primeira sc-
207
quência: «após vinte e cinco séculos». A forma dos Bronzes resistiu à
intempérie do tempo, à dcscontinuidadc da história, à dcgcncração dos
acontecimentos. Os Bronzes exprimem, pois, uma duração que vai
muito além da vida dos homens e dos seus comuns artefactos. Segun
da sequência: «da profundidade dos abismos». Aquela forma reemer-
gc não obstante um cancelamento, reaparece apesar da profundidade
da queda, ressurge apesar do nada cm que mergulhara. Atesta, portan
to, a sua i/td&UrMdMidadc. Os Bronzes, efcctivamentc, resistem a
qualquer sentido de actualidadc, a partir do momento em que nos abis
mos se perdeu todo o contacto com a realidade que os gerara. Nada sa
bemos deles, nem o seu autor, nem o seu proprietário, nem o lugar de
origem ou de chegada, nem o título que indicava o seu significado.
São se/n <7Ma/<7Mer /torne, isto é, se/rt propriedade. Têm a mes
ma configuração de um milagre c de uma lenda. A confirmação proce
de de uma particularidade: muitos críticos referiram-sc a autores míti
cos, como Fídias. E ao fazerem assim contaram a saga dos dois heróis,
como os tratadistas antigos nas suas anedotas ideais, à Plínio. Os
Bronzes tomaram-se, em suma, um mito de origcmC).
Universal, ideal, eterno, miraculoso. São estes os atributos dos
Bronzes de Riace avaliados a partir da sua forma substancial e da sua
forma narrativa actual. Mas vejamos o que sucede quando o universal
simbólico ganha concreção numa forma física. Esta última torna-se
imediamente um cânon de conformidade, beleza, cticidadc, euforia.
De facto, jamais se proferiram tantos juízos enfáticos sobre um valor
estético como neste caso. Além disso, à volta dos Bronzes, nasceram
histórias viradas para o seu conteúdo ético. Por exemplo, conjccturou-
- s c a seu respeito um papel ritual para alguma cidade da Magna Gré
cia, ou que seriam representações de divindades de fundação, ou até
um sinal do poder do «novo mundo» (como devia ser a Península para
os Gregos). A nível popular, em seguida, nas revistas de banda dese
nhada ou cm publicações mistcriosóficas irromperam narrativas mo
deladas cm torno dos Bronzes, com proezas de amor fatal, de sacrifí
cios pagãos, de revelações mcdiúnicas. Quanto ao juízo passional, já
se falou. Os Bronzes próvocaram, cfcctivamcnte, um timismo genera
lizado. Basta pensar no delírio colectivo por altura das duas exposi-
(") Sobre o mito de origem, podem ler-se: Charles Morazd. «Saint Ccor-
ges, une éxpéricncc allcgorique», Con/ruiwrmce des /Irts, 1, 1970; Albcrt Van
Gennep, te.s Pites de Passage, Émite Nourry, Paris 1900; Vietor Tumcr, 77te
Porest qfSy/n&ds, Comell Univcrsity Press, Ithaca, 1977.
202
çõcs dc Florcnça c Roma após o restauro, ou nos inumeráveis pedidos
de empréstimo das mais diversas partes do mundo, a começar cm Los
Angeles para as Olimpíadas dc 1984.
203
menos que verdadeiramente excedem os sistemas regutados e ordena
dos, ievando-os a precipitar-se numa transformação; outra é, porem, a
simples ênfase ou a hiperbote, que corrobora o sistema na iuta contra
as turbulências. Continuemos então as observações. O herói america
no, primo dos Bronzes, 6 sem dúvida uma personagem estatual. Her-
cuies e Maciste são grandes troncos com perixoma animal. Os novos
heróis, não. O seu tísico emerge poderosa e harmonicamcntc seja qual
for a coisa que se lhe ponha cm cima. São capazes de se tomar ícones.
Rambo pode ter cartuchcira e bazuca, ou estar equipado de fita cm tor
no da fronte, ou com camisa militar e mochila, ou com calções de rin
gue. O seu corpo exprime de todos os modos uma espécie de «tensão»
cm movimento ou cm expectativa explosiva. Hercules era um culturis-
ta ou um levantador de pesos. A Rambo poder-se-ia fornecer um pe
destal.
Por fim, a dimensão do tempo. Hércules não sobrevive a não ser
numa época (ainda que fantástica) muito precisa. Rambo existe fora
do tempo. Pode pertencer a uma/a/ttasy ncogótica e metafísica e cha
mar-se Conan, a um presente possível e chamar-se Rocky, a um futuro
mcdievaüzante c chamar-se Terminator. Por isso, resulta universal, in-
dcpcndcntcmcntc das figuras que o representam. Possui, como os
Bronzes de há pouco, uma duração e, por consequência, uma indes-
trutibil idade. Como eles, provém de um abismo: o da memória cm
Cona/t, o do possível cm ícwÚHa/or.
5. Faces de bronze
204
formado. Mas, efectivamente, se o caracter ciássico dos Bronzes de
riva de um ideai estético (a medida) que homoioga também ideais fí
sicos (o cânon), éticos (a perfeição) e passionais (a admiração); se o
caracter ciássico de Rambo procede de um ideai ctico (a pureza), que
homoioga ideais físicos (o cânon costumado), estéticos (a sedução) e
passionais (a identificação); o homem ideai do «body building» deri
va, pcio contrário, de um absoiuto físico (o bem-estar), que homologa
os habituais ideais éticos (a saúde), estéticos (a sedução) c passionais
(de novo, a admiração). O «body buiiding», por outro iado, contém de
ciássico também o aspecto de etiqueta e normativo. Para construir o
corpo perfeito é preciso seguir uma série de exercícios, mas para se
guir os exercícios é necessária uma espécie de fiiosofia interior. Por
fim, também o título do «body bulding» é ciássico. O corpo é eJí/ica-
ífo como uma arquitectura: respeitando aqui pienamente também a
ideia antiga de físico, como metáfora da perfeição de todo o artcfacto,
até ao maior possívei que é a natureza. No veiho cuiturismo faitava
um semeihante conceito de harmonia universa), subiinhado peio con
trário hoje em virtude de as práticas gímnicas serem acompanhadas
por apiicaçõcs musicais e coreográficas. Em suma, o veiho cuiturismo
era enfático; o novo é harmônico e proporcionai. O cânon físico, além
disso, transmuta-se cm ideai estético. Eiimina-se a ideia de um beio
variávei e cstandardiza-sc o beio somático. Obviamcntc, isto sai fora
da paiestra e toma-se regra sociai, propagandeada indirectamcnte pe-
ias transmissões teievisivas com base em jovens pares, ou peia pubii-
cidade dos cosméticos, ou por fiimes como Nove SeoM/iaj e Aícia, ou
pcio cstiio cstcticizantc das fotografias por Armani.
Utilizei o adjectivo «esteticizante». Considero-o apropriado para o
nosso caso. E, de facto, inevitávei que a proposta de um cânon ideal se
traduza na ideaiização estética, substituindo à ideia de beieza como
produto de vários elementos físicos e morais a de uma beieza superfi
cial material, como sinai de beleza também moral.
206
uma história das formas. Descrever os seus fundamentos suscita uma
teoria das formas. Neste üvro, procurou-se timidamente fazer ambas
as coisas, co g t todos os defeitos das ambições çxccssivãs)' Quanto à
história das formas, porem, poder-se-ia desenvolver também de outro
modo, evitando a abordagem do problema social da prevalência. De
facto, seria possível muito simplesmente fixar-se, congclando-o, num
fM07ne/{ío(S) determinado e localizado da história, e assistir aí à mani
festação necessariamente conflituosa do contraste entre sistemas, que
se materializa em figuras precisas, específicas e datadas. História e
teoria da cultura poderiam deste modo associar-se, visto que as formas
da cultura existem, encontram-se cm competição e definem-se, enre
dando-se umas nas outras.
Dito isto, ou seja, dito do modo como os objcctos do gosto e valo
res correspondentes se interconectam e competem numa sociedade,
permanece aberto o problema do juízo. Desde a introdução se subli
nhou que não se tratava aqui de construir jerarquias e classificações.
Ou seja, a necessidade de descrição vinha antes da valorativa, e por is
so mesmo os valores dcscrevcr-se-iam nos termos da sua construção
cultural. O importante era apreender o «espírito do tempo» e articular
os seus territórios de explicitação. Isso não impede, no entanto, que
existam muitos fenômenos, entre os que foram examinados, que são
«melhores» do que outros. O problema é conseguir defini-los, esqui-
vando-se a critérios predeterminados, embora na consciência da sub-
jcctividadc do juízo. N o sistema das categorias de valor que sugeri
desde o primeiro capítulo existe porventura um elemento de interesse.
Isto c, os juízos que ali formavam uma matriz categoria! eram conce
bidos como va/ortzaçdo para /atara memdria já contida nos textos exa
minados. Era sim possível associá-la aos mecanismos de funciona
mento dos próprios textos. Diferente é, porém, aderir à matriz e aos
juízos implicitamente predispostos por um texto. Qualquer fenômeno,
cfcctivamente, se pode propor como indivíduo excelente de um espíri
to do tempo, e inserir-se assim mais numa poética do que noutra. Im
porta, pois, ver se a sugestão do texto consegue deparar com um con
trolo cfcctivo, realizar verdadeiramente um valor.
Ao longo de todos os capítulos, de facto, viu-se como os princípios
constitutivos do «ncobarroco» se manifestam em produções, obras e
comportamentos receptivos. Tudo isto descreve o processo de forma-
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ção de uma poética como «instrução para o uso» e, no nosso caso, em
particular, mostra que a poética neobarroca brota da difusão das comu
nicações de massa. Mas viu-se também sempre cm cada capítulo que
os textos examinados levam a cabo a operação co/a gratcr t/ttcayt-
dade diversar. Nos parágrafos dedicados ao limite e ao excesso, por
exemplo, observou-se que muitas vezes as duas categorias surgem
configuradas de modo ambíguo, uma simulando a outra. Isto significa
que existe algum princípio diferencial no interior de um «gosto geral»:
por exemplo, a observação de que é rca/ o risco mtc/cctaa/ que se vota
à poética de rotura do limite ou do excesso. No capítulo sobre a insta
bilidade e a metamorfose, entrevimos igualmente uma segunda carac
terística neobarroca. Mas também aqui com alguma diferença possível
entre os objectos: mais normal parece, de facto, a inversão das catego
rias de valor cm novas homologações, mais árdua a sua total suspen
são, porque isso implica uma interpretação mais forçada do sistema,
um conflito de acettaMtdatíe. Noutros lugares ainda, sublinhámos que
a oferta de um novo princípio formal se podia realizar de um modo di
recto e simples, ou seja, de modo expressivamente complexo e cons
ciente. Também esta é uma auterior chave do juízo sobre a intensidade
de uma mudança.
Como se vê, estou no fundo a propor uma chave final interpreta-
tiva não já no sentido hermenêutico, mas prccisamcnte em sentido va-
lorativo. E, desta vez, estou a fazê-lo de um modo pessoal, fora dos
critérios com que elaborei este livro. As três palavras-cmblcma há
pouco pronunciadas são de facto: risco tntc/ectaa/, coa/Ztto & accita-
bt/t&tde. traba/Aa sobre o watéria estética. Mas se o meu sistema indi
vidual de preferências funciona segundo estas três regras e se elas não
são mecanicamente derivadas do método dc análise dos fenômenos,
pode ao mesmo tempo dizer-se que existe aí dc algum modo uma rela
ção com ele.
Como poderiam, cfcctivamcntc, formular-se os wetts juízos, a não
ser com base numa boa descrição e interpretação dos fenômenos?
Como poderei chegar a fazer uma escolha segundo um princípio dc
qualidade, se não conhecesse algum critério que me permita tfiscritru-
nar c assim rcconbccer as características dos objectos examinados? E
só a existência de um tal critério que me permite aderir a uma obra
mais do que a outra, crttt'cd-/a. Do mesmo modo que é apenas a exis
tência de semelhante critério que permite superar o limiar dc juízos
prc-fabricados, que nada mais seriam do que a fotocópia dc um siste
ma dc vaiorcs já constituído. Creio verdadeiramente que a actividadc
crítica só pode fundar-se numa actividade interpretativa, a quai restitui
um sentido dc überdade e de independência dos juízos dc vaior, o sen
tido da investigação da quaiidadc isenta dc preconceitos, o sentido da
aventura das idéias estéticas.
/N D /C E
/ntrodaçõc.................................................................................. 9
J. 0 gosto e o método......................................................... 13
1. Questões preliminares, p.13? - 2 . 0 termo «neobarro-
co», p. 24 - 3. Clássico e barroco, p. 29 - 4. As catego
rias de valor, p. 35