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BARCAR0LLA
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Gwes Ltpove~ky comSébastlen Charles

OSTEMPOSHIPERMODERNOS
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Trnduçâo : Mário Vilela


Copyright O ,... Édítion.,e,- , & fasqucllc
Proibida :a,,en,d:acm Portugal.

(OOlDtNAÇÃO EDl'TOI.JAL
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SUMÁRIO

1 Prefácio

u O individualismo paradoxal:
Introdução ao pensàment o de GUJesLipovetsky
Cbatles
Sét,;,.,11en

<9 Tempo contra tempo, ou a sociedade hlpérmodema


CmesLtpoveuty

105 Marcos de uma trajetória inceleccual ••


deCilles
Entremta a Séoostlen
Úpovt/Jky Charles

121 Bibliografia de Gll.les I.Jpovetsky

'
.' '\

PREFÃCIO

A obra de-GUles Llpovetsky marcou profundamente a lnterpre-


ea~o da modernidade. No prlmelro livro do autor, A era dovazio
(1!181)
. ele estabelecia os maroos daquilo que se impolia na França
c;omo "paradigma indivlduaillsta•. Desde llntão, Lipovetsky nãó
pnrou de explorar detalhadamente as múltiplas filCflt.1$go irKli-
vlduo contemporâneo: o reinado da moda, as metamorfoses da
IIUca, a nova economia dos s,:,xos,a explosão do luxo e as muta- •
~ da sociedade de consumo .
Essa atenção ao mais contemporâneo poderia passar por
c:omplacencla; mas não se tr.ata de nada disso, e uma das virtu-
de!!.do, tra.balho de Lipovetsky é, com base numa descrição . e
numa arqueologia minuciosas dos fenômenos, superar o anta ·
gonismo tradicional entre os.antigos e os modernos, entre os eu·
fór lcos e as cassandras da modernidade. Na obra de Lipovetsky,
nno encontram aplicação unívoca nem o modelo • prov,dencia -
Ilsta" de uma modernidade que semp re descobre em si mesma
os remédios de seus males e os benefícios de seus inconvenien-

7
tcs, nem o esquema catastroflsta do reino que advém apenas da
• razão inStrumenta!". ou seja, de uma racionalidade para a qual
existem não mais fins, e sim apenas meios.
Asegunda revolução moderna (ou hipermoderna), que se
Instaura diante de nossos olhos, não é de maneira alguma si·
nónimo de extinção dos fins. Ela tampouco signillca a vitória
definitiva do materia!Jsmo e do cinismo, pois se assiste, pelo con·
trárlo, ao reinvestimen to afetivo em certo número de senti ·
me ntos e valores tradicionais: o gosto pela sociabilidade, o volun·
tarlado, a Indignação moral, a valorização do amor. São tantos
se11tlmentos e valores que não apenas se perpetuam, mas que ,
conforme o caso, também se reforçam num aprofundamento
humanista do individu alism o. Desse ponto de vlsua, poderia
parecer qu e a Interpretação de Cilles Lipovetsky se aproxima do
primeiro. modelo "otimista", não fosse a diferença fundam ental
de que de modo algum e la se funda num m ecanismo invisível e
providencial; antes, empenha-se em descrever os fenômenos de
reconstituição e ·reciclagem· na sutileza dos detalhes. Ai,não
há nenhuma aposta mettafísica, e sim uma exposição dos fenô ·
menos que admite demonstração e refutação (coisa qu e n em o
prim eiro ne m o segundo modelo podem pretender) .
Épor tal razão qu e essa leitura mais complexa e menos uni·
voca não desemboca numa visão idílica de nosso presente. Este
é e continua paradoxal, tanto para os parti cipant es quanto pa·
ra os intérpretes: e mbora o hlpercon sumo pareça compatível
com os valores do hum a:nlsmo, ele certamente não é a panacéia
que garantirá a fellcldad.e humana . O Indivíduo hlp erco ntem ·
porâneo, mais autôn omo, é também mais frágil qu e nunca, na

8
\ .
\.

rnt'<lldaem que as obrigações e as exigências que o deOnem são


mais vastas e mais pesadas. A liberdade, o conforto, a qualidade
u o expecta tiva de vida não eliminam o trágico da existência:
flélo contrár io, tornam mais cruel a contradição.
Neste livro, escrito em colaboração com Sébastlen Charles ,
Llpover.skyfala de sua trajetória Intelectual e das diíerentes eta·
pas de seu trabalho; mas oferec e também uma contribuição
fundamental para sua própria Interpretação da "segunda revo·
l11çllomoderna·. dedicando-se pela primeira vez â descrever os
Iraços mais caracterlsticos daquilo que, para melhor ou pior ,·a
"hlpermoder nidade" nos reserva.
Esta obra é a continuação de várias sessões que o College de
Phllosophle consagrou ao tr abalho de Gilles Llpovetsky. Sébas-
Ucn Charles. professor de fUosofia na Universidad e de Sher·
l)rooke {Canadá), proporcionou a direção Intelectual.

Pierre-Henri
Ta.-oillot
Univers
idadedeParisN (Sorbonne)
.

A condenação do presente é sem dúvida, se analisada da pers·


pectiva do tempo longo da história, a critica mais comum
oprese ntada pelos escritores, Olósofos e poetas, e isso desde
~pocas Imemoriais. Platão Já se preocupava com o deflnhamen·
lo dos .valores e o surgimento dessa raça de ferro. a dele, que
nno_tinhamaismultoem comumcoma raçade ouro dos tem·
110sm1ticos, dotada de todas as virtudes. E.a crermos em Plínio. '
<l VeU10. o mundo sufocado do qual ele compartllho,u os derra·
chiiros momentos* estava lrreversivclmentc fadado à ruína, tal
, 1ro seu adiantado estado de corrupção. .
Orema da decadência ou da queda. retomado no plano reli·
11fO!là pela perspectiva apocalíptica, não é novo, e cad'.a um acha
, orn facilidade as causas ,da degenerescência que lhe parece ca·
1,1etcrizar adequadamente os defeitos de sua respectiva época.
N11
Antiguidade,
comoa históriaeraconcebidade maneiracicll·

' PUnlo morreu asfixiadoduran te uma erupção do Vesúvio. (N.T.)

1)
ca, o mais negativo se inscrevia onto logicamente nos aros da
roda da fortuna, e seu advento era pensado na categoria do ine-
vitável. No mundo cristão . o Pecado Origina l .e o Juízo Final
eram os dois faróis que Iluminavam um presente transitório e
tido como desprovido de essência. Êcom a modernidade que
ocor re a ruptura , não para reinserir o presente no_c~rne das
preocupações de todos, mas para inverter a ordem da tempora ·
!Idade e fazer do futuro, e não mais do passado, o Jocusda felici·
dade vindoura e do fim dos sofrimentos . Essaruptura essencial
na história da humanidade se traduz na Jor'ma de um discurso
radicalmente oposto àquele da decadência, exalta.ndo dessa vez
ás conquistas da ciência e apontando as condições de um pro·
gresso Ilimitado do qual ,deveríamos ser os herdeiros. A razão
poderia reinar sobre o mundo e criar as co.ndiçõespara a paz, a
eqüidade e ajustiça.
Esseotimismo, que ca racteriza especiAcamente a filosofia
das Luzes e o cientismo do século XIX.não ê ma.Iscorrente. Na
seqüência das catástrofes que o século XX presenciou, a razão
perd ~u toda dimensão positiva, para ser.combatida como lns·
tru .mento de dominação contábil e burocrática, e nossa rela.ção
com o tempo, e mais espec ialmente com o porvir, está dora·
vante marcada por essa c'rltlca. alnda que perdurem .,em nega·
tivo, restos do otimismo passado, sobretudo no plano técnico·
científico. Tendo o passado e o futuro sido desacreditados, exls·
te a tendência a pensar que o presente se tomou a referência
essencial dos Indivíduos nas democracias, pois esses últimos
romperam dellnltlvamernte com as tradições que a modernida·
de varreu e se desviaram daqueles amanhãs que nem chegaram

14
.. \

A en altecer multo. A~r disso, <;>texto de Gmes Llpovetsky que


$(! ,'íeg
ue ao nosso mostrará que, quanto à relação com o tempo,
ns coisas não são assim tão simples, de um lado porque a consa-
11r~çãodo presente não é tão evidente quanto dizem às vezes,
de out ro lado porque àS criticas que são íeitas a essa consa ·
RrtJÇllopassam freqüentemente por cima do essencial.
Um dos méritos das anâlises qúe Gmes Lipovetsky propõe
há vinte anos é romper com talsjulzos excessivos, sempre de·
mlltf~do el.ementares porque olham apenas um aspecto das col·
M1.a fim de livrar-se de toda a complexidade do real e circuns ·
11evcr as contradições de que este está urdido. Nessesentido,
l.lpovets.ky é antes de tudo discípulo de Tocqueville, o primeiro
1111(lsoube d iagnosticar o :surgimento de Indivíduos preocupa·
1111• com a respectiva felicjdade pessoal. de ambições llmitadas.
~ lt' ded icou a assinalar os numerosos paradoxos que a demo·
ri-nela ame ricana lhe possibilitava julgar in loco.Ainda como
'lhcq u evllle, as análises de Lipovetsky não se contem.am com
Jult,os apressados n em submetidos a ditames Ideológicos; antes,
••Nulndo um m étodo empirista ou indutivo , procuram partir
11\lfoíntps , e do estudo destes no tempo longo , para propor um
•11u1dr'Qd e a nálise que possibilite íazê·los falar e dar-lhes sen ·
I lllo. Nesse aspecto, cada uma das obras de Lipovetsky é car{to
1111111 cr lUca das concepções excessivament e simpl istas que se
111 oriõem a respeito do real quanto um convite a pensar de ma·
111.lftnmais complexa os fe,nômenos deste nosso mundo .

,,
Da modernidadeà pós-modernidade:
o abandonodo universodisciplinar

Asanállses tradlcionals:.acerca do mundo moderno , tanto as


de direita como as de esquerda , em geral se baseiam numa
critica similar: a autonomia prometida peÍas Luzes teve por
conseqüência última .u.ma alienação ·total do mun!(lo huma-
no, submetido ao peso terrível destes doiS Oagelosda moder·
nidade que são a técnica e o liberalismo comercial. A moder -
nidade não apenas. n·ão conseg,úu concretizar os ideais das
Luzes que objetivava alcançar, mas também, ao Invés de ava-
ljzar um trabalho de real libertação, deu luga.r a um empre·
endimento de verdadeira subjugação, burocrática e dlsclpll·
nar, exercendo -se lguaJmente sobre os corpos e os espíritos .
Foucault foi sem dúvida o pensador que mais insistiu neste
'
aspecto corrompido da modernidade que é a disciplina, cuja
finalidade consiste maiS em controlar os homens que em lf·
·bertá -los. A diSclplinaé um conjunto de regras e técnicas es-
pecfficas (vigilância hierárquica , sançãonormatizadora. exa-
me ele avaliação) que Mm por efeito produzir uma conduta
normatizada e padronizada, adestrar os indivíduos e subme-
tê-los a urna fôrrna idêntica para otimizar -lhes as faculdades
~ rodutfvas.
Ora,no mesmo instante em que Foucault ainda fazia das
disciplinas. o prlndplo de Inteligibilidade do real, Lipovetsky
anunciava. em A era do vazio (198}). que havlamos entrado
numa sociedade pós·dlsclpllnar, l·a qual ele denominava pós-
modernldadc; e, em O impériodQ eiemero(1!181), que a própria

,/ •
16:
' \

1J1111
.
fllQ(jcrnidade não era r.edutivel t.'io-somente ao esquema disci-
nr se nos dávamos ao trabalho de encará -la pelo _domínio
dQ cítlmero por excelência, a moda.Trata va-se então ,não só de
rQinpcr com a leitura foucauldlana (mostrando que a moda, ao
lnr possibilitado que se escapasse do mundo da tradição e da
, 1•lcbração do presente social, desempenhara importante papel
, 111aquisição da auto nomia), mas também de d;stanciar-se da
l'\glcodas_distinções sociais própria de Bourdieu (mostrando
11wo mQd.apodia.ser pensada fora do esquema da !uta de clas-
1 (l da rivalidade hierárquica).
E.~tá bem, o surgimento da moda é indissociável da compe·
llçl'lode classes entre uma -aristocracia preocupada com a mag·
rllO~nc ia e uma burguesia ávida de imitá-la. Masisso não esgo·
ld o fonõmeno, nem indica por que a aristocracia foi. levada a
l11vestlr na ordem da aparência de modo que a o rdem impve l
11!1tradição se viu destituída em favor da espiral lntermJnáliel da
Imaginação . Épreciso ver nisso a consideração de.novos refe·
rc.1 1(:lais, de novas finalidades, e não uma simples dialética so-
e lnl. uma confrontação entre status. O problema das teorias da
cll1Unção,.como a de Bourdicu, é que elas não explicam por que
M lu tas de competição de prestígio entre os grupos sociais do·
11llnantes, tão antigas quanto as primeiras sociedades humanas.
pud eram estar na origem de um processo absolutamente mo·
cl<•rno, sem nenhum precedente histórico: nem como pude·
M~ surgir na ordemda aparência o motor da inovação perma-
11cnte e a autonomia pessoal. Portanto as rivalidades de classe
nl'lo podem ser o principio explicativo das variações incessantes
dn moda.

.17
A explicação que se Impõe é a que consiste em dizer que

a.s eternas revlravç,ltas da moda são antes de tudo o resultado de


novas valorações sociais ligadas a uma nova poslção e representação
do lndMduonoquese refereaoconjuntocoletivo.[... f A coruclên·
ela de ser dos 1nclivlduos de destino específico, a vontade de expr!·
mlr uma Identidade única. a celebração cultural da identadade pes'
soai, longe de contltufrem um epifenõmeno, ti!m sido uma · rorça
produtiva•, o próprio motor da mutabilidade da moda .. Para que
surgisse o vôo de fantasia das frivolidades, foi necessário uma revo-
lução na tepmetllaçãodas pessoas e no sentimento de si, subvertendo
as mentalidades e valores tradicionais; foi preciso que se colocassem
em movim ento a exaltação da unicidade dos seres e seu comple·
menta , a promoção social dos signos da diferença social.i

..
De fato,'80 valortzara renovaçãodasformase a lnconstãncia
da aparência, no Início essencialmente no plano Indumentário
do reduzido círculo dos aristocratas e (depois) dos burg ueses; a
moda possibilitou a desqu alificaçãó do passado e a valorização
do novo; a afirmação do Individuai sobre o coletivo. graças à
subjetivação do gosto; o reinado do efêmero sistemático. Com·
pteende·se então que, na -economia da llberdade individual. a
frivolidade da moda Jogue de Igual para Igual com o culto da
gravidade e da seriedade modernas, limitando-se assim a confir·
mar uma mesmatendênciaà autonomia:

do mesmo modo que os homens, no Ocidente modemo, se decil·


cam à exploração Intensiva do mundo material e à racionalização

18
. \
111rnns1va das tareras prodüUvas, eles afirmam, por meio do caril·
11•r ijl~mero da moda, o poder de lnlclaUvaque tém sobre a apa·
,~nr.la. Nos dois casos, afirmam-se a soberania e a autonomia
tl\.11nnnasque se exercem tanto sobre o mundo natural quanto
Mlbre o ambitç,escétloo.Proteué Prormceutem a mesmaorigem:
lmlltulramjunios. seguindo caminhos radlcalmente clivergen·
u•s.a nventura única da modernidade ocidental em vias de apro-
priação dOS'dadosde sua hlstórla.l

llrora o desenvolvimento da autonomia ·que ela alicerça , a


1111 .lda desempenhou Igualmente papel íundamentail no mo·
lll~rllo da inflexão da modernidade num sentido pós·moder·
1111 . Issoporque é com a extensão da lógica da moda ao conjun·
hl deiéo rpo social (quando a so.ciedade inteira se reestrutura
11ttu1woa lógica da sedução, da renovação permanente e da di·
1~1 onclaçàomarginal)que emergeo mundo pós•moderno. ta
••~da moda extrema, em que a sociedade burocrática e dem .o·
, 1·,lt1ça se submete aos três componentes essenciais (efêmero,
11•dução,diferenciação marginal) da íorma·moda e se apresen·
111co mo sociedade superlicial e frívola, que impõe a nonnativl·
11,,de.nilo mais pela disciplina, mas pela escolha e pe la espeta·
tu larldade.
Com a difusão da lógica da moda pelo corpo social inte iro,
,•ruramos na era pós-moderna, momento multo preciso que vê
mnpllar·sea esferadá autonomia subjetiva,multlplicarem·se
ns diferenças individuais, esvaziarem-se de sua substilncia trans·
ccnde nte os princípios sociais reguladores e dissolver-se a uni ·
dnde das opiniões e dos modos de vida. Donde, especialmente

19
em A eradovazio,esta Insistência no conceito central de personali-
zação,a fim de entender uma notável mudança de rumo na
dlnãmica do indivlduaUsmo nascido com a modernidade. Ao
permitir uma libertação dos Indivíduos em face do mundo a
que pertencem, uma autonomização que permitll/J a eada um
não mais seguir um caminho preestabelecido pela tradição e
assumir uma liberdade de açào cada vez mais acentuada, a pós-
modernldade possibilitou realizar aqueles ideais das Luzes que
a modernidade anunciara em termos meramente legalístlcos,
sem ter-lhes dado forçá real.
Sóque (e trata-se aqui de um ponto fundamental que A era
dovaziojá assinalava) essa libertação em face das tradições, esse
acesso a uma autonom .la real em relação às grandes estruturas
de sentido, não slgn!Oca nem que desapareceu todo o poder so-
bre ps Indivíduos, nem que se adentrou num mundo ideal, sem
co~O'it<:>e ~em dominação . Os m ecanismos de c:,ontrole não
sumiram; eles·só se adaptaram, tornando -se menos regulado-
res, abandonando a lmpoSiçào em favor da comunicação. Já não
usam decreto legislativo para proibir as pessoas de fumar; fa·

zem-nas, Isto sim, tomar consciência dos efeitos desastrosos da
nicotina para a saúde e a expectativa dé vida.

Assim opera o procCS$0de personalização, nova maneira de à so-


ciedade organizar -se e orientar -se, nova maneira de gerar os com·
portamcntos, não mais com a tiraniados detalhes, e sim com o mí-
nimo de sujeição e o máximo de escolhasprivadas possivel , com
o mínimo de austeridade e o mãximo de desejo possível, com o
m(nlmo de coe rção e-o máximo de compreensâ _
o possíve.t.•


' '\
ParaLlpovetsky,corrio se vê, a questão não é atenuar o papel
du negatividade no retrato que ele traça da pós-modernidade ,
m as antes moderar o sentido dessa mesma pós-modernidade
r>ropondo encará-la como fenômeno não unidimensional, mas
dup lo. No fundo, tí'àta ·5é dêeompr êêl'\der que a pós·rnod ernl ·
(lnde se apresenta na forma do paradoxo e que nela coexistem
Intimamente duas lógicas, ....ma que valo.riza a autonomia , outra
11u e aumenta a Independ ência. O importante é enten .der bem
que é a própria lógica do individualismo e da desagregação áas
tl5tru turas tradicionais de normalização o que produz fenô ·
menos tão opostos quanto o autocontrole e a abulia, o super ·
em penho prometélco e a total falta de vontade. De um lado,
nulis tomada de responsabilidade; de outro, mais desregramento.
A l'SSência do individualismo é mesmo o paradoxo. Ante a de·
'ICStruturação dos controles sociais, os Indivíduos, em ,contexto
p&-disciplinar,têm a opção de assumir responsabilidadeou
não, de autoéontrol .ar·seou deixar-se levar. A alimentação é o
melhor exemplo. Uma vez que desaparecem nesse âmbito as
obrigações sociais, e particularmente as religiosas Úejum, qua·
resma etc .), observam-se tanto comportamentos individuais
rosp<; >nsáveis(monitoramento do peso,busca de informação so·
bre a saúde. ginástica) que às vezes beiram o patológico pelo
excesso de.control e (condutas anoréxicas) quanto atitudes com·
p.le tamente irresponsáveis que favorecem a bulimia e a deses·
t.ruturação dosritmos alimentares.Nossasociedadeda magre-
za e da dieta é também a do sobrepeso e da obesidade.
Também é essencial entender que todo ganho em autono·
mia se faz à custa de nova dependência e que o hedonismo pós ·

21
moderno é bicéfalo, desestruturante e Irresponsável. no caso de
certo número de ln<lividuos, e prudente e responsável, no caso
da maior ia . Quer-se ou'tra prova disso? Basta pensar na libera-
ção de costumes, que teve por contrapartida uma desestrutu-
ração do mundo famil ial e relacional, tomando os vínculos
entre as pessoas mais complicados que no passado, quando a
norma tradicional impunha a cada um seu devido lugar na
ordem social. Não nos enganemos: se a obra de Lipovetsky pro-
põe uma visão da pós-modernidade mais ~omplexa é m enos
unívoca, se ela recusa a,o mesmo tempo as simplificações apo-
calípcicas ou apologéticas-que se fazem sobre nossa época. isso
·se dá não para enaltecer nosso presente, mas para sublinhar os
paradoxos essenciais e apontar a ação paralela e complementar
do positivo e do negativo.

Da pós-modernidadeà hipermodernidade:
do gozoà angústia

Emborâ o termo • pós-modernidade" seja problemático por -


que parece indicar um a grande ruptura na história do lndlvl -
dl!llllsmo moderno, o fato é que ele é adequado para marcar
uma mudança de perspectiva nada negligenciável nessa mesma
história. De Inicio, pensa -se a modernidade segundo dois valo-
resêSSel'lélaís(a sabér: a liberdade e a Igualdade) e numa figura
inédita (o indivíduo autônomo, em ruptura com o mundo da
tradição). Sóque, na era clássica, o surgimento do individualis -
mo ocorre u concomitantemente com a ampliação do p,oder

ll
estatal, o que fez que~
'
autonomização dos lndivíd.uos per-
manecesse mais teórica que real. A pós-modernidade íiepresen-
ta o momento histórico p reciso em que todos os freios Institu-
cionais que se opunham à ,emancipação ind ividual se esboroam
e desaparecem. dando li.1g.arà manífestação dos desejos subje-
tivos, da realização Individual, do amo.r-próprlo. Asgrandes es-
truturas socializantes perdem a autoridade, as grandes Ideolo-
gias Já não estão mals em expansão, os projetos históricos não
mobilizam mais, o âmbito ,social não é mais que o prolong a-
mento do privado - insta la-se a era do vazio, mas •sem tragé-
dia e sem apocalipse·. s
Como explicar essa mutação da modernidade? Será que se
precisaria ver ai a tradução no real de discursos teór .icos que
celebraram a autonomia indlvidual e o desaparecimento das
estruturas de controle socãal? Embora seja possível que este ou
àquele escrito tenha desempenhado um papel, que o mode ·r-
nlsmo na arte ou o advento da psicanálise tenham exercido
influência, que a ação da Igualdade tenha produzido efeito, o es-
sencial é algo de outra ordem. Na realidade, são antes de tudo
o consumo de massa e os valores que ele veicula (cultura he-
donista e psicologista) os responsáveis pela passagem da mo.·
dernidade à pós-modern idade, mutação que se pode.datar
da segunda metade do século XX.De 1880 a 1950, os primeiros
ele~entos que depois explicarão o surgimento da pós-moder -
nidade se colôéáfl'I póuco a pouco em cena, respondendo ao
aumento da produção Industrial (taylorização), à difusão de
produtos possibilltada pelo progresso dos transportes e da co-
municação e, posteriormente, ao aparecimento dos métodos

2}
comerciais que caracter .lzam o capitalismo moderno (marke·
tlng, grandes lojas, marcas, publicidade). A lógica da moda co·
meça então a permear de modo intimo e permanente o mundo
da produção e do consumo de massa é a Impor-se perceptlvel·
mente. mesmo que só a partir dos anos 6o vá contaminar de
fato o conjunto da sociedade. Faz~ necessário dizer que, nessa
primeira rase do capltallsmo moderno. o consumo ainda se li·
mita à classe burguesa.'
A segunda fase do consumo, que surge por vo'lta de 19io ,
designa o momento em que produção e consumo de massa
não mais estão reservados unicamente a uma classe de prlvlle·
giados: em que o lndividua.lismo se liberta das normas tradicio ·
náls; ·e em que emerge uma sociedade cada vez mais voltada
para o presente e·as novidades que ele traz, cada vez mais toma·
da P9r uma lógica da sedução. esta concebida na forma de uma
hedontzação da vida que seria aces.5lvelao conjunto das cama·
das sociais. O modelo aristocrático que ca.racterizara os primei·
ros tempos da moda ·vacila. minado por considerações hedonls·
tas. Assiste-se aJ à extensão a todas as camadas sociais do gosto

pelas novidades, da promoção do íútlle do írívolo, do culto ao
desenvolvimento pessoa.! e ao bem-estar - em resumo, da ldeo·
logla lndlvlduallsta hedonista. Éo surgimento do ~odeio de
sociedade pós-moderna descrito por .A era do vazio, em que a
aná.liSedo social se explica melhor pela sedução que :por noções
como a de alienação ou de disciplina. Há não mal.s modelos
prescritos pelos grupos sociais, e sim condutas escolhidas e as·
sumidas pelos indivíduos: há não mais normas Impostas sem
discussão, e sim uma vontade de seduzir que areta indistinta·
. ' '
mente o domínio público (culto à transparência e li comunica-

çâo) e o privado (multiplicação das descobertas e das experiên-
cias subjetivas). Aparece então Narciso, Ogura de proa de A era
dova:zlo.individuo cwl, flexível, hedonista e libertário, tudo Isso
ao mesmo tempo. Era a fasejubilosa e liberadora do individua-
lismo, que se vivenciava mediante a desafeição pelas Ideologias
políticas, o deOnhamento das normas tradicionais, o culto ao
presente e a promoçâo do hedonismo '
Individual. Embora .os
·~ ~

contrapontos negativos dessa dllaceração nas grandes estrutú ·


ras de sentido coletivas já pudessem fazer-se sentir (nada de
libertação sem nova forma de dependência), o fato era qu e eles
permaneciam um pouco ocultos. Contudo a lóg,icad.uai que
caracteriza a pós-modernidade Já estava em ação e exe·rcia seu
domínio ,
Será que se pode ficar aj)enas nas conclus ões a que ch,ega
A eradovazioe considerar a segunda fase do consumo a fase ter·
minai, correlata da pós-modernidade? Será que, desde os anos
80, estamos sempre submetidos ao mesmo modelo de lndivl-
ê:lualismo narcisista? Vários sinais fazem pensar que entramos
na era d o hiper.a qual se caracteriza pelo hiperconsumo, essa
terceira fase da modernidade; pela hipermodernidade, que ~e
segue à pós-modernidade; e pelo hipernarclsismo .
Hlperconsumo: um consumo que absorve e integra parcelas
cada vez majores da vida social; que funciona cada vez: menos
segundo o modelo de con frontações simbólicas caro a Bour ·
dieu; e que, pelo contrário, se dispõe em função de fins e de
critérios individuais e segul!ldo uma lógica emotiva e hedonis-
ta que faz que cada um consuma antes de tudo para sentir pra-

2j
zer, mal~ que para rivaliza:r com outrem. O próprio luxo, ele·
mento da distinção socta[ por excelência, entra na esfera do
hiperconsumo porque é cada vez mais consumido pela satisfa·
ção que proporcion,; (um sentimento de eternidade num mun·
do entregueà fugacidadedas coisas);e não porquepermite exi·
bir status.

A busca dos gozos privados suplantou a exigênciade ostentação e


de reconhecimento social: a épocà contemporâ nea vê afirmar-se
um luxo de tipo inédito, um luxo emocional. experiencial, pslco-
loglzado. substituindo a primazia da teatralidade social pela das
sensações intJmas.7

Hipermodemidade: uma sociedade liberal, caracterl2ada pelo


movimento, pela fluidez. pela fleXibllldade; Indiferente como
nunca antes:;e foiaos grandesprincípio$estruturantes da mo·
dernldade, que precisaram adaptar•se ao ritmo hlpermoderno
para não desaparecer.
Hipe;narclsismo: época de um Narciso que toma ares de ma·
duro, responsável. organizado, eficiente e flexível e qu e, dessa
maneira, rompe com o Nar clso dos anos pós-modernos, hedo·
nista e libertário.

A responsabilidadesubstituiu a utopia festiva,e a gestão, a contes·


taçao - tudo $e pil$$ii_
como R' agora só nos reconhecê$semos na
ética e na competitividade, nas regulações sensatas e no sucesso
profissional.8
Sóque, <!estavez, os,paradoxos da hlpermodernldade se exl·
bem às claras, Narciso maduro? Mas se ele não pára de Invadir
os domlnlos da Infância eida adolescência, como se se negasse a
assumir sua 'idade adulta! Narciso responsável? Pode-se real·
mente pensar Isso quando os comportamentos irresponsáveis
se mulllplicam, quando as declarações de Intenção não se con·
crelizam? O que dizer dessas empresas que ralam em códigos de
deontologia e que , ao mesmo tempo, demitem em massa por ;
que antes maquiaram os livros contábeis; desses armadores que
evocam a Importância de respeitar o melo ·ambiente enquanto
seus própri os navios efetuam descargas selvagens de poluent es:
desses empreiteiros que exaltam a qualidade de suas constru·
ções muito embora elas desabem ao menor abalo sismico: des·
ses motoristas que dizem respeitar o código de trânsito e ralam
ao celular enquanto dirigem? Narciso eficiente?Que seja, m~ ao
custo de distúrbios psic0<ssomáticoscada vez mais íreqüentes.
de depressõ es e estafos nagrantes. Narciso gestor? Éde duvidar,
quando se observa a espiral de end.iVidamento das empresas.
Narciso nexível? Mas se é a tensão nervosa o que o caracterizá
no âmbito social quando ,chega a hora de perder certos benefi-
clos adquiridos! A lógica pós-moderna, da conquista pessoal íol
substit uíd a por uma lógica corporat ivista de defes.a de prcr·
rogativas sociais. Els apenas uma amostra dos paradoxos que
caracterizam a hipcm1odernidade: quanto mais avançam as con·
dutas responsáveis, mais aumenta a Irresponsabilidade. Os indi·
víduos hiperm odernos são ao m esmo tempo mais informados
e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis, mer,os
ideológicos e mais tributários das modas, mais abertos e mais

27
Influenciáveis, mais critlcos e mais superficiais , mals ·cétícos e
menos profundos.
Oque mudou principalmente foi o ambiente social e a rela-
ção com o presente. A desagregação do mundo da tradição é
vivida não mais sob o regi me da emanclpàção, e sim sob o da
ténsão nervosa. Éo medo o que Importa e o que domina em
face de um futuro Incerto : de uma lógica da globalização que se
exerce Independentemente dos indivíduos; de uma competição
liberal exacerbada; de um desenvolvimento desenfreado das tec-
nologias da Informação; de uma prcca.rtzação do emprego; e de
uma estagnação Inquietante do desemprego num nível eleva-
do. Nas décadas de 60 e 70, quem teria pensado em ver nas ruas.
como hoje se vê, um Narciso de vinte anos a defender sua apo-
sentadoria quarenta anos antes de poder beneficiar-se dela? O
que poderia ter-se asseme lhado estran ho ou chocante no con·
texto pós·modêrftô nos parece hoje perfeitamente normal. Nar•
ciso é doravante corroído pela ansiedade; o receio se Impõe ao
gozo, e a angústia, à libertação:
.
Hoje,a obsessãoconsigo mesmo se manifestamenos no ardor do
gozo que no medo da doença e do envelheclmemo. na medlcali·
zação da vida. Narcisoestá menos enamorado de si rnesmo q1..1e
aterrorizado pelo cotidiano, pelo próprio corpo e por um am·
biente social que ele considera agressivo.'

Tudo o inquieta e assusta. No nível internacional, o terrorls·


mo e seus estragos, a lógica neoliberal e seus efeitos sobre o em·
pr ego; no nível local , a poluição urbana, a violência nas perife-

,s
.' \

r.ias;no nível pessoal, tudo o que fragiliza o equilíbrio corporal e


psicológico. Em resumo. a profissão de fé não é mais ·coze sem
entraves ·. e sim ·ren ha medo em qualquer idade·: e, como era
lógico, o Rémy Girard obcecado pela doença e pela morte no
fllme A$lnfilSÕ<'Sbárbaras(de Oenys Arcand) tomou quin2e anos
depois o lugar do Rémy Girard diletante de Odeclíniodo império
americano.

A perdado sentidoe a complexidade


do presente

SeNarciso está tAo Inquieto, é também porque nenhum discur-


so teórico consegue mais tranqüllizá- lo. Por mais que consuma
freneticamente o espiritual. isso não parece torná-lo mais sere-
no. A era do hlperconsumo e da hlpermodemldade assinalou o
declínio das grandes estruturas tradicionais de sentido e a recu-
peração destas pela lógica da moda e do consumo. Os dJ:scutsos
ideológicos, da mesma maneira que os objetos e a cultura de
massa , foram superados pela lógica da moda, mesmo que te-
nham sempre funcionado segundo a lógica da transcendência
e da perenidade e no culto ao sacrlflclo e à dedicação. Ora, du-
rante os dois últimos séculos, a moda não conseguiu impor:.SC
no campo social, contraposta que foi pelas Ideologiasde :preten-
são teológica. Saímos disso quando desmoronaram as ,convic-
ções escatológicas e a crença numa verdade absoluta da histó-
ria. A fé foi substituída pela paixão; a Intransigência do discurso
sistemático, pela frivolidade do sentido: o extremismo, pela des-
contração. Em resumo,

29
Embatcamc» num processo Interminável de dessacralização e
dessubstanciaçâo do sentido que deflne o reino consumado da
moda. Assim morrem c» deuses: não na desmoralização niilista
do Ocidente, nem na angústJa do vaZio dos valores. mas nossola-
V31lCO$ do sentido.••

Os sistemas de representação se tornaram objetos de consu-


mo e são tão intercambiáveis quanto um carro ou um apar ta·
mento. No fundo. assistimos ai à manifestação definitiva da se·
cularizaçào moderna. que antes não pudera desenvolver -se de
todo, pois a bloqueavam d.iscursos englobantes que. por vleses
laicos, prolongavam a submissão humana a um princípio supe-
rior. mesmo que o ideal democrático militasse em favoli'de uma
autonomia do mundo humano, totalmente permeado pelas
aspirações Individuais. O sistema final da moda sacraliza a reli·
cidade privada das pessoas e destrói em beneficio de reivindica -
ções e preocupações pessoais as solidariedades e consciências de
classe. E.de certa maneira, o maio de 6Spode ser visto como a
aplicação da lógica da moda à Revolução. Esseacont<><:imento
Ilustra bem a oposição entre um individualismo hedonista de·
clarado e os conservadorismos sociais de outra época. que da·
vam continuidade a diferenciações hierárquicas e autoritárias,
sobretudo no plano sexual.

No nivel mais profundo, tratava -se de uma revoÍta que consistia


e1nconciliaruma cult,1raic:onslgornesma, com seus novos pn,, ..
clplos básicos,unificando-a. Não uma· crise de civilização",mas
vm movimento coletivo para arrancar a sociedade das 110rmas cul·


. .'
turals rígidas do passado e dar à luz uma sociedade mais flexlvel,
mais diversa,mais individualista,conforme as exigências da moda
consumada .li

Chegamos ao momento em que a comercialização dos mo-


dos de vida não mais encontra resistências estruturais, culturais
nem ideológicas: e em que as esferas da vida social e Individual
se reorganizam em função da lógica do consumo. A primeira e
a segunda fase do consumo haviam tido como conseqüência à
criação do consumidor moderno. arrancando -o às tradições e
arruinando o ideal de poupança: a ú ltima fase estendeu ao infi·
nito o domínio do consumo. Que a lógica da moda e do consu·
mo permeou espaços cada vez mais amp los da vida publica e
privada é evidente. Parece Igualmente óbvio que os Indivíduos.
desapossados de qualquer sentido transcendente, possuem opi·
niões cada vez menos firmes e cada vez mais volúveis. Nada.
entretanto, nos autoriza a dizer que a labllldade desses lndivf·
duos seja algo condenável de per si. ~ verdade que hoje eles são
mais oscilantes e mais volúveis quanto a suas opiniões, :masserá
lssoum mal?

No reinado da moda total, o espfrtto é menos flrme, porém mais


receptivo à crítica_:menos estável, porém mais tolerante:menos se·
guro de si. porém mais aberto à diferença. à evidência, à argumen·
tação do outro. Éter uma visão supernclal da moda consumada
fdentificá ·la com um processo sem precedentes de padronização
e despersonalização: na realidade. e la estimula um questJona·
mento mais exigente. uma multlpllcação dos pontos de vista sub-

jl
JeUv0$,um declínio da semelhança deoplníõe$. Não mais a con·
formidadecrente de todos. mas a diversificaçãodas pequenas ver-
sões pessoais. Asgrandes certezas Ideológicasse esvanecem (... 1
em beneficiode singularidades subjeUvastalvez pouco originais,
pouco criaUvas,pouco ponderadas, mas mais nume= e mais
OexivcJs.11

E.no fundo, será que se era mais original quando


religiões e
tradições produziam das crenças coletivas uma homogeneida·
de sem senões?
De um lado, a ação das Luzes continua: os indivíduos saem
da mlnoridade e são cada vez mais capazes de exe rcer o livre
arbí trio, de Informar-se, de pensar por si mesmos n:um univer-
so ideológico onde as normas Imemoriais da tradJção explo-
diram e onde os sistemas terroristas do sentido não corroem
mais os espíritos. De ouíro lado, no entanto , as autorldàd~
espirituais não desapareceram: elas se exercem diferentemen·
te , preferindo a argumentação à Imposição. A opinião pública
também exerce poder. mas seu pesoé mais opcional que deter·
minánte, e ela contribui para criar o sentimento , Individual.
Contudo, ao mesmo tempo, nada mais permite distinguir en ·
tre Informação e desinformação ; as teorias mais rocambolescas
ganham plenos direitos e se transformam em besrse/ler(basta
·pensar na atribuição dos atentados de II de setembro de 1001 aos
serviços secretos arnéticAnos. SêM contar todas as teorias cons ·
plratórias que vicejam por ai), as lendas urbanas :se multipli·
cam , as seitas recrutam mais gente que nunca, as ciências do
paranormal desfrutam nova credibilidade ...

)!
.. \

Onipotênc.ia da lógicaconsum
ista?

Todos os dias, parece que o mundo do consumo se lmt:scul em


nossas vidas e modifica nossas relações com os objetos e com os
seres, sem que, apesar disso e das criticas que se formulam a res1
peito dele, consiga-se propor um contramodelo crivei- E.para
além da post ura critica, seriam raros aqueles que des:ejanam.
mesmo aboli-lo em definitivo. É forçoso constatar que seu Jm1
pério não pára de avançar: o principio do setr-service, a busca d~
emoções e prazeres . o cá.leu lo utilitarista, a superficialidade dm
vínculos parecem ter contaminado o conjunto do corpo social,
sem que nem mesmo a espiritualidade escape a isso. A religião
atualizou-se com o consumo, abandonando o ascetismo em
ravor do hedonismo e do espír ito festivo, enaltecendo os valo )
res da solidarie dade e do amor mais que os da contrição ·e do rEl-j
cólhlmento. EIsso vale Igualmente para a dimensão familiai \
para a relação com a étlca. com a política, com o slndlcalism d
ou, ainda, com a natureza. A hlpermodemldade funciona mesm5
segundo a lógica da reciclagem permanente do passado. e nad,
parece escapar a seu domi111lo.
Quer-se outro exemplo? No âm bito do acesso das mulhe .
j
ao mundo da autonomia, discute-se a persistência de cert 5
referenciais tradicionais, como se a ação da igualdade n~o tives·
se levado sua lógica até o nm. ou seja, até a Indistinçã o dos se·
xos.Masé precisoentender que, se certasnormass.ocla.ls Ol
funções tradicionais reservadas ao feminino se mantiveram, fo
porque a lógica Individualista as reciclou, com as mulheres ten
do-se apropriado delas a fim de auferir mais felicic,ladeprivad l

l
e não porque aquelas normas e funções constituíssem um res·
qulclo arcaico do qual, segundo as feministas, seria preciso ver-
se.livre ..

.Seu mulheres sempre mantem relaç~ pnvllegladi$coma or·


dem domé$tlca, sentimental ou estética. não é por simples inércia
social, mas sim porque essas relações se ordenam de tal maneira
que não mais entravam o principio de autonomia e funcionam co-
mo vetores de Identidade, dé sentido e de poder privados: é do pró-
prio Interior da cultura lndlVldualfstlco-democnltJcaque se recons·
tltuem as trajetórias diferenciais dos homens e das mulheres.li

No mundo do hlperconsumo, até a dona·de·casa pode ser


reciclada ...
Seráque a lógica consumista é totalmente 'hegemônica, ca·
p;iz de tv.<!o~rver e tuçlo reç!ç!ar segundo sua própria raclo·
nalldade? O funcionamento do mundo liberal, que gera mais
lucro, mais eflclêncla e ma.Is racionalidade , parece Justificar os
receios de Heidegger, o qual. a respeito da técnica , denunciava
umaé:leturpação de .seu sentido em favor de uma ·vontade da
vontade · , uma dinâmica do poder que se allmenta de si mes·
mo, sem outra flnalidade além de seu próprio desenvolvlmen·
to. A vontade, que de ln.fel.oera animada pelo louvável desejo
de aliviar a humanidade de seu sofrimento Imemorial, trans·
formou -se pouco a pouco em vontade de poder, tendo como
única flnalldade seu próprio dominlo sobre os homens e as col·
sas e, em última análise, produzindo este mundo fanático da
técnica e do desempenho que é o nosso. Idéia retomada em
.'
nossa época por Pierre-André Taguleff, que mo,;tra Igualmente
q_ue a lógica·da modernização Intempestiva perdeu toda finaU-
dade humana e que a técnica fez decUnarem todo,; os valores;
para TaguJeff, esses dois aspecto,; levam diretamente a u ma for-
ma de neonllllsmo.
Todavia, não é preciso ensombrecer Indevidamente o qua·
dro, pois nem tudo se resume ao consumo puro e simples e
nem tudo é reciclável. Certos valores próprio,; da modernidade
(osdireito,; humano,;, por exemplo) não estão perto de cair no
consumismo puro. Ao mundo do consumo escapam também
outros valores, como a preocupação com a verdade ou ,com o
relacional. Se é digno de nota que a obsessão da 1.magem Inva-
diu o mundo Intelectual e Impeliu determinados pensadores a
levar em conta as exigências do marketing, não é menos notá·
vel que a honestidade Intelectual e a preocupação com a verda·
de continuem a ser apanágio da maioria. No fundo, a vontade de
saber conservou, na maior parte do,; casos, a ascendência sobre
a vontade de agradar e ser reconhecido, e o ritmo lento do pen·
sarnento teórico não está próximo de adaptar-se àquele, extre-
mamente o,;cllante, da sociedade do espetáculo:

O.intelectuais continuam sendo marteladores obstinados·do stn-


tklo;como tal$. são uma espécie antiquada longe de estar prestes a
acochambrar desavergonhadamente seu trabalho para lotar suas
agendas de compromissos. Talvez o trabalho Intelectual, por seu
caráter Insuperavelmente artesanal e apaixonado !amoure.a!
,. seja o
que, aqui e alf, venha a opor a resistênciamais obstinada à (rlvoll·
dade, ao porvir-espetáculo, do mundo.li

lS
O• amor" - eis oulrO domínio que escapa à esfera do lucro,
do ganho, assim como, de modo mais geral, todos os valores
relacionais que , em grande parte, constituem a riqueza de nossa
vida privada. No mesmo momento em que a predação parece
caracterizar nosso relacionamento com o mundõ él~ obj.itos e
dos seres, tem-se aí um domlnlo que se apresenta como se fun -
cionasse de maneira totalmente desinteressada. O reino do
dinheiro não é coveiro da afetividade: ao contrário, é ele que dá
a essaúltima toda a sua legitimidade, como se sentíssemos ser
necessário recuperar alguma Inocência num mundo cada vez
mais regido pela eficiência e pela racionalidade.
Nada mais falso. portanto, do que acreditar que o consumo
reine sem restrições. Da .mesma forma. nada mais falso do que
pensar que ele, reduzindo os indivíduos ao papel de consuml-
dç,rcs, favoreça uma homogeneização social. O problema mais
Importante não é deplorar â atomi2ação da sociedade.e sim
repensar a socialização ,em contexto hipermod erno, quando
nenhum discurso ideoló.gico faz mais sentido e quando a desin-
tegração do social está no auge. Claro, uma reconstituição so-
cial éstã em andamento, mas ela parte unicamente do desejo
subjetivo dos indivíduos. Os átomos sociais não tore.em o nariz
para a idéia de reencontrar,se, comunicar-se. reagrupar -se em
movimentos associativos, sendo estes marcados pe·lo egocen -
trismo. porque a adesão é espontânea, flexível e segmentar. em
todos os aspectosconfonne a lógica da moda. Masserá que
agrupamentos narcisistas bastarão para tornar democrática
uma sociedade e promover o senso de valores quando apenas o
consumo parece essencial?

)6
' ' '\

A ética entre a responsabi


lidadee a irresponsabilidade

Será que a hlpermodernidade, caracterizada por um consumo


emocional e por indivíduos preocupados antes de tudo com a
própriasaúdee segurança,é o sinal da ascendênciada barbárie
sobre nossas sociedades? S.ào numerosos os que criticam o está ·
do atual de nossa e xistênc ia. cm que vemos apenas · as almas
impotentes, a barbárie int .erior, a derrocada do pensamento ou
a imperfeição do presente. Como se houves.se efetlvame11te
triunfado o nUlismo no qual Nietzsche via o íuturo da Europa.
E,em certos aspectos, aquela constalàção não é falsa: o hedonls·
mo individualls!à, ao minar as instâncias tradicionais de contro-
le social e expelir do campo social toda transcendência, priva de
refe renciais certo número de indivíduos e favorece um relati·
vismo desmedido que parece dar livre curso a todas a lucubra ·
ções possíveis.Como delx:arde mencionara proliferaçãode sei·
tas, que seduzem até indivíduos Instruídos, ou o retorno do
paranormal quando essemesmo tipo de renõmeno íoi desacre ·
di!àdos pela modernidade? Bayle e Fontenclle podem até se revi·
rar na cova,• mas isso não modificará em nada a lógica hiper-
moderna, que rearra nja e recicla o passado sem cessar.
Contudo o relativlsm .o é apenas uma faceta possivel da hi ·
pcrmodernldade. Éforçoso reconhecer igualment e que os dl·
rei tos humanos jamais íoram vivenclados de manelr.a tào con ·

• Pierre Bayle (164


7-11<>6)
e Bernard de Fontenelle (16s7-171
1). pensado-
res franceses que. cada um a seu modo. defendiam o racionalismo
contra a lgnor.l ncia e a supersli~o. (N.T.)

}7
sensual quanto hoje: e que os valores de tolerâocia e de respei-
to ao outro nu oca se manifestaram tão Intensamente quanto
em nossa época, ocasionando uma repulsa generalizada ao em-
prego gratuito da violência. Ademais, como não lembrar que a
hlpermodernldade se constrói em paralelo a um Imperativo
ético cada ve-~mais pronunciado? No lugar do quadro catastro-
flsta que nos servem hab it ualmen te (em que a moral abando-
nou o espaço social, substltulda que foi pelo cinismo ou pelo
egoísmo), convém salientar, em face das ameaças engendradas
pelo desenvolvimento técnico-cientifico e pelo empobrec imen -
to dos grandes proje tos políticos , a necessidade atual de regu -
lação ética e deontológica, no nível social, econõmlco•S ou
mesmo midiátlco. Está certo, a necessidade ética não é mais vi-
vida como no passado. segundo a lógica do dever sacrificial, e
de.ve ser considerada na forma de uma moral indolor, opcio-
nal, que rúoclona mais pela emoção que pela obrigação ou san-
ção e que está adaptada aos novos valores de autonomia indi-
vidualista.li Mas essa rase pós-moralista que hoje caracteri .za
nossas sociedades não acarreta o desaparecimento de todos os
valores éticos.

Multo embora o sacerdócio do dever e os tabus vitorianos te-


nham caducado, nascem novas regulações, reconstituem-se prol·
blções, reinstauram -se valores, proporcionand o a Imagem de uma
sociedade sem relação com aquela descrita pelos que desprezam a
• permissividade generall:zada •. A liturgia do dever dilacerante não
mais tem espaço social. mas os costumes não soçobraram na
anarqula: o bem~estar e os prazeres são enaltecidos, mas a socle·

JS

dade civilestá ávidade ordem e·moderação:os direitoessubjetivos
regem 00$$3 cultura. mas •nem tudo é permitido·.11

Vê-se que, evidentemente, a pós-moralidade não é sinôni-


mo de Imoralidade.Três elementos possibilitam destacar bem a
persistência dos ideais éticos em contexto Individualista. Em
primeiro lugar, o desaparecimento de uma moral Incondicio-
nal não teve como conseqüência a ~ifusão de comportamentÓS
egolstas no conjunto do corpo social. Em segundo luga r, o rela-
tivismo de valores não contribuiu para o niilismo mo.ral porque
perdura um núcleo duro de valores democráticos, núcleo em
torno do qual se afirma um consenso forte. E, por fim, a perda
dos referenciais tradicionais não resultou no caos social , dado
que a liberação individual, especialmente no plano sexual, não
produziu uma anarquia total dos costumes.
Ásslm sendo, a tomada de responsabilidade individual é ape-
nas uma faceta da hlpermodernidade, e também não se deve
esquecer que a dissolução das formas de enquadramento dos
Indivíduos pode prodwJr o efeito inverso . Com o desmorona-
mento dos grandes discursos normativos accn;a da m-0ral, assis-
te-se a fenômenos Inéditos que participam de um l ndivld':'a-
lismo Irresponsável: cinismo generalizado, recusa do esforço e
do sacr!ficlo Individuais. comportamentos compulsivos, tráfico
de drogas e toxicomania, violência gratuita, particularmente
em relação às mulheres nas periferias urbanas . O reino do
hedonismo coincide ape n as em parte com a era da tomada de
responsabilidade.

}9
Osparadoxosdo quarto poder

Embora a moral não tenha desaparecido do campo social, o


rato é que ela é imposta de fora, pelas mensagens veiculadas na
mídia, e não mais determinada de dentro . Éverdade que as
normas sociais não s.'iomais decretadas nem impostas pelo espí-
rito nacional, pela ramília ou pelas Igrejas e que os referen ciais
íomecidos pelas lnstãnclas tradicionais não mais fazem sentido
e precisaram adaptar-se à lógica do consumo . Também é fato
que noss., sociedade fascinada pelo frívolo e pelo supérfluo
entrou em seu momento Oexivel e comunlcaclonal, caracteri-
zado pelo gosto do espetacular e pela Inconstância das opiniões
e das mobilizações sociais. Nada de multo original nisso.já que
a critica habitua l do mundo mldiático (própria da esco la de
Frankíurt e dos seguidores de Guy Debord) consiste em atri-
buir-lhe uma onipotência que contribuiu para transformá -lo
em Instrumento de man ipulação e alienação tota litárias, cuja
finalidade ser ia ajustiflcaçâo da ordem estabelecida edo con-
rorm ~mo e a padronização dos Indivíduos. Mas. embora se deva
reconhecer que a mídia tem mesmo um papel norma .tlzador e
que sua lnílu êncla sobre o cotidiano está longe de ser lnslgnlfl-
Cllnte, disso não se concluir á afobadamente que seu poder de
masslílcaç,,o é ilimitado. De fato, a mídia pode ravoroecer este
ou aquele comportamento do público, mas não impô- lo. Uma
prova dísSó é qué mar telar numa mesma mensagem não pro -
duz o eíelto desejado (basta lembrar as campanhas publicltárlas
contra o fumo, que não parecem ter modiílcado sensivelmen-
te a situação).

40
.. '\

Apesar de Ludo, se!á que não podemos conceder grande


parcela de legitimidade à crítica apresentada por Debord? Será
que nào estamos totalmente permeados por mensage•ns exter·
nas que condicionam e padronizam nossos comportamentos?
Pensarassim !:éríã não perceber os efeitos posiiivos da lógka da
modp e do consumo que, pouco a pouco, nos tornaram lndi·
ferentes às mensagens publicitárias e aos objetos industriais .
Em contrapartida, esse descontentamento com o mundo do
consumo possibilitou uma cor,quisla de autonom ia pessoal,
multiplicando as oportunidades de escolha individual e as fon·
tes de Informação no refe.rente aos produtos. Longe d-e redu n·
dar no homem unidimensional caro a Marcuse , a lógica do
consumo-moda favoreceu o surgim ento de um indivíduo mais
senhor e dono da própria vida. sujeito fundamentalm .ente ins·
tável, sem vínculos profundos, d~_gçstos e personalidade oscl·
lantes. Eé porque tem esse perfilquê êle precisa de uma moral
espetacular, a única capaz de comovê-lo e fazê-lo agir. A mídia
se viu obrigada a adotar a lógica da moda, Inserir -se no regis·
tro do espetacular e do superficial e valortzar a sedução e o en·
tretenlmento em suas mensagens. Dessa maneira, ela se adap-
tou ao fato de que o desenvolvimento do raciocirúo pessoal
passacada vez menos pela discussão ent re Indivíduos privados
e cada vez mais pelo cons·umo e pelas vias sedutoras da lnfor•
mação.
Sea negatividadeda mídia pode ser reavaliadaem função
do peso relativo de seu poder normatlzador, é preciso Igual·
mente salientar sua positividade . Isso porque, na história do
Individualismo moderno, a mídia desempenhou um papel


emancipador rundamental, ao diíundir pelo conjun to do cor-
po social os valores hedonistas e libertários.

Ao sacralizar o dlrello à autonomia Individual. promover uma


• cultura reiacional,celebrar o amor ao corpo, os praze.rese a fell-
cldadeprivada,a mldla cem sido agentede dissoluçãoda forçadas
tradlções e das antigas divisões estanques de classe,das morais
rigoristase das grandes ideologiaspoliUcas.l'

Ema.is: ao posslbllltar o acesso a uma informação cada vez


mais diversificada e mais caracterizada por pontos de vista di-
íerentes , propondo uma gama extremamente variada de es·
colhas, a mldia permitiu que se desse aos Indivíduos maior
autonomia de pensamento e de ação, com a oportunidade de
constituir opinião própria sobre um número sempre maior
defenômenos.
No plano político, por exemplo, o papel da mídia tem sido
determinante. Mais que considerá -la a responsável pela dis·
torção do debate público. seria desejável avaliar ravoravelmen·
te a Influência dela sobre :a maturidade política de um eleitora-
do cada vez menos preso a um discurso ideológico ou a uma
lógica de classes e cada vez mais sensivel aos argumentos das
partes em disputa, o que só pode contribuir para o d ebate de·
mocrático. Aliás, nossas sociedades se caracteriuim não pelo
consenso. mas pelo dêbate pertnáríéríté, para o qual a mídia con-
tribui muito . Privada de sentido transcendente, de autoridade
universalmente reconhecida, ela se dedica ao antagonismo
permanente dos discursos, tudo isso sobre um pano de íundo
.'
de estabilidade democrática, com a liberdade e a Igualdade cons-
tituindo uma base de ldeaEcomum - base todavia problemática,
já que liberdade e Igualdade são princípios suscetíveis de Inter-
pretações opostas. Por conseguinte, não suportamos o rclno da
uniformidadede convicç&se de comportamentos.A homoge-
neização dos gostos e dos modos de vida não desemboca numa
vida poUtlca e social consensual: perduram os conflitos, mas por
melo de uma pacificação individualista do debate coletivo, para
a qual a mídia contribui. Um exemplo dissOé que a ele ição rela-
tivamente delicada de George W.Bush não provocou nenhum
derramamento de sangue_Não estamos mais no tempo das gran-
des tragédias coletivas sangren ~as. mas o trágico se vive doravan-
te no subjetivo, a dificuldade de viver aumenta, o futuro nunca
pareceu tão ameaçador. A hipermodemidade não é nem o reino
da felicidade absoluta, nem o reino do niilismo total. Em certo
sentido,nãoé nem o resultadodo projeto dasLuzes,nemª con-
firmação das sombriaS previsões nietzschlanas.
Essadefesa do universo da mídia tem a única função de rela-
tlvizar os fenômenos e não procu ra dissimular a negatividade
que se ope.ra no sistema midi átlco, em especial, e na hipermo-
dernldade, em geral. Éevidente que a sociedade hipe,modema,
ao exacerbar o individualismo e dar cada vez menos importân-
cia aos discursos tradicionais, caracteriza-se pela Indiferença para
com o bem públlco: pela prioridade freqüentemente conferida
ao presente e não ao fut1.uv; p,;I;,.escalada dos particularismos e
dos interesses corporativistas: pela desagregação do sentido de
dever ou de divida para com a coletividade. Ao limitarem-se à
esfera da mldla, as análises podem ser Igualmente criticas. pois as
mídias também são permeadas pela lógica dual caracterlslica do
mundo hlpermode rno. que toma tudo ambiva.lente.
Como não mencionar os efeitos negativos da mí d ia sobre a
cultura e o debate público? Supostamente destinada a infor-
mar-nos, ela mais é nos desinformaem função de Interesses
sensaclo.nallstas (as sepu lcuras coletivas de Tlmisoara )• ou po-
líticos (lembremos o papel duvidoso desempenhado pela rede
americana Fox durante a Guerra do Iraque, em ,ooi). Em vez
de elevar o nível do debate público, a mídia transforma a polí-
tica em espetáculo. Em vez de promover uma cultura de quali -
dade. ela nos proporciona variedades insípidas. mu ltiplica os
programas esporlivos e deixa para o horário mais tardio possl-
vel, quando não a suprime. a programação de caráter minima-
mente cultural. Considera-se que a mídia favoreça a liberdade
i~ividual e o gosto da Iniciativa. muito embora os consumido-
~ ~xioomatltYd~tada vezmaistompulsivasem relaçãoa ela.
Tem como função formar o discernimento e o espírito critico.
mas com muita freqüência a lógica da mercantilização faz que
a reílexão seja abandonada em favor da emoção, e a teoria. em
favor do uso prático. O mesmo va.le para os livros de filosofia.
que só podem esperar ter sucesso se respondem a preocupações
pessoais e propõem receitas para alcançar a felicidade:

• Emdezembro de 19$9. quando da revolta que derrubaria o governo


do.Ceauses<:u.a mldJaanunciou que as mortes causadas pela repres-
são naquele mês Já haviam chegado a 70 mll em toda a Romênia. das
qualS" mil só na cidadede Tlmisoara.Na realidade.os números eram
cem vezes menores. (N.T.)
.'
.
O que vence é não a J>all<àO
pelo pensamento.mas a exigênciade
saberes e de Informações:Imediatamente operacionais.19

A mídia. assím. é tomada pela lógica hipermoderna e pode


favorecer tanto os comportamentos responsáveis quanto os
irresppnsávels.

O futuro da hípermodernidade depende de sua capacidade de


fazer a ética da responsabilidade triunfar sobre os comporta·
mentos Irresponsáveis. Estes não vão desaparecer sozinhos. pois
se Inscrevem necessariamente na lógica da hlpermodernidade.
De fato. são os próprios mecanismos do Individualismo demo·
crátlc o que explicam tanto a responsabilidade de uns quanto a
irresponsabilidade de outros, daqueles que preferem corromper
a autonomia que herd aram, transformando -a em egolsmo pu·
ro. Essesúltimos. preocupados apenas com o próprio conforto
e felicidade, retiram-se do social para o privado, aliás com a
consciência absolutamen~e limpa.Já que as Instâncias trad.icio·
nals de socialização, desacreditadas pelo avanço do ind.ivldualls·
mo, não desempenham mais o papel normativo.
Não exageremos, porém, a força desse fenômeno: os co':'·
portamentos responsáveis cont inuam atuais. Etstalvez o fato
mais espantoso: emocional e individualista, a sociedade de con·
sumo de massa permit e que um espírito de responsab ilidade,
dotado de geometria variálve.1, coabite com um espírito de lrres·
ponsabilidade Incapaz de resistir tanto às solicitações exteriores
quanto aos Impulsos interior es. O fato é que a lógica binária de
nossas sociedades segulrá ampliando-se e que a responsabili-
dade de cada um ganhará cada vez mais Importância. Nenhu-
ma outra sociedade Jamais possibilitou que se exercessem uma
autonomia e uma liberdade individual tão grandes, nemjamals
o destino dessa sociedade esteve tão ligado aos comportamen-
tos daqueles que a compõem.
O atrativo da visão binâria presente na obra de Llpovetsky
está em que ela propõe, fora dos esquemas marxistas e liberais.
outra leitura do presente. na qual o futuro de nossas democra-
cias está em aberto e a responsabilidade Individual e coletiva é
plena e total . Contra os liberais, que acham que só o liberalismo
pode ~esolver as dificuldades que ele mesmo cria, Lipovetsky
lembra que o papel do mercado tem limites e que a mão lnvlsl-
vel providencialista que supostamente o regula de dentro pre-
cisa de luvas bem visíveis para precaver-se de seus próprios ex-
cessos. Contra os marxistas, que denunciam no capitalismo
uma lógica contraditória e militam em favór de u.mà sóeiédãdé
sem classes cujo advento é inevitável, Llpovetsky mostra como
a contradição se reinseriu no próprio cerne dós Indivíduos;
quanto as lutas simbólicas perderam Intensidade ; e por que o
futuro é Jmprevlslvel,Já que deve ser construído coletivamen·
te no presente . Ao levar em conta a complexidade do presente
e recusar as leituras Idealistas ou catastrofistas que disso se fa-
zem, Lipovetsky propõe wma interpretação de nossa hipermo·
demidade que se pretende simultaneamente racionalista e prag·
mátlca, e segundoa qual a tomadade responsabilidade é a pedra
angular do futuro de nossas democracias. Sem verdadeira to-
mada de responsabilidade, não bastarão as virtuosas declarações
de Intenção desprovidas de efeitos concretos. Será necessário
''
valorizar a intellgêncla dos homens, mobilizar as lnstitu ições e
preparar nossos filhos para os problemas do presente e do futu·
ro. A tomada de responsabilidade deve.ser coletiva e exercer-se
em todos os domínios do poder e do saber. Mas também deve
ser Individual, poisem último recursocabea nós assumir essa
a utonomia que a modernidade nos legou.

'
'
•'
NOTAS
1 Sobre a relação com Foucault. ver a entrevista que nos
concedeu Cllles L1povetsl<y , e que foi publicada em laphllasophl•
t11tmiema,-..:Com
(ra,,ça/setn questlons: t..Sponvllle,Condie,Ferry.
l.tpo,-euty.Onfray,ROSStt,
Pari$, Le Livre de Poche, lOOJ .
! Ltpovetsky, L'empin,dt / 0lplrémttr:
la medeti soode,tindllJI$lessoclérés
modemes,Parts, Callimard. 1981, p. 6;·8 (0 lmp&Sodoefemero , trad .
Marta Lúcia Machado: São Paulo, Companhia das Letras. 1!)89
(,. ed.)J.
l L1povetsky, lbld., p. JS.

I Llpovetsky, L'ueduvide,Paris, Callimard, 198), p.11 [A tra do vazio.


trad. Miguel Serras Pereira & Ana Lursa Faria; Lisboa, Relógio
d'Água, 1990[. .
s Lipovetsky, lbld., p. 16.
' Sobre tudo Isso, cr. Üpovetsky. ºLasoclété
d hyperconsommatlon·,. LeDébar,12<, ,001. p. N ss.
0

1 Lpov etsky , "Luxe étern"I, luxe émotlonnel", em Clllcs


llpovetsky & Elyette Roux, Leluxeétemel:dt / 'ãged<Jsacrê.autemps
des"""'IUts,Paris, Calllmard (colléctlon Le Oébat), ,ooi. p. 6o-1.

47
I ltpovets ky, L'oredu
vi<k.p. 116-7,
9 Cr. Lipovetsky, ··Narctsse au plcge de la post.modernlté?". em
dt laculwrelib.'ra/e:
Meramorp/lost$ , flltt!las.
érbique "111reptise,
Montréal. Liber, 2002, p. 2s [Metamorfosesdac11/wral.lb<tal,trad.
Juremir Machado da Silva; Porto AJ~re, Sullna, ,oo,J .
10L1povetsky, Lempire
de l'tpbémére,
p . ,s6.
li lbid.• p. 191.Sobre a leitura que Llpovetsky fez do maio de 1968,
ver ·c hanger la vle, ou l'irruption de l'lndlvldualLs:me
transpolltlque ·, Pou,-oirs,39, 1984.

12lbid., p. )09.

13L1povets ky. l.arrolsiéme(emme:permanence


ti révolullon
du· fimlnin,
Paris, Gatlimard . 1997 , p. 1) [A retttita mulbet,trad . Maria Lúcia
Machado; São Paulo. Companhia das Letras, 1000!.
li Lipovetsky, 'Monume n t interdit· , L, Dooar,
,. 1980, p. -0.

, ISSobre a leitura que llpovetsky propõe (laética comerc ial, ver


5'!U · L'ãme de l'entreprlsê:myt h e ou réalité?".em
Métamorplloses de la cu/turelibêra/e,p. s,-SJ .
15 Lipovetsky, "Mort de la morale ou ~urrectlon des valeurs?",
ibid., p. si-5 1.

ti Llpovetsky, I.. Ctl!pusro , Paris, Galllmard, 1.9"92.p. s1 [O
ledudévolr
mptiscu/ododetl'T.irad. F~tlma Gaspar; Lisboa. Dom Qu ixote. 199,J.
II Lipovetsky. "Faut-i l b rOler les médla.s?",em Mé!am
orphoses
de la
cu/tun,/íbéralt,op . clt .• p. 9J.
1' lbid., p. 98.
A partir do Onal dos anos 70 , a noção de pós-mode rnidad e
fez sua entrada no palco intelectual com o Om de quaUll·
cato novo estado cultural das sociedades desenvolvidas. Tendo
surg ido Inicialmente no discurso arquitetônico (em reação ao '
estilo Internacional), ela bent depressa foi mobilizada pará de-
signar or a o abalo dos allcerces absolutos da racionalidade e o
fracasso das grandes Ideologias da história, ora a poderosa dlnã·
mica de Individualização e de pluraliZaçào de nossas sociedades.
Para além das diversas Interpretações propostas, impôs -se a idéia
de que estávamos diante de uma sociedade mais diversa, mais
facultativa , menos carregada de expectativas em relaçã o ao fu·
turo. Àsvisões entusiásticas do progresso histórico sucediam -se
horizontes mais cur tos, uma temporalidade dominada pelo
precário e pelo efêmero. Confundindo-se com a derrocada das
construções voluntaristas do futuro e o concomitante trtunfo
das normasconsumistascentradasna vidaprC$ênte
. ·O período
pós-moderno indicava o advento de uma temporalidade social
Inédita, marcada pela primazia do aqui-agora.

SI
O neologismo pós·modernotinha um mérito: salientar uma
m4dança de direção. uma reorganização em profundidade do
modo de funcionament o social e cultural das socled.adesdemo·
crállcas avançadas. Rápida expansão do consumo e da comu·
nicação de massa: enfraquecimento das normas autoritárias e
disciplinares: surto de Individualização; consagração do hedo·
nismo e do psicologismo: perda da fé no futuro revolucionário:
descontentamento com as paixões políticas e as milit ânc ias -
era mesmo preciso dar u.m nome à enorme transfo~mação que
se desenrolava no palco das sociedades abastadas, H,•resdo peso
das grandes utopias futuristas da primeira modernidade .
Ao mesmo tempo, porém , a expressão pós·modemoera ambí-
gua. desajeitada, para não dizer vaga. Issoporque era evidente-
ment e uma modernidade de novo gênero a que tomava corpo.
e não uma simples superação daqu ela anterior. Donde as retl·
cências legítimas que se manifestaram a respeito do prefücopôs.
Eacrescente-se Isto: há vinte anos, o conceito de pós·medemadava
oxigênio, sugeria o novo. uma biíurcaç.ão maior; hoje, entre-
.
tanto, está um tanto desusado. Ociclo pós-moderno se deu sob
.
o signo da descompress.ão coo/do social; agora. porém, ternos a
sensação de que os tem pos voltam a endurecer-se, cobertos que
estão de nuvens escuras. Tendo·se vivido um breve momento
de redução das pressões e Imposições sociais, eis que elas reapa·
recernem primeiro plano, nem que seja com novos traços. No
momento em que triunfam a tecnologia genética. a globaliza ·
ção liberal e os direitos humanos, o rótulo pós·modemojáganhou
ru gas, tendo esgotado sua capacidadede exprimir o mundo que
se anuncia .
Oimde im·modemoal!)dadirigia o olhar para um passado que
se decretara morto; fazia pensar numa extinção sem determl·
nar o que nos tornávamos. como se se tratasse de preservar
uma liberdade nova. con quistada no rastro da dissolução dos
enquadramentossociais,políticose ideológicos.1 Dondeseu
sucesso. Essa
época terminou. Hlpe.rcapitalismo, hiperclasse. hi·
perpotência, hiperterrorismo, hiperindividuallsmo. hipermer·
O que mais não expôé
cado. hipert exto - o que mais não é lúper?
uma mod ernidade elevada à potência superlativa? Ao clima cfe
epilogo segue-se uma sensação de fuga para adiante . de moder·
nização desenfreada . feita de mercan tilizaçào prollferatlva. de
d esregulamentação econômica, de ímpeto técn ico-científico.
cujos efeitos são tão carregados de perigos quanto d e promes ·
sas. Tudo foi multo rápido: a coruja de Minerva anunciava o
nascimento do pós·moderno no momento mesmo em que se
esboçavaa hipermodemizaçâodo mundo.
longe de decretar-se o óbito da modernidade. assiste-sea seu
remate. concretizando -se no liberalismo globalizado, na mer·
cantilizaçào quase generalizada dos modos de vida, na explora·
ção da razão Instrumental até a · morte· desta, nu ma lndlvl·
duallzaçào galopante. Até então, a modernidade funcionava
enquadrada ou entravada por todo um conjunto .de contrape ·
sos, contramod elos e contravalores. O espírito de tradição per-
durava em diversos grupos sociais: a divisão dos papéis sexuais
permanecia estruturalm .ente desigual; a Igreja conservava forte
ascendência sobre as consciências; os partidos revolucionários
prometiam outra sociedade. liberta do capitalismo e da luta de
classes; o ideal de Nação legitimava o sacrifíçio supremo dos

j}
Indivíduos; o Estado admJnlstrava numerosas atividades da vida
econômica . Não estamos mais naquele mundo .
A sociedade que se apresenta é aquela na qual as forças de
oposição à modernidade democrática, liberal e lndlvlduallsta
não são mals estruturant ,es: na qual periclitaram os grandes ob-
jetivos altemativos; na qual a modernJzação não mais encontra
resistências organlZaclonals e ideológicas de fundo. Nem todos
os elementos pré-modernos se volatlzaram, mas mesmo eles
funcionam segundo uma lógica moderna, deslnstltuclonallza·
da, sem regulação. Até as classes e as culturas de classes se tol·
dam em benefício do principio da Individualidade autónoma.
OEstado recua, a religião e a família se privatizam. a sociedade
de mercado se Impõe: para disputa, resta apenas o culto à con-
corrência econômica e democrática, a ambição técnica, os direi·
tos do Individuo. Eleva-se uma segunda modernidade, desre-
gulamentadora e globalizada, sem contrários. absolutamente
moderna. alicerçando-se essencialmente em três axiomas cons-
titutivos da própria modernidad e anterior: o mercado, a efi-
ciêncja técnica, o Individuo . Tínhamos uma modernidade liml·
tada; agora, é chegado o tempo da modernidade consumada.
Nesse contexto , as esferas mais diversas são o locusde uma es-
calada aos extremos, entregues a uma dinâmica ilimitada, a
uma espiral hlperbóllca.2 Assim, testemunha -se um enorme
Inchaço das atividades nas finanças e nas Bolsas: urna aceleração
do ritmo das operações económicas. doravante fu.nclonando
em tempo real; uma explosão fenomenal dos volumes de capi-
tal em circulação no planeta. Jáfaz tempo que a sociedade de
consumo se exibe sob o signo do excesso, da profusão de mer-
.. \

cadorias: pois agora isso se exacerbou com os hiperm e rcados e


shopping centers, cada vez mais gigantescos, que oferecem uma
pletora de produtos, marcas e serviços. Cada dominio apresen·
Lauma vertente excrescente, desmesurada , "sem limites·. Prova
disso é a tecnologia e suas transformações ve.rtiginosas nos
referenciais sobre a mort e, a alimentação ou a procriação. Mos·
tram ·no também as imagens do corpo no hiper·r ealismo por·
nõ: a televisão e seus espetáculos que encenam a transpar ência·
total: a galáxia Internet e seu diluvio de fluxos num éricos (mi'
lhôes de sites, bilhões de páginas, trilhões de cara cteres. que do-
bram a cada ano}: o lurism .o e suas mu ltidões em férias; as agia·
merações urbanas e suas m,egalópolessuperpovoadas, asflldadas,
tentaculares . Para lutar contra 'o terrorismo e a criminalidade.
nas ruas , nos shopping ceinters, nos transportes coletivos. nas
empresas.já se instalam ml lhôes de câmeras, meios ele trônicos
de vfgllãncla e ldentlflcaçào dos cidadãos: substituindo-~ à ãn·
Ligasociedade disciplinar-totalitária, a sociedad e da hlp e1'Vlgl·
lâncla está a postos. A escalada paroxíslica do • sempre mais· se
imiscui cm todas as esferas do coajunto coletivo .
Até os comportamentos Individuais sAo pegos na e ngrena ·
gem do extremo, do que são prova o frenes! consumista, o do·
ping. os esportes radicais , os assassinos em série. as bulimias e
anorexias, a ooosldade, as com pulsões e vtclos. Delineiam -se du ·
as tendências contraditórias. De um lado, os indivíduos, mais do
que nunca, cuidamdo corpo, são fanátlcospor higienee saúde,
obedecem às determinações médicas e sanitárias. De outro lado,
proliferam as patologias individuais, o consumo anõmlco, a
anarquia comportamenta l . O hipercapltalismo se faz acompa-

. jj
nhar de um hiperindividualismo distanciado , reg u lador de si
mesmo , mas ora prudente e calculista , ora desregrado. desequi-
librado e caótico. No universo funcional da técnica. acumulam-
se os comportamentos disfunclonais. O hipe rlndividuallsmo
coincide não apenas com a internalizaçllo do mod .elo do homo
oeamomlcus que persegue a maximização de seus ganhos na maio-
ria das esferas da vida (escola, sexualidade, procriação, religião,
política, sindicalismo), mas também com a desestruturação de
antigas formas de regulação social dos comportamentos.junto
a uma maré montante de patologias, distúrbios e excessos com-
portamentais. Por melo de suas operações de normatização téc-
nica e desligação soc ial. a era hipermoderna pro du z num só
movimento a ordem e a desordem , a independência e a depen-
dência subjetiva, a moderação e a Imoderação.
· A primeira modernidade era extrema por causa do Ideológi-
co-político: a que chega o é aquém do politléó, péla Viã da tec-
nologia, da mldla, da economia, do urbanismo, do consumo ,
das patologias Individuais . Um pouco por toda a parte, os pro-
cesso.s hiperbólicos e su.bpolítlcos compõem a nova psicologia
das democracias liberais. Nem tudo funciona na m edi da do ex-
cesso, mas, de uma maneira de ou outra. nada é poupado pelas
lógicas do extremo.
Tudo se passa como se tivéssemos ido da era do p6spara a era
do hiper.Nasce uma nova sociedade moderna . Trata-se não mais
do sair do mundo da tradição para acederà racionalidademo•
derna, e sim de moder n izar a própria modernidade ,3racionali-
zar a racionalização - ou seja, na realidade destrul:r os • arcaís -
mos· e as rotinas burocráticas, pôr fim à rigidez institucional e


aos entraves protec:ionls,tas, relocar, privatizar, estimular a con·
corrência. O voluntarismo do "futuro radiante" foi sucedido
pelo ativismo gerencial, l!ma exaltação da mudança, da refor·
ma, da adaptação, desprovida tanto de um horizonte de espe-
ranças quanto de uma visão grandiosa da história. Por toda a
parte, a ênfase é na obrigação do movimento, a hipermudança
sem o peso de qualquer visão utópica. ditada pelo imperativo da
eficiência e pela necessidade da sobrevivência. Na hipe ;rmoder :
nidade. não há escolha, não há alternativa, senão evo luir, acé-
lcrar para não ser ultrapassado pela· evolução": o cu lto da mo·
dernizaçào té<:nicaprevaleceu sobre a glorificação dos fins e dos
ideais. Quamo menos o futuro .é previsível. mais ele precisa ser
mutável, Oexivel. reativo. permanentemente pronto a mudar,
supermoderno, mais moderno que os modernos dos tempos
heróicos. A mitologia da ru ptura radical foi substituída pe la
cultura do mais rápido e do sempre mais: mais rentabilidadé,
mais desempenho, mais flexibilidade. mais inovação.1 Resta sa·
ber se. na realidade, isso nào signiflca modernização cega, niilis·
mo técnico ·m ercantll, processo que transforma a vida em algo
sem propósito e sem sentido .
A modernidade do segundo tipos é aquela que, reconciliad?
com seus princípios de base (ademocrac ia, os direitos huma·
nos, o mercado), não mais tem contra modelo crivei e não pára
de reciclar em sua o rdem os elementos pré -modernos que ou ·
trora eram algo a erradicar. A modernidade da qual ,estamos
saindo era negadora; a supermodernidade é integradora. Não
mais a destruição do passado. e sim sua reintegração , sua refor-
mulação no quadro das lógicas modernas do mercado. do con ·

)7
sumo e da Individualidade . Quando até o não-moderno revela
a primazia do eu e funcfóna segundo um processo pós ·tradiclo·
nal, quando a cultura do passado não é mais obstáculo à mo·
dernlzação lndlvJdualis:ta e mercantil, surge uma rase nova da
modernidade. Dopós ao hiper: a pós-modernidade não terá
sido máls que um estágio de transição, um momento de curta
duração. Eeste já não é mais o nosso.
Tantas convulsões nos convidam a examinar um pouco mais
de perto o regime do tempo social que governa nossa época.
O passado ressurge. AsInquietações com o rutura s1Jbslituem a
mist.tca do progresso. Sob efeito do desenvolvimento dos mer·
cados financeiros, das técnicas eletrônicas de informação, dos
costumes Individualistas e do tempo livre, o presente assume
Importância crescente. Por toda a parte, as operações _e os lnter-
iãmbio~ se aceleram; o tempo é escasso e se torna um proble·
ma, o qual se lmpóe no centro dé novos conflitos sociais. Horá·
rio ílexivel, tempo livre; tempo dos jovens, tempo da terceira e
da quarta Idade: a hlpermodernldade mulllpllcou astempora·
!idades divergentes. Às desregulamentações do neocapltalismo
corresponde uma Imensa desregu .laçáo e individualização do
tempo. Oculto ao -presente se manifesta com força aumentada,
mas quais são seus contornos exatos e·que vinculas ele mantém
com os outros eixos temporais? De que maneira se articula nesse
contexto a relação·com o futuro e com o passado?Convém rea·
brir ã questão do tempo social, pois este merece mais do que
nunca uma Inquirição . Superar a temática pós·modema, re-
conceltualiuir a organização temporal que se apresenta - eis o
propósito deste texto.

,s
• ' 1\

As duaserasdo presente

Jean-François Lyotard foi um dos primeiros a notar o vínculo



entre a condição pós-moderna e a temporalidade presentlsta.
Perda de credibilidade dos sistemasprogressistas: prima:tiadas
normas da eficiência; mercantilização do sa.ber: mulUpUcação
dos contratos temporários no cotidiano• - o que significa tudo
Isso senão que o centro de gravidade temporal de nossas socle-'
dades se deslocou do futuro para o presente? A época dita pós-
moderna, definida pelo esgotamento das doutrinas er:nanclpa-
tórlas e pela ascensão .de um tipo de legitimação centrada na
eflciê.ncia, faz-se ·acompanhar _do predomínio do aqui-agora.
Perguntemos: quais as forças sociolstórlcas que provocaram
a agonia das visões triunfalistas acerca do futuro? Sejamos cla-
ros: os Insucessos ou as catástrofes da modernidade polltico-
econômlca (asduasguerrasmundiais, os totalitarismos ; o Gulag.
o Holocausto, as cnses do capitalismo, .o abismo entre Prime iro
e Terceiro Mundo) Jamais teriam, por si sós, causado a ruína das
• metanarratlvas • se novos referenciais não houvessem alcan-
çado êxito maciço em remodelar as mentaUdades, em oferecer
novas perspectivas para as:existências. As desilusões, as decep_-
ções políticas, não explicam tudo: houve simultaneamente no-
yas paixões, novos sonhos, :novas seduções que se manifestaram
dia após dla, sem grandlloqüêncla, é verdade, mas onipresentes
e afetandoo maiornúmero de~- Elso fenômenoque nos
modificou: é com a revolução do cotidiano, com as profundas
convulsões nas aspirações e nos modos de vida estimuladas pelo
último meio século, que surge a consagração do presente.

59
No cerne do novo arranjo do regime do tempo social, te·
mos: (,) a passagem do capitalismo de produção para uma eco·
nomia de consumo e de comunicação de massa: e (1)a subs·
tltulção de uma sociedade rigorfstlco·disciplinar por uma
• sociedade-moda" completamente reestruturadã pélãS técnicas
do efêmero, da renovação e da sedução permanentes. Dos
objetos Indust riais ao ócio, dos esportes aos passatempOs, da
publicidade à informação, da higiene à educação, da beleza à
alimentação , em toda a parte se exibem tanto a obsolescência
acelerada dos modelos e produtos ofertados quanto os meca·
nismos multiformes da sedução (novidade, hiper...:olha. self·
service, mais bem-estar, humor, entretenimento, desvelo,
erotismo, viagens, lazere s). O univ erso do consumo e da co·
municação de massa aparece como um sonho jubiloso. Um
mundo de sedução e de movimento incessant e cujo modelo
não é o,;t,o Sêí'lãoo sistemada moda.Tem-senão maisa repe-
tição dos modelos do passado (como nas sociedades tradiclo·
nais). e sim o exato oposto, a novfdade e a tentação s istemáticas
co010 regra e como organiwçào do presente. Ao permear seto·
res cada vez mais amplos da vida coletiva, a forma-moda gene-
ralizada instftulu o eixo do presente como temporalidade so·
cialmentc prevalecente-7
Enquanto o pnncrpi ·o·moda "Tudo o que é novo apraz. se
impõe como rei, a neofilla se afirma como paixão cotidiana e
geral. lnstalaram·se sociedadesreestruturadas pelaLógicae pela
própria temporalidade da moda; em outras palavras, um pr e·
sente que substitui a ação coletiva pelas felicidades privadas, a
tradição pelo movimento, as esperanças do futuro pelo êxtase

60
' '\
do presente sempre novo . Nasce toda uma cu ltura hedonista e
psicologista que incita à .satisfação imediata das necessidades,
estimula a urgência dos prazeres, enaltece o florescimento pes-
soal, coloca no pedestal Õ paraíso do bem-estar, do confo rto e
do lazer.Consumirsemesperar;viajar;divertir-se;não renun-
ciar a nada: as políticas do futuro radiante foram sucedidas pelo
consumo como promessa de um futuro eufórico.
A primazia do presente se Instalou menos pela ausência (de
sentido, de valor, de projeto histórico) que pelo exc= (de bens,
de Imagens. de solicitações hedonistas). Foi o poder dos dispo-
sitivos subpolíticos do consumismo e da moda gene:ralizada o
que provocou a derrota do herolsmo ldeológico-polítíco da mo -
dernidade . O coroamento do' presente se iniciou muito antes
que se houvessem enfraquecido as razões para ter esperança
num futuro melhor; esse coroamento precedeu em várias.dé-
cadasa quedado Murode Berlim,o universoaceleradodo ci-
berespaço e o liberalismo globalizado.
A consagração social do presente consumista se fez acompa-
nhar de uma pletora de acusações lançadas contra a atomiza-
ção social e a despolitização: contra a fabricação de falsas neces-
sidades; contra o conformismo e a passividade consumistas:
contra a adoção de engenhocas em todas as esferas da vida,
num processo sem propósito e sem sentido . Ademais, desde os
anos 70, a temática dos "estragos do progresso· tem repercussão
significativa.Todas essas criticas, porém, não Impediram de mo-
do algum o lmpeto daqu;to que poderíamos muito bem deno-
minar um otimismo pessoal. No momento em que ressoavam
as derradeiras encantações revolucionárias carregad as de espe-

61
ranças futuristas, emergi.a a absolutlzação do presente Imedia·
to, glorilicando a autenticidade subjetiva e a espontaneidade dos
desejos. a cultura do· tudo já·, que sacraliza o gozo sem proibi·
ções, sem preocupações com o amanhã. Enquanto o maio de 6-~
surgiucomo uma revoltasemobjetivofuturo,antiautoritáriae
libertária, os anos da liberação dos costumes substituíram o en ·
gajamento pela festa. a história heróica pelas • máquinas dese·
Jantes•, tudo se passando como se o presente houvesse conse·
guido canali2ar todas as paixões e sonhos. O desempr ego ainda
era suportável, as Inquietações com o futuro tinham então
menos pesoque os desejos de liberar e hedonizar o presente. Os
·trinta anos gloriosos.* o Estado do bem·estar social. a mico lo·
gla do consumo, a contracultura , a emancipação dos costumes ,
a revolução sexual, todos esses fenômenos conseguiram remo·
ver o sentido do trágico histórico ao instaurarem uma cons·
ciênciamàlsotimiStaque pessimiSta,
um Zeirgeisl
dominadopela
despreocupação com o futuro, compondo um carpediemsimu i·
taneamente contestador •e consumista.
M~ isso Já é página virada. A partir dos anos Soe (sobretudo)
90, lnstalou ·se um presentismo de segunda geração, subjacente
à globalização neoliberal e à revolução Informática. Essas duas
séries de fenômenos se conjugam para • comprimir o espaço·
tempo·, elevando a voltagem da lógica da brevidade. Deum la·
do, a mídla eletrônlca e informática possibilita a Informação e

• Os anos de 19.0 a 1913,ou /es Tren1eG/oriMl$,


assimchamadosporque,
na Françae nos outros paises desenvolvidos, correspon<t,eram a um
período de expansão inédita da renda e da qualidadede vida. (N.T.)
.'
os intercâmbios em "tempo real". criando uma sensação de.si·
multaneldade e de lmediatez que desvaloriza semp re mais as
formas de espera e de le11tMão.De outro lado , a ascendência
crescente do mercado e do capitalismo financeiro pôsem xeque
as visões estataisde longo prazo em favordo desempenhoa
curto prazo, da circulação acelerada dos capitais em escala glo-
bal, das transações económicas em ciclos cada vez mais rápi·
dos.&Por toda a parte, as palavras-chaves das organizações são
flexibilidade, rentabllidade,just in Ume,• concorrência temporal" '.
atraso-zero - tantas orientações que são testemunho de uma
modernização exacerbada que contrai o tempo numa lógica
urgentlsta. Sea sociedade neoliberal e Informatizada não criou
a mania do presente, não há d'úvlda de que ela contribuiu para
a culminância disso ao interferir nas escalas de tempo . lntcnsi·
ficando nossa vontade de llbertar-nos das limitações do cspaço-
tempo.
Mais:tal reorganização da vida cconõmlca não deixou de ter
conseqüências dramáticas para categorias inteiras da popula-
ção, com o "turbocapitallsmo" e a prioridade dada à rentablll·
dade imediata acarretando as reduções maciças de quadros fun·
cionals. o emprego precário, a ameaça maior de desemprego.
O Zetrgeislpredominantem"Cnte frívolo foi substituído pelo tem -
po do risco eda incerteza . Viveu-se certa despreocupação com
o futuro - mas agora é na Insegurança que, cada vez mais, vive·
seo presente.
Oambiente da civilização do efêmero fez mudar o tomemo-
cional. A sensaç.'lo de Insegurança invadiu os espíritos: a saúde
se Impõe comÓ obsessão das massas: o terrorismo, as catástro-

6J
fes, as epidemias são regularmente noticia de primeira página.
Aslutas sociais e os discursos críticos não mais oferecem a pers·
pectiva de construir utopias e supera r a dominação. Só se fala
de proteçào, .segurança. defesa das • conquistas socia is". urgên·
eia humanitária, preserv~çªo d<>plaQeta, Em resumo, de ·11-
mitar os estragos·. O clima do primeiro presentismo liberacio-
nista e otimista, marcado pela frivolidade, desapareceu em
favor de uma exigência generalizada de proteção.
O momento denominado pós-moderno coincidi u com o
movimento de emancipação dos Indivíduos em íace dos papéis
sociais e da., auloridades institucionais tradicionais, em face das
limitações Impostas pela llliação a este ou aquele grupo e em
face dos objetivos distantes: aqu ele momento é indissociável
cio estabelecimento de nom1as sociais mais flexíveis, mais diver·
sas, e da ampliação da gama de opções pessoais. O;s:;o resu llou
ym $<!!1tlmeQto de" descontração", de auto nomia ede abertu·
ra para as existências individuais. Sinónimo de clesencantamen·
to com os grandes projetos coletivos. o parêntese pôs -moderno
Oco!-'todavia envolto numa nova forma de sedução, ligada à
individualização das condições de.vida. ao culto cio eu e das fell·
cidades privadas. ]á nã-0 estamos mais nessa fase: els agora o
tempo do desencanto com a própria pós-modernidade. da des·
mlt!ílcação da vida no presente, confrontada que está com a
escalada das Inseguranças. O alivio é substituído pelo fardo. o
hedonismo recua ante os temores . as sujeições do presente se
mostram mais fortes que a abertura de possibilidades acarreta·
da pela individuali7.açàoda sociedade. De um lado. asociedade-
moda não pára de Instigar aos gozos já reduzidos d·O consumo.
. ' \.

.
do lazer e do bem·estar . De outro, a vida fica menos frívola .
mais estressante. mais apreensiva. A tomada das existências pela
Insegurança suplanta a despreocupação • pós-moderna .·. ~ com
os traços de um composto paradoxal de frivolidade e ansiedade,
de euforiae vulnerabilidade.que se desenhaa modernidadedo
segundo tipo. Nessecontexto, o rótulo pós-moderno,
que antes
anu nciava um nascimento, tomou-se um vestígio do passado,
um ·1ugar da memória·.
:

Osnovoshábitosdo futuro
Será qu e o eixo do presente tem excessivo poder na economia
temporal de uma época? Disso há pouca dúvida, na era do capl·
tallsmo financeiro e da precariedade salarial, da democracia
de opinião, da Internet e do "Tudo é descartável".Mascomo
encarar o fato? Será que, conforme sugerem alguns. o sistema
tempora l prevalecente equivale a um • presente absoluto". fe·
chado . encerrado em si mesmo. separado do passado e do fu· ·
turo? Será que o individuo contemporâneo vive realmente
num estado de ·1mponderabiUdadetemporal". confinado num,,
lmedlatez esvaziadade qualquer projeto e herança? Será que ele
se conf u nde com o ·hom em presente· ,9 transformado em es·
trangelro no tempo, mergulhado apenas no tempo da urgên·
eia e da Instantaneidade?Será que a aceleraçãogenerall1.ada.o
frenesi do cons um o. o ret raimento das tradições e utopias te·
riam conseguido criar a civilização do • presente pel'pétuo",
sem passado e sem futuro, do qual falava George Orwell'/10Essas

6s
Idéias expressam uma verdade apenas parcial. Os fluxos econô·
micos de curto prazo, o Insucesso das certe-~asprogressistas, a
de.rrocada do poder regulado r das tradições - todos esses fenõ·
menos presentlstas são Indiscutíveis. Parece-me, porém, que
elesnAonos autorizanf a diagnosticara irrupçãode uma cu Itu·
ra do • presente eterno • ou • auto·suOciente •. Tal conceituall ·
zação dei)<apassar excessivamente em branco as tensões para·
doxais que animam o regime do tempo na hipermodernldade.
Na verdade, não ficamo,; órfãos nem do passado nem do futu·
ro, pois as relações com essas coorde11adasadquirem nova rele-
vância à medida que o presente amplia seu domínio. Nada de
grau :rero da tempor.11idade. de um presente ·auto -referente·
feito de lndiferença radical tanto ao antes quanto ao depois: o
presentlsmo de segundo tipo que nos rege não é mais pós·mo-
qerno nem autárcico; ·ele não pára de abrir-se a outras coisas
alémde si mesmo.

Confiançae futuro
'

Ninguém duvida de que a época marcada pelos temores da


tec11ociênclae pela decomposição das utopias políticas é aque-
la da· crise do futuro·. Nada mais de fé num futuro necessa-
riament e melhor que o presente; nada mais de espera pelo
combate final e pela Ci.dadeRadiosa:a absolutlwção do porvir
histórico foi sucedida pela inquietação. pela pane das reprcsen ·
tações do futuro , pelo eclipse da Idéia de progresso. Mas. apesar
disso. a página do progresso está multo longe de ter sido virada

66
' ' \

de vez. Se a mitologia do progresso contínuo e necessário está


caduca, nem por isso se parou de esperar e acreditar nos· mlla·
gres da ciência" - a idéia de aprimoramento da condição huma ·
na pelas aplicações do saber científico continua a rau!'r sentido.
Simplesmente.tornou-seincertae amblvalentea relaçãocom
o progresso, esse último estando associado tanto à promessa de
um mundo melhor quanto à ameaça de catástrofes em cadeia.
Assistimos não ao Om de toda crença no progresso., mas ao sur :
gimento de uma idéia pós-religiosa do progresso, ou seja, de
um porvir Indeterminado e problemático - um futuro hiper-
moderno .
As sociedades modernas se constituíram mediante uma
imensa "Inversão do tempo· q~e Instituiu a supremacia do fu-
turo sobre o passado.li Masessa temporalidade dominante nem
por isso deixou de prolongar em forma laicizada crenças e es-
quemas mentais herdados do espifito religioso (avanço Inevi-
tável rumo à íelicldade e a paz, utopia do homem novo, classe
redentora, sociedade sem divisão, espírito sacrificial).Hoje, con·
tudo, todas essas• religiões seculares " pol'Cadorasde esperanças
escatológicas estão mortas. Nessesentido, a •ausência de futu·
ro · , ou o estreitamento do horizonte temporal que subjaz à so;-
ciedade hipermodema, deve ser considerada uma Lalcl.zação
das representações modernas do tempo, um processo de de-
sencantamento ou modernização da própria consciência tempo-
ral moderna. A decadên cia do culto mecânico ao progresso
confunde-se não com o • presente absoluto·. masco .mo futum
pum, a construir-se sem garantias. sem caminhos traçados de
antemão, sem nenhuma lei Implacável acerca do porvir.12AI-

67
cançou-se uma etapa nova na emancipação em face da tutela
do elemento reUgioso:ápcce da modernidade. essa eta.pa é sinô-
nimo de hipcrmodemlzação da relação com o tempo histórico.
Nada de rui na da força do futuro: essaúltima sim plesmen·
te não é mais ldeológlco-politita, estando agora çontic;lana di-
nâmica técnica e cientifica. Quanto ~ais a época se or:ganlza no
culto democrático erigido num absoluto de novo tip<>, mais os
laboratórios concebem um futuro dessemelhante e trabalham
para produzir um universo de ficção cientifica, até mais inacre-
ditável que esta. Quanto menos se tem uma visão teleológica
dó futuro, mais ele se presta à invenção hlpcr-reallsta, com o bi-
nômio ciência-técnica ambicionando explorar o Infinitamente
grande e o Infinitamente pequeno, remodelar a vida, gerar mu·
tantes, oferecer um simulacro de Imortalidade, ressuscitares-
pét,iesdesaparecidas, programar o futuro genético. Nunca antes
a humanidàde lançou tão grande d~Oo ªº homem e ao espa-
ço-tempo. Embora triunfe o tempo breve da economia e da
mídia, o fato é que nossas sociedades continu .am voltadas para
o fut~ro. menos romântico e paradoxalmente mais revoJudo·
nário, pois se dedica a tomar tecnicamente posslvel o lmpossi-
vel. A impotência para imaginar o futuro só aumenta em con-
junto com a sobrepotência técnico-cientifica para transformar
radicalmente o porvir: a. febre da brevidade é apenas uma das
facetaSda civilização futurista hipermoderna. Enquanto o me.r·
cado estende sua· ditadura· do curto prazo. as preocupações
relativas ao porvir planetârlo e aos riscos ambientais assumem
posição primordial no debate coletivo. Ante as ameaças da po·
luição atmosférica, da mudança climática, da erosão da biodi-

6S
versldade, da contaminação dos solos, afirmam -se as Idéias de ·
• desenvolvimento sustentável· e de ecolog ia industrial, com o
encargo de transmitir um ambiente viável às gerações que nos
sucederem. Multlpllcam -se igualmente os modelos de slmu·
lação de cataclismos , as análises de risco emçScal~n;,.çlonal e
planetária, os cálculos probabilísticosdestinados a discernir. ava-
llar e controlar os perigos. Morrem as utopias coletivas. mas ln·
tenslficam-se as atitudes pragmáticas de previsão e pr,cvenção '
técnlco·científicas. Seo eixo do presente é dominante, ele não 'é
absoluto: a cultu .ra de prevenção e a • ética do íuturo" dão nova
vida aos lmperatlvoo da posteridade menos ou mais distante.
Sem dúvida, os interesses e~onõmlcos Imediatos têm pre-
cedência sobre a atenção para com as gerações ruturas. Durante
esse espetáculo de protestos e de chamamentos virtuosos. ades-
truição do melo ambiente continua: o máximo de apelos à res·
ponsabllldade de todos , o mínimo de ações públlcas. Mas o fato
é que as preocupações referoentesao futuro planetário estão bem
vivas; elas habitam e alert am permanentemente a consciência
do presente, allmentando as controvérsias públicas, solicitando
medidas de proteção para . o patrimônio natural. O presente
total da rentabilidade imediata pode dominar, mas não conti:
nuará assim indefinidamente . Mesmo que o ecodcsenvolvhnen ·
to ainda esteja longe de dispor dos meios técnicos e sistemas
reguladores dos quais necessita. ele já começa, aqui e ali. a alte·
rar certas prá ticas. No amanhã , essa dinâmica deve ampliar-se.
~ pouco provável que a consciência e as llmitações de longo
prazo não produzam efeito: elas transformarão tanto .as práti ·
cas presentlstas quanto os modos de vida e de desenvo lvimcn·

69
to. Prepara -se um neofuturismo que não se assemelhará ao fu·
turismo revolucion ário imbuído de espírito sacriíicial: é sob os
auspícios da reconciliação com as normas do presente (empre-
go. rentabilidade econômica, consumo, bem·estar) qu:e se pro· .
cura a nova orientação para o futuro.
A própria dinâmica econômica n ão se esgota no presente
puro. Ela não pára de acarretar uma relação fundamental com
o futuro, na medida em que se baseia na rápida expansão do
consumo e do lnvestimen .to. os quais têm necessidad'.e de que
haja coníiança no porvir. O otimismo progressista não mais é
admissível, mas isso não signiíica o desaparecimento de expec·
tatlvas positivas em relação ao amanhã. A. Giddens salientou
como a modernidade estava ligada à coníiança nos sistemas ahs·
tratos, ou •sistemas peritos";ll acrescentemos que ela requer a
confiança dos agentes econômicos no futuro como condição
para o desenvolvimento da atividade produtiva . Essa C'onfiança
dos consumidores, dos Investidores, dos empresár ios, sabe-se, é
volátil e agora regularmente medida pelas pesquisas de opinião.
Na hlpermodernldade, a fé no progresso foi substituída não
'
pela desesperança nem pelo niilismo, mas por uma conílança
Instável, oscilante, variável em função dos acontecimentos e das
circunstâncias. Motor da dinâm ica dos Investimentos e do con·
sumo. o otimismo em face do futuro se reduziu - mas não está
morto . Assim como o resto, a sensação de conílança se de·
slnstltucionallzou, desregulamentou -se, só manifestando-se na
forma de variações extremas .

70
' '\
O declfniodo carpe diem

Este ponto já foi evocado mais acima: instalou-se um novo cll·


ma social e cultural, a cada dia distanciando-se um pouco mais
da tranqüilidadedescontraídados anos pós•modernos.Com a
precarl.zação do emprego e o desemprego persistente, crescem
os sentimentos de vulnerabilidade, a insegurança profissional e
material , o medo da desvaloriZação dos diplomas, as atividades
subqualiflcadas , a degradação da vida social. Os mais Joveri;
temem não achar lugar no universo do trabalho ; os mais ve-
lhos. perder definitivamente o deles. Donde a necessidade de
nuançar muito perceptlvelmente os diagnósticos que se fazem
de uma cu ltura neodionisiaca que se basearia na preocupação
exclusivamente presentista e no desejo de gozar o aqui-agora.
Narealidade, o que caractenza o Üitgeisl é menos um carpediem
que a inquietaçãodiantede um futuro dominadopor lncerte·
.zas e riscos. Nessecontexto, viver sem olhar para o fut'Uro sfgc
niflca não tanto conqui stac uma vida independente, livre dos
_grilhõescoletivos, quanto sofrer as restrições impostas pela de·
=truturação do mercado de trabalho. É bem verdade que a
febre consumista das satisfações imediatas e as aspirações lúd_i·
<:o-hedonistas não desapareceram de modo algum, pois elas se
,desencadeiam mais do que n unca; estão, contudo, envo ltas por
um halo de temores e inqu letações. A despreocupação otimis-
ta que açompanhou osanos do período 19~1- il e do ciclo da libe-
-ração do corpo é mera lembrança: a hipe rmo dernidade indica
·menos o foco no instante que o declínio d o presentismo em
:facede um futuro que se to rnou incerto e precário .

] l
Hoje, os jovens multo cedo se mostram apreensivos com a
escolha da instrução e das carreiras que ela oferece. A espada
de Dâmocles do desemprego Impele os estudantes a optar
pelas formações prolongadas e escolher cursos cujos diplomas
$ejam considerados uma.garantia de futuro. Do mesmo modo,
os pais assimilaram as ameaças llgadas às desregulamentações
hipermodernas . Raros são os que acham que a escola tenha
por objetivo central a satisfação Imediata dos desejos do filho:
o prioritário é a formação com vistas ao futuro;H donde a rápl·
.da expansão, em especial, do consumismo escolar, das aulas
particulares, das atividades extracurriculares. Preparar ajuven·
tude para a vida adulta, mas também, no outro extremo da ca·
dela, achar soluções para financiar as aposentadorias a longo
prazo. No presente mom .ento, a reforma do sistema de aposen·
tadorias e o prolongamento do período de contribuição pre·
videncii\rlilfigyrnm ,;ntre l!$ gran<I~ dificuldades dos governos
democráticos e levam às :ruas centenas de milhares de manifes-
tantes. Onde se vê que nossa cultura dlsse adeus ao futuro? Ao
contrário. ei-lo aqui. no centro das Inquietações e debates con·
temporâneos, cada vez mais como algo a prever e reorganizar.
O que declina não é a Import ância do futuro, mas o etos pós·
moderno do hlc'etnunc.
Asnovas atitudes para com a saúde ilustram de manelra no·
tável a desforra do futuro . Numa época em que a normatiza·
ção médica Invade cada vez mais os territórios do campo social,
a saúde se torna preocupação onipresente para um número
êrescente de Indivíduos de todas as idades. Assim, os. ideais he·
donistas foram suplantados pela ideologia da saúde e da longe-

71
'
vidade. Em nome destas, os Indivíduos renunciam maclçamen·
te às satisíações imediatas, corrigindo e reorientando seus com·
portamentos cotidianos. A medicina não mais se contenta cm
tratar os doentes: ela lnte-rvém antes do aparecimento dos sln·
tomas, lníqrrna wbr<: os riscos em que se Incorre , ei.timula o
monitoramento da saúde, os exames clínicos, a vigilância
higienista, a modillcação dos estilos de vida. Encerrou-se um
capítulo: a moral do aqui-agora cedeu lugar ao culto da saúde,'
à ideologia da prevenção, à medicallzação da existência. Prevei ,
projetar, prevenir: o que se apossa de nossas vidas indlvlduall·
zadas é uma consciência que permanentemente lança pontes
para o amanhã e o depois-de-amanhã.
Cada vez mais vigilância, monitoramento e prevenção: ali·
mentação saudável, perda de peso, controle do colesterol, re·
pulsa ao rumo, atividade física - a obsessão narcísica com a saú·
de e a longevidade segue de mãos dadas com a prlorjda<le (!ªIli!
ao depois sobre o aqui -agora. O que nos leva a corrigir aquela
proposição freqüentemente citada de Tocqueville: "Parece que,
a partir do momento em que (os homens das democracias!
se desesperam de viver pela eternidade, eles se dispõem a agir
como se fossem existir por não mais que um dia· .11Em vista da
Importância assumida pelos problemas da saúde e do envelhe·
cimento , é forçoso observar que estamos longe daquele etos:
o hlperindivldualismo é menos lnstantaneísta que projetivo,
menos festivo que higienista, menos desfrutador que preven·
tlvo, pois a relação com o presente integra cada vez mais a dl·
mensão do porvir. O retraimento dos horizontes longlnquos
levou menos a uma ética do instante absoluto do que a um

7}
pseudopresentlsmo minado pela obsessão com o que está por
vir.Declina a cultura do carpediem:sob a pressão exercida pelas
normas de prevenção e de saúde, o que predomina é não tanto
a plenitude do instante quanto um presente dividido, apreen-
sivo, assómbrado pelos vírus e pelos estragos da passagem do
tempo. Nenhuma •destemporallzação • do homem: o Indivi-
duo hlpermodemo continua sendo um Indivíduo para o fu-
turo, um futuro conju~do na primeira pessoa. Outros fenô-
menos revelam os limites da cultura presentlsta. Ao mesmo
tempo que a cultura Uberaclonista está fora de moda, manifes-
tam-se numerosas formas de valorização do duradouro. Ainda
que as uniões sejam mals frágeis e mals precárias, nossa época,
apesar de tudo, testemunha a persistência da Insti tuição do
matrimônio, a revalorização da fldelldade, a vontade de contar
com relações estáveis na vida amorosa. Observam-se mals insa-
tisfações óu frustrações referentes às experiências sem futuro
do que odes aos amores casuais. Por que o amor permaneceria
um ideal, uma aspiração de massa, se não. ao menos em parte,
por l:ausa do valor conferido à duração qué associam a ele? E

como compreender a vontade de ter filhos, tudo menos cadu-
cá,sem supor o Investimento emocional de longo p:raw? Fica
evidente que o Instante puro está longe de ter colonizado por
completo as existências privadas, pois a sociedade hipermoder-
na dá nova vida à exigência de permanência como contrapeso
ao reinado do efêmero. tão causador de ansiedades.
' \ \

Conflitosde tempoe crono-reflexividade

Marx mostrou Isto em análises magistrais: a economl:a de tem-


po é o princípio de íun<:lonamento do capitalismo moderno.
Dedicando-sea reduzir ao máximo o tempo de trabalho e,
ainda assim, fazendo deste a fonte da riqueza, o capitalismo é
um sistema que se baseia numa grande contradição temporal
que .exclui o homem de seu próprio labor. Tal tipo de contra •
dição, sabe-se, só íaz exacerbar -se. Simultaneamente, de um
mundo centrado na organização do tempo .de trabalho, passou·
se a um universo marcado pela redução do tempo social, pelo
desenvolvimento de temporalidades heterogêneas (tempo li·
vre, consumo, íérlas, saúde, educação, horários de trabalho va-
riáveis, aposentadoria), acompanhando-se de tensões .inéditas."
Donde o acúmulo de problemas de organização e gestão ,do
tempo social, assim como as novas exigências de admt-nistração,
de reorganização, de flexibilização pelo viés de dispositivos per-
sonalizados, com vistas à promoção do tempo ajustado às ne-
cessidades individuais. A obsessão moderna com o tem po não
mais se concretiza apenas na esíera do trabalho que está subme-
tida aos critérios de produtividade - ela se apossou de todos os
aspectos da vtda. A sociedade htpermoderna se apresenta como
a sociedade em que o tempo é cada vez mais vivido como preo-
cupação maior; a sociedade em que se exerce e se generaliza
uma pressão tempora l crescente .
Essascontradições temporaiS repercutem no cotidiano e não
se explicam exclusivamente pelo principio de economia e ren-
tabilidade transposto da produção para as outras esíeras da vida
social. Quando se privilegia o futuro, tem ·se a sensação de pas·
sar ao largo da "verdadeira" vida. Desfrutar os prazeres tal qual
se apresentam? Ou assegurar a vitalidade nos anos vindouros
(saúde, boa forma, beleza)?Tempo para os Olhos?Ou tempo pa·
ra a carreira? Não hâ ape ,nas a aceleração dos ritmos de vida: há
também .uma conflltualtzação objetiva d_a relação com o tem·
po. Os antagonismos de classe se enfraquecem, e as tensões
temporais pessoais se gen eralizam e se acirram. Não mais classe
contra classe. e sim tempo contra tempo. futuro contra presen-
te, presente contra futuro, presente contra presente, presente
contra passado. O que privilegiar? Ecomo não lamentar esta ou
aquela opção quando o t-empo é destradicionalizado, entregue
à escolha dos indivíduos? A redução do tempo de trabalho, o
tempo livre e o processo ,de Individualização levaram à multl-
pll~ção dos temas e conflitos ligados ao tempo. É uma época
de guerras do tempo singula riZádas que sé réládonam ao viver
subjetivo . Às contradições objetivas da sociedade produtlvista se
Justapõe agora a espiral das contradições existenciais.
O estado de guerra contra o tempo Implica que os lndiví·
duos êstão cada vez menos encerrados só no presente. com a
dinâmica de individualização e os meios de Informação funcio-
nando como instrumentps de distanciamento. de introspecção.
de retomo ao eu.17A hlpermodernidade não se confonde com
um • processo sem sujeito·: ela segue de mãos dadas com a • to-
madade palavra",a auto•reílex.ivldadc.
a crescenteconsclentl·
zação dos Indivíduos, esta paradoxalmente acentuada pela ação
efêmera da mídia. De um lado. sofrem-se cada vez mais as limi·
tações do tempo desabalado; de outro, avançam a lndependcn -
.. \

eia individual, a subje ~ivaçâo das ori entações. a inl rospecção.


Nas sociedades individualistas , llbeJ'tas da tradição, nada mais
está óbvio e evidente'. a organização da existência e dos usos do
tempo exige aJ"bitragens,e retificações, previsões e informações.
eprecisorepresentara hlpermodernidadecomouma metamo-
demidade à qual subjaz uma crono-reílexividade.

Tempoacelerado e tempo redescoberto


..
Uma das conseqüências mais perceptíveis do poder do regime
prescntista é o e Umade pressão que ele faz pesar sobre a vida das
organizações e das pessoas. G;ande número de quad ros funcio ·
nals menciona o ritmo frenético que domina a cadeia vital das
empresas nesta época de concorrência globallzada e ditames
financeiros.Sempremaise)(igenciasde resultadosa curto pra•
zo, fazer mais no menor tempo possível, agir sem demora: a
corrida da competição faz priorizar o urgente à custa do Impor-
tante, a ação imediata à custa da reílexão; o acessório à custa do
essencial. leva taJ"nbéma criai' uma atmosfera de dramatização,
de estresse permanente, assim como todo um conj u nto de dls·
túrbios psicossomáticos. Donde a idéia de que a hipermod ernl·
dade se distingue pela ldeologização e pela generalização do rei·
nado da urgência. IS
Osefeitos induzidospela novaordem do tempo extrapolam
em muito o universo do trabalho; eles se concretiza .m na rela·
ção com o cotidiano, com o eu e com os outros ..Assim, um nú ·
mero crescente de pessoas (as mulheres mais que os homens,

77
em razão das limitações da "jornada dupla·, dentro e fora do
lar) reclama de estar sobrecarregadas, de • correr contra o tem-
po·. de llcar estafadas. E nenhuma íaJxa etá ria parece escapar
a essa corrida para adiante, pois mesmo os aposentados e as
crianças têm hoje uma agenda lotada. Quanto mals depressa
se vai, menos tempo se tem. A modernidade se const ruiu em
to m o da critica à exploração do tempo de trabalho ;Já a época
hipermoderna é contemporânea da sensação de qu e o tempo
se rarefaz. Neste mome n to , somos mais sensíveis à escassez de
tempo que à ampliação do campo das possibilidades ocasiona-
da pelo lmpet o da Individualização; a falta de dinheiro ou de li-
berdade motiva menos queixas qu e a falta de tempo .
Contudo . se uns nunca dispõem de tempo sullciente, outros
(desempregados.Jovens de rua) o têm de sobra . Deum lado, o
individuo empreendedo r , hlperatlvo , desírutando a velocidade
e á Intensidade do tempo; de out ro, o Individuo esmagado "à
revelia" pela ociosidade.ISSobre essa dualiZaçãodas maneiras de
viver o tempo, há pouca dúvida: assiste-semesmo à i.ntensillca-
ção de novas formas de desigualdade social em face dele. Entre-
tanto, 'não se deve deixar que estas ocultem a dlnâmica global
que, para além das classes ou dos grupos especillcos:, transfor -
mou proíundamente a re lação dos Indivíduos no tempo social.
Ao criar o hipermercado dos modos de vida, o universo do
consumo, do lazer e agora das novas tecnologias possibilitou
uma autonomização crescente no que se reíere às limitações
temporais coletivas; disso resulta urna dessincronização das atl·
vldades, dos ritmos e das trajetórias Individuais. Vetor de indi-
vidualização das aspirações e comportamentos, o reinado do

78
.'
presente social se faz acompanhar de ritmos em defasagem, de
construções mais personalizadas dos usos do tempo. A bipola-
rtzáção do individualismo (por excesso ou por escassez) só se
afirma tendo como fundo essa pluralização e essa individuali -
zação generalizadas das Maneiras dê géti r o têmpõ. Néssé sen-
tido, a hlpermodernidade é indissociável da destradiclonaliza-
çào-deslnstltuclonallzação-lndividualizaçào da relação com o
tempo, fenômeno geral que, transc endendo as diferenças _de
classes ou de grupos. extrapola em muito o mundo dos •vim-
cedores •. A nova sensação de sujeição ao tempo acelerado só
se apresenta paralelamente a um poder maior de organização
individua.! da vida.
Nova relação com o tempo que é igualmente exemplificada
pelas paixões consumistas. Ninguém duvida de que, em mui-
tos casos, a febre de compras seja uma compensação, úma
maneira de consolar-se das desventuras da <>xlstêl'\Cla,
de ptêên -
cher a vacuidad e do presente e do futuro . A comp u lsão pre-
sentlsta do consumo maiS o retraimento do hortzont,e tempo-
ral de nossas sociedades até constituem um sistema . Mas será
que essa febre não é apenas escapista, diversão pascallana, fuga
em face de um mundo desprovido de futuro Imaginável e
transformado em algo caótico e incerto? Naverdade, o que
nutre a escala consumista é indubitavelmente tanto a ª !lgústia
exlslencial quanto o prazer associado às mudanças, o desejo de
intensificare reintensificaro cotidiano.Talvezestejaai o dese-
jo fundamental do cons u midor hlpermoderno: renovar sua
vivência do tempo, revivlflcá-la por meio das novidades que se
oferecem como simula cros d.e aventura. Épreciso ver. o hiper-

19
consumo como uma cura de rejuvenescimento que :sereinicia
eternamente:Dessa maneira ., o que nos define não é bem o· pre-
sente perpétuo· de que falava Orwell, mas antes um desejo de
perpétua renovação do eu e.do presente. Na fúria consumista,
êXpi'iMê-se á recusa ao tempo exaurido e repetiiiyo, um com·
bate contra esse ênvelheclmento das sensações que acomp anha
a rotina diária. É menos a negação da morte e da finitude do
que a angústia de fossilizar -se, de repetir, de não mais sentir. À
pergunta ·o que é a modernidade?", Kant respondia: supe .rar a
mlnoridade, tornar-se adulto. Na hlpermodernidade, tudo se
passa como se surgisse uma nova prioridade: flcar eternamen te
voltando à ·Juventude·. Nossa pulsão neofilica é, em primeiro
lugar, um exorcismo do envelhecimento do viver subjetivo: o ln ·
dlvíduo deslnstitucionalizado, volátil, hiperconsumista, é aque·
le.q1,1esonha assemelhar·:se a uma fênlx emocional.

Sensualismoe desempenho
A cultura da lmedlatez foi objeto de Incontáveis críticas, que
nem sempre escaparam à comodidade das conclusões apoca-
Jipticas.lNo universo da pressa, dizem, o vinculo humano é su·
bstltuíd ~ pela rapidez; a qwlidade de vida, pela eficiência; a frui·
çào livre de normas e de cobranças, pelo frenes J Foram-se a
ociosidade,a contemplação, o relaxaMet'ltovoluptuóso: o que
importa é a auto·superação, a vida em fluxo nervoso ..os praze·
res abstratos da onipotência proporcionados pelas intensidades
aceleradas . Enquanto as relações reais de proximidade cedem

80
' ' \

lugar aos intercâmbios ylrtuaJs, orgàniza-se uma cultura de hl-


peratividade caracteri2àda pela bu~ de mais desempenho, sem
concretude e sem sensor ialidade, pouco a pouco dando cabo
dos fins hedonistas.
Mas evitemos tomar a parte pelo todo. Pois a era da urgên-
cia é também aquela em que se .dá a democratização da tecno-
logia do bem-estar crescente, a rápida expansão dos mercados
da qualidade, a erotização da sexualidade feminina. a voga de es;
portes como o esqui e o wíndsurfe . A música, as viagens, as pái-
sagens, o arranjo estético dos Interiores conhecem igualmente
um sucesso sem precedentes. São tantas as práticas e gostos que
revelam uma época de se.nsuallzação e estetização em massa
dos prazeres. Coab itam duas tendências: a que acelera os rit-
mos tende à desencarnação dos prazeres; a outra, ao contrário,
leva à estetização dos gozos,à felicidade dos sentidos. à busca
da qualidade no agora. Oeum lado , um tempo comprimido,
•eficiente· , abstrato; de outro, um tempo de foco no qualitati-
vo, nas volúplas corporais, na sensualização do instante. Assim
é que a sociedade u ltramoderna se apresenta como uma cultu-
ra desunificada e paradoxal. Um acasalamento de contrários
que só faz Intensificar dois importantes princípios, aml?os cons·
tltutlvos da modernidade técnica e democrática .: a conquista da
eficiência e o Ideal da felicidade terrena.
A cultura hedonista foi sistematicamente analisada e estlg·
matizada tOM O Imposição de felicidade consumista e erótica, •
• tirania do prazer·, ,· totalitarismo • mercantil. No entanto , o que
realmente se vê? Florescem as catedrais do consumo, mas estão
na moda as espiritualidades e sabedorias antigas; o porn6 se

81
expõe, mas os costumes sexuais são mais ajuizados quedes·
comedidos ; o clberespaço virtuallza a comunicaç:ão, mas a
Imensa maioria aprecia os eventos ao vivo; as festas coletivas. as
saldas com amigos; a troca paga se generaliza, mas o volunta -
riados<:-multlpllca,e mais do que nunca os relaclonamentoo se
basê1amna afetividade sentimental. Ficaóbvio que o Individuo
não é o reflexo fiel das lógicas hiperbólicas midiático-mercan·
tis; ele nãó é o "éscrávo" da ordem social que exige eficiência,
tanto quanto não é o produto mecânico da publicidade. Outras
motivações, outros Ideais (relacionais, 'Intimistas, amorosos,
éticos), não param de ólientar o hiperindivíduo. O rnlnado do
presente é menos o da normatlzação da felicidade que o da d!·
versificação dos modelos , da erosão d.o poder organizador das
normas coletivas, da despadronlzação dos prazeres. A ascen·
dêhcia das normas do consumo e da sexualidade aumenta, até
porque e!~· regem menos estritamente os êomportamentos
individuais.
Superatlvo, o indivíduo hipermoderno é lgualmenté pru-
dente, afetlvo·e relacional: a aceleração dos ritmos não aboliu
nem a sensibilidade em relação ·ao outró, nem as paixões do
qualitativo, nem as aspirações a uma vida equilibrada e senti·
mental. O extremo é apenas uma das vertentes da ultramodcr-
. nldade . Certos quadros funcionais podem ser wortaholics, más a
maioria dos assalarl~dos aspira a conciliar a vida prof1SSional
com a particular , o trabalho com o lazer, Alugam-se filmes
pornôs a rodo, mas a vida l.ibidinosa está multo longe de ter
caido na orgia e no swlng generalizado. A publicidade pode até
exaltar as fruições comerciais, mas é a relação com outrem

82
(filho, amor, amlzade) ,o que conslitul a qualidade de vida do
malor número de pessoas. Ofrenesi do "sempre.mais" nâo en-
terra as lógicas qualitativas do "melhor e do sentimento: ao
contrário, dá-lhes maior espaço SO<:Ial, uma nova legitimidade
de massa. Por toda a parte , os exageros hlpermoderno~ são re-
freados pelas exigências da melhoria da qualidade de vida, pela
valorização dos sentimentos e pela personalldade, a qual não se
pode trocar: por toda a parte, as lógicas do excesso depararÓ
com contratendênclas e válvulas de segurança. Atormentada
por normas antinômicas , a SO<:iedade ultra moderna não é uni-
dimensional: assemelha-se a um caos paradoxal, uma desor -
dem organizadora.20
f Nessecontexto, o que mais deve nos preocupar não é nem a
dessensuallzação nem a •ditadurii • do prazer, mas a fragilização
das personalidad esJA culttura h[permodema se caracteriza p,elo
enfraquecimento do poder regulador das Instituições coletJV;lá
e pela autonomização corre lativa dos atores sociais em face das
Imposições de grupo, sejam da famiUa.sej~ da religião, sejam ,
dos partidos políticos, sejam das culturas de classe. Assim, o ln·
divíduo se mostra cada vez mais aberto e cambiante, fluido e so-
cialmente Independente. Mas essa volatilidade significa muito
mais a desestabilização do eu do que a afirmação triunfante de
um individuo que é senhor de si mesmo. Testemunho disso é a
maré montante de sintomas psicossomáticos, de distúrbios
compulsivos, de depressões , de ansiedades, de tentativas de sul-
cidlo, para nem falar do cirescentesentimento de insuficiência e
autodepreciaçã ~ Y_ ~~ ~billdade psicológica que (ao ,cont rário
do que tanto se diz) se deve menos ao peso extenuante das nor-

8)
mas do desempe.nho, à intensiOcação das pressões gue se aba·
tem sobre as pessoas, do que à ruptura dos antigos sistemas de
defesa e enquadramento dos Indivíduos. lembremos apenas
que a fogueira das ansiedades e das depressões prPCedeu o triun·
fo da cultura empresarial e do neoliberallsmo. O quê explíêãõ
fenômeno não são tanto as pressões da cultura do desempe-
nho quanto o enorme avanço da Individualização, •o declínio
do poder organizador que o coletivo tinha sobre o l.ndividual.
Deixado a si mesmo, desinserido, o indivíduo sevê pr ivado dos
esquemas sociais estruturantes que o dotavam de forças lnte·
rlores que lhe possíbilit.avam fazer frente às desventuras da
existência. À desregulação institucional generalizada corres·
pondem as perturbações do estado de ânimo, a crescente de-
sorganização das personalidades. a multiplicoaçãode distúrbios
pslcç,lógicose de discursos queixosos. Éa Individual lzação ex·
trema de nossassociedades o que. tendo enfraquecidoas rê-
sistências • a partir de dentro", subjaz à espiral dos distúrbios
e desequlllbrios subjetivos . Assim, a época ultramoderna vê
desenvolver-se o domínio técnico sobre o espaço-tempo, mas
'
declinarem as forças interiores do indivíduo. Quanto menos as
normas coletivas nos regem nos detalhes, mais o Indivíduo se
mostra tendencialmente fraco e desestabilizado. Quanto mais
o individuo é soclalm.cnte cambiante, mais surgem manifesta-
ções de esgotamentos e •panes· subjetivas. Quanto mais ele
quer viver Intensa e livremente. mals se acumulam os sinais do
peso de viver.

84
. '.
O passado revisitado

O ·retorno· do futuro não é o único fenõmeno que contesta a


idéia de presente social voltado para si mesmo: a retificar esse
• tipo ldeál• weberlano, convida -nos também o íenômcno, que
estamos testemunhando, do revivcsclmento do passado.
li ~ É inegável que, ao celebrar o sempre novo e os gozos de;>
aqui-agora. a civilizaçãoconsumista opera continuamente para
enfraquecer a memória cole tiva, acelerando o declínio da con· '
,..'t) tlnuidade e da repetição ancestral / Não obstante. permanece o
fato de que nossa época. longe de encer rar-se num presente
trancado em si mesmo . é palco tanto de um frenes! histórlco -
patrimonlal e comemora tivo quanto de urna Investida das iden·
tidades nacionais e regionals, étnicas e religiosas. Quanto mais
nossas sociedades se dedicam a um funcionamento -moda foca·
do no presente, Mais élas se v~em acompanhas de uma onda
mnêmica de fundo . Osmodernos queriam fazer tábula rasa do
passado, mas nós o reabilitamos; o Ideal era ver-se livre das tra·
dições, mas elas readquirem d ignidade sociatj Celebrando até o
menor objeto do passado, invocando as obrigações da memó·
ria, remob ilizando as tradições religiosas, a hipermodernidade
não é estruturada por um presente absoluto: ela o é por um
presente paraooxal,
um presente que não pára de exumar e· redes·
cobrir· o passado. I

Sl
A mem6ríaem temposde híperconsumo

Dizem de brincadeira que · abre um museu por dia na Europa,


e já se perdeu a. conta das comemorações de aniversário dos
grandes e nem tâo grandes acontecimentos históricos . Emnossa
é poça, o que não se presta mais a ser objeto de museu, de restau-
ração, de celebração? Do décimo ao qüinquagésimo aniversário,
do primeiro ao sesqulcente .nário, toda data é pretexto para festi-
vidades . logo não existirá mais nenhuma atividade, nenhum
objeto, nenhuma localidad e, que não tenha a honra de uma lns·
tituição museal. Do museu da trêpeao da sardinha, do museu de
Elvls ao dos Beatles , a sociedade moderna é contemporânea do
tudo-patrimônio-histórico e do todo-comemo,rativo .
Nessa valorização do passado , pode -se, é claro, recon he cer
um sintoma tipicamente ·pós -moderno·. Entretanto, o nm do
l)'lO<ie
m ismó negador ·do passado não significa o eclips,e do mo ·
derno, pois muitos traços do fenômeno apontam o contrário ,
um novo impulso de moderniZação da'cultura . Enorme expan ·
são dos objetos e signos considerados dignos de ser parte da me·
mórla patrimonial; pro,liferação dos museus de toda espécie;
ob~o comemorativa; democratização maciça do turismo
cultural; ameaça de degradação ou paralisia do cortju nto histó ·
rico-patrim onial pelos nuxos excessivos de turistas - a nova va-
lorização do antigo se faz acompanhar de excrescência. de satu·
ração, de alargamento lnfl:nlto das fronteiras da memória e do
patrimônio histórico, pelo que se reconhece urna modernização
levada ao extremo. Passou-se do reinado do Onito ao do iníini·
to, do limitado ao generalizado, da memória à hipermemócia:

86
' ' "
na neomodernidade, o excesso de lóglcas presentistas segue em
conformidade com a Inflação proliferante da memória .
Ultramodern idade que, cada vez mais, revela ainda a ênfase
sobre o Impacto econôm ico da preservação do patrimônio, so-
bre os crit érios de rentabilidade direta ou Indireta, n u ma esfera
outrora animada pelo cult .o à Nação e pelo espírito de civismo.
O batismo de ruas e o lev.a.ntamento de estátuas são doravante
suplantados por comemo ,rações exploradas pelas indústrias edi-
toriais e midiáticas, que inundam o mercado com dez enas •de
título s novos, dé reedições, de histórias em quadrinhos, de fil-
mes e telefilmes. Antigamente, o mon':lmento era um símbolo,
e sua conservação, um fim em si mesmo; hoje,justifi.cam-seos
encargos com ele em nome dos efeitos financeiros, do desenvol-
vimento turlstico ou da imagem midiática das cidades e regiões.
"Jazidas• a explorar e promover, as antigas edificaç(!es sãÓse-
qüestradas, reformadas, t ransformadas em centros culturais ,
museus, hÓtéls, teatros, escritórios ; as áreas históricas são enfei-
tadas e avivadas, convertidas em produto de consum o cultural
e turístico. E,por toda a parte, vê-se a aparição de estaciona -
m e ntos, de lanchonetes , de lojas de suvenlres , de espetáculos
folclóricos.21Na sociedade hipermoderna, o modelo de merca-
do e seus critérios operac ionais conseguiram imiscuir -se até na
conservação do patrimônio histórico. Elemento do avanço do
capitalismo cultural e da mercantllização da cultur a,, ·a valori -
zação do passado é um fenômeno mais hipermoderno que pós-
moderno.
Nesta épo,ca da indústria do patrimônio histórico, o cidadão
cede o passo ao homo comumerfcm.Oantigo estilo solene e "seden -

87
tárlo • das comemorações. que visava a registrar permanente-
mente a memória nos pr-0prios locais do passado, recua em fa-
vor de um estilo "frívolo" e efêmero que se restringe apenas ao
Instante da comemoraçao: simpósios. concertos. exposições.
happenings, espetáculos, desnles criat.lvos.22Osmuseus encenam
espetáculos históricos, e· os sítios arqueológicos. reconstitui-
ções em simulação vlrtuat o • turismo da memória " é sucesso
entre as massas. Asobras.do passado não mais são contemp la-
das em recolhimento e silêncio, e sim "devoradas" em alguns
segundos. funcionando como objeto de animação de massa,
espetáculo atraente, maneira de diversificar o lazer e "matar· o
tempo. A volta do passado à popularidade ilustra o advento do
consumo-mundo e do consumidor que busca menos o status
que os estímulos permanentes, as emoções instantâneas . as atl-
vic;ladesrecreativas. Não é que se dê adeus à modernidade;
antes. é a terceira etapa da modernidade consumista que triun-
fa!l na democratização madça do lazer cultural, no consum .ls-
mo experiencial, na transformação da memória em entreteni -
mento-espetáculo .
A voga do passado sevê ainda no sucesso dos objetos anti -
gos, da caça a antiguidades, do retrõ, do v/nlage.dos produtos
rotulados com um "legitimo " ou ·autêntico·, que despertam
a nostalgia. Cada vez mais, as empresas fazem referência a seu
passado, explorando seu património histórico, dlvu 'lgando-o,
lançando produtos de cunho saudosista que "revivem" os tem-
pos de antanho. Letreiros comerciais apresentam artigos ori-
undos do patrimônio histórico, e multas marcas ·oferecem
• receitas à moda antiga" e produtos Inspirados em tradições

88
' ' \
ancestrais. Na sociedade hipermodema, a antiguidade e a nos-
talgia se tornaram argumentos comerciais. ferramentas mer•
cadológicas.
Esse retorno revigorado do passado constitui uma das face-
tas do cosmo do hlperconsumo experiencial: trata-se não mais
de apenas ter acesso ao conforto mat erial. mas sim de vende r
e comprar reminiscências. emoções, que evoquem o passado,
lembranças de tempos considerados mais esplendorosos . Ao
valor de uso e ao valor de troca se junta agora o valor emotivo-
mnêmico ligado aos sentimentos nostálgicos . Um fenómeno
Indissociavelmente pós· e hlpermoderno. Pós porque se volta
para o antigo. H;perporque doravante há consumo comercial
da relação com o tempo, pois a expansão da lógica mercantil
Invade o território da memória.
Jáa vida cotidiana, embora exprima o gosto pelo passado,
é, mais do que nunca, regida (na higien e, na saúde. no lazer,
no consumo, na educação) pela ordem cambiante do presen-
te. Os produtos comest íveis exibem "autenticidade·, mas são
com erciallzados segund .o técnicas comerciais de massa, adap-
tados aos gostos contemporâneos, fabricados em :função de
normas atuais de higiene e segurança. Reformam -se os imóveis
antigos dos centros das cidades, mas dotando-os de todo o con·
farto moderno. A consc:lcncia do valor do patrimônio históri-
co se intensifica, mas as. coisas que produzimos têm duração
cada vez mais límltada. Opassado nào mais é socialmente lns·
tituldor nem estrutura n te; está renovado, reciclado, mas ao
gosto de nossa época, exp lorado com fins comerciais. A tradi·
ção não mais convoca à repetição, à fidelidade e à revivescência

89
das coisas imutáveis de outrora: ela se tornou produto de con·
sumo nostálgico ou folclórico , mera olhade la para o passado,
objcllrmoda.Regula insl!itucionalmente o todo coletivo, e seu
valor é ap_enas~té ttcp , emocional e lúdico. Embora o antigo
possa causar furor, não tem . mais o poder de organizar coletic
vamente .os compo rta me nt os. O passado nos seduz: o presen-
te e suas norTl)as .cambiantes nqs governam. Qua:nto mais se
evoca e se encena a me .mórJa histó rica, menos ela estrutura os •
elemen tos do cotidiano. Donde este traço característico da vida
hipermoderna: celebra .mos aquilo que não desejamos tom ar
como exemplo.2l
Dizia Tarde' que, nos tempos consuetudinários, o passado
funcionava como modelo prestigioso a imitar. Essanão é a
norma de nossa época, em que o passado aparece cada vez mais
nitidamente como, Isto sim , um adorno , um referencial da
~ida com qualidade ou -com segurança. Issoporque o· autênti-
co· tem sobre nossas sensibilidades um efeito tranqüllizador:
os produtos •à moda antiga", associados a um imagin .ário de
proximidade, de convivialidade, de "bê:>nse velhos. tempos" (a
aldeia, o artesão, o amor ao.oficio), vêm exorcizar o desassosse-
go dos neoconsumidore$obcecados com a segura :nça de todo
tipo, desconílados da Industrialização do comest111el.De igual
maneira, o efeito·patlimônio-histór ico participa da mesma cul -
tura do bem -estar ind:ividuallsta. Os conJuntos habitacionais
modernos, os arranha ·céus e blocos de apartamentos e escri·
tórios , o litoral concretado, tud o isso acarretou o desejo de

• Gabrielde Tarde (,s..1·1901),


sociólogo rrancéS. (N.T.)

90
. .'
salvaguardar as antigas paisagens e os edifícios do passado
como se fossem resistências à feiúra, à uniformi zação funcio·
na! e técnica. Embora.a. mania do antigo comporte uma di·
mensão nostálgica, ela também ilustra a intenslfkaç.ão dos de~
sejos individualistas de qualidade de vida, uma cultura
hlpermodema do bem-estar indissociávelde critérios mais qua·
litativos e sensoriais, mais estéticos e culturais. Subjacentes ao
gosto pelo passado, avançam as paixões hiperindivldualistas de
•conforto recreativo· e '"conforto existencial• ,25as novas exi·
géncias de sensações agradáveis, de' qualidade ambiental ein
todos os sentidos.
t.provável que essa obscl,sãomnêmica não se perpetue; cer·
tos sinais talvez já indiquem um movimento de refluxo .IliUm
dia. a proliferação das comemora ções e do patrlmõnio hlstórl·
co chegará ao limite, não mais encontrando o mesmo eco. 8
de supor, entretanto, que não se voltará aos tempos do culto
modernista da p,igina em branco. A segunda era da modernl ·
dade é auto ·reflexlva, individualistico-emoclonal e identitária:
revolucionária no ãmbit:o técnico ·c.ientífico,ela deixou de~ -
lo no cultural. Ésinônimo não de depreciação do passado, mas
de exploração-mobilização sem exclusão de todos oseixos da
temporalidade socioistórica, reciclagem e retradução de me-
mória com fins cconõmicos, emocionais e identltários. Mesmo
que a onda mnemônica se quebre, ela não se dete .rá de vez.
Ocomércio , a moda, as exigências de melhoria do bem -estar,
assim como os desejos identitários, devem ainda por muito
tempo fazer da memór ia um recurso e uma necessidade de
ordem presentista .

91
Identidadese espiritualidades

O retorno prestigioso do passado extrapola em muito o culto


ao retró , às comemorações e l!Opatrimônio histórico . Ele se
concretiUt com ainda mais Intensidade no desperta r das esplrl-
tualldades e das novas solicitações identitárias. Revivescências
religiosas, reivindicações :nacionais e regionais, ressurgimento
étnico - as sodedades contemporâneas assistem a um fortale-
cimento de referenciais que remetem ao passado, de uma ne-
~essidade de conti nuidade entre passado e presente, da preocu-
pação de dotar -se de raízes e memória. Embora a globalluição
técnica e comercial Instaure uma temporalidade homogênea',
o fato é que ela é concomi t ante a um processo de fragmentação
cul~ural e religiosa que mobiliza mitos e relatos fundadores,
patrimõn!ós simbólicos, valores históricos e (f;lgjc;ionals.
Sabe-se que, em muitos casos, a reativação da memória his-
tórica funciona em oposição frontal aos princípios da moderni-
dade Ji~ral. Ao serem testemunho das efervescências religiosas
que recusam a modernidade laica,·os movimentos neonacio -
nalistas e étnico -religiosos aca.rretam ditaduras, guerras iden-
titárias. massacres genocidas. O fim da divisão do mundo em
blocos, o vazio Ideológico,, a globalização da economia e o en-
fraquecimento do poder estatal possibilitaram que surgisse uma
grande quantidade de conílltos locais de base étnica, reilgiosa
ou nacional; de movimentos separatistas: de guerras interco -
munitárias. Rejeitando o pluralismo das sociedades abertas,
expurgando a sociedade dos elementos "heterogêneos•, fechan-

91
do as comunidades em .si mesmas, os Impulsos neonacionalis·
tas e étnico- religiosos se íazem acompanhar aqui de c:ombate à
ocidentalização, ali de guerras devastadoras, repressões e terra-
'
rismos polítlco·rcUglosos. Um despertar dos antigos demônios?
t iludir-se interpretar esses íenõmenos como ressurg:ênclas ou
repetições do passado, quer tribal, quer totalltári o. Ainda que
as regressões Identitárias reatem com mentalidades antigas, o
que surge são formas Inéditas de coníUto, de nacionalismo e de
democracia . Sob as Incitações para que se preservem ldentl ·
dades nacionais ou religiosas, organizam-se tiranias de gên,ero
novo, combinações de democracia com etnicidade, d'.e moder·
nlzação frustrada com ºfundamentalismo" tr iunfante , as quais
Fareed Zakaria com razão den~mina • democracia !libera.is· :n·
Issoposto, os movimentos que reavivam a chama do sagra·
do ou das raí zes estão muito longe de ser de mesma ·natur .eza
e de manter a mesmo relação com a modernidade liberal. No
Ocidente, muitos deles se apresentam com traços que se cone!·
liam perfeitamente com a cultura liberal do indivíduo legisla·
dor de sua própria vida. Prova disso são as famosas • religiões à
la carte·, os grupos e redes que combinam as tradições cultu·
rais do Orient e e do Ocid ente , os quais utilizam a tradição r~-
llgiosa como meio de auto-realização subjetiva dos: adeptos.
Aqui, não há nenhuma antinomia com a modernidade indivi·
dualista, pois a tradição fica à disposição dos Indivíduos, • mexi·
da", mobilizada como via de auto-realização e de integração
comunitária. A era hiperrnoderna não põe fim à necessidade de
apelar para trad ições de sentido sagrado: ela simplesmente as
rearranja mediante individuallzação, dispersão, emoclonallza·

93
!Çâodas crenças e práticas. Com a primazia do eixo do presente,
crescem as religiões •desregulamentadas· e as Identidades pós·
tradic ionais.
A racionalidade Instrumental expande seu domin io, mas
Isso n ão elimina nem a crença religiosa, nem a necessidade de
referir-se à autoridade de uma tradição. De um lado, o proces·
so de racionalização faz diminuir cada vez mais a ascendência da
religião sobre a vida social; de outro, ele, com seu próprio mo·
vlmento, recria exigências de religiosidade e de enraizamento
numa "linhagem crente". Também aqui, evitemos Identificar as
novas espiritualidades a um íenõmeno residual. urna regressão
óu arcaísmo pré-moderno. Na realidade, é do próprio Interior
do cosmo hipermodemo que se reproduz o religioso, na med.i-
da em que esse cosmo gera Insegurança, confusão referencial,
extinção de utopias seculares, ruptura individualista do vincu·
lo social. No universo Incerto, caótico, atomizado da hiper-
modernldade, cresce também a necessidade de unidade e de
sentido, de segurança, de identidade comunitária - é a nova
chance das religiões. De todo modo, o avanço da secularização
nã.o leva a um mundo Inteirament e racional em que a Influên-
cia social da religião declina continuamente . A secularização
não é só a Irreligião; ela é ra.mbém o que recompõe o religioso
no mundo da autonomia terrena, um religioso desinstltuclona ·
lizado, subjetivado, afetivo.l:8
Essaremobilização da memória é Indissociável de um novo
modo de Identificação coletiva. Nas sociedades tradicionais, a
Identidade religiosa e cultural era vivida como coisa natural,
recebida e intangível, excluindo as escolhas Individuais. Isso
,,
acabou. Napresente situação, a filiação identitária é tudo menos
Instantânea ou dada em definitivo; ela é, Isto sim, um proble-
ma, uma reivindicação, um objeto de apropriação dos Indiví-
duos. Meio de construir-se e dizer o que se é, maneira de afir-
mar -se e fa2er-SA!
reconheC(!r, a filiaçãocomunitária vem acom-
panhada de autodefinlção e autoqucstlonamento. já não se é
mais judeu, muçulmano ou basco ºtal qual se respira": a iden·
tidade própria é questionada, examinada; hoje , é preciso tomar ,
posse daquilo que outrora se tinha naturalmcnte .l9 Antes insU•
tucionalizada, a identidade cultural se tornou aberta e reflexi-
va, uma questão individual suscetível de ser retomada infinita-
mente.
O Impulso das reivindicações partlcularistas nos leva a cor-
rigir o que podem ter de demasiado unilaterais as leicuras que
reduzem a um frenesl de paixões consumistas e competitivas o
hiperindivldualismo.Embora este não possa5er dissociado·da
consagração tanto dos g07..osprivados quanto do mérito indivi-
dual . é forçoso constatar q,ue, ao mesmo tempo, ele se íaz acom -
panhar de uma multipllcaçào das exigências de reconheci-
mento público, de reivindicações de igual respeito às diferentes
culturas. Jánão basta sermos reconhecidos pelo que fazemos na
condição de cidadãos livres e iguais perante os outros: trata -se
de sermos reconhecidos pelo que somos em nossa diferença
comunitária e histórica, pelo que nos distingue dos outros gru-
pos. Éuma prova. entre outras, de que a modernidade do se-
gundo tipo não se esgota no ímpeto sollpsista dos apetites con -
sumistas: na realidade, ela traz uma ampliação do ideal do igual
respeito. de um desejo de hip«·reomhecill1"1tO
que, recusando todas

9.S
as formas de desdém, de depreciação, de inforiorlzação do cu,
exige o reconhecimento do outro como Igual na diferença. É
bem verdade que o reina d o do presente é aquele da satisfação
Imediata das necessidades. mas ele também é o da exigência
moral de reconhecimento estcndJda às Identidades fundadas no
masculino ou feminino, na Inclinação sexual, na memória his-
tórica .
pro,;esso
de hlper·reconheclmento que não deixa de ter liga·
ção com a sociedade do bem -estar individualista de massa. Foi
esta que, nas democrac ias ocidentais, contribuiu para fazer de-
clinar a valorização dos princípios abstratos de cidadania em
beneficio dos pólos de identificação de caráter imediato e par·
ticularlsta. Na sociedade hiperindivlduallsta, investimos emo·
cionalmente naquilo que nos é mais próximo , nos vínculos
fundados sobre a semelhança e a origem em comum ., com os
vaiores universalistas e os grandes ideais polilicos apa.recendo
como princípios demasiado abstratos, demasiado genéricos ou
d lsta.ntes.30 A civilização do presente, ao arruinar as esperança.s
revolucionárias e focar a vida nas felicidades privadas, desenca ·
deou, ·paradoxalmente, u ma vontade de reconhecimento da
especificidade confe rida pelas ralzes coletivas ,
Foi igualmente a cultura do bem -esta r individualista o que,
ao dar importância nova à necessidade de amor-próprio e de
estima pelos outros, tomou inaceitáveis os sof,imentos engen·
drados pêlá$ imagens cole t ivas desdenhosas que os grupos do·
minantes impõem. Na era da felicidade, tudo o que Inculca
uma imagem depreciativa do eu, todas as deneg ações de reco·
nhe cimento, é atacado como ilegítimo, aparecendo como for·
' .\
ma de opressão e de violência simbólica Incompatível com o
Ideal de auto·reallzação plena. Donde a mullipllcação das exl·
gências de ressarcimento por agravos coletivos. as expectativas
de reconhecimento público, as reivindicações cada vez mais fre·
qüentesde um status de vítima.Asvindíclasde reconheclmen•
to particularista são indissociáveis do Ideal democrático moder·
no de dignidade humana - mas foi a civiUzaçàopresenlista que
possibilitou as • políticas do reconhecimento "31como instru· .
mente de amor -próprio; as novas responsabilidades c:om rela:-
ção ao passado; as novas querelas da memória.
A galáx.la contemporânea das Identidades é igual mente a
oportunidade de voltar àS ricas análises da alta mod ·ernldade
propostas por Ulrich Beck. Deacordo com aquele sociólogo ale-
mão, passou -se de uma primei .ra etapa de modernização, fun -
dada na opos ição entre tradição e modernidade, para uma se·
gunda modernização,de nature.za reflexivae autocrítica.Nessa
última fase, é a própria modernização que é considerada um
problema, o qual se refere tanto ao cientismo como aos prlnci·
pios de funcionamento da sociedade industrial. Donde a idéia de
advento de uma modernidade de tipo auto·ref erenclal.32
Esseesquema está correto, mas é preciso ir mais longe . gene·
ralizando. Na realidade, temos de constatar que o segundo cicló
da modernidade não é apenas auto-referencial: ele está marca-
do pela íorte reabilitação de coordenadas trad ic:ionaEs.de exl·
gênciasétnico-religiosasque se apóiamem patrtmõnlossimbó-
licos de longuíssima duração e de origem diversa . Todas as
lembranças, todos os universos de sentido, todos os Imaginários
coletivos que fazem reíerência ao passado são o que pode ser

97
convocado e reutlll zado para a construção de Identidades e a
realização pessoal dos indivíduos. A reflexividade ultramoderna
não se reíerc apenas aos riscos tecnológicos. à racionalida de
cientííica ou à divisão dos papéis sexuais; ela invade todos os re ·
scrvatóriosde sentido.tod.astradiçõesdo Ocidente e do Oriente,
todos os saberes e todas as crenças. aí lncluldas as maJs irraclo ·
nais e as menos ortodoxas - astrologia, reencarnação. paraclén·
elas etc . Oque define a hipermodernídade não é exclusívamen·
te a autocrítica dos saberes e das instituições modernas: é
também a memória revisitada, a remobil ização das·crenças tra·
diclonals. a hibridização Individualista do passado e do presente.
Não mais apenas a desconstrução das tradições, mas o reempre-
go delas sem Imposição instituci onal. o eterno rearranjar delas
conforme o princípio da soberania individual. Sea hlp.:,rmoder·
nidade é metamodemidade. ela se apresenta igualmente com os
tfaços de uma metatradicionaJldade.de uma metarrellgiosida·
de sem fronteiras.

Não faltam ícnõmenos qu:e podem autorizar uma interpretação


relaUvlsta ou nülista do universo hlpermodemo. Dissolução dos
íundamcntos lncontestcs do saber. primado do pragmatismo e
do deus dinheiro, sentimento de igualdade de valor de todas as
opiniões e de todas as cu lturas - são tantos os elementos que
nutrem a idéia de que o ceticismo e a extinção dos ideais supe·
rioresconstituemImportantecaracterísticade nossaê poca.Mas
será que a realidade observável dá mesmo razão a tal p0radigma?
Embora seja Inegável que grande quantidade de reíercnciais
culturais se embaralharam e qu e a dinâmica técnica e mercan ·
. '"
tU organiza segmentos inteiros de nossas sociedades. permane-
ce o fato de que a derrocada do sent.ldo nào chega ao extremo,
pois há sempre um fundo de for.te e amplo consenso sobre os
fundamentos étlco · polftl~os da modernidade liberal. Para além
da • guerra dos deuses· weberiana e do crescente poder da so·
cledade de mercado, afirma-se um núcleo duro de valores com-
partilhados que estabelecem limites estritos ao rolo compressor
do raclocinio opcracionalista. Nem todo o nosso patrimônio
ético-político foi err adicado: permanecem válvulas de escape
axiológicas que nos impedem de endossar a Interpretação radi-
calista do niilismo hlpermodcrno. Disso são teslemuriho. em
especial, os protestos e comp romissos éticos, a nova consagra-
ção dos direitos humanos, que os erige em centro de gravidade
ideológica e em norma organizadora onipresente das ações
co letivas. Não é verdade que o d inh eiro e a eficiência se torna-
ram os princlpios e os flns últimos de todas as relações sociàis.
Do contrário. como entender o valor conferido ao amor. e à aml·
z.ade?Como explicar as reações de Indignação cm face das novas
formas de escravidão e de ba rbárie? De onde vêm as exigê ncias
de moralizar as trocas econômicas, a mídia e a vida política?
Ainda que nossa época seja o palco da pluralidade conOitu~
dos conceitos do bem, ela é, ao mesmo tempo, marcada por
uma reconciliação Inédita com os fundam entos humanistas -
estes nunca antes se beneficiaram de tal legitim idade incontes-
te. Nemtodos osvalores.nem todosos referenciaisde sentido,
foram pelos ares: a hipermo<lernidade não é •sempre mais de-
sempenho insl rumental e, portanlo, sempre menos valo res
que tenham força de obrigação": ela é, isto sim, uma esp iral téc-

99
nico-mercantil que se liga ao reforço unanim!sta do tronco co·
mum dos valores humanistas democráticos.
Ninguém negará que o mundo, do jei(O que anda, prov oca
mais inquie tação do que otimismo desenfreado: alarga -se o
abismo entre Primeiro e Terceiro Mundo; aumentam as desl·
gualdades sociais; as consciências ficam obcecadas pela insegu·
rança de várias naturezas; o mercado globalizado diminui o
poder que as democracias têm de regerem a si mesmas. Mas
será que Isso nos autoriza a diagnosticar um processo de • rcbar·
barização" do mundo, no qual a democracia não é mais que
uma "pseudodemocracia " e um "espetáculo cerimonial"?"
Chegar a tal conclusão seria subestimar o poder de autocrítica
e de autocorreção que continua a existir no universo demoérá ·
tico Uberal.A era presentista está tudo menos íechada, encerra ·
da ,em si mesma, dedicada. a um niilismo exponencial. Dado
que a depreciação dos valores supremos não é sem limites, o
futuro continua em aberto . A hlperrnodernldade democrática
e mercantil ainda não deu seu canto do cisne - ela está apenas
no começo de sua aventura histórica.

NOTAS

Kr,ysztor Pomlan , "Post· ou comment l'appeler?",


LtOébat,6o. 1990.
I Sobre o excesso como figura da ultramodernidade, Marc
Augé, Non-lieux,Paris,Seuil, 1992 INi!o trad. Maria Lücla
·lugare,,
Pereira;Campinas,Paplrus. 200, (, . e<l.)l
:Jean Baudrillard,

100
.. '\

lesS1Ialégies Paris, Grasset,


lã1a/es, 1981 !Aseslnltégiaslãtait trad .
Manuela Parreira; Lisboa. Estampa, 1990]; Paul Ylrlllo, Vitesst
etpolitique.Parts. CaJUée, 19n (Velocidade
e política,trad. Celso M.
Paclornlk; São Paulo, Estação Liberdade, 1~).
l Ulrlch Beck, la,oc/ltédurisque,Paris.
Aubler, 1001.
• Pierre-AndréTaguieff, R~ iSleraubougisme, Paris. Milleet Une
Nults, 1001, p. 11-ssIRtslSllraopara-a-{1Pntlsmo;
Lisboa, Campo da
0
Comunicação, 2001]. lguaJmente, Jean -Pierre LeCoff. la barbiJrle
douce.Paris, LaDécouv crte, 1999. :

I O ciclo que denominei a •segunda revolução Individualista•


é analisado em L'~reduvide. Paris. Callimard, 19S1(A era do vazio.
trad. Miguel Serras Pereira & Ana Luisa Faria: Lisboa., Relógio
0
d Água.1990J. •

' Jean-François Lyotard, l.acoodilionposl1110dern<>.


Paris, Mlnult, 1979
(A coodiçM Rio de Janeiro. José Ülymplo, 1001 (,. ed.)J.
pós-moderna:
1 l 'empÍII!de(éphémêre.
GmesLipovetsky, Paris.Gallimard.19si .
segunda parte IO
Impériocioefémero,trad. Marta Lúcia Machado;
São Paulo, Companhia das Letras, 1989 (1. ed.)I.

a Manuel Castells. la1«iéMenréseaux. Paris, Fayard, 1001


IA
sociedadeemmie; trad. Ronelde Venãnclo Majer:
Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1999 ( •• ed.)I.
t Zakl l.aaictl,Lá,acre dupre,enc.Paris, Flammarion, 1000.
Igualmente. Pierre-André Tagulcff, L'effacement de /'avenlr,
Paris, Calllêe, 1000, p. 96·,01.
10 Citado por Jean Chesneaux, Hablttt/e1emps.
Paris, Bayard,
1996. p. 71.
li Ver Kn.ysztof Pomian, "Lacrise de t'avcnir. LeD.bar,1.
déccmbre 19,SO.

101

O senhoré tidoumpoucocomoumelétronlivrenapaisagem
franasa.e issoexigealgumas
nAolheInteressam
polémicas
exp//~. Tem-sea Jmpres,ão
e dequeo confronto
Intelectual
dequeas
nãoo ajudaa desenvolver
suas
obras.Comoexplicaisso?
Elétron livre?Não sei... M'as. sem.dúvida, essa
impressão está
ligada ao fato de que sou um filósofo •extraviado•. dedlcando·
me à anáUse das realidades socioistóricas; e de que, em face de-
las, a Inquirição continua, apesar de tud o, marcada pel,o espíri·
to filosófico. JáInclassificável na ordem estrita das dlsclpllnas
universitárias, o caso desse tipo de trabalho se agrava ainda mais
ao tomar como objeto de-estudo fenômenos que a mos:oflanão .
costuma ter em muito grande estima: a moda, a cotidianidade,
o luxo . o humor, a public idade, o consumo. Ao dignificar as
sombrasda cavernaplatônica, o "elétron· talvezpareçatomar
uma liberdade um pouco exagerada com relação ao ideal da
d ialétlca ascendente .. .

101

Mas encararei a pergunta ainda de outro ângulo. A situação
socoistórlca na.qual nos encontramos é inédita: a modernidade
não mais t~m inimigos absolutos, ela se reconclllou com seus
princípios e valores de base. Conseqüentemente, os combates
graças aos quais os valores modernos se Impuseram - laicidade,
liberdade. Igualdade, plural.ismo democrático, destradlclonali-
zação - perderam a antiga Intensidade institui dora . Outros
combates, é verdade. assumiram o lugar dos anteriores, mas não
mais produzem um mundo em ruptura . Segue-se que a posi-
ção dos Intelectuais - os quais desempenharam importante
:papel no nascimento da modernidade - não mais pode ser a
·mesma. Hoje, eles panilham dos mesmos valores qu_e ó con·
Junto dos membros da soc,edade; propõem Interpretações di·
ve.rgentes , não outro modelo coletivo. Nessas condições, a ne·
cessl~ade de • engajar-se" é menor : o que Importa é menos
·tomar partldt>para defender isto ou aquilo do que compreender
um pouco melhor• como é que Isso funciona" na própria rea·
]Idade. Claro, é Imperativo problematizar as questões morais,
pensar consigo mesmo a respeito do certo e do errado . dos dl·
:reitos ln<ilvidualse coletivos. do principio de tolerância, dos fun·
damentos da sociedade !Ibera!, da legitimidade das diferentes
desigualdades etc . Mas não menos Imperativo é examinar o
:funcionamento do Estado do bem-estar social, o rumo das coi·
:sase das práticas reais, em especial daquelas que suscitam osjul·
zos mais peremptórios e mais consensuais. Seo conhecimento
do que é não determina o que deveria ser, ele pelo men,os pode
contribuir para, sabendo do que se fala, superar certas polêml·
cas estéreis ejá assentes. Parece-me que , ao propor modelos ln·

108
.. \

terpretatlvos menos estereotlpados, menos maniqueistas, mais


complexos , eu participo . a meu modo, e modestamente, dos
debates que a pólisdemocrátlca exige.
Quanto às polêmicas nas quais me vejo ·embarcado·. devo
dizer que elas freqüentemente me deixar~m decepcionado e
pouco me Ozeram •evoluir", por excesso de caricaturas e até de
má·fé; em especial, foi o caso das crítlcas pouco gentis lançadas
contra OImpériodo elemeroe A len:eltamulher . Muitas vezes, conhe-
cem-se de antemão as objeções, demasiado calcadas em mode:
los rígidos e invariáveis. Em compensação, a mudança social e
histórica é, em grande parte, imprevisível. ~ essa a razão pela
qual o co!Úronto que realmente me interessa, que me provo ·
ca, que •mexe· comigo. é o qÚe surge do choque dos próprios
fatos., d~ complexidade, diversidade e varlabllJdade deles. Mais
amplamente, eu gosto de escrever sobre o que observo, e l)ào
de escrever livros a respeit o de IJvros.

Va/11()$
agoraaoillnerárlo
pessoal
. Quaisforamsuaformaç~o
e suallajelótla
Quemforamseusmeslle$?
ínleleclual?
Fiz meus estudos de mosona na Sorbonne, num clima cultural
e intelectual bem diferente do que predomlna em nossa época
Entre nós, naquele tempo, certo número de estudan.tes tran;.
formava em questão de honra não acompanhar o curso e Jnte-
ressar-se por tudo menos os cu.rrículos unlversltários . Oesplrl·
to fllos6fico vivo estava • em outro lugar •: denunciavam-se os
mandarins, os cursos que cheiravam a naítallna, a miséria da
OlosoOa. E eu lla sem mu.ittapaixão os textos fundadores da Olo-
soOa. Segui meus estudos um pouco como ·artista· livre que

109
d.ecidia ele próprio os autores sobre os quais trabalhar. Lia com
entusiasmo Lévt-Strauss, Saussure, Freud, Marxe os epigonos
deste. O que me animava erainão as grandes questões da meta-
fisica ou da moral, mas a interpretação do mundo moderno.
Assimcomo muitos estudantes dos anos 60,eu eslavaimpreg•
nado de marxismo. Por volta de 1965, fiz parte de um grupelho
esquerdista, o Poder Operário, originário do Socialismo ou Bar-
bárie, que tin ha sido íundado por Leíort e Castoriadis e era em
especial animado por Lyotard, Veja e Souyri. O grupo se procla-
mava marxista-revolucioná r io: denunciava o capitalismo e a
sociedade burocrática tanto 1110bloco ocidental quanto no ori-
ental. Na União Soviética, víamos não um socialismo p,erver-
tido, mas uma nova sociedade de exploração de classes..Con-
seqüentemente, a revolução não mais podia coincidir com a
abolição da propriedade privada dos meios de produção: ela
implicava a êxtinçào da divisão entre dirigente e dirigido, a
autogestão, a democracia dos conselhos operários. Fiquei dois
anos nesse grupo, mas, como eu freqüentemente sala de férias.
questionaram minha militância um pouco hedonista e des-
contraid~ demais! ... A nova era do lazer Já exercia sua influên-
cl.a... O aíastamento se delU sem crise pessoal, sem peso na
consciência, sem nenhum sofrimento. Pairamim, a• vida de ver-
dade · Já estava em outro lugar. A bem dizer, a questão da revo-
lução não me preocupava quase nada, porque eu não acredita-
va realmente nela - procurava sobretudo ferramentas de
análise para compreender o real. E os cursos propostos na
Sorbonne não atendiam a essa expectativa.

1110
. ' \

Ecomoo senhorvi,~uo maiode'8?


Adorei asJornadas daque la primavera, suas lengalengas Infla·
madas e Intermináveis. Pa violência gostei bem menos: dela
não participei. Mas eu nunca tinha acreditado numa verdadeira
possibilidade revolucionária - nem por um momento me pare·
ceu que as mentalidades estivessem perto do ideal do tempo
revolucionário. Ademais, eu tinha esta Idéia marxista de • nada
de revolução sem partido :revolucionário·, e em maio tal orga '.
nizaçâo não se achava em 'lugar algum. Eujá não compreendia
multo o sentido do que estava em jogo. Paradoxalmente , isso só
ficou um pouco mais claro depois, quando me debrucei sobre a
questão do Individualismo. d~ transformações na cu! tura, nos
valores e nos modos de vida. Na época, vivi aquelas jornadas
com prazer ·estético• ou Eúdlco e com consciência pouco poli·
tlca. Por fim. o mais Importante se deu nos anos$eguintes. com
â emancipaçãodôs tostumes. :,s éO'i'lse('jüênci:.s do Maio de 68
na vida a dois, na milltãnc ia. na relação com a política. Todos os
anos 10 são marcados pela cultura ou ·estilo· 68 e por seu Ideal
libertário , de Intensificação da vida social. Foi nesse contexto
que, não sem muita alegria. li Nietzsche, Deleuze. Henry Miller.

Ecomoemluiua relaçãocomo marxismo?


Nunca fui comunista , trotskista nem maoista. Eu me situava
era na senda traçado por Castoriadis. Nos anos 70, os textos de
Lyotarde de Baudrillard me marcaram muito: quer de uma
perspectiva radical. quer de uma perspectiva vanguardista. eles
possibilitavam sacudir um marxismo •anônimo·, althusserla·
no, de pretensão estrutur.al e científica. bem longe das realida·

Ili
des do cotidiano . Aquelas análises do desejo e do gozo, do con·
sumo e da mídia, tinham o mérito de subverter os domínios
teóricos separados, de rev:itallzar a crítica da economi-a pollllca
ou libidínosa, de abrir um além-do-político ao compor como
que odes a uma revoluç .ào transpolítica. Desde essa época ,
Julgo que o existencial. os modos de vida, o frivolo dev em ser
levados em conta , e não ser de imediato considerados a • falsa
consciência· . Issoporqu e logo me Incomodei com a noção de
alienação: ela veiculava em demasia a idéia de que as pessoas
eram mistificadas, passivas, manipuladas, hipnotizadas -
Debord - , Incapazes de dis.tanciamento crillco. de compreensão
do que lhes acontecia. Em A erado vazio,procurei mostrar que as
coisas eram mais complexas, que a lóglca sedutora da mercado·
ria era um poder não só para o logro e a espoliação. mas tam ·
bém para a emancipação do individuo. Meu descontentamento
com a análise marxiSta se explica ainda por minhas leituras da
época - Tocquevillc, Marcel Gauchet, Louis Dumont, Daniel
Bel!.Nelas encontrei esquemas analíticos e ferramentas con ·
ceituaiS fl!ndamentaiS, Insubstituíveis, que devolviam um papel
de fato produtivo às "idéias" na história: o Individuo, ·a revolu·
çã.o dcmocrática, ..os direitos humanos, tudo lsso,Já não eram
maís a superestrutura, simples •reflexo· da economia. Essas
problemátlcas me deram ma ior liberdade para entender a socle·
dade nova, na qual se ob.servava um Impulso de autonomia
Individual, uma sujeição menor aos enquadramentos coletivos.
Minhas anállses sobre o il1divldualismo democrático - e não
burguês no sentido marxista - surgiram de um cruzamento de
observações. entre a revolução dos modos de vida contemporã ·

112
neos, a rápida expansão tanto da sociedade de consumo-comu-
nicação quanto do liberalismo cultural, a soclologEaamericana
e as análises neotocquevillianas.

Ée,uãoquedl!$fJQ!!Cª
cmWi! 91,rn• noç~o
tk pw-m«temidi!de
•••
Na realidade, eu retomei essa noção, mas de maneira muito
pragmática, nada teór[ca, nem menos ainda fllosóílca, simples-
mente como uma íer:ramenta que possibilitava marcar umá
ruptura, um agsiornamtlntohistórico do runclonam .ento das so-
ciedades modernas. Lyotard definia o pós-moderno como a
crise dos íundamentos e o declínio dos grandes sistemas de le-
gitimação. Issoera verdade , d .aro, mas não de todo, pois as de-
mocracias se rundamentavam especialmente num consenso
muito forte em torno das bases principais delas. Em seguida,
era preciso mostrar que havia não apenas ceticismo, incredu-
lidade, perda de íé, mas também novas balizas, novos referen-
ciais e modos de vida. Em minha mente, o pós-moderno Im-
plicava descontinuidade e continuidade, um estágio decerto
pós-revolucionário, p,ós·disciplinar, pós-autorltá .rio. mas ele
também se Inseria ent r e os corolários da lógica laica democrá·
tica e individualista - donde a idéia de • segunda revolução lndi·
vidualista •.

Emqueo= deA era do vazio mudou suavida?


Recordo que, com os primeiros direitos autorais . eu me pre-
senteei com uma prancha de windsurf e! Não era exatamente
uma mudança de vida à Rlmbaud ... Teceram -se novos laços
intelect\Jals, que às vezes se transformaram em amizades fiéis.

li}
Eu era cada vez mais solicitado pela mídia para analisar as rea·
lidades do mundo contemporãneo. Sobretudo após OImpério
doefemcro,mulliplicaram ·se os convites para dar conferências,
na França e um pouco por toda a parte no exterior, tanto nas
universidades como nas empresas. Aliás.foi áÍ que Uve ocasião
de me interessar por questões novas, como o ltL~Oou a ética
comercial - questões para as quais minha formação inicial não
me preparava. Daiem diante , o •vazio" contribuiu para preen·
cher bastante os meus dias e multiplicar os meus contatos com
o mundo . Ete·me possibilitou abraçar mais a vida em sua plenl ·
tudc!

Oamoraosfatoslevao senhora privilegiar e,nl'l'2 do oormau,-.


o descritivo e
a nãoproporumanovaoonnati.açâo. quandose trota
Porqueesserelroimcnto
de exa1111nar
assoluçõespossíve.ls?
Como cidadão. posso engajar-me e tomar partido, mas não
quero misturar as coisas. Em meu trabalho, o que me Interessa
é compreender as lógicas em ação na história e na modernida·
de, e nãojulgá ·las. Ademais.Julgar é um empreend imento que
às vezes traz problemas. Quanto à questão do luxo, por exem·
pio, que abordo em le luxeéteme/, teria sido fácil cair na conde·
nação ou na apologia. Mas,quando se aceita o esquema propos ·
to , mostrando que o luxo não se redui ao supérnuo e é
consubstancia l à história da espécie humana. a questào do nof"
•. Seraque vamoscondenaras mile-
mativologose torna "vaz:ia
nares oferendas aos deuses e a construção de templos suntuo·
t
sos? Seria absurdo. inútll querer Julgar o que é constitutivo do
humano -social.

IH
.. \

a his/6riadoluxo,
Tudobem,masseráqueo.losepodefazerumjuf2onãoS()bre
e simS()bre
o luxohoje?
Claro, isso é Inteirame nt e.possível. mas a situação é menos evl·
dente do que se Imagina. De um lado, não há nenhuma dúvida
de que o luxo tem algo de afrontoso. Mas, de outro lado, quem
desejaria para valer uma sociedade unicamente funcional, sem
sonho, sem desperdício, sem mitologias prestigiosas, sem formas
superlativas? Seráque não é legitimo ansiar pelas coisas mais
belas?Caso se diga que o luxo é "mau·, onde se determinará qi,e
ele começa ou termina? A velha pergunta'. .onde começa o
supérfluo? Quando principia o inaceitável? E o que é uma neces·
sidade "verdadeira "? Não seráa arte uma forma de luxo? Em
caso afirmativo, fazer o quê? Af,entra·se num tipo de reflexão
cm que os argumentos não convencem, em que eles mais raclo·
nalizam reações emocionais do que expressam uma verdadeira
evolução do saber. Êsse trabalho eu delxo para outros. Ele não
me interessa em nada. Sobretudo. creio que não existe possibili·
dade de dar resposta clara e fundamentada àquelas perguntas.

ComrelaçAoâ moda,o senhortambémachaqueosju(ZIJS sãoc,;a perempt6rios


quantoo sãonoreferente
aoluxo?
Claro! Não param de denunciar a macaquice das coqueluches de
massa, a superficialidade da TV.a insignificância do consumo -
às vezes, não sem algumas razões excelentes. Entretanto, a
moda tal qual a analisei em Oill!périodo efêmeropossibilita uma
abordagem menos maniqueísta do fenômeno . Issoporque aso·
ciedade·moda (aquela do consumo, da mídia. da publicidade, do
"tudo é descartável") é também a que fez retrocederem os fana·

lll
tismos sangrentos, reforçou a legitimidade do pluralismo
democrático, proporcionou maior liberdade à opinião pública
e aos eleitores. Ainda que seus múltiplos e negativos deíeitos se-
jam reais, seus beneficios estão multo longe de ser nulos. Eu
simplesmente quis mostrar que a forma-moda não era sinôni -
mo de ·barbárie •, de ruína do pensamento e da liberdade. A
questão merece exame mais atento ejuízos mais contrastados
do que esses que freqüentemente os ·profissionais· da concel-
tualização e outros minuciosos hermeneutas dos grandes tex·
tos canônicos nos oferecem .

Ao relerA era do vazio, tenr·sea imptes>ãodequejá se haviamestabeleci·


doosgrandesconceitosqueanimamsuasobras:o processo ,a
deperso,nalização
destruição coleUvasdesentido,a valorização
dasestruturas dohedonismo, a re-
voluçã~do=mo. as tensõesparadoxais noseiodasociedade civ:1/
e dospr6-
alm~Md~ daseduçãocomomododefl'8Ulaçlio
priasIndivíduos. social.apa·
clficaçãodo campopoiília, e o apegomaisprofundoaosvaloresessenciaisda
democracia.Entretanto,
nãoestamosmaisnumcontexto p65-modemo. Assim.o
quemudouestruturalmente
desde198], anodapublicação
daquele seu primeiro
livro? •
Mudaram muitas· coisas": hou ~e a rápida expansão da globali·
zação e da sociedade de mercado. a consagração dos direitos
humanos. as novas pobre:zase novas exclusões, a precarização
do trabalho, o aumento dos medos e angústias de todo tipo, o
estabelecimento da Frente Nacional na paisagem política fran•
cesa. Mas também o fim do sistema Internacional dominado
pelo antagonismo leste·ooste. a explosão de conflitos e guerras
"identitárias". Muitas dessas mudanças pod em ir de encontro à

116
' '
Idéia que eu desenvolvia então, qual seja. à do advento de uma
sociedade· descontraída· e de um Individuo coo/.Em "Tempo
contra tempo·, eu me dedico Justamente a radiografar certos
aspectos desse novo contexto. Quer dizer então que nada so-
brou da revolução do novo individualismo?Claro que não:
sobrou multo . Embora o hedonismo não seja mais tão j ubiloso ,
o fato é que ele rege todo um conjunto de práticas de massa.
A autonomia Individual aparece cada vez mais nitidamente
como norma imposta pelas organizações, mas busca-se também
a vida alternativa , a vida aoorta a escolhas, até em esquema de
self-service. Reforçam-se as limitações da vida profissional, mas
também a volatilidade dos ,ele!tores, dos casais, dos consum ido-
res, dos crentes. Osucesso da Frente Nacional contradiz a idéia
de um individualismo aberto e tolerante, mas, de outro lado, o
fenômeno ilustra à sua manei .ra a tese da consolidação demo-
crálicaacarretadapela sociedade-modaIndividualista . Ae11tre-
ma esquerda não tomou o poder. mas a sociedade como um
todo não derivou para a xenofobia e o naciona lismo; a direita
que governa não compactuou com LePen. A dinâmica da indi·
vldualização fez que a democracia permanecesse sólida, apega-
da a seus princípios humanistas e pluralistas.

Oambie,1temudou , masnemporIssoo individuohlpennodemo,


hedonistaou
é nlillsta.As obrigaçõesnãomaissãoIncondicionais,
apreensivo, a moralnão
n•~ f autoritária,
o eng~amento
niiomaisé absoluto,
e mesmoassimnão esla-
mosnumasociedade
desprovida Gamoo senhorexplicaisso?
rk valores.
Tanto Tocqueville quanto Du rkheim salientaram bem : uma so-
ciedade não se limita à produção material e às trocas econômi-
cas. Ela não pode existir sem concepções Ideais. Estas são não
um "luxo" que ela possa dispensar. mas a própria condição
para a existência coletiva, ,o que possibilita aos individuos ligar·
se uns aos outros, ter objetivos em comum. agir em conjunto.
Sem sistema de valores. nada de corpo social capaz de repro ·
duzlr·se. A sociedade hipermode rna não escapa a essa lel. A
derrocada dos grandes messianismos polltlcos, longe de ter
provocado a aniquilação de todos os valores. permiti u que as
democracias se reconciliassem com seus princípios morais básl·
cos: os cllreltos humanos. Deum lado. o individualismo faz re·
du:tlr·se a força das obrigações morais; de outro. contribui para
dar- lhes nova prioridade-. O respeito à pessoahumana podia
parecer secundário quando comparado à revolução, à luta de
dasses, à nação ou ainda à raça. Não é mais o caso. É preciso
desfazer-se da lengalenga de um universo niilista, anárquico.
livre de todo senso moram.de toda crença no bem e no mal: a
decadência dos valores é · um mito, aliás sem absolutamente
nada de novo . Ao que se acresce, em outro plano, o fato de
que a dln~lca do Individualismo reforça a tendênc ia à lden·
tiflcação com o outro. Sobre Isso, Tocquevllle falava de uma
•compaixão generalizada por todos os membros da espécie
humana•. Sob efeito do Imaginário da igualdade e do cu lto ao
bem-estar, os Indivíduos ficam mais • tacados pelo espetácu·
lo dos sofrimentos do outro - o que subjaz às diversas reações
de indignação . à rápida expansão da moral sentlmenual expio·
rada pela midla, às novas formas de altruísmo e de generos ida·
de que. por não mais serem "obrigatórias". nem por isso são
menos reais.

118
' ....
/ndiViduos cadavezmaispnlximosunsdosoulros,umaIgualdade ,quese con·
cretiZae diferençaJontológicasqueperduram , especialmcnle
ent.re homense
mulheres . .• Mesmoqueo processo lgualiláriolenhaconstguidolevara uma
androginia cadavezmaisdestacada,obsetva·sequea diferenciaçãosexualper·
man«e.comose exist.issemesmoumeternofeminino. Sabe-sequeasfemlnls·
tasalribvem1a/mnanescéncia a umaherançaarr:a/ca,fadadaa <ksaparear.
Mas.emboraissopossaparecer plausfre/,miocon,~nceo senhor.Porquê?
Háduas razões que me parecem fundamentais. Em primeiro
lugar, o que se perpetua :não mais exclui o princípio de auto·
nomia individual das mulheres. Nem todos os códigos sociais
herdados do passado perduraram: a virgindade ou mesmo o
Ideal da dona-de-casa vieram abaixo, e Isso apesar da força
social que tinham antes. Sepelo contrário se mantêm ou.tras
normas e papéis, é porque eles são agora compatív eis com o
princípio de autonomia pessoal. Mediante issO, a nova perma·
nênéia dõ férni.liir\õ surg,e í'lào como mera • remane-scéncla••
mas como reinvenção da tradição pelas próprias mu lheres.
uma reciclagem do passado na ordem livre da modernidade
individualista. A beleza, por exemplo, continua sendo uma
norma destinada prioritariamente às mulheres, mas issO não
mais as impede de estudar; trabalhar. assumir responsabilida·
des polít.icas. ~ a mesma coisa com o lugar sempre p:réponde·
rante das mulheres no espaço doméstico. Sem dúvida, elas
freqüentemente se queixam da ·ausência· ou • omi:ssão• dos
maridos- mas o fatoé que, embora aquelafunçllotradicional •
permaneça, não é mais s.inônlmo de confinamento domésti·
co nem de negação do direito de dispor livremente de suas
vidas.

119
A segunda razão, tão importante quanto a primeira: não acre-
d ito que uma sociedade possa não traduzir simbolicamente a
diferença sexual. Como imaginar que os seres humanos não
dêem nenhum sentido social a essa diferença? Parece-me que, aí,
há como que um Imperativo antropológico e cognitivo. Tome ·
mos um exemplo trivial. Nos anos 6o, as Feministasradicais quei-
mavam seus sutiãs, que aos.olhos delas eram símbolo da mulher
meramente decorativa. O que acontece hoje? A lingerie nunca
foi tão erotlzada . Como compreender tal Fenômeno? Seráque se
trata de uma regressão? Penso que não. Com a feminização da
instrução e do emprego, a ,desestabilização dos papéis e a ascen-
são das mulheres aos cargos de responsabilidade que antes eram
atributo do masculino, cresce a necessidade de reafirmar a iden-
tidade Feminina mediante símbolos• superficiais", mas explicitos.
À medida que se reduzem as grandes divisões entre masculino e
feminino, aflrma-se a necessidade imperiosa de que se constitua
algo co.mo um universo da diferença sexual. Posso lhe garantir
que a era da igualdade não leva à confluência dos sexos. à indife-
renciação andrógina dos papéis do masculino e do Feminino.

FalemosdeSétJtrabaJhoa1u.,J,
quelmnra questõessobrenossa pmentesitUilfào
aun ~ em elementos dean.illseModiversas
quanCDo luxo,o cultoaopresente
oua nrerca,11i/1Zação
domundona era dó=mo emocional. Nesses 1/êscasos,
opera-se
ummesmoprocesso, va/or/Zandoo oodonismoe ascmoçxles, umavalori-
zaçãoque~ explicapclaigualiZaçM. pelaind/vlduali.zação
e ptla ~itWilutló-
nalizaÇâo a 1em10.
levadas Traduz-seassimumaoovarelaçãocomosobjetos.com
osoutrose como eu,a qualo consumotalvezpossibilitecolocarbememeviden-
cia.Osenhorpoderiafalarsobreisso?

120
. \

O que denomino a sociedade do hiperconsumo é aquela que vé


erodir em -se os antigos enquadramentos de classe e surgir um
consumidor volátil, fragmentado, que não está submetido are-
gulação. Ao mesmo tempo, assiste-se à rápida expansão de um
consumo multo mals experiencial ou emocional do que ligado
ao status . Consome-se multo mais para satisfazer o eu (saúde,
repouso, boa forma, sensações, viagens) do que para ganhar o
reconhecimento de out r em . Veja os grandes segmentos de con º
sumo que estão em desenvolvimento, como o da saúde. DeseJo
bom prove ito àqueles que querem explicar o sobreconsumo
m édico com base no modelo do status! Claro, permanecem as
lógicas da honraria, mas elas são apenas parte de um conjunto
muito mais amplo e não· poder iam ser a ra:ião definitiva da esca-
lada consumista. Hoje, o que se busca no consumo é, antes de
tudo, uma sensação viva, um gozo emotivo, que se liga menos
às exigências do padrão de vida que à própria experiência do pra·
zer da novidade. Por meio das •coisas·, é afinal uma nova rela·
ção com a existência pessoal o que se exprime. tudo :sepassando
como se houvesse o medo de apagar-se, de desaparecer gradual·
mente, de não mais sentir sensações sempre novas. fica -se ater ·
rorlzado pelo tédio da repetição, pelo •envelhecimento • da vida
interior. Comprar é sent Jr o gozo . é adquirir uma pequena revi·
vescência no cotidiano subjetivo. Talvez esteja ai o sentido deO·
nitlvo dá engrenagem hiperconsumlsta.

Hipetronsumismo emocional, ouseja,umconsumo quesepensanãomaiscom


basenumconfronto simbólicotendoem vistaumadisl/nção
social,e simcomo
possibilidade nol§JZOe nãonador.A modernidade
de IJ'a/lSWlder·se estánofim

121

desuatrajer6rla, deixando-nosàs ~Ir.ascoma figuraidealdohomemnwdemo,
livree IgualaQS outros- a figuradohipercORSUmidor.Seráquea hipermoder-
nldadenosrondtnaã mercanti/Jzação domundo? Edequaisameaçaselase faz
acompa.noor?
Oque ainda caracteriza o hlperconsumo, ou consumo-mundo,
é o fato de que até o não·econõmico - família, religião. sindica·
!Ismo, escola, procriação, ética - é permeado pela mentalidade
do homoconsumeticus. Todavia, esse cosmo não significa a elimina·
çào dos valores não-comerciais, dos sentimentos, do altrulsmo.
Quanto mais se Impõe a mercantlllzação da vida, mais celebra·
mos os direitos do homem. Ao mesmo tempo, o voluntariado,
o amor e a amizade são valores que se perpetuam e até se refor-
çam. Ainda que se generalizem as trocas pagas, nossa h umanl ·
dade afetiva, sentimental, empática, não está ameaçada. A Idéia
é antiga: Marx diZia que a burg uesia havia substituído pelo d!·
nheiro todas 'as velhas relações sentimentais, e issOno momen-
to mesmo em que se assistia à Idealizaçãoda familia e ao apogeu
do romantismo amoroso. Na realidade, a mod erna consagração
da mercadoria seguiu de mãos dadas com o desenvolvimento da
intimidade, com o casamento por amor e com o Investimento
afetivo nos filhos.
Osperigos estão em outra parte . Em especial, testemunha-se
uma preocupante fraglliza-çãoe desesta~ilização emoc'lonal dos
lndlviduos. O hlperconsumo desmantelou todas as íormas de
socialização que antes forne .clam referenciais a eles. Durkhelm
Jásalientava: se ocorre uma epidemia de suicídios, não é porque
a sociedade se torna mais severa, e sim porque os lndivlduos
ficam entregues a si mesmos e, por isso, menos equipados para

Ili
.\

suportar as desventuras da existência. Hoje, se os Indivíduos


estão cada vez mais frág,els, é menos porque o culto ao desem·
penho os destrói do que porque as grandes lnstituiçõ,es sociais
não mais lhes fornecem uma sólida armadura estruturante.
Donde a espiral de distúrbios pslco~omátícot, depressões e
outras ansiedades, que são a outra face da sociedade da fellclda·
de. Se tal constatação é -correta, Isso quer dizer que a busca da
felicidade que os modernos t12eram avançar está multo lon~e
de ter-se consumado. O bem-estar material aumenta, o consu-
mo dispara, mas a alegria de viver não segue no mesmo ritmo,
pois o individuo hipermoderno perde em descontração o que
ganha em rapidez operacional, em conforto, em extensão do
tempo de vida.

Ea queé feirodafi/OS()fla
nesse Comopoderaeladesem·
mundohipermooemo?
penhar~ papeldedíscuno rnclona/ delndlvfdu~maisprope11SOS
emfaCI! à
queà reflexão?
emolividade
Em primeiro lugar, lembrarei que a hlpermodernldade não se.
reduz ao consumismo, ao entretenimento nem ao zappl1lg gene-
rallzados. Na realidade, ela não aboliu a vontade de superar-se,
de criar, de Inventar, de procurar, de desafiar as diflc::uldadesda
vida e do pensamento. Mesmo no turboconsumldor contem·
porãneo, a • vontade de poder" não pára de atuar. Por Isso, a li-
losolia como disciplina da razão e da busca da verdade não está
ameaçada.Não há nenhum motivo para que desapareçamos
homens com ambição de elevar-se acima dos preconceitos e
lançar-se aos dil'iceis caminhos da fruição do mundo pelo en -
tendimento. Mas tampouco há motivos para crer que tal atitu -

12}
de possademocratizar-se e conquistar as multidões. Em com-
pensação, o que tem chances de difundir-se é um cons u mo
maciço de certas obras, quer de Introdução às filosofias, quer de
"meditações" de tipo eudemonístico . Numa épocade self-servi-
ce individualista, Sêneca e Montalgne surgem no campo do con-
sumo ao lado do Prozac. com todo um público procurando na
filosofia das consolações as receitas empíricas, imed iafas, para a
felicidade. Desejo boa so:rte ao hlpercons umldo r, mas para mim
é dlflcUdeixar de expressar o máximo ceticismo, pois esse gêne-
rode leitura produz tudo menos o efeito ~perado: a filosofia
não é o caminho suave para a felicidade. É verdade q u e a leitu -
ra das grandes obras pode maravilhar, arrebatar, proporcionar
prazeres localizados; não se trata de algo Insignificante, mas é
pouco para aproximar -se da vida venturosa. Quem Já meditou
os grandes mestres não está mais bem equipado que ninguém
para viver feÍlz, pois nenhum filósofo nos protege contra a ex-
periência da tristeza. do desespero, da dor ou do medo. Nesse
aspecto, reconheço -me hegeliano: a mosona tem por tarefa pro-
porciona~ uma Inteligibilidade do real, e nada mais; seu papel é
trazer um pouco de luz, e não as chaves da felicidade, as quais
obviamente ninguém possu i.
Outro ponto: a lmpo:rtãncia da filosofiana história das Idéias,
da cultura. da racionalidade, da modernidade, não precisa mais
ser demonstrada . Ela concebeu as grandes Interrogações meta-
fülcas, a Idéia de uma humanidade cosmopolita, o valor da in-
dividualidade e da liberd ade; durante séculos, alimentou o tra -
balho dos artistas, dos poetas e dos escritores; contribuiu para
estabelecer os princípios do universo democrático: ambicionou
mudar o mundo social , polltlco e econômico. Hoje, essa força
milenar está esgotada. Não faltam obras de qualidade, é verda-
de, mas elas não conseguem mais Insinuar-se na reflexão dos
artistas e dos literatos , exceção feita aos próprios filósofos • pro-
fissionais·. Sinal dos tempos ; nào há mais "Ismos". nào há mais
t
grandes escolas ntosóflcas. forçoso reconhecer que o papel his-
tórico -"promet élco" da .ntosofiajá ficou para trás. Daqui para a
frente , são as ciências e a, tecnociência que abrem mais perspec-
tivas. qu e inventam o futuro, que mudam o presente ea vida,
que Inspiram os criadores. A Renascença inteira se nutriu das
sabedorias antigas; e. mesmo em pleno século XVIII , o estoicis-
mo, o epicurismo , o pirronlsmo exerciam grande influência
sobre as mentes. Não tenho a sensação de que o qu e estamos
criando em matéria de fllosofla possa conhe cer destino seme-
lhante. A ntosofia pode até estar na moda - mas não se voltará
ao statuqU!!ªnlc, e nada deterá o processo de redução da influên -
cia dela sobre a vida cu ltu ral. De um lado, uma democratização
do acesso às obras Importan tes; de .outro. um espaço lllosóflco
que cada vez mais se concentra na Instituição universitária . De
um lado. obras lidas por um núm ero multo pequeno de erudi-
tos, ou por ninguém; de outro , imensos sucessos editoriais cuja
Influência é cada vez mais "consum .ivel", breve e epidérmica,
pois a filosofia não mais escapa à primazia da lógica do efêmero.
Esses poucos cenários do porv ir filosófico em época hlpermo -
dema não são nem dramáticos, nem entusiasm<1m~ .

125
\

BIBLIOGRAFIA
DE GILLESLIPOVETSl<Y

LIVROS
L 'eredu vide:essaissurJ'individualisme
contemporain,
Paris, Gallimard,
1983 [A era do vazio,trad. Miguel Serras Pereira & Ana Luísa
Faria; Lisboa, Relógio D'Agua, 1990].
L 'empirede J'éphémêre:
la modeet sondestindanslessociétésmodemes,
Paris, Gallimard, 1987 [ Oimpériodoefêmero,trad. Maria Lúcia
Machado; São Paulo, Companhia das Letras, 1989 (2. ed.)].
Le crépusculedu devoir:J'éthiqueindoloredesnouveauxtempsdémocratiques,
Paris, Gallimard, 1992. [Ocrepúsculo dodever,trad . Fátima Gaspar;
Lisboa, Dom Quixote, 1994].
La troisiêmefemme:permanenceet révolution
du féminin,Paris,
Gallimard, 1997 [A terceiramulher,trad. Maria Lúcia Machado;
São Paulo, Companhia das Letras, 2000].
Métamorphoses
de la culturelibérale:éthique, médias,entreprise,
Montréal, Liber, 2002 [Metamorfoses da culturaliberal,trad. Juremir
Machado da Silva; Porto Alegre, Sulina, 2004] . .
Le luxeétemel:de l'âgedu sacréaux tempsdesmarques(em colaboração
com Elyette Roux), Paris, Gallimard, 2003 .

ARTIGOS
Os artigos também publicados em livros de Lipovetsky estão
indicados por um asterisco.
"Travail, désir". Critique,314, 1973.
"Fragments énergétiques à propos du capitalisme",
Critique,335, 1975.

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