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OS TEMPOS HIPERMODERNOS
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SUMÁRIO
7 Prefácio
n Oindividualismo paradoxal:
Introdução ao pensamento de GUies l.ipovetsky
Séba.st~en Cbatlt$
7
tes, nem o esquema catastroflsta do reino que advém apenas da
• razão inStrumental". ou seja. de uma racionalidade para a qual
existem não mais fins. e sim apenas meios.
Asegunda revolução moderna (ou hipermoderna). que se
Instaura diante de nossos olhos, não é de maneira alguma si-
nônimo de extinção dos fins. Ela tampouco signillca a vitória
definitiva do materialismo e do cinismo. pois se assiste, pelo con-
trário, ao reinvestimento afetivo em certo número de senti-
me ntos e valores tradicionais: o gosto pela sociabilidade, o volun-
tariado, a Indignação moral. a valorização do amor. São tantos
sentimentos e valores que não apenas se perpetuam, mas que,
conforme o caso, também se reforçam num aprofundamento
humanista do individualismo. Desse ponto de vlsua, poderia
parecer que a Interpretação de Cilles Lipovetsky se aproxima do
p'rimeiro. modelo "otimista". não fosse a diferença fundamental
de que de modo algum e la se funda num m ecanismo invlsivel e
providencial; antes, empenha-se em descrever os fenômenos de
reconstituição e "reciclagem· na sutileza dos detalhes. Ai, não
há nenhuma aposta mettafísica, e sim uma exposição dos fenô-
menos que admite demonstração e refutação (coisa que n em o
primeiro ne m o segundo modelo podem pretender) .
É por tal razão que essa leitura mais complexa e menos uni-
voca não desemboca numa visão idilica de nosso presente. Este
é e continua paradoxal, tanto para os participantes quanto pa-
ra os Intérpretes: e mbora o hlperconsumo pareça compatível
com os valores do huma:nismo, ele certamente não é a panacéia
que garantirá a fellcldad.e humana. O Individuo hipercontem-
poràneo, mais autônomo. é também mais frágil que nunca. na
8
' .\
medida em que as obrigações e as exigências que o definem sao
m.~l, vastas e mais pesadas. A liberdade, o conforto, a qualidade
ta expectativa de vida não eliminam o trágico da existência;
rl<'lo contrário, tomam mais cruel a contradição.
Neste livro, escrito em colaboração com Sébastlen Charlcs,
llpovctsky fala de sua trajetória Intelectual e das diferentes eta·
pus c;lc seu trabalho; mas oferece também uma contrlbulçao
fundamental para sua própria Interpretação da ·segunda revo·
luçào moderna· , dedicando-se pela primeira vez a descrever os
traços mais característicos daquilo que, para melhor oo pior, a
•hlpermodernidade·nos reserva.
Esta obra é a continuação de várias sessões que o College de
Phllosophle consagrou ao lrabal h o de CUlcs lipovetsky. Sébas·
Ucn Charlcs. professor de ntosona na Universidade de Sher·
11rookc {Canadá). proporc!onou a direção Intelectual.
I)
ca, o mais negativo se inscrevia ontologicamente nos aros da
roda da fortuna, e seu advento era pensado na categoria do ine-
vitável. No mundo cristão. o Pecado Orlglnal .e o juizo Final
eram os dois faróis que Iluminavam um presente transitório e
tido como desprovido de essência. Êcom a modernidade que
ocorre a ruptura, não para reinserir o presente no c~rne das
preocupações de todos, mas para inverter a ordem da tempora·
lldade e fazer do futuro, e não mais do passado, o Jocus da felici·
dade vindoura e do fim dos sofrimentos. Essa ruptura essencial
na história da humanidade se traduz na Jor'ma de um discurso
radicalmente oposto àquele da decadência, exaltando dessa vez
ás conquistas da ciência e apontando as condições de um pro·
gresso Ilimitado do qual deveriamos ser os herdeiros. A razão
poderia reinar sobre o mundo e criar as co.ndições para a paz. a
eqüidade e a justiça.
Esse otimismo, que caracteriza especiAcamente a filosofia
das Luzes e o clentlsmo do século XIX. não ê ma.ls corrente. Na
seqüência das catástrofes que o sêculo XX presenciou, a razão
perde,u toda dimensão positiva, para ser. combatida como lns·
trumento de dominação contábil e burocrática, e nossa rela_ç ão
com o tempo, e mais especialmente com o porvir, está dora·
vante marcada por essa c'rltlca. alnda que perdurem,, em nega·
tivo, restos do otimismo passado, sobretudo no plano têcnico·
científico. Tendo o passado e o futuro sido desacreditados, exls·
te a tendência a pensar que o presente se tornou a referência
essencial dos indivíduos nas democracias, pois esses últimos
romperam definitivamente com as tradições que a modernida·
de varreu e se desviaram daqueles amanhãs que nem chegaram
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I!
Da modernidade à pós-modernidade:
o abandono do universo disciplinar
I •
16: '
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(lllltlcrnidade não era r.e dutivel t.'io-somente ao esquema disci-
1JIIt1ar se nos dávamos ao trabalho de encará-la pelo domínio
til) cftlmero por excelência, a moda. Tratava-se então não só de
romper com a leitura foucauldlana (mostrando que a moda, ao
lnr possibilitado que se escapasse do mundo da tradição e da
loo......!'I'ICI>ràçi)o do presente social, desempenhara importante papel
aquisição da autonomia), mas também de distanciar-se da
~t\!liCU das. distinções sociais própria de Bourdieu (mostrando
n moda podia.ser pensada fora do esquema da !uta de elaS-
c da rivalidade hierárquica).
R~tá bem, o surgimento da moda é indissociável da compe-
tll<:4o de classes entre uma ·aristocracia preocupada com a mag·
fnt0d)ncia e uma burguesia ávida de imitá· la. Mas isso não esgo-
_ ..... o fenômeno, nem indica por que a aristocracia foi. levada a
11\Vestlr na ordem da aparência de modo que a o rdem impvel
olt~ lradlção se viu destituída em favor da esplrallntermJnáliel da
Imaginação. Épreciso ver nisso a consideração de. novos refe-
re-nciais; de novas finalidades, e não uma simples dialética so-
e lnl. uma confrontação entre status. O problema das teorias da
cii,Unçlio,.como a de Bourdieu, é que elas não explicam por que
M lutas de competição de prestígio entre os grupos sociais do-
rlllnantes, tão antlgas quanto as primeiras sociedades humimàs,
puderam estar na origem de um processo absolutamente mo·
cl<•rno, sem nenhum precedente histórico: nem como pude·
r.~~ surgir na ordem da aparência o motor da inovação perma-
llénte e a autonomia pessoal. Portanto as rivalidades de classe
nOo podem ser o principio explicativo das variações lnc:essantes
dn moda.
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A explicação que se Impõe é a que consiste em dizer que
..
De fato, '!lO valortzar a renovação das formas e a lnconstãncia
da aparência, no Início essencialmente no plano indumentária
do reduzido círculo dos aristocratas e (depois) dos burgueses; a
moda possibilitou a desqualificaçãó do passado e a valorização
do novo; a afirmação do Individuai sobre o coletivo. graças à
subjetlvação do gosto; o reinado do efêmero sistemático. Com-
preende-se então que, na-economia da llberdade individual. a
frivolidade da moda jogue de Igual para Igual com o culto da
gravidade e da seriedade modernas, limitando-se assim a confir-
mar uma mesma tendência à autonomia:
18
'
lllll•n<Jw das tarefas pro<luU"llS, eles anrmam, por melo do eará-
t•r ~f~mero da moda, o poder de lnldatlva que tem sobre a apa-
ofncl.'l. Nos dois casos. aRrmam-se a soberania e a autonomia
humanas que se exercem tanto $Obre o mundo natural quanto
wlbre o âmbito estéllro. Proteu c Prometeu tem a mesma ortgl!m:
lmtltulramJunoos. seguindo caminhos radicalmente divergen-
tt••. o nventura única da modernidade ocidental em vias de apro-
prloçAo dos dados de sua hlstórta,l
19
em A era do vazio, esta Insistência no conceito central de personall-
zação. a fim de entender uma notável mudança de rumo na
dlnãmica do individualismo nascido com a modernidade. Ao
permitir uma libertação dos lndivlduos em face do mundo a
que pertencem, uma autonomizaçào que permitii/J a eada um
não mais seguir um caminho preestabelecido pela tradição e
assumir uma liberdade de ação cada vez mais acentuada, a pós-
modernidade possibilitou realizar aqueles Ideais das luzes que
a modernidade anunciara em termos meramente legalístlcos,
sem ter-lhes dado forçá real.
Só que (e trata-se aqui de um ponto fundamental que A era
do vaziojá assinalava) essa libertação em face das tradições, esse
acesso a uma autonomia real em relação às grandes estruturas
de sentido, não slgn!Oca nem que desapareceu todo o poder so-
bre ps Indivíduos, nem que se adentrou num mundo ideal, sem
co~O'it() e ~em dominação. Os mecanismos de oontrole não
sumiram; eles·só se adaptaram, tornando-se menos regulado-
res, abandonando a ImpoSição em favor da comunicação. Já não
usam decreto legislativo para prolblt as pessoas de fumar; fa-
•
zem-nas, Isto sim, tomar consciência dos efeitos desasttosos da
nicotina para a saúde e a expectativa dé vida.
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moderno é bicéfalo, dCll'estruturante e Irresponsável, no caso de
certo número de ln<tlviduos, e prudente e responsável, no caso
da maioria. Quer-se ou'tra prova disso? Basta pensar na libera-
ção de costumes, que teve por contrapartida uma desestrutu-
raçào do mundo famil ial e relaciona!, tomando os vínculos
entre as pessoas mais complicados que no passado, quando a
norma tradicional impunha a cada um seu devido lugar na
ordem sociaL Não nos enganemos: se a obra de Lipovetsky pro-
põe uma visão da pós-modernidade mais ~omplexa e menos
univoca, se ela recusa a>O mesmo tempo as simplificações apo-
calfpticas ou apologéticas que se fazem sobre nossa ~poca. isso
·se dá não para enaltecer nosso presente, mas para sublinhar os
paradoxos essenciais e apontar a ação paralela e complementar
do positivo e do negativo.
Da pós-modernidade à hipermodernidade:
do gozo à angústia
2)
comerciais que caracter.lzam o capitalismo moderno (marke·
tlng, grandes lojas, marcas, publicidade). A lógica da moda co·
meça então a permear de modo intimo e permanente o mundo
da produção e do consumo de massa e a Impor-se perceptlvel·
mente. mesmo que só a partir dos anos 6o vá contaminar de
fato o conjunto da sociedade. Faz~ necessário dizer que. nessa
primeira fase do capltallsmo moderno. o consumo ainda se li·
mita à classe burguesa.'
A segunda fase do consumo, que surge por vo'l ta de 19lO,
designa o momento em que produção e consumo de massa
não mais estão reservados unicamente a uma classe de privlle·
giados: em que o Individualismo se liberta das normas tradicio·
náis; ·e em que emerge uma sociedade cada vez mais voltada
para o presente e· as novidades que ele traz, cada vez mais toma·
da pPr uma lógica da sedução. esta concebida na forma de uma
hedontzação da vida que seria ace:;slvel ao conjunto das cama·
das sociais. O modelo aristocrático que ca.r acterizara os primei·
ros tempos da moda·vacila. minado por considerações hedonis·
tas. Assiste-se aJ à extensão a todas as camadas sotiais do gosto
•
pelas novidades. da promoção do fútil e do frívolo, do culto ao
desenvolvimento pessoa.! e ao bem-estar- em resumo, da ideo-
logia lndlvlduallsta hedonista. Éo surgimento do ~odeio de
sociedade pós-moderna descrito por .A era do vazio, em que a
aná.lise do social se explica melhor pela sedução que :por noções
como a de alienação ou de disciplina. Há não mal.s modelos
prescritos pelos grupos sociais, e sim condutas escolhidas e as·
sumidas pelos indlviduos: há não mais normas Impostas sem
discussão, e sim uma vontade de seduzir que afeta Indistinta·
' \
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Influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e
menos profundos.
Oque mudou principalmente foi o ambiente soda] e a rela·
çAo com o presente. A desagregaç!o do mundo da tradição é
vivida não mais sob o reglme da emanclpáÇão, é sim sob o da
tensão nervosa. É o medo o que Importa e o que domina em
face de um futuro Incerto: de uma lógica da globallzação que se
exerce Independentemente dos lndlvfduos: de uma competição
liberal exacerbada: de um desenvolvimento desenfread<l das tec·
nologlas da Informação; de uma precartzação do emprego; e de
uma estagnação Inquietante do desemprego num nfvel eleva·
do. Nas décadas de 6o e 10, quem teria pensado em ver nas ruas,
como hoje se vê, um Narciso de vinte anos a defender sua apo-
sentadoria quarenta anos antes de poder beneficiar-se dela? O
que poderia ter·se asseme lhado estranho ou chocante no con·
texto pós-mOderno nos parece hoje perfeitamente normal. Nar·
cfso é doravante corroido pela ansiedade: o receio se impõe ao
gozo, c a angústia, à libertação:
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r.ias; no nível pessoal, tudo o que.fragillza o equilíbrio corporal e
psicológico. Em resumÓ, a profissão de fé não é mais "Goze sem
entraves", e sim "Tenha medo em qualquer idade"; e, como era
lógico, o Rémy Girard obcecado pela doença e pela morte no
fllme A$ lnfi~SÕ<'S bárbara$ (de Oenys Arcand) tomou qu1n2e anos
depois o lugar do Rémy Girard diletante de Odedfnio do império
americano.
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Embarcamo. num processo Interminável de dessacrallzaçào e
dessubstanciaçâo do sentido que define o reino consumado da
moda. Assim morrem o. deuses: não na de-smorallzaÇao niilista
do Ocidente, nem na angústJa do vaZio dos valores. mas nos sola-
vanco. do sentido.10
)O
turals rigidas do passado e dar à luz uma sociedade mais flexivel,
mais diversa, mais irld.iVidualista, conforme as exigências da moda
consumada.li
)I
JeUvos, um declinio da semelhança de oplnl~ Nlo mais a con·
formldade crente de IOdos. mas a dl~caçlo das pequenas ver-
sões p enoals As grandes certez.as ideológicas se esvanecem (...)
em benefido de singularidades subjeUvas talvez pouco originais,
pouco criaUvas, pouco ponderadas, mas mais numerosas e mais
nex.lvcis.12
)I
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e não porque aquelas normas e funções constitulssem um res·
qulclo arcaico do qual, segundo as feministas, seria preciso ver-
se .livre..
lS
O ·amor· -eis outro domlnlo que escapa à esfera do lucro,
do ganho, assim como, de modo mais geral, todos os valores
relaclonais que, em grande parte, consUtuem a riqueza de no5S3
vida privada. No mesmo momento em que a preda~o parece
caracterizar nosso relacionamento com o mundô dos objetos c
dos seres, tem-se aí um dominlo que se apresenta como se fun-
cionasse de maneira totalmente desinteressada. O reino do
dinheiro não é coveiro da afetividade: ao contrário, é ele que dá
a essa última toda a sua legitimidade, como se sentíssemos ser
necessário recuperar alguma lnocéncia num mundo cada vez
mais regido pela eficiência c pela racionalidade.
Nada mais falso, portanto, do que acreditar que o consumo
reine sem restrições. Da mesma forma. nada mais falso do que
pensar que ele, reduzindo os lndlviduos ao papel de consum1-
d9res, favoreça uma homogcncl.zaçào social. O problema mais
Importante não é deplorar a atomização da sociedade, c sim
repensar a socialização ..,m contexto hlpermoderno, quando
nenhum discurso ideológico faz mais sentido e quando a desin-
tegração do social está no auge. Claro, uma reconstituição so-
cial está em andamento, mas ela parte unicamente do desejo
subjetivo dos indiVIduos. Os átomos sociais não torcem o nariz
para a Idéia de reencontrar-se, comunicar-se. reagrupar·sc em
movimentos associativos, sendo estes marcados pe·lo egocen-
trismo, porque a adesão é espontânea, nexívc.l e segmentar, em
todos os aspectos conforme a lógica da moda. Mas será que
agrupamentos narcisistas bastarão para tornar democrá!lca
uma sociedade e promover o senso de valores quando apenas o
consumo parece essencial?
)6
' .'\
)7
sensual quanto hoje: e que os valores de tolerâocia e de respei-
to ao outro nu oca se manifestaram tão Intensamente quanto
em nossa época, ocasionando uma repulsa generalizada ao em-
prego gratuito da violência. Ademais, como não lembrar que a
hlpermodernldade se constrói em paralelo a um Imperativo
ético cada ve-~ mais pronunciado? No lugar do quadro catastro-
flsta que nos servem habitualmente (em que a moral abando-
nou o espaço social, substltulda que foi pelo cinismo ou pelo
egolsmo), convém salientar, em face das ameaças engendradas
pelo desenvolvimento técnico-cientifico e pelo empobrecimen-
to dos grandes projetos polftlcos, a necessidade atual de regu-
lação ética e deontológica, no nível social, econOmlcoiS ou
mesmo midlátlco. Está certo, a necessidade ética não é mais vi-
vida como no passado. segundo a lógica do dever sacriflcial, e
de.ve ser considerada na forma de uma moral Indolor, opcio-
nal, que fuoclona mais pela emoção que pela obrigação ou san-
ção e que está adaptada aos novos valores de autonomia indi-
vldualista.l6 Mas essa fase pós-moralista que hoje caracteti.za
nossas soCiedades não acarreta o desaparecimento de todos os
valores éticos.
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emanclpador fundamental, ao difundir pelo conjunto do cor-
po social os valores hedonistas e llbertários.
4}
mídias também são permeadas pela lógica dual característica do
mundo htpermoderno. que toma tudo ambiva.l ente.
Como não mencionar os efeitos negativos da mídia sobre a
cultura e o debate público? Supostamente destinada a infor-
mar-nos, ela mais é nos desinforma em função de Interesses
sensacionalistas (as sepulturas coletivas de Ttmisoara)• ou po-
líticos (lembremos o papel duvidoso desempenhado pela rede
americana Fox durante a Guerra do fraque, em >OOl). Em vez
de elevar o nível do debate público, a mídia transforma a polí-
tica em espetáculo. Em vez de promover uma cultura de quali-
dade, ela nos proporciona variedades insípidas. mu ltiplica os
programas esportivos e deixa para o horário mais tardio possí-
vel, quando não a suprime. a programação de caráter minima-
mente cultural. Considera-se que a mídia favoreça a liberdade
i~ividual e o gosto da Iniciativa. muito embora os consumido-
~ ~xillilm atltYdes tada vez mais tompulsivas em relação a ela.
Tem como função formar o discernimento e o espírito crítico,
mas com muita freqüência a lógica da mercantilização faz que
a renexão seja abandonada em favor da emoção, e a teoria. em
favor do uso pnitlco. O mesmo va.le para os livros de filosofia.
que só podem esperar ter sucesso se respondem a preocupações
pessoais e propõem receitas para alcançar a felicidade:
.• '
'
NOTAS
1 Sobre a relação com Foucault. ver a entrevista que nos
concedeu GUies Llpovetsl<y, e que foi publicada em la phllasophle
(faJlÇa/se tn questlons: t11tmlens a>-ec Comt..Sponvtlle, Condle, Ferry,
Ltpo.-.uty. Onrray, R~JSStt, Pari$, Le Livre de Poche, lOOJ.
I Ltpovetsky, L'empire dt l'iptrémttr: la mede tt soo deslin dllJI$ les soclérés
modemes, Paris, Galllmard. 1987, p. 6;·8(0 imp&lodoefemero, trad.
Marta Lúcia Machado: São Paulo, Companhia das Letras. 1!)89
(!. ed.)).
l Llpovetsky, lbld., p. JS.
47
I l.lpovetsky, L'm du vidt, p. 116•7,
t C r. Llpovetsky, "Narctsse au pl~c de la postmodemité?". em
Mitamoi~ dt Ia cvllwt 1/bmlt: HbJqut. Jllidias. tnltrfl'ÍS'.
Montréa!. l..iber. zooz, p. :s IMtlalUf.,.. da cvl!Uilllibtrai. trad.
Juremír Machado da Silva; Porto Alegre, Suuna. ,..,.j.
lt Llpovet.sky, L<mpirt de (iplllm#lf, p. zM.
11 lbld .. p. z91. Sobre a leitura que Ltpovet.sky rez do m;~lo de 1968.
ver "Changer la vlc, ou l'trnopllon d e l'lndlvldualisme
tronspolltlque •• Pou•oirs. 19. 19M.
ll(bld.• p. )"9.
11 IJpovetsky. La rrowemt r-~« moJutim du flmúlin.
Parts. Callimard, 1991. p. •1IA ttmin mulbtt'. ttad. Marta l.úc1a
Machado; São Paulo, Companhia das letras, rooo).
11 Llpovet.sky, "Monument lntcrdit". Ú Dóbat. •· 1980. p . c .
• 11 Sobre a leitura que l!povet.sky pi'OpOO da ética comercial, ver
S<!U "L'ame de l'entreprtse: mythc ou réalité?", em
Mtta~ do la cultutr!llbétalt. p. ll·S}.
11 Llpovet.sky, "Mon de la morale ou réssurrectlon des valeurs?",
lbld., p. , •..,•.
"lbid .. p. 98.
A partir do Onal dos anos 70, a noção de pós-modernidade
fez sua entrada no palco intelectual com o Om de quaUil·
caro novo estado cultural das sociedades desenvolvidas. Tendo
surgido Inicialmente no discurso arquitetõnico (em reação ao'
estilo Internacional), ela bent depressa foi mobilizada parâ de-
signar ora o abalo dos allcerces absolutos da racionalidade e o
fracasso das grandes Ideologias da história, ora a poderosa dlnã·
mica de Individualização e de pluralização de nossas sociedades.
Para além das diversas Interpretações propostas, lmpôs·se a idéia
de que estávamos diante de uma sociedade mais diversa, mais
facultativa, menos carregada de expectativas em relação ao fu·
turo. Às visões entusiásticas do progresso histórico sucediam-se
horizontes mais curtos, uma temporalldade dominada pelo
precário e pelo efêmero. Confundindo-se com a derrocada das
construções voluntaristas do futuro e o concomitante trtunfo
das normas consumlstas centradas na vida presente, ·O período
pós-moderno Indicava o advento de uma temporalidade social
Inédita, marcada pela primazia do aqui-agora.
SI
O neologismo pós-moderno Unha um mérito: salientar uma
m4dança de direção. urna reorganização em profundidade do
modo de funcionamento social e cultural das socled.ades demo·
crállcas avançadas. Rãpida expansão do consumo e da comu·
nicação de massa: enfraquecimento das normas autoritárias e
disciplinares: surto de Individualização; consagração do hedo·
nismo e do psicologismo: perda da fé no futuro revolucionário:
descontentamento com as paixões políticas e as militâncias -
era mesmo preciso dar u.m nome à enorme transfo~mação que
se desenrolava no palco das sociedades abastadas, li\•res do peso
das grandes utopias futuristas da primeira modernidade.
Ao mesmo tempo, porém, a expressão pós-moderno era ambi-
gua. desajeitada, para não dizer vaga. Isso porque era evidente-
mente uma modernidade de novo gênero a que tomava corpo.
e não uma simples superação daquela anterior. Donde as retl·
cências legítimas que se manifestaram a respeito do prcnxo pôs.
Eacrescente-se isto: há vinte anos, o conceito de pós·moderna dava
oxigênio, sugeria o novo, uma bifurcaç.ã o maior; hoje, entre-
.
tanto, está um tanto desusado. O ciclo pós-moderno se deu sob
.
o signo da descompressão coa/ do social; agora. porém, temos a
sensação de que os tempos voltam a endurecer-se, cobertos que
estão de nuvens escuras. Tendo-se vivido um breve momento
de redução das pressões e imposições sociais, eis que elas reapa·
recern em primeiro plano, nem que seja com novos traços. No
momento em que triunfam a tecnologia genética. a globaliza·
ção liberal e os direitos humanos, o rótulo pós-modernoj á ganhou
rugas, tendo esgotado sua capacidade de exprimir o mundo que
se anuncia.
O~de ~-modemoa~a dirigia o olhar para um passado que
se decretara morto; fazia pensar numa extinção sem determl·
nar o que nos tornávamos. como se se tratasse de preservar
uma liberdade nova, conquistada no rastro da dissolução dos
enquadramentos sociais, políticos e ideológicos. I Donde seu
sucesso. Essa época terminou. Hlpercapitalismo, hiperclasse. hi·
perpotência, hiperterrorismo, hiperindividuallsmo. hipermer·
cado. hipertexto- o que mais não é IUper? O que mais não expõé
uma modernidade elevada à potência superlativa? Ao clima de
epílogo segue-se uma sensação de fuga para adiante. de moder·
nização desenfreada. feita de mercantilização prollferatlva. de
d esregulamentaçào econõmlca, de ímpeto técnico-científico,
cujos efeitos são tão carregados de perigos quanto d e promes·
sas. Tudo foi multo rápido: a coruja de Minerva anunciava o
nascimento do pós-moderno no momento mesmo em que se
esboçava a hipermodemização do mundo.
longe de decreta.r-se o óbito da modernidade, assiste-se a seu
remate, concretizando-se no liberalismo globallzado, na me r·
cantilizaçào quase generalizada dos modos de vida, na explora·
ção da razão Instrumental até a · morte" desta. nu ma lndlvl-
duallzaçào galopante. Até então, a modernidade funcionava
enquadrada ou entravada por todo um conjunto .d e contrape·
sos, contrarnodelos e contravalores. O espírito de tradição per-
durava em diversos grupos sociais: a divisão dos papéis sexuais
permanecia estruturalmente desigual; a Igreja conservava forte
ascendência sobre as consciências: os partidos revolucionários
prometiam outra sociedade, liberta do capitalismo e da luta de
classes; o ideal de Nação legitimava o sacrifiçio supremo dos
j}
lndMduos: o Estado administrava numerosas atividades da vida
econômica. Não estamos mais naquele mundo.
A sociedade que se apresenta é aquela na qual as forças de
oposição à modernidade democnitlca. liberal e indJvlduallsta
nao são mais estruturantes; na qual periclitaram os grandes ob-
jetivos alternativos; na qual a modernização não mais encontra
resistências organizacionais e Ideológicas de fundo. Nem todos
os elementos pré-modernos se volatlzaram, mas mesmo eles
funcionam segundo uma lógica moderna, deslnstltuclonallza-
da, sem regulação. Até as classes e as culturas de classes se tol-
dam em beneficio do principio da Individualidade autônoma.
OEstado recua. a religião e a famllla se privatizam, a sociedade
de mercado se impõe: para disputa, resta apenas o culto à con-
corrência econômica e democrática, a ambição técnica, os direi-
tos do individuo. Eleva·:se uma segunda modernidade, dcsre-
gulamcntadora e global.lzada, sem contrários, absolutamente
moderna, aUce.r çando-se essencialmente em trés axiomas oons-
litutlvos da própria modernidade anterior: o mercado, a en-
clêncla têcnlca, o Individuo. Tlnhamos uma modemidade limi-
tada.: agora, é chegado o tempo da modernidade consumada.
Nesse contexto, as esferas mais diversas são o /orus de uma es-
calada aos extremos, entregues a uma dinâmica ilimitada, a
uma espiral hiperbóllca.l Assim, testemunha-se um enorme
Inchaço das atividades nas Rnanças e nas Bolsas: uma aceleração
do ritmo das operações econOmlcas. doravante tu nclonando
em tempo real; uma explosão fenomenal dos volumes de capi-
tal em circulação no planeta. já faz tempo que a sociedade de
consumo se exibe sob o signo do excesso, da profusão de mer-
.. \
' H
nhar de um hiperlndivfdualismo distanciado, regulador de si
mesmo, mas ora prudente e calculista, ora desregrado, dcscqul·
llbrado e caótico. No universo funcional da técnica, acumulam·
se os comportamentos dlsfunclonals. O hiperlndividualismo
coincide não apenas com a lntemallzaçllo do modelo do homo
OI!O)I)Om}cus que persegue a maxlml:zaçào de seus ganhos na maio-
ria das esferas da vida (escola, sexualidade, procriação, rellgiào.
política. sindicalismo), mas tambem com a dcsestrururaçllo de
antigas formas de regulação social dos comportamentos, junto
a uma maré montante de patologias. distúrbios e excessos com-
portamentals. Por melo de suas operações de normalização téc-
nica e desllgação soclai, a era hlpermoderna produz n um só
movimento a ordem e a desordem, a Independência e a depen-
dência subjetiva, a moderação e a !moderação.
· A primeira modernidade era extrema por causa do ideológl·
co-político: a que chega o é aquér11 do politlcõ, pela via da tec-
no logia, da midla, da economia, do urbanismo, do consumo,
das patologias Individuais. Um pouco por toda a parte, os pro-
cessos hiperbólicos e subpoHtlcos compõem a nova psicologia
das democracias liberais. Nem t udo funciona na medida do ex·
cesso, mas, de uma maneira de ou outra, nada é pou pado pelas
lógicas do extremo.
Tudo se passa como se tivéssemos Ido da era do pós para a era
do h/per. Nasce uma nova sociedade moderna. Trata-se nao mais
de sair do mundo da tradição para aceder à racionalidade mo-
derna, e sim de modernizar a própria modernidade.' racional!·
zar a racionalização - ou seja. na realidade destruir os "arcais-
mos e as rotinas burocraucas, pOr nm à rigidez institucional e
16
aos entraves protecionistas, retocar. prlvaU;a~r, estimular a con·
corrêncla. O voluntarismo do ·ruturo radiante" rol sucedido
pelo aUvismo gerencial, u rna exaltação da mudança, da reror·
ma. da adaptação, desprovida tanto de um horiZonte de espe-
rnnças quanto de uma visão grnndiosa da história. Por toda a
parte, a õnrasc é na obrigação do movimento, a h iper mudança
sem o peso de qualquer visão utópica. ditada pelo Imperativo da
cflclõncla e pela necessidad e da sobrevivência. Na hipe,r moder-
nldadc, não há escolha, nào há alternativa, senão evoluir. ace-
lerar para não ser ultrapassado pela "evolução": o culto da mo-
dernização técnica prevaleceu sobre a glorificação dos fins e dos
Ideais. Quanto menos o rut uro é previsível, mais ele precisa ser
mutável. nexivel. reativo. permanentemente pronto a mudar,
supermodcrno. mais moderno que os modernos dos tempos
heróicos. A mitologia da r uptu ra radical roi substituída pela
cultura do mais rápido e do sempre mais: mais rem abilidadc,
mais desempenho, mais flexibilidade. mais inovação.I Resta sa-
ber se. na realidade, Isso não slgnJOca modernização cega, niilis-
mo técnico-mercantil, processo que transronna a vida em algo
sem propósito e sem sentido.
A modernidade do segundo tipol é aquela que. reconclliadj)
com seus principies de base (a democracia, os direitos h u ma-
nos, o mercado). não mais tem contra modelo crivei e n ão pára
de rcclclar em sua o rdem os elementos pré-modernos que ou ·
Lrora eram algo a erradicar. A modernidade da qual estamos
saindo era negadora; a supermodcrnidade é integradora. Não
mais a destruição do passado, e sim sua reintegração, sua reror-
mulaç~o no quadro das lógicas modernas do mercado. do con-
sumo e da lndlv!dualldade. Quando até o não-moderno revela
a pr1rna21a do eu e funciona segundo um processo pós-tradicio-
nal, quando a cultura do passado não é mais obstáculo l mo·
dernlzação Individualista e mercantil, surge uma fase nova da
modernidade. Do pós ao hlper: a pós-modernidade nilo terá
sido mais que um estágio de transição, um momento de curta
duração. Eeste já não é mais o nosso.
Tantas convulsões nos convidam a examinar um pouco mais
de perto o regime do tempo social que governa nossa época.
O passado ressurge. As Inquietações com o futuro substituem a
mlst.lca do progresso. Sob efeito do desenvolviment o dos mer-
cados nnancelros. das técnicas eletrônicas de informação. dos
costumes Individualistas e do tempo livre, o presente assume
Importância crescente. Por toda a parte, as operações e os intcr-
éAmblo~se aceleram; o tempo é escasso e se torna um proble·
ma. o qual se Impõe no centro de novos conflitos sociais. Horá·
rio nexivel, tempo livre, tempo dosjovens, tempo da terceira e
da quarta Idade: a hlpermodernldade multiplicou as tempora·
lldades divergentes. Às desregulamentações do neocapitallsmo
corresponde urna imensa desregulação e Individualização do
tempo. Oculto ao presente se manifesta com força aumentada,
mas quais são seus contornos exatos e que vinculos ele mantém
com os outros eixos tem porals? De que maneira se artlcu la nesse
contexto a retação com o futuro e com o passado? Convém rea-
brir a questão do tempo social, pois este merece mais do que
nunca uma inquiriç.à o. Superar a temática pós-moderna. re-
conceltuallzara organização temporal que se apresenta- eis o
propósito deste texto.
l8
." '
As duas eras do presente
59
No cerne do novo arranjo do regime do tempo social, te-
mos: (•) a passagem do capitalismo de produção para uma eco-
nomia de consumo e de comunicação de massa: e (1) a subs-
tituição de uma sociedade rigorfstlco-disciplinar por uma
·sociedade-moda completamente recstrulurndã pé lãS técnicas
do efêmero, da renovação e da sedução permanentes. Dos
objetos Industriais ao ócio, dos esportes aos passatempos, da
publicidade à Informação, da higiene à educação, da beleza à
alimentação, em toda a parte se exibem tanto a obsolescência
acelerada dos modelos e produtos ofertados quanto os meca-
nismos multiformes da sedução (novidade, hiper...:olha, self·
servlce, mais bem-estar, humor, entretenimento, desvelo,
erotismo, viagens, Jazeres). O universo do consumo c da co-
municação de massa aparece como um sonho jubiloso. Um
mundo de sedução c de movimento incessante cujo modelo
não é o,;tto sêí'lão o sist<!Ma da moda. Tem-se não mais a repe-
tição dos modelos do passado (como nas sociedades tradicio-
nais), e sim o exato oposto, a novidade e a tentação s istemáticas
como regra e como organi'taçào do presente. Ao permear seto-
res cada vez mais amplos da vida coletiva, a forma-moda gene-
ralizada Instituiu o eixo do presente como temporalidade so·
cialmentc prevalecente}
Enquanto o princlpl·o -moda "Tudo o que é novo apraz • se
Impõe como rei, a neofilla se afirma como paixão cotidiana e
gernl.lnstalarnrrPse sociedades reestruturadas pela Lógica e pela
própria temporalidade da moda; em outras palavras, um pre·
sente que substitui a ação coletiva pelas felicidades privadas, a
tradição pelo movimento, as esperanças do futuro pelo êxtase
60
' ' \
do presente sempre novo. Nasce toda uma cultura hedonista e
psicologista que incita à .satisfação imediata das necessidades,
estimula a urgência dos prazeres, enalteceo florescimento pes-
soal, coloca no pedestal Õ paraíso do bem-estar, do conforto e
do lazer. Consumir sem esperar; viajar; divertir-se; não renun-
ciar a nada: as políticas do futuro radiante foram sucedidas pelo
consumo como promessa de um futuro eufórico.
A primazia do presente se instalou menos pela auséncia (de
sentido, de valor, de projeto histórico) que pelo excesso (de bens,
de imagens. de solicitações hedonistas}. Foi o poder dos dispo-
sitivos subpolíticos do consumismo c da moda gene:ralizada o
que provocou a derrota do heroismo ldeológico-politíco da mo·
dernidade. O coroamento do' presente se iniciou muito antes
que se houvessem enfraquecido as razões para ter esperança
num futuro melhor; esse coroamento precedeu em varlas,dê·
cadas a queda do Muro de Berlim, o univc~o acelerado do ci·
berespaço e o liberalismo globalizado.
A consagração social do presente consumista se fez acompa·
nhar de uma pie tora de acusações lançadas contra a atomiza·
çào social e a despolitização: contra a fabricação de falsas neces-
sidades; contra o conformismo e a passividade consumistas:
contra a adoção de engenhocas em todas as esferas da vida.
num processo sem propósito e sem sentido. Ademais, desde os
anos 70, a temática dos "estragos do progresso· tem repercussão
signiOcativa. Todas essas cr it!cas, porém, não impediram de mo-
do algum o impeto daquãlo que poderíamos muito bem deno-
minar um otlmismo pessoaL No momento em que ressoavam
as derradeiras encantações revolucionárias carregadas de espe-
61
ranças futuristas, emergia a absolutlzação do presente lmedla·
to, glorilicando a autenticidade subjetiVa e a espontanoeidade dos
desejos, a cultura do· tudojá·, que sacraliza o gozo sem proibi·
ções, sem preocupações com o amanhã. Enquanto o maio de 6.~
surgiu como uma revolta sem objetivo futuro, antlautorltárla e
libertária, os anos da liberação dos costumes substituíram o en·
gajamento pela festa, a história heróica pelas ·máquinas dese·
jantes", tudo se passando como se o presente houvesse conse·
guido canali2ar todas as paixões e sonhos. O desemprego ainda
era suportável, as Inquietações com o futuro tinham então
menos peso que os desejos de liberar e hedonizar o presente. Os
"trinta anos gloriosos,* o Estado do bem-estar social. a mitolo-
gia do consumo, a contracultura, a emancipação dos costumes,
a revolução sexual, todos esses fenômenos conseguiram remo·
ver o sentido do trágico histórico ao Instaurarem uma cons-
ciência màls otimiSta que pessimiSta, um Zeirgew dominado pela
despreocupação com o futuro, compondo um carpe diem si mui·
taneamente contestador •c consumista.
M~ iSsojá é página virada. A partir dos anos Soe (sobretudo)
go,lnstalou-se um presentlsmo de segunda geração, subjacente
à globallzação neoliberal e à revolução Informática. Essas duas
séries de fenômenos se conjugam para ·comprimir o espaço-
tempo·, elevando a voltagem da lógica da brevidade. De um la-
do, a mfdla eletrônica e Informática possibilita a Informação e
6J
f~s. as epidemias são regularmente noticia de primeira página.
As lutas sociais e os discursos crltlcos não mais oferecem a pers-
pectiva de construir utopias e superar a dominação. Só se fala
de proteção,.segurança. defesa das • conquistas sociais". urgên-
cia humanitária, prescrv~çâo d<> p!al)eta, Em resu mo, de "li-
mitar os estragos·. O clima do primeiro presenlismo liberacio-
nista e otimista, marcado pela frivolidade, desapareceu em
favor de uma exigência generalizada de proteção.
O momento denominado pós-moderno coincidiu com o
movimento de emancipação dos Indivíduos em face dos papéis
sociais e da.• autoridades institucionais tradicionais, em face das
limitações Impostas pela llliação a este ou aquele grupo e em
face dos objetivos dista ntes: aquele momento é Indissociável
do estabelecimento de nom1as sociais mais flexlveis. mais diver-
sas, e da ampliação da gama d~ opções pessoais. Ots:;o resultou
!.!ffi ~nilmel)to de" descontração", de autonomia e-de abertu-
ra para as existências individuais. Sinônimo de desencantamen-
to com os grandes projetos coletivos. o parêntese pós-moderno
fico!-' todavia envolto numa nova forma de seduç-ão, ligada à
individualização das condições de' vida. ao culto do eu c das feli·
cidades privadas. ]á nã-o estamos mais nessa fase: eis agora o
tempo do desencanto com a própria pós-modernidade. da des·
mltlficação da vida no presente, confrontada que está com a
escalada das lns~guranças. O alivio é substituldo pelo fardo. o
hedonismo recua ante os temores. as sujeições do presente se
mostram mais fortes que a abertura de possibilidades acarreta-
da pela individuali7.açào da sociedade. De um lado. a-sociedade-
moda não pára d.e Instigar aos gozos já reduzidos d·O consumo.
.
do lazer e do bem·estar. De outro, a vida fica menos frívola,
mais estressante, mais apreensiva. A tomada das existências pela
Insegurança suplanta a despreocupação • pós-moderna.·. ~com
os traços de um composto paradoxal de frivolidade e ansiedade,
de euforia e vulnerabilidade, que se desenha a modernidade do
segundo tipo. Nesse contexto, o rótulo p<ls·modemo, que antes
anu nciava um nascimento, tomou-se um vestígio do passado,
um "lugar da memória·.
:
. e futuro
Confiança
Ninguém duvida de que a época marcada pelos temores da
tecnociéncla e pela decomposição das utopias políticas é aque-
la da· crise do futuro·. Nada mais de fé num futULrO necessa-
riamente melhor que o presente; nada mais de espera pelo
combate final e pela Ci.dade Radiosa; a absolutlzação do porvir
histórico foi sucedida pela inquietação. pela pane das represen-
tações do futuro, pelo eclipse da Idéia de progresso. Mas. apesar
disso. a página do progresso está multo longe de ter sido virada
66
, ' \
67
cançou·se uma etapa nova na emancipação em face da tutela
do elemento religioso: ápice da modernidade. essa etapa é sinO·
nlmo de hlpermodem12açáo da relação com o tempo histórico.
Nada de ruína da força do futuro: essa última simplesmen-
te nao é mais ldeológlco·polltlca, estan<lo ago111 contida na dl-
ntlmtca técnica e dentifica. Quanto ,.;,ais a época se organiza no
culto democrático erigido num absoluto de novo tipo, maiS os
laboretórlos concebem um futuro dessemelhante e trabalham
pare produzir um universo de ficção clentíflca, até maiS lnacre·
dltável que esta. Quanto menos se tem uma visão teleológlca
do futuro, mais ele se presta à Invenção hlpe.r·reallsta, com o bl·
nO mio ciência·técnica ambicionando expio= o Infinitamente
grende e o Infinitamente pequeno. remodelar a vida, gerar mu·
tantes. oferecer um simu lacro de lmortalldade, ressuscitares·
pécles desaparecidas, programar o futuro genético. Nunca antes
a humonrdadc lançou tão grande des;!fio ao homem e ao espa-
ço-tempo. Embora triunfe o tempo breve da economia e da
mldla, o fato é que nossas sociedades continuam voltadas pare
o futuro. menos romànUco e paradoxalmente maiS revolucio-
nário, poiS se dedica a tomar tecnicamente possível o lmpossr-
vel. A Impotência para Imaginar o futuro só aumenta em con·
Junto com a sobrepotêncta técnlco·clentrnca para transformar
radicalmente o porvir: a. febre da brevidade é apenas uma das
facetas da civilização futuriSta hlpermodema. Enquanto o me r·
cado estende sua·ditadura· do curto prazo. as preocupações
relativas ao porvir planetário e aos riScos ambientais assumem
posição primordial no debate colellvo. Ante as ameaças da po·
lulção atmosférica. da mudança climática, da erosão da blodl·
versldade, da contaminação dos solos, afirmam-se as Idéias de ·
·desenvolvimento sustentável" e de ecologia industrial, com o
encargo de transmitir um ambiente viável às gerações que nos
sucederem. Multiplicam-se igualmente os modelos de simu-
lação de cataclismos, as an<illses de risco em çS<:<tl~ mo,çlonal e
planetária, os cálculos probabilísticos destinados a discernir. ava-
liar e controlar os perigos. Morrem as utopias coletivas. mas ln-
tenslflcam-se as atitudes pragmáticas de previsão e prevenção'
técnico-científicas. Se o eixo do presente é dominante, ele não -é
absoluto: a cultu.r a de prevenção e a • ética do futuro" dão nova
vida aos Imperativos da posteridade menos ou mais distante.
Sem d~vlda, os interesses e~onõmicos Imediatos têm pre-
cedência sobre a atenção para com as gerações futuras. Durante
esse espetáculo de protestos e de chamamentos virtuosos. a des-
truição do melo ambiente continua: o máximo de apelos à res-
ponsabilidade de todos, o mínimo de ações públicas. Mas o fato
é que as preocupações referentes ao futuro planetário estão bem
vivas; elas habitam e alerta m permanentemente a consciência
do presente, alimentando as controvérsias públicas, solicitando
medidas de proteção para. o patrimônio natural. O presente
total da rentabilidade imediata pode dominar, mas não conti:
nuará assim Indefinidamente. Mesmo que o ecodesenvolvhnen·
to ainda esteja longe de dispor dos meios técnicos e sistemas
reguladores dos quais necessita, ele já começa, aqui e ali, a alte·
rar certas práticas. No ama.n hã, essa dinâmica deve ampliar-se.
~ pouco provável que a consciência e as limitações de longo
prazo não produzam efeito: elas transformarão tanto .as prátl·
cas presentlstas quanto os modos de vida e de desenvo lvimen·
69
to. Prepara-se um neofuturismo que nAo se assemelhará ao fu-
turismo revolucionário imbuído de espírito sacrí!icial: é sob os
auspícios da reconciliação com as normas do presente (empre-
go. rentabilidade econômica, consumo, bem-estar) qu:e se pro· .
cura a nova orientação para o futuro.
A própria dinâmica econômica não se esgota no presente
puro. Ela não pára de acarretar uma relação fundamental com
o futuro, na medida em que se baseia na rápida expansão do
consumo e do lnvestimen.to. os quais têm necessidad~e de que
haja con!iança no porvir. O otimismo progressista não mais é
admissivel, mas isso não signi!ica o desaparecimento de expec-
tativas positivas em relação ao amanhã. A. Giddens salientou
como a modernidade estava ligada à con!iança nos sistemas ahs·
tratos, ou ·sistemas peritos";ll acrescentemos que ela requer a
confiança dos agentes econômicos no futuro como condição
para o de$envolvimento da atividade produtiva. Essa C'onfiança
dos consumidores. dos Investidores, dos empresários, sabe-se, é
volátil e agora regularmente medida pelas pesquisas de opinião.
Na hipermodernldade, a fé no progresso foi substituída não
'
pela desesperança nem pelo niilismo, mas por uma conflança
Instável, oscilante, variável em função dos acontecimentos e das
clrcunstãnclas. Motor da dinâmica dos Investimentos e do con·
sumo. o otimismo em face do futuro se reduziu- mas não está
morto. Assim como o resto, a sensação de conflança se de-
slnstltudonallzou, desregulamentou-se, só manifestando-se na
forma de variações extremas.
70
' '\
Odeclinio do carpe diem
Este ponto já foi evocado mais acima: instalou-se um novo cU-
ma social e cultural, a cada dia distanciando-se um pouco maiS
da tranqüilidade descontraida dos anos pós•modernos. Com a
precarl.zação do emprego e o desemprego persistente, crescem
os sentimentos de vulnerabilidade, a insegurança profiSSional e
material, o medo da desvaloriZação dos diplomas, as atividades
subqualificadas, a degradação da vida social. Os mais joveri;
temem não achar lugar no universo do trabalho; os mais ve-
lhos. perder definitivamente o deles. Donde a necessidade de
nuançar muito perceptivelmente os diagnósticos que se fazem
de uma cu ltura neodionisiaca que se basearia na preocupação
exclusivamente presentista e no desejo de gozar o aqui-agora.
Na realidade, o que caractertza o Uitgeist é menos um CMpe diem
que a inquietação diante de um futuro dominado por lncerte·
.zas e riscos. Nesse contexto, viver sem olhar para o fut•uro slgc
nifica não tanto conquistac uma vida independente, livre dos
grilhões coletivos, quanto Mlfrer as restrições impostas pela de·
=truturaçáo do mercado de trabalho. É bem verdade que a
febre consumista das satisfações imediatas e as aspirações lúdi·
<:o-hedonistas não desapareceram de modo algum, pois elas se
desencadeiam mais do que nunca; estão, contudo, envoltas por
um halo de temores e inquletações. A despreocupação otimis-
ta que açompanhou os anos do período 19~1-rl e do ciclo da libec
Tação do corpo é mera lembrança: a hipermodernidade indica
menos o foco no instante que o declínio do presentismo em
:face de um futuro que se tornou incerto e precário.
] l
Hoje. osjovens multo cedo se mostram apreensivos com a
escolha da instrução e das carreiras que ela oferece. A espada
de Dâmocles do desemprego Impele os estudant~ a optar
pelas formações prolongadas e escolher cursos cujos diplomas
sejam considerados uma .garantia de futuro. Do mesmo modo,
os pais assimilaram as ameaças ligadas às desregulamentações
hlpermodernas. Raros são os que acham que a escola tenha
por objetivo central a satisfação Imediata dos desejos do filho:
o prioritário é a formação com vistas ao futuro;H donde a rápl-
.da expansão, em especial, do consumlsmo escolar, das aulas
particulares, das atividades extracurriculares. Preparar a juven-
tude para a vida adulta, mas também, no outro extremo da ca-
dela, achar soluções para financiar as aposentadorias a longo
prazo. No presente momento, a reforma do sistema de aposen-
ta(lorias e o prolongamento do perfodo de contribuição pre-
videncii\rlil figyrªm •:ntre i!$ grandes dificuldades dos governos
democráticos e levam às :ruas centenas de milhares de manifes-
tantes. Onde se vê que nossa cultura disse adeus ao futuro? Ao
contrário. ei-lo aqui. no centro das Inquietações e debates con-
temporâneos, cada vez mais como algo a prever e reorganizar.
O que declina não é a Importância do futuro. mas o e tos pós-
moderno do hlc'et nunc.
As novas atitudes para com a saúde ilustram de manelra no-
tável a desforra do futuro. Numa época em que a normaliza-
ção médica Invade cada vez mais os territórios do campo social.
a saúde se torna preocupação onipresente para um número
êrescente de Indivíduos de todas as Idades. Assim, os. ideais he-
donistas foram suplantados pela ideologia da saúde e da longe-
71
•
vidade. Em nome destas, os Indivíduos renunciam maclçamen·
te às satisfações imediatas, corrigindo e reorientando seus com·
portamentos cotidianos. A medicina não mais se contenta em
tratar os doentes: ela lnte·rvém antes do aparecimento dos sln·
tomas, lnfqrrna wbr<: os riscos em que se Incorre, e~>timula o
monitoramento da saúde. os exames clínicos, a vigilância
higienista, a modillcação dos estilos de vida. Encerrou-se um
capítulo: a moral do aqui-agora cedeu lugar ao culto da saúde,'
à ideologia da prevenção, à medicallzação da existência. Prevei ,
projetar, prevenir: o que se apossa de nossas vidas lndlviduall·
zadas é uma consciência que permanentemente lança pontes
para o amanhã e o depois-de-amanhã.
Cada vez majs vigilância, monitoramento e prevenção: ali·
mentação saudável, perda de peso, controle do colesterol, re-
pulsa ao fumo, atividade física - a obsessão narcísica com a saú·
de e a longevidade segue de mãos dadas com a priorjdade dªlli!
ao depois sobre o aqui-agora. O que nos leva a corrigir aquela
proposição freqüentemente citada de Tocqueville: "Parece que,
a partir do momento em que (os homens das democracias!
se desesperam de viver pela eternidade, eles se dispõem a agir
como se fossem existir por não mais que um dia· .11 Em vista da
Importância assumida pelos problemas da saúde e do envelhe·
cimento, é forçoso observar que estamos longe daquele etos:
o hlperindividualismo é menos lnstantaneísta que projetivo,
menos festivo que higienista, menos desfrutador que preven·
tivo, pois a relação com o presente integra cada vez mais a di·
mensão do porvir. O retraimento dos horizontes longlnquos
levou menos a uma ética do instante absoluto do que a um
pseudopresentlsmo minado pela obsessão com o que está por
vir. Declina a cultura do carpe diem: sob a pressão exercida pelas
normas de prevenção e de saúde, o que predomina é não tanto
a plenitude do instante quanto um presente dividido, apreen-
sivo, assómbrado pelos vírus e pelos estragos da passagem do
tempo. Nenhuma •destemporallzação • do homem: o indivi-
duo hlpermodemo continua sendo um Indivíduo para o fu-
turo, um futuro conju~do na primeira pessoa. Outros fenô-
menos revelam os limites da cultura presentlsta. Ao mesmo
tempo que a cultura Ubel!"aclonista está fora de moda, manifes-
tam-se numerosas formas de valorização do duradouro. Ainda
que as uniões sejam mals frágeis e mals precárias, nossa época,
apesar de tudo. testemunha a persistência da Instituição do
matrimônio, a revalorlzação da fldelldade, a vontade de contar
com relações estáveis na vida amorosa. Observam-se mals insa-
tisfações ou frustrações referentes às experiências sem futuro
do que odes aos amores casuais. Por que o amor permaneceria
um ideal, uma aspiração de massa, se não. ao menos em parte,
por ta~ do valor conferido à duração que associam a ele? E
como compreender a vontade de ter filhos, tudo menos cadu-
ca, sem supor o Investimento emocional de longo p:raw? Fica
evidente que o Instante puro está longe de ter colonizado por
completo as existências privadas, pois a sociedade hipermoder-
na dá nova vida à exigência de permanência como contrapeso
ao reinado do efêmero. tão causador de ansiedades.
' \ \
77
em razão das UmitaçOe:s da "jornada dupla", dentro e fora do
lar) reclama de estar sobrecarregadas. de ·correr contra o tem-
po·, de Ocar estafadas. Enenhuma faixa etária parece escapar
a essa corrida para adJa nte, pois mesmo os aposentados e as
crianças t~m hoje uma agenda lotada. Quanto mais depressa
se vai, menos tempo se tem. A modernidade se construiu em
tom o da critica à exploração do tempo de trabalho; já a época
hlpermoderna é contemporânea da sensação d e que o tempo
se rarefaz. Neste momento, somos mais sensíveis à escassez de
tempo que à ampliação do campo das possibilidades ocasiona-
da pelo lmpeto da Individualização; a falta de dinheiro o u de li-
berdade motiva menos queixas que a falta de tempo.
Contudo, se uns nunca dispõem de tempo suficiente, outros
(desempregados.jovens de rua) o lêm de sobra. De um lado, o
Individuo empreendedor, hiperatlvo, desfrutando a velocidade
e a•Intensidade do tempo; de outro, o Individuo esmagado • à
revelia· pela ociosidade." Sobre essa duallzação das maneiras de
viver o tempo, há pouca dúvida: assiste-se mesmo à lntensiOca-
ção de novas formas de d esigualdade social em face dele. Entre-
tanto, 'não se deve deixar que estas ocultem a dinâmica global
que, para além das classes ou dos grupos específicos, transfor-
mou profundamente a relação dos lndlvlduos no tempo soclal.
Ao cria.r o hipermercado dos modos de vida, o universo do
consumo, do lazer e agora das novas tecnologias possibilitou
uma autonomização crescente no que se refere às llmltaçôe$
temporais coletivas; dJsso resulta uma desslncronlzaçAo das ati-
vidades, dos ritmos e das trajetórias Individuais. Vetor de Indi-
vidualização das aspirações e comportamentos, o r-einado do
78
.'
presente social se faz acompanhar de ritmos em defasagem, de
construções mais personalizadas dos usos do tempo. A bipola-
rtzaçào do individualismo (por excesso ou por escassez) só se
afirma tendo como fundo essa pluralização c essa individuali-
zação generalizadas das Maneiras de getir o têmpo. Nêssê sen-
tido, a h!permodernidade é indissociável da destradiclonaliza-
çào-deslnstltuclonallzação-lndividualizaçào da relação com o
tempo, fenômeno geral que, transcendendo as diferenças_de
classes ou de grupos. extrapola em muito o mundo dos •vim-
cedores •. A nova sensação de sujeição ao tempo acelerado só
se apresenta paralelamente a um poder maior de organização
individua.l da vida.
Nova relação com o tempo que é igualmente exemplificada
pelas paixões consumistas. Ninguém duvida de que, em mui-
tos casos, a febre de compras seja uma compensação, úma
maneira de consolar-se das desventuras da existência, de pteél'l-
cher a vacuidade do presente e do futuro. A compu lsão pre-
sentlsta do consumo maiS o retraimento do hortzontoe tempo-
ral de nossas sociedades até constituem um sistema. Mas será
que essa febre não é apenas escapista, diversão pascallana, fuga
em face de um mundo desprovido de futuro Imaginável e
transformado em algo caótico e incerto? Na verdade, o que
nutre a escala consumista é indubitavelmente tanto a a!lgústia
existencial quanto o prazer associado às mudanças, o desejo de
intensificar e rcintenslflcar o cotidiano. Talvez esteja :ai o dese-
Jo fundamental do consumidor hlpermoderno: renovar sua
vivência do tempo, revivlflcá-la por meio das novidades que se
oferecem como simulacros d.e aventura. Épreciso ver. o hiper-
19
consumo como uma cura de rejuvenescimento que ze relnlcla
eternamente. Dessa maneira, o que nos define não é bem o • pre-
sente perpétuo" de que falava Orwell, mas antes um desejo de
perpétua renovação do eu e do presente. Na fúria consumlsta.
exprime-se a recusa ao tempo exaurido e repetitivo, um com·
bate contra esse envelhecimento das sensações que acompanha
a rotina diária. É menos .a negação da morte e da finitude do
que a angústia de fosslllzar·se, de repetir, de não mais sentir. À
pergunta "O que é a modernidade?", Kant respondia: superar a
mlnorldade, tornar-se adulto. Na hlpermodernldade, tudo se
passa como se surgisse uma nova prioridade: ficar eternamente
voltando à "juventude·. Nossa pu!são neofilica é, em primeiro
lugar, um exorcismo do envelhecimento do viver subjetivo: o In·
dlvfduo deslnstitucionaliz:ado, volátil, hlperconsumista, é aquc·
!e q'!e sonha assemelh.ar·se a uma fênlx emocional.
Sensualismo e desempenho
80
.'
lugar aos Intercâmbios virtuais, organiza-se urna cultura de hl-
peratlvldade caracterizada pela busca de mals desempen ho, sem
concretude e sem sensorlalldade, pouco a pouco dando cabo
dos fins hedonistas.
Mas evitemos tomar a parte pelo todo. Pois a e.r a da urgên·
ela é também aquela em que se ,dá a democratização da tecno·
logJa do bem-estar crescente, a rápida expansão dos m ercados
da qualidade, a erotlzação da sexualidade feminina. a voga de es·
portes como o esqui e o wlndsurfe. A música, as viagens, as p;ÍI·
sagens, o arranjo estético dos Interiores conhecem Igualmente
um sucesso sem precedentes. São tantas as práticas e gostos que
revelam uma época de sensuallzação e estetização em massa
dos prazeres. Coabitam duas tendências: a que acelera os rlt·
mos tende à desencarnação dos prazeres: a outra, ao contrário,
leva à estetlzação dos gozos, à felicidade dos sentidos:, à busca
da qualidade no agora. De um lado, um tempo comprimido,
·eficiente· , abstrato; de outro, um tempo de foco no qualitati-
vo, nas volúplas corporais. na sensuallzação do instante. Assim
é que a sociedade ultramodema se apresenta como urna cultu·
ra desunlficada e paradoxal. Um acasalamento de contrários
que só faz lntenslflcar dois Importantes princípios, ambos cons·
tltutlvos da modemldade técnica e democrática: a conquista da
eficiência e o Ideal da felicidade terrena.
A cultura hedonista foi sistematicamente analisada c estlg·
matizada como Imposição de felicidade consumlsta e erótica, •
·tirania do prazer. ·totalitarismo" mercantil. No entanto. o que
realmente se vê? Florescem as catedrais do consumo, mas estão
na moda as espiritualldad es e sabedorias antigas; o pomO se
81
expõe, mas os costumes sexuais são mais ajuizados que dos-
comedidos; o dberespaço vlrtuallz.a a comunicaç.ão, mas a
Imensa maioria apreda os eventos ao vivo, as festas coletivas, as
saldas com amigos; a trOCa paga se generaliZa, mas o volunta-
riado se multlplita, e maJ.s do que nunca os relacionamentos se
baseiam na afetividade sentimental. Fica óbvio que o lndlvfduo
não 6 o reflexo fiel das lógicas hiperbólicas midiátlco-men:an-
us: ele não é o • escravo" da ordem social que exige eficiência,
tanto quanto não é o produto mecânico da publicidade. Outras
motivações, outros Ideais (relaclonaLs., lntimistas, amorosos,
éticos), não param de orientar o hlperlndivíduo. O relnado do
presente é menos o da normatização da fellctdade que o da dl-
verslncaçllo dos modelos, da erosão do poder organizador das
normas coletivas, da despadronlz.açllo dos prazeres. A asccn-
dênda das normas do consumo e da sexualidade aumenta, até
porque elas· regem men.os estritamente os comportamentos
Individuais.
Superatlvo, o indivíduo hlpermoderno é Igualmente pru-
dente, afetivo e relaciona!: a aceleração dos ritmos não aboliu
nem a sensibilidade em relação ao outro, nem as paixões do
qualitativo, nem as aspirações a uma vida equilibrada e senti-
mental. O extremo é apenas uma das vertentes da ultramoder-
nldade. Certos quadros funcionais podem ser wottaholíc::s, mas a
maioria dos assalarl~dos aspira a conciliar a vida pronsslonal
com a particular, o trabalho com o lazer. Alugam-se filmes
pornOs a rodo, mas a vida libidinosa está muito longe de ter
caldo na orgia e no swlng generalizado. A publicidade pode até
exaltar as fruições comerciais, mas é a relação com outrem
81
(filho, amor. aml2ade) o que conslltui a qualidade de vida do
maJor número de pessoas. O frenesi do ·sempre mai.s • não en-
terra as lógicas qualitativas do ·melhor e do sentimento; ao
contrário, dá-lhes maior espaço social, uma nova legitimidade
de massa. Por toda a parte, oo exageroo hlpermodemo$ ~o re-
freados pelas exigências da melhoria da qualidade de vida, pela
valor12açao dos senllmentos e pela personalidade, a qual não se
pode trocar: por toda a parte, as lógicas do excesso deparam
com contratendênclas e válvulas de segurança. Ato.r mentada
por normas antinômicas. a sociedade uh.ramoderna n ão é uni-
dimensional: assemelha-se a um caos paradoxal, uma desor-
dem organizadora. !li
TNesse contexto, o que mais deve nos preocupar não é nem a
dessensuallzação nem a •dltadurl!· do prazer. mas a fraglllzação
das personalidadesJA cultura hlpermoderna se caracterl2a pelo
enfraquecimento do poder regulador das tnslltuições coletivas
e pela autonomização correlativa dos atores sociais em face das
lmposlçOes de grupo, sejam da família, sejam da reUgtão, sejam
doo partidos poUUcos, sejam das culturas de classe. Assim, o In-
dividuo se mostra cada vez mals aberto e cambiante, fl uido e so-
cialmente Independente. Mas essa volattlldadc significa muito
mais a desestablllzação do eu do que a afirmação triunfante de
um individuo que é senhor de si mesmo. Testemunho disso é a
maré montante de sintom as psicossomáticos. de distúrbios
compulsivos, de depressões, de ansiedades, de tentativas de sui-
cídio, para nem falar do crescente sentimento de insuficiência e
autodepreciaçã~Vulnerabllidade psicológica que (ao contrário
do que tanto se dtz) se deve menos ao peso extenuante das nor-
mas do desempenho. à intcnsiOcaçâo das pressões que se aba-
tem sobre as pessoas. do que à ruptura dos antigos sistemas de
defesa e enquadramento dos Indivíduos. lembremos apenas
que a fogueira das ansiedades e das depressões~ o trlun·
fo da cultura empresarial e do ncollberallsmo. O que explica o
fenOmeno não são tanto as pressões da cultura do desempe-
nho qua nto o enorme avanço da Individualização, ·o dccllnlo
do poder organizador que o coletivo tinha sobre o individual.
Deixado a si mesmo, desinscrldo, o Indivíduo se vê pr ivado dos
esquemas sociais estruturantes que o dotavam de forças Inte-
riores que lhe possibilitavam fazer frente às desventuras da
exlstencla. À desregulaçâo institucional generalizada corres-
pondem as perturbações do estado de ânimo, a crescente de-
sorganização das personalidades, n multiplicação de distúrbios
pslc91óglcos e de discursos queixosos. ~a Individualização ex-
trema de nossas sociedades o que, tendo enfraquecido as re-
sistências • a partir de dentro". subjaz à espiral dos distúrbios
e desequlllbrlos subjetivos. Assim, a época ultramoderna vê
desenvolver-se o domlnio técnico sobre o espaço-tempo, mas
declinarem as forças Interiores do Individuo. Quanto menos as
normas coletivas nos regem nos detalhes, mais o indivíduo se
mostra tendencialmcnte fraco e desestabilizado. Quanto mais
o Individuo é socialmente cambiante, mais surgem manifesta-
ções de esgotamentos e ·panes subjetivas. Quanto mais ele
quer viver Intensa e livremente. mais se acumulam os sinais do
peso de viver.
' ' \
O passado revisitad o
86
' ' \.
na neomodernidade, o excesso de lógicas presentlstas segue em
conformidade com a Inflação proliferante da memória.
Ultramodernldade que, cada vez mais, revela ainda a ênfase
sobre o Impacto econômico da preservação do patrimônio, so-
bre os critérios de rentabilidade direta ou Indireta, n u ma esfera
outrora animada pelo cult.o à Nação e pelo espírito de civismo.
O batismo de ruas e o lev.a.n tamento de estátuas são doravante
suplantados por comemo-rações exploradas pelas Indústrias edi·
tor!ais e midiáticas, que inundam o mercado com dezenas•de
títulos novos, dé reedições, de histórias em quadrinhos, de fil-
mes e telefilmes. Antigamente, o mon':lmento era um s!mbolo,
e sua conservação, um fim em si mesmo; hoje,justifi.cam-seos
encargos com ele em nome dos efeitos financeiros, do desenvol-
vimento tur!stico ou da imagem midiática das cidades e regiões.
"Jazidas • a explorar e promover, as antigas edificaç(!es sãÓse-
qüestradas, reformadas, !transformadas em ce ntros culturais,
museus, hÓtéis, teatros, escritórios; as áreas históricas são enfei-
tadas e avivadas, convertidas em produto de consumo cultural
e turlstlco. E, por toda a parte, vê·se a aparição de estaciona-
m e ntos, de lanchonetes, de lojas de suvenires, de espetáculos
folclóricos.li Na sociedade hipermoderna, o modelo de merca-
do e seus critérios operacionais conseguiram imiscuir-se até na
conservação do patrimônio histórico. Elemento do avanço do
capitalismo cultural e da mercantllização da cultura, ·a valori·
zação do passado é um fenômeno mais hipermodemo que pós-
moderno.
Nesta época da indústria do patrimônio histórico, o cidadão
cede o passo ao bomo CCII$UJ1)(!rfCUS. Oantigo estilo solene e "seden·
87
tárlo • das comemorações. que visava a registrar permanente-
mente a memória nos pr<)prios locais do passado, recua em fa-
vor de um estilo "frívolo" e efêmero que se restringe apenas ao
Instante da comemoraçao: simpósios. concertos. exposições.
happenings, espetáculos, desnles criat.lvos.n Os museus encenam
espetáculos históricos, e· os sftlos arqueológicos. reconstitui-
ções em simulação virtuat o • turismo da memória" é sucesso
entre as massas. As obras. do passado não mais são contempla-
das em recolhimento e silencio, c sim "devoradas" em alguns
segundos. funcionando como objeto de animação de massa.
espetáculo atraente, maneira de diversificar o lazer e "matar· o
tempo. A volta do passado à popularidade ilustra o advento do
consumo-mundo e do consumidor que busca menos o status
que os estímulos permanentes, as emoções Instantâneas. as atl-
vic;lades recreativas. Não é que se dê adeus à modernidade;
antes. é a terceira etapa da modernidade consumista que trlun-
fa!l na democratização maciça do lazer cultural, no consumis-
mo experle.nclal, na transformação da memória em entreteni-
mento-espetáculo.
A voga do passado se vê ainda no sucesso dos objetos anti-
gos, da caça a antiguidades, do retrõ. do v/nlage. dos produtos
rotulados com um "legitimo" ou ·autêntico·. que despertam
a nostalgia. Cada vez mais, as empresas fazem referência a seu
passado, explorando seu património histórico, divu'lgando-o,
lançando produtos de cunho saudosista que" revivem ·os tem-
pos de antanho. Letreiros comerciais apresentam artigos ori-
undos do património histórico, e multas marcas ·oferecem
• receitas à moda antiga" e produtos Inspirados em tradições
88
' ' \
ancestrais. Na sociedade hipermodema, a antiguidade e a nos-
talgia se tornaram argumentos comerciais. ferramentas mer•
cadológicas.
Esse retorno revigorado do passado constitui uma das face-
tas do cosmo do hlperconsumo experiencial: trata-se não mais
de apenas ter acesso ao conforto material. mas sim de vender
e comprar reminiscências. emoções, que evoquem o passado,
lembranças de tempos considerados mais esplendorosos. Ao
valor de uso e ao valor de troca se junta agora o valor emotivo-
mnêmico ligado aos sentimentos nostálgicos. Um fenômeno
lndissoclavelmente pós· e hlpermoderno. Pós porque se volta
para o antigo. H;per porque doravante há consumo comercial
da relação com o tempo, pois a expansão da lógica mercantil
Invade o território da memória.
]á a vida cotidiana, embora exprima o gosto pelo passado.
é, mais do que nunca, regida (na higien e, na saúde. no lazer,
no consumo. na educação) pela ordem cambiante do presen·
te. Os produtos comestíveis exibem ·autenticidade". mas são
comercializados segund.o técnicas comerciais de massa. adap-
tados aos gostos contemporâneos. fabricados em :função de
normas atuais de higiene e segurança. Reformam-se os Imóveis
antigos dos centros das cidades. mas dotando-os de todo o con-
forto moderno. A consc:Jencia do valor do património históri-
co se intensifica, mas as. coisas que produzimos têm duração
cada VéZ mais límltada. O passado nào mais é socialmente Ins-
tituidor nem estruturante: está renovado, reciclado, mas ao
gosto de nossa época. explorado com fins comerciais. A tradi·
ção não mais convoca à repetição, à fidelidade e à revivescência
89
das coisas imutáveis de outrora: ela se tornou produto de con·
sumo nostálgico ou folclórico, mera olhadela para o passado,
objcllrmoda. Regula insl!itucionalmente o todo coletivo, e seu
valor é ap.e nas ~tétlc~, emocional e lúdico. Embora o antigo
possa causar furor, não tem mais o poder de organizar coletic
vamente.os comportamentos. O passado nos seduz: o presen-
te e suas norTl)as .c ambiantes nqs governam. Qua:nto mais se
evoca e se encena a memória histórica, menos ela estrutura os •
elementos do cotidlan0 . Donde este traço característico da vida
hipermoderna: celebramos aquilo que não desejamos tomar
como exemplo.2l
Dizia Tarde* que. nos tempos consuetudinários. o passado
funcionava como modelo prestigioso a imitar. Essa não é a
norma de nossa época, em que o passado aparece cada vez mais
nitidamente como, Isto sim, um adorno, um referencial da
~ida com qualidade ou com segurança. Isso porque o· autênti-
co· tem sobre nossas sensibilidades um efeito tranqüllizador:
os produtos "à moda antiga". associados a um imagin.á rio de
proximidade. de convivialidade, de "bbns e velhoso tempos" (a
aldeia, o artesão, o amor ao.oficio), vêm exorcizar o desassosse-
go dos neoconsumidore$ obcecados com a segura:nça de todo
tipo, desconnados da Industrialização do comestlvel. De igual
maneira, o efeito-patlimõnio-histórico participa da mesma cul-
tura do bem-estar ind:ividuallsta. Os conJuntos habitacionais
modernos, os arranha -céus e blocos de apartamentos e escri-
tórios, o litoral concretado, tudo isso acarretou o desejo de
90
\ .'
salvaguardar as antigas paisagens e os edifícios do passado
como se fossem resistên<:las à feiúra, à uniformização funcio-
nal e técnica. Embora a mania do a ntigo comporte u ma di·
mensão nostálgica, ela também Ilustra a lntensifl~o dos de-
sejos Individualistas de qualidade de vida, uma cultura
hlpermoderna do bem-estar Indissociável de critérios mais qua·
lltatlvos e sensoriais. mais estéticos e culturais. Subjacentes ao
gosto pelo passado, avançam as paixões hiperindividualistas de
• conforto recreativo· e '"conforto existenclai",2S as novas ex i·
gênclas de sensações agradáveis, de qualidade ambiental em
todos os senctdos.
Éprovável que essa otw-ss•o mnêmlca não se perpetue: cer-
tos sinais talvezjá indiquem um movimento de refluxo.l5 Um
dia, a proliferação das comemorações c do patrimônio histórl·
co chegará ao limite, não mais encontrando o mesmo eco. ~
de supor. entretanto, que não se voltará aos tempos do culto
modernista da página em branco. A segunda era da modcrni·
dade é auto-reflexiva, individualtstlco-emocional e identltárta:
revolucionária no ãmbito técnloo·clcntillco. ela deixou de $ê·
lo no cultural. Ésinônimo não de depredação do passado, mas
de exploração-mobilização sem exclusão de todos os eixos da
temporalidade socioistórica, reciclagem e retraduçào de me-
mória com fins econômicos, emocionais e idenlltários. Mesmo
que a onda mnemônica se quebre, ela não se dete rá de vez.
Ocomércio, a moda. as exigências de melhoria do bem·estar,
assim como os desejos ldentltárlos. devem ainda por multo
tempo fazer da memória um recurso e uma necessidade de
ordem presentista.
91
Identidades e espiritualidades
O retorno prestigioso do passado extrapola em muito o culto
ao retro, às comemoraç~ e ao patrlmOnlo histórico. Ele ~
concretiza com ainda mais Intensidade no despertar das esplrl-
tualldades e das novas solicitações Jdentitárlas. Revivescências
religiosas, reivindicações :naclona.ls e regionais, ressurgimento
étnico -as sociedades contemporâneas assistem a um fortale-
cimento de referenciais que remetem ao passado, de u ma ne-
cessidade de continuidade entre passado e presente, da preocu-
pação de dotar-se de raizes e memória. Embora a globaUzaçào
técnica e comercial instaure uma temporalldade homogênea,
o fato é que ela é concomitante a um processo de fragmentação
cuJ~uraJ e religiosa que m obiliza mitos e relatos fundadores,
patrimOnlós simbólicos, valores históricos e tradiçlonals.
Sabe-se que. em m uitos casos. a reativação d a memória hls·
tórica funciona em oposição frontal aos prlnclplos da rnodemi·
dade liberal. Ao serem testemunho das efervescências rellglosas
que recusam a modernidade laica, os movimentos neonaclo·
nalistas e étnico-religiosos acarretam ditaduras, guerras iden·
titárlas, massacres genocid as. O Om da dlvlsGo do mundo em
blocos, o vazio ideológico, a globallzação da economia e o en-
fraquecimento do poder estatal possibilitaram que surgisse urna
grande quantidade de conflitos locais de base étnica, religiosa
ou nacional; de movimentos separatistas; de guerras lnterco-
munitárlas. Rejeitando o pluralismo das sociedades abertas,
expurgando a sociedade dos elementos "heterogêneos· . fcchan-
91
do as comunidades em.si mesmas, os Impulsos neonacionalis·
tas e étnico-religiosos se fazem acompanhar aqui de c:ombate à
ocidentalização, ali de guerras devastadoras, repressões e terra-
'
rismos polrtlco-rcUglosos. Um despertar dos antigos demônios?
Éiludir-se interpretar esses fenômenos como ressurg:ênclas ou
repetições do passado, quer tribal, quer totalltário. Ainda que
as regressões ldentltárlas reatem com mentalidades antigas, o
que surge são formas Inéditas de conruto, de nacionalismo e de
democracia. Sob as Incitações para que se preservem ldentl·
dades nacionais ou religiosas, organizam-se tiranias de gên.ero
novo, combinações de democracia com etnlcldade, d:e moder·
nlzação frustrada com "fundamentalismo" triunfante, as quais
Fareed Zakaria com razão den~mina ·democracia ilibera.is"_l7·
Isso posto, os movimentos que reavivam a chama do sagra·
do ou das raízes estão muito longe de ser de mesma·natur.eza
e de manter a mesmo relação com a modernidade liberal. No
Ocidente, muitos deles se apresentam com traÇos que se conci-
liam perfeitamente com a cultura liberal do indivíduo legisla·
dor de sua própria vida. Prova disso são as famosas • religiões à
la carte·, os grupos e redes que combinam as tradições cultu·
rais do Oriente e do Ocidente, os quais utilizam a tradição r~
llgiosa como meio de auto-realização subjetiva dos: adeptos.
Aqui, não há nenhuma antinomia com a modernidade indivl·
dualista, pois a tradição fica à disposição dos Indivíduos, • mexi·
da", mobilizada como via de auto-realização e de integração
comunitária. A era hiperrnoderna não põe fim à n ecessidade de
apelar para tradições de sentido sagrado: ela simplesmente as
rearranja mediante individuallzação, dispersão, emoclonallza·
93
çào das crenças e práticas. Com a primazia do eixo do pr esente,
crescem as religiões • desregulamentadas·e as identidades pós·
tradicionais.
A racionalidade instrumental expande seu domínio. mas
Isso não elimina nem a crença religiosa, nem a necessidade de
referir-se à autoridade de urna tradlçao. De um lado, o proces·
so de raclonalizaçao faz diminuir cada vez mais a ascendência da
religião sobre a vida social; d e outro, ele, com seu próprio m o-
vimento. recria exigências de religiosidade e de enraizamento
n uma "linhagem crente". Também aqui, evitemos ldentíflcar as
novas esplrlrualidades a um fenômeno residual. urna regressão
ou arcalsmo pré-moderno. Na realidade, é do próprio Interior
d o cosmo h lpermoderno que se reproduz o religioso. na medi·
da em que esse cosmo gera Insegurança, confusão referencial,
extinçao de utopias seculares. ruptura individuallsta da vincu·
t o social. No universo tnce rto. caótico. atomtzado da htper·
modern idade, cresce também a necessidade de unidade e de
sentido. de segurança, de identidade comunitária - é a nova
chance das religiões. De todo modo, o avanço da secularizaçao
n ão leva a um mundo intelramente racional em que a inOuên·
ela social da religião declina continuamente. A secularização
n ão é só a lrrellglão; ela é também o que recompõe o religioso
n o mundo da autonomia tcFrcna, um rcllgtooo desinstltu ciona·
lizado, subjetlvado. afelivo.ZI
Essa remobiltzaçao da memória é Indissociável d e um novo
m odo de ldentiOcação coletiva. Nas sociedades tradidonals, a
Identidade religiosa e cultural era vivida como coisa natural,
r ecebida e inrangivel. excluindo as escolhas Individuais. Isso
\
9.S
as formas de desdém, de d epreciação, de lnferiorlzaçâo do eu,
exige o reconhecimento do outro como Igual na diferença. É
bem verdade que o reinado do presente c! aquele da satisfação
Imediata das necessidades. mas ele também é o da exigência
moral de reconhecimento estendida ãs ldent.ldades fundadas no
masculino ou feminino, na Inclinação sexual, na memória his-
tórica.
Processo de hlper·reconhcclmento que não deixa de ter llga-
çao com a sociedade do bem·estar indiVIdualista de massa. Foi
esta que, nas democracias oc.ldentais. contribuiu para fazer de-
clinar a valorl7.ação dos princípios abstratos de cidadania em
beneficio dos pólos de identiOcação de caráter lmedlato e par-
Ucularlsta. Na sociedade hlperlndividuallsta,lnvestlmos emo-
cionalmente naquUo que nos é mais próximo. nos vlnculos
fundados sobre a semelhança e a origem em comum, com os
valores universalistas e os grandes ideais políticos aparecendo
como prlnclplos demasiado abstratos. demasiado genéricos ou
distantes.» A civilização do presente, ao arruinar as esperanças
revolucionárias e focar a vida nas felicidades privadas, desenca·
deou, ·p aradoxalmente, uma vontade de reconhecimento da
especificidade conferida pelas raízes colellvas.
Foi Igualmente a cultura do bem-estar Individualista o que.
ao dar Importância nova à necessidade de amor-próprio e de
csllma pelos outros, tomou Inaceitáveis os soflimentos engen-
drados pelas imagens coletivas desdenhosas que os grupos do-
minantes impõem. Na era da felicidade, tudo o que Inculca
uma imagem depreciativa do eu, todas as denegações de reco-
nhecimento, c! atacado como !legitimo, aparecendo como for·
' .
\
ma de opressão e de violê nela simbólica Incompatível com o
Ideal de auto-reallzação plena. Donde a mullipllcação das exi-
gências de ressarcimento por agravos coletivos. as expectativas
de reconhecimento público , as reivindicações cada ve;t mais fre-
qüentes de um status de vítima. As vindíclas de reconheclmen•
to particularista são indissociáveis do Ideal democrático moder-
no de dignidade humana - mas foi a civiUzaçào presentista que
possibilitou as • políticas do reconhecimento "31 como instru- .
mente de amor-próprio; as novas responsabilidades c:om rela;
çáo ao passado; as novas querelas da memória.
A galáxia contemporânea das Identidades é igual mente a
oportunidade de voltar àS ricas análises da alta mod·e rnldade
propostas por Ulrich Beck. De acordo com aquele sociólogo ale-
mão, passou-se de uma primei.r a etapa de modernização, fun-
dada na oposição entre tradição e modernidade, para uma se-
gunda modernl;tação. de nature;ta reflexiva e autocrítica. Nessa
última fase, é a própria modernização que é considerada um
problema, o qual se refere tanto ao clentismo como aos princi-
pies de funcionamento da sociedade industrial. Donde a idéia de
advento de uma modernidade de tipo auto-referencla1.32
Esse esquema está correto, mas é preciso ir mais longe. gene-
ralizando. Na realidade, temos de constatar que o segundo clcló
da modernidade não é apenas auto-referencial: ele está marca-
do pela forte reabilitação de coordenadas tradic:ionaEs. de exi-
gências étnico-religiosas que se apóiam em patrtmõnlos simbó-
licos de longuissima duração e de origem diversa. Todas as
lembranças, todos os universos de sentido, todos os Imaginários
coletivos que fazem referência ao passado são o que pode ser
97
convocado e reutilizado para a construção de Identidades e a
realização pessoal dos indivíduos. A reflexlvldade ultramoderna
não se refere apenas aos riscos tecnológicos. à racionalidade
cientifica ou à divisão dos papéis sexuais; ela invade todos os re·
scrvatórios de sentido. tod.as tradições do Ocidente e do Oriente,
todos os saberes e todas as crenças. aí lncluidas as maJs irraclo·
nais e as menos ortodoxas -astrologia, reencarnação. paraclcn·
c ias etc. O que define a hipermodernidade não é exdusivamen·
te a autocrltica dos saberes e das instituições modernas: é
também a memória revlsltada, a remobilização dai crenças tra·
diclonals. a hibridização Individualista do passado e do presente.
Não mais apenas a desconstrução das tradições. mas o reempre-
go delas sem Imposição institucional. o eterno rearranjar delas
conforme o principio da sobernnia individual. Se a hlp<:>rmooer·
nidade é metamodemidade. ela se apresenta igualmente com os
traços de uma metatradicionaJidade. de uma metarrellgiosida·
de sem fronteiras.
99
nico-mercantil que se liga ao reforço unanim!sta do tronco co-
mum dos valores humanistas democráticos.
Ninguém negará que o mundo, dojei~o que anda. provoca
mais inquietação do que otimismo desenfreado: alarga-se o
abismo entre Primeiro e Terceiro Mundo; aumentam as desi-
gualdades sociais; as consciências ficam obcecadas pela insegu-
rança de várias narurezas; o mercado globalizado diminui o
poder que as democracias têm de regerem a si mesmas. Mas
será que Isso nos autoriza a diagnosticar um processo de • rcbar-
barização" do mundo, no qual a democracia não é mais que
uma "pseudodemocracia" e um "espetáculo cerlmonial"?ll
Chegar a tal conclusão seria subeslimar o poder de autocrítica
e de autocorreçào que continua a existir no universo democrá-
tico Uberal. A era presentista está tudo menos fechada, encerra-
da ,e m si mesma, dedicada. a um niilismo exponencial. Dado
que a depreciação dos valores supremos não é sem limites, o
futuro conlinua em aberto. A hipermodernldade democrática
e mercantil ainda não deu seu canto do cisne - ela está apenas
no começo de sua aventura histórica.
NOTAS
100
' . '\
Les Slr.!légies f.lla/es, Pans, Grasset, 1981 IAs eslrlltégias fatait t rad.
Manucla Parreira; Lisboa. Estampa, 1990]; Paul Ylrlllo, Vitesst
et politique. Parts. CaJUée, 19n IVelocidade e política, trad. Celso M.
Paclomlk; São Paulo, Estação Liberdade, 1~].
l Ulrlch Beck,l.a 1«/ltl du risque. Paris. Aubler, 1001.
1 Pierre-AndréTaguieff, R~isteraubougisme, Paris, Milleet Une
Nults, 1001, p. 1S·Ss IResistir ao para·a·{IPntlsmo; Lisboa, Campo da
Comunicação, 200J]. Igualmente, ]ean-Pierre Le Corr. La bar!Jarie'
dooce. Paris, La Découvcrte, 1999. :
IOI
•
.
•
lO)
Mas encararei a pergunta ainda de outro ângulo. A situação
socoistórlca na.qual nos enContramos é inédita: a modernidade
não mais t~m inimigos absolutos, ela se reconcJIJou com seus
prindpios e valores de base. Conseqüentemente, os combates
graças aos quais os valores modernos se Impuseram - laicldadc,
liberdade, Igualdade, plural.ismo democrático, destradlclonali-
zação - perderam a antiga Intensidade instituidora. Outros
combates, é verdade. assumiram o lugar dos anteriores, mas não
mais produzem um mundo em ruptura. Segue-se que a posi-
ção dos Intelectuais - os quais desempenharam importante
:papel no nascimento da modernidade - não mais pode ser a
·mesma. Hoje, eles panilham dos mesmos valores qu.e ó con-
junto dos membros da sociedade; propõem Interpretações di-
ve.rgentes, não outro modelo coletivo. Nessas condições, a ne-
cessl~ade de • engajar-se" é menor: o que importa é menos
·tomar partldt> para defender iSto ou aquilo do que compreender
um pouco melhor •como é que Isso funciona" na própria rea-
lidade. Claro, é Imperativo problematizar as questões morais,
pensar consigo mesmo a respeito do certo e do errado. dos di-
reitos Individuais e coletivos. do principio de tolerância, dos fun-
damentos da sociedade liberal, da legitimidade das diferentes
desigualdades etc. Mas não menos Imperativo é examinar o
:funcionamento do Estado do bem-estar social, o rumo das coi-
:sas e das práticas reais, em especial daquelas que suscitam osjui-
zos mais peremptórios e mais consensuais. Se o conhecimento
do que é não determina o que deveria ser. ele pelo menos pode
contribuir para, sabendo do que se fala, superar certas polêmi-
cas estéreis e já assentes. Parece-me que, ao propor modelos In-
l OS
.' \
Vamos agora ao illnetállo pessoal. Quais foram .sua fannaçáo e sua lra}el4m
lnltl«tual? Quem fotam seus tM:Slm?
Ftz meus estudos de ruosona na Sorbonne, num clima cultural
e Intelectual bem diferente do que predomina em nossa época.
Entre nós, naquele tempo, certo número de estudantes tran;-
formava em questão de honra nào acompanhar o curso e lnte··
ressar·se por tudo menos os currlculos universitários. O espirl·
to ntosóflco vivo estava • em outro lugar": denunciavam-se os
mandarlns, os cursos que cheiravam a naftalina, a miséria da
mosona. E eu Ua sem muita palxllo os textos fundadores da mo-
sana. Segui meus estudos um pouco como ·artista· livre que
109
d.ecidia ele próprio os autores sobre os quais trabalhar.l.!a com
entusiasmo Lévt-Strauss, Saussure, Freud, Marx e os epfgonos
deste. O que me animava erru não as grandes questões da meta-
fisica ou da moral, mas a interpretação do mundo moderno.
Assim como muitos Mtudantes dos anos 60, eu estava impreg•
nado de marxismo. Por volta de 1965, fiZ parte de um grupelho
esquerdista, o Poder Operário, originário do Socialismo ou Bar-
bárie, que tinha sido fundado por Lefort e Castoriadis e era em
especial animado por Lyotard, Veja e SouyrL O grupo se procla-
mava marxista-revolucionár io: denunciava o capitalismo e a
sociedade burocrática tanto 1110 bloco ocidental quanto no ori-
ental. Na União Soviética, vfamos não um socialismo p-erver-
tido, mas uma nova sociedade de exploração de classes.. Con-
s-eqüentemente, a revolução não mais podia coincidir com a
abolição da propriedade privada dos meios de produção: ela
Implicava a êxtinçào da divisão entre dirigente e dirigido, a
autogestão, a democracia dos conselhos operários. Fiquei dois
anos nesse grupo, mas, como eu frequentemente safa de férias.
questionaram minha mllitãncia um pouco hedonista e des-
contraid~ demais! ... A nova era do lazer já exercia sua influên-
cia ... O afastamento se deiU sem crise p-essoal, sem peso na
consciência, sem nenhum sofrimento. Para mim, a • vida de ver-
dade· já estava em outro lugar. A bem dizer, a questão da revo-
lução não me preocupava quase nada, porque eu não acredita-
va realmente nela - procurava sobretudo ferramentas de
análise para compreender o real. E os cursos propostos na
Sorbonne não atendiam a essa expectativa.
1!10
.. \
111
des do cotidiano. Aquelas análises do desejo e do gozo, do con-
sumo e da mídia, tinham o mérito de subverter os domlnios
teóricos separados, de rev:itallzar a crítica da economi-a poll!lca
ou libidinosa, de abrir um além-do-poi!Uco ao compor como
que odes a uma revoluç.à o transpolítica. Desde essa época,
julgo que o existencial. os modos de vida, o frivolo devem ser
levados em conta, e não ser de imediato considerados a ·falsa
consciência·. Isso porque logo me Incomodei com a noção de
alienação: ela veiculava em demasia a idéia de que as pessoas
eram mistificadas, passivas, manipuladas, hipnotizadas -
Debord - ,Incapazes de diS-tanciamento critico. de compreensão
do que lhes acontecia. Em A era do vazio, procurei mostrar que as
coisas eram maiS complexas, que a lógica sedutora da mercado-
ria era um poder não só para o logro c a espoliação. mas tam·
bém para a emancipação do individuo. Meu descontentamento
com a análise marxiSta se explica ainda por minhas leituras da
época - Tocquevillc, Mareei Gauchet, louis Dumont, Daniel
Bel!. Nelas encontrei esquemas analíticos e ferramentas con·
ceituaiS fl!ndamentaiS, insubstituíveis, que devolviam um papel
de fato produtivo às "idéias" na história: o Individuo, ·a revolu-
ção dcmocr~tica,"os direitos humanos, tudo isso, já não eram
mais a superestrutura, simples • reflexo· da economia. Essas
problemáticas me deram maior liberdade para entender a socie·
dade nova, na qual se ob.servava um Impulso de autonomia
Individual, uma sujeição menor aos enquadramentos coletivos.
Minhas análises sobre o illdividuaiismo democrático- e não
burguês no sentido marxista- surgiram de um cruzamento de
observações. entre a revolução dos modos de vida contemporã·
112
neos, a rápida expansão tanto da sociedade de consumo-comu-
nicação quanto do liberalismo cultural, a sociologEa americana
e as análises neotocquevillianas.
11}
Eu era cada vez mais solicitado pela mídia para analisar as rea·
lldades do mundo contemporâneo. Sobretudo após OImpério
do efemcro, multiplicaram-se os convites para dar conferências.
na França e um pouco por toda a parte no exterior, tanto nas
universidades como nas empresas. Aliás. foi àÍ que Uve ocasião
de me interessar por questões novas, como o ltL~O ou a ética
comercial -questões para as quais minha formação inicial não
me preparava. Dai em diante, o • vazio" contribuiu para preen·
cher bastante os meus dias e multiplicar os meus contatos com
o mundo. Ete·me possibilitou abraçar mais a vida em sua plenl·
tude!
Oamor aos fatos leva o senhor a privilegiar o descritivo tJn 1'1'2 do oormati>'O e
a não propor uma lliW8 normatização. Por que esse retraimento quando se trota
de exatplnar as soluções possfve.ls?
Como cidadão. posso engajar-me e tomar partido, mas não
quero misturar as coisas. Em meu trabalho, o que me Interessa
é compreender as lógicas em ação na história e na modernida·
de, e nãojulgá· las. Ademais, julgar é um empreeridimento que
às vezes traz problemas. Quanto à questão do luxo, por ex em·
pio, que abordo em Le luxe étemel, teria sido fácil cair na conde·
nação ou na apologia. Mas, quando se aceita o esquema propos·
to, mostrando que o luxo não se reduz ao supérnuo c é
consubstanciai à história da espécie humana. a questào do no,...
mativo logo se torna "vaz:ia•. Será que vamos condenar as mile-
nares oferendas aos deuses e a construção de templos suntuo·
t
sos? Seria absurdo. inútll quererjulgar o que é constitutivo do
humano-social.
11~
. .'
Tudo btm, DW selá que não se pode fllZ" umjuÍZD n.lo sdJre a lüsl6rla do luxo.
e sim sobrt o luxo hoje?
Claro. Isso é Inteiramente possível, mas a situação é menos evl·
dente do que se Imagina. De um lado, não há nenhuma dúvida
de que o luxo tem algo de afrontoso. Mas, de outro lado, quem
desejaria para valer uma sociedade unicamente funcional. sem
sonho, sem desperdlclo. sem mitologias prestigiosas, sem formas
superlativas? Será que n ão é legitimo ansiar pelas coisas mais
belas? Caso se diga que o l uxo é • mau·, onde se determinará ~e
ele começa ou termina ? A velha pergunta: onde começa o
supérfluo? Quando principia o Inaceitável? E o que é u ma neces·
sldade ·verdadeira! Não será a arte uma forma de luxo? Em
caso aOrmatlvo, fazer o quê? At, ent.r a·se num Llpo de renexao
em que os argumentos não convencem, em que eles mais raclo·
nallzam reações emocionais do que expressam uma verdadeira
evolução do saber. Esse trabalho eu deixo para outros. Etc nào
me Interessa em nada. Sobretudo, ereto que não exist e posslblll·
dadc de dar resposta clara e fundamentada àque.las perguntas.
(Àm rtlaçAo à moda, o S«Jhor taJnbMt acha que os jufzm são tão pertmp16rlos
quanto o Silo no rtferente ao luxo?
Claro! Nao param de denunciar a macaqulce das coqueluches de
massa, a superficialidade da TV. a lnslgntncãncla do consumo-
às vezes, não sem algumas razões excelentes. Entretanto, a
moda tal qual a analisei em OlmpMo do eflmero possibilita uma
abordagem menos maniqucista do fenômeno. Isso porque a so-
cledad~moda (aquela do consumo, da mfdia, da publicidade, do
·tudo é descanável") é também a que fez retrocederem os fana·
"'
tlsmos sangrentos, reforçou a legitimidade do pluralismo
democrático, proporcionou maior liberdade à opinião pública
e aos eleitores. Ainda que seus múltiplos e negativos defeitos se-
jam reais, seus beneficios estào multo longe de ser nulos. Eu
simplesmente quis mostrar que a forma-moda não era sinOnl·
mo de "barbárie·, de rulna do pensamento e da liberdade. A
questão merece exame mais atento e juizos mais contrastados
do que esses que freqüentemente os ·profissionais· da concel·
tuallzaçao e outros minuciosos hermencutas dos grandes tex·
tos canOnicos nos oferecem.
a
prlos lndMduos. lmfJ)rtMida da seduçao como modo de fl'8Uiapio social. apa·
clficaç~o do campo político e o apego mais profundo aos valores t$StOCials da
116
' '
idéia que eu desenvolvia então. qual seja. à do advento de uma
sociedade· descontraída • e de um Individuo cool. Em "Tempo
contra tempo", eu me dedico justamente a radiografar certos
aspectos desse novo contexto. Quer dizer então que nada so-
brou da revolução do novo individualismo? Claro que não:
sobrou multo. Embora o hedonismo não seja mais tãoj ubiloso,
o fato é que ele rege todo um conjunto de práticas de massa.
A autonomia individual aparece cada vez mais nitidamente
como norma imposta pelas organizações, mas busca-se também
a vida alternativa, a vida aoorta a escolhas, até em esquema de
sclf-service. Reforçam-se as limitações da vida profissional, mas
também a volatilldade dos •ele!tores, dos casais, dos consumido-
res, dos crentes. Osucesso da Frente Nacional contradiz a idéia
de um individualismo aberto e tolerante, mas, de outro lado, o
fenômeno ilustra à sua manei.r a a tese da consolidação demo-
crálica acarretada pela sociedade-moda lndividualbta. Aelltre-
ma esquerda não tomou o poder. mas a sociedade como um
todo não derivou para a xenofobia e o nacionalismo; a direita
que governa não com pactuou com !.e Pen. Adinâmica da indi·
vidualização fez que a democracia permanecesse sólida, apega-
da a seus principios humanistas e pluralistas.
118
....
IndiVíduos cada vez mais pnlximos uns dos oulros, uma Igualdade .que se con-
cttliZa e diferençaJ onlológlcas que perduram, especlalmcnle enl.l!ll homens e
mulheres. .• Mesmo que o processo lgualilário lenha constguido levar a uma
androginia cada vez mais deslacada, obsetva-se que a diferenciação sexual per-
man«e, como se exist.isse mesmo um eterno feminino. Sabe-se que as femlnls·
las alribvem lalmnanescéncla a uma herança arr:alca, fadada a <ksaparear.
Mas. embora isso possa parecer plausi..eJ, mio con1~nce o senhor. Por quê?
Há duas razões que me parecem fundamentais. Em primeiro
lugar, o que se perpetua :não mais exclui o principio de auto·
nomia Individual das mulheres. Nem todos os códigos sociais
herdados do passado perduraram: a virgindade ou mesmo o
Ideal da dona·de·casa vieram abaixo, e Isso apesar da força
social que tinham antes. Se Pelo contrário se mantêm ou.tras
normas e papéis, é porque eles são agora compatíveis com o
principio de autonomia pessoal. Mediante issO, a nova perma·
nêt'\éia dõ rernhiinõ surg.e í'lào coMo Mera •reMane-scéncia••
mas como reinvenção da tradição pelas próprias mulheres.
uma reciclagem do passado na ordem livre da modernidade
individualista. A beleza, por exemplo, continua sendo uma
norma destinada prioritariamente às mulheres, mas issO não
mais as impede de estudar; trabalhar. assumir responsabilida-
des polít.lcas. ~a mesma coisa com o lugar sempre p:réponde·
rante das mulheres no espaço doméstico. Sem dúvida, elas
freqüentemente se queixam da·ausência· ou ·omissão· dos
maridos- rnas o rato é que, embora aquela runçllo tradicional •
permaneça, não é mais s.lnõnimo de confinamento domésti-
co nem de negação do direito de dispor livremente de suas
vidas.
119
A segunda razão, tão importante quanto a primeira: não acre-
d ito que uma sociedade possa não traduzir simbolicamente a
diferença sexual. Como imaginar que os seres humanos não
dêem nenhum sentido social a essa diferença? Parece-me que, aí,
há como que um imperativo antropológico e cognitivo. Tome·
mos um exemplo trivial. Nos anos 6o, as feministas radicais quei·
mavamseus sutiãs, que aos. olhos delas eram símbolo da mulher
meramente decorativa. O que acontece hoje? A lingerie nunca
foi tão erotlzada. Como compreender tal fenômeno? Será que se
trata de uma regressão? Penso que não. Com a femlnlzaçào da
instrução e do emprego, a <lesestabillzação dos papéis e a ascen·
são das mulheres aos cargoo de responsabilidade que antes eram
atributo do masculino, cresce a necessidade de reafirmar a iden·
tldade feminina mediante símbolos •superficiais", mas explfcitos.
À medida que se reduzem as grandes divisões entre maseulino e
feminino, aflrrna-sc a necessidade imperiosa de que se constitua
algo como um universo da diferença sexual. Posso lhe garantir
que a era da igualdade não leva à confluência dos sexos. à indife·
renciação andrógina dos papéis do masculfno e do feminino.
Falemos de seu traba.lho atl14.1, que lmnra questões sobre nossa pmente siiUilfào
aun base em elementos de an.illse Mo dlversái quanco o luxo, o culto ao pmente
ou a mercalllii/Zaçilo do mundo na era dó Cl1/ISW110 emocional. N~!S$~!$1/ês casos,
opera-se um mesmo ptoeeSSI), va/ortzandó o OOdonismo e as emoções, uma valori·
zação que~ explica pela igualiZaçM, pela lndivlduai/ZaçãiJ e pela ~í!Wílutló·
na/tzação levadas a 1em10. TradUZ'-se assim uma oova relação com os objetos. com
os outros e com o eu, a qual o consumo talm possibilite colocar bem em eviden-
cia. Osenhor poderia falar sobre isso?
120
. \
lU
dt swlra}er6rla, deixando-- às I'Oiras com a flsvra ideal do homem tn«kmo,
IIm e Igual aos ourros- a t~g~Jra do hlpttCMSU~~~Idor. Setâ que a hipermodtr-
nldadt IIQS Olfldtoa Amercanrilização do mundo? Edt quais ameaças tla., faz
acompanhar?
Oque ainda caracteriza o hlperconsumo, ou consumo-mundo,
é o fato de que até o não·econOmlco - família, religião. slndlca·
llsmo, escola, procriação, ética - é permeado pela mentalidade
do homo consumertcus. Todavia, esse cosmo não significa a elimina·
ção dos valores não-comerciais, dos sentimentos, do altruismo.
Quanto mais se Impõe a mercantlllzação da vida. mais celebra·
mos os direitos do homem. Ao mesmo tempo, o voluntariado,
o amor e a amizade são valores que se perpetuam e até se refor-
çam. Ainda que se generaUzem as trocas pagas, nossa humanl·
dade afetiva, sentimental, empátlca, não estA ameaçada. A Idéia
é antiga: Marx dizia que a burguesia havia substituído pelo di·
nhelro todas·as velhas relaçOes sentimentais, e isso no momcn·
to mesmo em que se assisti a à idea.llzação da família e a.o apogeu
do romantismo amoroso. Na realidade, a moderna consagração
da mercadoria seguiu de mãos dadas com o desenvolvimento da
Intimidade, com o casamento por amor e com o Investimento
afetivo nos fllhos.
Os perigos estão em outra parte. Ern especial, testemunha-se
uma preocupante fraglllzação e dcsestabllização emoC'Ional dos
lndlvlduos. O hiperconsumo desmantelou todas as formas de
socialização que antes forneciam referenciais a eles. Durkhcim
já sa.llentava: se ooorre uma epidemia de sulcidlos, não é porque
a sociedade se toma mais severa, e slm porque os indivlduos
ncam entregues a si mesmos e, por isso, menos equipados para
111
. \
Eo que é feito da fiiOS<Ifia nesse mundo hlpemrodemo? Como poderll ela descm·
pcnhar ~u papel de disemso roclonal em face dt lndMdutl$ mais propensos j
emolivldade q~ à reflexão?
Em primeiro lugar, lembrarei que a hlpermodemldade nao se
reduz ao conswnlsmo, ao entretenimento nem ao zapplng gene-
raliZados. Na realidade, ela nào aboliu a vontade de superar-se,
de C•ria.r, de Inventar, de procurar. de desafiar as dificuldades da
vida e do pensamento. Mesmo no turboconsumidor contem·
poraneo, a ·vontade de poder· nao pára de atuar. Por Jsso, a R·
losona como disciplina da razao e da busca da verdade não está
ameaçada. Não há nenhum motivo para que desapareçam os
homens com ambição de elevar-se acima dos preconceitos e
lançar-se aos difíceis caminhos da fruição do mundo pelo en·
tendlmento. Mas tampouco há motivos para crer que tal atltu·
11)
de possa democratizar-se e conquistar as multidões. Em com-
pensação, o que tem chances de difundir-se é um consu mo
maciço de certas obras, quer de introdução às filosofias. quer de
"meditações" de tipo eudemonístico. Numa época de self-servi-
ce individualista, Sêneca e Montalgne surgem no campo do con-
sumo ao lado do Prozac. com todo um público procurando na
Cllosofla das consolações as receitas empíricas, imediafas, para a
felicidade. Desejo boa sorte ao hiperconsumldor. mas para mim
é diflcU deixar de expressar o máximo ceticismo, pois esse gêne-
rode leitura produz tudo menos o efeito ~perado: a filosofia
não é o caminho suave para a felicidade. É verdade q u e a leitu -
ra das grandes obras pode maravilhar, arrebatar. proporcionar
prazeres localizados; não se trata de algo insignificante, mas é
pouco para aproximar-se da vida venturosa. Quem já meditou
os grandes mestres não está mais bem equipado que ninguém
para viver feÍiz, pois nenhum filósofo nos protege contra a ex-
periência da tristeza. do desespero, da dor ou do medo. Nesse
aspecto, reconheço-me hegeliano: a filosofia tem por tarefa pro-
porciona~ uma inteligibilidade do real, e nada mais; seu papel é
U!
\
LIVROS
L'ere du vide: essais sur I'individualísme contemporain, Paris, Gallimard,
1983 lA era do vazio, trad. Miguel Serras Pereira &Ana Luísa
Faria; Lisboa, Relógio D'Agua, 1990).
L'empire de 1'éphémere: la mode et son destín dans les sociétés modernes,
Paris, Gallimard, 1987 [O império do efêmero, trad. Maria Lúcia
Machado; São Paulo, Companhia das Letras, 1989 (2. ed.)).
Le crépuscule du devoir: 1'éthique indo/ore des nouveaux temps démocratiques,
Paris, Gallimard, 1992. [O crepúsculo do dever, trad. Fátima Gaspar;
Lisboa, Dom Quixote, 1994].
La troisieme femme: permanence et révolution du féminin, Paris,
Gallimard, 1997 [A terceira mulher, trad. Maria Lúcia Machado;
São Paulo, Companhia das Letras, 2ooo].
Métamorphoses de la culture libérale: éthique, médias, entreprise,
Montréal, Liber, 2002 [Metamorfoses da cultura liberal, trad. Juremir
Machado da Silva; Porto Alegre, Sulina, 2004]. ·
Le luxe éternel: de (ãge du sacré aux temps desmarques (em colaboração
com Elyette Roux), Paris, Gallimard, 2003.
ARTIGOS
Os artigos também publicados em livros de Lipovetsky estão
indicados por um asterisco.
"Travail, désir", Critique, 314, 1973.
"Fragments énergétiques à propos du capitalisme",
Critique, 33.5, 197.5.
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