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..

BARlARiJtLA
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Gwes Ltpove~ky com Sébastlen Charles

OS TEMPOS HIPERMODERNOS
..,

Trnduçâo: Mário Vilela


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SUMÁRIO

7 Prefácio

n Oindividualismo paradoxal:
Introdução ao pensamento de GUies l.ipovetsky
Séba.st~en Cbatlt$

~9 Tempo contra tempo, ou a sociedade hlpermoderna


Clllt$Lt~y

•os Marcos de uma trajetória Intelectual


••
En~~Msta de CiJJeJ Úpo>"ttSty, Séba.stteo Cbatks

117 Bibliografia de GUies Upovct.sky


. '"
PREFACIO

A obra de GUies Lipovetsky marcou profundamente a interpre-


eaÇl\o da modernidade. No primeiro livro do autor, A era do vazio
(1!131) . e ie estabelecia os marcos daquilo que se importa na França
c;omo "paradigma individuallsta·.Desde llntão, Lipovetsky nãó
pnrou de explorar detaihadamente as múltiplas fiiCflta§ g o irKii-
vlduo contemporâneo: o reinado da moda, as metamorfoses da
!lUca, a nova economia dos s.?xos, a explosão do luxo e as muta- •
ções da sociedade de consumo.
Essa atenção ao mais contemporâneo poderia passar por
c:omplacêncla; mas não se tr.ata de nada diSso, e uma das virtu-
delt do tra.b alho c.fe Lipovetsky é, com base numa descrição. e
nu ma arqueologia minuciosas dos fenômenos, superar o anta·
gonismo tradicional entre os. antigos e os modernos, entre os eu·
fórlcos e as cassandras da modernidade. Na obra de Lipovetsky,
nno encontram apllcação univoca nem o modelo • prov<dencia-
llsta" de uma modernidade que sempre descobre em si mesma
os remédios de seus males e os beneficios de seus inconvenien-

7
tes, nem o esquema catastroflsta do reino que advém apenas da
• razão inStrumental". ou seja. de uma racionalidade para a qual
existem não mais fins. e sim apenas meios.
Asegunda revolução moderna (ou hipermoderna). que se
Instaura diante de nossos olhos, não é de maneira alguma si-
nônimo de extinção dos fins. Ela tampouco signillca a vitória
definitiva do materialismo e do cinismo. pois se assiste, pelo con-
trário, ao reinvestimento afetivo em certo número de senti-
me ntos e valores tradicionais: o gosto pela sociabilidade, o volun-
tariado, a Indignação moral. a valorização do amor. São tantos
sentimentos e valores que não apenas se perpetuam, mas que,
conforme o caso, também se reforçam num aprofundamento
humanista do individualismo. Desse ponto de vlsua, poderia
parecer que a Interpretação de Cilles Lipovetsky se aproxima do
p'rimeiro. modelo "otimista". não fosse a diferença fundamental
de que de modo algum e la se funda num m ecanismo invlsivel e
providencial; antes, empenha-se em descrever os fenômenos de
reconstituição e "reciclagem· na sutileza dos detalhes. Ai, não
há nenhuma aposta mettafísica, e sim uma exposição dos fenô-
menos que admite demonstração e refutação (coisa que n em o
primeiro ne m o segundo modelo podem pretender) .
É por tal razão que essa leitura mais complexa e menos uni-
voca não desemboca numa visão idilica de nosso presente. Este
é e continua paradoxal, tanto para os participantes quanto pa-
ra os Intérpretes: e mbora o hlperconsumo pareça compatível
com os valores do huma:nismo, ele certamente não é a panacéia
que garantirá a fellcldad.e humana. O Individuo hipercontem-
poràneo, mais autônomo. é também mais frágil que nunca. na

8
' .\
medida em que as obrigações e as exigências que o definem sao
m.~l, vastas e mais pesadas. A liberdade, o conforto, a qualidade
ta expectativa de vida não eliminam o trágico da existência;
rl<'lo contrário, tomam mais cruel a contradição.
Neste livro, escrito em colaboração com Sébastlen Charlcs,
llpovctsky fala de sua trajetória Intelectual e das diferentes eta·
pus c;lc seu trabalho; mas oferece também uma contrlbulçao
fundamental para sua própria Interpretação da ·segunda revo·
luçào moderna· , dedicando-se pela primeira vez a descrever os
traços mais característicos daquilo que, para melhor oo pior, a
•hlpermodernidade·nos reserva.
Esta obra é a continuação de várias sessões que o College de
Phllosophle consagrou ao lrabal h o de CUlcs lipovetsky. Sébas·
Ucn Charlcs. professor de ntosona na Universidade de Sher·
11rookc {Canadá). proporc!onou a direção Intelectual.

Pirm· Henri Tamil/oi


Un'-ldade de Paris N (Soroonnt)
.

A condenação do presente é sem dúvida, se analisada da pcrs·


pectiva do tempo longo da história, a critica mais comum
~presentada pelos escritores, Olósofos e poetas, e isso desde
~1xx:as Imemoriais. Platão já se preocupava com o deflnhamen·
lo clos,valores e o surgimento dessa raça de ferro. a dele, que
nno _tinha mais muim em comum com a raça de ouro dos tem·
ll<.lS m1ticos, dotada de todas as virtudes. E. a crermos em Plínio. '
<l VcU1o. o mundo sufocado do qual ele compartllhoou os derra·
ch1lros momentos* estava lrreversivclmentc fadado à ruína, tal
•'nl seu adiantado estado de corrupção. .
o rema da decadência ou da queda, retomado no plano rcli-
llfO:!O pela perspectiva apocalíptica, não é novo, e cad~a um acha
• urn facilidade as causas da degenerescencia que lhe parece ca-
l•letcrizar adequadamente os defeitos de sua respectiva época.
Nn Antrguidade, como a história era concebida de maneira cicll-

' PU!ílo morreu asfixiado durante uma erupção do Vcsúvlo. (N.T.)

I)
ca, o mais negativo se inscrevia ontologicamente nos aros da
roda da fortuna, e seu advento era pensado na categoria do ine-
vitável. No mundo cristão. o Pecado Orlglnal .e o juizo Final
eram os dois faróis que Iluminavam um presente transitório e
tido como desprovido de essência. Êcom a modernidade que
ocorre a ruptura, não para reinserir o presente no c~rne das
preocupações de todos, mas para inverter a ordem da tempora·
lldade e fazer do futuro, e não mais do passado, o Jocus da felici·
dade vindoura e do fim dos sofrimentos. Essa ruptura essencial
na história da humanidade se traduz na Jor'ma de um discurso
radicalmente oposto àquele da decadência, exaltando dessa vez
ás conquistas da ciência e apontando as condições de um pro·
gresso Ilimitado do qual deveriamos ser os herdeiros. A razão
poderia reinar sobre o mundo e criar as co.ndições para a paz. a
eqüidade e a justiça.
Esse otimismo, que caracteriza especiAcamente a filosofia
das Luzes e o clentlsmo do século XIX. não ê ma.ls corrente. Na
seqüência das catástrofes que o sêculo XX presenciou, a razão
perde,u toda dimensão positiva, para ser. combatida como lns·
trumento de dominação contábil e burocrática, e nossa rela_ç ão
com o tempo, e mais especialmente com o porvir, está dora·
vante marcada por essa c'rltlca. alnda que perdurem,, em nega·
tivo, restos do otimismo passado, sobretudo no plano têcnico·
científico. Tendo o passado e o futuro sido desacreditados, exls·
te a tendência a pensar que o presente se tornou a referência
essencial dos indivíduos nas democracias, pois esses últimos
romperam definitivamente com as tradições que a modernida·
de varreu e se desviaram daqueles amanhãs que nem chegaram

14
. \

• cnnltecer multo. Apesar disso, o texto de Gmes Upovetsky que


\C' segue ao nosso mostrará que, quanto à relaçào com o tempo.
ns coisas não são assim tão simples, de um lado porque a consa-
lltuçao do presente não é tão evidente quanto dizem às vezes,
tlc outro lado porque u críticas que são feitas a essa consa-
lll'l•ç3o passam freqOentemente por cima do essencia.l.
Um dos méritos das análises que GUies Lipovetsky propõe
há vinte anos é romper com talsjulzosexcessivos, sempre de-
n~..slado elementares porque olham apenas um aspecto das co I-

''"·o nrn de livrar-se de toda a complexidade do real e circuns-


' rt>vcr as contradições de que este est<l urdido. Nesse sentido,
(illOYetsky é antes de tudo dlscfpulo de Tocqueville, o primeiro
'i"t soube diagnosticar o surgimento de Indivíduos preocupa-
11'1~ com a respectiva felicidade pessoal. de ambições limitadas,
• "''dedicou a assinalar os numerosos paradoxos que a demo·
r i ..cto ornericana lhe possibilitava julgar In loco. Á.lnda como
'lliC'<Iucvllle, as análises de Ltpovetsky não se contentam com
jui1US apressados nem submetidos a ditames Ideológicos; antes,
""'!Uitldo um método emplrlsta ou indutivo, procuram partir
clv• fMos. e do estudo destes no tempo longo. para propor um
rrradro de análise que possibilite fazê· los falar e dar-lhes scn·
lldu. Nesse aspecto, cada uma das obras de Ltpovetsky é ta,.;to
1111111 critica das concepções excessivamente simplistas que se
JIHifrOcm o respeito do real quanto um convite a pensar de ma·
ri&\ Ir• mab complexa os fenômenos deste nosso mundo.

I!
Da modernidade à pós-modernidade:
o abandono do universo disciplinar

As anállses tradicionais:.acerca do mundo moderno, tanto as


de direita como as de esquerda, em geral se baseiam numa
critica similar: a autonomia prometida peias Luzes teve por
conseqüência última. urna alienação ·total do mun!(lo huma-
no, submetido ao peso ·terrível destes doiS Oagelos da moder-
nidade que são a técnica e o liberalismo comercial. A moder-
nidade não apenas n·ã o conseglúu concretizar os ideais das
Luzes que objetivava alcançar, mas também, ao lnvês de ava-
ljzar um trabalho de real libertação, deu luga.r a um empre·
endimento de verdadeira subjugação, burocrática e discipLI-
nar, exercendo-se lguaJmente sobre os corpos e os espíritos.
Foucault foi sem dúvida o pensador que mais insistiu neste
'
aspecto corrompido da modernidade que é a disciplina, cuja
flnaJidade consiste maiS em controlar os homens que em 11-
·bertá-los. A diSciplina é um conjunto de regras e técnicas es-
pecfficas (vlgllãncla hierárquica, sanção-normatizadora. exa-
me ele avaliação) que Mm por efeito produzir uma conduta
normatizada e padronizada, adestrar os indivíduos e subme-
tê-los a urna fôrma idêntica para otimizar-lhes as faculdades
~rodutlvas.
Ora, no mesmo instante em que Foucault ainda fazia das
disciplinas. o principio de inteligibilidadc do real, Llpovetsky
anunciava. em A era do vazio (r98}). que havfamos entrado
numa sociedade pós-dlsclplinar,l·a qual ele denominava pós-
modernidade; e, em O império dQ elemero (r987), que a própria

I •
16: '
• \

.
(lllltlcrnidade não era r.e dutivel t.'io-somente ao esquema disci-
1JIIt1ar se nos dávamos ao trabalho de encará-la pelo domínio
til) cftlmero por excelência, a moda. Tratava-se então não só de
romper com a leitura foucauldlana (mostrando que a moda, ao
lnr possibilitado que se escapasse do mundo da tradição e da
loo......!'I'ICI>ràçi)o do presente social, desempenhara importante papel
aquisição da autonomia), mas também de distanciar-se da
~t\!liCU das. distinções sociais própria de Bourdieu (mostrando
n moda podia.ser pensada fora do esquema da !uta de elaS-
c da rivalidade hierárquica).
R~tá bem, o surgimento da moda é indissociável da compe-
tll<:4o de classes entre uma ·aristocracia preocupada com a mag·
fnt0d)ncia e uma burguesia ávida de imitá· la. Mas isso não esgo-
_ ..... o fenômeno, nem indica por que a aristocracia foi. levada a
11\Vestlr na ordem da aparência de modo que a o rdem impvel
olt~ lradlção se viu destituída em favor da esplrallntermJnáliel da
Imaginação. Épreciso ver nisso a consideração de. novos refe-
re-nciais; de novas finalidades, e não uma simples dialética so-
e lnl. uma confrontação entre status. O problema das teorias da
cii,Unçlio,.como a de Bourdieu, é que elas não explicam por que
M lutas de competição de prestígio entre os grupos sociais do-
rlllnantes, tão antlgas quanto as primeiras sociedades humimàs,
puderam estar na origem de um processo absolutamente mo·
cl<•rno, sem nenhum precedente histórico: nem como pude·
r.~~ surgir na ordem da aparência o motor da inovação perma-
llénte e a autonomia pessoal. Portanto as rivalidades de classe
nOo podem ser o principio explicativo das variações lnc:essantes
dn moda.

.17
A explicação que se Impõe é a que consiste em dizer que

as etern.S reviravoltas da moda sào antes de tudo o resultado de


novas valorações sociais ligadas a uma nova poslção e representação
do Individuo no que se refere ao conjunto coletivo. [... f A consciên-
cia de ser dos lndiV!duos de destino específico, a vontade de expri-
mir uma Identidade única. a celebração cultural da identadade pes'
soai, longe de contltufrem um epifenõmeno, ti!m sido uma "força
produtiva •, o próprio motor da mutabilidade da moda.. Para que
surgisse o võo de fantasia das frivolidades, foi necessário uma revo-
lução na tepmetltação das pessoas e no sentimento de si, subvertendo
as mentalidades e valores t radicionais; foi preciso que se colocassem
em movimento a exaltação da unicidade dos seres e seu comple·
mento. a promoção social dos signos da diferença sociaJ.l

..
De fato, '!lO valortzar a renovação das formas e a lnconstãncia
da aparência, no Início essencialmente no plano indumentária
do reduzido círculo dos aristocratas e (depois) dos burgueses; a
moda possibilitou a desqualificaçãó do passado e a valorização
do novo; a afirmação do Individuai sobre o coletivo. graças à
subjetlvação do gosto; o reinado do efêmero sistemático. Com-
preende-se então que, na-economia da llberdade individual. a
frivolidade da moda jogue de Igual para Igual com o culto da
gravidade e da seriedade modernas, limitando-se assim a confir-
mar uma mesma tendência à autonomia:

do mesmo modo que os homens, no Ocidente modemo, se dedl-


cam à exploração Intensiva do mundo material e à racionalização

18
'
lllll•n<Jw das tarefas pro<luU"llS, eles anrmam, por melo do eará-
t•r ~f~mero da moda, o poder de lnldatlva que tem sobre a apa-
ofncl.'l. Nos dois casos. aRrmam-se a soberania e a autonomia
humanas que se exercem tanto $Obre o mundo natural quanto
wlbre o âmbito estéllro. Proteu c Prometeu tem a mesma ortgl!m:
lmtltulramJunoos. seguindo caminhos radicalmente divergen-
tt••. o nventura única da modernidade ocidental em vias de apro-
prloçAo dos dados de sua hlstórta,l

Afora o desenvolvimento da autonomia que ela allcerça, a


m uda desempenhou Igualmente papel fundamental no mo-
1111'1\lO da lnOexão da modernidade num sentido pós-moder-
'"' I<SO porque é com a extensão da lógica da moda ao co'1)un·
In do corpo social (quando a sociedade Inteira se reestrutura
~~~·~•uldo a lógica da sedução, da renovação permanente e da dl-

l~lllfiCiaçllo marginal) que emerge o mundo pós•moderno. ~a


•• ~ dn moda extrema, em que a sociedade burocrática e demo-
•••lllca se submete aos ues componentes essenciais (efêmero,
u"tluçoo, diferenciação marginal) da forma-moda e se apresen-
•• corno sociedade superficial e frivola, que Impõe a norrnaUvt-
ot.ldc nào mais pela disctpl.tna, mas pela escolha e pela espeta·
ttolarldade.
Com a difusão da lógica da moda pelo corpo soct.allntclro,
o•mnunos na era pós-mod:erna, momento multo preciso que vê
mnpllaNe a esfera da autonomia subjetiva, multlpllcarem·se
•IS diferenças tndividuals, esvazJarem-se de sua substa.ncla trans-
c~ndcnte os princípios soc.lals reguladores e dissolver-se a uni·
d.1dc das opiniões e dos modos de vtda. Donde. especialmente

19
em A era do vazio, esta Insistência no conceito central de personall-
zação. a fim de entender uma notável mudança de rumo na
dlnãmica do individualismo nascido com a modernidade. Ao
permitir uma libertação dos lndivlduos em face do mundo a
que pertencem, uma autonomizaçào que permitii/J a eada um
não mais seguir um caminho preestabelecido pela tradição e
assumir uma liberdade de ação cada vez mais acentuada, a pós-
modernidade possibilitou realizar aqueles Ideais das luzes que
a modernidade anunciara em termos meramente legalístlcos,
sem ter-lhes dado forçá real.
Só que (e trata-se aqui de um ponto fundamental que A era
do vaziojá assinalava) essa libertação em face das tradições, esse
acesso a uma autonomia real em relação às grandes estruturas
de sentido, não slgn!Oca nem que desapareceu todo o poder so-
bre ps Indivíduos, nem que se adentrou num mundo ideal, sem
co~O'it() e ~em dominação. Os mecanismos de oontrole não
sumiram; eles·só se adaptaram, tornando-se menos regulado-
res, abandonando a ImpoSição em favor da comunicação. Já não
usam decreto legislativo para prolblt as pessoas de fumar; fa-

zem-nas, Isto sim, tomar consciência dos efeitos desasttosos da
nicotina para a saúde e a expectativa dé vida.

Assim opera o procCS$0 de personalização, nova maneira de á so-


dedade organizar-se e orientar-se, nova maneira de gerar os com-
portamentos, não mais com a tirania dos detalhes, e sim com o mí-
nimo de sujeição e o máximo de escolhas privadas possível, com
o mínimo de austeridade e o máximo de desejo possível, com o
m[nlmo de coerção e o máximo de compreensâ_
o possíve.t.•

10
.. \

Para Llpqvetsky, co '!lo se vê, a questão não é atenuar o papel


da negatividade no retrato que ele traça da pós-modernidade,
mas antes moderar o sentido dessa mesma pós-modernidade
l'rOpondo encará· la como fenômeno não unidimensional, mas
dllj)lõ. No fundo, tí'àta·Sé dê eomprêêl'\der que a pós· rnodernl·
(lnde se apresenta na forma do paradoxo e que nela coexistem
Intimamente duas lÓgicas, 'lima que valo.rlza a autonomia, outra
ljUe aumenta a Independência. O importante é enten.d er bem
que é a própria lógica do individualismo e da desagregação áas
tl5truturas tradicionais de normalização o que produz fenõ·
menos tào opostos quanto o autocontrole e a abulia, o super·
empenho prometéico e a total falta de vontade. De um lado,
1111\is tomada de responsabilidade: de outro, mais desregramento.
A l'SSência do individualismo é mesmo o paradoxo. Ante a de·
'ICStruturação dos controles sociais, os indivíduos, em -contexto
p&·disciplinar, têm a opção de assumir responsabilidade ou
nao, de autocontrolar·seou deixar-se levar. A alimentação é o
melhor exemplo. Uma vez que desaparecem nesse âmbito as
obrigações sociais, e particularmente as religiosas Úejum, qua·
resma etc.), observam-se tanto comportamentos individuais
oc-sponsáveis (monitoramento do peso, busca de informação so·
bre a saúde. ginástica) que às vezes beiram o patológico pelo
excesso de. controle (condutas anoréxicas) quanto atitudes com·
p)etamente irresponsáveis que favorecem a bulimia e a deses·
t.ruturação dos ritmos alimentares. Nossa sociedade da magre-
za e da dieta é também a do sob repeso e da obesidade.
Também é essencial entender que todo ganho em autono·
mia se faz à custa de nova dependência e que o hedonismo pós·

li
moderno é bicéfalo, dCll'estruturante e Irresponsável, no caso de
certo número de ln<tlviduos, e prudente e responsável, no caso
da maioria. Quer-se ou'tra prova disso? Basta pensar na libera-
ção de costumes, que teve por contrapartida uma desestrutu-
raçào do mundo famil ial e relaciona!, tomando os vínculos
entre as pessoas mais complicados que no passado, quando a
norma tradicional impunha a cada um seu devido lugar na
ordem sociaL Não nos enganemos: se a obra de Lipovetsky pro-
põe uma visão da pós-modernidade mais ~omplexa e menos
univoca, se ela recusa a>O mesmo tempo as simplificações apo-
calfpticas ou apologéticas que se fazem sobre nossa ~poca. isso
·se dá não para enaltecer nosso presente, mas para sublinhar os
paradoxos essenciais e apontar a ação paralela e complementar
do positivo e do negativo.

Da pós-modernidade à hipermodernidade:
do gozo à angústia

Emborâ o termo ·pós-modernidade" seja problemático por-


que parece indicar u ma grande ruptura na história do Indivi-
dualismo moderno, o rato é que ele é adequado para marcar-
uma mudança de perspectiva nada negligenclãvel nessa mesma
história. De Inicio, pensa-se a modernidade segundo dois valo-
res êSSel'léiaís (a Sàbér: a liberdade e a Igualdade) e numa figura
inédita (o individuo autônomo, em ruptura com o mundo da
tradição). Só que, na era clássica, o surgimento do individualis-
mo ocorreu concomitantemente com a ampliação do p>Oder
\

estatal, o que fez que essa autonomlzação dos lndlvlduos per-


manecesse mais teórica que real. A pós-modernidade represen-
ta o momento histórico pn:clso em que todos os freios lnstltu·
donais que se opunham à emancipação individual se esboroam
e desaparecem, dando lug.a r à manifestação dos desejos subJe-
tivos, da realização Individual, do amor-próprio. As grandes es-
truturas soclalizantes perdem a autoridade, as grandes Ideolo-
gias já não estão mais em expansão, os projetos históricos não
mobilizam mais, o âmbito social não é mais que o prolonga-
mento do privado- instala-se a era do vazio, mas ·sem tragé-
dia e sem apocalipse ·.s
Como explicar essa mutação da modernidade? Será que se
precisaria ver ai a tradução no real de discursos teóricos que
celebraram a autonomia individual e o desaparecimento das
estruturas de controle social? Embora seja posslvel que este ou
âquelc escrito tenha desempenhado um papel, que o moder-
nismo na arte ou o advento da psicanálise tenham exercido
Influência, que a ação da Igualdade tenha produzido efeito, o es·
senclal é algo de outra ordem. Na realidade, são antes de tudo
o consumo de massa e os valores que ele veicula (cultura he-
donista e psloologista} os responsáveis pela passagem da m9-
dernldade à pós-modernidade, mutação que se pode datar
da segunda metade do século XX. De 1880 a 1950, os pl'lmelros
ele~entos que depois explicarão o surgimento da pós· moder-
nidade se eolocãm pouco a pouco em cena, respond>endo ao •
aumento da produção Industrial (taylorização), à difusão de
produtos possibilitada pelo progresso dos transportes e da co-
municação e, posteriormente, ao aparecimento dos métodos

2)
comerciais que caracter.lzam o capitalismo moderno (marke·
tlng, grandes lojas, marcas, publicidade). A lógica da moda co·
meça então a permear de modo intimo e permanente o mundo
da produção e do consumo de massa e a Impor-se perceptlvel·
mente. mesmo que só a partir dos anos 6o vá contaminar de
fato o conjunto da sociedade. Faz~ necessário dizer que. nessa
primeira fase do capltallsmo moderno. o consumo ainda se li·
mita à classe burguesa.'
A segunda fase do consumo, que surge por vo'l ta de 19lO,
designa o momento em que produção e consumo de massa
não mais estão reservados unicamente a uma classe de privlle·
giados: em que o Individualismo se liberta das normas tradicio·
náis; ·e em que emerge uma sociedade cada vez mais voltada
para o presente e· as novidades que ele traz, cada vez mais toma·
da pPr uma lógica da sedução. esta concebida na forma de uma
hedontzação da vida que seria ace:;slvel ao conjunto das cama·
das sociais. O modelo aristocrático que ca.r acterizara os primei·
ros tempos da moda·vacila. minado por considerações hedonis·
tas. Assiste-se aJ à extensão a todas as camadas sotiais do gosto

pelas novidades. da promoção do fútil e do frívolo, do culto ao
desenvolvimento pessoa.! e ao bem-estar- em resumo, da ideo-
logia lndlvlduallsta hedonista. Éo surgimento do ~odeio de
sociedade pós-moderna descrito por .A era do vazio, em que a
aná.lise do social se explica melhor pela sedução que :por noções
como a de alienação ou de disciplina. Há não mal.s modelos
prescritos pelos grupos sociais, e sim condutas escolhidas e as·
sumidas pelos indlviduos: há não mais normas Impostas sem
discussão, e sim uma vontade de seduzir que afeta Indistinta·
' \

mente o dominlo público (culto à transparência e !I comunica-


ção) c o privado (multlplicação das descobertas e das experiên-
cias subjetivas). Aparece então Narciso, flgura de proa de A tra
do r.JZlo, Individuo OJOI, flexível, hedonista e libertãrlo, tudo lsso
ao mesmo tempo. Era a fase Jubilosa e liberadora do indivldua·
llsmo, que se vJvenciava mediante a dcsafclção pelas Ideologias
poUtlcas, o deflnhamento d as normas tradicionais, o culto ao
presente c a promoção do h edonismo Jndlvldt1al. Embora os
contrapontos negativos dessa dilaceração nas grandes estrutu-
ras de sentido coletivas já pudessem fazer-se sentir (nada de
libertação sem nova forma de depenei~ nela), o fato era q ue eles
permaneciam um pouco ocultos. Contudo a lógica dual que
caractertta a pós-modernidade Já estava em ação e exercia seu
domlnlo.
Será que se pode flcar apen as nas conclusões a que chega
A era do vazioe considerar a segunda fase do consumo a fase ter-
minal. correlata da pós-modernidade? Será que, desde os anos
ao. estamos sempre submetidos ao mesmo modelo de Jndlvl-
duallsmo narclslsta?Vários sinais fazem pensar que e n tramos
na era do hiJ'". a qual se caracteriza pelo hlperconsumo. essa
terçclra fase da modernidade; pela hlpermodemidade. que~
segue à pós-modernidade; e pelo hlpernarclslsmo.
Hlperconsumo: um consumo que absorve e integra parcelas
cada vez maiores da vida social: que funciona cada vez: menos •
segundo o modelo de confrontações simbólicas caro a Bou r-
dleu: e que, pelo contrário, se dispõe em função de nns c de
critérios Individuais e segundo uma lógica emotiva e hedonls-
ta que faz que cada um consuma antes de tudo para sentir pra·
zcr, mais que para rivalizar com outrem. O próprio luxo, ele-
mento da distinção social por excelência, entra na esfera do
hlperconsumo porque é cada vez mais consumido pela satisfa-
ção que proporciona (um sentimento de eternidade num mun-
do entregue à fugacidade das cobas). e não porque permite exl·
blr status.

A busca dos gozos privados suplantou a exigência de ostentaçao e


de reconhecimento soclat a época contemporânea vê afirmar-se
um luxo de tipo Inédito, um luxo emocional. expertenc:lal, pslco-
logtudo. substituindo a primazia da teatralldade social pela das
sensações lntimas.1

Hlpermodemidade: uma sociedade liberal. caracterizada pe.lo


movimento, pela fluidez, pela flexibilidade; Indiferente como
nunca ant~ se foi aos grand~ prlncfplos ~truturantes da mo·
dcrnldade, que precisaram adapmr-se ao ritmo hlpermoderno
para não desaparecer.
Hlpernarclslsmo: época de um Narciso que toma ares de ma-
duro, responsável, organizado, eficiente e flexível e que, dessa
maneira, rompe com o Narciso dos anos pós-modernos, hedo-
nista e llbertárlo.

A responsabilidade substituiu a utopia festiva, e a gestão, a contes·


taçao - tudo se pi1$$i1 como se agora só nos reconhecêssemos na
ética e na competltlvldade, nas regulações sensatas e no sucesso
profissional.•
Só que, <!esta vez, os,paradoxos da hlpermodernldade se exi-
bem às claras. Narciso maduro? Mas se ele não pára de Invadir
os domínios da lnfàncla é 'da adolescência, como se se negasse a
assumir sua 'idade adulta! Narciso responsável? Pode-se real·
mente pensar Isso quando os comportamentos irresponsáveis
se multiplicam, quando as declarações de Intenção não se con-
cretizam? O que dizer dessas empresas que falam em códigos de
deontologia e que, ao mesmo tempo, demitem em massa por;
que antes maquiaram os livros contábeis; desses armadores que
evocam a importância de respeitar o melo ·a mbiente enquanto
seus próprios navios efetuam descargas selvagens de poluentes:
desseS empreiteiros que exaltam a qualidade de suas constru-
ções muito embora elas desa.b em ao menor abalo sismico: des·
ses motoristas que dizem respeitar o código de trânsito e falam
ao celular enquanto dirigem? Narciso eficiente? Que seja, m~ ao
custo de distúrbios psicO<ssomáticos cada vez mais freqüentes.
de depressões e estafàs fiagrantes. Narciso gestor? Éde duvidar,
quando se observa a espiral de end.tvidamento das empresas.
Narciso fiexível? Mas se é a tensão nervosa o que o caracteriza
no âmbito social quando. chega a hora de perder certos benefi·
elos adquiridos! A lógica pós-moderna, da conquista pessoal foi
substituída por uma lógica corporativista de defesa de prer-
rogativas sociais. Eis apenas uma amostra dos paradoxos que
caracterizam a hipem1odernidade: quanto mais avançam as con-
dutas responsáveis, mais aumenta a Irresponsabilidade. Os indi·
víduos hipermodernos são ao m esmo tempo mais informados
e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis, mer>os
ideológicos e mais tributários das modas, mais abertos e mais

27
Influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e
menos profundos.
Oque mudou principalmente foi o ambiente soda] e a rela·
çAo com o presente. A desagregaç!o do mundo da tradição é
vivida não mais sob o reglme da emanclpáÇão, é sim sob o da
tensão nervosa. É o medo o que Importa e o que domina em
face de um futuro Incerto: de uma lógica da globallzação que se
exerce Independentemente dos lndlvfduos: de uma competição
liberal exacerbada: de um desenvolvimento desenfread<l das tec·
nologlas da Informação; de uma precartzação do emprego; e de
uma estagnação Inquietante do desemprego num nfvel eleva·
do. Nas décadas de 6o e 10, quem teria pensado em ver nas ruas,
como hoje se vê, um Narciso de vinte anos a defender sua apo-
sentadoria quarenta anos antes de poder beneficiar-se dela? O
que poderia ter·se asseme lhado estranho ou chocante no con·
texto pós-mOderno nos parece hoje perfeitamente normal. Nar·
cfso é doravante corroido pela ansiedade: o receio se impõe ao
gozo, c a angústia, à libertação:

Hoje, a ot ss ssI o consigo mesmo se manifesta menos no ardor do


gozo que no medo da doença e do envelhecimento, na medica li·
zaçao da vida. Narciso e:std menos enamorado de si mesmo que
aterrorizado pelo cotidiano, pelo próprio corpo e por um am·
blcnte social que ele considera agressivo.'

Tudo o inquieta e assusta. No nlvelintemac!onal, o lerrorfs·


mo e seus estragos, a lógica neollberal e seus efeitos sobre o em·
prego: no nível local. a poluição urbana, a violência nas perlfe-

18
.'"
r.ias; no nível pessoal, tudo o que.fragillza o equilíbrio corporal e
psicológico. Em resumÓ, a profissão de fé não é mais "Goze sem
entraves", e sim "Tenha medo em qualquer idade"; e, como era
lógico, o Rémy Girard obcecado pela doença e pela morte no
fllme A$ lnfi~SÕ<'S bárbara$ (de Oenys Arcand) tomou qu1n2e anos
depois o lugar do Rémy Girard diletante de Odedfnio do império
americano.

A perda do sentido e a complexidade do presente

Se Narciso está tlio Inquieto, é também porque nenhum discur-


so teórico consegue mais tranqüllizá-lo. Por mais que consuma
rreneticamente o espiritual. isso não parece torná-lo mais sere-
no. A era do hlperconsumo e da hlpermodernldade assinal?u o
declínio das grandes estruturas tradicionais de sentido e a recu-
peração destas pela lógica da moda e do consumo. Os dJ:scutsos
ideológicos. da mesma maneira que os objetos e a cul~ura de
massa, foram superados pela lógica da moda, mesmo que te-
nham sempre funcionado segundo a lógica da transcendência
e da perenidade e no culto ao sacrlflclo e à dedicação. Ora, du-
nnte os dois últimos séculos, a moda não conseguiu impor:.SC
no campo social, contraposta que foi pelas Ideologias de :preten-
são teológica. Saímos disso quando desmoronaram as convic-
ções escatológicas e a crença numa verdade absoluta da histó-
ria. A fé foi substituída pela paixão; a Intransigência do discurso
sistemático, pela frivolidade do sentido; o extremismo, pela des-
contração. Em resumo,

29
Embarcamo. num processo Interminável de dessacrallzaçào e
dessubstanciaçâo do sentido que define o reino consumado da
moda. Assim morrem o. deuses: não na de-smorallzaÇao niilista
do Ocidente, nem na angústJa do vaZio dos valores. mas nos sola-
vanco. do sentido.10

Os sistemas de representação se tornaram objetos de consu-


mo e são tão intercambiáveis quanto um carro ou um aparta-
mento. No fundo. assistimos ai à manifestação definitiva da se-
cularização moderna. que antes não pudera desenvolver-se de
todo. pois a bloqueavam d.iscursos cnglobantes que. por vieses
laicos, prolongavam a submissão humana a um principio supe-
rior. mesmo que o ideal democrático militasse em favo.- de uma
autonomia do mundo humano, totalmente permeado pelas
aspirações Individuais. O sistema final da moda sacraliza a feli-
cidade priva<ta das pessoas e destrói em beneficio de reivindica-
ções e preocupações pessoais as solidariedades e consciências de
classe. E. de certa maneira, o maio de 6S pode ser visto como a
aplicação da lógica da moda à Revolução. Esse aconte-cimento
Uustra bem a oposição entre um individualismo hedonista de-
clarado e os conservador!smos sociais de outra época. que da-
vam continuidade a diferenciações hierárquicas e autoritárias,
sobretudo no plano sexual.

No nivel mais profundo. tralava-se de uma revoÍta que consistia


e.tn conciliar uma cultura consigo mesma, com seus novos prin ..
cfplos básicos. unificando-a. Não uma· crise de civilização", mas
vm movimento coletivo para arrancar a socfedade das normas c:uJ ..

)O
turals rigidas do passado e dar à luz uma sociedade mais flexivel,
mais diversa, mais irld.iVidualista, conforme as exigências da moda
consumada.li

Chegamos ao momento em que a comercialização <los mo-


dos de vida não mais encontra resistências estruturais, culturais
nem ideológicas: e em que as esferas da vida social e individual
se reorganizam em função da lógica do consumo. A primeira e
a segunda fase do consumo haviam tido como conseqüência a
criação do consumidor moderno, arrancando-o às tradições e
arruinando o ideal de poupança; a ú ltima fase estendeu ao in fi·
nito o domínio do consumo. Que a lógica da moda e do consu·
mo permeou espaços cada vez mais amplos da vida publica e
privada é evidente. Parece Igualmente óbvio que os lndividuos,
desapossados de qualquer sentido transcendente, possuem opi·
niOes cada vez menos firmes e cada vez mais volúveis. Nada,
entretanto, nos autoriza a dizer que a labUidade desses indiv!·
duos seja algo condenável <le per si. ~verdade que hoje eles são
mais oscilantes e mais volúveis quanto a suas opiniões, :mas será
isso um mal?

No reinado da moda total, o espirtto é menos flrme, porém mais


receptivo à critica,: menos estável, porém mais tolerante: menos se·
guro de si. porém mais aberto à diferença. à evidência, à argumen·
tação do outro. Éter uma visão supernclal da moda consumada
identifocá·la com um processo sem precedentes de padronização
e despersonalização: na realidade. e la estimula um questJona·
mento mais exigente, uma multiplicação dos pontos de vista sub-

)I
JeUvos, um declinio da semelhança de oplnl~ Nlo mais a con·
formldade crente de IOdos. mas a dl~caçlo das pequenas ver-
sões p enoals As grandes certez.as ideológicas se esvanecem (...)
em benefido de singularidades subjeUvas talvez pouco originais,
pouco criaUvas, pouco ponderadas, mas mais numerosas e mais
nex.lvcis.12

E. no fundo, será que se era mais original quando religiões c


tradições produziam das crenças coletivas uma homogenelda·
de sem senões?
De um lado, a ação d as Luzes continua: os indlvlduos saem
da mlnoridade e são cada vez mais capazes de exercer o livre
arbltrlo, de Informar-se, de pensar por si mesmos num univer-
so Ideológico onde as normas Imemoriais da trad.lção explo-
d)ram e onde os sistemas terrorl.stas do sentido não corroem
mais os espíritos. De outro lado. no entanto, as autoridades
espirituais nào desapareceram: elas se exercem diferentemcn·
te, preferindo a argumentação à Imposição. A opln!Ao pública
também exerce poder. mas seu peso é mais opcional que deter-
mlnánte, e ela contribui para criar o sentimento lndlvldua.l.
Contudo, ao mesmo tempo, nada ma.is permite distinguir en·
tre Informação e desinformaçào: as teorias mais rocambolescas
ganham plenos direitos e se transformam em be:st wler (basta
pensar na atribuição dos atentados de n de setembro de 1001 aos
serviços secretos ameM canos. sem contar todas as teorias cons·
plratórlas que vicejam por ai), as lendas urbanas .se multtpll·
cam, as seitas recrutam mais gente que nunca, as ciências do
paranormal desfrutam nova credibilidade...

)I
.. \

Onipotênc.ia da lógica consumista?

Todos os dias, pare<:e que o mundo do consumo se lml:scul em


nossas vidas e modifica nossas relações com os objetos e com os
seres, sem que, apesar disso e das criticas que se formulam a res1
peito dele, consiga-se propor um contramodelo crível- E. para
além da postura critica, seriam raros aqueles que des:ejanam.
mesmo aboli-lo em definitivo. É forçoso constatar que seu im1
pério não pára de avançar: o principio do self-service, a busca d~
emoções e prazeres. o cálcu lo utilitarista, a superficialidade dm
vínculos parecem ter contaminado o conjunto do corpo social,
sem que nem mesmo a cspiritualidade escape a isso. A religião
atualizou-se com o consumo, abandonando o ascetismo em
favor do hedonismo c do espírito festivo, enaltecendo os valo)
res da solidariedade e do amor mais que os da contrição· e do rEl-j
cólhimento. EISso vale Igualmente para a dimensão famlllal \
para a relação com a ética, com a política, com o sindicalismo'
ou, ainda, com a natureza. A hlpermodemldade funciona mesm~
segundo a lógica da reciclagem permanente do passado. e nad;
parece escapar a seu dominio.
Quer-se outro exemplo? No âmbito do acesso das mulhe .
j
ao mundo da autonomia, discute-se a persistência de cert'J
referenciais tradicionais, como se a ação da igualdade n~o tives·
se levado sua lógica até o fim. ou seja, até a Indistinção dos se·
xos. Mas é preciso entender que, se certas normas s.ocla.ls Ol
funções tradicionais reservadas ao feminino se mantiveram, fo
porque a lógica Individualista as reciclou, com as mulheres ten
do-se apropriado delas a fim de auJcrir mais felicic,ladc privad~

l
e não porque aquelas normas e funções constitulssem um res·
qulclo arcaico do qual, segundo as feministas, seria preciso ver-
se .livre..

.Seu mulheres sempre mintem relaç~ privilegiadas com a or·


dem domé$tica, sentimental ou e$tétlc:a. nio é por simpleS Inércia
social, mas sim porque essas relações se ordenam de tal maneira
que não mais entravam o principio de autonomia e funcionam co-
mo vetores de Identidade, dé sentido e de poder privados: é do pró-
priO Interior da cultura lndiVIdualfstlco-democnltlc:a que se recons·
tltuem as trajetórias diferenciais dos homens e das mulheres.li

No mundo do hlperconsumo, até a dona-de-casa pode ser


reclclada ...
o
Será que a lógica consumlsta é totalmente'hegemõnica, ca·
p;~Z de tv.<!o ~rver e tudo rec!c!ar segundo sua própria raclo·
nalldade? O funcionamento do mundo liberal, que gera mais
lucro, mais eflclência e ma.is racionalidade, parece justificar os
receios de Heldegger, o qual, a respeito da técnica, denunciava
uma "deturpação de .seu sentido em favor de uma "vontade da
vontade· , uma dinâmica do poder que se alimenta de si mes·
mo, sem outra flnalidade além de seu próprio desenvolvimen·
to. A vontade, que de inlcl.o era animada pelo louvável desejo
de aliviar a humanidade de seu sofrimento !memorial, trans·
formou-se pouco a pouco em vontade de poder, tendo como
única flnalidade seu próprio dominio sobre os homens e as co!·
sas e, em última análise, produzindo este mundo fanático da
técnica e do desempenho que é o nosso. Idéia retomada em
.'
nossa época por Pterre-André Taguleff, que mO<>tra Igualmente
q.u e a lógica· da modernização Intempestiva perdeu toda finali-
dade humana e que a técnica fez declinarem todO<> os valores;
para Taguleff, esses dois aspectO<> levam diretamente a u ma for-
ma de neonllllsmo.
Todavia, não é preciso ensombrecer Indevidamente o qua·
dro, pois nem tudo se r:esume ao consumo puro e simples e
nem tudo é reclclável. Certos valores própriO<> da modernidade
(os direitO<> humanO<>, por exemplo) não estão perto de cair no
consumlsmo puro. Ao mundo do consumo escapam também
outros valores, como a preocupação com a verdade ou com o
relaciona!. Se é digno de nota que a obsessão da Imagem Inva-
diu o mundo intelectual e lmJ)ellu determinados pensadores a
levar em conta as exigências do marketing, não é menos notá·
vel que a honestidade Intelectual e a preocupação com a verda·
de continuem a ser apanágio da maioria. No fundo, a vontade de
saber conservou, na maior parte dO<> casos, a ascendência sobre
a vontade de agradar e ser reconhecido, e o ritmo lento do pen·
sarnento teórico não está próximo de adaptar-se àquele, extre-
mamente O<>Cllante, da sociedade do espetáculo:

O. intelectuais continuam sendo marteladores obstinados·do stÍI-


Udo; como tal$. são uma espécie antiquada longe de estar prestes a
acochambrar desavergonhadamente seu trabalho para lotar suas
agendas de compromissos. Talvez o trabalho Intelectual, por seu
caráter Insuperavelmente artesanal e apaixonado !amoure.a!,. seja o
que, aqui e ali, venha a opor a resistência mais obstinada 11 (rlvoll·
dade, ao porvir-espetáculo, do mundo.ll

lS
O ·amor· -eis outro domlnlo que escapa à esfera do lucro,
do ganho, assim como, de modo mais geral, todos os valores
relaclonais que, em grande parte, consUtuem a riqueza de no5S3
vida privada. No mesmo momento em que a preda~o parece
caracterizar nosso relacionamento com o mundô dos objetos c
dos seres, tem-se aí um dominlo que se apresenta como se fun-
cionasse de maneira totalmente desinteressada. O reino do
dinheiro não é coveiro da afetividade: ao contrário, é ele que dá
a essa última toda a sua legitimidade, como se sentíssemos ser
necessário recuperar alguma lnocéncia num mundo cada vez
mais regido pela eficiência c pela racionalidade.
Nada mais falso, portanto, do que acreditar que o consumo
reine sem restrições. Da mesma forma. nada mais falso do que
pensar que ele, reduzindo os lndlviduos ao papel de consum1-
d9res, favoreça uma homogcncl.zaçào social. O problema mais
Importante não é deplorar a atomização da sociedade, c sim
repensar a socialização ..,m contexto hlpermoderno, quando
nenhum discurso ideológico faz mais sentido e quando a desin-
tegração do social está no auge. Claro, uma reconstituição so-
cial está em andamento, mas ela parte unicamente do desejo
subjetivo dos indiVIduos. Os átomos sociais não torcem o nariz
para a Idéia de reencontrar-se, comunicar-se. reagrupar·sc em
movimentos associativos, sendo estes marcados pe·lo egocen-
trismo, porque a adesão é espontânea, nexívc.l e segmentar, em
todos os aspectos conforme a lógica da moda. Mas será que
agrupamentos narcisistas bastarão para tornar democrá!lca
uma sociedade e promover o senso de valores quando apenas o
consumo parece essencial?

)6
' .'\

A ética entre a responsabilidade e a irresponsabilidade

Ser.! que a hlpennode.m idade, caracterizada por um consumo


emocional e por indivíduos preocupados antes de tudo com a
própria saúde e segurança, é o sinal da axendéncia da barbár!e
sobre nossas sociedades? São numerosos os que criticam o esta-
do atuul de nossa e xistência, em c1ue vemos apenas as almas
Impotentes, a barbáric interior, a derrocada do pensamento ou
a hnperfelção do present e. Como se houvesse efetivamente
triunfado o nülismo no qual Nlcl2SChe via o fu turo da Europa.
E, em certos aspectos, aquela constatação não é falsa: o hedonis-
mo Individualista, ao minar as Instâncias tradicionais de contro-
le social c expelir do campo social toda transcendência, priva de
referenciais certo número de Individuas c favorece um rclaU·
vis mo desmedido que parece dar livre curso a todas a lucubra-
ções possivcis. Como delx:ar de mencionar a proliferação de sei-
tas, que seduzem até indivíduos Instruidos, ou o retorno do
paranormal quando esse m esmo tipo de fenômeno foi desacre-
ditados pela modernidade? Baylc c Fontcnelle podem até se revi·
rar na cova, • mas isso não modiOcar.l em nada a lógica h! per-
moderna, que rearranja e recicla o passado sem cessar.
Contudo o relativismo é apenas uma faceta possível da fll-
permodcrnldade. Éforçoso r~'Conhecer Igualmente que os di·
reltos humanos j amais foram vlvenclados de maneira tão con·

• Pterre Bayle (16<7-1706) e Bemard de Fontenelle (a6s7·171J), pens.ado·


res franceses que. cada um a seu modo, defendiam o racionalismo
contra a Ignorância e a superstlç~. (N.T.)

)7
sensual quanto hoje: e que os valores de tolerâocia e de respei-
to ao outro nu oca se manifestaram tão Intensamente quanto
em nossa época, ocasionando uma repulsa generalizada ao em-
prego gratuito da violência. Ademais, como não lembrar que a
hlpermodernldade se constrói em paralelo a um Imperativo
ético cada ve-~ mais pronunciado? No lugar do quadro catastro-
flsta que nos servem habitualmente (em que a moral abando-
nou o espaço social, substltulda que foi pelo cinismo ou pelo
egolsmo), convém salientar, em face das ameaças engendradas
pelo desenvolvimento técnico-cientifico e pelo empobrecimen-
to dos grandes projetos polftlcos, a necessidade atual de regu-
lação ética e deontológica, no nível social, econOmlcoiS ou
mesmo midlátlco. Está certo, a necessidade ética não é mais vi-
vida como no passado. segundo a lógica do dever sacriflcial, e
de.ve ser considerada na forma de uma moral Indolor, opcio-
nal, que fuoclona mais pela emoção que pela obrigação ou san-
ção e que está adaptada aos novos valores de autonomia indi-
vldualista.l6 Mas essa fase pós-moralista que hoje caracteti.za
nossas soCiedades não acarreta o desaparecimento de todos os
valores éticos.

Multo embora o sacerdócio do dever e os tabus vitorianos te-


nham caducado, nascem novas regulações, recons-tituem-se prol·
blçoes. reinstauram·se valores, proporcionando a Imagem de uma
sociedade sem relação com aquela descrtta pelos que desprezam a
• permissividade generall:zada •. A liturgia do dever dilacerante não
mais tem espaço social. mas os costumes nâo soçobraram na
anarqula: o bem~estar e os prazeres são enaltecidos, mas a socle·

JS
\

dade civil está ávida de ordem e moderação; os direitocs subjetivos


r~m nossa cullura, mas · nem tudo é pennltldo• _17

Vê-se que, evidentemente, a pós-moralidade não é slnOnl·


mo de Imoralidade. Três elementos possibilitam destacar bem a
pcrslst~ncla dos ideais éticos em contexto Individualista. Em
primeiro lugar, o desaparoclmcnto de uma moral incondlcio·
na! não teve como con.seqOêncla a difusão de comportamentos
egoislaS no conjunto do corpo social. Em segundo lugar, o rela·
Uvismo de valores não contribuiu pa.r a o niilismo moral porque
perdura um núcleo duro de valores democráticos. núcleo em
torno do qual se afirma um consenso forte. E. por fim, a perda
dos referenciais tradicionais não resultou no caos social, dado
que a liberação individual, especialmente no plano sexual. não
produziu uma anarquia total dos costumes.
Ássim sendo, a tomada de responsabilidade individual ó ape-
nas uma faceta da hlpermodernldadc, e também nllo se deve
esquecer que a dissolução das formas de enquadramento dos
individuas pode produzir o efeito inverso. Com o desmorona-
mento dos grandes discursos normativos acerca da moral. assis-
te-se a fenOmenos inéditos que participam de um lndlvfd':'a·
lismo Irresponsável: cinismo generalizado. recusa do esforço e
do sacrlflclo Individuais. comportamentos compulsivos, tráfico
de drogas e toxicomania. violcncia ga·atuita, particularmente
em relação às mulheres nas periferias urbanas. O reino do
hedonismo coincide apen as em parte com a e.r a da tomada de
responsabilidade.
Os paradoxos do quarto poder

Embora a moral não tenha desaparecido do campo social, o


fato é que ela é imposta de fora, pelas mensagens veiculadas na
mídia, e não mais determinada de dentro. Éverdade que as
normas sociais não siio mais decretadas nem impostas pelo espi-
rlto nacional, pela família ou pelas Igrejas e que os referenciais
fornecidos pelas lnstãnclas tradicionais não mais fazem sentido
e precisaram adaptar-se à lógica do consumo. Também é fato
que nossa sociedade fascinada pelo frívolo e pelo supérfluo
entrou em seu momento flexível e comunlcaclonal, caracteri-
zado pelo gosto do espetacular e pela Inconstância das oplnlóes
e das mobilizaçóes sociais. Nada de multo original nisso, já que
a crítica habitual do mundo mldiático (própria da escola de
Frankfurt e dos seguidores de Guy Debord) consiste em atri-
buir-lhe uma onipotência que contribuiu para transrormá-lo
em Instrumento de manipulação e alienação totalitárias, cuja
finalidade seria a justificação da ordem estabelecida e do con-
form~mo e a padronização dos Indivíduos. Mas. embora se deva
reconhecer que a mídia tem mesmo um papel norma.tlzador e
que sua Influência sobre o cotidiano está longe de ser lnslgnifl-
c!lnte, disso não se concluirá afobadamente que seu poder de
masslflcaçl'oo é ilimitado. De fato, a mídia pode favor-ecer este
ou aquele comportamento do p<'obllco, mas não impô- lo. Uma
prova díSSó é qué martelar numa mesma mensagem não pro-
duz o efeito desejado (basta lembrar as campanhas publicitárias
contra o fumo, que não parecem ter modiOcado sensivelmen-
te a situação) .

••
.. '\

Apesar de tudo, será que nao podemos conceder grande


parcela de legitimidade à críllca apresentada por Oebord? Será
que nao estamos totalmente permeados por mensagens exter-
nas que condicionam e padronizam nossos comportamentos?
Pensar assim Sériã não perceber os efeitos positivos da lógica da
mod,a e do consumo que. pouco a pouco, nos tornaram lndl·
rerentcs às mensagens publicitárias e aos objetos Industriais.
Em contrapartida, esse descontentamento com o mundo do
consumo possibilitou uma conquista de autonomia pessoal,
multiplicando as oportunidades de escolha individual e as ron·
tes de inrormação no rererente aos produtos. Longe de redun·
dar no homem unidimensional caro a Marcuse, a lógica do
consumo-moda ravoreceu o surgimento de um individuo mais
senhor e dono da própria vida, sujeito rundamentalmente lns·
táve l, sem vínculos prorundos, de gostos e personalidade oscl·
Iantes. Eé porque tem~ perrn que ele precisa de uma moral
espetacula.r, a única capaz de comov~·loe razê-lo agir. A mldia
se viu obrigada a adotar a lógica da moda, Inserir-se no regls·
tro do espetacular e do superficial e valoriZar a sedução e o en·
tretenlmento em suas mensagens. Dessa maneira, ela se adap-
tou ao rato de que o desenvolvimento do raciocínio pessoal
passa cada vez menos pela dlscussao entre indivíduos privados
e cada vez mais pelo consumo c pelas vias sedutoras da inror·
mação.
Se a negatividade da rnfdla pode ser reavaliada em função
do peso relat.ivo de seu poder normatizador, é preciso Igual·
mente salientar sua positividade. Isso porque, na história do
Individualismo moderno, a mídia desempenhou u m papel


emanclpador fundamental, ao difundir pelo conjunto do cor-
po social os valores hedonistas e llbertários.

Ao sacrallzar o direito à autonomia Individual, promover urna


cultura relacional, celebrar o amor ao corpo, os prazeres e a fcll·
cidade privada, a mldia cem sido agente de dissolução da fo.rça das
trndlçOes e das anllgas dtvtsOes estanques de classe, das morais
rlgoristas e das grandes ldeologt.. polltlcas.l&

Emais: ao possibilitar o acesso a uma Informação cada vez


mais diversificada e mais caracterizada por pontos d e vista dl·
ferentes, propondo uma gama extremamente variada de es·
colhas, a mldia permitiu que se desse aos individu os maior
autonomia de pensamento e de ação, com a oportunidade de
con stituir opinião própria sobre um número sempre maior
de fenômenos.
No plano político, por exemplo, o papel da mídia tem sido
determinante. Mais que considerá-la a responsável pela dls·
torção do debate público. seria desejável avaliar favoravelmen·
te a lnflu~ncla dela sobre a maturidade política de um eleitora·
do cada vez menos preso a um discurso ideológico ou a uma
lógica de classes e cada vez mais senslvel aos argumentos das
partes em disputa, o que só pode contribuir para o d ebate de-
mocrático. Aliás, nossas sociedades se caracteriUlm nào pelo
consenso. mas pelo debate permanente, para o qual a mídia con-
tribui multo. Privada de senlldo t.ranscendente, de autoridade
universalmente reconhecida, ela se dedica ao antagonismo
permanente dos discursos, tudo Isso sobre um pano de fundo
\

de estabilidade democnltlca, com a liberdade e a igualdade cons-


tituindo uma base de ideal comum- base todavia problemátlca,
já que liberdade e igualdade são prlnclpios su:s<:etiveis de Inter-
pretações opostas. Por conseguinte, nl!o suportamos o rclno da
uniformidade de convlcçOes e de comportamentos. A homoge-
nelzação dos gostos e dos modos de vida não desemboca numa
vida pollllca e social oonsc nsual; perduram os confiltocs, mas por
melo de uma pacificação Individualista do debate coletivo, para
a qual a mldia oonlribul. Um exemplo disso é que a elelç<lo rela-
tivamente delicada de George W. Bush não provocou nenhum
derramamento de sangue. Não estamos mais no tempo das gran-
des tragédias coletivas sal\grentas, mas o trágico se vive doravan-
te no subjetivo, a dificuldade de viver aumenta, o futuro nunca
pareceu tão ameaçador. A hipermodemldade não é nem o reino
da felicidade abooluta, nem o reino do nUllsmo total. Em certo
sentldo, nao é nem o resultado do projeto das Luzes, nemª çon-
firmaçào das sombriaS previsões nietzsehlanas.
Essa defesa do universo da mídia tem a única função de rela-
tiviZar os fenômenos e não procura d.isslmular a negatlvidade
que se opera no sistema mldlático, em especial, e na hipermo-
demidade, em geral. Éevidente que a sociedade hipermodema,
ao exacerbar o individualismo e dar cada vez menos importãn-
cla aos discursos tradicionais, caracteriza-se pela Indiferença para
com o bem público: pela prioridade freqUentemente conferida
ao presente e não ao futuro; pç~.._ e:s<:alada dos partlcularlsmos e
dos intermes corporativistas; pela desagregação do sentldo de
dever ou de divida para com a coletividade. Ao limitarem-se à
esfera da mldla, as análises podem ser Igualmente criticas, pois as

4}
mídias também são permeadas pela lógica dual característica do
mundo htpermoderno. que toma tudo ambiva.l ente.
Como não mencionar os efeitos negativos da mídia sobre a
cultura e o debate público? Supostamente destinada a infor-
mar-nos, ela mais é nos desinforma em função de Interesses
sensacionalistas (as sepulturas coletivas de Ttmisoara)• ou po-
líticos (lembremos o papel duvidoso desempenhado pela rede
americana Fox durante a Guerra do fraque, em >OOl). Em vez
de elevar o nível do debate público, a mídia transforma a polí-
tica em espetáculo. Em vez de promover uma cultura de quali-
dade, ela nos proporciona variedades insípidas. mu ltiplica os
programas esportivos e deixa para o horário mais tardio possí-
vel, quando não a suprime. a programação de caráter minima-
mente cultural. Considera-se que a mídia favoreça a liberdade
i~ividual e o gosto da Iniciativa. muito embora os consumido-
~ ~xillilm atltYdes tada vez mais tompulsivas em relação a ela.
Tem como função formar o discernimento e o espírito crítico,
mas com muita freqüência a lógica da mercantilização faz que
a renexão seja abandonada em favor da emoção, e a teoria. em
favor do uso pnitlco. O mesmo va.le para os livros de filosofia.
que só podem esperar ter sucesso se respondem a preocupações
pessoais e propõem receitas para alcançar a felicidade:

• Em dezembro de 19$9. quando da revolta que derrubaria o governo


de. Ceausescu. a mídJa anunciou que as mortes causadas pela repres-
são naquele mês já haviam chegado a 70 mil em toda a Romênia. das
quaiS " mil só na cidade de Tlmisoara. Na realidade. os números eram
cem vezes menores. (N.T.)
••
.
O que vence é não a j>alxilo pelo pensamento. mas a exigência de
saberes e de Informações Imediatamente operacionais.19

A midla. assim. é tomada pela lógica hipermoderna e pode


favorecer tanto os comportamentos responsáveis q"anto os
irresppnsávels.

O futuro da hipermodernidade depende de sua capacidade de


fazer a ética da responsabilidade triunfar sobre os comporta·
mentos Irresponsáveis. Estes não vão desaparecer sozinhos, pois
se Inscrevem necessariamente na lógica da hlpermodernidade.
De fato. são os próprios mecanismos do Individualismo demo·
crático que explicam tanto a responsabilidade de uns quanto a
irresponsabilidade de outros. daqueles que preferem corromper
a autonomia que herdaram. transformando-a em egolsmo pu·
ro. Esses últimos. preocupados apenas com o próprio conforto
e felicidade, retiram-se do social para o privado, aliás com a
consciência absolutamente llmpa.jã que as Instâncias trad.icio·
nals de socialização, desacreditadas pelo avanço do ind.ivldualls·
mo, não desempenham mais o papel normativo.
Não exageremos, porém. a força desse fenômeno: os co':'·
portamentos responsáveis continuam atuais. Ets talvez o fato
mais espantoso: emocional e Individualista, a sociedade de con·
sumo de massa permite que um espírito de responsabilidade.
dotado de geometria variálvel, coabite com um espirlto de lrres·
ponsabilidade Incapaz de resistir tanto às solicitações e xteriores
quanto aos Impulsos interiores. O fato é que a lógica binária de
nossas sociedades segulrá ampliando-se e que a responsabili·
dade de cada um ganhará cada vez mais Importância. Nenhu-
ma outra sociedade jamais possibilitou que se exercessem uma
autonomia e uma liberdade individual tão grandes, nemjamals
o destino dessa sociedade esteve tão ligado aos comportamen-
tos daqueles que a compõem.
O atrativo da visão binârla presente na obra de Ltpovetsky
estâ em que ela propõe, fora dos esquemas marxistas e liberais.
outra leitura do presente, na qual o futuro de nossas democra-
cias estâ em aberto e a responsabilidade Individual e coletiva é
plena e total. Contra os liberais, que acham que só o liberalismo
pode ~esolver as dificuldades que ele mesmo cria, Ltpovetsky
lembra que o papel do mercado tem limites e que a mão invisi-
vel providenciallsta que supostamente o regula de dentro pre-
cisa de luvas bem visíveis para precaver-se de seus próprios ex-
cessos. Contra os marxistas, que denunciam no capitalismo
uma lógica contraditória e militam em favór de u.m à SOCiédãdé
sem classes cujo advento é inevltâvel, Llpovetsky mostra como
a contradição se relnserlu no próprio cerne dós Indivíduos;
quanto as lutas simbólicas perderam Intensidade; e por que o
futuro é Jmprevlslvel,já que deve ser construído coletivamen-
te no presente. Ao levar em conta a complexidade do presente
e recusar as leituras Idealistas ou catastrofistas que disso se fa-
zem, Lipovetsky propõe wma interpretação de nossa hipermo·
demidade que se pretende simultaneamente racionalista e prag-
mática, e segundo a qual a tomada de responsabilidade é a pedra
angular do futuro de nossas democracias. Sem verdadeira to-
mada de responsabilidade, não bastarão as virtuosas declarações
de intenção desprovidas de efeitos concretos. Será n ecessârio
''
valorizar a intellgêncla pos homens, mobilizar as lnstitu ições e
preparar nossos filhos para os problemas do presente e do futu·
ro. A tomada de responsabilidade deve.ser coletiva e exercer-se
em todos os dominios do poder e do saber. Mas também deve
ser IndiVIdual, pois em último recurso cabe a nós assumir essa
a utonomia que a modernidade nos legou.

.• '
'

NOTAS
1 Sobre a relação com Foucault. ver a entrevista que nos
concedeu GUies Llpovetsl<y, e que foi publicada em la phllasophle
(faJlÇa/se tn questlons: t11tmlens a>-ec Comt..Sponvtlle, Condle, Ferry,
Ltpo.-.uty. Onrray, R~JSStt, Pari$, Le Livre de Poche, lOOJ.
I Ltpovetsky, L'empire dt l'iptrémttr: la mede tt soo deslin dllJI$ les soclérés
modemes, Paris, Galllmard. 1987, p. 6;·8(0 imp&lodoefemero, trad.
Marta Lúcia Machado: São Paulo, Companhia das Letras. 1!)89
(!. ed.)).
l Llpovetsky, lbld., p. JS.

I Llpovetsky, L'u. duvide, Paris, Galllmard, 198), p.ll [A tra do vazio.


trad. Miguel Serras Pereira & Ana lulsa Faria; Lisboa, Relógio
d'Água. 1990). .
s Lipovetsky,lbld., p. 16.

' Sobre tudo Isso, cr. Llpovetsky. "La soctéte


d'hyperconsommatlon · ,. Le Débar, IH. 2001. p. N ss. •

I Lpovetsky, "Luxe éternel, luxe émotlonnel", em GUies


Llpovetsky & Elyette Roux, Le /uxe étemel: dt I'~ do sacrê .au temps
des """''Uts, Paris, Galllmard (colléctlon Le Débat), zooJ, p. 6U-1.

47
I l.lpovetsky, L'm du vidt, p. 116•7,
t C r. Llpovetsky, "Narctsse au pl~c de la postmodemité?". em
Mitamoi~ dt Ia cvllwt 1/bmlt: HbJqut. Jllidias. tnltrfl'ÍS'.
Montréa!. l..iber. zooz, p. :s IMtlalUf.,.. da cvl!Uilllibtrai. trad.
Juremír Machado da Silva; Porto Alegre, Suuna. ,..,.j.
lt Llpovet.sky, L<mpirt de (iplllm#lf, p. zM.
11 lbld .. p. z91. Sobre a leitura que Ltpovet.sky rez do m;~lo de 1968.
ver "Changer la vlc, ou l'trnopllon d e l'lndlvldualisme
tronspolltlque •• Pou•oirs. 19. 19M.
ll(bld.• p. )"9.
11 IJpovetsky. La rrowemt r-~« moJutim du flmúlin.
Parts. Callimard, 1991. p. •1IA ttmin mulbtt'. ttad. Marta l.úc1a
Machado; São Paulo, Companhia das letras, rooo).
11 Llpovet.sky, "Monument lntcrdit". Ú Dóbat. •· 1980. p . c .
• 11 Sobre a leitura que l!povet.sky pi'OpOO da ética comercial, ver
S<!U "L'ame de l'entreprtse: mythc ou réalité?", em
Mtta~ do la cultutr!llbétalt. p. ll·S}.
11 Llpovet.sky, "Mon de la morale ou réssurrectlon des valeurs?",
lbld., p. , •..,•.

11 Llpovetsky, Úmpuscukdudtfoir. Parts. Calllmard, '"'· p. }o lO


mpúsallo c» cleow. trad. Fátima Gaspar; l.bboa. Dom Quixote. r99<1.
11 Llpovctsky. "Faut-11 b rOicr lcs médias?". em Mm~ dt l.l
Clllture 1/béralt, op. clt., p. 91·

"lbid .. p. 98.
A partir do Onal dos anos 70, a noção de pós-modernidade
fez sua entrada no palco intelectual com o Om de quaUil·
caro novo estado cultural das sociedades desenvolvidas. Tendo
surgido Inicialmente no discurso arquitetõnico (em reação ao'
estilo Internacional), ela bent depressa foi mobilizada parâ de-
signar ora o abalo dos allcerces absolutos da racionalidade e o
fracasso das grandes Ideologias da história, ora a poderosa dlnã·
mica de Individualização e de pluralização de nossas sociedades.
Para além das diversas Interpretações propostas, lmpôs·se a idéia
de que estávamos diante de uma sociedade mais diversa, mais
facultativa, menos carregada de expectativas em relação ao fu·
turo. Às visões entusiásticas do progresso histórico sucediam-se
horizontes mais curtos, uma temporalldade dominada pelo
precário e pelo efêmero. Confundindo-se com a derrocada das
construções voluntaristas do futuro e o concomitante trtunfo
das normas consumlstas centradas na vida presente, ·O período
pós-moderno Indicava o advento de uma temporalidade social
Inédita, marcada pela primazia do aqui-agora.

SI
O neologismo pós-moderno Unha um mérito: salientar uma
m4dança de direção. urna reorganização em profundidade do
modo de funcionamento social e cultural das socled.ades demo·
crállcas avançadas. Rãpida expansão do consumo e da comu·
nicação de massa: enfraquecimento das normas autoritárias e
disciplinares: surto de Individualização; consagração do hedo·
nismo e do psicologismo: perda da fé no futuro revolucionário:
descontentamento com as paixões políticas e as militâncias -
era mesmo preciso dar u.m nome à enorme transfo~mação que
se desenrolava no palco das sociedades abastadas, li\•res do peso
das grandes utopias futuristas da primeira modernidade.
Ao mesmo tempo, porém, a expressão pós-moderno era ambi-
gua. desajeitada, para não dizer vaga. Isso porque era evidente-
mente uma modernidade de novo gênero a que tomava corpo.
e não uma simples superação daquela anterior. Donde as retl·
cências legítimas que se manifestaram a respeito do prcnxo pôs.
Eacrescente-se isto: há vinte anos, o conceito de pós·moderna dava
oxigênio, sugeria o novo, uma bifurcaç.ã o maior; hoje, entre-
.
tanto, está um tanto desusado. O ciclo pós-moderno se deu sob
.
o signo da descompressão coa/ do social; agora. porém, temos a
sensação de que os tempos voltam a endurecer-se, cobertos que
estão de nuvens escuras. Tendo-se vivido um breve momento
de redução das pressões e imposições sociais, eis que elas reapa·
recern em primeiro plano, nem que seja com novos traços. No
momento em que triunfam a tecnologia genética. a globaliza·
ção liberal e os direitos humanos, o rótulo pós-modernoj á ganhou
rugas, tendo esgotado sua capacidade de exprimir o mundo que
se anuncia.
O~de ~-modemoa~a dirigia o olhar para um passado que
se decretara morto; fazia pensar numa extinção sem determl·
nar o que nos tornávamos. como se se tratasse de preservar
uma liberdade nova, conquistada no rastro da dissolução dos
enquadramentos sociais, políticos e ideológicos. I Donde seu
sucesso. Essa época terminou. Hlpercapitalismo, hiperclasse. hi·
perpotência, hiperterrorismo, hiperindividuallsmo. hipermer·
cado. hipertexto- o que mais não é IUper? O que mais não expõé
uma modernidade elevada à potência superlativa? Ao clima de
epílogo segue-se uma sensação de fuga para adiante. de moder·
nização desenfreada. feita de mercantilização prollferatlva. de
d esregulamentaçào econõmlca, de ímpeto técnico-científico,
cujos efeitos são tão carregados de perigos quanto d e promes·
sas. Tudo foi multo rápido: a coruja de Minerva anunciava o
nascimento do pós-moderno no momento mesmo em que se
esboçava a hipermodemização do mundo.
longe de decreta.r-se o óbito da modernidade, assiste-se a seu
remate, concretizando-se no liberalismo globallzado, na me r·
cantilizaçào quase generalizada dos modos de vida, na explora·
ção da razão Instrumental até a · morte" desta. nu ma lndlvl-
duallzaçào galopante. Até então, a modernidade funcionava
enquadrada ou entravada por todo um conjunto .d e contrape·
sos, contrarnodelos e contravalores. O espírito de tradição per-
durava em diversos grupos sociais: a divisão dos papéis sexuais
permanecia estruturalmente desigual; a Igreja conservava forte
ascendência sobre as consciências: os partidos revolucionários
prometiam outra sociedade, liberta do capitalismo e da luta de
classes; o ideal de Nação legitimava o sacrifiçio supremo dos

j}
lndMduos: o Estado administrava numerosas atividades da vida
econômica. Não estamos mais naquele mundo.
A sociedade que se apresenta é aquela na qual as forças de
oposição à modernidade democnitlca. liberal e indJvlduallsta
nao são mais estruturantes; na qual periclitaram os grandes ob-
jetivos alternativos; na qual a modernização não mais encontra
resistências organizacionais e Ideológicas de fundo. Nem todos
os elementos pré-modernos se volatlzaram, mas mesmo eles
funcionam segundo uma lógica moderna, deslnstltuclonallza-
da, sem regulação. Até as classes e as culturas de classes se tol-
dam em beneficio do principio da Individualidade autônoma.
OEstado recua. a religião e a famllla se privatizam, a sociedade
de mercado se impõe: para disputa, resta apenas o culto à con-
corrência econômica e democrática, a ambição técnica, os direi-
tos do individuo. Eleva·:se uma segunda modernidade, dcsre-
gulamcntadora e global.lzada, sem contrários, absolutamente
moderna, aUce.r çando-se essencialmente em trés axiomas oons-
litutlvos da própria modernidade anterior: o mercado, a en-
clêncla têcnlca, o Individuo. Tlnhamos uma modemidade limi-
tada.: agora, é chegado o tempo da modernidade consumada.
Nesse contexto, as esferas mais diversas são o /orus de uma es-
calada aos extremos, entregues a uma dinâmica ilimitada, a
uma espiral hiperbóllca.l Assim, testemunha-se um enorme
Inchaço das atividades nas Rnanças e nas Bolsas: uma aceleração
do ritmo das operações econOmlcas. doravante tu nclonando
em tempo real; uma explosão fenomenal dos volumes de capi-
tal em circulação no planeta. já faz tempo que a sociedade de
consumo se exibe sob o signo do excesso, da profusão de mer-
.. \

cadorias: pois agora isso se exacerbou com os hiperme rcados e


shopping ccnters, cada vez mais gigantescos, que oferecem uma
pletora de produtos, marcas e serviços. Cada dominio apresen-
ta uma vertente excrescentc, desmesurada, "sem limites·. Prova
disso é a tecnologia e suas transformações ve_rtiginosas nos
referenciais sobre a morte, a alimentação ou a procriação. Mos-
tram-no também as imagens do corpo no hiper-realismo por-
nõ: a televisão e seus espetáculos que encenam a transparência·
total: a galáxia Internet e seu diluvio de fluxos numéricos (mie
lhões de sites, bilhões de páginas, trilhões de caracteres. que do-
bram a cada ano}: o turismo e suas multidões em férias; as aglo-
merações urbanas e suas moegalópoles superpovoadas, asflldadas,
tentaculares. Para lutar contra "o terrorismo e a criminalidade.
nas ruas, nos shopping centers, nos transportes coletivos. nas
empresas, já se instalam ml lhões de câmeras, meios eletrônicos
de vigilância e Identificação dos cidadãos: substituindo-se à ãn-
tiga sociedade disciplinar-totalitária, a sociedade da hipe1-vlgl·
lãncia está a postos. A escalada paroxíslica do ·sempre mais· se
imiscui em todas as esferas do co'liunto coletivo.
Até os comportamentos individuais são pegos na e ngrena-
gem do extremo, do que são prova o frenesi consumlsta, o do·
ping, os esportes radicais, os assassinos em série, as bulimias c
anorexias, a obesidade, as compulsões e vlcios. Delineiam-sedu-
as tendências contraditórias. De um lado, os indlvlduos, mais do
que nunca, cuidam do corpo, são fanátlcos por higiene c saúde,
obedecem às determinações médicas e sanitárias. De outro lado,
proliferam as patologias i ndividuals, o consumo anõmico, a
anarquia comportamental. O hipercapitalismo se faz acampa-

' H
nhar de um hiperlndivfdualismo distanciado, regulador de si
mesmo, mas ora prudente e calculista, ora desregrado, dcscqul·
llbrado e caótico. No universo funcional da técnica, acumulam·
se os comportamentos dlsfunclonals. O hiperlndividualismo
coincide não apenas com a lntemallzaçllo do modelo do homo
OI!O)I)Om}cus que persegue a maxlml:zaçào de seus ganhos na maio-
ria das esferas da vida (escola, sexualidade, procriação, rellgiào.
política. sindicalismo), mas tambem com a dcsestrururaçllo de
antigas formas de regulação social dos comportamentos, junto
a uma maré montante de patologias. distúrbios e excessos com-
portamentals. Por melo de suas operações de normalização téc-
nica e desllgação soclai, a era hlpermoderna produz n um só
movimento a ordem e a desordem, a Independência e a depen-
dência subjetiva, a moderação e a !moderação.
· A primeira modernidade era extrema por causa do ideológl·
co-político: a que chega o é aquér11 do politlcõ, pela via da tec-
no logia, da midla, da economia, do urbanismo, do consumo,
das patologias Individuais. Um pouco por toda a parte, os pro-
cessos hiperbólicos e subpoHtlcos compõem a nova psicologia
das democracias liberais. Nem t udo funciona na medida do ex·
cesso, mas, de uma maneira de ou outra, nada é pou pado pelas
lógicas do extremo.
Tudo se passa como se tivéssemos Ido da era do pós para a era
do h/per. Nasce uma nova sociedade moderna. Trata-se nao mais
de sair do mundo da tradição para aceder à racionalidade mo-
derna, e sim de modernizar a própria modernidade.' racional!·
zar a racionalização - ou seja. na realidade destruir os "arcais-
mos e as rotinas burocraucas, pOr nm à rigidez institucional e

16
aos entraves protecionistas, retocar. prlvaU;a~r, estimular a con·
corrêncla. O voluntarismo do ·ruturo radiante" rol sucedido
pelo aUvismo gerencial, u rna exaltação da mudança, da reror·
ma. da adaptação, desprovida tanto de um horiZonte de espe-
rnnças quanto de uma visão grnndiosa da história. Por toda a
parte, a õnrasc é na obrigação do movimento, a h iper mudança
sem o peso de qualquer visão utópica. ditada pelo Imperativo da
cflclõncla e pela necessidad e da sobrevivência. Na hipe,r moder-
nldadc, não há escolha, nào há alternativa, senão evoluir. ace-
lerar para não ser ultrapassado pela "evolução": o culto da mo-
dernização técnica prevaleceu sobre a glorificação dos fins e dos
Ideais. Quanto menos o rut uro é previsível, mais ele precisa ser
mutável. nexivel. reativo. permanentemente pronto a mudar,
supermodcrno. mais moderno que os modernos dos tempos
heróicos. A mitologia da r uptu ra radical roi substituída pela
cultura do mais rápido e do sempre mais: mais rem abilidadc,
mais desempenho, mais flexibilidade. mais inovação.I Resta sa-
ber se. na realidade, Isso não slgnJOca modernização cega, niilis-
mo técnico-mercantil, processo que transronna a vida em algo
sem propósito e sem sentido.
A modernidade do segundo tipol é aquela que. reconclliadj)
com seus principies de base (a democracia, os direitos h u ma-
nos, o mercado). não mais tem contra modelo crivei e n ão pára
de rcclclar em sua o rdem os elementos pré-modernos que ou ·
Lrora eram algo a erradicar. A modernidade da qual estamos
saindo era negadora; a supermodcrnidade é integradora. Não
mais a destruição do passado, e sim sua reintegração, sua reror-
mulaç~o no quadro das lógicas modernas do mercado. do con-
sumo e da lndlv!dualldade. Quando até o não-moderno revela
a pr1rna21a do eu e funciona segundo um processo pós-tradicio-
nal, quando a cultura do passado não é mais obstáculo l mo·
dernlzação Individualista e mercantil, surge uma fase nova da
modernidade. Do pós ao hlper: a pós-modernidade nilo terá
sido mais que um estágio de transição, um momento de curta
duração. Eeste já não é mais o nosso.
Tantas convulsões nos convidam a examinar um pouco mais
de perto o regime do tempo social que governa nossa época.
O passado ressurge. As Inquietações com o futuro substituem a
mlst.lca do progresso. Sob efeito do desenvolviment o dos mer-
cados nnancelros. das técnicas eletrônicas de informação. dos
costumes Individualistas e do tempo livre, o presente assume
Importância crescente. Por toda a parte, as operações e os intcr-
éAmblo~se aceleram; o tempo é escasso e se torna um proble·
ma. o qual se Impõe no centro de novos conflitos sociais. Horá·
rio nexivel, tempo livre, tempo dosjovens, tempo da terceira e
da quarta Idade: a hlpermodernldade multiplicou as tempora·
lldades divergentes. Às desregulamentações do neocapitallsmo
corresponde urna imensa desregulação e Individualização do
tempo. Oculto ao presente se manifesta com força aumentada,
mas quais são seus contornos exatos e que vinculos ele mantém
com os outros eixos tem porals? De que maneira se artlcu la nesse
contexto a retação com o futuro e com o passado? Convém rea-
brir a questão do tempo social, pois este merece mais do que
nunca uma inquiriç.à o. Superar a temática pós-moderna. re-
conceltuallzara organização temporal que se apresenta- eis o
propósito deste texto.

l8
." '
As duas eras do presente

Jean-François Lyotard foi um dos primeiros a notar o vínculo


'
entre a condição pós-moderna e a temporal idade presentlsta.
Perda de credibilidade dos sistemas progressistas: prima:tia das
normas da eficiência; mercantilização do sa.ber: multiplicação
dos contratos temporários no cotidiano&- o que significa tudo
Isso senão que o centro de gravidade temporal de nossas socle-'
dades se deslocou do fu turo para o presente? A época dita póS-
moderna, definida pelo esgotamento das doutrinas er:nanclpa-
tórlas e pela ascensão. de u m tipo de legitimação centrada na
eficiência, faz-se ·acompanhar_do predomínio do aqui-agora.
Perguntemos: quais as forças socioistórlcas que provocaram
a agonia das visões triunfalistas acerca do futuro? Sejamos cla-
ros: os insucessos ou as catástrofes da modernidade polltico-
econõmJca (as duas guerras mundiais, os totalitarismos; o Gulag.
o Holocausto, as crises do capitalismo,.o abismo entre Primeiro
e Terceiro Mundo) jamais teriam, por si sós, causado a ruína das
• metanarratlvas• se novos referenciais não hou vessem alcan-
çado êxito maciço em remodelar as mentaUdades, em oferecer
novas perspectivas para as: existências. As desilusões, as decep_-
ções políticas, não explicam tudo: houve simultaneamente no-
yas paixões, novos sonhos, :novas seduções que se manifestaram
dia após dla, sem grandiloqüência, é verdade, mas onipresentes
e afetando o maior número de~- Eis o fenômeno que nos
modificou: é com a revolução do cotidiano, com as profundas
convulsões: nas aspirações e nos modos de vida estimuladas pelo
último meio século, que surge a consagração do presente.

59
No cerne do novo arranjo do regime do tempo social, te-
mos: (•) a passagem do capitalismo de produção para uma eco-
nomia de consumo e de comunicação de massa: e (1) a subs-
tituição de uma sociedade rigorfstlco-disciplinar por uma
·sociedade-moda completamente recstrulurndã pé lãS técnicas
do efêmero, da renovação e da sedução permanentes. Dos
objetos Industriais ao ócio, dos esportes aos passatempos, da
publicidade à Informação, da higiene à educação, da beleza à
alimentação, em toda a parte se exibem tanto a obsolescência
acelerada dos modelos e produtos ofertados quanto os meca-
nismos multiformes da sedução (novidade, hiper...:olha, self·
servlce, mais bem-estar, humor, entretenimento, desvelo,
erotismo, viagens, Jazeres). O universo do consumo c da co-
municação de massa aparece como um sonho jubiloso. Um
mundo de sedução c de movimento incessante cujo modelo
não é o,;tto sêí'lão o sist<!Ma da moda. Tem-se não mais a repe-
tição dos modelos do passado (como nas sociedades tradicio-
nais), e sim o exato oposto, a novidade e a tentação s istemáticas
como regra e como organi'taçào do presente. Ao permear seto-
res cada vez mais amplos da vida coletiva, a forma-moda gene-
ralizada Instituiu o eixo do presente como temporalidade so·
cialmentc prevalecente}
Enquanto o princlpl·o -moda "Tudo o que é novo apraz • se
Impõe como rei, a neofilla se afirma como paixão cotidiana e
gernl.lnstalarnrrPse sociedades reestruturadas pela Lógica e pela
própria temporalidade da moda; em outras palavras, um pre·
sente que substitui a ação coletiva pelas felicidades privadas, a
tradição pelo movimento, as esperanças do futuro pelo êxtase

60
' ' \
do presente sempre novo. Nasce toda uma cultura hedonista e
psicologista que incita à .satisfação imediata das necessidades,
estimula a urgência dos prazeres, enalteceo florescimento pes-
soal, coloca no pedestal Õ paraíso do bem-estar, do conforto e
do lazer. Consumir sem esperar; viajar; divertir-se; não renun-
ciar a nada: as políticas do futuro radiante foram sucedidas pelo
consumo como promessa de um futuro eufórico.
A primazia do presente se instalou menos pela auséncia (de
sentido, de valor, de projeto histórico) que pelo excesso (de bens,
de imagens. de solicitações hedonistas}. Foi o poder dos dispo-
sitivos subpolíticos do consumismo c da moda gene:ralizada o
que provocou a derrota do heroismo ldeológico-politíco da mo·
dernidade. O coroamento do' presente se iniciou muito antes
que se houvessem enfraquecido as razões para ter esperança
num futuro melhor; esse coroamento precedeu em varlas,dê·
cadas a queda do Muro de Berlim, o univc~o acelerado do ci·
berespaço e o liberalismo globalizado.
A consagração social do presente consumista se fez acompa·
nhar de uma pie tora de acusações lançadas contra a atomiza·
çào social e a despolitização: contra a fabricação de falsas neces-
sidades; contra o conformismo e a passividade consumistas:
contra a adoção de engenhocas em todas as esferas da vida.
num processo sem propósito e sem sentido. Ademais, desde os
anos 70, a temática dos "estragos do progresso· tem repercussão
signiOcativa. Todas essas cr it!cas, porém, não impediram de mo-
do algum o impeto daquãlo que poderíamos muito bem deno-
minar um otlmismo pessoaL No momento em que ressoavam
as derradeiras encantações revolucionárias carregadas de espe-

61
ranças futuristas, emergia a absolutlzação do presente lmedla·
to, glorilicando a autenticidade subjetiVa e a espontanoeidade dos
desejos, a cultura do· tudojá·, que sacraliza o gozo sem proibi·
ções, sem preocupações com o amanhã. Enquanto o maio de 6.~
surgiu como uma revolta sem objetivo futuro, antlautorltárla e
libertária, os anos da liberação dos costumes substituíram o en·
gajamento pela festa, a história heróica pelas ·máquinas dese·
jantes", tudo se passando como se o presente houvesse conse·
guido canali2ar todas as paixões e sonhos. O desemprego ainda
era suportável, as Inquietações com o futuro tinham então
menos peso que os desejos de liberar e hedonizar o presente. Os
"trinta anos gloriosos,* o Estado do bem-estar social. a mitolo-
gia do consumo, a contracultura, a emancipação dos costumes,
a revolução sexual, todos esses fenômenos conseguiram remo·
ver o sentido do trágico histórico ao Instaurarem uma cons-
ciência màls otimiSta que pessimiSta, um Zeirgew dominado pela
despreocupação com o futuro, compondo um carpe diem si mui·
taneamente contestador •c consumista.
M~ iSsojá é página virada. A partir dos anos Soe (sobretudo)
go,lnstalou-se um presentlsmo de segunda geração, subjacente
à globallzação neoliberal e à revolução Informática. Essas duas
séries de fenômenos se conjugam para ·comprimir o espaço-
tempo·, elevando a voltagem da lógica da brevidade. De um la-
do, a mfdla eletrônica e Informática possibilita a Informação e

• Os anos de 19-lj a 1913, ou /es TrenttG/oritw$, assim chamados porque,


na França e nos outros paises desenvolvidos, corrcsponderam a um
per!odo de expansão inédita da renda e da qualidade de vida. (N.T.)
."
oslntcn:âmblosem "tempo real", criando uma sensaçllo de si-
multaneidade e de lmedlalez que desvaloriza sempre mais as
rormas de espera e de lentidão. De outro lado, a ascendência
crescente do mercado e do capitalismo Onanceiro pôs em xeque
as visões estatais de longo prazo em favor do desempenho a
curto prazo, da circulação acelerada dos capitais em escala glo-
bal, das transações econômicas em ciclos cada vez mais rápi-
dos.• Por toda a parte, as palavras-chaves das organizações são
Oexlbllldade, rentabllidade,justln lime, ·concorrência temporal".
auaso-zero - tantas orientações que são testemunho de uma
modernização exacerbada que contrai o tempo numa lógica
urgenllsta. Se a sociedade neollberal e lruormatlzada não criou
a mania do presente, não há dúvida de que ela contribuiu para
a culmlnãncla disso ao lnterrerlr nas escalas de tempo. lntensl-
ncando nossa vontade de libertar-nos das limitações do espaço-
tempo.
Mais: tal reorganlzaçllo da vida eeonõmlca não deixou de ter
conseqOêncJas dramáticas para eat~orlas inteiras da popula-
çllo, com o • turbocapitallsmo • e a prioridade dada à rentabili-
dade Imediata acarretando as reduções rnacJças de quadros run-
clonals, o emprego precário, a ameaça maior de desemprego.
O àl~lst predominantemente frívolo rol substituído pelo tem-
po do risco e da Incerteza. Viveu-se certa despreocupação com
o futuro- mas agora é na Insegurança que, cada vez mais, vive·
se o presente.
Oambiente da civilizaçllo do c~mcro fez mudar o tomemo-
cional. A sensação de Insegurança Invadiu os espiritos: a saúde
se Impõe como obsessão d as massas: o terrorismo, as caLástro-

6J
f~s. as epidemias são regularmente noticia de primeira página.
As lutas sociais e os discursos crltlcos não mais oferecem a pers-
pectiva de construir utopias e superar a dominação. Só se fala
de proteção,.segurança. defesa das • conquistas sociais". urgên-
cia humanitária, prescrv~çâo d<> p!al)eta, Em resu mo, de "li-
mitar os estragos·. O clima do primeiro presenlismo liberacio-
nista e otimista, marcado pela frivolidade, desapareceu em
favor de uma exigência generalizada de proteção.
O momento denominado pós-moderno coincidiu com o
movimento de emancipação dos Indivíduos em face dos papéis
sociais e da.• autoridades institucionais tradicionais, em face das
limitações Impostas pela llliação a este ou aquele grupo e em
face dos objetivos dista ntes: aquele momento é Indissociável
do estabelecimento de nom1as sociais mais flexlveis. mais diver-
sas, e da ampliação da gama d~ opções pessoais. Ots:;o resultou
!.!ffi ~nilmel)to de" descontração", de autonomia e-de abertu-
ra para as existências individuais. Sinônimo de desencantamen-
to com os grandes projetos coletivos. o parêntese pós-moderno
fico!-' todavia envolto numa nova forma de seduç-ão, ligada à
individualização das condições de' vida. ao culto do eu c das feli·
cidades privadas. ]á nã-o estamos mais nessa fase: eis agora o
tempo do desencanto com a própria pós-modernidade. da des·
mltlficação da vida no presente, confrontada que está com a
escalada das lns~guranças. O alivio é substituldo pelo fardo. o
hedonismo recua ante os temores. as sujeições do presente se
mostram mais fortes que a abertura de possibilidades acarreta-
da pela individuali7.açào da sociedade. De um lado. a-sociedade-
moda não pára d.e Instigar aos gozos já reduzidos d·O consumo.
.
do lazer e do bem·estar. De outro, a vida fica menos frívola,
mais estressante, mais apreensiva. A tomada das existências pela
Insegurança suplanta a despreocupação • pós-moderna.·. ~com
os traços de um composto paradoxal de frivolidade e ansiedade,
de euforia e vulnerabilidade, que se desenha a modernidade do
segundo tipo. Nesse contexto, o rótulo p<ls·modemo, que antes
anu nciava um nascimento, tomou-se um vestígio do passado,
um "lugar da memória·.
:

Os novos hábitos do futuro

Será que o eixo do presente tem excessivo poder na economia


temporal de uma época? Disso há pouca dúvida, na era do capi-
talismo financeiro e da precariedade salarial, da democracia
de opinião, da Internet e do "Tudo é descartável". Mas como
encarar o fato? Será que, conforme sugerem alguns, o sistema
temporal prevalecente equivale a um • presente absoluto", fe·
chado, encerrado em si mesmo, separado do passado e do fu- ·
turo? Será que o Individuo contemporáneo vive realmente
num estado de "irnponderabiUdade temporal", confinado nuffii1
lmedlatez esvaziada de qualquer projeto e herança? Será que ele
se confunde com o "homem presente· ,9 transformado em es·
trangelro no tempo, mergulhado apenas no tempo da urgên·
ela e da lrntantaneldade? Será que a aceleração generall7.ada. o
frenesi do consumo, o ret raimento das tradições e utopias te·
riam conseguido criar a civilização do • presente per-pétuo",
sem passado e sem futuro, do qual falava George OrweJfllO Essas
Idéias expressam uma verdade apenas parcial. Os fluxos econô-
micos de curto prazo. o Insucesso das certe-~as progressistas, a
de.rrocada do poder regulador das tradições - todos esses fenô-
menos presentlstas são lndlscutlvels. Parece-me, porém, que
eles nAo nos autorizanf a diagnosticar a irrupção de uma cu Itu·
ra do • presente eterno • ou • auto-suficiente·. Tal conceituall-
zação dei)<a passar excessivamente em branco as tensões para-
doxais que animam o regime do tempo na hipermodernldade.
Na verdade, não ficam~ órfãos nem do passado nem do futu-
ro, pois as relações com essas coordenadas adquirem nova rele-
vância à medida que o presente amplia seu domínio. Nada de
grau zero da tempor.tlidade, de um presente ·auto-referente·
feito de lndiferença radical tanto ao antes quanto ao depois: o
presentlsmo de segundo tipo que nos rege nAo é mais pós·mo-
qerno nem autárcico; ·e le não pára de abrir-se a outras coisas
além de si mesmo.

. e futuro
Confiança
Ninguém duvida de que a época marcada pelos temores da
tecnociéncla e pela decomposição das utopias políticas é aque-
la da· crise do futuro·. Nada mais de fé num futULrO necessa-
riamente melhor que o presente; nada mais de espera pelo
combate final e pela Ci.dade Radiosa; a absolutlzação do porvir
histórico foi sucedida pela inquietação. pela pane das represen-
tações do futuro, pelo eclipse da Idéia de progresso. Mas. apesar
disso. a página do progresso está multo longe de ter sido virada

66
, ' \

de vez. Se a mitologia do progresso contínuo e necessário está


caduca, nem por isso se parou de esperar e acreditar nos· mila-
gres da ciência" - a idéia de aprimoramento da condição huma-
na pelas aplicações do saber científico continua a fazeT sentido.
Simplesmente. tornou-se incerta e amblvalente a relação com
o progresso, esse último estando associado tanto à promessa de
um mundo melhor quanto à ameaça de catástrofes em cadeia.
As.,lstlmos não ao fim de toda crença no progresso. mas ao sur:
gimento de uma idéia pós-religiosa do progresso, ou seja, de
um porvir Indeterminado e problemático- um futuro hiper-
moderno.
As sociedades modernas se constituíram mediante uma
imensa "Inversão do tempo· q~e Instituiu a supremacia do fu-
turo sobre o passado.ll Mas essa temporalidade dominante nem
por isso deixou de prolongar em forma laiclzada crenças e es-
quemas mentais herdados do espírito religioso (avanço Inevi-
tável rumo à felicidade c a paz, utopia do homem novo, classe
redentora. sociedade sem divisão, espírito sacrificlal). Hoje, con-
tudo, todas essas • religiões seculares" po•·tadoras de esperanças
escatológicas estão mortas. Nesse sentido, a ·ausência de futu-
ro·, ou o estreitamento do horizonte temporal que subjaz à so;-
cledade hipermoderna, deve ser considerada uma Lalcl.zação
das representações modernas do tempo, um processo de de-
sencantamento ou modernização da própria consciência tempo-
ral moderna. A decadência do culto mecânico ao progresso
confunde-se não com o • presente absoluto·. mas com o futum
puro, a construir-se sem garantias. sem caminhos traçados de
antemão. sem nenhuma lei Implacável acerca do porvir.12 AI-

67
cançou·se uma etapa nova na emancipação em face da tutela
do elemento religioso: ápice da modernidade. essa etapa é sinO·
nlmo de hlpermodem12açáo da relação com o tempo histórico.
Nada de ruína da força do futuro: essa última simplesmen-
te nao é mais ldeológlco·polltlca, estan<lo ago111 contida na dl-
ntlmtca técnica e dentifica. Quanto ,.;,ais a época se organiza no
culto democrático erigido num absoluto de novo tipo, maiS os
laboretórlos concebem um futuro dessemelhante e trabalham
pare produzir um universo de ficção clentíflca, até maiS lnacre·
dltável que esta. Quanto menos se tem uma visão teleológlca
do futuro, mais ele se presta à Invenção hlpe.r·reallsta, com o bl·
nO mio ciência·técnica ambicionando expio= o Infinitamente
grende e o Infinitamente pequeno. remodelar a vida, gerar mu·
tantes. oferecer um simu lacro de lmortalldade, ressuscitares·
pécles desaparecidas, programar o futuro genético. Nunca antes
a humonrdadc lançou tão grande des;!fio ao homem e ao espa-
ço-tempo. Embora triunfe o tempo breve da economia e da
mldla, o fato é que nossas sociedades continuam voltadas pare
o futuro. menos romànUco e paradoxalmente maiS revolucio-
nário, poiS se dedica a tomar tecnicamente possível o lmpossr-
vel. A Impotência para Imaginar o futuro só aumenta em con·
Junto com a sobrepotêncta técnlco·clentrnca para transformar
radicalmente o porvir: a. febre da brevidade é apenas uma das
facetas da civilização futuriSta hlpermodema. Enquanto o me r·
cado estende sua·ditadura· do curto prazo. as preocupações
relativas ao porvir planetário e aos riScos ambientais assumem
posição primordial no debate colellvo. Ante as ameaças da po·
lulção atmosférica. da mudança climática, da erosão da blodl·
versldade, da contaminação dos solos, afirmam-se as Idéias de ·
·desenvolvimento sustentável" e de ecologia industrial, com o
encargo de transmitir um ambiente viável às gerações que nos
sucederem. Multiplicam-se igualmente os modelos de simu-
lação de cataclismos, as an<illses de risco em çS<:<tl~ mo,çlonal e
planetária, os cálculos probabilísticos destinados a discernir. ava-
liar e controlar os perigos. Morrem as utopias coletivas. mas ln-
tenslflcam-se as atitudes pragmáticas de previsão e prevenção'
técnico-científicas. Se o eixo do presente é dominante, ele não -é
absoluto: a cultu.r a de prevenção e a • ética do futuro" dão nova
vida aos Imperativos da posteridade menos ou mais distante.
Sem d~vlda, os interesses e~onõmicos Imediatos têm pre-
cedência sobre a atenção para com as gerações futuras. Durante
esse espetáculo de protestos e de chamamentos virtuosos. a des-
truição do melo ambiente continua: o máximo de apelos à res-
ponsabilidade de todos, o mínimo de ações públicas. Mas o fato
é que as preocupações referentes ao futuro planetário estão bem
vivas; elas habitam e alerta m permanentemente a consciência
do presente, alimentando as controvérsias públicas, solicitando
medidas de proteção para. o patrimônio natural. O presente
total da rentabilidade imediata pode dominar, mas não conti:
nuará assim Indefinidamente. Mesmo que o ecodesenvolvhnen·
to ainda esteja longe de dispor dos meios técnicos e sistemas
reguladores dos quais necessita, ele já começa, aqui e ali, a alte·
rar certas práticas. No ama.n hã, essa dinâmica deve ampliar-se.
~ pouco provável que a consciência e as limitações de longo
prazo não produzam efeito: elas transformarão tanto .as prátl·
cas presentlstas quanto os modos de vida e de desenvo lvimen·

69
to. Prepara-se um neofuturismo que nAo se assemelhará ao fu-
turismo revolucionário imbuído de espírito sacrí!icial: é sob os
auspícios da reconciliação com as normas do presente (empre-
go. rentabilidade econômica, consumo, bem-estar) qu:e se pro· .
cura a nova orientação para o futuro.
A própria dinâmica econômica não se esgota no presente
puro. Ela não pára de acarretar uma relação fundamental com
o futuro, na medida em que se baseia na rápida expansão do
consumo e do lnvestimen.to. os quais têm necessidad~e de que
haja con!iança no porvir. O otimismo progressista não mais é
admissivel, mas isso não signi!ica o desaparecimento de expec-
tativas positivas em relação ao amanhã. A. Giddens salientou
como a modernidade estava ligada à con!iança nos sistemas ahs·
tratos, ou ·sistemas peritos";ll acrescentemos que ela requer a
confiança dos agentes econômicos no futuro como condição
para o de$envolvimento da atividade produtiva. Essa C'onfiança
dos consumidores. dos Investidores, dos empresários, sabe-se, é
volátil e agora regularmente medida pelas pesquisas de opinião.
Na hipermodernldade, a fé no progresso foi substituída não
'
pela desesperança nem pelo niilismo, mas por uma conflança
Instável, oscilante, variável em função dos acontecimentos e das
clrcunstãnclas. Motor da dinâmica dos Investimentos e do con·
sumo. o otimismo em face do futuro se reduziu- mas não está
morto. Assim como o resto, a sensação de conflança se de-
slnstltudonallzou, desregulamentou-se, só manifestando-se na
forma de variações extremas.

70
' '\
Odeclinio do carpe diem
Este ponto já foi evocado mais acima: instalou-se um novo cU-
ma social e cultural, a cada dia distanciando-se um pouco maiS
da tranqüilidade descontraida dos anos pós•modernos. Com a
precarl.zação do emprego e o desemprego persistente, crescem
os sentimentos de vulnerabilidade, a insegurança profiSSional e
material, o medo da desvaloriZação dos diplomas, as atividades
subqualificadas, a degradação da vida social. Os mais joveri;
temem não achar lugar no universo do trabalho; os mais ve-
lhos. perder definitivamente o deles. Donde a necessidade de
nuançar muito perceptivelmente os diagnósticos que se fazem
de uma cu ltura neodionisiaca que se basearia na preocupação
exclusivamente presentista e no desejo de gozar o aqui-agora.
Na realidade, o que caractertza o Uitgeist é menos um CMpe diem
que a inquietação diante de um futuro dominado por lncerte·
.zas e riscos. Nesse contexto, viver sem olhar para o fut•uro slgc
nifica não tanto conquistac uma vida independente, livre dos
grilhões coletivos, quanto Mlfrer as restrições impostas pela de·
=truturaçáo do mercado de trabalho. É bem verdade que a
febre consumista das satisfações imediatas e as aspirações lúdi·
<:o-hedonistas não desapareceram de modo algum, pois elas se
desencadeiam mais do que nunca; estão, contudo, envoltas por
um halo de temores e inquletações. A despreocupação otimis-
ta que açompanhou os anos do período 19~1-rl e do ciclo da libec
Tação do corpo é mera lembrança: a hipermodernidade indica
menos o foco no instante que o declínio do presentismo em
:face de um futuro que se tornou incerto e precário.

] l
Hoje. osjovens multo cedo se mostram apreensivos com a
escolha da instrução e das carreiras que ela oferece. A espada
de Dâmocles do desemprego Impele os estudant~ a optar
pelas formações prolongadas e escolher cursos cujos diplomas
sejam considerados uma .garantia de futuro. Do mesmo modo,
os pais assimilaram as ameaças ligadas às desregulamentações
hlpermodernas. Raros são os que acham que a escola tenha
por objetivo central a satisfação Imediata dos desejos do filho:
o prioritário é a formação com vistas ao futuro;H donde a rápl-
.da expansão, em especial, do consumlsmo escolar, das aulas
particulares, das atividades extracurriculares. Preparar a juven-
tude para a vida adulta, mas também, no outro extremo da ca-
dela, achar soluções para financiar as aposentadorias a longo
prazo. No presente momento, a reforma do sistema de aposen-
ta(lorias e o prolongamento do perfodo de contribuição pre-
videncii\rlil figyrªm •:ntre i!$ grandes dificuldades dos governos
democráticos e levam às :ruas centenas de milhares de manifes-
tantes. Onde se vê que nossa cultura disse adeus ao futuro? Ao
contrário. ei-lo aqui. no centro das Inquietações e debates con-
temporâneos, cada vez mais como algo a prever e reorganizar.
O que declina não é a Importância do futuro. mas o e tos pós-
moderno do hlc'et nunc.
As novas atitudes para com a saúde ilustram de manelra no-
tável a desforra do futuro. Numa época em que a normaliza-
ção médica Invade cada vez mais os territórios do campo social.
a saúde se torna preocupação onipresente para um número
êrescente de Indivíduos de todas as Idades. Assim, os. ideais he-
donistas foram suplantados pela ideologia da saúde e da longe-

71

vidade. Em nome destas, os Indivíduos renunciam maclçamen·
te às satisfações imediatas, corrigindo e reorientando seus com·
portamentos cotidianos. A medicina não mais se contenta em
tratar os doentes: ela lnte·rvém antes do aparecimento dos sln·
tomas, lnfqrrna wbr<: os riscos em que se Incorre, e~>timula o
monitoramento da saúde. os exames clínicos, a vigilância
higienista, a modillcação dos estilos de vida. Encerrou-se um
capítulo: a moral do aqui-agora cedeu lugar ao culto da saúde,'
à ideologia da prevenção, à medicallzação da existência. Prevei ,
projetar, prevenir: o que se apossa de nossas vidas lndlviduall·
zadas é uma consciência que permanentemente lança pontes
para o amanhã e o depois-de-amanhã.
Cada vez majs vigilância, monitoramento e prevenção: ali·
mentação saudável, perda de peso, controle do colesterol, re-
pulsa ao fumo, atividade física - a obsessão narcísica com a saú·
de e a longevidade segue de mãos dadas com a priorjdade dªlli!
ao depois sobre o aqui-agora. O que nos leva a corrigir aquela
proposição freqüentemente citada de Tocqueville: "Parece que,
a partir do momento em que (os homens das democracias!
se desesperam de viver pela eternidade, eles se dispõem a agir
como se fossem existir por não mais que um dia· .11 Em vista da
Importância assumida pelos problemas da saúde e do envelhe·
cimento, é forçoso observar que estamos longe daquele etos:
o hlperindividualismo é menos lnstantaneísta que projetivo,
menos festivo que higienista, menos desfrutador que preven·
tivo, pois a relação com o presente integra cada vez mais a di·
mensão do porvir. O retraimento dos horizontes longlnquos
levou menos a uma ética do instante absoluto do que a um
pseudopresentlsmo minado pela obsessão com o que está por
vir. Declina a cultura do carpe diem: sob a pressão exercida pelas
normas de prevenção e de saúde, o que predomina é não tanto
a plenitude do instante quanto um presente dividido, apreen-
sivo, assómbrado pelos vírus e pelos estragos da passagem do
tempo. Nenhuma •destemporallzação • do homem: o indivi-
duo hlpermodemo continua sendo um Indivíduo para o fu-
turo, um futuro conju~do na primeira pessoa. Outros fenô-
menos revelam os limites da cultura presentlsta. Ao mesmo
tempo que a cultura Ubel!"aclonista está fora de moda, manifes-
tam-se numerosas formas de valorização do duradouro. Ainda
que as uniões sejam mals frágeis e mals precárias, nossa época,
apesar de tudo. testemunha a persistência da Instituição do
matrimônio, a revalorlzação da fldelldade, a vontade de contar
com relações estáveis na vida amorosa. Observam-se mals insa-
tisfações ou frustrações referentes às experiências sem futuro
do que odes aos amores casuais. Por que o amor permaneceria
um ideal, uma aspiração de massa, se não. ao menos em parte,
por ta~ do valor conferido à duração que associam a ele? E
como compreender a vontade de ter filhos, tudo menos cadu-
ca, sem supor o Investimento emocional de longo p:raw? Fica
evidente que o Instante puro está longe de ter colonizado por
completo as existências privadas, pois a sociedade hipermoder-
na dá nova vida à exigência de permanência como contrapeso
ao reinado do efêmero. tão causador de ansiedades.
' \ \

Conflitos de tempo e crono-reflexividade

Marx mostrou Isto em análises magistrais: a economlia de tem-


po é o princípio de funcionamento do capitalismo moderno.
Dedicando-se a reduzir ao máximo o tempo de trabalho e,
ainda assim, fazendo deste a fome da riqueza, o capitalismo é
um sistema que se baseia numa grande contradição temporal
que.exclui o homem de seu próprio labor. Tal tipo de contra•
dlção, sabe-se, só faz exacerbar-se. Simultaneamente, de um
mundo centrado na organização do tempo.de trabalho, passou-
se a um universo marcad-o pela redução do tempo social, pelo
desenvolvimento de temporalidades heterogêneas (tempo li·
vre, consumo, férias, saúde, educação, horários de trabalho va-
riáveis, aposentadoria), acompanhando-se de tensões .Inéditas."
Donde o acúmulo de problemas de organização e gestão, do
tempo social, assim como as novas exlgénclas de adml·ntstração.
de reorganização, de flexibilização pelo viés de dispositivos per-
sonalizados, com vistas à promoção do tempo ajustado às ne-
cessidades individuais. A obsessão moderna com o tempo não
mais se concretiza apenas na esfera do trabalho que eslá subme-
tida aos critérios de produtividade - ela se apossou de todos os
aspectos da vida. A sociedade hlpermoderna se apresenta como
a sociedade em que o tempo é cada vez mais vivido como preo-
cupação maior; a sociedade em que se exerce e se generaliza
uma pressão temporal crescente.
Essas contradições temporaiS repercutem no cotidiano e não
se expllcam exclusivamente pelo principio de economia e ren-
tabilidade transposto da produção para as outras esferas da vida
social. Quando se privilegia o futuro, tem·se a sensação de pas·
sar ao largo da "verdadeira" vida. Desfrutar os prazeres tal qual
se apresentam? Ou assegurar a vitalidade nos anos vindouros
(saúde, boa forma, beleza)? Tempo para os Olhos? Ou tempo pa·
ra a carreira? Não há apemas a aceleração dos ritmos de vida: há
também. uma conflJtualtzação objetiva da relaÇão com o tem·
po. Os antagonismos de classe se enfraquecem, e as tensões
temporais pessoais se generalizam e se acirram. Não mais classe
contra classe. e sim tempo contra tempo. futuro contra presen·
te, presente contra futuro, presente contra presente, presente
contra passado. O que privilegiar? Ecomo não lamentar esta ou
aquela opção quando o t-empo é destradicionalizado, entregue
à escolha dos indivíduos? A redução do tempo de trabalho, o
tempo livre e o processo. de individualização levaram à multi·
pli~ção dos temas e conOitos ligados ao tempo. É uma época
de guerras do tempo singulariZãdas que Sé réládonam ao viver
subjetivo. Às contradições objetivas da sociedade produtivista se
justapõe agora a espiral das contradições existenciais.
O estado de guerra contra o tempo Implica que os indiví·
duos êstão cada vez menos encerrados só no presente. com a
dinâmica de indivlduallzação e os meios de Informação funcio·
nando como instrumentps de distanciamento. de Introspecção.
de retomo ao eu.l7 A hlpermodernidade não se confunde com
um "processo sem sujeito·: ela segue de mãos dadas com a • to·
mada de palavra", a auto•refiexividadc, a crescente consclentl·
zação dos Indivíduos, esta paradoxalmente acentuada pela ação
efêmera da mfdia. De um lado. sofrem·se cada vez mais as limi·
tações do tempo desabalado; de outro, avançam a Independeo·
.. \

ela individual, a subje ~ivaçâo das orientações. a introspecção.


Nas sociedades individualistas, libertas da tradição, nada mais
está óbvio e evidente: a organização da existência c dos usos do
tempo exige arbitragens .e retificações, previsões e informações.
epreciso ri!presentar a hlpermodernidade como uma metamo-
demidade à qual subjaz uma crono-renexividade.

Tempo acelerado e tempo redestoberto


..
Uma das conseqüências mais perceptíveis do poder do regime
prescntista é o cUma de pressão que ele faz pesar sobre a vida das
organizações e das pessoas. G~ande número de quadros funcio·
nals menciona o ritmo frenético que domina a cadeia vital das
empresas nesta época de concorrência globallzada e ditames
nnanceiros. Sempre mais e)(igencias de resultados a curto pra•
zo, fazer mais no menor tempo possível, agir sem demora: a
corrida da competição faz priorizar o urgente à custa. do Impor-
tante, a ação imediata à custa da renexão; o acessório à custa do
essencial. leva também a criar uma atmosfera de dramatização,
de estresse permanente, assim como todo um conju nto de dls·
túrbios psicossomáticos. Donde a idéia de que a hipermodcrnl·
dade se distingue pela ldeologização e pela generalização do rei·
nado da urgência. I&
Os efeitos induzidos pela nova ordem do tempo extrapolam
em multo o universo do trabalho; eles se concretizam na rela·
ção com o cotidiano, com o eu e com os outros._Assim, um nú·
mero crescente de pessoas (as mulheres mais que os homens,

77
em razão das UmitaçOe:s da "jornada dupla", dentro e fora do
lar) reclama de estar sobrecarregadas. de ·correr contra o tem-
po·, de Ocar estafadas. Enenhuma faixa etária parece escapar
a essa corrida para adJa nte, pois mesmo os aposentados e as
crianças t~m hoje uma agenda lotada. Quanto mais depressa
se vai, menos tempo se tem. A modernidade se construiu em
tom o da critica à exploração do tempo de trabalho; já a época
hlpermoderna é contemporânea da sensação d e que o tempo
se rarefaz. Neste momento, somos mais sensíveis à escassez de
tempo que à ampliação do campo das possibilidades ocasiona-
da pelo lmpeto da Individualização; a falta de dinheiro o u de li-
berdade motiva menos queixas que a falta de tempo.
Contudo, se uns nunca dispõem de tempo suficiente, outros
(desempregados.jovens de rua) o lêm de sobra. De um lado, o
Individuo empreendedor, hiperatlvo, desfrutando a velocidade
e a•Intensidade do tempo; de outro, o Individuo esmagado • à
revelia· pela ociosidade." Sobre essa duallzação das maneiras de
viver o tempo, há pouca dúvida: assiste-se mesmo à lntensiOca-
ção de novas formas de d esigualdade social em face dele. Entre-
tanto, 'não se deve deixar que estas ocultem a dinâmica global
que, para além das classes ou dos grupos específicos, transfor-
mou profundamente a relação dos lndlvlduos no tempo soclal.
Ao cria.r o hipermercado dos modos de vida, o universo do
consumo, do lazer e agora das novas tecnologias possibilitou
uma autonomização crescente no que se refere às llmltaçôe$
temporais coletivas; dJsso resulta uma desslncronlzaçAo das ati-
vidades, dos ritmos e das trajetórias Individuais. Vetor de Indi-
vidualização das aspirações e comportamentos, o r-einado do

78
.'
presente social se faz acompanhar de ritmos em defasagem, de
construções mais personalizadas dos usos do tempo. A bipola-
rtzaçào do individualismo (por excesso ou por escassez) só se
afirma tendo como fundo essa pluralização c essa individuali-
zação generalizadas das Maneiras de getir o têmpo. Nêssê sen-
tido, a h!permodernidade é indissociável da destradiclonaliza-
çào-deslnstltuclonallzação-lndividualizaçào da relação com o
tempo, fenômeno geral que, transcendendo as diferenças_de
classes ou de grupos. extrapola em muito o mundo dos •vim-
cedores •. A nova sensação de sujeição ao tempo acelerado só
se apresenta paralelamente a um poder maior de organização
individua.l da vida.
Nova relação com o tempo que é igualmente exemplificada
pelas paixões consumistas. Ninguém duvida de que, em mui-
tos casos, a febre de compras seja uma compensação, úma
maneira de consolar-se das desventuras da existência, de pteél'l-
cher a vacuidade do presente e do futuro. A compu lsão pre-
sentlsta do consumo maiS o retraimento do hortzontoe tempo-
ral de nossas sociedades até constituem um sistema. Mas será
que essa febre não é apenas escapista, diversão pascallana, fuga
em face de um mundo desprovido de futuro Imaginável e
transformado em algo caótico e incerto? Na verdade, o que
nutre a escala consumista é indubitavelmente tanto a a!lgústia
existencial quanto o prazer associado às mudanças, o desejo de
intensificar e rcintenslflcar o cotidiano. Talvez esteja :ai o dese-
Jo fundamental do consumidor hlpermoderno: renovar sua
vivência do tempo, revivlflcá-la por meio das novidades que se
oferecem como simulacros d.e aventura. Épreciso ver. o hiper-

19
consumo como uma cura de rejuvenescimento que ze relnlcla
eternamente. Dessa maneira, o que nos define não é bem o • pre-
sente perpétuo" de que falava Orwell, mas antes um desejo de
perpétua renovação do eu e do presente. Na fúria consumlsta.
exprime-se a recusa ao tempo exaurido e repetitivo, um com·
bate contra esse envelhecimento das sensações que acompanha
a rotina diária. É menos .a negação da morte e da finitude do
que a angústia de fosslllzar·se, de repetir, de não mais sentir. À
pergunta "O que é a modernidade?", Kant respondia: superar a
mlnorldade, tornar-se adulto. Na hlpermodernldade, tudo se
passa como se surgisse uma nova prioridade: ficar eternamente
voltando à "juventude·. Nossa pu!são neofilica é, em primeiro
lugar, um exorcismo do envelhecimento do viver subjetivo: o In·
dlvfduo deslnstitucionaliz:ado, volátil, hlperconsumista, é aquc·
!e q'!e sonha assemelh.ar·se a uma fênlx emocional.

Sensualismo e desempenho

A cultura da lmediatez foi objeto de Incontáveis crfticas, que


nem sempre escaparam à comodidade das conclusões apoca·
llptlcasJNo universo da pressa, dizem, o vínculo humano é su·
bstltufd~ pela rapidez; a qtl811dadc de vida, pela eficiência; a frui·
ção livre de normas e de cobranças, pelo frenes; Foram-se a
ociosidade, a contemplação, o relaxamento voluptuoso: o que
Importa é a auto-superação, a vida em fluxo nervoso, os praze.
res abstratos da onipotência proporcionados pelas intensidades
aceleradas. Enquanto as relações reais de proximidade cedem

80
.'
lugar aos Intercâmbios virtuais, organiza-se urna cultura de hl-
peratlvldade caracterizada pela busca de mals desempen ho, sem
concretude e sem sensorlalldade, pouco a pouco dando cabo
dos fins hedonistas.
Mas evitemos tomar a parte pelo todo. Pois a e.r a da urgên·
ela é também aquela em que se ,dá a democratização da tecno·
logJa do bem-estar crescente, a rápida expansão dos m ercados
da qualidade, a erotlzação da sexualidade feminina. a voga de es·
portes como o esqui e o wlndsurfe. A música, as viagens, as p;ÍI·
sagens, o arranjo estético dos Interiores conhecem Igualmente
um sucesso sem precedentes. São tantas as práticas e gostos que
revelam uma época de sensuallzação e estetização em massa
dos prazeres. Coabitam duas tendências: a que acelera os rlt·
mos tende à desencarnação dos prazeres: a outra, ao contrário,
leva à estetlzação dos gozos, à felicidade dos sentidos:, à busca
da qualidade no agora. De um lado, um tempo comprimido,
·eficiente· , abstrato; de outro, um tempo de foco no qualitati-
vo, nas volúplas corporais. na sensuallzação do instante. Assim
é que a sociedade ultramodema se apresenta como urna cultu·
ra desunlficada e paradoxal. Um acasalamento de contrários
que só faz lntenslflcar dois Importantes princípios, ambos cons·
tltutlvos da modemldade técnica e democrática: a conquista da
eficiência e o Ideal da felicidade terrena.
A cultura hedonista foi sistematicamente analisada c estlg·
matizada como Imposição de felicidade consumlsta e erótica, •
·tirania do prazer. ·totalitarismo" mercantil. No entanto. o que
realmente se vê? Florescem as catedrais do consumo, mas estão
na moda as espiritualldad es e sabedorias antigas; o pomO se

81
expõe, mas os costumes sexuais são mais ajuizados que dos-
comedidos; o dberespaço vlrtuallz.a a comunicaç.ão, mas a
Imensa maioria apreda os eventos ao vivo, as festas coletivas, as
saldas com amigos; a trOCa paga se generaliZa, mas o volunta-
riado se multlplita, e maJ.s do que nunca os relacionamentos se
baseiam na afetividade sentimental. Fica óbvio que o lndlvfduo
não 6 o reflexo fiel das lógicas hiperbólicas midiátlco-men:an-
us: ele não é o • escravo" da ordem social que exige eficiência,
tanto quanto não é o produto mecânico da publicidade. Outras
motivações, outros Ideais (relaclonaLs., lntimistas, amorosos,
éticos), não param de orientar o hlperlndivíduo. O relnado do
presente é menos o da normatização da fellctdade que o da dl-
verslncaçllo dos modelos, da erosão do poder organizador das
normas coletivas, da despadronlz.açllo dos prazeres. A asccn-
dênda das normas do consumo e da sexualidade aumenta, até
porque elas· regem men.os estritamente os comportamentos
Individuais.
Superatlvo, o indivíduo hlpermoderno é Igualmente pru-
dente, afetivo e relaciona!: a aceleração dos ritmos não aboliu
nem a sensibilidade em relação ao outro, nem as paixões do
qualitativo, nem as aspirações a uma vida equilibrada e senti-
mental. O extremo é apenas uma das vertentes da ultramoder-
nldade. Certos quadros funcionais podem ser wottaholíc::s, mas a
maioria dos assalarl~dos aspira a conciliar a vida pronsslonal
com a particular, o trabalho com o lazer. Alugam-se filmes
pornOs a rodo, mas a vida libidinosa está muito longe de ter
caldo na orgia e no swlng generalizado. A publicidade pode até
exaltar as fruições comerciais, mas é a relação com outrem

81
(filho, amor. aml2ade) o que conslltui a qualidade de vida do
maJor número de pessoas. O frenesi do ·sempre mai.s • não en-
terra as lógicas qualitativas do ·melhor e do sentimento; ao
contrário, dá-lhes maior espaço social, uma nova legitimidade
de massa. Por toda a parte, oo exageroo hlpermodemo$ ~o re-
freados pelas exigências da melhoria da qualidade de vida, pela
valor12açao dos senllmentos e pela personalidade, a qual não se
pode trocar: por toda a parte, as lógicas do excesso deparam
com contratendênclas e válvulas de segurança. Ato.r mentada
por normas antinômicas. a sociedade uh.ramoderna n ão é uni-
dimensional: assemelha-se a um caos paradoxal, uma desor-
dem organizadora. !li
TNesse contexto, o que mais deve nos preocupar não é nem a
dessensuallzação nem a •dltadurl!· do prazer. mas a fraglllzação
das personalidadesJA cultura hlpermoderna se caracterl2a pelo
enfraquecimento do poder regulador das tnslltuições coletivas
e pela autonomização correlativa dos atores sociais em face das
lmposlçOes de grupo, sejam da família, sejam da reUgtão, sejam
doo partidos poUUcos, sejam das culturas de classe. Assim, o In-
dividuo se mostra cada vez mals aberto e cambiante, fl uido e so-
cialmente Independente. Mas essa volattlldadc significa muito
mais a desestablllzação do eu do que a afirmação triunfante de
um individuo que é senhor de si mesmo. Testemunho disso é a
maré montante de sintom as psicossomáticos. de distúrbios
compulsivos, de depressões, de ansiedades, de tentativas de sui-
cídio, para nem falar do crescente sentimento de insuficiência e
autodepreciaçã~Vulnerabllidade psicológica que (ao contrário
do que tanto se dtz) se deve menos ao peso extenuante das nor-
mas do desempenho. à intcnsiOcaçâo das pressões que se aba-
tem sobre as pessoas. do que à ruptura dos antigos sistemas de
defesa e enquadramento dos Indivíduos. lembremos apenas
que a fogueira das ansiedades e das depressões~ o trlun·
fo da cultura empresarial e do ncollberallsmo. O que explica o
fenOmeno não são tanto as pressões da cultura do desempe-
nho qua nto o enorme avanço da Individualização, ·o dccllnlo
do poder organizador que o coletivo tinha sobre o individual.
Deixado a si mesmo, desinscrldo, o Indivíduo se vê pr ivado dos
esquemas sociais estruturantes que o dotavam de forças Inte-
riores que lhe possibilitavam fazer frente às desventuras da
exlstencla. À desregulaçâo institucional generalizada corres-
pondem as perturbações do estado de ânimo, a crescente de-
sorganização das personalidades, n multiplicação de distúrbios
pslc91óglcos e de discursos queixosos. ~a Individualização ex-
trema de nossas sociedades o que, tendo enfraquecido as re-
sistências • a partir de dentro". subjaz à espiral dos distúrbios
e desequlllbrlos subjetivos. Assim, a época ultramoderna vê
desenvolver-se o domlnio técnico sobre o espaço-tempo, mas
declinarem as forças Interiores do Individuo. Quanto menos as
normas coletivas nos regem nos detalhes, mais o indivíduo se
mostra tendencialmcnte fraco e desestabilizado. Quanto mais
o Individuo é socialmente cambiante, mais surgem manifesta-
ções de esgotamentos e ·panes subjetivas. Quanto mais ele
quer viver Intensa e livremente. mais se acumulam os sinais do
peso de viver.
' ' \

O passado revisitad o

O· retorno" do fu turo nAo é o único fcnOmeno que contesta a


idéia de presente social voltado para si mesmo: a retiOcar esse
·tipo ldi!t!l" weberlano, oonvlda·nos também o renOmeno, que
estam os testemunhando. do revivesctmcntO do passado.
4 ~ É Inegável que, ao celebrar o sempre novo e os gozos d<;>
aqui-agora, a civilização consumlsta opera continuamente para
enfraquecer a memória coletiva, acelerando o declinJo da con-
..-b tlnuidade e da repetiçao ancestral/ Não obstante. permanece o
fato de que nossa época. longe de encerrar-se num presente
trancado em si mesmo. é palco tanto de um frenesi h istórico-
patrimonial e comemorativo quanto de uma Investida das iden-
Udades nacionais e regionais, étnicas e religiosas. Quanto mals
nossas sociedades se dedicam a um fu ncionamento-moda fóca-
do no presente, Mais elas se v~m acompanhas de uma onda
mnémlca de fundo. Os modernos queriam fazer tábula rasa do
passado, mas nós o reabilitamos; o Ideal era ver-se Uvre das tra·
diçOes, mas e las readqulrem dignidade soclatjCelebrando até o
menor objeto do passado, Invocando as obrigações da memó·
ria. remoblll:zando as tradições religiosas, a hipermodernldade
não é estruturada por u m presente absoluto; ela o é por um
presente paradoxal, um presente que não pára de exumar e · redes-
cobrir" o passado. I
A memória em tempos de hiperconsumo

Dizem de brincadeira que abre um museu por dia na Europa,


e Já se perdeu a conta das comemorações de aniversário dos
grandes e nem tão grandes acontecimentos históricos. Em nossa
época, o que não se presta mais a ser objeto de museu, de restau·
ração, de celebração? Do décimo ao qOinquagésimo aniversário.
do primeiro ao sesqu lcente nário, toda data é pretexto para festl·
vldades. Logo n ão existirá mais nenhuma atividade, nenhum
objeto, nenhuma localidade, que não tenha a honra de urna lns·
titulção museal. Do museu da crlpe ao da sardinha, do museu de
Elvls ao dos Beaues. a sociedade moderna é contemporânea do
tudo-património-histórico e do todo-comemorativo.
Nessa valorização do passado, pode-se, é claro, reconhecer
um sintoma tipicamente ·pós· moderno·. Entretanto. o flm do
modernismo negador·do passado nllo significa o eclips.e do mo·
demo, pois muitos traços do fenômeno apontam o contrário,
um novo Impulso de moderniZação da cultura. Enorme expan·
são dos objetos e signos considerados dignos de ser parte da me-
mória patrimonial; proliferação dos museus de toda espécie:
obsessão comemorativa; democratização maciça do turismo
cultural; ameaça de degrad ação ou paralisia do conjunto hlstó·
rico-patrimonial pelos fluxos excessivos de turistas- a novava·
lorlzação do antigo se faz acompanhar de excrescência. de satu·
ração. de alargamento Infinito das fronteiras da memória e do
património histórico, pelo que se reconhece uma moderrmação
levada ao extremo. Passou-se do reinado do flnito ao do lnflnl·
to, do limitado ao generalizado, da memória à hipermemórla:

86
' ' \.
na neomodernidade, o excesso de lógicas presentlstas segue em
conformidade com a Inflação proliferante da memória.
Ultramodernldade que, cada vez mais, revela ainda a ênfase
sobre o Impacto econômico da preservação do patrimônio, so-
bre os critérios de rentabilidade direta ou Indireta, n u ma esfera
outrora animada pelo cult.o à Nação e pelo espírito de civismo.
O batismo de ruas e o lev.a.n tamento de estátuas são doravante
suplantados por comemo-rações exploradas pelas Indústrias edi·
tor!ais e midiáticas, que inundam o mercado com dezenas•de
títulos novos, dé reedições, de histórias em quadrinhos, de fil-
mes e telefilmes. Antigamente, o mon':lmento era um s!mbolo,
e sua conservação, um fim em si mesmo; hoje,justifi.cam-seos
encargos com ele em nome dos efeitos financeiros, do desenvol-
vimento tur!stico ou da imagem midiática das cidades e regiões.
"Jazidas • a explorar e promover, as antigas edificaç(!es sãÓse-
qüestradas, reformadas, !transformadas em ce ntros culturais,
museus, hÓtéis, teatros, escritórios; as áreas históricas são enfei-
tadas e avivadas, convertidas em produto de consumo cultural
e turlstlco. E, por toda a parte, vê·se a aparição de estaciona-
m e ntos, de lanchonetes, de lojas de suvenires, de espetáculos
folclóricos.li Na sociedade hipermoderna, o modelo de merca-
do e seus critérios operacionais conseguiram imiscuir-se até na
conservação do patrimônio histórico. Elemento do avanço do
capitalismo cultural e da mercantllização da cultura, ·a valori·
zação do passado é um fenômeno mais hipermodemo que pós-
moderno.
Nesta época da indústria do patrimônio histórico, o cidadão
cede o passo ao bomo CCII$UJ1)(!rfCUS. Oantigo estilo solene e "seden·

87
tárlo • das comemorações. que visava a registrar permanente-
mente a memória nos pr<)prios locais do passado, recua em fa-
vor de um estilo "frívolo" e efêmero que se restringe apenas ao
Instante da comemoraçao: simpósios. concertos. exposições.
happenings, espetáculos, desnles criat.lvos.n Os museus encenam
espetáculos históricos, e· os sftlos arqueológicos. reconstitui-
ções em simulação virtuat o • turismo da memória" é sucesso
entre as massas. As obras. do passado não mais são contempla-
das em recolhimento e silencio, c sim "devoradas" em alguns
segundos. funcionando como objeto de animação de massa.
espetáculo atraente, maneira de diversificar o lazer e "matar· o
tempo. A volta do passado à popularidade ilustra o advento do
consumo-mundo e do consumidor que busca menos o status
que os estímulos permanentes, as emoções Instantâneas. as atl-
vic;lades recreativas. Não é que se dê adeus à modernidade;
antes. é a terceira etapa da modernidade consumista que trlun-
fa!l na democratização maciça do lazer cultural, no consumis-
mo experle.nclal, na transformação da memória em entreteni-
mento-espetáculo.
A voga do passado se vê ainda no sucesso dos objetos anti-
gos, da caça a antiguidades, do retrõ. do v/nlage. dos produtos
rotulados com um "legitimo" ou ·autêntico·. que despertam
a nostalgia. Cada vez mais, as empresas fazem referência a seu
passado, explorando seu património histórico, divu'lgando-o,
lançando produtos de cunho saudosista que" revivem ·os tem-
pos de antanho. Letreiros comerciais apresentam artigos ori-
undos do património histórico, e multas marcas ·oferecem
• receitas à moda antiga" e produtos Inspirados em tradições

88
' ' \
ancestrais. Na sociedade hipermodema, a antiguidade e a nos-
talgia se tornaram argumentos comerciais. ferramentas mer•
cadológicas.
Esse retorno revigorado do passado constitui uma das face-
tas do cosmo do hlperconsumo experiencial: trata-se não mais
de apenas ter acesso ao conforto material. mas sim de vender
e comprar reminiscências. emoções, que evoquem o passado,
lembranças de tempos considerados mais esplendorosos. Ao
valor de uso e ao valor de troca se junta agora o valor emotivo-
mnêmico ligado aos sentimentos nostálgicos. Um fenômeno
lndissoclavelmente pós· e hlpermoderno. Pós porque se volta
para o antigo. H;per porque doravante há consumo comercial
da relação com o tempo, pois a expansão da lógica mercantil
Invade o território da memória.
]á a vida cotidiana, embora exprima o gosto pelo passado.
é, mais do que nunca, regida (na higien e, na saúde. no lazer,
no consumo. na educação) pela ordem cambiante do presen·
te. Os produtos comestíveis exibem ·autenticidade". mas são
comercializados segund.o técnicas comerciais de massa. adap-
tados aos gostos contemporâneos. fabricados em :função de
normas atuais de higiene e segurança. Reformam-se os Imóveis
antigos dos centros das cidades. mas dotando-os de todo o con-
forto moderno. A consc:Jencia do valor do património históri-
co se intensifica, mas as. coisas que produzimos têm duração
cada VéZ mais límltada. O passado nào mais é socialmente Ins-
tituidor nem estruturante: está renovado, reciclado, mas ao
gosto de nossa época. explorado com fins comerciais. A tradi·
ção não mais convoca à repetição, à fidelidade e à revivescência

89
das coisas imutáveis de outrora: ela se tornou produto de con·
sumo nostálgico ou folclórico, mera olhadela para o passado,
objcllrmoda. Regula insl!itucionalmente o todo coletivo, e seu
valor é ap.e nas ~tétlc~, emocional e lúdico. Embora o antigo
possa causar furor, não tem mais o poder de organizar coletic
vamente.os comportamentos. O passado nos seduz: o presen-
te e suas norTl)as .c ambiantes nqs governam. Qua:nto mais se
evoca e se encena a memória histórica, menos ela estrutura os •
elementos do cotidlan0 . Donde este traço característico da vida
hipermoderna: celebramos aquilo que não desejamos tomar
como exemplo.2l
Dizia Tarde* que. nos tempos consuetudinários. o passado
funcionava como modelo prestigioso a imitar. Essa não é a
norma de nossa época, em que o passado aparece cada vez mais
nitidamente como, Isto sim, um adorno, um referencial da
~ida com qualidade ou com segurança. Isso porque o· autênti-
co· tem sobre nossas sensibilidades um efeito tranqüllizador:
os produtos "à moda antiga". associados a um imagin.á rio de
proximidade. de convivialidade, de "bbns e velhoso tempos" (a
aldeia, o artesão, o amor ao.oficio), vêm exorcizar o desassosse-
go dos neoconsumidore$ obcecados com a segura:nça de todo
tipo, desconnados da Industrialização do comestlvel. De igual
maneira, o efeito-patlimõnio-histórico participa da mesma cul-
tura do bem-estar ind:ividuallsta. Os conJuntos habitacionais
modernos, os arranha -céus e blocos de apartamentos e escri-
tórios, o litoral concretado, tudo isso acarretou o desejo de

• Gabriel de Tarde (os.u-•90~). sociólogo rrancéS. (N.T.)

90
\ .'
salvaguardar as antigas paisagens e os edifícios do passado
como se fossem resistên<:las à feiúra, à uniformização funcio-
nal e técnica. Embora a mania do a ntigo comporte u ma di·
mensão nostálgica, ela também Ilustra a lntensifl~o dos de-
sejos Individualistas de qualidade de vida, uma cultura
hlpermoderna do bem-estar Indissociável de critérios mais qua·
lltatlvos e sensoriais. mais estéticos e culturais. Subjacentes ao
gosto pelo passado, avançam as paixões hiperindividualistas de
• conforto recreativo· e '"conforto existenclai",2S as novas ex i·
gênclas de sensações agradáveis, de qualidade ambiental em
todos os senctdos.
Éprovável que essa otw-ss•o mnêmlca não se perpetue: cer-
tos sinais talvezjá indiquem um movimento de refluxo.l5 Um
dia, a proliferação das comemorações c do patrimônio histórl·
co chegará ao limite, não mais encontrando o mesmo eco. ~
de supor. entretanto, que não se voltará aos tempos do culto
modernista da página em branco. A segunda era da modcrni·
dade é auto-reflexiva, individualtstlco-emocional e identltárta:
revolucionária no ãmbito técnloo·clcntillco. ela deixou de $ê·
lo no cultural. Ésinônimo não de depredação do passado, mas
de exploração-mobilização sem exclusão de todos os eixos da
temporalidade socioistórica, reciclagem e retraduçào de me-
mória com fins econômicos, emocionais e idenlltários. Mesmo
que a onda mnemônica se quebre, ela não se dete rá de vez.
Ocomércio, a moda. as exigências de melhoria do bem·estar,
assim como os desejos ldentltárlos. devem ainda por multo
tempo fazer da memória um recurso e uma necessidade de
ordem presentista.

91
Identidades e espiritualidades
O retorno prestigioso do passado extrapola em muito o culto
ao retro, às comemoraç~ e ao patrlmOnlo histórico. Ele ~
concretiza com ainda mais Intensidade no despertar das esplrl-
tualldades e das novas solicitações Jdentitárlas. Revivescências
religiosas, reivindicações :naclona.ls e regionais, ressurgimento
étnico -as sociedades contemporâneas assistem a um fortale-
cimento de referenciais que remetem ao passado, de u ma ne-
cessidade de continuidade entre passado e presente, da preocu-
pação de dotar-se de raizes e memória. Embora a globaUzaçào
técnica e comercial instaure uma temporalldade homogênea,
o fato é que ela é concomitante a um processo de fragmentação
cuJ~uraJ e religiosa que m obiliza mitos e relatos fundadores,
patrimOnlós simbólicos, valores históricos e tradiçlonals.
Sabe-se que. em m uitos casos. a reativação d a memória hls·
tórica funciona em oposição frontal aos prlnclplos da rnodemi·
dade liberal. Ao serem testemunho das efervescências rellglosas
que recusam a modernidade laica, os movimentos neonaclo·
nalistas e étnico-religiosos acarretam ditaduras, guerras iden·
titárlas, massacres genocid as. O Om da dlvlsGo do mundo em
blocos, o vazio ideológico, a globallzação da economia e o en-
fraquecimento do poder estatal possibilitaram que surgisse urna
grande quantidade de conflitos locais de base étnica, religiosa
ou nacional; de movimentos separatistas; de guerras lnterco-
munitárlas. Rejeitando o pluralismo das sociedades abertas,
expurgando a sociedade dos elementos "heterogêneos· . fcchan-

91
do as comunidades em.si mesmas, os Impulsos neonacionalis·
tas e étnico-religiosos se fazem acompanhar aqui de c:ombate à
ocidentalização, ali de guerras devastadoras, repressões e terra-
'
rismos polrtlco-rcUglosos. Um despertar dos antigos demônios?
Éiludir-se interpretar esses fenômenos como ressurg:ênclas ou
repetições do passado, quer tribal, quer totalltário. Ainda que
as regressões ldentltárlas reatem com mentalidades antigas, o
que surge são formas Inéditas de conruto, de nacionalismo e de
democracia. Sob as Incitações para que se preservem ldentl·
dades nacionais ou religiosas, organizam-se tiranias de gên.ero
novo, combinações de democracia com etnlcldade, d:e moder·
nlzação frustrada com "fundamentalismo" triunfante, as quais
Fareed Zakaria com razão den~mina ·democracia ilibera.is"_l7·
Isso posto, os movimentos que reavivam a chama do sagra·
do ou das raízes estão muito longe de ser de mesma·natur.eza
e de manter a mesmo relação com a modernidade liberal. No
Ocidente, muitos deles se apresentam com traÇos que se conci-
liam perfeitamente com a cultura liberal do indivíduo legisla·
dor de sua própria vida. Prova disso são as famosas • religiões à
la carte·, os grupos e redes que combinam as tradições cultu·
rais do Oriente e do Ocidente, os quais utilizam a tradição r~­
llgiosa como meio de auto-realização subjetiva dos: adeptos.
Aqui, não há nenhuma antinomia com a modernidade indivl·
dualista, pois a tradição fica à disposição dos Indivíduos, • mexi·
da", mobilizada como via de auto-realização e de integração
comunitária. A era hiperrnoderna não põe fim à n ecessidade de
apelar para tradições de sentido sagrado: ela simplesmente as
rearranja mediante individuallzação, dispersão, emoclonallza·

93
çào das crenças e práticas. Com a primazia do eixo do pr esente,
crescem as religiões • desregulamentadas·e as identidades pós·
tradicionais.
A racionalidade instrumental expande seu domínio. mas
Isso não elimina nem a crença religiosa, nem a necessidade de
referir-se à autoridade de urna tradlçao. De um lado, o proces·
so de raclonalizaçao faz diminuir cada vez mais a ascendência da
religião sobre a vida social; d e outro, ele, com seu próprio m o-
vimento. recria exigências de religiosidade e de enraizamento
n uma "linhagem crente". Também aqui, evitemos ldentíflcar as
novas esplrlrualidades a um fenômeno residual. urna regressão
ou arcalsmo pré-moderno. Na realidade, é do próprio Interior
d o cosmo h lpermoderno que se reproduz o religioso. na medi·
da em que esse cosmo gera Insegurança, confusão referencial,
extinçao de utopias seculares. ruptura individuallsta da vincu·
t o social. No universo tnce rto. caótico. atomtzado da htper·
modern idade, cresce também a necessidade de unidade e de
sentido. de segurança, de identidade comunitária - é a nova
chance das religiões. De todo modo, o avanço da secularizaçao
n ão leva a um mundo intelramente racional em que a inOuên·
ela social da religião declina continuamente. A secularização
n ão é só a lrrellglão; ela é também o que recompõe o religioso
n o mundo da autonomia tcFrcna, um rcllgtooo desinstltu ciona·
lizado, subjetlvado. afelivo.ZI
Essa remobiltzaçao da memória é Indissociável d e um novo
m odo de ldentiOcação coletiva. Nas sociedades tradidonals, a
Identidade religiosa e cultural era vivida como coisa natural,
r ecebida e inrangivel. excluindo as escolhas Individuais. Isso
\

acabou. Na presente sltuaçAo, a ftliação ldenliti1rla é tudo menos


Instantânea ou dada em deflrútivo; ela é, Isto sim, um proble-
ma. uma reivindicação, um objeto de apropriação dos lndivi·
duos. Melo de construir-se e dizer o que se é, maneiro de afir-
mar-se e raur-se reconhi!C(!r, a filiação comunitãria vem acom·
panhada de autodefinlçao e autoqucstlonamento. ]á. não se ê
mais judeu. muçulmano ou basco "tal qual se respira": a iden·
lldade própria é questionada, examinada: hoje, é preciso tomar
posse daquilo que outrora se tinha naturalmente.29 Antes insti·
tucionallzada. a identidade cultural se tornou aberta e refiexl·
va, uma questão Individual suscetível de ser retomada Infinita·
mente.
O Impulso das reivindicações parllcularistas nos leva a cor-
rigir o que podem ter de demasiado unilaterais as leituras que
reduzem a um rrenesl de paixões consumlstas e competi Uvas o
hiperindlvldualismo. Embora este nao possa ser dissociado da
consagração tanto dos gozos privados quanto do mé.l ito Indivi-
dual. é rorçoso constatar que. ao mesmo tempo. ele se faz acom-
panhar de uma mulllpllcaçào das exigências de re<:onheci-
mento público, de reivindicações de Igual respeito às dlrerentes
culturas. ]á nào basta sermos reconhecidos pelo que razcmos na
condição de cidadãos lfVfe$ e iguais perante os outros: trata-se
de sermos reconhecidos pelo que somos em nossa dlrerença
comunitária e histórica. pelo que nos distingue dos outros gru·
pos. É uma prova. entre outras, de que a modernidade do se-
gundo tipo não se esgota no fmpeto sollpslsta dos apetites con-
sumlstas: na realidade, ela traz uma ampliação do Ideal do igual
respeito, de um desejo de hlpcr·reomheclmento que. recus.~ndo todas

9.S
as formas de desdém, de d epreciação, de lnferiorlzaçâo do eu,
exige o reconhecimento do outro como Igual na diferença. É
bem verdade que o reinado do presente c! aquele da satisfação
Imediata das necessidades. mas ele também é o da exigência
moral de reconhecimento estendida ãs ldent.ldades fundadas no
masculino ou feminino, na Inclinação sexual, na memória his-
tórica.
Processo de hlper·reconhcclmento que não deixa de ter llga-
çao com a sociedade do bem·estar indiVIdualista de massa. Foi
esta que, nas democracias oc.ldentais. contribuiu para fazer de-
clinar a valorl7.ação dos princípios abstratos de cidadania em
beneficio dos pólos de identiOcação de caráter lmedlato e par-
Ucularlsta. Na sociedade hlperlndividuallsta,lnvestlmos emo-
cionalmente naquUo que nos é mais próximo. nos vlnculos
fundados sobre a semelhança e a origem em comum, com os
valores universalistas e os grandes ideais políticos aparecendo
como prlnclplos demasiado abstratos. demasiado genéricos ou
distantes.» A civilização do presente, ao arruinar as esperanças
revolucionárias e focar a vida nas felicidades privadas, desenca·
deou, ·p aradoxalmente, uma vontade de reconhecimento da
especificidade conferida pelas raízes colellvas.
Foi Igualmente a cultura do bem-estar Individualista o que.
ao dar Importância nova à necessidade de amor-próprio e de
csllma pelos outros, tomou Inaceitáveis os soflimentos engen-
drados pelas imagens coletivas desdenhosas que os grupos do-
minantes impõem. Na era da felicidade, tudo o que Inculca
uma imagem depreciativa do eu, todas as denegações de reco-
nhecimento, c! atacado como !legitimo, aparecendo como for·
' .
\
ma de opressão e de violê nela simbólica Incompatível com o
Ideal de auto-reallzação plena. Donde a mullipllcação das exi-
gências de ressarcimento por agravos coletivos. as expectativas
de reconhecimento público , as reivindicações cada ve;t mais fre-
qüentes de um status de vítima. As vindíclas de reconheclmen•
to particularista são indissociáveis do Ideal democrático moder-
no de dignidade humana - mas foi a civiUzaçào presentista que
possibilitou as • políticas do reconhecimento "31 como instru- .
mente de amor-próprio; as novas responsabilidades c:om rela;
çáo ao passado; as novas querelas da memória.
A galáxia contemporânea das Identidades é igual mente a
oportunidade de voltar àS ricas análises da alta mod·e rnldade
propostas por Ulrich Beck. De acordo com aquele sociólogo ale-
mão, passou-se de uma primei.r a etapa de modernização, fun-
dada na oposição entre tradição e modernidade, para uma se-
gunda modernl;tação. de nature;ta reflexiva e autocrítica. Nessa
última fase, é a própria modernização que é considerada um
problema, o qual se refere tanto ao clentismo como aos princi-
pies de funcionamento da sociedade industrial. Donde a idéia de
advento de uma modernidade de tipo auto-referencla1.32
Esse esquema está correto, mas é preciso ir mais longe. gene-
ralizando. Na realidade, temos de constatar que o segundo clcló
da modernidade não é apenas auto-referencial: ele está marca-
do pela forte reabilitação de coordenadas tradic:ionaEs. de exi-
gências étnico-religiosas que se apóiam em patrtmõnlos simbó-
licos de longuissima duração e de origem diversa. Todas as
lembranças, todos os universos de sentido, todos os Imaginários
coletivos que fazem referência ao passado são o que pode ser

97
convocado e reutilizado para a construção de Identidades e a
realização pessoal dos indivíduos. A reflexlvldade ultramoderna
não se refere apenas aos riscos tecnológicos. à racionalidade
cientifica ou à divisão dos papéis sexuais; ela invade todos os re·
scrvatórios de sentido. tod.as tradições do Ocidente e do Oriente,
todos os saberes e todas as crenças. aí lncluidas as maJs irraclo·
nais e as menos ortodoxas -astrologia, reencarnação. paraclcn·
c ias etc. O que define a hipermodernidade não é exdusivamen·
te a autocrltica dos saberes e das instituições modernas: é
também a memória revlsltada, a remobilização dai crenças tra·
diclonals. a hibridização Individualista do passado e do presente.
Não mais apenas a desconstrução das tradições. mas o reempre-
go delas sem Imposição institucional. o eterno rearranjar delas
conforme o principio da sobernnia individual. Se a hlp<:>rmooer·
nidade é metamodemidade. ela se apresenta igualmente com os
traços de uma metatradicionaJidade. de uma metarrellgiosida·
de sem fronteiras.

Não faltam fenômenos qu:e podem autorizar uma interpretação


relativista ou niilista do universo hlpermodemo. Dissolução dos
fundamentos lncontestes do saber. primado do pragmatismo e
do deus dinheiro, sentimento de igualdade de valor de todas as
opiniões e de todas as culturas -são tantos os elementos que
nutrem a idéia de que o ceticismo e a extinção dos ideais supe-
riores constituem Importante caracterlstlca de nossa ê poca. Mas
será que a realidade observável dá mesmo razão a tal p<~rndigma?
Embora seja Inegável que grande quantidade de referenciais
culturais se embaralharam e que a dinâmica técnica e mercan·
. '"
tU organiza ~gmentos inteiros de nossas sociedades. permane-
ce o fato de que a derrocada do sentido nào chega ao extremo,
pois há sempre um fundo de for.t e e amplo consenso sobre os
fundamentos étlco·polftl~os da modernidade liberal. Para além
da ·guerra dos deuses· we:beriana e do crescente poder da so·
cledade de mercado, afirma-se um núcleo duro de valores com·
partilhados que estabelecem limites estritos ao rolo compressor
do raclocinio operacionalista. Nem todo o nosso patrimônio
ético- político foi erradicado: permanecem válvulas de escape
axiológicas que nos impedem de endossar a Interpretação radi·
calista do niilismo hlpermodcrno. Disso são testemur\ho. em
especial. os protestos e compromissos éticos, a nova consagra·
çào dos direitos humanos, que os erige em centro de gravidade
ideológica e em norma organizadora onipresente das ações
coletivas. Não é verdade que o dinheiro e a eficiência se torna·
ramos princlpios e os flns últimos de todas as relações sociais.
Do contrário. como entender o valor conferido ao amor. e à aml·
z.ade? Como explicar as reações de indignação em face das novas
formas de escravidão e de barbárie? De onde vém as exigências
de moralizar as trocas econômicas, a mídia c a vida política?
Ainda que nossa época seja o palco da pluralidade conOitu~
dos conceitos do bem, ela é, ao mesmo tempo, marcada por
uma reconciliação Inédita com os fundamentos humanistas-
estes nunca antes se beneficiaram de tal legitimidade incontes·
te. Nem todos os valores. nern todos os referenciais de sentido,
foram pelos ares: a hipermodernidade não é · sempre mais de·
sempenho instrumental c, portanto, sempre menos valores
que tenham força de obrigação": ela é, isto sim, uma espiral téc·

99
nico-mercantil que se liga ao reforço unanim!sta do tronco co-
mum dos valores humanistas democráticos.
Ninguém negará que o mundo, dojei~o que anda. provoca
mais inquietação do que otimismo desenfreado: alarga-se o
abismo entre Primeiro e Terceiro Mundo; aumentam as desi-
gualdades sociais; as consciências ficam obcecadas pela insegu-
rança de várias narurezas; o mercado globalizado diminui o
poder que as democracias têm de regerem a si mesmas. Mas
será que Isso nos autoriza a diagnosticar um processo de • rcbar-
barização" do mundo, no qual a democracia não é mais que
uma "pseudodemocracia" e um "espetáculo cerlmonial"?ll
Chegar a tal conclusão seria subeslimar o poder de autocrítica
e de autocorreçào que continua a existir no universo democrá-
tico Uberal. A era presentista está tudo menos fechada, encerra-
da ,e m si mesma, dedicada. a um niilismo exponencial. Dado
que a depreciação dos valores supremos não é sem limites, o
futuro conlinua em aberto. A hipermodernldade democrática
e mercantil ainda não deu seu canto do cisne - ela está apenas
no começo de sua aventura histórica.

NOTAS

Krzysztor Pomlan, "Post -ou comment l'appeler?",


Lt Débat, 6o. 1990.
I Sobre o excesso como figura da ultramodernldade, Marc
Augé, Ncn-lieux, Parts, Se·uil, 1991 !Nilo-lugares, trad. Maria lucia
Pereira; Campinas, Paplrus. IOO< (• . ed.)I:Jean Baudrlllard,

100
' . '\

Les Slr.!légies f.lla/es, Pans, Grasset, 1981 IAs eslrlltégias fatait t rad.
Manucla Parreira; Lisboa. Estampa, 1990]; Paul Ylrlllo, Vitesst
et politique. Parts. CaJUée, 19n IVelocidade e política, trad. Celso M.
Paclomlk; São Paulo, Estação Liberdade, 1~].
l Ulrlch Beck,l.a 1«/ltl du risque. Paris. Aubler, 1001.
1 Pierre-AndréTaguieff, R~isteraubougisme, Paris, Milleet Une
Nults, 1001, p. 1S·Ss IResistir ao para·a·{IPntlsmo; Lisboa, Campo da
Comunicação, 200J]. Igualmente, ]ean-Pierre Le Corr. La bar!Jarie'
dooce. Paris, La Découvcrte, 1999. :

I O ciclo que denominei a ·segunda revolução Individualista•


IA
é analisado em L'~re duvide. Paris, Callimard, 19S1 era iJo vazio.
trad. Miguel Serras Pereira & Ana Luisa Faria: Lisboa., Relógio
d'Água. 1990]. •

' ]ean·François Lyotard, La cooditíM posl11101fern<>. Paris, Minult, 1979


IA
coodiçM péts-lllOderna: Rio de Janeiro. José Olympio, 2001 (7. ed.)].
1 GUies Lipovetsky, L'empÍII! de (éphémêrP. Paris, Gallimard. 1981,
segunda parte lO Império elo efémero, trad. Marta Lúcia Machado;
São Paulo, Companhia das letraS, 1989 (2. ed.)l.
I Manuel Castells. la 1«iéM fJI meaux. Paris, Fayard, 1001
IA sociedade em n1de: trad. Roneide Venãnclo Majer:
Rto de Janeiro. Paz e Terra, 1999 ( •• ed.)l.
t Zakl larudl, la sacre du p<ésenc, Paris, Flammarion, 1000.
Igualmente. Plerre-André Taguleff, L'effacenrent de i'avenlr,
Paris, Calllêe, 1000, p. 96·oo1.
10 Citado por Jean Chesncaux, Hablt<t /etemps. Paris, Bayard.
1996. p. ] 1.

11 Ver Krzysztof Pomian, "La crise de t'avenir, Le Dt'bac, 1.


déccmbre 1980.

IOI

.

O senhor é tido um pouctl como um elétron livre na paisagem Intelectual


franc=. e isso exige algumas expllc~. Tem-se a Jmpres>ào de que as
polémicas n.lo lhe Interessam e de que o confronto não o ajuda a desenV.lv.r suas
obras. Como explica isso?
Elétron livre? Não sei... Mas. sem'dúvida, ~ssa impressão está
ligada ao fato de que sou um filósofo •extraviado", dedlcando·
me à aná.llse das realidades socioistóricas; e de que, em face de-
las, a Inquirição continua, apesar de tudo, marcada pei·O espírl·
to filosófico. já Inclassificável na ordem estrita das dlsclpllnas
universitárias, o caso desse tipo de trabalho se agrava ainda mais
ao tomar como objeto de-estudo fenômenos que a fllos:ofla não.
costuma ter em multo grande esUma: a moda, a cotidianidade,
o luxo, o humor, a publicidade, o consumo. Ao dignificar as
sombras da caverna platônica, o ·elétron· talvez pareça tomar
uma liberdade um pouco exagerada com relação ao ideal da
d ialéUca ascendente .. .

lO)
Mas encararei a pergunta ainda de outro ângulo. A situação
socoistórlca na.qual nos enContramos é inédita: a modernidade
não mais t~m inimigos absolutos, ela se reconcJIJou com seus
prindpios e valores de base. Conseqüentemente, os combates
graças aos quais os valores modernos se Impuseram - laicldadc,
liberdade, Igualdade, plural.ismo democrático, destradlclonali-
zação - perderam a antiga Intensidade instituidora. Outros
combates, é verdade. assumiram o lugar dos anteriores, mas não
mais produzem um mundo em ruptura. Segue-se que a posi-
ção dos Intelectuais - os quais desempenharam importante
:papel no nascimento da modernidade - não mais pode ser a
·mesma. Hoje, eles panilham dos mesmos valores qu.e ó con-
junto dos membros da sociedade; propõem Interpretações di-
ve.rgentes, não outro modelo coletivo. Nessas condições, a ne-
cessl~ade de • engajar-se" é menor: o que importa é menos
·tomar partldt> para defender iSto ou aquilo do que compreender
um pouco melhor •como é que Isso funciona" na própria rea-
lidade. Claro, é Imperativo problematizar as questões morais,
pensar consigo mesmo a respeito do certo e do errado. dos di-
reitos Individuais e coletivos. do principio de tolerância, dos fun-
damentos da sociedade liberal, da legitimidade das diferentes
desigualdades etc. Mas não menos Imperativo é examinar o
:funcionamento do Estado do bem-estar social, o rumo das coi-
:sas e das práticas reais, em especial daquelas que suscitam osjui-
zos mais peremptórios e mais consensuais. Se o conhecimento
do que é não determina o que deveria ser. ele pelo menos pode
contribuir para, sabendo do que se fala, superar certas polêmi-
cas estéreis e já assentes. Parece-me que, ao propor modelos In-

l OS
.' \

terpretatlvos menos estereotipados, menos maniquelstas, mais


complexos, eu participo, a meu modo, e modestamente, dos
debates que a pólis democrática exige.
Quanto às polêmicas nas qua.ls me vejo ·embarcado•. devo
dizer que elas freqüentemente me deixaram decepcionado e
pouco me Ouram • evolu.lr'. por excesso de caricaturas e até de
má-fé; em especial, foi o caso das criticas pouco gentis lançadas
contra Olm~rlo do e/emero e A ltm!lra mulhtr. Muitas vezes, conhe-
cem-se de antem~o as objeções, demasiado calcadas em mode-
los rtgldos e Invariáveis. Em compensa~o. a mudança social e
hiStórtca é, em grande parte. lmpreviSlvel. ~essa a .-az.lo pela
qual o co!'fronto que realmente me Interessa. que me provo-
ca, que · mexe· comigo, é o que surge do choque dos próprios
fatos, da complexidade, diversidade e variabilidade deles. Mais
amplamente, eu gosto de escrever sobre o que observo, e não
de escrever livros a respeit o de livros.

Vamos agora ao illnetállo pessoal. Quais foram .sua fannaçáo e sua lra}el4m
lnltl«tual? Quem fotam seus tM:Slm?
Ftz meus estudos de ruosona na Sorbonne, num clima cultural
e Intelectual bem diferente do que predomina em nossa época.
Entre nós, naquele tempo, certo número de estudantes tran;-
formava em questão de honra nào acompanhar o curso e lnte··
ressar·se por tudo menos os currlculos universitários. O espirl·
to ntosóflco vivo estava • em outro lugar": denunciavam-se os
mandarlns, os cursos que cheiravam a naftalina, a miséria da
mosona. E eu Ua sem muita palxllo os textos fundadores da mo-
sana. Segui meus estudos um pouco como ·artista· livre que

109
d.ecidia ele próprio os autores sobre os quais trabalhar.l.!a com
entusiasmo Lévt-Strauss, Saussure, Freud, Marx e os epfgonos
deste. O que me animava erru não as grandes questões da meta-
fisica ou da moral, mas a interpretação do mundo moderno.
Assim como muitos Mtudantes dos anos 60, eu estava impreg•
nado de marxismo. Por volta de 1965, fiZ parte de um grupelho
esquerdista, o Poder Operário, originário do Socialismo ou Bar-
bárie, que tinha sido fundado por Lefort e Castoriadis e era em
especial animado por Lyotard, Veja e SouyrL O grupo se procla-
mava marxista-revolucionár io: denunciava o capitalismo e a
sociedade burocrática tanto 1110 bloco ocidental quanto no ori-
ental. Na União Soviética, vfamos não um socialismo p-erver-
tido, mas uma nova sociedade de exploração de classes.. Con-
s-eqüentemente, a revolução não mais podia coincidir com a
abolição da propriedade privada dos meios de produção: ela
Implicava a êxtinçào da divisão entre dirigente e dirigido, a
autogestão, a democracia dos conselhos operários. Fiquei dois
anos nesse grupo, mas, como eu frequentemente safa de férias.
questionaram minha mllitãncia um pouco hedonista e des-
contraid~ demais! ... A nova era do lazer já exercia sua influên-
cia ... O afastamento se deiU sem crise p-essoal, sem peso na
consciência, sem nenhum sofrimento. Para mim, a • vida de ver-
dade· já estava em outro lugar. A bem dizer, a questão da revo-
lução não me preocupava quase nada, porque eu não acredita-
va realmente nela - procurava sobretudo ferramentas de
análise para compreender o real. E os cursos propostos na
Sorbonne não atendiam a essa expectativa.

1!10
.. \

Ecomo o senhor vi>~u o maio de ~?


Adorei as jornadas daquela primavera, suas lengalengas Infla-
madas e Intermináveis. I;>a violência gostei bem menos; dela
não participei. Mas eu nunca tinha acreditado numa verdadeira
possibilidade revolucionária- nem por um momento me pare-
ceu que as mentalidades estivessem perto do ideal do tempo
revolucionário. Ademais, eu tinha esta Idéia marxista de ·nada
de revolução sem partido :revolucionário", e em maio tal orga:
nização não se achava em 'l ugar algum. Eu já não compreendia
muito o sentido do que estava em jogo. Paradoxalmente, isso só
ficou um pouco mais claro depois, quando me debrucei sobre a
questão do Individualismo, d~ transformações na cu! tura, nos
valores e nos modos de vida. Na época, vivi aquelas jornadas
com prazer ·estético· ou l údico e com consciência pouco poll-
tlca.. Por fim, o mais Importante se deu nos anos$eguintes, com
â emancipação dos tosturnes, :.s éO'!'tseqüêi'ICiáS do Maio de 68
na vida a dois, na milltãncla, na relação com a politica. Todos os
anos 10 são marcados pela cultura ou ·estilo· 68 e por seu Ideal
llbertárlo, de lntenslflcação da vida social. Foi nesse contexto
que, não sem muita alegria. li NietzSche, Deteuze, Henry Miller.

Ecomo emluiu a relação com o marxismo?


Nunca fui comunista, trotskista nem maoista. Eu me situava
era na senda traçado por Castoriadis. Nos anos 70, os textos de
Lyotard e de Baudrillard me marcaram muito: quer de uma
perspectiva radical. quer de uma perspectiva vanguardista, eles
possibilitavam sacudir um marxismo •anônimo". althusseria-
no, de pretensão estrutur.al e científica, bem longe das realida·

111
des do cotidiano. Aquelas análises do desejo e do gozo, do con-
sumo e da mídia, tinham o mérito de subverter os domlnios
teóricos separados, de rev:itallzar a crítica da economi-a poll!lca
ou libidinosa, de abrir um além-do-poi!Uco ao compor como
que odes a uma revoluç.à o transpolítica. Desde essa época,
julgo que o existencial. os modos de vida, o frivolo devem ser
levados em conta, e não ser de imediato considerados a ·falsa
consciência·. Isso porque logo me Incomodei com a noção de
alienação: ela veiculava em demasia a idéia de que as pessoas
eram mistificadas, passivas, manipuladas, hipnotizadas -
Debord - ,Incapazes de diS-tanciamento critico. de compreensão
do que lhes acontecia. Em A era do vazio, procurei mostrar que as
coisas eram maiS complexas, que a lógica sedutora da mercado-
ria era um poder não só para o logro c a espoliação. mas tam·
bém para a emancipação do individuo. Meu descontentamento
com a análise marxiSta se explica ainda por minhas leituras da
época - Tocquevillc, Mareei Gauchet, louis Dumont, Daniel
Bel!. Nelas encontrei esquemas analíticos e ferramentas con·
ceituaiS fl!ndamentaiS, insubstituíveis, que devolviam um papel
de fato produtivo às "idéias" na história: o Individuo, ·a revolu-
ção dcmocr~tica,"os direitos humanos, tudo isso, já não eram
mais a superestrutura, simples • reflexo· da economia. Essas
problemáticas me deram maior liberdade para entender a socie·
dade nova, na qual se ob.servava um Impulso de autonomia
Individual, uma sujeição menor aos enquadramentos coletivos.
Minhas análises sobre o illdividuaiismo democrático- e não
burguês no sentido marxista- surgiram de um cruzamento de
observações. entre a revolução dos modos de vida contemporã·

112
neos, a rápida expansão tanto da sociedade de consumo-comu-
nicação quanto do liberalismo cultural, a sociologEa americana
e as análises neotocquevillianas.

Éemão que dl!$pQl!ca em Wi! ®rn o. noç~o tk ,m-nJIJ<kmidi!de •••


Na realidade, eu retomei essa noção, mas de maneira muito
pragmática, nada teór[ca, nem menos ainda fllosófica, simples-
mente como uma fer:ramenta que possibilitava marcar umá
ruptura, um agsiornamtlnto histórico do funclonam.e nto das so-
ciedades modernas. Lyotard definia o pós-moderno como a
crise dos fundamentos e o declínio dos grandes sistemas de le-
gitimação. Isso era verdade, cl.aro, mas não de todo, pois as de-
mocracias se fundamentavam especialmente num consenso
muito forte em tornC> das bases principais delas. Em seguida,
era preciso mostrar que havia não apenas ceticismo, incredu-
lidade, perda de fé, mas também novas balizas, novos referen-
ciais e modos de vida. Em minha mente, o pós-moderno Im-
plicava desconUnuldade e continuidade, um estágio decerto
pós-revolucionário, pós-disciplinar, pós-autorltá.rio. mas ele
também se Inseria entr e os corolários da lógica laica democrá-
tica e individualista - donde a idéia de ·segunda revolução Indi-
vidualista· .

Em que o StiCt'Sl'O de A era do vazio mudou sua vida?


Recordo que, com os primeiros direitos autorais. eu me pre-
senteei com uma prancha de windsurfe! Não era exatamente
uma mudança de vida à Rlmbaud ... Teceram-se novos laços
intelectuais, que às vezes se transformaram em amizades fiéis.

11}
Eu era cada vez mais solicitado pela mídia para analisar as rea·
lldades do mundo contemporâneo. Sobretudo após OImpério
do efemcro, multiplicaram-se os convites para dar conferências.
na França e um pouco por toda a parte no exterior, tanto nas
universidades como nas empresas. Aliás. foi àÍ que Uve ocasião
de me interessar por questões novas, como o ltL~O ou a ética
comercial -questões para as quais minha formação inicial não
me preparava. Dai em diante, o • vazio" contribuiu para preen·
cher bastante os meus dias e multiplicar os meus contatos com
o mundo. Ete·me possibilitou abraçar mais a vida em sua plenl·
tude!

Oamor aos fatos leva o senhor a privilegiar o descritivo tJn 1'1'2 do oormati>'O e
a não propor uma lliW8 normatização. Por que esse retraimento quando se trota
de exatplnar as soluções possfve.ls?
Como cidadão. posso engajar-me e tomar partido, mas não
quero misturar as coisas. Em meu trabalho, o que me Interessa
é compreender as lógicas em ação na história e na modernida·
de, e nãojulgá· las. Ademais, julgar é um empreeridimento que
às vezes traz problemas. Quanto à questão do luxo, por ex em·
pio, que abordo em Le luxe étemel, teria sido fácil cair na conde·
nação ou na apologia. Mas, quando se aceita o esquema propos·
to, mostrando que o luxo não se reduz ao supérnuo c é
consubstanciai à história da espécie humana. a questào do no,...
mativo logo se torna "vaz:ia•. Será que vamos condenar as mile-
nares oferendas aos deuses e a construção de templos suntuo·
t
sos? Seria absurdo. inútll quererjulgar o que é constitutivo do
humano-social.

11~
. .'
Tudo btm, DW selá que não se pode fllZ" umjuÍZD n.lo sdJre a lüsl6rla do luxo.
e sim sobrt o luxo hoje?
Claro. Isso é Inteiramente possível, mas a situação é menos evl·
dente do que se Imagina. De um lado, não há nenhuma dúvida
de que o luxo tem algo de afrontoso. Mas, de outro lado, quem
desejaria para valer uma sociedade unicamente funcional. sem
sonho, sem desperdlclo. sem mitologias prestigiosas, sem formas
superlativas? Será que n ão é legitimo ansiar pelas coisas mais
belas? Caso se diga que o l uxo é • mau·, onde se determinará ~e
ele começa ou termina ? A velha pergunta: onde começa o
supérfluo? Quando principia o Inaceitável? E o que é u ma neces·
sldade ·verdadeira! Não será a arte uma forma de luxo? Em
caso aOrmatlvo, fazer o quê? At, ent.r a·se num Llpo de renexao
em que os argumentos não convencem, em que eles mais raclo·
nallzam reações emocionais do que expressam uma verdadeira
evolução do saber. Esse trabalho eu deixo para outros. Etc nào
me Interessa em nada. Sobretudo, ereto que não exist e posslblll·
dadc de dar resposta clara e fundamentada àque.las perguntas.

(Àm rtlaçAo à moda, o S«Jhor taJnbMt acha que os jufzm são tão pertmp16rlos
quanto o Silo no rtferente ao luxo?
Claro! Nao param de denunciar a macaqulce das coqueluches de
massa, a superficialidade da TV. a lnslgntncãncla do consumo-
às vezes, não sem algumas razões excelentes. Entretanto, a
moda tal qual a analisei em OlmpMo do eflmero possibilita uma
abordagem menos maniqucista do fenômeno. Isso porque a so-
cledad~moda (aquela do consumo, da mfdia, da publicidade, do
·tudo é descanável") é também a que fez retrocederem os fana·

"'
tlsmos sangrentos, reforçou a legitimidade do pluralismo
democrático, proporcionou maior liberdade à opinião pública
e aos eleitores. Ainda que seus múltiplos e negativos defeitos se-
jam reais, seus beneficios estào multo longe de ser nulos. Eu
simplesmente quis mostrar que a forma-moda não era sinOnl·
mo de "barbárie·, de rulna do pensamento e da liberdade. A
questão merece exame mais atento e juizos mais contrastados
do que esses que freqüentemente os ·profissionais· da concel·
tuallzaçao e outros minuciosos hermencutas dos grandes tex·
tos canOnicos nos oferecem.

Ao t!ler Aera do vazlo.rem-su lmptmãodtqutjá~havlam tstabel«l·


do os JPndts conceíros que anim.lm suas obras: o processo de penot~al~ a
tkstrulç'o das esltuturas coleUvas de Sl'nlldo, a valorização do hedonismo, a re-
I'OIUÇ~~ do consumo, as tell$Õt'S paradoxais no ~lo da sociedade eM/ e dos pr6-

a
prlos lndMduos. lmfJ)rtMida da seduçao como modo de fl'8Uiapio social. apa·
clficaç~o do campo político e o apego mais profundo aos valores t$StOCials da

rkmoaacla. Enrmanro, não eslamas mais num cnnre~ero pás·lllOdemo. Assim, o


que mudou eslrullllalmente desde 19$), ano da publicação daquele :seu prlmtiro
livro?
Mudaram muitas · coisas·: houve a rápida expansão da globall·
zação e da sociedade de mercodo. a consagração dos direitos
humanos, as novas pobrezas c novas exclusões, a precarização
do trabalho. o aumento dos medos c angústias de todo Upo. o
estabelctlmcnto da Frente Nacional na paisagem política rran·
cesa. Mas também o fim do sistema Internacional dominado
pelo antagonismo leste-oeste. a explosão de conflitos e guerras
"idenlltárias". Multas dessas mudanças podem ir de ençontro à

116
' '
idéia que eu desenvolvia então. qual seja. à do advento de uma
sociedade· descontraída • e de um Individuo cool. Em "Tempo
contra tempo", eu me dedico justamente a radiografar certos
aspectos desse novo contexto. Quer dizer então que nada so-
brou da revolução do novo individualismo? Claro que não:
sobrou multo. Embora o hedonismo não seja mais tãoj ubiloso,
o fato é que ele rege todo um conjunto de práticas de massa.
A autonomia individual aparece cada vez mais nitidamente
como norma imposta pelas organizações, mas busca-se também
a vida alternativa, a vida aoorta a escolhas, até em esquema de
sclf-service. Reforçam-se as limitações da vida profissional, mas
também a volatilldade dos •ele!tores, dos casais, dos consumido-
res, dos crentes. Osucesso da Frente Nacional contradiz a idéia
de um individualismo aberto e tolerante, mas, de outro lado, o
fenômeno ilustra à sua manei.r a a tese da consolidação demo-
crálica acarretada pela sociedade-moda lndividualbta. Aelltre-
ma esquerda não tomou o poder. mas a sociedade como um
todo não derivou para a xenofobia e o nacionalismo; a direita
que governa não com pactuou com !.e Pen. Adinâmica da indi·
vidualização fez que a democracia permanecesse sólida, apega-
da a seus principios humanistas e pluralistas.

Oa.mbitmte mudou, mas nem por Isso o individuo hipennodemo, hedonista ou


apretll$IVO, eniilista. As obrigações niio mais são Incondicionais, a moral não
n•~ r autoritária, o eng~amento não mais eabsoluto, e mesmo assim não esta-
mos numa sociedade desprovida rie valores. Como o senhor explica isso?
Tanto Tocqueville quanto Durkheim salientaram bem: uma so-
ciedade não se limita à produção material e às trocas econômi-
cas. Ela não pode existir sem concepções Ideais. Estas são não
um "luxo" que ela possa dispensar. mas a própria condição
para a existência coletiva, •O que possibilita aos individuas ligar·
se uns aos outros, ter objetivos em comum. agir em conjunto.
Sem sistema de valores. nada de corpo social capaz de repro·
duzir·se. A sociedade hipermoderna não escapa a essa lei. A
derrocada dos grandes messianismos pollticos, longe de ter
provocado a aniquilação de todos os valores. permitiu que as
democracias se reconciliassem com seus princfplos morais básl·
cos: os direitos humanos. De um lado. o individualismo raz re·
du:tir·se a rorça das obrigações morais; de outro. contribui para
dar-lhes nova prioridade. O respeito à pessoa humana podia
parecer secundário quando comparado à revolução, à luta de
dasses, à nação ou ainda à raça. Não é mais o caso. É preciso
desfazer-se da lengalenga de um universo niilista, anárquico,
livre de todo $enso mora!. de toda crença no bem e no mal: a
decadência dos valores é· um mito, aliás sem absolutamente
nada de novo. Ao que se acresce, em outro plano, o rato de
que a din~lca do individualismo reforça a tendência à lden·
tiflcação com o outro. Sobre Isso. Tocquevllle ralava de uma
•compaixão generalizada por todos os membros da espécie
humana •. Sob efeito do Imaginário da igualdade e do culto ao
bem-estar, os indivíduos ficam mais ·tocados pelo espetácu·
lo dos sofrimentos do outro- o que subjaz às diversas reações
de indignação. à rápida expansão da moral sentimenttal expio·
rada pela midia, às novas formas de altru.ísmo e de generosida·
de que. por não mais serem "obrigatórias". nem por isso são
menos reais.

118
....
IndiVíduos cada vez mais pnlximos uns dos oulros, uma Igualdade .que se con-
cttliZa e diferençaJ onlológlcas que perduram, especlalmcnle enl.l!ll homens e
mulheres. .• Mesmo que o processo lgualilário lenha constguido levar a uma
androginia cada vez mais deslacada, obsetva-se que a diferenciação sexual per-
man«e, como se exist.isse mesmo um eterno feminino. Sabe-se que as femlnls·
las alribvem lalmnanescéncla a uma herança arr:alca, fadada a <ksaparear.
Mas. embora isso possa parecer plausi..eJ, mio con1~nce o senhor. Por quê?
Há duas razões que me parecem fundamentais. Em primeiro
lugar, o que se perpetua :não mais exclui o principio de auto·
nomia Individual das mulheres. Nem todos os códigos sociais
herdados do passado perduraram: a virgindade ou mesmo o
Ideal da dona·de·casa vieram abaixo, e Isso apesar da força
social que tinham antes. Se Pelo contrário se mantêm ou.tras
normas e papéis, é porque eles são agora compatíveis com o
principio de autonomia pessoal. Mediante issO, a nova perma·
nêt'\éia dõ rernhiinõ surg.e í'lào coMo Mera •reMane-scéncia••
mas como reinvenção da tradição pelas próprias mulheres.
uma reciclagem do passado na ordem livre da modernidade
individualista. A beleza, por exemplo, continua sendo uma
norma destinada prioritariamente às mulheres, mas issO não
mais as impede de estudar; trabalhar. assumir responsabilida-
des polít.lcas. ~a mesma coisa com o lugar sempre p:réponde·
rante das mulheres no espaço doméstico. Sem dúvida, elas
freqüentemente se queixam da·ausência· ou ·omissão· dos
maridos- rnas o rato é que, embora aquela runçllo tradicional •
permaneça, não é mais s.lnõnimo de confinamento domésti-
co nem de negação do direito de dispor livremente de suas
vidas.

119
A segunda razão, tão importante quanto a primeira: não acre-
d ito que uma sociedade possa não traduzir simbolicamente a
diferença sexual. Como imaginar que os seres humanos não
dêem nenhum sentido social a essa diferença? Parece-me que, aí,
há como que um imperativo antropológico e cognitivo. Tome·
mos um exemplo trivial. Nos anos 6o, as feministas radicais quei·
mavamseus sutiãs, que aos. olhos delas eram símbolo da mulher
meramente decorativa. O que acontece hoje? A lingerie nunca
foi tão erotlzada. Como compreender tal fenômeno? Será que se
trata de uma regressão? Penso que não. Com a femlnlzaçào da
instrução e do emprego, a <lesestabillzação dos papéis e a ascen·
são das mulheres aos cargoo de responsabilidade que antes eram
atributo do masculino, cresce a necessidade de reafirmar a iden·
tldade feminina mediante símbolos •superficiais", mas explfcitos.
À medida que se reduzem as grandes divisões entre maseulino e
feminino, aflrrna-sc a necessidade imperiosa de que se constitua
algo como um universo da diferença sexual. Posso lhe garantir
que a era da igualdade não leva à confluência dos sexos. à indife·
renciação andrógina dos papéis do masculfno e do feminino.

Falemos de seu traba.lho atl14.1, que lmnra questões sobre nossa pmente siiUilfào
aun base em elementos de an.illse Mo dlversái quanco o luxo, o culto ao pmente
ou a mercalllii/Zaçilo do mundo na era dó Cl1/ISW110 emocional. N~!S$~!$1/ês casos,
opera-se um mesmo ptoeeSSI), va/ortzandó o OOdonismo e as emoções, uma valori·
zação que~ explica pela igualiZaçM, pela lndivlduai/ZaçãiJ e pela ~í!Wílutló·
na/tzação levadas a 1em10. TradUZ'-se assim uma oova relação com os objetos. com
os outros e com o eu, a qual o consumo talm possibilite colocar bem em eviden-
cia. Osenhor poderia falar sobre isso?

120
. \

Oque denomino a sociedade do hlperconsumo é aquela que vê


erodirem·se os antigos e nquadramentos de classe e surgir um
consumidor volátil, fragmentado. que não está submetido a re-
gulaçAo. Ao mesmo tempo. asslste·se à rápida expansão de um
consumo multo mals experlenclal ou emocional do que ligado
ao status. Consome-se multo mais para satisfazer o eu (saúde,
repouso, boa forma, sensações, viagens) do que para gnnhar o
reconhecimento de outrem. Veja os grandes segmentos de con·
sumo que estão em desenvolvimento, como o da saúde. O~o
bom proveito àqueles que querem explicar o sobreconsumo
médico com base no modelo do status! Claro, permanecem as
lógicas da honraria. mas elas sào apenas parte de um conjunto
multo mais amplo e não poderiam ser a razão definitiva da esca·
lada consumlsta. Hoje, o que se busca no consumo é, antes de
tudo, uma sensação viva, um gozo emotivo, que se liga menos
às exigências do padrão d e vida que à própria experiência do pra·
zcr da novidade. Por melo das ·coisas•, é afinal uma nova rela·
ção com a existência pessoal o que se exprime. tudo :se passando
como se houvesse o medo de apagar-se, de desaparecer gradual·
mente, de não mais sentir sensações sempre novas. Fica-se ater-
rortzado pelo tédio da repetição. pelo·envelhecimento· da vl~a
Interior. Comprar é sentir o gozo, é adquirir uma pequena revi·
vesc~ncla no cotidiano su bjetivo. Talvez esteja ai o sentido de O·
nltlvo da engrenagem hlperconsumlsta.

HlpemmsumW!lo tm«ionaJ. ou ~ja, um a>mumo que~ pensa não mais com


~num confronto simbólico tendo tm risla uma disünção social. e sim como
possibllldatk de ltai>~ &o lei ·se no gtJl1J e IW na dor. A nxol<rnidadt tsl4 no fim

lU
dt swlra}er6rla, deixando-- às I'Oiras com a flsvra ideal do homem tn«kmo,
IIm e Igual aos ourros- a t~g~Jra do hlpttCMSU~~~Idor. Setâ que a hipermodtr-
nldadt IIQS Olfldtoa Amercanrilização do mundo? Edt quais ameaças tla., faz
acompanhar?
Oque ainda caracteriza o hlperconsumo, ou consumo-mundo,
é o fato de que até o não·econOmlco - família, religião. slndlca·
llsmo, escola, procriação, ética - é permeado pela mentalidade
do homo consumertcus. Todavia, esse cosmo não significa a elimina·
ção dos valores não-comerciais, dos sentimentos, do altruismo.
Quanto mais se Impõe a mercantlllzação da vida. mais celebra·
mos os direitos do homem. Ao mesmo tempo, o voluntariado,
o amor e a amizade são valores que se perpetuam e até se refor-
çam. Ainda que se generaUzem as trocas pagas, nossa humanl·
dade afetiva, sentimental, empátlca, não estA ameaçada. A Idéia
é antiga: Marx dizia que a burguesia havia substituído pelo di·
nhelro todas·as velhas relaçOes sentimentais, e isso no momcn·
to mesmo em que se assisti a à idea.llzação da família e a.o apogeu
do romantismo amoroso. Na realidade, a moderna consagração
da mercadoria seguiu de mãos dadas com o desenvolvimento da
Intimidade, com o casamento por amor e com o Investimento
afetivo nos fllhos.
Os perigos estão em outra parte. Ern especial, testemunha-se
uma preocupante fraglllzação e dcsestabllização emoC'Ional dos
lndlvlduos. O hiperconsumo desmantelou todas as formas de
socialização que antes forneciam referenciais a eles. Durkhcim
já sa.llentava: se ooorre uma epidemia de sulcidlos, não é porque
a sociedade se toma mais severa, e slm porque os indivlduos
ncam entregues a si mesmos e, por isso, menos equipados para

111
. \

suportar as desventuras da existência. Hoje. se os lndlvlduos


es!Ao cada vez mais frág<!ls. é menos porque o culto ao desem·
penho os destrói do que porque as grandes Instituições sociais
não mals lhes fornecem uma sólida armadura estruturante.
Donde a espiral de distúrbios psiCOS$Or'náticó~. depressões e
outras ansiedades, que sllo a outra face da sociedade da fellclda·
de. Se tal constatação é -correta. IS$0 quer dizer que a busca da
felicidade que os modernos fizeram avançar está multo longe
de ter-se consumado. O bem·estar material aumenta, o consu·
mo dispara, mas a alegria de viver nào segue no mesmo ritmo,
pois o Indivíduo hipermoderno perde em descontração o que
ganha em rapidez operac.lonal. em conforto, em extensão do
tempo de vida.

Eo que é feito da fiiOS<Ifia nesse mundo hlpemrodemo? Como poderll ela descm·
pcnhar ~u papel de disemso roclonal em face dt lndMdutl$ mais propensos j
emolivldade q~ à reflexão?
Em primeiro lugar, lembrarei que a hlpermodemldade nao se
reduz ao conswnlsmo, ao entretenimento nem ao zapplng gene-
raliZados. Na realidade, ela nào aboliu a vontade de superar-se,
de C•ria.r, de Inventar, de procurar. de desafiar as dificuldades da
vida e do pensamento. Mesmo no turboconsumidor contem·
poraneo, a ·vontade de poder· nao pára de atuar. Por Jsso, a R·
losona como disciplina da razao e da busca da verdade não está
ameaçada. Não há nenhum motivo para que desapareçam os
homens com ambição de elevar-se acima dos preconceitos e
lançar-se aos difíceis caminhos da fruição do mundo pelo en·
tendlmento. Mas tampouco há motivos para crer que tal atltu·

11)
de possa democratizar-se e conquistar as multidões. Em com-
pensação, o que tem chances de difundir-se é um consu mo
maciço de certas obras, quer de introdução às filosofias. quer de
"meditações" de tipo eudemonístico. Numa época de self-servi-
ce individualista, Sêneca e Montalgne surgem no campo do con-
sumo ao lado do Prozac. com todo um público procurando na
Cllosofla das consolações as receitas empíricas, imediafas, para a
felicidade. Desejo boa sorte ao hiperconsumldor. mas para mim
é diflcU deixar de expressar o máximo ceticismo, pois esse gêne-
rode leitura produz tudo menos o efeito ~perado: a filosofia
não é o caminho suave para a felicidade. É verdade q u e a leitu -
ra das grandes obras pode maravilhar, arrebatar. proporcionar
prazeres localizados; não se trata de algo insignificante, mas é
pouco para aproximar-se da vida venturosa. Quem já meditou
os grandes mestres não está mais bem equipado que ninguém
para viver feÍiz, pois nenhum filósofo nos protege contra a ex-
periência da tristeza. do desespero, da dor ou do medo. Nesse
aspecto, reconheço-me hegeliano: a filosofia tem por tarefa pro-
porciona~ uma inteligibilidade do real, e nada mais; seu papel é

trazer um pouco de luz, e não as chaves da felicidade, as quais


obviamente ninguém possui.
Outro ponto: a Importância da filosofia na história das Idéias,
da cultura, da racionalidade, da modernidade, não precisa mais
ser demonstrada. Ela concebeu as grandes Interrogações meta-
riSicas, a Idéia de uma humanidade cosmopolita, o valor da in-
dividualidade e da liberdade; durante séculos, alimentou o tra-
balho dos artistas, dos poetas e dos escritores: contribuiu para
estabelecer os principias do universo democrático; ambicionou
mudar o mundo social, poUtlco e econômico. Hoje. essa força
milenar está esgotada. Não faltam obras de qualidade, é verda·
de, mas elas não conseguem mais Insinuar-se na renexao dos
artistas e dos literatos, exceç.\o feita aos próprios filósofos ·pro·
Osslonals · .Sinal doHempos: nao há mais "tsmos•. na.o há mais
grandes escolas filosóficas. Eforçoso reconhecer que o papel hiS·
tórlco· • prometélco·da .nlosoflajá ficou para trás. Daqui para a
frente, são as ciências e ~ tecnocl~ncla que abrem mais perspec·
Uvas, que Inventam o futuro, que mudam o presente e a vida.
que Inspiram os criadores. A Renascença inteira se nutriu das
sabedorias antigas; e, mesmo em pleno século xvm. o estolcls·
mo. o epicurismo, o plrronlsmo exerciam grande Influência
sobre as mentes. Não tenho a sensação de que o que estamos
criando em matéria de fllosofla possa conhecer destino seme·
lhante. A Olosofla pode a té estar na moda- mas não se voltará
ao sratu ql!!l anrc, e nada deterá o processo de redução da lnfluên·
ela dela sobre a vida cultural. De um lado, uma democratização
do acesso às obras Importantes: de outro, um espaço fllosóOco
que cada vez mais se concentra na Instituição unlversltárta. De
um lado, obras lidas por um número multo pequeno de erudl·
tos, ou por ninguém; de outro, Imensos sucessos edl torlals cuja
lnOuêncla é cada vez mais "consumível", breve e epidérmica,
pois a OlosoOa não mais escapa à prtmazia da lógica d o efêmero.
Esses poucos cenários do porvir OlosóOco em época hlpermo·
derna não são nem dramáticos, nem entuslasmant~.

U!
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BIBLIOGRAFIA DE GILLES LIPOVETSKY

LIVROS
L'ere du vide: essais sur I'individualísme contemporain, Paris, Gallimard,
1983 lA era do vazio, trad. Miguel Serras Pereira &Ana Luísa
Faria; Lisboa, Relógio D'Agua, 1990).
L'empire de 1'éphémere: la mode et son destín dans les sociétés modernes,
Paris, Gallimard, 1987 [O império do efêmero, trad. Maria Lúcia
Machado; São Paulo, Companhia das Letras, 1989 (2. ed.)).
Le crépuscule du devoir: 1'éthique indo/ore des nouveaux temps démocratiques,
Paris, Gallimard, 1992. [O crepúsculo do dever, trad. Fátima Gaspar;
Lisboa, Dom Quixote, 1994].
La troisieme femme: permanence et révolution du féminin, Paris,
Gallimard, 1997 [A terceira mulher, trad. Maria Lúcia Machado;
São Paulo, Companhia das Letras, 2ooo].
Métamorphoses de la culture libérale: éthique, médias, entreprise,
Montréal, Liber, 2002 [Metamorfoses da cultura liberal, trad. Juremir
Machado da Silva; Porto Alegre, Sulina, 2004]. ·
Le luxe éternel: de (ãge du sacré aux temps desmarques (em colaboração
com Elyette Roux), Paris, Gallimard, 2003.

ARTIGOS
Os artigos também publicados em livros de Lipovetsky estão
indicados por um asterisco.
"Travail, désir", Critique, 314, 1973.
"Fragments énergétiques à propos du capitalisme",
Critique, 33.5, 197.5.

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