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EDiÇÕES GRD
RIO DE JANEIRO
1 962
Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.

CECILIA MEIRELES

"Dize •.me, amigo" - perguntou o Amado -

I
I terás paciência se redobro tuas penas?"
"Sim - respondeu o amigo - conquanto
'I
que redobres meus amores".
RAIMUNDO LULIO

DESENHO DA CAPA
LOIO PERSIO
"

a Newton Pacheco 1....


3....
56 - Sim, sei desde já que não conseguirei integrar
a harmonia do mundo em que vivo, que as pessoas jamais
me perdoarão o mal de não ser exatamente como elas, e
elas não têm culpa alguma disso. Sei, desde hoje, que
nasci com a máscara inexpugnável de um animal pre-
histórico, ou de um pássaro empalhado, dêsses que as
populações se apressam em eliminar, e guardam seu espectro
para não perder de vista a ameaça das exceções de que
são vítimas. Sei que, a partir disso, jamais terei um amor
nem sequer relativo, um amor que me salve, senão o meu
próprio amor criado e amadurecido dentro de mim, do
qual sempre fugirão com mêdo de se contaminar aceí-
tando-o, Sei que, por mais que se esforcem os homens e
as mulheres, jamais compreenderão o meu plano de exiqên-
cias, e isto não me torna propriamente amargo, mas
triste. .. e a minha tristeza, como atmosfera e permanente
soluço, é como o apêlo de um animal doméstico, aos sêres
que transitam ocupados ao seu redor, tolerando-o, mas não

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admitindo uma comunicação de entendimento. Sei que pelo tempo da humanidade cravarem as almas em suas
muitos tentarão pontes de acesso e eu dinamitarei tõdas, cruzes múltiplas de mágoa.
até mesmo fugirei, inclusive dos que respiram no meu
plano de asfixia, animais desconsolados que mugem nas ~
largas noites como búfalos espreitados por exímios caça-
dores. Sei que a solidão é meu prêmio e não sei porque Deitado vejo o crucificado no alto da parede. Seu
me condenaram a esta vida, mas vivo, e consigo achar até rosto inclinado e sombrio parece um teto sôbre a minha
mesmo alegria em viver. Sei que muitas vêzes esquecerei
do muro que me separa e tentarei encostar minhas mãos
vigília desta noite. Éle é cada um daqueles por
morreu.
rr amor
Ele é a tristeza absoluta da condição humana;
no peito do outro, para sentir um coração, e como um corno um Deus que provou a taça até as fezes êle tem um
louco serei logo rechaçado. Sei de tudo e prossigo. E silêncio de pedra sôbre o lábio martirizado, e me ampara
porque prossigo, se sei de tudo? Por mêdo de mergulhar neste caos em que' roda o meu pensamento à procura de
no abismo? Por insistência? Por esperança? E esperneío uma razão dentro do conflito. Era preciso que o meu
como um animal ferido diante da tentativa de me modificar coração se despetalasse, como a flor esquisita que é, para
em minha essência, para integrar o cortejo... não será a deixar vivo e livre todo o seu resíduo de esperança. Confio
minha condição um verídico pecado? Não terei eu tam- em que isto se realize porque não vejo o fim da minha
bêm escandalizado os meus semelhantes, isto que me parece desdita. Também não quero renunciar ao sofrimento que
o único crime para o qual um inferno se justificaria? Mas me faz ver coisas inimaqináveís, coisas que forjam o meu
sei que sofro... E por mais que se tente empanar a tempo interior, que são a minha floresta de sombras. Me
verdade do desajuste, eu sinto que êle existe, é tão certo e despeço hoje da cordialidade com que fingiria estar manso
palpável como o trabalho da minha morte. Ah, falei enfim entre os cautelosos avaliadores do próximo, me despeço
nela. É por ela que eu me salvo, porque um dia as
hoje da concessão e do desperdício de me entregar a não
ser por absoluta premência de amor. Fora disso começo
pessoas esquecerão da minha presença física, da minha
como um espinheiro, e que êste Cristo que morre diante
respiração, serei como todos os mortos, cada vez mais uma
dos meus olhos, e que não cessa de morrer, me valha.
sombra. .. No fim até castigarei a memória daqueles que
ainda insistirem em me reter, e também êstes me porão de
lado. E há de chegar o momento em que nem mais existi-
rão os que me conheceram, nem os que conheceram os que
me conheceram. Então pode ser que ainda esteja entre 13,..3,..56 -- Parece-me que o mal gratuito emperra as pes~
as criaturas o depoimento do meu remorso, e ninguém se soas. Emperra-as justamente nesta capacidade de loco-
lembrará de vociferar contra o morto. O que desespera o f il moção para a graça, a felicidade. Anuvia o caminho, dífí-
meu território é a resistência da minha vida. Mas estar culta a respiração, impede o discernimento. As migalhas
morto será a minha defesa e a minha esperança. por ela de alegria são sorvidas às furta delas, como um ladrão na
me solidarizo a tôdas as espécies de isolamentos que ainda calada da noite. O mal lhes dá êsse remorso dorido em

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relação às criaturas e mesmo que não queiram se instituem se faz a infância, e o casaco de pelúcia aquecendo como
juizes implacáveis de si mesmos. Não acredito em cons- carícia de mãe. Difícil é o reino da solidão, o que começa
ciências mortas, insensíveis. Nas que aparentam tal surdez assim. E de duas categorias se formam os filhos. os qene-
a luta é mais trágica, e a vontade de participar do bem rais do reino, os soldados: os que partem para a guerra e
não lhes permite trégua, ainda que se neguem por rancor voltam com a prêsa, ou pelo menos com o barro do cami-
para com a vida.
nho e um honroso cansaço que muitas mãos amoráveis
amenizam, e os que não partem nunca, os que se aprimoram
~
na espera, os que vão até o limite da víolêqcía e se enco-
lhem temendo o grande vento, o cataclismo, tudo o que
(Mas como se muda! Aqui anoto inclusive trechos de
antigas cartas e lendo~as na íntegra verifico o quanto não parte em duas partes o amor deixando correr o acerbo
óleo da mortalidade sôbre carnes já divinizados de silêncio
sabia de mim quando as escrevi. Como ainda não sei de
.mim o quanto devia! Mas só o poder constatar a minha e prece.
mudança, e acreditar nela, me assegura o direito de res- Porque é orando que se espera. Porque se sabe que
pirar, de encarar a cinza dos meus antigos rancores, e algo virá -- alguém. Então se reza. E as mãos realizam
verificar como eram mais generalizados e doentios. Tudo um curioso ritual de objetivos em favor do esperado. Às'
o que detesto hoje vem de uma imposição de mim perante vêzes se coloca uma rosa num copo de opalína, ou se
as relações inevitáveis - uma medida do que aprendi, do estica a colcha de toalha azul sôbre o dívã, e se freqüenta
meu sofrimento ou do meu amor, da minha capacidade. o espelho atrás de aparências que não duram (porque a
Se me imponho esta medida que antes era o surgimento espera inclui também aquela meia-hora entre a hora mar-
puro e simples de uma série de incontrolados instintos, e cada e a chegada -- e então. tudo começa a apodrecer, a
verifico a transformação, posso esperar um amanhã ainda ruir dentro da gente, e se transpira no corpo e na alma
mais transigente, menos duro, quando aceite Com mais um suor ácido de frustração que nos faz desejar num
simplicidade o mundo, esta estação de madureza que não momento: "Que não venha ... " Às vêzes vem, às vêzes
cessa e cujo sumo, em sua degradação ou glória, é a única não. De ambas as maneiras deixa após si os detritos de
herança significante para a minha alma ímortal.) uma permanência sem reciprocidade).

~
~
Cantar foi a primeira alegria real do meu desatino
Difícil é o reino, ninguém atinge os cavalos e os férteis
com Deus. Sim. só posso chamar desatino esta imposição
campos sem que isto lhes signifique uma custosa renúncia.
inegável, esta luta para entender o mistério. Sabia que
Difícil ê o reino, de se construir, de se respirar sua pro-
era preciso rezar, e rezava longos terços quando menino.
funda realidade, seu organismo cotidiano _ os panos de
As ave-Marías me faziam dormir, os padre-nossos tinha
prato, os canteiros onde é preciso extirpar os maus capins,
a mesma ínflexão, e na voz dos colegas de aula se mistu..
a poeira que é preciso varrer, o pão com manteiga de que
ravam a bocejos e desatenções, Nisso me dispersava como
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nunca. E era preciso rezar. Até que comecei a cantar no
côro da Igreja. E lembro a frase do maestro: Hoje sei que tudo é diferente. Que nem tanto é o
"cantar é rezar duas vêzesl" pecado, e muito maior é o amor de Deus.

Como gostava de cantar! O Tantum Ergo, o Panis


~
Angelicus, o Kíríe, o Agnus Dei, as missas em latim nas
quais eu era sempre solista. Sentia realmente que, sem Lembro que o padre um dia me chamou para assistir
entender as palavras, estava em sintonia com o sobrena- como castigavam um menino curioso em questões de sexo.
tural. E me consolei de meu pouco fervor com as palavras. Naturalmente era o filho da empregada do pároco,' só nestas
Era preciso redescobrír as palavras. condições se admitia consentimento a tanto. Ela, a mãe,
assistia de longe, com os olhos fuzilantes e dúbias, sem
~ saber que atitude tomar, pois afinal era a santidade quem
castigava. Colocaram o menino sôbre uma mesa e o santo
Desatino, desatino! Pois haveria maior loucura do padre com uma vara nodosa longa e fina o açoitou. O
que confabular com o Criador a respeito das minhas ações menino chorava e eu não pude deixar de chorar também.
impróprias? Pois não tivera tendências ínconfessáveis? E Era a vergonha, o mêdo, a inadaptação surgindo.
a confissão:
Padre, daí-me a vossa bênção porque pequei. ~
Enumera os teus pecados, filho.
Ao sair dali já não pude encarar as coisas como antes.
Eu cometi nomes feios, eu fiz nomes feios ...
Conhecera a primeira agressão. E como se tira o demônio
Um momento. Que "nomes" cometeste. Só? da carnel Com que desamor! É certo que dissera tudo
Acompanhado? ao padre no confessionário, mas êle, chamando~me assim
. Propositadamente apressava a confissão, dizia baixinho para assistir uma punição, rompera o muro ela confissão,
para que não tocassem nisso, nesse pecado que cada vez o sombrio recinto da humildade em que se dizia o homem
mais se incrustava em minha alma e para o qual estava representante de Cristo. Fora era o homem mesmo, o
fatalizado. Mas era preciso confessar tudo e sobretudo homem que. se julgava bom e casto, juiz de sua comarca.
sabia inevitável a reincidência. Que na outra semana vol-
taria para a mesma confissão. E tudo parecia pecado na ~
concepção do confessor. E se o pecado da carne abrangia
todo aquêle terreno de minúcias e detalhes de pensamento, Mas ainda me restava o canto. Na igreja muitas
palavra e obra, então estava írremediàvelmente condenado vêzes, e principalmente na hora da consagração, chorei em
ao fogo eterno. silêncio. Na realidade aquêle padre cortou os laços que
me uniam à igreja Católica. Mas não os que me uniam
a Deus.
~

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encolheria' as mãos para dentro dos pulsos. Mas como
2 ...4 ...56 __ A rosa é, fl'eqüentemente, a necessidade que acariciar então? E a verdade é que J. recebia sorrindo
temos dela __ como o amor. Esta necessidade de amor aquelas carícias temerosas.
se desencadeia em quase dor física, como se um espinho
nos atravessasse o peito e exigisse a constante vigília que
pesa de corpo em corpo sem se dissociar. O mêdo que eu
tinha era de perder o amor em si, e nunca as criaturas
6,,4,,56 - Ontem saí para ir ao teatro. Estava indis-
sõbre as quais me debrucei em busca dêle.
posto, sem vontade de me arrumar, de espera" de andar
naquela condução à noite, sempre em direção de um ato
~
de representar, mas onde encontraria, quem sabe, aquêle
olhar de fogo que pertence à noite, à pétala cerrada da
O que sói determinar o sentido de entrega e renúncia
noite, e que pode tombar sõbre nós na hora mais amorfa
dos homossexuais, notadamente dos passivos, é uma espê-
- e então provocar o hino, quem sabe ...
de de caridade, de vontade de se dar, dando o melhor --
não o melhor numa hierarquia de valores externos, mas o Tudo correu com a natural indolência. A demora por
abrir o pano. Sentei só e roi as unhas. Alguns me olha-
melhor tendo-se em conta que é dádiva consciente, a auto-
vam, mas eram olhares de tartarugas, as tartarugas que
entrega, o objeto mesmo se desdobrando e enriquecendo
odiava. Porque havia os belos, os pássaros íbís, e as
pelo amor. A solidão obra nêles como uma larva que
tartarugas. Se os pássaros íbís se reproduzissem como as
perfurasse deixando a filigrana, e a solidão é inescrutável
tartarugas a raça humana estaria salva: esta curvada raça
em sua iminência de grandeza, capaz de redundar num
de centelhas vivas a caminho de sua própria cremação.
silêncio de comiseração que a normalidade sacode sem
resultado __ assim podem morrer os santos, com seu segrê~
~
do, sua comunhão com Deus, sua vitória.
De repente, cena aberta, o pagem apareceu. Caiu aos
pés da duquesa e disse:
"Senhora, eu vos amo."
4...4...56 __ Lembro de J. e G., amantes. J. era o homem, Algo de extraordinário estava acontecendo: o pagem
o protetor, o líder, o belo, a cabeça de João Batista, pesando
estava no chão, o rosto fixado no rosto impassível da
no ombro do amante -- o mais belo pêso que conhecera,
duquesa, ela fria, ela ínvulnerável, ela não cedendo, não
uma coisa quase de não tocar e na qual G. mal ousava
entendendo. E no rosto dêle aquela Iruíção, um holo-
roçar com as pontas dos dedos como quem reconhece
causto que não prevê desastres: "Senhora, eu vos amo ... "
caminhos sagrados, como um cego que pressente a verdade
De repente não vi mais ninguém no teatro, a escuridão
e hesita em se entregar a ela, por demérito de seu defeito.
engolia tudo, só a cena continuava, interminável, viva -
Sim, G. se achava feio, e procurava ignorar~se fisicamente,
não olhava nem as pernas nem os braços. Se pudess~
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\
"Senhora, eu vos amo" .- e era o meu coração que pro-
testava amor ao amor. Meu coração que se ajoelhava
\ 12-4",56 .- Com tristeza verifico: é de chantagem que
como tantas vêzes. costumam alimentar-se os amores. De chantagem amorosa.
E a passividade a que: o interêsse submete o amado é tão
indigna quanto o delírio que cega e destitui de grandeza a
atividade afetiva do amante. Talvez não no amante, o
dinâmico na conquista, porque embora cedendo em terrenos
7 ",4",56 .- Para mim o amor era freqüentemente a possi- de pura compra e venda, de pura oferta, de troca indevida
bilidade de descobrir um pouco mais o ramo subterrâneo (porque é uma troca o que se promete, o que se deixa
que une o espírito à morte. Não o corpo. O corpo que adivinhar de válido fisicamente, quando o que se busca é
não teme tanto a destruição física como a perda da cons- etéreo, é apoio em guarnição palpável), nêle ainda se
ciência em vida. E a consciência em vida teria que cor- conserva aquêle halo de renúncia, de recurso extremo.
responder à consciência em morte .- sempre a consciência! Porque o desespêro da solidão, da disponibilidade que se
Conhecer-me era o que mais diretamente me interessava. gasta inviolada, causa uma dor infinita, um sufocamento
E não perder-me mais. Isto salvava o corpo e a alma. que explode às vêzes em indignidades mais fugazes: um
O pagem, desde o primeiro momento era um símbolo corpo que se entrega sem escutar Uma voz, apenas ava-
de revelação de amor .- pela pureza, pela beleza, pela liando o espoucar animal do instinto, o que tanto mais
verdade (?). satisfará quanto mais animal fôr, quanto mais atingir nervos
e sangue sem comprometer o espírito, sem deixar nada,
devastando, um verdadeiro masoquismo para quem se en-
trega assim, desnive1ando, mas se deixando sacudir da
loucura fria que envenena. Esta loucura fria, para mim,
10",4:-56 .- Certos seres há, e naturalmente os incapazes é a necessidade de encontrar alguém. Mas na verdade
de paixão, paixão humana, que dão amor pela salvação o de que necessito é de amor que não pare, que se des-
da alma da pessoa amada, que dão amor por caridade e dobre como uma flor marinha, que se revele Como que
que lutam por parecer amoráveis quando na verdade se tangido por uma esfera de água, esfera vítrea que tem
distanciam do verdadeiro sentido humano das relações. muito de sonho e de pesadelo. Ê isso, é preciso recompor
São pessoas que podem chegar no nosso leito de morte e o amor e tudo corre para êste campo de extática surprêsa.
dizer: "Não te iludas, tudo o que te dei não foi parte:
de mim .- foi um desejo de te conduzir a Deus". Sim, o
amor é o que pode mais Iàcilmente conduzir a Deus, e-
nada fora dêle. Mas de tal forma que não dê lugar ao
frio raciocínio, ao simples jôgo de lançar rêde. Pedro se 13"'4-56 - Penso no que seria definitivo. Elias? (seu
empedrou de tal forma em sua Igreja que já não resolve: carro de fogo ronda a minha vida). Impossibilitado de
o problema das almas vacilantes. entender-me Com o ser amado, de dizer-lhe: "Escuta, OUve
o meu coração que o idioma ê para ti"; impossibilitado de
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19
I

demonstrar (e com o mutismo advindo da certeza de que


\ dei conta de que lidava com personagens: Adâo, Eva, Caím,
não entenderiam), me contento em sorrir, um sorriso Abel. E daí o desejo de fazê-Ios falar. Minha peça
amargo que quer dizer: "Estou morrendo, e tu não podes Sarça Ardente é o caminho.
entender a minha morte!" E me pressiona a certeza de
que se entendessem haveria salvação de ambos os lados
__ porque a tristeza da minha vida é não ter sido útil.
Mas que tôrre de babel invento com meu amor? E tão
poucos atingiriam o seu cimo -- apenas êles, os bezerros 21", 10",56 --Apiedo-me da beleza de certas faces ambu-
lantes (não sem um arrepio pela passagem do deus que
de ouro de Sodoma teriam carne forte para a escalada. A
nelas mora). Mas apiedo-me da arquitetura fictícia, da
tõrre de Babel seria freqüentemente o seio de Deus, onde
ausência de espessura nesta atitude engendrada. E não
se guardam respostas para os mais estranhos transes da
nas mulheres isto me sobressalta, pois nelas a beleza é
vida.
uma obrigação, e tôdas se julgam o suficientemente belas
para persistir, mas nos homens -- nêles, quando o narcí-
sismo toma posição de privilégio, então é lamentável. É
de vê-Ios, ínteíriços na expressão, o sorriso apenas con-
cedido ao limite de não descambar para a rudeza, o olhar
15",5",56 -- No amor torna-se necessário entender, ou
sem direção, arrepanhando apenas os mal contidos sustos
aceitar apenas, as razões de nos encantarmos e desencan-
de quem consegue descobrir o deus oculto.
tarmos. Tudo é isso, desde que nos apoiamos em corpos
falíveis para montar a arquitetura cega do nosso afeto. Ah, quando penso na real beleza, na inconsciente
Chega um ponto em que se esgotam as possibilidades de beleza de quem é belo e não espera que venha a provocar
sinceridade e já não se age de acôrdo com a própria com isto uma rebelião de instintos, de quem não sabe que

consciência. É uma fuga instintiva de algo que faliu. é belo e consegue doer em nós pela realidade viva e com-
pacta que integra.
Penso nos primeiros, no desespêro que os acometeria
se tomassem contato com a realidade da morte, passando,
passando, suave... um pêndulo, um medidor de ambições
14:",8",56 -- Comecei a escrever uma peça de teatro. e esperanças. Ah, o efeito destrutível desta asa inegável
Talvez o resultado daquela deflagração da beleza que me em belezas tão fràgilmente organizadas. Estas pobres
agoniava. O tema é bíblico. Pressinto que êste meu prí- máscaras sem caule, vendíveís, vazias de si mesmas, peram-
meiro exercício do nôvo gênero vai padecer de duas bulando, como cabeças imensas encímando estacas condu-
influências, a poesia e a ópera. Não vai ser teatro mesmo, zídas por foliões, numa festa de tédios.
quando muito um poema dramático. Mas desde que co-
mecei a escrever poemas sôbre a criação do mundo me

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/
soarão sem significado, a mensagem, por mais hermética
28 .•1 0.•56 -- Duas coisas principalmente me revoltam no
que nos chegue, parecerá estranha, como uma voz desco-
procedimento humano: o servilismo e a agressão.
nhecida, mas cujo som, inflexão e timbre, nos dizem alguma
coisa. Sentimos então a alegria de que estamos cami-
nhando para um mundo de paz, e que aquêle é o idioma
desconhecido pelo qual nos faremos entender entre as
criaturas de boa-vontade.
2..11 ..56 -- Sexta-feira. Dia dos mortos. Em casa de
D. E. ouvi Bach e Beethoven. Entardecía. Lembro que
em minha casa não se podia escutar música neste dia.
Minha madrasta, católica feroz, encontrava nisto um forte
motivo de desrespeito e pecado. Nem música clássica, o
6..11 .•56 -- Não se pode condenar publicamente o mau
que me entristecia. Mas na casa de D. E. havia silêncio,
escritor amigo dos diretores de jornais, nem mesmo o
música e o grandioso espetáculo visto de um dos morros
amigo do diretor da página literária, dentro em pouco nem
da Urca. Na baía havia sempre um navio partindo e outro
o amigo do linotipista e do caixa e do ..office-boy" da
chegando. Uma nuvem apoiava-se na mão do Cristo do
redação. Neste ritmo as panelinhas se consolidam, agar~
Corcovado e erquia-se infinitamente como uma grande
ram-se às escarpas da literatura e se mantêm, o suficiente
coluna. Outra nuvem espraiava-se como um estranho rio
para azucrinar os nossos ouvidos e maleducar o gôsto
fitando o mar em baixo. Ao meu redor aquêle ambiente
público. Como se já não bastassem as imunidades políticas
exótico: os atavios bolivianos, as máscaras, os ponches
para reforçar a confusão ideológica da nossa vida literária.
coloridos, as cerâmicas baíanas, as imagens barrocas de
Minas Gerais, os santos, os quadros os tapetes de pele ..
Fora, a mutação imprevisível de côres, o espraiamento da
água repentinamente côr de chumbo, o contôrno nítido das
montanhas, o Abençoador -- sereno como a verdade --
12",11 ",56 -- O ser humano: o encanto e o desencanto
em sua vigilância ampla.
da vida. Um conto contado como o que ouvi agora enche
de luz uma sala. E não pelo conto, mas pelo contador.
Concluo que a palavra foi o bem maior do homem, sua
forma real de expressão. Mesmo a palavra escrita goza
desta vivacidade sonora, deve transmiti-Ia, absorver-se com
4 ...11 ..56 -- A poesia é necessária para o contato do
uma bela voz, uma clara presença. Em Rachel de Queirós
homem com o mistério que o rodeia. Éste enigma a que
encontro a mesma luminosidade do contador de contos, a
o homem se lança, êste dualismo de vida e morte entre
mesma Iôrça contra nós e ao nosso lado. Agrega poesia
cujos extremos tantos imprevistos florescem. Tentar reto-
à realidade mais banal e nos obriga a falar, como se os
mar o poema que nos parecer mais difícil. numa hora de
personagens da crônica nos escutassem. Não é fazer viver
solidão e distancíarnento, eis uma tarefa. As palavras não

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/.

gente dialogável é valorizar um fato, o cotidiano. Por


efêrnero que possa parecer êste registro, nada como íden- imperceptível fIorescência que muitas vêzes justificam uma
tifícar-se a êle, para o enriquecimento. Assim educo o existência tôda.
meu sentido de participação com o mundo e não farei como
o viajante do qual Cecília Meireles me falou, e que da
índia lembrava apenas baratas gordas. Creio que mesmo
das baratas gordas, tanto o relator oral quanto o estilo
humaníssimo de Rachei fariam o mais imediato campo de 25..1..57 -- Meu livro me chega às mãos justamente no
relações terrestres. momento em que já começa a descolorir-se para mim.
Talvez seja êste um período sintomático do escritor diante
de nôvo trabalho em preparo. Realmente. meu segundo
livro está nos últimos passos. Face Dispersa já me parece
desimportante, gostaria de voltar atrás e evitar que fôsse
10..12...56 -- Cada dia penso: o que estou fazendo da publicado. Mas é tarde. êle anda por aí. por todos os
minha vida? Em que sentido sou útil a mim e aos outros? cantos. com suas deficiências e lantejoulas. :E: angustioso
Ainda não tenho discernimento disso. Mas de qualquer andar-se assim. aos poucos, mas entendo que é a única
maneira não encontro coisa mais digna para mim. mais solução: ter começado cego e ver a luz aos golpes e nunca
indispensável e fatal do que escrever. ver o suficiente para sentir a liberdade que resulta da
revelação total. Ao mesmo tempo sinto-me feliz por nunca
~ estar contente comigo mesmo. por sempre desejar que o
poema melhor seja o próximo. por estar contente com a
Não ê possível fugirmos de nós mesmos. O encontro. vida. pela graça de respirar e poder morrer um dia.
isto sim. é urgente. O encontro com a nossa parte irnodi-
r- Iícável. a liberdade, o heroísmo de nos aceitarmos e de
continuarmos fiéis a nós mesmos.

27..1..57 -- Meu período de exercício foi longo. O sen-


tido sistematizado do ritmo veio até mim através de milha-
res de versos metríficados, baseado em tôdas as escolas
26..12..56 -- Não há como negar a pessoa humana -- ela passadas e ultrapassadas. até a tomada de consciência do
é magnífica. tem para si êste dom extraordinário de poder drama atual. da hora de infinita inquietação, do trânsito
sofrer. Quem poderá avaliar o verdadeiro e definitivo existencial do homem entre o profano e o místico. sem
lance destas massas de sangue, carne e músculo? Mesmo outro amparo que a imagem de um Deus criado de acõrdo
indo aos trambolhões. quando o desequílíbrío se torna com a necessidade e o vazio dêle mesmo. Ainda me debato.
constante. há as minúcías, os detalhes. os momentos de mas já me sinto salvo. Consegui definir em mim os
extremos que me ligam à continuidade humana. e os meus
24
25

I
a sua inevitabilidade e o possível caminho de uma melhor
deveres de condescendência para com esta massa sofrida projeção. Não quero crer nos improváveis, mas imagino
que quase sempre condescendeu comigo. como seria se Iôsse, e só o imaginar constrói em mim a
fé no existido. A luta começa quando saímos da infância.
~ levando-e um pouco ao nosso lado para sempre. e termina
ao atingirmos a postura definitiva. Assusta-me a dor da
Mas peco. Peco diàriamente do mal do orgulho. da morte. Não quero ser um fantasista e pseudo-amante do
intransigência e até da crueldade. Sou todo uma conse- espiritual. Amo o espiritual no homem, única forma de
qüência dos golpes e defesas em que me transformei desde comunicação autêntica com o extraterreno, Temo a dor
que nasci. da morte, repito. Será terrível abandonar a vida sempre
melhor, por que a temos nas mãos. Será terrível perder as
criaturas do mundo, algumas tão magníficas e belas. Ah,
a beleza do mundo! Na busca disso vivemos e morremos.

28",1",57 -- O que me dói agora é a solidão. Sinto-me ~


só no mundo. só diante da morte. indefeso e calmo.
Meu livro. pela sinceridade. talvez comova. Não me
1 preocupei em construir o poema (não sabia disso ainda)
mas em comunicar poesia. .. e era tanta a que me vinha.
Acho os meus poemas desimportantes, por isso. Que inte-
20",2",57 -- Independo do amor relação. como salvação ressa aos outros o meu encontro com um maravilhoso gato
extrema do meu hoje, por que supero a necessidade de negro. e a presença dêle na minha solidão daquela noite?
encontrar na criatura humana o meu complemento. Lanço- A universalidade é difícil. principalmente para o poeta,
me à aventura de reinventar o mundo, sozinho. e maravilho- tão voltado para si mesmo. Preocupo-me sempre em
me como uma criança diante de uma aurora boreal. realizar uma poesia que signifique um grito de alarme,
uma advertência. e que outros digam: "eu já pensei nisso ...
mas não sabia dizer". O que eu quero é saber dizer,
nada mais.

27 ",3",57 __ Sim, reconheço a minha melancolia e meu


tom elegíaco. mas não me quero amargo. Eu mesmo me
chamo o poeta da morte, é o meu tema constante. Mas
não a vejo como prêmio nem como castigo. Situo o morto 4-4-57 -- Para mim o poema é mais do que um registro.
em seu clima de dignidade. de impossibilidade de ofensa, ~ como se Iôsse carne e sangue meus, pois representa
de profunda ironia pela luta que foi a vida tõda. Celebro uma emoção justificável, uma energia dispendída num mo-
a morte não com júbilo, como quem a deseja. mas encaro
27
26
mente existencial insubstituível. O livro pronto é como
um filho. Provoca uma ternura, uma piedade pela Iraqílí- como uma estranha grama dourada de um país não des-
coberto.
dade dêle, e quanto mais lhe conheço os erros, mais o
amo. Acho que não se pode renegar inteiramente um
livro. Ficam como fotografias mal tiradas mas preciosas.

18..4..57 - A sensibilidade, esta capacidade de se ser


tocado em tôdas as fibras, esta sensitiva exposta ao mundo,
15..4..57 -- Em relação a E., sinto-me como um conde- esta chave de relação humana que nos obriga sempre e
nado à morte ao qual ofereceram alguns dias de maraví- uma justiça intuitiva, tudo isto é uma cruz que carregamos,
lhosa vida, de felicidade total. No meu caso até o dia 28. que nos implanta uma dignidade maior pelo conhecimento
Nada posso oferecer-lhe porque me constrange falar de do nosso destino, mas que nos acrescenta cravos que os
um amor que, embora alto em mim, não encontraria expli- outros, os humildes revestidos de crostas e Couraças,
ignoram.
cação para a pessoa amada. E se não entendesse? E se
aceitasse como uma explosão do instinto o que eu sonhei
~
a perfeição?

~ Acho uma grande afirmação em grandeza, para o


homem, a capacidade de sofrimento. Mas talvez desejasse
Por outro lado penso no que será depois, a minha para os meus, aquela outra espécie, em que possível passar
solidão. O lançar-me contra as paredes da minha loucura, imunizado, sem nostalgias e tédios e remorsos cotidianos.
insuficientes para a manifestação menor do meu amor. Penso também se não terão os outros dentro de sua corri-
Eu me achava munido de uma defesa contra a insensatez queira existência, problemas práticos tão intensos quanto
do amor -- agora aqui me encontro, um animal ferido, êstes dos esclarecidos. Enfim, a vida é uma incógnita e
o homem é um deus!
rastejante, sorvendo aos haustos o último ar do mundo.

17..4..57 -- Voltando ao meu amor: para mim ê dulcíssí- 3..6..57 - Ando assim, um dia feliz, outro triste. Sou
mo a possibilidade de ouví-lo, de sofrer pelas suas anqús- egoísta, ciumento, solitário. E me acontecem coisas, alqu,
tias, de transformá-Ias em minhas. E sobretudo vê-lo. mas por culpa minha, outras gratuitamente, mas tenho tido
Dormindo é como um anjo, os braços quase sempre abertos, amargos momentos de luta íntima. O melhor de tudo é
a serenidade nos traços, os cabelos sôbre o travesseiro sair ileso e pronto para nôvo sofrimento.

28
29
3
111

coisas, e o poeta em suposta voz de Adão chamando o Ser


19""8,,,,57 __ Os de fora geralmente
exigem de quem es- do fundo do seu poema. O poema deve ter um nó de
creve uma precipitação de amadurecimento. Como chegar síntese, deve definir alguma coisa referida quer no título
I a algum ponto, assim, mediante um chamado exterior?
Não seria necessário, antes de mais nada, uma renovação
quer nas entrelinhas do verso, mas deve. Deve haver a
criação do mundo em tôrno do objeto do poema, de forma
interna, uma renovação de tôdas as células criadoras em a delinear sua conformação, e que não seja um simples
fu;ção de uma ordem imprevista? Sinto em mim uma efeito de ritmo e coisa dita, mas o sustentáculo de uma
tendência nova, para não sei qual caminho da poesia, e verdade simples e pura, admissível pela sensibilidade da
me apóio na palavra, embora dê ao mito fundamental uma nova ordem de criação. O mistério deve ser o sangue da
importância equivalente. Mas mudo. O caminho percor- poesia, mas sangue de um corpo válido, de um corpo. A
rido para a centralização do nó essencial do poema é que insatisfação, a angústia interior, de quem se acha despido
varia. No fundo, me exerço sôbre as mesmas retóricas de finalidade concreta (do ser poemático, da coisa com
íntimas sugeridas pelos temas de meus livros. Impressiono~ interferência imaginativa, fantasiosa ou real), mesmo auxi-
me vivament'e com a poesia de João Cabral de MeIo Neto, liado por um vocabulário rítmico, por uma noção de ad jun-
aquela poesia retilínea, de arestas e sons, arquitetônica e tos lingüísticos funcionáveis no plano da sonoridade, só
bela, surpreendentemente bela. Meu poema "Morte na pode resultar no hermetismo estéril, do não ser nada além
Água" advém desta admiração. Tendo a esta visualização do instrumento. Em música ainda se justifica (e sói ser
do poema, não ao sentimento. É como descrever uma assim) a criação abstrata de significado, valendo por uma
paisagem e, no meio, plantar uma semente de alma, uma simples ordem lógica de sons. Mas com a palavra, que
gota de sangue ou um suspiro~gemido de integração e participa da música onde há ritmo, mas que vai além dela
encontro. Às vêzes é um traçar de horizontes impossíveis, e não subsiste como simples onomatopéia, mas se abebera
ou a materialização do abstrato como naquele meu poema no Ser e o devolve recriado, a palavra assim ferida, de-
do Sisalt1ântico: pende ,do momento físico ou metafísico que a impulsiona,
e tem compromisso com êle. Por outro lado urge uma
Anjo irmão dos peixes
higiene formal na poesia. A desdramatização me parece o
como êks de prata primeiro passo a dar no sentido de renovar os tecidos
de uma prata de altas orgânicos da mente criadora. Tudo isso pressinto, não
ourivesarias ... sei se realizo ou erro, mas tento acertar. Reconheço, além
disso, que o poeta, sempre que genial, ultrapassa todos os
limites da lógica, c é muito maior do que as escolas e os
estilos. Representa em si e por si a escola mesma, a sua
maneira de expressão. Mas não me refiro aqui aos poetas
9""11",,57 __ A só aglutinação de palavras, a só presença
geniais. Dirijo-me aos poetas de talento, aos poetas em
delas no poema, não me satisfaz. Por mais que se pregue
verdade, os que estudam e procuram caminhos adequados
a desdramatização (e isto me parece útil) não me con-
à realização dentro da sua época, sem o pressentimento,
vence o extremo de transformar o poema em relatório das

31
30

! ~
r

da genialidade. Com êstes procuro o caminho mais certo


l:1
12~11~57- Eis uma coisa que me preocupa: o tempo.
r~· de dizer alguma coisa a determinado número de pessoas,
explorando e evidenciando o instrumento da linguagem. A minha totalidade anseia por comunicação, e nunca sou
por inteiro, por que todos os dias, em todos os minutos,
parece que me acrescento, e nisto a vida é eficaz, no
~
enriquecimento. Se eu parasse aqui teria as minhas sensa-
Falei antes no título do poema como centralizador do ções até hoje para explorar. Desconfip que seria também
!', motivo, e me vem à mente c~rtos poemas que enfeixam os um sem fim de rememorações, de estilhaços em composição.
t


, elementos todos, objetivos e subjetivos, do ser que o título
rotula. O "Oda aI Ga11o" , "Oda a La Cebolla" de Pablo
Mas vivendo hoje, amanhã, depois, a sobrecarga me es-
maga, e não dou conta, não darei conta jamais do meu mito.
Neruda, as suas "odas" em geral, vivem sob esta égide.
I"
Realmente não há mais nada a dizer senão um desdobra- ~
I ,
mento físico e sugestivo do objeto-poema indicado pelo
I Minha vida é tão cheia de coisas que me espraio nesta
título. Este, no caso, auxilia o entendimento do poema
I coísifícado, a transformação da idéia que temos, por des- angústia de me desacreditar todos os dias. Sou de um
dobramento, de um determinado Ser. Impossível dissociar orgulho doentio - tanto que escondo a paisagem do meu
o "qallo" de Neruda, de tôdas as fíbrosídades, cíntilações, auto~julgamento. Ê o meu orgulho que não me permite
I expor o panorama da elaboração do que resulta em meu
espécies, atitudes, que o verbo nerudíano lhe atribuiu. Ê
como ver de outra forma, assinar intelectivamente a in- gemido literário. Se pugno por uma arte não Iarnenra,
venção do poeta. Mas o que acontece, e é esmaqadora- tória, para mim, não quero dizer que me prive do alto
mente real, é que o "qallo" existe, diferente dos outros lamento. A vida é insuficiente. É tanta que chega a ser

galos todos e participando da gênese da sua espécie, a um insuficiente, e não sei como vivê-Ia sem pensar no "sem-
tempo. fim". Se não fôsse esta remota esperança de uma conn,
É certo que não só dêste caminho comunga a verda- nuação, ou seja, de uma morte continuada. '. eu me quero
deira poesia. Vive de ser verdadeira, antes de mais nada. perene, nada menos. Não aceito só o dia de hoje se não
Mais por êste caminho se pode encontrar no poema o vinculá~lo a Uma corrente de Eternidade. E o jeito é ir
embrião de idéia criadora. Negar a intenção me parece tentando o meu retrato diário ate' encontrar aquela parn-
cula necessária em que fui peixe e sôpro na bôca de
errado; encontrá-Ia, dando-lhe embora a mais múltipla Deus ...
atribuição dentro da obra, é o mais sadio. E falo aqui
em sanidade como atitude de vigilância e não concessão
ao descritivo. Sangue nõvo e austero, virilidade, areja-
mento, tudo enfim que desensombreça o panorama do
poema, dramático e auroral como a época em que está
Estamos encerrando, em arte, a fase de "remissão
sendo formulado.
dos pecados". Logo enfrentaremos a fase da "ressurreição
da carne" na qual o homem terá a sua chance máxima de

32
33

.[
A propósito recordo umo conversa com M. K. R. logo
divindade. Estamos num nôvo plano da paixão do qual o da minha chegada ao Rio. Foi êle uma das primeiras
milagre será a chave e o prêmio. pessoas que procurei a mando de Paulo Hecker Filho.
M . K. R. me dizia dos dois livros admiráveis. para êle, da
poética nacional: O Invenção de Orfeu de Jorge de Lima e
O Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meíreles, com
a vantagem de Cecília no que concerne ao nível dos
8,..5,..58 ,-
"Durante um segundo. um segundo que não poemas reunidos. A Invenção seria heterogênea. com
fi
durou mais do que a luz de um relâmpago. Gonçalo fitou pontos altos e baixos. momentos geniais e deslizes. Já
o irmão e desconfiou ,- mas como tôdas as almas tímidas Cecília teria mantido uma unidade de canto sem ruptura
e ingênuas. desconfiou apenas. para confiar depois. duplica" fazendo de seu Romanceiro nosso maior poema. Endosso
damente". completamente a opinião de M. K. R.
Esta simples e banal frase de Lúcio Cardoso. obser •.
vação primária e corriqueira de vida. me suscita considera •.
~
I,' I ções. Seus personagens me escapam ao que eu chamaria
I uma possível vida. É uma experiência condensada. um Ah, me assalta uma restrição: tudo aqui escrito conta
i paro'xismo. um estado sobre •.humano de paixão. um acúmulo como verdade para mim. Cada um que se encarregue das
trágico que nos distancia. Mas entre os muros densos de suas imposições.
um mundo de gigantes. em pecado ou delírio. é possível a
sutileza da frase acima. coisa do todo •.o •.dia na mais sim •.
ples alma. Éste surpreender dá a medida do romancista.

,
I
do observador
contíguas
tranqüilo.
elaboraram
a prova de que experiências
a estirpe de seus personagens e a 9,.5,.58 .- Quase 200 mortos num desastre com os trens
sua validade em qualquer tempo e espaço. da Central. Me apavora a posição indefesa da humaní-
r-r- dade diante de catástrofes assim. E a literatura não nos
~
~ salva desta demolição estúpida de massas! A literatura
não nos salva da morte. meu Deus! Num momento dêsses,
Com A. F. ouço considerações em tôrno de Jorge de e diante dos implicados na tragédia. a arte me parece um
Lima: "se ficar. é pelos poemas regionais". Isto me choca: perfume enjoado. quase vergonhoso pela sua inutilidade.
que um crítico se imunize da grandiosidade da Invenção de Vamos como estúpidos no estrito caminho do matadouro
Orfeu. Não discuto a verdade de ambas as partes da (mesmo o morticinio diário do gado me revolta) e ainda
obra. considerando primeiramente que são fruto do mesmo fundamos um tempo de cantar. enquanto ao' nosso lado o
fabuloso poeta. mas as dimensões totais é que me assaltam: côro de gemidos e cérebros rompidos. as alegrias e espe-
r
a carga poética. a fábula. a música. o clángo • o canto. ranças interditas. ergue um negro dique de ironia e des-
Em tudo isto. e na sua inesgotável Ilrandeza a Invenção - prêzo ante a nossa lassidão. No fundo. quem ri de nós é
se distancia de qualquer obra poética produzida no Brasil.
35
31 "
históricas e sublinhando tudo, como táboa de salvação, a
o nosso reflexo mesmo sõbre as humanidades sacrifica das
eterna reínvíndícação dos direitos do homem.
de que somos parte, continuação e projeto.

Fico apavorado quando um mau crítico ou um mau.


13...5...58 _ Esta manhã, pela primeira vez, que eu visse, poeta elogiam minha poesia. Afinal, pretendo-a boa. O
os urubús, tomaram conta da praia. A ausência do homem elogio de um néscio (em crítica principalmente) reduz o-
concedia~lhes realeza e solidão grandiosa. O cenário era lido à aleijada concepção estética do avaliador. Hoje,
o mais azul que se pudesse imaginar ( dêsses que me felizmente, constato as restrições de H. C . T . à minha
trazem sempre à lembrança as pinturas de Pancetti) e os poesia. O que observa sôbre concretismo, sua fixação num
alados senhores tranqüilos, asas abertas, quebravam em período ultrapassado da nossa poesia e o fato de negar

!! {
: i
negro a linha constante: areia, mar, céu. Eram todos Drummond como poeta ( "mal o aceito como prosador"
- disse êle em palestra comigo em "O Globo") deixam-
I' , víris, como um bando de piratas; e aguardavam, quem sabe,
uns despojos de peixes mortos e pressentidos por seus me completamente tranqüilo em tê-lo . como adversário.
\ corações vigilantes. Uma secreta alegria de renovação Qualquer livro de poemas em suas mãos está fadado à
mais truncada interpretação.
iluminava o mar.

~ ~

Imagino a história de um bule, aquêle nosso desatei-


11 Por outro lado, a justeza de J. R. T . L. ! Como sabe
tado e grosseiro que tanto maldizemos na hora do chá,
abordar o tema poético, com que consciência esclarece as,
I pelos derramamentos e ineficácia. Mas gostamos dêle e
I' lacunas de um livro! E a coragem. Pois foi o único a
Julya o defende como se Iõsse personagem da nossa vida:
!- 111 1 como a Sereia, Sodade, o meu cavalinho de gêsso e a
reduzir à sua exata dimensão o livro Reizes de J. P . M . F .
Os outros teceram elogios rasgados. Houve quem dissesse
lagartixa que conoscO vive num misto de desinterêsse e
que Raízes inaugura a poesia épica no Brasil e que signi-
superioridade. ficava para nós o mesmo que Mensagem de Fernando
~ Pessoa para os portuguêses. J.R.T.L. desfez o equívoco .
. Fez a higiene do livro. Com a menos pretenciosa lingua-
Hoje, dia da libertação dos escravos, os partidos poli-
gem descreveu as arestas estruturais, sua posição, intenção,
ticos aproveitam para o seu exerdcioúnho de demagogia.
do poeta e resultado. Não se confunde, não se ensombra,
Um ralo comício ao lado da estátua de "José do Patrocínio,
não concede. É nítido - menos um crítico íntronizado,
reuniu meia dúzia de brancos desenxabidos, ouvindo as
mais um guia vigilante do leitor à verdade da obra.
mais ridículas apologias que se possam fazer ao negro.
Orações de Umbanda, evocações místicas, rememoraçõé'5

37
36

\
.1
I, 14""5,,,,58 __ Dois equívocos poéticos que batem pé: D. V. Acho que a minha sêde de perenidade, de ser univer-
e R. C. D. O primeiro faz truque metafórico, piada sal, de int.egração em Deus e em sua ordem, é que me
com pretensão a síntese. O segundo serve-se de uma lançam aos fatos bíblicos. Eu jamais poderia ser um
aparente exuberância para externar o mais desordenado regionalista, embora reconheça que é possível atingir o
clima interior. Também com a idéia de que só o ilógico universal através do regional. É uma questão de ponto
pode valer, a expressão, nega a canção (e nela uma Cecília de partida, de familiaridade espiritual, de formação. Pa-
Meireles), o sonêto, e tõda a forma em poesia, lança-se ao rece-me que para certas mensagens é necessária uma certa
antipoético, ao adjetivo, ao sem corpo. Já disse uma vez voz. N um idioma coloquial hodierno eu não saberia dizer
que tõda a sua obra me lembra um imenso cordão de umas tantas coisas que dependem de uma linguagem pcé-
salsichas para ser cortado à vontade do consumidor. O tica, transfigurada, asintática - dependo de um sôpro
todo, porém, resulta no mesmo caos, indeterminismo, va- divinatório para comunicar o desgarramento, a Babel, o
I, gueza e hermetismo insolúveis de cada poema individual- universo de amor que incendeia as almas sem pedir aos
mente. corpos um documento de categoria sexual ou genérica.
I, I
Sinto~me essencialmente um místico e procuro o homem
~
mais visceralmente próximo ou desligado de Deus. O
Hoje vou à ópera. Temporada nacional. Ah, a homem com missão divina e o que se iulga o próprio deus:
minha maleabilidade! Mas não escondo o que os outros na peça Sarça Ardente respectivamente Abraão e o Faraó.
chamam de fraqueza em mim, o meu gôsto pelo drama
lírico. Há os que não tocam no assunto e de repente dão ~
de cara comigo nos corredores do Municipal numa récita
de "La Traviatta". Lendo o Empalhador de Passarinhos de Mário de
Andrade admira~me a conceituação que atribui aos valores
li] 1
estéticos, seu estilo enxuto, essencial. Disso aproveitam os
poetas criticados, por menos que possa justificar-sa a crítica
como julgadora de uma vocação. Quanto maior a nossa
15""5,,,,58 --Penso em escrever uma nova peça de teatro. exigência, maior o discernimento sôbre quem pode dar a
Ainda com tema bíblico. Quando me vem uma idéia como palavra sôbre a nossa pretensão. Mas leio Mário de
esta fico sofrendo por realízá-la. Antes de qualquer vai- Andrade com uma sensação esquisita de ter sido traído
dade é uma obsoluta necessidade de expressão o que me pela sua morte.
incita. Estou na casa de Pérola. Aqui, com as crianças,
impossível incorporar~me à idéia da peça. Já me andam ~
pela cabeça Caim, Abel. Judith, Ester Eva, Noé e agora
Poemas traduzidos
me dizem pouco, quase nada (leio
David. Na eletrola toca o salmo sinfônico "O Rei Davíd".
Musa de Quatro Idiomas, edição da Ática). Os grandes
de Arthur Honegger. poetas geralmente são traduzidos por poetas menores e,
~ às vêzes, por nem poetas. Resultado: perde-se a música,

38 39
o ritmo emocional, a imagética, a liga metafórica. Por
Cartas de P. H. F.
isto estou condenado a só apreciar poesia em Português,
Espanhol e, com alguma dificuldade, em Francês e Italiano.
( 11-4-56) "Muitos têm inteligência, ininterrupta Como
Por outro lado, tenho a impressão de que a minha fidelí-
em regra, mas têm: o que lhes falta é boa vontade, aber-
dade ao português (não há outro idioma que me comunique
tura para a vida e os livros, manietados por um defensí-
tanta alegria, mesmo em textos menos expressivos) me
vismo que só aceita o favorável a si mesmos e desdenha o
rendeu uma Iôrça de paixão e comunicação quase única
E no entanto o mundo é tão maior que a gente, mesmo
entre os poetas da minha geração. Isto que alguns apon-
que se fôsse o que se sonha ser ... "
tam como dinamização pela revalorização, de discursivismo
Esta última frase, como eu a colocaria de epígrafe
nôvo, nada mais é que reconhecimento por amor, amor num diário que publicasse!
que me faz encontrar no português a música ideal para a
minha ária.
~
Sim, a poesia quanto mais intraduzível melhor.

Ainda P. H. F. em cartas: (carta de 8-5-56) _


"Costumo dizer que há duas classes de homens: os que
querem defender a si mesmos, sempre, a despeito da ver-
dade, e os que querem defender a verdade, inclusive a
23~5~58-- Um dia inteiro de chuva. Não fui à cidade.
despeito de si mesmos. Os primeiros são os canalhas,
Passei poemas a limpo. São 18 horas e não sei o que a
por mais senhores que se apresentem. Os segundos são
noite me reserva. Gostaria de uma visita, ou música. Se
os tais homens de boa vontade, os portadores de esperança
nada acontecer darei telefonemas para gente quase esque- no destino da vida humana".
cida, um reencontro agradável e sem compromisso, pelo fio.

~
~
Mostrei a minha sereia a C. e P., Com excitação.
J. lê Rimbaud. constantemente Rimbaud. Tem muita Eles não fingiram a emoção que não sentiram. Apenas eu
ligação emocional com o poeta. J. ê tão poética... Se consigo amá-Ia a ponto de vivê-Ia. Por isso os poemas.
não Iôssern certas crises evidentes de nervos que a tornam Por isso a ilha que ela me parece, a mais virgem de
áspera e feia, eu diria que está sempre iluminada. Mas o quantas vitórias me foram concedidas.
que quero, que ela deixe de ser humana? Sua poesia está
fixada em coisas que saem de suas mãos, um milagre de ~
manufatura; aquela sereia, por exemplo, em minha parede,
tão frágil e tão perene ... Inventamos pessoas maravilhosas
que nos amem, para
nos acreditarmos maravilhosos.
semelhança. Porque amor pressupõe
~
~
40
41
Enfim, o problema do amor, sempre: chega um mo- O sonho mais remoto de que me lembro, sem data
mento em que o dar-se não é suficiente. Tem-se premêncía porque sonhado muitas vêzes. assistia eu o meu próprio
de ser objeto, de receber, e, quando tôdas as vias de nascimento, numa balança, sôbre o mar. Em cada prato
acesso estão interceptadas, é esta dor inigualável de assistir as minhas partes, braços pernas, cabeça, tronco _ e eu
ao florescimento animal dos sêres, com o pudor humilhante me ia compondo aos poucos, enquanto a balança se movia
dos vôos rasteiros para os quais qualquer arbusto é um lentamente Como um barco, mar a dentro. Êste sonho
doloroso impacto. cessou com a minha adolescência.
(No meio de uma festa houve quem formasse, com
uma rosa cansada de andar de mão em mão, e um cordão ~
dourado muito cheio de nós, um estranho colar. Mas não
Com F. B. o reconhecimento de sua fidelidade, jus-
encontrou o príncipe que sonhou para ofertar a prenda,
tiça, moralidade. Poucos teriam coragem de ser assim tão
ou, se encontrou, já com essencial encargo. E nem se
limpos de coração. Sobretudo difícil esta atitude _ o
deteve para ouvir a história daquela estranha jornada. No
pudor, o respeito pela pessoa humana. Isto contrai, para
fim da noite o colar ornava o pescoço de um mendigo
mim, vínculos de solidariedade. E é tão. difícil deixar de
em cujo grosseiro peito a rosa macerada e irreconhecível
trair, sendo o mundo, como é, uma arena de medição de
exalava ainda um doentio perfume de profanação). fôrças.

Era de se ver, num suplemento literário, a quantidade


1-6-58 - Metade do ano, e penso que se viver 60 anos
de veneno destilado, e a qualidade. Um poeta e um terei apenas ainda 12 624 dias de vida.
~ comentarista, como duas harpias, dois abutres, desespera-
damente ácidos contra um terceiro colaborador. Ê êste o
~
ambiente literário em jornal: um devorar-se mútuo pelo
pedaço de carniça que é o aparecimento dominical. Impossível negar razão a V. L. A leitura de versos
soltos de meu livro "Sirenusas", parte de um livro maior,
~ dão bem a intensidade da presença materna, uterina, umbe-
li cal nêles.

Ou ser sincero e expor-se ao escrever um diário, ou "Sim, eu a vira


ser amável e hipócrita e não escrevê-Ia. Hipocrisia assi- desde mares de mim
pré-desfrutados"
nada, nunca!
ou
~ "Abraçados ao seu corpo de viscos de onde vim
cego, mudo, transido, voltado para mim"

42 43
o maisincrível é como foi subconsciente esta ídentí- 6~6,.58- A última frase do meu caderno de notas: "Não
fícação. Parti do puro objeto. uma sereia de sermalíte, e sei o que é morrer. ninguém sabe" (Lúcio Cardoso -
não me tinha dado conta de que atingia o ponto mais Inécio - pg. 68). Poucos minutos depois recebemos a
vulnerável e trágico da minha existência. notícia da morte de Víto Pentagna.

~
~
 noite. velório. Lúcio levou-me à deserta. noturna.
Meu pai coloca bem um problema. o da minha voca- rua de Santa Luzia e disse: "Inácío". No mesmo mo-
ção, em sua carta de 27~5~58: mento um assobio cortou a escuridão. vindo de não sei
"Preferiria que Iôsses um operário feliz do que um onde. enquanto Lúcio dizia: "Quando Rogério anda. à
poeta miserável". noite. perto da Santa Casa de Misericórdia. ouve o assobio
Étudo uma questão de ansiar pela felicidade. nem de Inácio atrás de si".
outra coisa busco. Mas a felicidade de acôrdo com as -~
minhas aptidões. Sobretudo me sujeito ao meu difícil
destino. o que sonhei. seja como Iõr. Isto meu pai nunca A capela da Santa Casa não poderia ser de pior
entenderá. aspecto, Uma masmorra? Um reservado de bar? Um
necrotério? De tudo um pouco. Menos o ambiente que
~
sugerisse recolhimento, respeito, compreensão da morte.
Deixar de ser poeta. para mim. é o que resulta absur- A eça suja, despreqada, com as franjas rasgadas. dava a
<lamente impossível. E um poeta como sou com as minhas impressão de deterioração, sôbre a qual a morte se empe-
limitações. lágrimas e aclaramentos. dernisse numa inversão total de estados. Sim, tudo apo-
drecia em tôrno. A máquina do velório funcionava: o
zelador da capela sugerindo gorgetas. o encarregado da
~
noite reclamando a ausência de data no cheque de paqa-
Conheço um indivíduo que me diz que o primeiro mento das despesas, o que impossibilitaria a remoção do
desejo. o mais urgente. que nasce nêle em relação à corpo para o cemitério e, sobretudo. chocante, a presença
pessoa amada. é o de matá-Ia, Matá-Ia por pena da felí- no compartimento ao lado, de um caixote (dentro dêle
cidade que não terá.:9:ste indivíduo ama os animais e um morto embalsamado) esperando há cinco meses trans-
sente prazer em .eliminá~los. Porque são desamparados. porte para a Alemanha. Sôbre a tampa da caixa, que
e porque não está nêle a ponte para a salvação. poderia conter ferros ou engrenagens, uma inscrição:
"Franz Síeqe" - Frankfurt. E um pacotínho, talvez de
Não concordo com isso. Mesmo que eu Iõsse um
documentos ou cartas, última e desnecessária identificação
simples bovino creio que preferiria sempre ver a aurora do
de um morto abandonado ...
dia seguinte e receber da mão do amo a minha ração
de feno.
~

14 45
4
~ ;
Meu Deus, como creio na imortalidade da alma! o resultado, os momentos de repouso, de estacionamento"
Como creio na glória do [uízo Final! E como me esmaga de fixação, de desfrutar abertamente. Mesmo a morte
a ínvulnerabílídade do morto, sua dimensão eterna, a única serve, mais eficazmente, às finalidades do eterno e do
coisa que realmente satisfaz meu espírito oprimido. A efêmero.
vida, um exercício apenas de compreensão, de amor e de
espera. ~

Pela paciência oriental de tirar um curso de três anos


de ornamentação floral, um japonês nos dá a lição da
poesia, da tradição milenar, da cortesia, da apreensão silen-
7 ,.6....
58 ~ útil ficar em casa às vêzes, só, namorando a ciosa de tôdas as nossas inquietações. "Captam o que
~ mentalízamos" ~ diz [ulya. Nada mais certo, e muito
felicidade dos outros. Então rondo a minha inadaptação
para coisas essenciais, como uma fera a armadilha. Sei mais: utilizam o espaço vital com elegância, ritmo, sobríe-
que estou sujeito à bofetada cotidiana e me ofereço com dade e matemática.
requinte, reforçando o ímpeto do que não posso evitar.

Se pudesse escolher uma outra vida, quantas modífí- 13....


6,.58 ~ Necessitaria um amor, mas um tão grande
caçõesl E quantas razões para desassossegos da mesma amor que me compensasse por todo o desprêzo de mim
natureza sob outros aspectos. A vida, eis a questão: o mesmo.
estupendo, indispensável, luxuoso calvário em direção a
Deus. ~

~ Gostaria de passar o mês de junho em qualquer país


onde não se festejasse São João. O estrépito das bombas
Faço o exercício da solidão. Como custa. É como me põe apavorado como a certos cães. Fecho as janelas
estar sendo apertado por gigantescas, inumanas mãos, para odiar tôdas as crianças que não temem, eu que, desde
Hípersensíbilízo-me. pequeno temia, lembro, o apito dos vapores dando sinal
de partida.
~
~
Mas tudo tão inútil, o amor, o ódio, esta disputa cega,
N este momento posso estar morrendo (e estou) ou podem Saio do ato amoroso transfigurado. Transpareço mes-
estar morrendo os sêres amados e os desamados. Isto, a mo no rosto o repouso que me vai por dentro. Nada de
completa dissolução das nossas esperanças. O que resta ê vulgar encerra isto para mim, pelo contrário, extraio do

46 47

..
Mas o que fica mesmo são lembranças de Espanha,
momento a beleza e a essência necessárias à maior com-
Roma (o Davíd, de Miguel Angelo) e mesmo a Holanda.
preensão da minha finalidade no mundo.
A soma disso tudo era como entrar num quadro repleto do
Mas compreender o que? Uma simples presença? calor humano do autor -- e no caso é o mesmo que ter
Uma luta inglória? Ontem Lúcio me definiu: "Galo- a síntese do calor humano de todos os séculos passados e
menina" e "Poço de suspeíção". Humanamente me en- vindouros, ou seja o calor de Deus.
cerro nisto.
~

A noite a perfeição. com sobressaltos. Dormi cristã .•


mente.
15..6..58 -- Domingo. Almôço na casa de L. C. Um
ambiente arejado: a música, os quadros, o senso plástico ~
das coisas e dos sêres vivos. Tudo isto me conforta. Um
passeio. Um chope no bar Lagoa. Tiramos retratos: eu (Antes de falar de amor quero deixar bem claro que
iI
com uma coroa de falsos louros que Lúcio colocou na mudarei sempre de objeto. Que não permaneço nêles senão
minha cabeça. Chamava-me Camões, e ria. Éramos como o tempo necessário para me desencantar. Eu nunca descre ..
irmãos em jôgo. Havia no ar matinal uma pureza. uma veria um dos meus casos sentimentais apenas, o que Iôr
integridade, uma luz crística. Depois do almôço vimos verdadeiramente grande está para chegar, desconfio que
projeções de .•slídes". Retratos em côres tirados quando estará sempre para chegar, porque o tamanho do meu
da última viagem de N. eM. pela Europa. Meu Deus, I coração, e seu desejo, ultrapassam qualquer fonte física de
aquêles vitrais das igrejas de Portugal! E Florença! Mes- ~ carícia e silêncio).
mo Londres, em que pese a antipatia que sinto pelos ínqlê-
~
ses. Fiquei triste como quem vê um sítio de beleza onde
nunca chegará. Quantas as terras prometidas onde jamais J. e eu. Confiança mútua, por enquanto. Como isto
pisarei. . . Certas arcadas, colunatas, detalhes de adros é importante para o amor. E como amo!
(do Vaticano principalmente) Iízeram-me pensar na Ielí-
cidade total que deve ser uma autêntica vocação religiosa. ~
Minha alma, no momento, ou minha percepção, vibrou em
uníssono com aquela maravilha. E os tons dos diversos Mas até quando? Lembro que dois dias antes imagi ..
lugares, a própria vegetação era outra, a natureza das nara o mesmo mundo de felicidade, paz, compreensão e
Iôlhas, a côr do céu. E quem viu e estêve, comentava ternura, com outra criatura. E de quem é a culpa, senão
entusiasmado. da minha incapacidade de sair tanto de mim a ponto de
As fotos da Broadway já compõem uma Iêeríe que viver um amor por reflexo? Não consigo deixar de ser eu
mesmo, se reflito a pessoa amada obriqo-a a uma filtragem,
atordoa, como certos poemas de Ezra Pound.
49
48

e
encaminho o raio da projeção para muito perto da minha Entendo que êle deteste a minha mocidade. Mas êle,
dolorosa paixão. que também foi jovem, e tão belo, e tão amado ...
Se falo agora, referindo-me ao amor desta semana, em
perfeição, é porque me sinto ferido. Uma perfeição transí- ~
tóría como a minha vida. Por grande que Iôsse o meu
amor humano, seria do tamanho desta vida. Quantos Desculpo. Quem se conformará de haver perdido a
anos? Ouantos dias? Uma felicidade que pode ser con- mocidade? Quem? Tudo o resto gira em tôrno desta
tada em minutos ... glória.

~ Deus, a mocidade e as violetas três símbolos de


Lúcio Cardoso. Três realidades que o isolam, atraiçoam
16..6..58 ....- Ainda não tão derrotado. Até há pouco,
e divínífícam.
pela manhã, a perfeição continuava. Que vontade de ser
puro! Houve um tempo na minha adolescência em que ~
cheguei a pensar que ter um filho não dependia tanto do
sexo e do organismo e da época, como do próprio amor. "Au détenu Ia prison offre le même sentiment de
Esta Iôrça, esta beleza, êste desprendimento, produziriam sécuritê qu'un palais royal à I'ínvité d'un roi" (J. Genet
o milagre! ....- [outnel du Voleur). Entendo a relação disso com a
Depois tudo passou e eu, que passei estéril esta fase tranqüilidade que posso ter em certos ambientes irrequ-
de fé, ainda mais me esterilizei pela descrença. lares. Eu, o detento irremissível ...
Ontem o mesmo clima. J. é o responsável. Eu sou
o responsável. Não importa morrer assim tendo cumprido
tão bem e com tanta eficiência, êste momento da vida.

~ 18..6..58 ....-Recopiando Sarça Ardente: Tive unicamente


uma intenção estética ao construir a peça. Fui guiado pelo
L. por pura maldade tentou Fazer-me crer que estava ritmo poético, embora não em verso. E denominei as
sendo traído. Menos que isto, que via um fio de luz e coisas do espírito através de seus repositórios. Fui fixar
imaginava o sol só meu. Tenho certeza que era assim, estações da vida e categorias de poder: a beleza de Sara,
mas eu precisava me enganar. Lembro seus olhos Iuzilantes a adolescência de Raís, a divindade em conflito do Faraó,
como quem quer destruir. Ao mesmo tempo não consigo a missão e a provação de Abraão, o amor desesperado de
duvidar da sua amizade. Agar. Mas tudo sem a humanidade imediata que é a
flor dos simples, como se a estirpe dos predestinados só
~ alcançasse voz para as atitudes extremas. Dei lugar ao

50 51
poema, à "longa frase meandrante" (como disse Paulo 19""6,,,,58 -- Sonhos da noite passada: Rícardo Range! me
Heck.er Filho) numa composição quase operístíca, ou de presenteava com dois pares de sapatos (marrom e preto)
oratôrío, com solos, duetos e corais, etc. em vésperas de minha viagem para Pôrto Alegre. E dois
Pode Deus servir-se da provação de um, para a pre- pares de meias dos quais um era dourado. Intrigado per-
guntei a Francisco Bíttencourt o que eu faria com um par
servação de uma coletividade? Esta certamente a pergunta
de meias douradas. :.Blerespondeu que 'eu certamente seria
(não expressa) de Abraão diante da iminência de ver
convidado para recepções à noite em Põrto Alegre e que
Sara profanada pelos idólatras. Era tão grande o seu
as meias douradas são para estas ocasiões.
amor que colocou a preservação da vida antes que a defesa
Também sonhei que comprava discos. E que matavam
da honra da mulher amada. Uma vida que lhe garantiria
formigas (que tinham o aspecto de larvas verdes) sob meu
a continuação da sua felicidade, uma vez saídos do Egito.
protesto.
Perguntamos: Foi por amor a Sara, ou por amor à vida? ~
Confiaria êle tão cegamente na invulnerabilidade da mulher? ~
O Deus dos Hebreus, um deus que não respeitaria a
Já se tornou lugar-comum chamar as pessoas belas de
individualidade, mas que tendo em vista apenas seus desíq-
deuses. Mas vi um há pouco, não há outra explicação:
nios assumiria uma atitude de terrível. um ser rude, os cabelos louros encaracolados e brilhantes.
Há em Sara o momento do "Faça-se em mim a vossa duas suaves costeletas ladeando o rosto. Do olhar não
vontade", como com Maria no Nôvo Testamento. Certa- lembro porque me perturbou quando me olhou. A manga
mente uma coincidência construí da pelo simbolismo. da camisa, comprimia, arregaçada, um braço perfeito. A
calça, de uma fazenda grosseira, sem bainha, apertava na
Não entende a mulher que o seu senhor a sujeite à
bôca o couro arranhado das botas. E o andar, a luminosi-
sanha dos inimigos, mas sendo pela maior glória de seu
dade, a auréola. Santo! Santo! Santo! Apenas as mãos
Deus e do povo, se oferece para o sacrifício.
me repeliram. De uma terminação imprecisa, como se os
Êste povo, um animal cego que não avalia uma destí- dedos tivessem sido decepados, eram curtos demais. Mas
nação remota, quer viver o momento e não aceita o holo- como foi breve o lamento pelas mãos. Apenas andou.
causto. Daí também a cegueira voluntária de seu Deus. tôda a beleza nadou-lhe de músculo a músculo, de fio a
O Faraó, personagem íníludível, consciente de sua fio, de ângulo a ângulo, como um enorme e sub-dêrmíco
peixe musical.
Fõrça, duvidando de sua divindade, ou crendo nela apenas
enquanto capaz de reforçar o exercício de um absoluto ~
poder temporal. Há em suas palavras a medida de sua
consciência de solidão, de ausência de amor e de calor Não consigo rasgar alguns dos poemas rejeitados por
humano entre os sêres. E poderia, como deus, aceitar uma M. F. quando da seleção de meu próximo livro. Sei que
solução conciliatória? Um nivelamento? ( não está nêles o meu melhor momento, que padecem de:
uma apaixonada circunstância. Mas é como rasgar um

52 53
documento importante, sem o qual eu jamais chegaria ao tantos papéis já vistos. E era totalmente o menino infeliz,
domínio preciso das minhas virtualidades poéticas. não o travesti, era o peqa-Ioqo mesmo, inesquecível como
a Ge1somina de "La Strada" ou a Julie Harris de "Cruel
~ Desengano".

Sinto-me condenado a uma missão de poeta. Nesta


missão incluiria todo o meu diário, o que resulta da impres-
são diária do mundo, naturalmente sob forma de poema.
E alguns dêstes poemas que M. F. rejeitou fariam impor- 26...6...58 ,.....,Sonho de março: andava eu por um campo,
tante papel na minha definição. Um poeta total não creio um gramado, mais precisamente. Vi um gatinho com cara
que seja aquêle de um mirrado livro de poemas geniais. de amor-perfeito. Fiz um gesto de tomá-lo em meus
Prefiro fixar-me onde mais possível determinar as minhas braços. Acariciei apenas. De uma moita saltou uma gata,
ressonâncias humanas nos meus contemporâneos e vin- animal maior, idêntico ao filhote que me detivera. Disse:
douros, êstes detalhes de cotidiano com que respiro e que
pelo encadeamento proporcionarão nitidez ao esbôço que "Larga! Eu posso devorar meus filhos
trago para a participação na mesa dos lúcidos. quando bem quiser, mas não admito que um
estranho ponha as mãos nêles".

24 ...6...58 ,.....,
O verdadeiro mal, para mim, é o remorso do Outro sonho da mesma época. Entrei numa casa para
mal voluntário ou involuntário que posso ter causado a comprar cabeleiras postiças. Uma mulher retirou de uma
outrem. Saber que alguém sofre em conseqüência de uma gaveta uma cabeleira loura e longa. Deixava-me com um
ação minha é infinitamente pior do que se fõsse eu o rosto não parecido com o meu, como uma máscara, mas
objeto de dano. bela. A cabeleira estava larga em mim, como se feita para
Enfim, o sujeito é o grande martir. uma cabeça muito maior. Então a vendedora deu-me
outra, castanha escura, como o meu próprio cabelo. Esta
~ me dava uma sensação de calvície. Era como se ela me
diminuisse os cabelos. Neste momento de tentativa de
Pega~Fogo: não creio que alguém disponha de espaço acomodar a nova peruca à minha cabeça, a vendedora
emocional para a análise fria, e conseqüentemente pretenda entrou para o interior da habitação ou loja. Eu então
objeções, interpretação de Cacilda Becker. Para mim comecei a devorar a cabeleira que tinha um gôsto aqradá-
trata-se da mais rara criação artística de que tenho lem... vel, como um pastel de frutas. Comida a metade fui
brança. Lembro-me, em certos momentos, como numa tomado de pânico, devia pagar a cabeleira e ainda ficar
vertigem esquecia os traços que dela captei através de :J sem ela. Então pensei em substituir na gaveta por outra

54 55
no mesmo tom, para enganar a vendedora. Nas gavetas, Posso garantir que a fisionomia da morta (a mãe de
porém, já não havia cabeleiras, mas parafusos, engrenagens, Lúcio) me tranqüilizou, tamanho o ar de esoatrecímento,
porcas, etc. de cisma sem angústia. As poucos vêzes em que vira,
antes, aquêle corpo vivo e sem reação, aquela agonia muda
prolonqando-se, a consciência da inutilidade estampada
na fisionomia esfumada. Agora me congratulo e respiro
aliviado por ela.
28",6",58 --. Acabo de terminar meu terceiro livro de
poemas, mais definitivamente meu, no sentido de que há
uma visão do meu manejo atual do verso, o mais válido,
e de tôdas as teclas que alcanço na expressão da minha
mensagem. O título do livro é O EDIF1CIO E O 2",7",58 -- Di Sordí, Belíní, Zito, Nílton Santos, Orlando,
VERBO: a palavra e a estrutura, a mensagem e o arca- Gílmar, Garrincha, Dídí, Pelé, Vavá, Zagalo: os campeões
bouço. Partes do livro: Sísaltlãntíco, Diálogo, Sírenusas, do mundo, heróis nacionais. Hoje a chegada. Jamais
Arlas, Poemas e Bíblia Menor. imaginei que o futebol conseguisse arrastar tanta gente
para a rua. Delírio mesmo. Se um livro exercesse o
mesmo fascínio de um chute! Digo-o sem ironia, sem des-
peito ou ressentimento, pois mesmo eu, que nunca pisei
num campo de futebol. estou emocionado com a limpa,
30",6",58 -- O que poderei render se não Iõr logo sur- írrecusável, saudável vitória do nosso escrete.
preendido pela morte? E se Iôr surpreendido pela morte,
o que terei construí do ? ~
~.
Estou me envenenando aos poucos. Ponho entre mim
Falo de poesia como de uma construção, coisa que se e os outros uma barreira de desconfiança e mêdo. No
ergue pedra sôbre pedra e que vale por um certo volume fundo me subestimo e me defendo. O dia em que não
apreensível, um todo em que diversos materiais mais ou encontrar mais na poesia uma justificativa para a minha
menos rudes se condicionam a um exercício lúcido de sobrevivência, a vida terá perdido todo o sentido para mim.
arestas, superfícies e espaços.
Ontem, dia 29 de junho, três momentos: dia do ani- ~
versário natalício de meu avô Felíx Ríccardí (já morto),
a Copa do Mundo conquistada pelo Brasil e a morte da Exposição Fayga Ostrower, prêmio de gravura da
mãe de Lúcio Cardoso. Bíenal de Veneza. Um senhor tentava explicar o ponto
senéível do abstracionismo de Fayga e se perdia. Creio
~ que " a ).rmpressao
~ pura e simp
. 1esmente po d e f ornecer mate-

56 57
rial ao nosso entendimento (também abstrato) das gravuras me surpreendi falando bobagens. Sinto que o meu amor
abstratas. A partir da impressão tudo depende da nossa é amplo, apenas não sei usar as armas exatas para con-
capacidade de sensibilizar-nos diante do que se nos afigura servá-lo. Não estou maduro ainda. Mas conversamos e
belo: a cõr, o equilíbrio, a sugestão. Já se independe do nos definimos; tudo é tão perfeito. Não luto, é certo,
figurativo pois a mensagem mudou de rumo. Para cada porque sinto que o amor, se o há, é só de minha parte.
espectador uma intensidade de comunicação, uma percepção
secreta. O quadro já não explica nada, não descreve, ~
proporciona um movimento emocional no nosso espaço de
espírito disponível. Hoje no mosteiro de São Bento, o impacto com a
magnificência da casa de Deus, °
que me reduziu ao
~ mínimo, e deixou bem evidente uma presença invisível.
~
Pelo menos me proporcionou ambíêncía à comunicação do
O que vi no caminho para casa, uma paisagem: a lua
mistério do Ser total no qual me sinto integrado, e com
sôbre o mar. Só poderia descrever de forma acadêmica ou
o qual estou comprometido.
surrealista. Outra solução resultaria outra coisa que não a
paisagem vista. Se lograsse esta definição, transferindo
integralmente o objeto numa equivalência emocional para
o meu plano criador, então teria a obra de arte.

7 ",,7",,58- E não se deve falar dos limões assim, de modo


a confuridí-Íos com sua acidez. Nem adoçar os sumos
antes do último suspiro das cascas; nem sorver os gelados
líquidos sem ver pousadas as sementes entre os umedecidos
3",,7",,58 - Só consigo ser amigo de quem respeita a minha
açúcares que a colher, em vão, agitou (ainda e sempre
liberdade de solidão.
sôbre o amor).

5",,7 ",,58 - X. chama a atenção, para as mulheres, dos 8",,7 ",,58 - Confesso, o que já se deve saber, que me sinto
homens que gostaria de chamar atenção. intrinsecamente um romântico. Romântico de ópera, ve-
ludo e brocado, romântico de grande cena. Saindo do
~ filme "Casta Díva" a vida de Víncenzo Bellíní, depois de
ter chorado muito, um pouco pela música, um pouco pela
Tôda a tarde no jóquei com J. uma felicidade que me hi~ória, sinto-me um irremediável deslumbrado. Porque
assustava e que eu temia que se quebrasse. Várias vêzes só ~ amor importa, amor de belos, de corpos e almas em

58 59
Mas gostaria de me despedir de algumas pessoas, prin-
Iloração. Dizendo isto me nego tudo. Principalmente êste
cipalmente de meu pai, e dizer-lhe que vivi preocupado em
direito de um grande amor cuja chave perdi com a morte
construir a minha felicidade sem perturbar a dêle.
de minha mãe. Depois, na vida esta impossibilidade cres-
cente de relação amorosa em seu alto sentido, como sonhei,
e que talvez não coubesse numa vida. ~

Mas eu não construi a minha felicidade. O que fiz


~ I~

I~ foi lutar
qualquer
entre dois gumes de uma espada, ferindo-me
modo. O que fiz, viver sendo o fruto total
de
de
Mas sou um excessivo, e hoje senti uma premência de
cada momento: instinto, cérebro, paixão.
morte. Não realizar o amor seria morrer, perder pelo
menos a urgência do plano a desfrutar. O que imagino:
um céu. E estou interceptado de garras e antenas frias,
<crustáceo que se arrasta ante o vôo de um pássaro. Mas
não existe o pássaro. E sou o desamado irremediável.
11~7 ~58 -- Espero a noite e uma visita, tenho mêdo. E
desesperadamente sei que será pouco, que amanhã reco-
~ meça o verdadeiro estado de ausência, o que conta. porque
mais longo e mais lógico. Espero a noite, tonto de Felí-
Observação de Jean Jouvet sôbre o teatro de Víctor
cidade, com a, cabeça fervendo de idéias, de imaginações.
Hugo: "Nas cerimônias antigas, moduladas ou salmo-
O que direi?
-dianas, encontra-se já, em germem, o que resume o lirismo
de Hugo: encantação, trama ritmo, poesia. Mais tarde ~
.isto será o canto. Segundo a concepção da ópera italiana,
estas são as mesmas constantes entre a palavra e o canto, Todos nos achamos dignos da felicidade. Mas impli-
o pensamento e a música". camos nela pessoas que por sua vez estão norteadas a
outras direções. Assim, e sucessivamente, esta cadeia de
equívocos em conflito.

10~7~58 -- Copio o último poema de Vi to Pentagna,


escrito no dia anterior à sua morte. Penso quando estiver
eu na mesma situação, escrevendo meu último poema, 14~7 ~58 -- "Fora da linguagem não há salvação" diz
conscientemente. Que palavras me acorrerão? Eu chorarei Judith Grossmann. E certamente, pois a linguagem pode
como um animal à porta do matadouro, o chôro dos animais ser em si a assimilação das experiências de uma vida tôda.
é expresso num comiserado silêncio -- e não será um
chôro covarde, antes um lamento por tudo o que deixo. ~

60 61
,\
'i 5

u
23 horas. Escrevo a primeira cena inteira de uma esta coisa encerrada em si mesma, insondável. rica e ines-
nova peça. Oito páginas datilografadas. Sinto que perada para cada leitor.
sintetizo demais meu pensamento. O exercício da poesia
me levou a isso. Mas é preciso criar diálogos que salvem
o espaço de um drama.
Espero que a minha poesia salve o meu tempo. Que
seja teatral. além de poético, é o que importa. 18,.,7,.,58 -- Acabei hoje minha nova peça. Fiz um ato
inteiro de um fôlego, o terceiro, o mais claro, mais defínídor
do drama. Não há na peça um tempo sucessivo de enrêdo,
é um realce de fantasia onde tudo pode acontecer até
mesmo as humanidades. Imaqíno-a encenada. Além do
15,.,7,.,58 -- Hoje escrevi o 1 ato uma nova peça. Talvez
Q título, tem um acento wagneriano, uma tempestade, clangor
se chame Navio Fantasma. Agora ouço Vívaldí depois de profético.
dois capítulos de leitura de um livro recebido hoje: Poesia
~
y belleze, de Díonisío Fuertes Alvarez. Estou feliz depois
de um dia de intenso trabalho. Vivi. Me desdobrei e vi o rádio anuncia a ínevitabílídade de uma nova guerra
que tudo era bom. mundial. A só noticia me deprime, como se um nôvo
dilúvio se preparasse. Então uma necessidade de amor,
~
de paixão, de entrega, me deixa acossado o coração. Como
se Iõsse o momento antes da morte, da catástrofe. E pre-
Navio Fantasma: o problema da sedução entre o car-
ciso viver.
rasco e a vítima, do mistério que rege a matança cotidiana
dos animais, das vidas que se possa ter desfrutado em ~
reinos terrestres, aquáticos e aéreos.
Uma vez acertada a crença na imortalidade da alma,
~ nada mais urgente do que salvá-Ia. E como? Vivendo o
mais possível de acôrdo com seus ditames.
Sinto que há sempre uma fábula na raiz de cada poema
meu. Não me contenta o jôgo floral, pretendo um objeto ~
díscernível. um animal potente, o poema. N em pretendo
ser intencionalmente difícil. Sou cada vez mais EU me Julya Van Rogger solidifica sua ciência das máscaras.
exteriorizando de acôrdo com as vivências, as aquisições, Os personagens que cria se multiplicam, forjados em palha,
as experiências, as apreensões, os rituais, os descobrimentos, casca de côco, cortiça, casca de coqueiro, couro, camurça,
as decepções, as exuberâncias, as dissoluções -- tudo de vime, caniço, contas, feltro, tarlatana, cerâmica, tinta, con-
todos os dias. O que me interessa preservar é a poesia, chas, madeira, pano, o que se imaginar e o que não se

62 63

r:
avaliamos, e que pode resultar numa solidez inelutável.
imaginar. Um verdadeiro mundo de inutilidades que se
Mas desconfio sempre, e amo como uma fera... Por
congregam sob o estranho influxo de um temperamento de
outro lado não sacrifico tudo. L. diz que não entende o
feiticeira. estes sêres convivem com ela, têm nascimento
meu amor pois não concedo um milímetro de certos planos
no mais fundo do seu ser, de outra maneira não se expres-
fundamentais da minha vida. Não seria capaz de me
sariam assim tão pessoais, tão vivos, tão prementes. Não
arruinar por amor. Isto, na maneira de pensar de muitos,
deve ser, pensando bem, um repousante convívio.
é a negação mesma do sentimento. Mas sou um pouco
cerebral, um pouco temeroso de um soçobramento e de que
~ não baste o suave, mágico perfume da rosa preservada.
Meu quarto é um pequeno reino. Minhas riquezas:
~ma sereia de sermalite, duas máscaras de J ulya, um cavalo ~
de gesso, minha máquina alguns retratos na prateleira -
Lúcio convidou-me a morar em casa dêle. Tudo lá
(Maria Callas, Carmen Miranda, J ulya, Lúcio Cardoso,
me é familiar e estimável. Como explicar a meu pai a
James Dean, Francisco Bittencourt) a letra de J. num
nova mudança?, Porque me preocupa isso, enfim? Julya
envelope, meus rabiscos ... não constitui probI.ema... o aparecimento de uma terceira
pessoa em nossa casa tem me tornado esquivo e distan-
ciado a ponto de criar um inevitável clima de rompimento.
É difícil explicar certas coisas, gostaria de esclarecer para
19",7 ",58 -- Hoje compreendo os gestos extremos por mim mesmo a razão pela qual pressinto que terei que me
amor, e que se seja egoista a ponto de odiar tudo o que mudar logo daqui. O que importa é que vivi momentos
disperse a atenção do ser amado. Imagino para mim e J. neste quarto, nesta casa, que valeram e marcaram a pas-
um castelo murado, com solidão e loucura para o cenário sagem. Posso passar, mas carregando um fardo de Iecun-
de uma paixão tremenda como a que me percorre. das experiências... é a minha vingança contra a transi-
toriedade.
~ ~

Lúcio diz que não abdiquei, que não concedi nada por Lelena me confia o que tem de mais caro, e é uma
amor. ~ certo. Resultante talvez de meu invencível concessão sentimental que vale o infinito. Não trocaria
instinto de conservação. E entreqar-se é findar. por nenhuma conveniência aquela bondade, aquela pureza,
aquela vontade de me ensinar sua ciência de vida, para
que eu possa participar conscientemente dêste lar que
generosamente me ofereceu.

21",7 ",58 __ Tenho a impressão de que entre mim e J. A.


~
se urde um entendimento mútuo, um liame secreto que não
65
M

\.
Minha amizade por Lúcio Cardoso é um misto de seriedade da fisionomia adormecida (em que mundos, meu
ternura, respeito, admiração e zêlo. Sinto que êle precisa Deus!) e da minha imobilidade para que não Iôsse inter-
de mim e que lhe serei útil e fiel. Em troca beberei tôda rompido em seu repouso, e da minha vigília. Amor, como
esta experiência acumulada, esta sabedoria do mistério, é necessário êste jugo!
êste luxo, esta pompa grega de que cotidianamente se
rodeia.
~

Lúcio Cardoso está irremediàvelmente vinculado ao 24...7...58 -- Lelena me inicia na música. Situa histôrica-
mundo que criou. Jamais vi tamanha integração, tamanha mente Boccherini e Mozart. Quer me conceder seu mundo
fidelidade, tão obsedante destino. Talvez isso o distancie, mas me adverte que é exclusívísta. Contornando o assunto
com vantagem e grandeza, de tantos contadores de histó- me faz entender isso. Mas porque somos todos assim, uns
rias da nossa literatura. Uma coisa ê criar no gabinete a desatinados, uns escravizados sentimentais, uns egoistas?
sair de alma dispersa: outra, e é o caso de Lúcio, esta A que nos leva a necessidade de ser amados!
participação noturna, angustiosa e permanente com seus
sêres gigantescos e sombrios. ~

~ Ser amados. .. nunca o fui, e por isso êste tremendo


remorso da traição contra mim mesmo. O amor que eu
Mas as vêzes são tão mesquinhos, gigantescamente quisera se multiplica normalmente ao redor de mim. Mas
mesquinhos êstes personagens. Impressionantes justamente todos perdem também, e têm a esperança de ter renovado.
por isso, são tão fundamentalmente bons como maus. Comigo, ao ter um esbôço, desconfio de que estou tendo
Verdadeiros e possíveis sempre, desde que se considere a demais, o que arrefece o ímpeto. Depois de perdido o
projeção do mito a que se vinculam. vislumbre ,refôrço a sensação de perda e ponto de me
julgar perdido de mim.
~
~
Dante, Dostoiewski, Sófocles, os açúcares de Lúcio
Cardoso em Crônica da Casa Assassinada e romances Escrevo uma novela autobiográfica sabendo-a, ante-
seguintes. cipadamente, impublícável. Naturalmente por razões em
~ que não incluo covardia ou mistificação da minha realí-
dade. Por outro lado tenho mêdo da tal auto-complacência
Lembro o peso do braço de J. A. sõbre mim no contra a qual Paulo Hecker Filho sempre me adverte, pois
princípio do sono, e sua mão que eu beijava de leve, e da os fatos que relato são indiretamente defendidos.

66 67
em que não havia tal prêmio para poesia, e é dedicado a
Julya me chama a atenção para o mar neste momento.
um dos maiores nomes da nossa poesia.
Deixo o diário e vou ao sol. Ao sol, ao sal ...
Tudo isto somado faz com que se desista de guerrear
o menino inaugurante. Trata-se de um jovem que precisa
~
se afirmar, passo a passo, conhecendo-se e conhecendo o
caminho em que pisa. Tratam-se de 17 anos salváveis e
o chá ferve no fogo. Vívaldi presente. 11 horas da
preserváveis. Os motivos que alegou, descoberta a façanha
noite. Horas. Desisto de calcular minha possível duração
foram tão particulares e extraliterários que fiquei impossí-
terrena, pois dentro do que me é possível desfrutar ou
bílítado de qualquer atitude de acusação. Confesso que
perder cada momento. sou eterno.
o fato de ter poemas inéditos comprometidos neste roubo
me abateu um pouco. Mas com a sugestão, aceita por
~
êle, de recolhimento da edição talvez tudo se solucione,

Voltando à minha novela, antes de dormir. Temo Mas ficamos, e não tínhamos esta espécie de prevenção.
sujeitos a uma avareza de nossos originais, a guardá~los
que não valha esteticamente. Isto me incomoda. Um
no fundo da gaveta... Já não se pode mais entregar os
simples relatório interessaria aos amigos... mais isso não
inéditos para os amigos. tranqüilamente. Pode haver entre
conta. O melhor é devolver a coisa como nos poemas,
êles quem goste dos nossos poemas a ponto de não resistir
com altura.
à tentação de assíná-los publicamente. Temos ciência
ainda de que o nosso plagiador prepara um livro para
lançar na França (duvidamos em parte), mas esta ameaça
é muito mais grave. pois no estrangeiro seria mais fácil
29",7 ",58 - Não sei se era um poeta. Dízía-se assim. a coisa passar desapercebida. e o que é nosso valer ou
Ingenuamente irresponsável. Quando me comunicaram a desvaler sob outra assinatura. Mas o rapaz se apóia em
existência de um livro (ainda não distribuído) com poemas tais e tão frágeis mentiras que ficamos em dúvida quanto
meus e de mais dois poetas, do qual não tinhamos ciência, à solução do caso. Aponta pessoas importantes como
me espantei. O livro estava assinado pelo tal poeta (?) autores intelectuais da apropriação, assegura que os poemas
inédito, uma pessoa para a qual se entrega originais para de um dos poetas presentes no livro foi cedido pelo próprio
ler. como no meu caso, para depois ver os inéditos publi- autor. Em minutos esclarecemos a inverdade disso e
cados sob outra autoria, com outra paternidade. Mas a justamente o poeta apontado como concessor é o que mais
ingenuidade choca quando se verifica que ao lado de se obstina a um processo.
poemas inéditos, há poemas já publicados, um em livro, Enfim, é como um certo sorriso que encaro esta prese-
outros em jornais do Rio. São Paulo e Pôrto Alegre, enfim, pada. O que me desanima ê a trama de mentiras em que
totalmente adequados a um desmascaramento. E são pontos rapaz se enleia, ainda depois de descoberta tôda a sua
aventura _ acentua uma írresponsabílídade que raia à
vulneráveis por todos os lados: o livro apresenta-se como
premiado num concurso conhecido e importante, num ano loucura, uma exaltaçâo de quem defende com unhas e

68 69
dentes uma mentira da qual se convenceu e na qual escuro ameaça, as paisagens exasperam. Falta-me cora-
gem para enfrentar os punhais virtuais que o tempo enfí-
acredita.
Mas alertamos e isto me preocupa, que o livro pode .leíra e que têm a violência dos verdadeiros aços. Sózínho
aparecer, e pode ser comentado, iíleVltàvelmente, as provi- é como se estivesse completamente desprotegido contra
dências serão tomadas. Já n'ão se tratará enfim da con- a morte.
descendência amícal, do sorriso conciliador -- será a
comprovação pública de autoria, a defesa da obra diante
de um público que desconhece os laços particulares, as
tendências, as intenções, e para o qual preparamos a
mensagem em função de vívências ínvendíveis e definidoras. 1..8..58 -- L. chega ao Rio e me telefona. Se soubesse a
pouca vontade que tenho de vê-Ia. Marca um encontro
para depois desmarcar: resolveu ir a um cocktail dado por
Jorge Amado (Gabriela Cravo e Canela). Ótimo, me
resta a tarde livre, escrevo um poema e descanso.
30..7..58 -- Falo com J. completamente embaraçado.
Como é frágil êste elo que nos une. À distância S\1a ~
frieza é total e eu não me sinto seguro da nossa continui-
dade. Mas, reconheço, sem êste amor a vida seria uma É fácil de se gostar dos poemas L. L. não a conhe-
outra coisa, destituída de um dos sentidos primordiais da cendo. Pensa-se: uma poetisa adolescente que nos dá seus
primeiros versos. Convivendo com ela -a coisa é outra.
emoção que agora me mantém. Não é em vão que se
espera assim, que se pensa assim, que se entrega assim. Surge exatamente a criatura angustiada e vacilante a pro-
cura de uma finalidade. Inclusive na poesia. Mas a Hnalí-
dade pelo visto ainda não foi encontrada, pelo que os
~
poemas mostram.
A noite eu e Lúcio visitaremos um poeta argentino Isto me leva a lembrar nomes de poetisas do nosso
que nos declamou seus poemas, numa padaria, com voz momento que re~lmente sabem o que fazem, com lucidez,
de tanguista, nuances de Neruda e Lorca. Era em home- consciência, rigor, e inteligência: R~th Maria Chaves,
nagem ao seu primeiro filho, o qual descreveu mais ou Lelia Coelho Frota, Marli de Oliveira, Maria Teresa
menos como uma "trombeta al infinito". Wuíllaume, etc. E, note-se, tôdas elas têm pouco mais

Lúcio não apareceu. A visita não saiu. de vinte anos.

~ ~

Não gosto de ficar só em casa. É um jeito de aceitar


Para entender Lúcio Cardoso é preciso entender de
violetas, de ãmbares, de resplendores, chácaras, paixões,
os fantasmas e digladiar com êles. O frio mais frio, o

70 71
santos antigos - ou pelo menos identificar com a pessoa 3..8..58 - Nada me impressiona tanto como a matéria.
Hoje, chegando em casa, fui surpreendido por dois vasos
do artista êstes elementos de luxo que êle inventa. Sobre-
de papoulas. E descobri pela primeira vez seu intrincado
tudo as violetas ...
mistério. Pode uma rosa ser mais bela, jamais tão requín-
tada. A matéria de uma .papoula! De que sêda, de que
~
indenominado tecido se compõe? g realmente um material
Eu não mereço a ternura de alguns porque mereço sõbre o qual ninguém trabalhou. Sinto na flor inteira e
tôda a ternura do mundo, e por isso não mereço parte nunca igual. e sempre outra côr e ímpeto, a secreta solidez
dela. Aceitar o quinhão é trair o todo. Assim no amor de uma fõrça que ri. E o sorriso é justamente a burla da
_ meu amor por J. é tão grande que estou resolvido e minha seriedade, do meu coração que se prepara para o
a rejeitar o pouco que me concede em troca. Não tendo conhecimento das coisas que sô o amor concederá sem
nada é a maneira de sofrer a dor total. grande como a definir. .. como as papoulas.
alegria total que o amor dignamente correspondido pro-
porcionaria. Mas assim, aceitar momentos, delírios, bre- ~
chas, é a maneira mais sórdida de desperdiçar a oportuni-
Recolho as pétalas que caíram, ponho-as dentro das
dade de uma grande vivência.
Iôlhas de um livro qualquer. De repente encontrarei a
película quase imaterial e antes que se faça pô descobrirei
~
o anjo.
Estou disposto a me mudar para a casa de Lelena. ~
Tenho que explicar a meu pai que aqui a engrenagem do
entendimento emperrou. Com Lelena encontro inicialmente São mais que flôres, são papoulas ...
delicadeza real. emoção, pureza, ternura, tudo o de que
necessito. Talvez mesmo condescendência.

~
7..8..58 - Não trabalho meus poemas porque acho que
Cada vez que penso em me mudar é como começar deveria trabalhá-Ios até o infinito, sem que me satisfizesse
tôda a vida de nôvo. E já me mudei tantas vêzes neste sua forma definitiva. Assim deixo-os quase como se for-
Rio de Janeiro! Em dois anos sete vêzes. Desta última maram sob o primeiro impulso. Quero dizer: não faço
pensei que ficaria... as circunstâncias concorrem para modificações profundas, embora cada vez que os copie
desnortear a vida em comum... As circunstâncias que, encontre pequenas soluções quase imperceptíveis de ordem
desconfio, aparecerão sempre, sob as mais diversas capas, gramatical e ritmica e que me parecem importantíssimas.
Quando outras pessoas me vêm falar de meus poemas,
conduzindo a outros desequilíbrios.
estranho-os como se não os conhecesse mais.

72 73
Fiquei impressionado com esta senhora alemã que nos 11..8..58 ,....,Leio um livro de análise poética, quase ínofen-
visita. Espôsa de um deputado no tempo de Hítler, e sivo, o que é mau sinal. Análise poética muito breve,
sendo católicos, vieram para o Brasil. mais precisamente raquítica. Sua leveza, seu descompromísso, podem pro-
para o Paraná, com a família, um capelão e professôres. porcionar um torneio lírico bem salutar aos iniciados na
Fundaram uma fazenda: hoje uma pequena cidade com poesia. Sobretudo é bem escrito, inegàvelmente.
professõres de música, de canto, de alemão, português
pintura, etc. ,...., uma organização. ~
Os filhos, educados na Europa, rejeitam o que já foi
feito pelos pais e se embrenham mais no mato para começar Leio e traduzo Antônio Machado. A dificuldade é
tudo de nôvo. É o espírito de autêntico píoneirísmo. incrível. Certos versos se apegam, se incrustam à sua
Talvez resida aí um detalhe importante da tão falada forma original, não permitindo a mínima hipótese de ínter-
superioridade do povo alemão. Como não o reconhecer, pretação noutro idioma. Têm uma côr, um ritmo, uma
sabendo-se do indigno e mesquinho confôrto a que o inteireza que solidificam o poeta em sua verdade.
brasileiro se sujeita, por uma simulação de vida em cidades
cada vez mais artificiais? E a burocracia a que se adaptam ~
como bois à canga? Mas eu também, embora bradando,
me integro a essa massa que caminha unânime e embría- Cada dia aumenta mais a minha ternura por Lelena
gada em direção à morte. (Maria Helena Cardoso). Não sei como pude viver até
agora sem determinadas pessoas. Era um vazio do qual
nem eu me dava conta.

~
10..8..58 ,....,Chove. Nada mais importa. Sei que breve
respiraremos juntos o quieto sono da noite. Mas acor- Ouvimos Vívaldí, eu e Lelena. Há no ar uma estranha
darei, como sempre, para verificar seu silêncio,' e escutar-
vibração que me deixa crispado. Entristeço, falo e cada
lhe-eí o coração. Amo! A esta altura guardo tôdas as
vez encontro mais ao lado dela a justificação da minha
características na lembrança e tudo é nôvo em mim.
alma eterna.

~
~
Êste amor, sei que não o terei por muito tempo. Mas
Conversamos ainda: falo das vivências acumuladas
se soubesse que o teria tôda a vida ainda seria pouco e
em outras vidas, e da próxima onde encontramos certa-
eu desejaria um prolongamento pela vida eterna. No fundo
mente os sêres amados. Ela inventa dúvidas. Mozart
é o meu anseio de perenidade que se ramifica.
toca na eletrola e eu digo: "Ouve, Mozartl É possível

74 75

,I

I ~I
que tenha apodrecido em corpo e alma?" Ela sorri e eu
:sinto que a desarmei. 16,.8,.58 -- Sonho da noite passada: Uma tôrre de ferro
como as tôrres de petróleo. Por seus degraus de ferro
~ sobem mulheres, matronas, com crianças nos braços. Uma
criança loura, de quatro anos de idade, se despenca do
Meu Deus, te creio! Minha alma, te respeito! tôpo da escada, caindo num lago que há na base da
W. D. P., um poeta da máquina, um cerebral ten- tôrre. Afoga-se. Lembro ainda que a mulher que a
dendo à exatidão, ao poema equação, um grande porte carregava retirou-a das águas já morta. Desperto pensei
físico. E atrás disso uma inibição, um complexo terrível, logo na tôrre de BabeI. Não sei porque no sonho atribuí
um temor de falar, de aparecer, de ser visto. Tem todo quatro anos à criança. De qualquer forma é preciso
o material físico de um violentador e é tímido como um registrar aqui que ontem foi aniversário de morte de minha
pastor adolescente. mãe, e tinha eu quatro anos quando ela morreu ...
Escrevo dois poemas. Estou na fase da síntese.
~
Quanto menos palavras, melhor. E o verso curto. Mas
Encontro e falo com tanta gente na cidade! Por um sinto no poema assim urdido, um floreio gracioso e não
:momento me senti com os dois pés fincados no mundo. gratuito que provém de melhor região do meu fulcro poético.

~ ~

De manhã, na praia, assisto a um desfile de belos e Com Lelena no Jardim Botânico. O passeio não
grosseiros corpos fremindo ao sol. A música de seus
podia ser melhor. Lelena, brilhante e de alma adolescente,
pregões' é a mais estranha, telüríca e inventiva que se
contava-me histórias de sua infância. Víto Pentagna tinha
possa imaginar.
razão: é uma mulher com folclore. Escrevo um conto
sôhre o incidente do aluguel de bois. Escrita por mim a
história trop~ça. Contada por ela era como uma daquelas
deliciosas árias de Bach de que ela tanto gosta.
13",8",58 -- Copio minha peça Navio Fantasma. Bellá Incrível que vindo de um sertão cru uma mulher como
Paes Leme pediu-me para entregar ao S. N. T. Duvido Helena atinja tal requinte de civilização: Vívaldí, Beetho-
que os diretores aceitem a "Ieéríe" que ela (a peça) ven, Bach, personagens com os quais ela convive e dos
apresenta. Ê tal a ínterpolação de personagens, de situa- quaís se sente amiga e dona. E o sentido das coisas, a
ções, de tramas, que duvido de sua eficiência quando
percepção, a agudeza! Não é em vão que os amigos
encenada. Peca pelo excesso. Lida revela uma idéia em
brigam por causa dela. Pena que eu tenha chegado tão
evolução e tem, íneqàvelmente. o lastro de poesia suficiente
tarde!
para sobreviver.

76
77
8
18,.8,.58 - Visita de Nauro Machado e Luis Bacelar, 20,.8,.58 - Um dia pagarei pelas palavras impensadas
poetas. Nauro, um poço de inibição e timidez. Quero que. escrevo ou pronuncio. Mesmo em carta. Há sempre
deixá-Io à vontade e me perturbo. Revolto-me por ter em mim a desconfiança em relação às amizades, como se
comentado maIo seu livro de poemas. Chego a odiar a estivessem me explorando sentimentalmente. Por isso torno-
crítica cega. Afinal, há um ser humano atrás do poeta, e me áspero, fico só, desolado, arrependido, e sofro terrivel-
suscetível. O melhor mesmo é não fazer crítica, ou fazer mente.
e impedir qualquer contato extralívresco em relação ao ~
poeta. Está-se sempre na iminência de voltar atrás com
as conclusões e isto não tem sentido. Mas me pediram Admito que qualquer mulher sensível adore a poesia
para falar do livro, urgia ser sincero, e realmente não de Vínícíus de Moraes. Pois não é êle um bom poeta que
gostei dos poemas. se queimou exaltando a fêmea?

Mas Nauro é um sujeito estranho. Tem seu nôvo ~


livro inteiro na cabeça. Deve ser um pêso. :Ê; realmente
um indivíduo perturbado. E bebe. No fim da noite me Noite. Espero um telefonema. Minha carne arde e
confessa ser um sujeito preocupado profundamente com o eu busco um motivo para ser infiel a J. N o fundo não
problema ético. Principalmente com êle mesmo. é o motivo que me inquieta, mas a necessidade de ser infiel.

~
'-.
Carta atrasada de L. C. W. Fala de sabatinas que
Almoço com Pascoal Carlos Magno. Apanho ma- concede a médicos do exército sôbre o problema do homos-
terial para entrevista. ele quer fazer a confissão pública sexualismo. O tom da carta é sóbrio, revelando uma
de seu fracasso literário: "Já que não pude ser o poeta enorme pureza, e que isto não se trata de mais uma simples
que sonhei, fiz da minha vida um poema militante". experiência, de uma distração, mas que tem intenção edu-
cativa. E por isso se submete como cobaia. Mas os
~.
outros, enten'derão? Era preciso justificar tudo pelo amor
e falar com tal eloqüência que se inflamassem as paredes
C. chega. Já me irrita com conversas sõbre E. En- da sala. Ah, como podemos amar! Esta ânsia de normali-
venena tudo, comenta o que não lhe compete. Já está dade, esta inveja dos pares inocentes, êste descarnamento,
dando aulas de teatro grego na classe de R. M. C. estas láqrímasl L. C. W. é o mais indicado para falar:
Enfim, não como o Pascoal, é um indivíduo que não fez sõbre isso tudo, porque convence. :Ê; sereno, terno, autên-
tico. Meu amigo, abraço-te e te agradeço. Cobaia, êste
nem o poema escrito nem o poema ativo.
é o reino, morre por êle!

78 79
Trecho da carta de L. C. W. -- ..O principal é um perder-se cotidiano. Mas o. essencial é que me sinto
que, se tudo isso ajudar a médicos, oficiais e professôres, fertilizado. Crio, escrevo, me externo e isto justifica oitenta
e as demais pessoas nos virem a compreender melhor, e por cento da minha presença no mundo. Imagino a
nos ajudarem a todos, eu estarei disposto a quantas pales- angústia daquelas criaturas que não encontram uma fínalí-
tras, sabatinas e testes queiram. Farei todo o possível dade para existir. Tenho muitos conhecidos assim, que
para beneficiar a todos." se mutilam díàriamente, sem saber porque, e justamente
por não saberem porque, continuam o autoflagelo do aban-
~ dono e do deboxe. Eu me meti na cabeça que posso ser
um escritor. E tento criar, confio nisto, naturalmente
Sinto ímpetos de telefonar a L. ou mesmo de ir à soprado por uma energia que me facilita tudo e brota de
casa dêle. Mas é preciso manter a mentira que criei: a de dentro do próprio sofrimento. Agora que me dei conta
que preciso me defender dêle. Sim, devo, mas não ao da história de Elías, que foi arrebatado ao céu por um
ponto como o problema foi colocado por mim. Proteger-me carro de fogo, e que possivelmente estará vivo em algum
confiando, pois havia realmente uma amizade em flores- lugar do universo, creio que êste dom nos pode ser conce-
cêncía. Mas eu o ofendi com a minha desconfiança e o dido. Também eu posso encontrar meu carro de fogo ...
meu orgulho. Seu olhar escureceu, uma dureza estruturou- Talvez a minha poesia.
lhe o gris da face, estava sério e eu tenho que manter o
choque que provoquei.
~

Mas se um cataclismo universal reinaugurar o caos,


então para que terá existido mesmo um Leonardo da Vinci?
Para o tempo dos possíveis homens? Isto é pouco porque
22",8",58 - Mostro a Ruth Maria Chaves poemas dedí- êle conquistou a eternidade e tem direito ao conceito
cados. Ela sugere que eu organize um livro e indica um absoluto dela.
título: "Personae" ou "Persona". Duvido, e sofro cotidianamente a minha sêde de pere-
nidade. Será que os santos conseguiram esta inteireza?
~ Mas não há outro jeito de solucionar a minha alma tão
grávida de sobrenatural.
Num dia gris, com a alma gris, uma saudade infinita
de coisas não terrenas que às vêzes me parece nostalgia
~
do ventre materno, outras vêzes nostalgia de Deus, ou a
mesma coisa, uma e outra, na minha constante busca de Meu problema imediato mais importante: publicar o
perenidade e retôrno. meu novo livro de poemas. Estou sem dinheiro e sem
Sim, vivo, mas esta vida minha, esta liberdade, não editor. O livro é volumoso, e não tenho coragem de me
me proporciona uma segurança, uma adequação. Tudo é movimentar para oferecer esta mercadoria tão minha, tão

80 81

--
concebida na minha solidão e que me parece da mais como quem pensa num morto. Não me entrego assim à
absoluta desnecessidade para os outros. E publicar siqni- paixão, a ponto de me aniquilar. Não me suicidaria por
fica desejar leitores. amor. Apenas armazeno o seu rendimento enquanto dura:
Com Mário Faustino, pela manhã. Agora êle entende é uma reserva de inquietação, Iéeríe, prazer e lágrima.
porque me desvinculei radicalmente de R. E compreendeu Lúcio lê minha nova peça "Navio Fantasma". Não
sem uma palavra da minha parte. Melhor. me impressionou tanto o fato de êle tê-Ia achado bonita,
como o de dizer que é algo totalmente nôvo. Isto me
~ interessa sobremaneira.

Cada vez mais me aborrecem as manifestações do


~
surrealismo. Qualquer imaginação artificiosa se lança a
êle e se salva aparentemente. Mas a imaginação é pouco, Contrariando F. B. que quer a arte como um pro-
é armazém de artifícios e enganos pirotécnicos. O que cesso de aprimoramento interior do artista, só o que me
busco, o que me prende, é esta ciência do objeto, o senso interessa é comunicar o impacto com os sêres, e Iazê-lo da
plástico implícito em cada coisa e nas relações com as maneira mais bela. Me concentro exatamente no exercício
coisas. Então a poesia se simplifica, a tal ponto que a da beleza.
julgamos nua. Então nua e pura e absoluta em sua ver-
dade mais secreta, é possível receber seu rendimento sem ~
gordura, seu talhe, sua sonora altivez de lâmina.
Helena me diz: "Ouve a viola e o víoloncelo, procura
~ ouvir os dois e entender o diálogo. " Vejo que esta Fascí-
nante ciência da música clássica exige mais entrega do
Recebo um livro da Tchecoslovaquia: Guide-book de que se imagina. Estou disposto a tudo porque me entre-
Praga. De tudo o que mais me impressiona é uma foto- laço à vida e não me negarei a nada do que me fôr
grafia do cemitério judeu. Desolado, êrrno, entulhado de oferecido.
lápides disformes, não tem nenhuma das premeditações
pseudo-artístícas dos cemitérios católicos. É como se o
~
irmão tivesse morrido no meio do caminho e colhessemos
Helena conceitua seu método de amizade e diz coisas
a primeira pedra ocasional para marcar o lugar onde seu
certas: "A gente sempre pensa que ama melhor". De
corpo jaz.
acôrdo. Desta pretensão se cavam muitos abismos de
desentendimento, mas ninguém abdica da Sua condição de
incompreendido.

25~8~58-- Estou assustado com a serenidade do meu ~


fim de semana sem J. É verdade que muito pensei, mas

82 83
temas em diálogo, de manejar sêres que, em regra, não se
Uma absoluta calma física e espiritual nestes últimos
libertaram de mim. Já P. H. F. dizia de minha primeira
15 dias. Pela manhã reafirmo a mim mesmo que amo a
peça, que todos os personagens falavam o lirismo ayaliano.
vida e que sou feliz, apesar da minha solidão cada vez
Agora, mostrando minha última peça a Abujamra êle diz
mais acentuada. Solidão que não depende do tumulto a
a mesma coisa: "a rainha não é a rainha, o rei não é o
que me jogo, mas que resulta de um afínamento das
rei, a pitoniza não é a pitoniza, todos são Walmir Ayala
cordas da minha sensibilidade.
falando de uma forma bela". E não será assim tõda a
literatura? Mas se fracassei nisto que se chama um espe-
~ táculo teatral. por que faço teatro? E por que teimam em
se consumar em mim novos enredos? Acontece que me
Termino Três Romances de Rachel de Queiroz viva-
sinto à vontade no gênero. Que gosto de escrever imaqi-
mente comovido. A morte do filho de Noemia em Caminho
nando a palavra viva, que sou bíblico e profético na minha
de Pedras me pôs um nó na garganta. A narrativa em
concepção de poesia. Por outro lado desconfio um pouco
si é simples e sóbria, direta, despretensiosa. Mas exata e
dos monta dores de espetáculo, no fundo isto não me inte-
autêntica o que quer dizer: válida.
ressa. Publicaria minha peça NAVIO FANTASMA hoje
ao lado de meus melhores poemas, Como obra literária
~
considero-o assinável. "Mas o público não entenderia
nada" -- brada Abujamra. Que fazer? Quando fiz a
Encontro nesta página a pétala de papoula que guardei
peça foi com armas de lucidez, e tudo tem uma explicação.
há dias: quase imaterial.
E sei que foram soprados com alma teatral. São símbolos
e os símbolos em si não são claros. Tinha que nascer
~
assim Navio Fantasma. Quem sabe o que farei amanhã?
Pode ser que esteja apenas usando o gênero -- mas tenho
o poeta C. F. F. A. me procura assediado por uma
consciência de que o uso com vigor vocabular, com sonorí-
urgência de coletividade. Procura logo a mim que cada vez
dade, com beleza mesmo, o que justifica todo o descuido
mais me incrusto em meu mundo interior, particular, para
da chamada "carpintaria". Uma entrada, uma saída, isto
ser cada vez mais eu, à medida que me isolo. Isto como
me escapa quando um personagem está dizendo algo de
poeta. Como criatura humana necessito de convivências
essencial. Clamo pela beleza, pelo estético, e peço que
temporárias e umas raríssímas permanências.
me valha. Creio que isto pode salvar mesmo o espetáculo
montado e irei até o inferno atrás de uma possibilidade de
constatação. De qualquer forma entrar.ei em concursos
até ganhar um primeiro prêmio e ver meu teatro encenado.
~ o meio, para mim que faço uma coisa nova e incrível
27 ",8",58 __ Porque escrevo para teatro? Não o decidi
para os diretores. Pois mesmo o diretor amigo não acredita
num momento. Foi primeiro a vontade de fazer viver a
na montagem. Há os que se revoltam contra concursos.
palavra, a possibilidade de erguer a voz, de debater meus

84
85
Eu os encaro como uma possibilidade de impor um ternpe- vençâo, a reconhecer que a vida. a que realmente conta.
ramento ... o pseudônimo sempre ajuda em seu simulacro reside no fundo. atrás de tudo. e nos preserva do "ramer-
do anonimato. É o que faz com que muito texto tenha râo habitual" desde que não nos permitamos adormecer
-existência fora do secreto mundo da gaveta. Vou aos' sôbre a cômoda máscara.
concursos sempre. porque não tenho editor. e não acredito "Era uma prosa tão má que resultava boa e eu resolvi
que os editôres me escutem porque não sou o que se ler o livro mteiro na primeira oportunidade. Os nossos
escritores jovens têm muito a aprender com os piores
chama um autor comercial.
autores da nossa literatura. É muito mau queimar os
livros sem valor literário. quase pior do que queimar os
~
livros bons" (William Saroyan).
Penso em J. Espero não retornar. porque não se
retorna. Mas penso no que foi. no que ficou interrompido ~
e poderia ter sido. Mas poderia. num outro tempo de
mim. não nesta truncada e meandrante existência que me Não sei consolar. não acredito no consôlo. o
decente
concede apenas os relances. Mas penso em J. Minha é não deixar transparecer a nossa tempestade. Ou. pelo
última poesia tôda se ressente dessa ausência. Ontem eu menos. não tentar impô-Ia como a única coisa importante
no mundo.
escrevía um princípio de poema:
~
Escrevo um nome na areia
(Tão vaga a etimologia)
"O homem de que trata sua história não precisa trazer:
mas o nome distancia
algo heróico ou monstruoso para tornar magnífica a sua
corpo que o nome nomeia.
prosa. Deixe que êle faça o que sempre Iêz, dia após dia.
que prossiga sua vida. Deixe que êle ande. fale. pense.
durma. sonhe. acorde. fale. mova-se, mostre que está vivo.
:É o bastante" (W. Saroyan).
Helen achava
3,,9,,58 ..-
Cada ventre tem o seu umbigo.
não acho nem
o umbigo mais obsceno do que o sexo. Eu
É o jeito de
um nem outro. Prefiro mesmo o corpo nú.
se abolir os pudores adquiridos. 6~9,,58 - Lelena continua a minha catequese musical.
Hoje pela manhã ouvimos Pergolesi ("Concerto para
Flauta") Vívaldí ("As quatro estações") Bela Bartok
("Concerto para Violino e orquestra") Debussy "Quar-
teto") .
5,,9,,58 ..- Leio Saroyan com verdadeira sêde. Sinto~me
sacudido. despertado. alertado para o rosto fácil da con- ~

87
86
Entre coisa e coisa conversamos. Falei de Helen, Hoje escrevi seis poemas. Era tal o meu ímpeto pela
minha amiga de Pôrto Alegre, de como a encontrei, de manhã que eu parecia explodir.
como a amoldei. de como experimentamos juntos tantas
emoções, tantas descobertas. Helena aconselha-me a não
vê-Ia mais. que depois de 6 meses de ausência tudo estará
modificado. Não discordo. mas também não concordo. 10..9..58 -- Há uma certa categoria de pessoas que nos
Há uma parte dela que só vibrará sob a minha percussão. lembram bichos. Mas há outro tipo que de tanto conviver
como a "viola d·amore". com bichos estimados terminam por se assemelhar a êles.
Neste caso incluo o Augusto que a todo o momento me
lembra Lana, a caturrita. Há também uma terceira espécie:
pessoas que têm o sobrenome de animais e que são exata-
mente a representação humana dêles. Como se as famílias
9..9..58 __ Hoje com Manuel Bandeira faço uma entre-
vaticinassem as parecenças vindouras.
vista sõbre as cartas de Mário de Andrade. Quem nos
fará o bem de publicar as de Manuel Bandeira?
~

~ Analiso-me, Um estado de espírito me torna cada dia


mais infeliz. como uma ilha dentro da alegria de viver que
Os urubús estiveram presentes tôda a manhã.
Até já
se renova em mim todos os dias. Não quero morrer! Sem
E são grandes e ímpo-
pousam na sacada do meu quarto. dúvida o que mais me preocupa é o desejo irrefreável de
ao sol. As
nentes. Hoje surpreendi um que se secava
ser um verdadeiro poeta. Sei que o desejo é insuficiente.
asas estendidas. grave. despreocupado, nem se espantou é preciso que eu o seja de origem. Mas sinto a solicitação
da minha curiosidade. como algo de muito importante e dramático. Meu livro,
~ pronto. vasto. poderia contribuir para isso. Mas não posso
custear a edição. .. O dinheiro. como sempre, bitola tudo.
Hoje à noite telefonema do Augusto. de Põrto Alegre. Não sei ganhar dinheiro. quase não entendo que se troque
V em~me à lembrança tôda uma época de visitas ao seu arte por dinheiro. atitude errada mas coerente dentro de
apartamento no último andar de um hotel. E Lana a mim. Que preço há de ter um sofrimento. uma alegria.
caturrita que me detestava, mas que êle amava tanto. Lana que são enfim o sangue de tôda a vivência artística?
tinha ciúme de tõda a pessoa que se aproximava do Auqus- Assim, necessito do suficiente para viver e publicar meus
to. Era mais nobre do que eu, que tenho ciúme por ter, livros. Não acredito que nenhum editor se interesse pelo
uma finalidade certa. sem um objetivo. Não se trata de que escrevo, sou o anticomercial por excelência. A minha
ter ciúme da pessoa amada. mas de ter ciúme. ter com que tendência teatral. por exemplo. é vasada tôda em peças
se envenenar. suspeitar enfim. que afugentam os "montadores de espetáculo".

~ ~

88 89
Mas continuo. A minha ânsia de realização encontra que guardam a castidade. Não considero humanamente
possível a conservação. da virgindade sem alguma defi-
um tempo difícil pela frente e me espedaça. Então trans-
ciência da integridade humana. Êste aliás é mesmo o.
firo os meus problemas financeiros, práticos, para um
pensamento dos teoristas católicos que tudo explicam pelo.
terreno sentimental. o do desamor. Já de pequeno eu tinha
auxílio da Graça".
complexo de perseguição e era injusto. Agora a coisa
prossegue: sou suscetível. suspeitoso, desconfiado. Um
temor imenso das pessoas' faz com que as enfrente para ~
depois detestá~las, mas detestá~las por não me salvarem
Ouço Maria Callas, a divina. A voz barroca, estu-
da minha solidão envenenada.
penda, imperfeita, dessa mulher, significa a renovação do
canto lírico. É certo que Tebaldí tem uma linha mais
~
perfeita, uma segurança de voz resultando em uniformidade
de interpretação. Mas CalIas é uma tortuosa, torrente de
Lúcio Cardoso penetrou tôda esta minha máquina
aço líquido, causticante em veludo e sêda, com rugas e
sombria e e1.l.me sinto mais descansado. Ele aprecia o
cortes excepcionais.
verdadeiro pêso das coisas. Sabe até que ponto sou vítima
e culpado. Para quem me desvenda não tenho armas.

19~9,.,58- Quero registrar aqui que conheci um rapaz,


17,.,9,.,58 __ Ontem conheci Abel. Motivo, por causa do um homossexual chamado Hector, e que a sua beleza é
nome, para seis poemas hoje. Abel desaparecerá amanhã, uma graça entre os homens. Encontro-o sempre num bar
e quando surge amanhece. Andando, bebendo, chorando,
os poemas ficam.
seduzindo, é sempre um supremo acorde, um nobre enflora-
mente. Gostaria de ímortahzá-lo num poema, mas se o.
~
meu poema tivesse o vigor da sua verdade, seu esplendor,
Trecho de carta de Mário de Andrade a Manuel Ban~ sua glória inescondível, deixaria de significar um reflexo,
deira: "Queria muito era saber o que pensaria Nietzsche dêle para renascer noutro plano. Eu o chamaria pássaro
das moléstias venéreas, se lhe Iõsse possível ter alguma e Ibis, Rainha de Sodoma, Estrêla da manhã, tôrre de marfim,
e todo o nome digno de um predestinado. No íntimo é
depois que tivesse. Aliás desconfio que estou dizendo
apenas um perfeito infeliz. .. mas dotado de uma luz que:
bobagem porque se Níetzsche pudesse ter moléstias vené-
o salva. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança.
reas, não escrevia nem pensava como Iêz. A idealização
principalmente Hector.
das perfeições desconfio muito que só é possível diante
de certas deficiências físicas ou morais. Digo morais
pensando nos casos existentes de sequestro de corpo pelos ~

90 91
Mas imagino que apodrecerá um dia. que não terei tudo. Deus. ofuscante. único e onipresente. O paraíso em
dêle memória viva. e que os poucos fatalizados pela sua constante movimento. o eterno dia. o suave percurso dos
beleza. como eu. apodrecerão também. Mas em quantas bem~aventurados. a plenitude. Bach. Lelena imagina outra
pedras. em quantos ventos do mundo permanecerá a nota coisa. Para ela o Paraiso é não mais a angústia. é a
comovida de seu sangue altivo. Não. isso os vermes não plenitude do amor. tôda a necessidade de ternura satisfeita.
destroem. o movimento de perfeição que acontece no mundo Deus não presente. mas uma sensação de amor. um sentir
diante de tão inexplicáveis nascimentos. não materializável. Canto. música. beleza. frutos, anjos,
tudo sendo amor. Já não a necessidade visual. Deus não
ofusca.É. Lelena tem mais a noção essencial. eu tenho a
plástica.

22...9...58 -É impossível que eu veja queimar-se assim a


minha vida, perdendo a oportunidade maior de justificá-
Ia ... porque só me importa o amor. e tenho no momento
os meios de levá-lo a têrmo. Há longos anos não sentia
25 a 29...9...58 - Inesperada viagem a Pôrto Alegre para
um Festival de poesia.
isso. E não menti quando disse ontem que apesar da
mágoa que me causava. êste amor me rendia a graça da
visibilidade. a coexistente respiração, o impulso de exigir
um carinho que me pertencia. Fico pensando na nossa
solidão física. no nosso esquecimento do mundo, nos nossos
1...10...58 - Os amigos de Lúcio não precisam fazer grande
corpos. éramos luminosos porque estávamos humildes diante
esfôrço para me afastar dêle. Eu não costumo disputar.
do milagre. Não havia vaidade nem egoismo. Eu me
Sou orgulhoso demais para isso. Cedo calmamente o ter-
esquecia de tudo, das minhas tristezas, das minhas Iraqíli-
reno com a certeza de que terei exatamente o que me
dades, eu me sentia forte. capaz de vencer qualquer batalha.
compete.
desde que sentisse de olhos cerrados aquêle toque maqní-
fico e dulcíssimo. Era assim que me subia a luz, era
assim que a água me refrescava. era assim que a noite se
adensava. era assim a pedra. as amendoeiras. era assim o
odor de terra. era assim minha vigília. 8...10...58 -Há dias não voltava a êste diário. No entanto,
quanta coisa me tem acontecido. O ínternamento de J .•
minha viagem a Pôr to Alegre. o recomêço de correspon-
~
dência com Paulo Hecker Filho. E muitas cartas. Meu
Ouvindo o "Oratórío de Páscoa" de Bach, uma vísao diário tem sido as cartas. um gênero mais imediato.
do paraiso. As legiões anqêlícas, seus cantos. a fartura
das frutas de ouro. os Flabelos, e um sol permanente em ~

92 93
7
Acabo de telefonar para J. Êle me pede um favor, 10..10..58 -- Hoje dois telefonemas de J. Só isto já
vou ser-lhe útil. Como isto me consola. Penso em bruxa- justifica o meu dia.
rias para tê-lo, tudo o que Iôr possível. Quando construi
Agar, em minha peça Sarça Ardente, estava me retra- ~
tando. Agar: personagem sem esperança de amor, que
recorre às feitiçarias por um nobre momento físico. Se ao Com Lúcio ontem na Lapa, no bas-Iond, uma coisa
menos eu pudesse, como ela, guardar uma lembrança viva, tão natural para êles, os que vivem lá. Para mim é apenas
um Ismael inegável. uma extravagância. Lúcio tem razão, eu resplendo mesmo
Que manhã! Hesito entre ir ao mar e esperar tele- é diante de um copo de leite e uma fatia de torta de maçã.
fonemas. Esta curiosidade da relação humana me preocupa 22,30 h. Ah, me desfaço em poesia, porejo poesia,
muito. 'É como se a todo o momento estívesse para encon- agonizo de verso e ímpeto. Primeiro brinco, exercito uma
trar o amigo ou o amor definitivo. arte poética, depois me submeto e canto com a maior
Definitivo. .. quantas vêzes usei esta palavra incauta- gravidade. Em todos os momentos dou o melhor de mim.
mente, quantas vêzes ...
~
~
Se paro agora e me pergunto: Para que estou aqui?
Dei a Lelena um livro com dedicatória radical, abissal. Quem me responderá? Mas sinto intimamente que aqui
Ela guardou para que ninguém visse... gostei. É como estou para salvar minha alma eterna. Só sendo o poeta
se não importasse senão a nós dois. Eis uma pessoa que que me exijo é que o conseguirei.
dá à estima seu verdadeiro sentido, um terreno que exclui
vaidades e exibições.

Hoje um bom dia. Terminei a primeira versão de 13..10,.58 -- Hoje um ótimo dia. A tarde fui visitar J.
minha nova peça Sodoma principalmente. Recebi carta do no hospital. A noite fui ao teatro com Lelena ouvir a
Líneu falando na publicação de Sarça Ardente. orquestra de câmara de Berlim. Ímpreasionou-ma Haídn,
principalmente. Observo que a estrutura dos concertos e
~ sinfonias destas espécie se salientam no AIlegro. Talvez
pela natureza dos instrumentos: de cordas a maioria. O
Coloco Lelena na mesma pauta da minha arte e do que me transmite maior comunicação emocional são os
meu amor. E não me engano. Lelena é até certo ponto Adágios, nêles os instrumentos solistas têm seu esplendor.
minha âncora espiritual. minha solidez, meu tempêro vital. O oboê e o violino no Adágio do concerto em Ré menor
Das coisas essenciais de que disponho, a mais perfeita em de Bach cantam o que a voz humana tropeçaria na palavra,
si. Imprescindível. cantam o próprio movimento da madureza, do amor, sem

94 95
descrever elementos sempre falhos dessas abstrações. São Vejo os corpos organizados, o mar fulge,
o próprio inexistir físico e ao mesmo tempo o inegável os corpos
flores cimento. A impressão é imediata, a comunicação distribuem os músculos necessários, soerquem os
instantânea, somos atingidos naquele território desconhe~ nervos
cído, inexplorado e inexorável em que se desenvolve o aos devidos compartimentos,
caos gerador de tôdas as emoções. Há um entrelaçamento o sol tomba .meduro,
de duas magias, de dois misticismos, de duas nebulosas, Vejo os corpos em crise de silêncio, mas
antes da palavra, com tõdas as palavras potencialmente embaideirados de nudez.
vivas mas indistintas. Não é no fim da palavra que a Vejo os corpos,
música começa, é na glória do silêncio, no mundo subter- um fio por uma agulha e o meu temor
râneo das idéias e das sensações puras, aí tem sua realeza, de que a nuvem desmorone, a nuvem
sua glória, seu amor. O regresso a êste mar é sempre do que são na manhã, sem nome, sem idade,
que carecemos depois do cansaço das outras expressões liberados ...
menos eficazes. Quem já penetrou êste "vale" (como
diria Luís Cosme] desconfio que se enfeitiçou írremedíàvel- ~
mente de verdade e de absoluto.
Almoço com Carlos Alberto. Estou com o frio de não
saber como me realizar à altura da minha ambição. Não
posso me contentar com o que alcanço. Minha última
peça de teatro me aborrece. É pouco. É fraca, irrealizada.
Mas tem tanta coisa minha. Tenho que voltar a escrever,
17..10..58 _ Arquivo uma amizade: Helen. Ela tem todo
preciso escrever ainda hoje alguma coisa que construa
o direito de exigir que a deixe em paz, que respeite sua
o verão.
tentativa de tranqÜilidade. Pois não fui impotente como
amigo? Mas sua carta me chegou num tom de frieza e ~
mêdo que me preocupa. Até quando o amor atual a
Preciso ser menos ríspido, menos violento, menos mal-
manterá? De qualquer forma sinto que já não sou ne-
humorado, mais tolerante. Preciso aceitar os outros como
cessário a ela, já não existe aquela parte ferida que só
são. Preciso, meu Deus, aprender o caminho de mim
a minha mão pensava, já não há a antena que me captava.
mesmo através dos outros.
Talvez não seja eu um ser em profundidade como seria
necessário. Me esfumei. Ela viu tudo, recebeu tudo, e 23..10..58 - Eu não tinha direito de sentar comodamente
agora interpreta como um sonho o que passou, um sonho no teatro, com a minha água de colônia e a minha camisa
que não se deve repetir. branquíssima, quando ali em frente, no meio da rua, um
homem atropelado por um caminhão jazia espatifado. Eu
~ percebera apenas, sem ver nitidamente, o impacto da má-
quina contra o corpo, depois o ruído dos tonéis (era um

96 97
imenso caminhão carregado de tonéis) como se o veículo
me são indispensáveis à vida, mas nenhuma permanece em
tivesse passado por cima de alguma coisa. Era o corpo
mim. Eu permaneço sempre em mim. Sou rei e súbdito
do infeliz, esta coisa. Havia muita luz ao meu redor, do meu mundo, arauto e ouvinte, carrasco e vítima.
muita seda, mas uma roda de ferro se me cravava no
estômago e o corpo do atropelado eu imaginava que pas-
.~
saria por mim, arrastado pelas pernas, rnaculando-me de
sangue e massa encefálica. Eu não tinha direito à minha Levanto pela manhã como se tudo devesse começar
poltrona, à diversão, quando aquêle sêr Iôra arrancado ali, ali, e nada me é mais grato do que a possibilidade de
ainda quente, de tôdas as memórias, convenções, direitos, viver de nôvo a minha vida. O meu primeiro contato se
bens. Era um pobre morto de bruços, violentamente sur- resolve olhando o mar, êste mar de Ipanema. ainda selva-
preendido no seu vago pensamento, no seu problema. Um gem, com os coqueiros, as irregularidades de terreno, quase
morto a mais para exigir contas de mim, da minha Ielíci- deserto e freqüentemente alterado, mas indomável e perí-
dade, do meu orgulho, da minha chance de permanecer goso, e mantenho um diálogo mudo em que nos pergunta",
vivo, do meu ciúme, da minha tragédia de viver que ainda mos mutuamente o motivo de nossa presença ali. Mas o
dura, enquanto êle há muitas horas transpôs seu limiar mar é mais cego e mais violento e- se realiza em explosões
quem sabe se para a felicidade ou para o dano. de pânico, enquanto o meu pânico se desdobra em perplexí-
dade e mêdo. Ê preciso ir à cidade, ver pessoas, resolver
~ meus assuntos. Contorno a lagoa. aquela serenidade de
água verdinhenta, refletindo montanhas, e há favelas contra
Recebo o livro Alados Idilios, de Lélía Coelho Frota.
o morro, esparramadas, e negras de sorriso festivo e roupas
Lêlía tem suas palavras, é dona delas, absoluta: Hautim,
gaias com latas de água e trouxas distraidamente equílí-
passaríl, gari, menestrel. É tôda uma infanta ingênua
bradas. Os bandos de meninos que brincam nos gramados.
lidando com gaiolas exóticas. Seus pássaros não se repe-
Uma pobreza sôlta e feliz, que eu ousaria chamar de feliz.
tem, são raros no canto, plumagem e consistência.
De repente, ao entrar na rua Fonte da Saudade, não
sei porque senti um apêrto no coração. Só pelo nome,
pois de fonte e de saudade tenho me nutrido desde que
tomei contato com tudo o que perdia.
26",10",58 --- Amanheço êste domingo, cheio de sugestões.
Sinto-me cada vez mais integrado em meu mundo o que ~
quer dizer cada vez mais só.
Botafogo: o panorama se abre em azul. a amplidão
~ recolhe tôda a nostalgia e uma estranha alegria me invade
COm o ar da manhã, o vinho azul que se derrama sôbre
Sinto um certo remorso de não precisar sempre das o mar. Às vêzes passam navios. Freqüentemente há
pessoas. Há umas a que recorro com freqüência e que pequeninos barcos distraídos. E de um lado os jardins

98 99
que dão a sensação de intrincado bosques e na realidade
principalmente, que ninguém me espera com ansiedade, que
são apenas estreitos jardins -- mas a vegetação de tal
ninguém depende sentimentalmente de mim. Até mesmo
maneira se concilia que desdobra o espaço, e as diversas
o olhar que vou trocando Com as pessoas que passam ao
Iôlhas constroem um macisso organismo de verdes. No
meu lado, cai num poço sem fundo. E volto só, as luzes
Flamengo já uma tristeza me chega: o atêrro. O mar
da cidade acendendo. Enfrento filas de lotação ou me
acuado se deixa dominar como uma fera que não sabe de
espremo dentro de ónibus repletos. Tenho pacotes nas
sua fôrça. E os caminhões despejam a terra e a pedra,
mãos, livros, e o ,equilíbrio na viagem me custa uma dor
para argamassar o leito milenar das águas. E nós, que
de cansaço, enquanto um suor aflora em minha fronte, e
não temos a antevisão do que prometem (um vasto jardim
a camisa amassada de tantos movimentos tem o triste
que possa funcionar junto aos novos caminhos) apenas
aspecto de um corpo que pedisse a fria água da noite,
vislumbramos a triste paisagem primitiva dos aterros, de
como o meu corpo. E chego em casa. Respiro a atmosfera
pó vermelho e tratores, como o princípio de uma estrada,
do meu bairro, e um cheiro de rainha~da~noite me recon-
os primórdios de uma cidade, tão no meio do já feito, do
farta. Ando como um rei no meu domínio, estou mais
já decididamente erguido e habitado. Mas nada tão cons-
seguro, tão no regaço materno, embora na realidade não
trangedor como a constatação de que é sôbre o mar que
tenha ninguém à minha espera. Chego em casa e me
tentam construir, como não se houvesse terra nos brasis,
dispo. .. o corpo relaxado sôhre o leito fico um momento
terra bastante para cem outras cidades de São Sebastião
pensando em quase nada, vagos fios de lembrança
do Rio de Janeiro. que procuro extirpar, uma vontade de esquecer quase
tudo, um pêso nos ombros nas costas, a cruz de um
~
dia todo, acumulada em emoções que não sei recompor.
E quando a noite desce e o sono, peço a graça de não
Atinjo o coração do drama: a cidade propriamente
sonhar. De qualquer maneira desperto no dia seguinte,
dita. Onde é preciso tramar os arames, resolver, prometer,
a louçania na pele, o sol entrando (é bom deixar abertas
decidir, enqajar, eleger, e de onde se sai com franjas de
as janelas) e tudo começando, o sôpro de Deus baixando
liames para o bem e para o mal, e dos quais não se sabe
como música sôbre a simplicidade do meu quarto.
nada a não ser que nos situam a: condição estrita de gente
entre a gente, sem salvação imediata, sem amparo. Ponho No mar as sereias derramam já seu leite de espuma,
copiosamente ...
cartas no carreira, cartas que são de amor, de cortesia,
outras que me cansam e cujas palavras soam insosas, sem
~
significado essencial, como quse tôdas as cartas que troca-
mos neste anseio indisfarçável de ubiqüidade. E a minha
Para o gavião, nobre pássaro, morto hoje pelos ho-
solidão se incrusta pelos endereços, alguns do estrangeiro,
mens: "Li hoje a notícia da tua morte, da tua larga e
e cujas pessoas não encaramos como prôpríamente contem-
nobre agonia. Estavas varado pelo projétil que o homem
porâneas, mas como já decididamente perdidas. Visito
moldou em máquinas cegas, e tua carne se conformou,
antigos empregos, para constatar o que deixei lá. E vejo,
embora te debatesses sempre na esperança de recuperar o

100
101
dia fugindo. O dia fugindo, os homens não entendem isto. irritou e rosnaram dia e noite à tua porta. Rosnaram e
.e estam os numa grande cidade, e há muito coração pedindo deix~ram o lôbo em liberdade, um Iôbo faminto e dege-.
legalização. É por isto justamente que resolveram defender nerado que foi acoitando pombas (às quais no fundo des-
as pombas, e não imaginaram que a proporção da cruel- prezavam) para investir contra ti, criminoso inocente que
dade inventada por êles se repetia quando te alcançaram de nada sabias senão da tua natureza e do ar que per-
com um mortal projétil, numa desproporção absoluta de corrias.
Iôrças e poderes. Agora já as pombas voam livremente Tenho aqui, diante de mim. a fotografia do teu cadá-
-e tu estás completo, nada mais se espera da tua rapina e ver. Um homem te segura os extremos das asas, a tua
te empalharão para lembrança da tua soberania. Éles. os cabeça tomba consolada, as penas formam aquêle abstrato
homens, fazem isto com todos os que julgam superiores, e desenho tão comum aos da tua espécie - há qualquer
podes te orgulhar da situação. coisa em ti que lembra um Felíno, serias mais ou menos
O teu êrro foi a ambição de habitar, de sobrevoar, como os gatos que parecem tão freqüentem ente pássaros.
esta massa de concreto, êstes ferros, estas armações inu- Quem sabe um gato repentinamente alado? Mas êles, os
manas, trocando a tua floresta por esta, floresta que que hoje silenciaram de gritar contra ti, pois já te têm
também imaginaste, heterogênea e com estranhos sêres vítima, êles são vitimas também, e de uma Iôrça tão cega,
complexados. Ah, êste complexo da nossa gente, complexo tão civilizada, a do mundo organizado, a da cidade, da
de bom coração, complexo de bondade que culminou com sociedade com que se comprometeram, êsses estão enca-
te sacrificar, não sem um arrepio de temor porque eras deados. e tu estás encerrado. Não apodrecerás sob a
único e sóbrio. A tua ameaça paira sôbre as nossas cabe- terra, ficarás como o faraó Tutank-Amon e a extirpe dos
ças, foi numa sexta-feira, 13, que encerraram teu turno, e Pios, exposto a remotas visitações, e os vindouros não
além de tudo a superstição é um sangue secreto nesta acreditarão que, tão pequeno como és, tenham medido
população pseudo objetiva e científica, porque na reali- fôrças contigo. E haverá um mistério entre o que fôste
dade impressionaste mais do que os recentes foguetes de e o que te fizeram e a tua permanência - pois certamente
-conquista interplanetária. Provaste que ainda há o terrível nem mais existirão as líricas praças de pombas, e êles
carnal, e não te permitiram ser o gavião em si, adjetivaram- terão exterminado também as pombas em nome de quem
te de malvado, porque não tiveram coragem de chamar a sabe qual motivação.
si mesmos de malvados, malvados que não respeitam a Podes crer, êles estão satisfeitos, mas satisfeitos com
liberdade, que sacrificam os mais fracos de sua espécie, Um certo amargor, porque foi com covardia que te tocaía-
que se entredevoram por todos os meios possíveis e ímaqí- ram, que te espreitaram, que esperaram teu hábito, tua
náveis. que comem gatos vivos, malvados sôbre Híroshima folga ininterrupta, teu mergulho no espaço para recolher
e Nagasaki, em nome da justiça e da paz que nunca chega. a vítima necessária à tua sobrevivência.
Eis, tu tinhas assimilado a paz que êles desejam, e tua Hoje as senhoras sentimentais voltarão à Cínelãndía
'lição não lhes cabia na goela. Porque te realizavas pelo Com sacos de milho, os velhos inocentemente saudarão as
mais nobre e legítimo instinto, e sacrificavas sem necessí- pombas. Eles, como as crianças, apenas acompanharam
-dade de demagogias, de pactos, de ligas políticas. Isto os d~ longe es/a caçada, não teriam Iôrça nem coragem para

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te sacrificar, mas como está feito o inevitável. êles entrarão
na engrenagem da louvação dos preservados. Os que liberdade, e a nossa mentira estará sangrando em teu bico
dirigiram campanha contra ti, a mõça que, lembro, pregava adunco, a nossa inverdade será a migalha de carne viva
a tua morte com emoção mística, êstes não entenderão em tua garra, o teu ôlho feroz varará o nosso coração
exatamente o que os dirigia, porque a tua morte é um dissimulado, com mais dor e eficiência do que a bala que
pouco a derrota dêles, Quereriam que Iõsses tão cruel e forjamos para ti, e que te transformou, de simples pássaro
ínvulnerável que o seu ódio se alimentasse até o infinito, selvagem, em memórias e símbolo da nossa falível e ver-
gonhosa justiça".
atê Deus, até que pudessem invectivar contra Deus porque
te criou e eras a praga do homem. Mas estás morto,
mostraste que eras tão de carne como a carne com que te
alimentavas, e não te fizeste cúmplice dos homens, porque
não serviste à sua íqnôbíl utilidade ....- êles que alimentam 27,.10,.58 - Hoje com R. M.e S. na praia. A propó-
os gatos e aceitam a chacina dos ratos, naturalmente sito do amor trouxemos à baila a palavra, a fonte de
porque um rato não é uma pomba, não enfeita nem arrulha, todos os malentendidos. Estamos cativados os três e,
não é símbolo de nenhuma absoleta paz com que corroem como todos os cativados do mundo, sabemos distinguir os
as altas e desmoralizadas palavras na sua disputa do passos, a côr que traz a côr do amado, tudo. Pequenas
mundo. Um rato é simplesmente um rato, e os gatos coisas estas que constituem o rito cotidiano do amor, esta-
devem ser engordados para a caça. Já vês que não tiveste dos diferentes e a mesma repercussão. R. M. entrega-se
a sorte de ser menos ambicioso, se assim Iôsse, ou se ao sono para romper o tempo que se urde entre os dois
extirpasses apenas os gafanhotos e as cobras, aí terias extremos do amor desentendido. Ê a desesperada. S.
caminho livre. Mas porque eras nobre, porque eras exí- confia em si, no tempo e no amado. Nada a interrompe
gente, porque a tua rapina se dirigia ao artifício que êles de seu olhar feroz, nem ninguém arredará de seu terrí-
criaram para arrancar das pombas a sua liberdade, por tório a coisa~amor que se tornou mediação e pôrto. Eu,
isto fôste condenado. Esqueceste que para as pombas êles colho neste momento um fragmento de pluma no ar, e
constroem pombais, que se adextram a levar de lado a amo-a, ou me dirijo até onde a sereia está, e amo nela tôda
lado seus recados ociosos, que as habituaram a seu plano. a possibilidade de amor que ainda me resta, o que quer
à sua mão, à sua dependência. Isto....- e a vida delas é dizer, tôda a minha vida. Eu, vida, amor, momento,
uma condição que não te caberia, porque a tua morte é a confundidos. Três estados e uma mesma sêde.
frustração dêles que gostariam de te proporcionar uma E fomos organizar nossa quinquilharia sentimental:
vida dependente e fácil. Tu não queres as facilidades, dependurar os papagaios de papel, emendar os colares
querias o vôo, a rapina, o sangue. eles realizam entre S1 rompidos, restaurar as teias empoeiradas, tudo no sotão
o que não puderam realizar contigo, e todos, vitoriosos e onde o anjo nos encontrou, desolados, extáticos, remoendo
oprimidos, viam em ti uma ofensa à submissão ou à tirania. cada um a cruel cana cujo SUmo garantirá a sobrevivência
da nossa alegria.
Mas não há mais nada a dizer. Visitaremos teu
corpo empalhado, nós que te assassinamos em nome da
~
104
'105
de amar que tanto deturpamos, E deturpamos porque não.
Sodade é uma imagem africana de madeira que temos somos assim, coisas válidas definitivamente, mas organis-
em casa. Foi comprada numa banca de peixe, os peixeiros mos em mutação... Nem somos de madeira e côr, com-o
limpavam peixes sôbre ela. postos em mundos tão puros como êstes de Sodade e do-
Sodade apaixonou~se pelo Arlequim do quadro. Todos Arlequim. Ela pensa que nos engana, ou melhor, não é.
nós sabemos disto, mas não dissemos nada, nem deixamos por enganar~nos que se guarda, é por saber que somos
perceber nossa descoberta. Sodade esqueceu de tudo e incapazes de avaliar o significado dêste encontro. Em sua
persiste numa troca de olhares interminável com o perso- mão, misteriosamente, uma aliança apareceu... Bem, isto-
nagem. Nós entendemos de amôres e sorrimos de soslaio, não entendemos mesmo, mas tanto o olhar da sereia na
nós entendemos que o amor é frágil, fragílimo, e que o parede. quanto a postura írrevoqável do cavalo de gêsso,
julgamento dos outros é sempre pequeno diante do que se selaram em nossos lábios a interrogação humilhante. NãO'<
está sentindo. O olhar de Sodade pouco a pouco adquire há o que perguntar desde que o amor aportou à nossa
um brilho que só se irmana a êste encrespamento do mar casa, no mesmo dia em que, milagrosamente, as pombas:
depois da tempestade; poderíamos surpreender uma aflo- vieram comer migalhas de pão à nossa janela.
ração de pássaros e peixes em suas pupilas que o Arlequim
ampara com seu sorriso dramático. Ble não sabe que
~
espécie de amor dar a Sodade, não lhe entende o idioma
africano, nem o olhar africano de melancolia e feitiço. 'Ble
/ Julya concluiu que no céu andam precisando de pinto-
é essencialmente europeu, imodificàvelmente assim. Não
res. Pois não foram em poucos dias Pancetti e Rouau1t?
entende o que Sodade lhe diria, sente que é amor, o
E não se pode imaginar mister mais adequado a gente
mesmo da Colombina que lhe prometeram para o seu
desta estirpe, que uma tarefa celeste, e em boa companhia.
mundo de tela e óleo mas que nunca chegou. Sodade
Mas Julya, não como eu, contornou a tristeza trágica do-
compensa tudo, mas êle não sabe que gesto fazer, que
acontecimento com seu toque de humanidade inocente. Já
convite, que sugestão, que dádiva. Uma lagartixa leva
não me assediava os ouvidos a angústia de Pancetti que--
recados de cá para lá -' dêle em belga, dela em africano.
.,I E não sabem das palavras um do outro. Mas compreen~ rendo nos seus últimos momentos de vida pintar marinhas
II
dem que naquelas paredes foram plantados não por acaso, com as côres que via então, criação alterada pela Febre;
que o tempo é de entendimento, de familiarização, uma vez pelo desprender-se dos fios, um a um. Assim ouvi falar-
que os homens circundantes não conseguem a simplicidade de sua morte, mas não é o que ficou por último nos meus.
ouvidos; mentalmente escutei a transferência de Pancettí,
dêste estado.
Nós vemos tudo isto e disfarçamos com noSSO chá, a um atelíer sobrenatural, onde suas tintas continuem, para
nossa toalha vermelha, o direito de olhar a janela, e os espanto dos anjos, a reproduzir marinhas brasileiras. Julya.
ódios particylares, as esperas, as desesperanças, a compli- Iêz isso, um milagre, como costuma fazer com as coisas ..
cação tôda de que somos vítimas todos os dias. Nós Mais tarde, no mar, ela colocou diante dos nossos olhos a.
disfarçamos e procuramos o fio da meada dêste encanta~ triste e poética solidão de uma borboleta sôbre as águas ..
mente mútuo, aprendizado que muito aperfeiçoaria a arte
'107
106
"Ainda hoje pela manhã vi uma que morria" -- disse 1..11..58 -É bom escrever diário pela manhã. Equivale
ela. .. Era trágico imaginar a exaustão agônica da bor- a um boletim metereolôqíco , tempo nublado com prováveis
boleta diante da ímensídão pronta a traqá-la . .. Trágica melhoras.
e ao mesmo tempo lírica até a raiz, se imaginarmos que Ontem com Lelena e a constatação de que estou
ela não afundou, mas ficou flutuando, aberta como uma exposto a ela e feliz por isto. Ela me olha' e diz tudo ...
flor, solitária mancha de irreal no verde petróleo denso e aponta com aqúêle seu ar de sonsa exatamente o ponto
da ferida. Ontem falou-me de um seu antigo amor, de
e frio.
passeios em Ipanerna, e eu compreendi muita 'coisa. Foi
S. inquiriu muito inquieta sôbre o que pensava disso a isenção da política sentimental que a construiu. Ela é
quando viu nos meus olhos a borboleta e o mar. Porque uma mulher construída sôbre um único amor desfeito, caso
eu trazia como num depósito de cinzas, a leveza de umas raro. Sua grandeza é testemunho de uIl!a reclusão, de um
asas que imagino amarelas e a água. Eu estava sobretudo orgulho, de uma não adesão ao fácil remédio. É uma
triste com o acontecimento e por tôdas as borboletas que estação que não tem fim.
futuramente abrissem o véu do mistério sõbre o infinito,
o véu de seu mistério pulsante e minúsculo. S. não enten- ~
deu, mas ficou séria, crispada, e passará a noite, eu sei,
vigiando pela janela a massa escura e longe, do oceano, 'À arte, um instrumento sem objetivo imediato. Mas
à espera de uma borboleta, de uma flor móvel e colorida existindo o instrumento, o que nos falta é a medida do
que lhe diga: terreno a ser trabalhado com êle. 'Eu diria: o instrumento
que encontra em si mesmo o seu júbilo, que se basta e se
"Évoluntária a morte assim, quando se tem asas e se
nega à utilidade. Contan:do uma história distraio os
persegue a alegria num infinito sem pouso ... " outros e jogo comigo mesmo. Sem brinquedos as crianças
se realizariam de uma outra forma que não a mais certa
e mantida. As crianças precisam de brinquedos como de
comida, jogando é que se manifestam, que aprendem a
, 11
estruturar, a arriscar, a ganhar, a perder; a duração, o
31..10~58-- Isto é o que importa: ter escrito agora cinco
pêso, a distância, o tempo. Assim na arte, o homem nas-
poemas. Meus excessos me consolam, eu jamais seria o
cido com sensibilidade artística, e sem o amparo da fruição
que organiza um livro paulatinamente. A não ser no caso
estética, seria um vertebrado sem vértebras.
de "Cantata" em que o próprio poema serve à minha
exuberância.
~
Dormi na cama de C. A. Lençóis cõr-de-rosa com
bordados em relêvo, a sagrada família na parede, um avião Sinto que tenho que evolar, que há uma lacuna a
entrando de rijo, em som, no 12 andar. Sonhei.
Q preench~r. Há uma determinada matéria à minha dísposí-
ção 'e quero usá-Ia tôda. Não me interessa antecipar

:108 i09
8
experiências. Ando à tôda, sem perder o que me sugere
a velocidade. Também não fecho os olhos. Vejo a dife- Talvez porque tenha em mente a impossibilidade de amar
rença do feito há um ano, sem esfôrço aprendi o necessário a quem amo, a desesperança que me acompanha, e o
para querer mudar de posição. Assim será sempre, com desejo de um amor normal. Por isso nada exijo, deixo
apenas o ativador do cotidiano, das pessoas provàvelmente que tudo termine, sujeito~me à renúncia sabendo~a terrível,
desconcertantes, das audições, dos espetáculos, dos amores, e tenho chorado lágrimas amargas por isso. Mas nunca
do terror, da dúvida e sobretudo da ânsia de vôo. Porque sou imprudente, nunca sou o que fica de arma empu-
afinal, o pássaro é o fim ... nhada. Permito-me ser a vítima sem voz, sem apêlos, sem
exigências.

4~11~58 -- Para mim os gatos são pássaros manietados.


Já no meu primeiro livro aliava as duas espécies. Agora,
16",11",58 -- Sim, a arte aos poucos tiraniza. Hoje, do-
ao lado da minha casa, num terreno baldio, há mais de
mingo, fico em casa e escrevo bastante. Poesia e prosa.
uma dúzia dêles, pequenos ainda, e posso observá-los.
Sinto o fruto da minha renúncia ao .passeio, à visita. Ê
São de uma elegância natural, de uma graça explosiva!
um jeito de não viver o natural do instinto e de substituir
Saltam para tentar subir num arbusto, a queda é calculada,
o chamado da dispersão pelo concentrado da contemplação.
macia, manhosa. Disputam, sem garras, deliciosas pugnas.
Sim, fico e contemplo o que me foi dado até hoje. Algo
Há os brancos, os pretos, os pardos. Os pardos têm cara
perdi da novidade do mundo neste dia. Mas pela expa,
de amor-perfeito, como no meu sonho. Cabríolam, as
riência de Um dia só da minha vida passada poderia
orelhas empinadas, agudas, atentas. Seu mundo é restrito, escrever tôda uma obra válida.
o suficiente para que passem o dia num \i.ôgo interminável.
São Iúdícos essencialmente, assim gatos~meninos, exercem
seu orgulho com usura, sob as patas aparentemente velu-
~
dosas. Mas à minha aproximação, mesmo de mim que os Há que renunciar um pouco.
amo, preparam eriçados golpes, se eletrizam, se encolhem consolador, deixa menos amarguras,
o rendimento é mais
num terror com nobreza, nada inferiores. São animais vácuos. menos remorsos, menos
passionaís, prevenidos, selvagens por natureza, mesmo assim
quando frágeis e mal-desabrochados.

17", 11~58 -- Carta ao pai.


14~11~58 -- Eu jamais me permiti a degradação das Aqui tudo Corre Como sempre, eu amadurecendo, a
pequenas atitudes em nome dos meus maiores amôres. vida me ensinando coisas, dando umas e tirando outras.
Até o fim. Mas me anima muito êste aprendizado que o
110
111
tempo me proporciona, conhecer as pessoas e penetrar Que atitude tomar desde agora? A indiferença? Mas
cada vez mais em mim, encontrar-me e desvendar novos como, diante de sua pureza, de sua simplicidade, de sua
caminhos, que não se esgota a alma humana. Pai, eu não intehgência bem medida? Como? Se é todo afeito ao
quisera morrer. Quando penso na morte, e que será muito amor e eu não regateio o meu. Mas Como é perigoso
sério, muito definitivo, pior do que se perdesse um dedo, para mim apoiar-me tanto em quem não espera um segundo
um braço, uma perna. ,Morte cessação, privação de tudo. para escapar ao meu debruçamento. Inclino~me e sei
E pensando bem não me resta muito, pois vivi 25 anos e que caio.
me pareceu um sôpro, Despertei justamente para esta coisa
~
incompreensível que se chama vida, pela qual lutamos como
se fôssemos eternos. Na realidade, quem acreditará na Ontem com I. S. no teatro. Uma revelação. Ela tem
sua própria morte? Quem? Os outros, os que morrem ao temperamento, é violenta, pode se aborrecer e transparece
redor de nós, parece que mereciam isto, que não tinham naturalmente seu desgôsto. Não é a esfinge fria e postiça
outro caminho... Mas nós nos pensamos ínvulneráveís. que eu supús. É uma inteligência com sangue e nervos,
Saiba que seu filho não morreu como carneiro, cego de graças a Deus!
seu próprio destino. Morreu como ser humano, iluminado
de esperança inclusive numa vida eterna, numa írnortali- ~
dade imediata. Ah, como a fé é importante!
Mas Lelena. A ternura está Com ela. Voltarei a seu
lado quando E. me faltar. Ela saberá tudo logo do pri-
meiro olhar. Eu consentirei que me console. Só ela tem
êste direito.

26...11...58 - Volto a êste diário. Quando não tenho o ~


gênero adequado para me escoar no momento, volto a
êle. Ou porque tenha que escrever à mão (É alta noite Sim, canso de repetir que vivi êstes dias Com o maior
e o barulho da máquina de escrever irritaria os vizinhos). egoismo possível: Ninguém me arrancou da minha Ielí-
O objeto mudou, o amor é o mesmo. Sei que amo e não cidade. Não permiti. Menti a V. que estaria em Belo
Horizonte, meus amigos mais próximos me perderam de
devo esperar nada. A ciência disso não' interfere a não
vista. Tornei~me mesquinho e usurário para engrandecer.
ser na desesperança e no mêdo de um fim que se aproxima.
Todos compreenderam. não exigiram nada. Eu, como sei
Tenho 5 dias i;lpenas para respirar. Depois? Viverei. é
que tudo passa. respirei sofregamente êste ar da possível
certo. mas tontamente, no início. Até me reorganizar.
ternura. Estou com data marcada para o fim _ eis uma
Agora ainda posso ser seu cão de guarda, vigiar, cuidar.
coisa que dita assim não comunica a dimensão exata do
,pensar por, enfim. que estou perdendo.
Mas é preciso, é preciso, é preciso. Desculpai~me
~ todos "que
esperáveis que o meu amor durasse tôda a vida.

112
113
Víví-o como se durasse tôda
a vida. Vinte dias - eis o
tempo de uma felicidade. Desculpaí-me os que esperam açúcares arruinando a limpa manhã Com sua densidade de
passada madurez.
muito e verão logo a dissolução. Não há mais tempo. Na
realidade meu amor abrange tôda a vida. Atentai para
êste amor, eis um direito (mesmo o do sofrimento) de que ~
ninguém me priva]
o passarinho já é todo um coração, tanto palpita.
Não há Como tranquilizá-Io a meu respeito, nossas lingua-
~
gens divergem. Deixo-o dentro de um abajur de varetas
Tenho que dormir E. está ao alcance da minha mão japonesas atê que E. acorde e o veja, depois solto. Bem
para uma carícia ou para a morte. Eu não tocaria nêle se que gostaria que êle me falasse: "Deixa-me aqui", ou
não fôsse para torná-Io eterno, além de mim ..• "Prepara~me tal e tal gaiola, permaneço contigo". Ê inútil,
nem êle falará, nem aceitaria a minha prisão por mais
amorosa que fôsse.

Solto-o. Acompanho seu vôo, bastante sôlto para o


filhote que parecia ser. Mas na .árvore fronteira outros
30..11..58 - E, é o ser mais bonito que eu vi adormecido. pássaros maiores o perseguem, e êle desaparece. Terá
Incluo nisso os gatos que amei, os pássaros, e mesmo um sido o cheiro da minha mão em seu corpo o que irritou os
coelhinho branco que me roubaram numa sexta-feira santa. outros pássaros? Pois até dizem que cheiro de gente em
passarinho nôvo atrái cobra. Se atrai o inimigo deve
~ repelir o amigo. Cheiro de gente, eis uma coisa inofensiva
mas que deve significar perigo para o reino irracional.
o. pássaro era pequeno e se rebelou contra mim. Perigo' de egoismo, de raciocínio, de consciência, de liber-
Entrou em nossa sala. Eu tive mêdo de soltá-lo. Saberia dade, de corrupção ...
onde ir? Ao mesmo tempo não imaginava gaiola bastante Escrevo uma nova peça em absoluto estado de amor.
grande, bastante justa, para êle. Tíve-o nas mãos por Extinguindo-me dentro do enrêdo, desfazendo-me nos per-
duas vêzes, Gritou, por momentos cerrou os olhos, não sonagens, estruturando-os a partir da análise de mim.
aceitou mesmo o sumo de um sapo ti maduríssimo que,
partido em dois, espremi-lhe no biquinho endurecido de ~
susto.
~ Chorei muito porque sinto que vou perder o meu amor.
E não me conformo, êste amor que para mim é um flores-
Mosquitinhos minúsculos davam à sala o desagradável cimento doloroso. Uma coisa mais ou menos assim: eu
aspecto de coisa. estagnada. Descobri: duas gotas do levanto com fome. Penso: vou comer. Vou, preparo a
sumo do sapoti manchavam a mesa de desenho. Eis, os Comida e levo-a para a pessoa amada. E passa a minha
fome sem que eu perceba, Ou então eu chego e digo:
111:
115
acho que precisas de um nôvo amor, vou procurá-lo para cáos. E que partícula do cáos poderá ser o rochedo que
ti. Ê esta renúncia sem desespêro que dói na medida do fui, ou que pretendo, com a minha vibração e a minha:
possível, mas dói com nobreza, como se não houvesse mais alma?
nada a fazer... Amar é importante. Ser amado seria ~
bom, mas podia diminuir esta sensitiva de fertilidade que é
o movimento, o grande movimento interior do amor se Ê preciso que se evite de qualquer maneira a violência
perfazendo. O amor para mim é uma vigília permanente, _ esta coisa para ,mim tão abominável, a mais abominável
já não sou eu quase, sou amante e pai a um tempo. de tantas coisas abomináveis do mundo, exceto a injustiça.
Ê preciso usar de cautela; pois, aprisionados ou mortos, a
~ nossa voz de pouco adiantará.

Entardece e é bonito ver o mar desta janela. Nunca ~


é o mesmo. Descobri há pouco que o mar varia de acôrdo
com o céu, a côr do mar, e fiquei espantado. A côr do Uma leitora comum diz da minha poesia exatamente
mar não está no mar, está no reflexo que o espaço ilumi- o que ·gostaria de ter ouvido de um crítico: que ela é
nado determina sõbre êle. Como o poeta ... visível. Ê isto exatamente. Eu mesmo sentia e não lem-
brava têrmo tão adequado. O que tento chamar de objeto
~ é a visibilidade do invisível, pois o objeto é só um meio
para eu dizer as minhas coisas as mais fundas, as ne-
Ontem me env~rgonhei de exteriorizar para uma pes- bulosas.
soacomum a maneira exata com que amo atualmente. Na
~.
nossa época ninguém mais admite isso. Mas eu prefiro
me sacrificar hora a hora. Imagino assim o amor que os
Em teatro, sei que não escrevo a peça que o público
religiosos professam a Deus. Dão-se Inteiros e se alimen-
gostaria de receber. Faço aquela que necessito fazer, no,
tam apenas do reflexo dêste amor, pqís da, realidade de
momento em que necessito; isto quer dizer, uma mensagepa
Deus não possuem mais que, a dimensão concedida pela fé.
nem sempre agradável. Mas não acho que a arte exista
para deleitar. Antes, o artista é um resistente a tudo o
~
que tenta esmagar o homem, apagar o homem através da
opressão, da injustiça, da tirania. O artista deve ter uma
E eu conti1?-uoesperando que Elias não tenha morriclo,
missão de alertar, de sacudir, de não deixar a água estag-
ou seja, que o homem tenha uma possibilidade remota de
nar. Ê um revolucionário em potencial.
imortalidade, de preservação. Esta simbologia me permite
integrar~me a tudo o que se esfiapa, com a persistência de
um rochedo ... mas também os rochedos estão sujeito~ a ~
terminar quando terminar o mundo, mas não terminará o
RELIGIOSIDADE -- Viver pela maior glória de Deus,
Minha nova peça chama-se: Quem matou Caímo :É
amá-LÕ e 10uvá~LO em alta voz, para expansão
claro que o morto ê Abel, e que Deus põe na testa de
de sua graça e de sua soberania.
Caim o sinal da preservação; que êle, o assassino, não
será ofendido em sua carne. Logo pressupõe-se que êle
MISTICISMO -- Silêncio, contemplação feroz, ânsia de
não morrerá. Mas na minha peça êle morre por amor.
morte, coração sangrando e sem fôrças de pro-
Por amor mata, e logo após o crime enlouquece, e tem a
nunciar o nome do ser amado: Senhor, eu não
impressão de que Abel passa para êle, em sangue e beleza,
sou digno de que entreís em meu coração ...
que êle começa a ser Abel. A morte dêle será justamente
no momento em que deixar de ser Caírn, em que se tiver
Ainda minha peça: Caim e Abel é a história de uma
perdido na contemplação interior do amado morto. paixão, de como se mata por amor, de como Deus é inexo-
Pala de Caim para o pássaro, no terceiro ato: "EU rável em sua distância. Ergo um Adão completamente
NÃO TE MATO PORQUE NÃO TE AMO, EU NÃO decadente, uma Eva fria, apática, cruel, um Abel bela-
MA T ARIA PARA PERDER". mente belo, tolo em seu narcisismo sem profundidade. E
Caim, o ser superior, o único com uma capacidade imensa
de amor, o que precisava ser trabalhado pela compreensão,
~
'O solitário amigo dos lôbos, o terrível. Resultado: o
Leio Raimundo Lulío por acaso e entendo, em têrrnos motivo do crime não sendo a inveja e sim o ciúme, pois
Caim se apaixona por seu irmão. Não há nada de pró-
de uma certa ciência metafísica, o grande tema do amor,
príamento pecaminoso nisso, é um apaixonamento pela
tratado com uma grandeza que até então não encontrara.
beleza. A tal ponto Caim deseja ser Abel, como Abel,
E fico a pensar, como um religioso pode colocar em têrmos
que, depois do crime, num momento de loucura julqa-se
universais, a estrutura de um amor que parece tão parti-
mesmo transformado em sua vítima.
cular, como êsse da alma com Deus. Pois de nossos
amôres desfrutamos, mesmo quando espiritualmente, através
de um corpo, de uma sensibilidade. O caso do místico é
uma abstração absoluta do corpóreo e 11manseio de inte-
gração no absoluto, de contemplação e gôzo mortais. E 12...12...58 -- Deus é o nó gõrdio do meu teatro. Deus
tão diferente. Mas como o místico consegue exprimir sua é a pedra no calçado. Porque preferi a dúplice condição:
experiência de tal modo que sentimos, todos os leigos, a a) o homem que é parte de Deus, encaminhando-se para
sistemática do amor a nossO alcance, uma vivência contigua :ele inevitàvelmente; b) a parte já evoluida, o anjo de asas
à nossa, apreensível. comungável mesmo no nosso plano igualmente desenvolvidas ao infinito, a do amor e a da
sabedoria.
de mortalidade e ruptura!
Mas já existia Deus antes do homem. Sim, já existia,
Continuo achando que há uma enorme distância entre ) infinito: e ao criar deu alguma coisa de Si, alguma coisa
religiosidade e misticismo:
119
118
que deve voltar a Ele, e voltará. O homem seria pois o
como sempre, tudo acontece sem história e sem problema,
bólído desprendido do corpo ígneo.
apenas eu com o coração em fogo espero a felicidade.
Assim sendo, nem Deus é responsável por nada do
homem, nem interfere. O homem está só, porque é a ~
parte de Deus que deve evoluir até o regresso à fonte.
Não há como apeqar-se a Deus, estamos sós. Sós para Que importa as coisas que passaram? Tudo se perde.
a responsabilidade. .. Mas nos resta o amor, que é o jeito Há, esta consciência de fim, de morte que se aproxima,
de nos encostarmos ao vidro da sua misericórdia para o cada vez mais terrível em mim, e eu não sei se terá valido
banharmos com nossas lágrimas. a pena tanta angústia, tanta urgência de felicidade. Ah,
Fica no ar uma pergunta: porque fomos criados? se: não fôsse o amor. Mas o amor existe, felizmente. Eu
Com que intenção? não tenho ninguém, propriamente, mas tenho a possíbílí-
dade de encontrar no meio da noite, alguém que me
~ encontre e diga "que saudade de ti", como ontem, e me
dê no rosto o beijo que receberia o filho pródigo. Por
Não quero perder o que me Iôr lucrativo. E o que que o amor, para mim, é esta possibilidade de colhêr
não é lucrativo? Tudo é. Até mesmo a subliteratura me pedaços de vida dentro da vida, e justificar o tempo de
revela coisas surpreendentes, e ando à cata do mau-qósto, respiração, de sonho, de andarilho, que é a nossa passa-
que, do bom-qôsto já me cansei, de um mau-qôsto que gem rápida no mundo,
me devolva o pré-sentido da ordem, o primitivo não
explorado. Quero o mau-qôsto da coisa acontecida natu- ~
ralmente, sem o bedelho dos "decoradores", quero os
amarelos de Van Gogh (embora me ponha de joelhos Não sou um fruto artificial, sou exatamente o resul-
diante de EI Greco, o divino), mas quero os berrantes, os . tado de tudo aquilo que construíram ao meu redor: o ódio,
pores-do-sol ensanguentados, o discurso graxoso, quero a paixão, a convenção, o fingimento, o catolicismo, o
tudo o que de grande o mau-qõsto proporciona ao homem, desprêzo. E tudo me fêz muito mal. Mas não me lamento
porque sei que me ficou disso uma riqueza interior ínex-
e tudo o que promete: ê através disso que eu pretendo
gotáve1. E aprendi sozinho a arrancar de mim o que
chegar à minha harmonia com o mundo.
ninguém imaginou. A esta altura digo, como D. H.
Lawrence: "escrevo por meu bem". Sim, se escrevo é
~
para não me perder, porque escrevendo me ponho em
o que importa esquecer pessoas' se um dia deveremos ordem. No fim é a busca da felicidade. .Não se faz
uma obra literária para distrair leitores. Acontece que
esquecer de nós mesmos, nesta hora terrível de uma morte
muitas vêzes se pode atingir a universalidade, a cornuni-
cuja espera é o único labor dos nossos tristes anos? É
cação. Pode-se chegar, através de problemas particulares,
manhã, um galo canta, o mar está lá em frente, majestoso
a uma análise do gênero humano dentro daquela contín-

J20
'121
gência. Então se reproduz em cada leitor aquêle milagroso,
Admira~me da espontaneidade de certas pessoas que:
rompimento da aparência, e a realidade salta emocionanjj-; chegam tão simples, tão querendo confraternizar _ e eu
viva. Porque em verdade o que o artista nos traz é o. me sentindo um pequeno monstro com meu orgulho e meu
mito. O que o artista faz é conciliar momentos por um. egoismo. É estranho que se tenha tamanha disponibilidade
dom todo especial de visionário. de alma, chegando aos gritos, na maior fê. Eu não con-
Em amor gosto que me resistam, constatei isto ontem. sigo. O amor, a amizade, o afeto, para mim dependem
diante de um entusiasmo que, pela facilidade se trans- de uma conquista. E esta conquista começa através da
formou em simples aventura. E uma aventura não deixa. beleza, das múltiplas nuances de beleza de que se pode
raízes, a fraqueza me desinteressa. Sabia que me obser- revestir um corpo ou Uma alma. Isto é, ainda, influência
vava, que esperava um sinal, U):11 gesto, uma intimidade, e- da minha infância solitária, de uma solidão cultivada onde:
não concedi propositadamente, e juro que isto não me: eu criava meus monstros e deuses, meus códigos e leis.
faria mais feliz, por isto não concedi. Se eu amasse seria Procuro existir e subsistir de acôrdo com isso. De manhã,
diferente. .. E atualmente estou amando, um objeto transí- no banho de mar, pensei num epitáfio para mim. Seria
tório mas que hoje existe e eu sei quem é. Porque o' o primeiro poema do meu primeiro livro:
amor em mim é uma energia, como a fé, a esperança.
E depende de um diálogo para culminar em revelação. Ser como a semente
X. é um simples capricho. E me permite a crítica da comida pelas aves antes de fecundar
emoção, logo intercepta a 'entrega luminosa, Mas posso e absllrdamente florescida em canto
dizer que amo, paralelamente a isto, sei onde depositar- depois.
meu silêncio, isto verdadeiramente importa porque aper-
feiçoa. Regularizar êste amor, domesticá-Io, tentar a É tôda a minha destinação de poeta,
nutrida sob os'.
legalização de um sentimento que nasceu para o heroismo, despojos de uma fisionomia humana mal
entendida por
mim mesmo. Mas ainda não sei
a exaltação, isto me parece um crime, uma ofensa, um se conseguirei armar o'
pássaro para que o epitáfio valha.
pecado.

~
~
Fico só em casa. Hoje passou um lindo navio aqui.
Desde que nasci ando apaixonado, e isto me salva ..
em frente à nossa janela, um navio de passageiros, todo
Mas há momentos em que a gente encontra em quem
iluminado, e que me deu uma tremenda melancolia. Estou
canalizar melhor o amor, então é o desastre, o memorável
tranquilamente intranqüilo. Sei que a condição humana é
desastre. Não sou dos que amam Uma só vez e sinto que-
a vida como é, o composto, e não me esquivo a nada
o último amor é sempre o maior, para êle estamos mais
porque tudo me traz um fio para a perfeição: o bem
afinados e cada dia é a nova lição. Sou um enamorado do-
e o mal.
amor, e o amor não cessa por mais céleres que sejam os
~ objetos. t;:le se transfere. Há pouco eu pedi à J ulya que:

122 123
me pintasse uma rosa sôbre o coração. Eu queria ter
o mundo, eu acho que só salva a mim. Mas sendo coisa
um coração que fenecesse e renascesse cada. dois dias.
publícada, ou divulgada, vive um pouco disso, e há os
Julya olhou-me muito maliciosa e disse: "Sobretudo que se solidarizam com o nosso processo de cura Intteríor.
renascesse" Ela tem razão... Ah, a ressurreição da Mas ao me defender, em virtude da minha juventude, da
carne! minha rebeldia, da minha relativa verdade, constato melan-
~ colicamente que há defesa para tudo, mesmo para o êrro.

Recebo carta de O. L. irritado com a minha rebeldia


~
em relação aos conselhos literários que me dita. Eis uma
coisa de que não me curarei nunca, de espernear sempre. Os parentes falam, em carta, da minha infância e eu
Escrevendo, digo as coisas que me vêm à cabeça, e o estremeço, não ouso recompô-Ia. Não tive a tranqüilidade
'que eu preciso chamar em auxílio de mim, nestes mo- e a paz de espírito, a inocência, das crianças em geral.
mentos, é a minha ingênua disponibilidade. Sinto que por Foi tudo como num pesadelo em que eu estava só e
carta não chegaria a um acôrdo com o meu dialoqante, indefeso. Foi sempre esta solidão, esta sensação de desa-
pois é o reverso de mim, um precavido, cuidadoso, um mor, achando que tudo era pecado,· que a minha alma
empirista com paciência e vigilância. Eu me jogo a um estava perdida. (Ah, esta terrível educação católica!).
vivo instinto, sempre munido do que a circunstância me E os recalques, 'e a vergonha de ser. Hoje êstes conceitos
apresenta. E é claro que escrevendo acumulo páginas (de se clarificaram, se equilibraram dentro de mim. Há sempre
que me acusa O. L.) pois do contrário nem saberia que no fim o mistério da morte que sintetiza tudo .
.escrevi. Mas posso distinguir em cada nova página um E o pecado? Haverá pecado? Para mim o pecado
sinal de acréscimo no meu problema de auto-revelação. é tudo aquilo que ofende a natureza humana em si, sobre-
Não tenho a pretensão de dizer que vá revelar 'alguma tudo o que escandaliza os inocentes, o pecado é indução
coisa a alguém, mas a mim mesmo, e fiem acredito em à vergonha por intermédio dos nossos atos, ê o sofrimento
público. "Ê preciso ser entendido por uma minoria" (D. moral que possamos causar com o nosso livre arbítrio.
H. Lawrence.) -- endosso, e não nasci para ser um Jorge Tôdas as ações que escolho para me solucionar, e que só
Amado. Diz O. L., ainda, que as solicitações podem
a mim tocam, por mais perigosas que sejam, não podem
perturbar o trabalho. Mas desde que a solicitação entra
ser pecados. E a Igreja, por seu corpo imediato de dou-
para o trabalho, passa a fazer parte da criação, não deixa trina, empedra tudo -- até um mau pensamento é pecado,
de ser o momentâneo, o circunstancial. para perenízar-se?
e cingem o mau pensamento a um limite tão restrito que
O artista tem obrigação de expressar com maestria. isto
quase todo o pensamento resulta mau.
sim. E para mim esta maestria é sobretudo uma forma, e
uma forma adquirida através de exercício, de muitas a
~
muitas páginas acumuladas ou abolídas. Faço, com con-
fiança absoluta, e com total entrega, o roteiro imprevisível A rosa em meu corpo de opalina está murcha, não sei
que cada vez mais me fixa. O. L. acha que a arte salva o que fazer para conservar uma rosa viva comigo. Tenho-a

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9
no poema, só, mas tão menos inevitável que essas de
pétala e sangue ... seria preciso ter uma alma do tamanho da de um Fernando
Pessoa, .para significar alguma coisa. Não imagino que
~ alquêm cante. a palavra pela palavra. É preciso cantar
sob alguma instigação, para então utilizar a palavra, a
Não consigo ver num religioso além do confessor e melhor e mais justa palavra. Nisto, nesta fusão, está a
eu sempre tive vergonha de contar meus pecados. E não prova de fogo da qual só o artista genuíno sairá ileso.
creio que haja tortura no pecado em si, mas nas relações
que acarreta. No caso de tortura o pecado seria tudo ~
aquilo que nos provoca remorso, e só posso sentir remorso
do que fiz de mal para os outros. Ora, sempre que eu Sonho da última noite: andava de Pôncío a Pílatos,
agir com grandeza, estarei proporcionando aos outros um numa cidade vazia, com dois cãezinhos atrás de mim. E
meio de se engrandecerem. Se não consigo agir e me eram frágeis os animalzinhos, e sempre me parecia que ia
refugio então estarei na iminência do pensamento estéril, písá-Ios. Eu chegava a um determinado lugar onde haveria
da inação, ou do quase pecado. A minha falta de diqní- uma festa, deixava o casaco e gravata. (eu que raramente
dade, por sua vez, implica na indignidade de quem estiver uso gravata) num armário, e os sapatos noutro, no extremo
comigo. Neste caso há o pecado. E a indignidade é a oposto. Sempre com os cachorrinhos atrás de mim. De~
falsidade, a traição, a mesquinhez, nunca a renúncia, o pois, na hora da saída eu apanhei o casaco e a gravata
amor, a fidelidade, o zêlo. Mas muda-se todos os dias, (que era verde) e me esqueci onde havia deixado os
e a alma é aquela matéria instável que vai assimilando sapatos. Mas passei por uma pilha de sapatos, alguns
tôdas as características do comportamento e da moral. Me novos, outros velhos. Pensei em roubar um par que me
interêssa viver. E as vêzes nem me interessa viver. En- servisse. O par que me servia tinha um pé acabado e
tendo cada vez mais os que: se suicidam, embora esteja outro de Couro crú. Quando experimentava vi o vulto do
por uma questão de temor cada vez mais distante de uma dono espiando atrás da porta (não sei como, pois a porta
atitude dessa natureza. era rnacíssa como tôdas as portas que não são de vidro)
e me esquivei disfarçadamente. Não lembro como ter-
~ minou, mas só isso dá material bastante para uma sondagem
do meu bas~fond interior.
Leio e estudo Góngora, e as dificuldades que apontam
nêle só o valorizam. Que conhecedor do idioma! Nós, os ~
poetas, caimos sempre neste sensual entreguismo à línqua-
gem, com ela lidamos, temos : um compromisso com ela. o que primeiro me impulsiona a escrever uma peça
Contudo, é preciso sempre o caminho da objetividade, de teatro é o levantamento de uma paixão, é a música da
'enquanto arde a emoção. E o tratamento linguístico fica palavra, é o movimento da alma. O gênero teatral me
sendo a base da nossa música particular - do contrário encanta porque posso usar a poesia dialogando, poesia
viva, o jôgo, isto com um ritmo que veste a história. O
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criar a vida. Mas pode estrutura r um simulacro," pode
resto não me interessa muito. Sei que a habilidade vira
dispor da harmonia, da matemática, tudo de maneira
e eu a espero sem pressa, sem precipitação. Não entendo relativa. Age mais diretamente e influi com mais ímpeto
que o problema da técnica teatral não esteja intimamente
nas suas falíveis construções, porque está repartido entre
ligado a êste impulso inicial 'e tateante de quem se joga a fuga e a ínteqração, porque criando não dá de si mais
ao gênero buscando alguma coisa ainda indiscernível. Não do que uma frágil imagem, ou seja a imagem e semelhança
entendo que se pretenda aplicar a um pensamento dra- de uma imagem e semelhança. Isto enfraquece a criação
mático, uma técnica aprendida matemàticamente. Só en- enquanto 'física. Lidando com matérias incorruptíveis em,
tendo que, paralelamente, se desenvolvam as duas asas do si mesmas, não reside nelas, ê-Ihes estranho. Lidando com
anjo -- e que êste desenvolvimento se forje sempre do criações mentais pode chegar à arte e ser superado por
impacto entre uma e outra, do auto conhecimento de suas ela, e constituir através dela a ponte para o consenso
verdadeiras urgências, da clarificação temporal da nebulosa universal. para a corrente harmônica das almas. Neste
que implica na gênese inevitável. Espero a gênese, e seus terreno pode repetir a ação divina com rendimento e glória.
metais ecandescências estão presentes desde as primeiras Através dêle o que existiu de imaterial no sôpro de vida,
palavras que estou pondo na bôca de meus personagens. se canaliza, deturpado por sua individualidade, funda-
A intromissão dos montadores de espetáculo, e sua· falsa mentando-se nela para ter voz autônoma. Mas o objeto
ciência do "melhor", ê matéria a ser abolida desde o prí- da ópera bufa vai ser mesmo a criação material do homem,
melro momento. Não há nada, nem o público, que mereça a tentativa de dar vida, Isto é: a farsa da ciência, a
a concessão. Há uma fera de fauces escancaradas que só ironia da desdramatização, da desumanízação, a máquina
se aplacará, e mesmo docilízará. na proporção da minha bocejando, a engenhoca dando ordens.
resistência ao seu augúrio. E assim construo minha furna
de possíveis maravilhas.
~

~ O que espero das criaturas: que não sejam simples-


mente venaís, simplesmente sensuais, simplesmente vivas.
Imagino uma ópera bufa em que o homem vai agir
Mas que amem. Que tenham capacidade de amar na
como Deus, com seus poderes, construindo a máquina (o
solidão, de não esperar nada de volta:-de sofrer e chorar
robô) à sua imagem e semelhança. Os objetos inanimados
pelo amor que, quanto mais impossível mais grandioso.
vão criar vida e ser, independentes da mínima utilidade.
Porque é sublime estar só, com a cruz do seu grande
Será o momento do cérebro eletrônico, em que fundará
amor, num nível que os outros não alcançam, nem mesmo
seu mundo e criará seus dependentes. Aí o deus é real-
a pessoa amada. E ser visto como uma mancha indistinta,
mente o homem que criou a máquina, o princípio e fim está
quando se tem ao lado todos os lucros da alma, todos os
nêle, a origem da vida 'e da morte depende de sua vontade.
pássaros da morte e do ódio, tôdas as plumas de fogo,
Já não é mais o conflito entre Deus e o homem -- é o
todos os leopardos inquietos. Tudo domado e obediente.
exercício do homem-deus entre as suas criações menores.
Isto um dia pode desabar sôbre o mundo, então somos
Sendo o homem uma parte da vida absoluta não pode

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1128
vistos e espantamos as g-entes incautas. Se não estivermos Ah, quem visse esta miraculosa rosa aqui, diante da
mais fisicamente presentes. nem por isso teremos morri do. minha máquina! O que importa mais? Os que morrem,
os que sofrem, os que amam? Mas quem subsiste. e a
~ quem importa as grandes palavras que eu pudesse escre-
ver? Para mim mesmo? Mas se não puder ter confiança
Pela manhã na praia. O mar tinha uma côr índefí-
na humanidade. para que aperfeiçoar-me, em nome de que?
nível. entre o azul prata e verde, resultando em um sujo
Sei que sou parte índissolúvel dela, e confio numa ínte-
brilhante e móvíl. E o sol. E os corpos em liberdade ...
gração absoluta e feliz no Espírito Santo. Sem ter uma
moral determinada e redíqida em têrmos imediatos, sinto-
~
me feliz. confiante. amorável para com o mundo. reconhe-
Frei Roberto insiste em me chamar de Aliocha. Le- cido para com Deus que me criou. e que me espera. e que
lena diz que eu sou Ivan, pois sou um poço de orgulho e me concedeu o direito de ser parte d'Ele.
Aliocha é um anjo. Poderia ser um anjo orgulhoso? De Quem pudesse imaginar a beleza dês se crepúsculo ...
qualquer forma não ouso me identificar a nenhuma noção Uma beleza que sempre se renova, como se tudo come-
de anqelísmo, que significa ter. em plenitude. as asas do çasse cada dia. E começa mesmo. acontece em côr e
amor e da sabedoria. Eu estou tão longe disso ... formas. sem maior utilidade que esta. de ser belo.

Quanto mais me entranho neste terreno das artes


23..12..58 - (Ainda sõbre Quem matou Caím ... ) Frei plásticas mais me convenço do nada que importa a figu~
Roberto estranha o tratamento que ponho na bôca de ração e do muito que importa a forma pela qual tôda a
Adão em relação a Deus, chamando-O de Velho. Porque figuração (até mesmo uma abstração) é representada. Às
não haveria de chamar? Pois era com o pai que lidava. vêzes um vestido amarelo de um personagem existe para
e um pai sem distância, próximo. quase um sócio na equilibrar com a mancha vermelha numa nuvem. e cada
posse do mundo. Não como nós que distamos milhares de quadro obedece a uma estrutura geométrica incrivelmente
séculos da criação e que fundamos uma religião para servir necessária. Como é preciso estudar. como é preciso atingir
de canal comunicante. Adão não tinha necessidade. E o subterrâneo. o instrumento. a perícía!
não era lógico que se revoltasse? Pois por uma simples
desobediência lhe privara de tanto... E na sua revolta. ~
não lhe cabia harmonizar a proximidade com o desrespeito?
Ou seria o homem tão perfeito que proporcionalmente Esta capacidade de olhar, como se acentua na gente
ultrapassasse em resignação a medida de Deus em míse- cada dia. E cresce paralelamente à capacidade de entrar
ricôrdía ... em si. g como se estivéssemos tão cheios de nós, tão
~ repletos, que víssemos pela primeira vez. Quem sabe não

i3ó 131
é isso? Um desvelamento da visão através do conheci- mas em linhas gerais acho que todos os caminhos con-
mento das nossas reentrâncías. Eu fico diàriamente diante duzem à felicidade. mesmo o do pecado. e que ninguém
da janela, para o mar. vejo as tardes que nunca são isuais, escapa ao aperfeiçoamento. É a compensação para o sacri-
as côres, a amplidão, e deixo meu pensamento livre. me fício que a virtude impõe à nossa carne tão fraca.
distancio. penso na maravilha. que é viver e no que me É isto, o temor de Deus, que o desorienta, pois se o.
espera depois... Sei que será maior porque a alma é senhor tivesse mais confiança na sua salvação, não vaci-
a parte maior de mim e merece uma dimensão proporcional. laria. Por outro lado estaria mais apto à bondade, ao,
A alma de tôda a gente é o que me fascina. a possíbilí- bem. pois encararia seu semelhante como o único preju-
dade de eterno. de perenidade. de vôo. Mas não perco a dicado ou beneficiado com seus atos. Frei R., Faltam-me
oportunidade de perceber as coisas da minha vida. com as os têrmos, quisera que esta carta levasse um eflúvío de
minhas palavras. a minha poesia é isso e eu já cantei as amor de caridade... Vê? Eu posso parecer muito mais.
berin j elas. orgulhoso do que o senhor, pois lhe falo em caridade. e
o senhor se nega o direito de me edífícar. Confio na
sua nobreza, êste desespêro que o assedia é sinal disso.
Deve ser triste ter uma alma organizada, servil - Deus.
não gostaria tanto. Mas vencer seu próprio vulcão, ser
25,., 12,.,58 - Carta a Frei R. o que salta sõbre o fogo e se aninha no coração do Pai,
ainda em pânico pelo perigo passado, ainda chamuscado.
"É claro que a sua amizade me faz um bem enorme,
isto é a glória. Note Frei R.. não sou literalmente um.
como faria qualquer amizade. Suas cartas estabelecem
católico, sou cristão. Fui criado no catolicismo não aceí-
para mim aquela antiga relação tão necessária entre os
tando in totum (gostaria de aceitar) tõda a lei da Igreja.
homens. a compreensão. a sondagem mútua. a auditoria.
Mas sou cristão até a medula, tenho uma fé absoluta na
Realmente. ouço-o de coração pleno. despido. e não espero
existência de Deus e na imortalidade da alma. e que nada
divindade de sua parte. mas nobreza sempre. nobreza
se perde, nem a dor. nem o pecado, e tudo concorre para
mesmo na ímínêncía do pecado. nobreza no sentido de
a maior glória da Criação. ( ... ) Li num livro. recente-
viver seu momento de amargura. de não aceitar a tôrre
mente, que a "inteligência conduz ao eqoísmo". Nada
de marfim onde o senhor seria mais um ínvertebrado, não
mais certo. E a inteligência é o jeito frio de vencer, de:
um apóstolo.
deliberar, de selecionar. Nada como sobreviver entre
Mas ccmo não encarar com naturalidade a vida. lágrimas, sucumbindo quase, e trazer no ser as marcas do.
frei R.? O senhor teme o castigo divino. mas como temer combate ... é preciso lutar com o Anjo".
o castigo de um pai infinitamente misericordioso? Digo
ao senhor. nem acredito no inferno. pois se eu não conde- .~

naria uma pessoa ao castigo eterno. como é que Deus.


infinitamente mais perfeito do que eu. poderia Iazê-lo? Hoje temos um mar de primeiro dia aqui da janela.
Sei que êste assunto é muito mais sutil do que parece. Um mar selvagem. côr de chumbo, denso. Um mar de:

132 133
petróleo ainda não depurado, mar· de primeiras ondas, o amor está presente nas asas das abelhas
como o ouro no sol.
com uma desorganização em seu reino, um caos particular.
a tarde fecha as mãos onde Deus sorridente consulta o
Mesmo o crepúsculo tem a magnificência e o abandono
de uma coisa arrancada do Nada. E os nossos olhos verbo.
determinam esta existência. Digo isso porque vi e me Quem escuta? Quem escuta?
empolguei, porque meu ôlho lançou o primeiro anzol e a
pesca milagrosa se processou em meu espírito sem tempo.

~
31,,12,,58 - Lembro-me, na minha remota infância (entre
Recebo de um japonês amigo meu um presente de o meu hoje e a minha infância ergue-se um muro que
Natal: um minúsculo leque de seda pintado a mão, tão transponho a custo, como quem não quer ver com receio
do meu agrado, e tão ordenado pela relação cordial e do que terá que delatar), uma vez apareci em casa com
gentil, extremamente delicada, que êle, oríentalmente, man- um terço dentro do bôlso, um terço que não era meu.
tém conosco. Não haveria nada mais adequado para Vinha da casa de um colega de aula, mais precisamente
corporifícar esta homenagem que êle pretendeu. E realçou de uma festa de aniversário, e roubara aquêle terço da-
uma simples data com uma emoção,em mim, que não se quela casa. Como? Até hoje não sei, não percebi,
.apagará. O lequezínho está na parede. Mas noto um coloquei no bõlso e saí. Com a mesma naturalidade com
vulcão entre nuvens côr-de-rosa que podem ser também que cometi o ato me expus à minha família que logo
ramos de uma árvore que começa fora do leque. Ê a encarou o acontecido como um grande êrro e me impôs a
presença do terrível que o Oriente esconde atrás das humilhação de devolver o terço. Eu não era, certamente,
cortinas de bambú, dos movimentos de dança, dos aromas, um delinqüente. Mas como explicar ao outro lado, o dos
dos jogos florais. prejudicados, que não sabia como parara no bôlso aquêle
terço? Sujeíteí-me à humilhação, ninguém sabia até que
~
ponto eu era inocente, eu mesmo não sabia. Hoje me
Recebo um cartão de Natal. um cartão bonito como a pergunto se não era aquêle ato uma ressonância lógica da
.eternídade. Já envelheceu por tõda a minha vida e não minha fase mística em plena evolução, aquela paixão pela
.exíste outro sôbre a face da terra. Ah, morrer, como não santidade, aquêle amor pela Santíssima Virgem Maria,
há de ser continuar! Não creio, em nome do trio de aquela vergonha humana do pecado, não pelo temor do
Brahms que acabo de escutar, em nome do lequezinho castigo eterno, mas pelo que me apartava da harmonia do
japonês na minha parede, em nome dos "doutrinadores" mundo. O pecado como uma nota díssonante, uma coisa
.dêste cartão, sob os pinheiros, à margem do rio de Nosso odiosa que eu não ousaria praticar diante das pessoas
.Senhor, não creio que termine aqui, e a minha alma é que me inspiravam respeito. O meu fascínio pelos terços
-uma festa! 'era evidente. Gostava mesmo de rezar, desfiando nos
dedos bolinhas simbólicas, sem muita atenção nas palavras,
~

134 135
mas com um grande sentido no objeto que as comandava.
pecado Iõra a mola impulsora daquela agressão. E ali
Sobretudo na cruz que cintilava à luz das velas na Igreja
estava a vítima imortal, renovando-se cada ano para o
vazia. Gostava de rezar na Igreja vazia, muitas vêzes, meu remorso. Eu chegava aterrorizado até o esquífe,
no fim da tarde, o último sol entrando pelos vitrais, as
levado pela mão de minha madrasta... o aparato era
côres ostensivas refletindo-se na nave sóbria, nas arcadas
deslumbrante para a minha indefesa sensibilidade. Os
serenas. Alguém geralmente tocava uma melodia índíscer- panos roxos, os bordados a ouro, os círios e veludos
nível no órgão, e eu respirava fundo, aquilo tudo me negros. .. lembro que o corpo de Cristo era coberto de
comunicava uma paz que lá fora era impraticável. Eu uma planta de galhos finos amarelados, com frutinhas ver-
estava só como nunca, mas encontrava nesta etapa da melhas como cerejas, e raras Iôlhas. Mas o que mais me
solidão, um perfeito arrimo. As imagens de Jesus, Maria impressionava era aquela face de morto, tão serena, e
e demais santos, adquiriam um sentido muito maior para aquêle corpo entregue à inércia, aquêle coração parado.
mim, eu conseguia apreender o seu significado, seu silêncio E o meu beijo era furtivo, como se de repente o morto
era solidário. Nada me parecia falso porque eu queria Iôsse colocar a mão em meu ombro e me convidar a
integrar aquêle corpo místico. . Hoje estou afastado como morrer com êle. No fundo eu tinha mêdo de dar teste-
nunca, mas o meu coração não secou em relação a Deus, munho da minha necessidade de solidão no amor, e que
embora já não tenha paciência para me recolher a um êste testemu-nho me Iôsse exigido através dos meios mais
templo. Tenho a impressão de que já consigo manter, no familiares ao meu 'espírito impreciso, o do convívio dos
meio dos homens, aquêle equilíbrio místico que só o retiro santos. E como alta expressão dêste ansiado convívio,
me proporcionava. Já não roubo inconscientemente um nada mais fatal do que aquêle com o Santo dos santos, no
têrço, nem mais rezo um têrço. Mas o meu desejo é o
estado de morte que tanto me comprometia. me não me
de repousar no lado direito do Mestre, e ser chamado filho exigiu aquela prova de amor, preferiu prolongar a minha
dileto, coisa que o meu estado de alma, o meu pecado, flagelação por êste tempo da minha vida, com o senti-
quase impossibilita. Mas não serei como Judas que duvidou mento guarnecido pela triste memória do seu sacrifício.
do amor achando-se, como era, o menos bom, o menos
belo de todos os que se chegavam à mesa. Eu sei que
aquêle olhar chegará até mim, e tudo pode acontecer
através dêste consentimento.

A minha mais viva impressão em relação à morte, até


hoje, me vem da obrigatoriedade de beijar a imagem de
Cristo descido da cruz, Cristo morto e martirizado, na
Semana Santa. Era como beijar uma vítima de mim
mesmo, eu aceitava plenamente a idéia de que o meu

136 J37
'*
:e:STE LIVRO FOI COMPOSTO E IMPRESSO
NAS OFICINAS DA EMPMSA GRAFICA DA
"REVISTA DOS TRIBUNAIS" S. A., A RUA
CONDE DE SARZEDAS, 318, SÃO PAULO.
PARA

EDIÇÕES G.R.D.
EM 1962'.

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