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Escrito a partir de 1863, O pintor da vida moderna foi construído em três fases.

A primeira
em Le Figaro, de 26 de novembro, a segunda em 29 do mesmo mês e, mais tarde,
integrariam a coletânea de escritos de Baudelaire, editatado em l868, sob o título de L’Art
Romantique. A noção de modernidade para o poeta estaria associada à missão
contemporânea da arte. Estabelecendo uma nova idéia de modernidade, a tentativa de
teorização da arte inspirou diversos comentários posteriores.
Na miscelânea de sua arte poética com a projeção teórico-científica característica do
ensaio, Baudelaire intenta construir a imagem do pintor da vida moderna, mostrando
espaços nos quais atividades e fatos aparentemente corriqueiros como a moda, as viaturas,
a mulher e outros transformam-se em objetos da arte atemporal.
Sua construção critica aqueles que destinam um valor exacerbado às grandes obras de arte
já reconhecidas, em detrimento da obra considerada de segunda ordem, quando nesta
pode encontrar-se a referência a um recorte importante da história da arte, ao fato
corriqueiro, ao registro de um detalhe significativo. O amor ao clássico e à beleza ideal não
podem aliar-se ao desprezo pela beleza particular, circunstancial, marcada pelos traços que
distinguem os costumes.
O poeta faz referência à pessoa de um artista que, idealizado pela visão do poeta, traça
com velocidade e, em quantidade, desenhos e esboços de objetos os mais diversos
possíveis. Trata-se do Sr. G., mais propriamente, Constantin Guys, que viveu entre 1805 e
1892, conhecido por sua produção de desenhos para gravura, pintor autodidata, mas
também um repórter, um profundo conhecedor do mundo e da moda, observador e sensível
aos sinais de seu tempo, atento às mudanças e à originalidade, considerado artista por sua
capacidade de experimentar o mundo e partilhá-lo com a humanidade. Para esta criatura , o
criador atribui o codinome de homem do mundo, opondo-se de certa forma ao status
convencional de artista.
Segundo Baudelaire, o homem do mundo é aquele que está atento, com olhos de águia
sempre observando as pequenas mudanças, os detalhes, as coisas que parecem
insignificantes. São esses pequenos detalhes que o pintor da modernidade seqüestra da
multidão e empenha-se em representar na mobilidade de seus elementos.
Expondo detalhadamente o comportamento diferenciado do Sr. G. na pesquisa da
modernidade, estabelece a representação do transitório, do fugitivo, como alvo a ser
atingido e atribui a este o valor de metade da arte, pois a outra metade reside no eterno, no
imutável.
A busca de modelos no passado para representar o tempo presente é visto pelo poeta
como uma forma ou fórmula que produz tão-somente o falso, o ambíguo, o obscuro. Sugere
que o bom registro deve partir de incontáveis desenhos produzidos a partir da imaginação,
do simbólico mnemônico e não daquele surgido a partir de um modelo vivo. Sua concepção
teórica rompe com a prática do modelo vivo, do decalque da realidade, transformada pela
técnica de registro. Um novo conceito de criação é definido.
O Sr. G., detentor de uma memória que veicula imagens com um furor que não permite a
esta que escape de seu traço rápido antes que seja representada, procura utilizar uma
técnica simples, uma vez que a simplicidade da técnica pode produzir efeitos
surpreendentes.
O poeta reconhece que os conhecimentos adquiridos pelo estudo da pintura podem fazer
crescer, mas não têm o poder de criar o original, o inédito.
O ensaio especifica em detalhes os passos do artista ideal que participa dos fatos do
mundo para melhor reconhecê-los e reinventá-los em suas imagens. Apaixonado pela
perspectiva, pela luz, pelo espaço, suas obras contém os mais diferentes objetos como reis,
rainhas, festas de gala, serviçais, soldados, cortesãs, os espaços que os circundam e/ou os
detalhes de suas vidas, desde o batom, o pó-de-arroz, a arma, os veículos, a dobra do
tecido, a vestimenta, a forma do pé, enfatizando a graça profissional, ou o detalhe
diferenciado. Criaturas em vias de extinção, os dandies são objetos de arte intemporal e
figuram como objeto do artista da modernidade, assim como a mulher, elemento de
representação em todos os tempos. A aparência e o vestuário das personagens são peças
de fusão no plano da arte.
Discute a função da filosofia e da religião que, para Baudelaire conduzem o homem à
bondade, enquanto a natureza humana o induz a atrocidades. Considera a virtude como
artifício da moral, e o bem como produto de uma arte. A beleza particular das obras do
pintor ideal esconde-se na fecundidade moral subjacente a seu trabalho.
Teoriza a moda como um constante esforço em direção ao belo, portanto sempre
encantadora, será objeto eterno na representação da modernidade. Complemento da
eternidade do belo, a maquilagem surge como tentativa de ultrapassar a Natureza,
corrigindo as falhas que porventura hajam nesta. Há, então, que evidenciá-la , registrando
na obra sua presença, destacando seus efeitos. O olhar perspicaz do artista idealizado pelo
poeta surpreende o mundo moderno, registrando os artificialismos, o superficial, devastando
a vida do ricos: suas manias, seus excessos; e, ainda, toda evolução tecnológica: o invento,
a criação, o efeito original.
O protótipo ideal do pintor da vida moderna iria encontrar seus iguais: algumas décadas
mais tarde, Vincent Van Gogh buscaria inspiração para seus trabalhos em gravuras
japonesas, utilizando-se das pinceladas rápidas em suas obras imortais. Um século após a
publicação deste ensaio, alguns artistas pré-modernistas produziriam em matéria colorida
alguns efeitos teorizados nesse trabalho. Ou, ainda, na arte contemporânea do século XX
através dos designers, da publicidade, do desenho, da moda, entre outras formas de
manifestação.
O pintor da vida moderna teoriza poeticamente uma visão sobre o objeto da arte, sua
possível técnica e suas condições de produção. A arte para Baudelaire seria uma constante
busca do novo em todas as esferas da vida econômica, política, social, cultural,
descobrindo-a ou inventando-a, à forma dos materiais da modernidade daquele contexto ou
de outros quaisquer. Essa busca eterna pelo fugitivo, pelo original, podemos observar em
alguns de seus poemas. À modernidade associa-se sempre o ousado, o inovador, o
original, aquilo que dá o tom de transformação de um conceito anterior.
Baudelaire desejava fixar o irrepetível da vida que, seqüestrado num determinado momento
e ponto, transforma-se em elemento singular, intemporal. Sua teoria configura a obra de
arte com forma e conteúdo, enquanto a primeira representa o corpo, o segundo remete à
alma da obra, à qual se relaciona a questão do intemporal.
Em seu ensaio teórico, define o conceito de modernidade na arte, conquanto produz uma.
Para esse fim, utiliza recursos poéticos tão originais quanto os objetos que a modernidade
há que registrar para que se faça.
A modernidade é sempre o marco que parece estar à frente de cada época. Em cada fase
da História das Civilizações houve sempre uma modernidade. A de Baudelaire se explicita
tanto teoricamente quanto na elaboração deste ensaio que traz, ainda hoje, a marca do que
consideramos como moderno.

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