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Cervantes e Unamuno escreveram (eram espa-

nhóis) sobre Portugal. Mas o Marquês de Sade


também. Portugal foi tema para a épica de Lord
Byron e a lírica de Cendrars. Thomas Mann viu à
sua maneira a paisagem deste último país da
Europa que Simone de Beauvoir também retrataria
clara e sucintamente.
Até Chateaubriand escreveu sobre Portugal.
Eas voltas ao mundo da literatura de Verne passam
irresistivelmente por Portugal.
Um país de fome e/ou de monumentos? uma
Lisboa pedinte e/ou de seculares procissões? um
português piolhoso e/ou cantor do fado? um clima
propício às pulgas e/ou aos banhos de mar? Oque
é que mais ressalta deste retrato de Portugal visto
de fora?
Eis uma boa razão para lermos estes escritores
estrangeiros e lhes agradecermos o terem escrito
o que nós não temos vontade, capacidade ou
licença para vermos. Ou temos? É ler! Essa é a
melhor forma de sermos dignos da atenção que
alguns génios da humanidade se deram ao trabalho
de nos prestar, sem disso terem necessidade.
Ese alguns destes textos são antigos nem assim
são velhos: Lisboa continuará a não ter a digni-
dade de uma capital - como dizia Beckford em
1787? E, como dizia Lord Byron, Lisboa não contém
mais que ruelas desagradáveis e habitantes mais
desagradáveis ainda? Unamuno teria ainda hoje
mil razões para desabafar: "Pobre Portugal!"?

Portugal, "onde um guindaste parece um canhão


de longo alcance" (Cendrars).
".. .onde nem uma esmola se pode pedir em voz
alta" (Reynaldo Arenas) .
" ... uma nojice! - Porquê? - Por tudo!" (Simm1e
de Beauvoir).
Parciais ou imparciais, distanciadas ou não no
tempo, estas e outras opiniões destes escritores
aí ficam. É com eles e com os senhores leitores.
ed. afrodite
estrela trepa trepa pelo vento fagueiro I e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.
alexandre o'neill - "o país relativo"
nun'álvares
AUTORES DE APARTES

alberto candeias
andré bay georg christoph lichtenberg
andré maurois hans christian andersen
aquilino ribeiro henry miller
armand guibert jean-pierre giraudoux
boyd alexander josé rodrigues miguéis
byron link
domingos monteiro robert desnos
casanova roger vailland
chamfort simone de beauvoir
charles baudelaire william saroyan
donatien-alphonse-françois de sade victor-henry debidour
erich maria remarque vitorino nemésio
folclore de trinidad volta ire

Vlç: L 'C ']·-J O ~S


lQ9.. \. () ~ ?. Q)j t-
.

FICHA TÉCNICA:
organização, notas e tradução de
aníbal fernandes
capa, fotografia e arranjo gráfico de abertura de
jorge costa martins
plano geral do volume de
edições afrodite
todos os direitos reservados a fernando ribeiro
de mello I edições afrodite

IE F I
Pl IE I
FERNANDO RIBEIRO DE MELLO · EDIÇÕES AFRODITE
cardeal cerejeira

ÍNDICE

miguel de cervantes saavedra. 17 jules supervielle . . . . . . . 265

voltaire . . . . . . . . . 29 blaise cendrars . 269

donathien-:-alphonse-françois de paul morand .. 273


sa de . . . . . 37
william beckford . . . . 71 philippe soupault . 319
françois de chateaubriand 107 antoine de saint-exupéry . 331
lord byron . . . . . 115 vercors . . . . . . . 337

jules verne . 129 léopold sedar senghor . 385

miguel de unamuno 155 simone de beauvoir . . 389

thomas mann . 181 andré pieyre de mandiargues . 395

valéry larbaud 209 thomas owen . . 399

jean giraudoux . 237 reynaldo arenas. 419


Portugal é um hábito menor na inspiração dos escritores vários do cubano Arenas, e a par com eles toda a descida
de Fora, só de onde em onde faz uma presença nessas possível nas sendas do realismo até às meditações "suicidas"
letras de circuito vasto, ainda que esforçado as mais das de Unamuno, por exemplo, à magoada reflexão de Saint-
vezes num excesso de folclores, cobiçado à desmedida no sol Exupéry, ao dedo hirto de Simone de Beauvoir.
ou embrulhado nos chavões (braços e verdes) da paisagem. Significativas ausências denunciam-se várias, duas delas
E aceitando-se invulgar no plano de tais amenidades, mais f~rça~as em condicionalismos do momento: são estas Henry
raro se fará quando consente- aos mesmos de Fora - essa Fzeldmg (autor de Tom Jones), que no fim da vida encalhou
visão capaz de violar a malha para demorar (menos encan- em Lisboa fiado nos bons tratos do clima, mas que ali
tada) e se entreter (mais preocupada) no incómodo de mesmo e depressa se finou, asmático, não sem compor um
outras evidências - esforço de um passo acertado com a derradeiro Journal of a Voyage to Lisbon, cuja edição
perspectiva dos que se firmaram Dentro. última em inglês apuramos de 1913 (I); Hans Christian
Surgindo assim (coisa rara e menor hábito), Portugal Andersen, o dinamarquês moralista dos contos da infância
justificava e tornava apetecivel a Antologia que acabou em , que de passeio apareceu no país em 1866 e deixou escrita
decidir-se pescada aqui e além pelos domínios balizados: uma Visita a Portugal onde se ultramaravilha com os
da Literatura, só esta capaz de afugentar-lhe marginalidades pitorescos, na Serra da Arrábida. Outra ausência é de
susceptíveis de engrossar, mas desvitalizar, a colecção. autores do Brasil, excluídos pela óptica a que os maiores
E depois disto, já de reino assente na tal Literatura, cuidou nomes não lograram ainda furtar-se e os arruma próximo
ainda inevitável, como critério, o mais aberto em autores dos escritores de Dentro: tradição com bastante de comum,
e tons - que apenas dele poderia chegar ao somatório de ideias bebidas em idênticos patronos, enfileirados em suas
facetas com utilidade reconhecida no tema. Desta sorte é estantes os mesmos clássicos da língua portuguesa. (A este
que haveria a Antologia de aceitar a visão transposta e Brasil moderno terá de pedir-se o primeiro texto que,
oblíqua do Marquês de Sade para uma Lisboa de folhetim, fazendo mira em Portugal, consiga manter-se suficientemente
o fantasismo de Giraudoux em Adorable Clio, a Évora- de Fora.)
-suspense de Thomas Owen, o delírio fundido em tempos A talho de foice outro reparo fazemos, agora virado
à maioria de autores franceses, o que não surge por opção de Josette Bruce: OSS 117 aime les Portugaises, Maldone
ou tendência selectíva, antes porque assim quer a qualidade en Lisbonne ...).
l{terária dos que algum dia escolheram os temas de Portugal. Outra advertência cuidamos a propósito fazer, _c( de que
E verdade sem refutação, essa de que muito mais vezes aos textos seleccionados não foram escamoteadas nem
para nós olharam os grandes escritores em França (fosse contornadas inexactidões e faltas, melhor parecendo assumi-
~I alguma simpatia ou visão cosmopolita), embora camuflados -las no sortilégio que não raras vezes conseguem emanar.
os textos por dobras íntimas na maior parte das obras. Que mal nos virá, em boa verdade, de uma capela de ossos
Assim foi, numa livraria de Paris às tantas por nós devas- no Funchal que Jules Verne registou e da qual não achamos
sada na· busca "dos contos de Paul Morand em cenário quem saiba (desde o minucioso T'Serstevens de Le Périple
lusitano", que um qualquer francês nos garantiu que não, des Iles, à memória de uns quantos que por lá viveram);-que
não senhor, desconhecia ou nem mesmo existiam "cenas mal dos touros de morte de Thomas Mann num éspectáculo
portuguesas " na Literatura do seu país - exceptuados o real do Campo Pequeno; que mal das confusÕeS' toponímicas,
Candide, lembrava desde já, e o Les Amants du Tage, dos nomes ... ?
sucesso relativo e esquecido de anos atrás. Pois levava-se ,Luanda, Agosto de 1972
o francês pela surdina em que se espalha Portugal, aqui e
além, nas Letras; sorte que lhe tem cabido de se manter ( 1) Minorando a falta, deixamos transcrita, todavia, a mais geral das impressões
que no livro o autor regista sobre Lisboa: "Se transportássemos alguém desde Palmira
alheio aos buliçosos sucessos da venda (não chegam a signi- a Lisboa, sem que lhe fosse consentido ver outra cidade, que magnificente haveira de
ficar o caso Remarque e a sua Noite de Lisboa, Os Man- parecer-lhe aquela omro orquitectua antiga, e em que degradqção concluiria terem caído
artes e ciências no período de tempo que separa as duas cidades!... Lisboa é a mais
darins - Goncourt de 54, uma outra estação em que chegou sórdida, se bem que populosa, cidade do mundo."
a andar implícito no cartaz de um título sem brilho demasiado
entre os favores do público - Le Divertissement Portugais,
de Suzanne Li/ar-, e mais recentemente o lugar que tomou NOTA: As palavras destacadas em itálico e seguidas de asterisco (*)
nas estantes da rua, à custa (fácil) de um agente secreto são em português nos textos originais.
MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA
(1547-1616)

O príme!ro dos grandes combates da iJnterkJridade


a lx:Uxeza pro.w.i;ca da vida exterkJr - GEORG
C01&tra
LUKAOB.

Talvez nascido em Alcala de Henares. Pelos


anos da axJ;olescência terça armas na Itália,
onde uma arcabuzada inutilú<:a a s-ua mão es-
querda. De regresso à Bspanha é capturado
pelos Turcos e feito p?'isioneiro, juntatmente
com seu irmão Rodrig,u ez. De volta ao poo
natal desposa Catalina Salazar, inioia a ca:r-
reira Ute?·á?-ia a escrever peças destirw.das à
oompanhia de Ga.spatr de Porras. Alguma.s
das s-uas posições valem-lhe a excomunhão ckJ
Catpítu,lo de Sevilha. Es01·eve o Don Quiehote
(com crítica desfavcrrável de Lope de Vega),
as Novelas Ex-emplares, diversas oomédlias e
entreactos, Os Trarba:lhos de Persiles- e Sigis-
munda, cumpre detenções várias par dívidas
não liquidadas. De há mtwito passa pela maior
gló1"ia nas letra.s do seu país.

Edições Afrodi,te - DE FO RA PA RA DEN T RO


2
I

<:Miguel de Cervantes Saavedra

19

~
Desta sorte navegaram deza·s sete dias, em constante
~
tranquilida:de e sossego, e sem que fosse necessário
' ·erguer, baixar ou tornar frouxas as velas, sendo isto
( ~· para que1m navega .t ão grande felicidade que, não fora
o medo de possívei•s borrascas, inadmissível seria achar
~
,( f gosto que trul igua~asse. Ao cabo destes ou pouco mais
·dias, pelo amrunhecer, disse um grumete que da maior

";I ~ gávea ia descortinando terra::


-Alvíssaras, senhores; alví-ssaras peço e alvíssaras
. mereço! Terra, terra! Melhor diria: céu, céu!, pois sem
t dúvida nos en.contra!mos por altura:s da famosa Lishoa.
Notíci!lis essas que arrancaram ternas e rulegres lágri-
l
r:l ma·s aos ·dlho·s de todos, em especirul Ricla, os dois An-
tónios e sua :Dilha Constanza, porque lhes parecia haverem
l. chegado à terra da promi's·s ão que tanto desejavam.
António deitou os braços ao pescoço de Constanza,
~ ·dizendo:
- Saberás wgora; como hás-de servir a Deus de
fo!rma ma:is atenta m!lis nã:o diferente da que eu te disse,
1 minha selvag.em; verás agora os ricos templos em que
é ador~do; verás ta1mbém as cerimónias católicas em que
~ I
vivemos, e hás-de reparrur .como se encontra aqui afi-
.,
o nada a caridade cristã. Verás nesta cidade como da
,enfermidade são verdugos muitos hospitais que a des-
troem e quem neles perde a vida ganha a do Céu envolto
t na eficácia: de indulgências infinitas; o amor e a hones-
tidade andam aqui de mãos dad!lis e passeiam juntos ;
t\ não consente a cortesia que a arrogânciru apare·ça, e não
deixa a bravura: que dela se aJPrOXime a coba~rdia. Todos
)
.,.
';Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
~

~il

.l
Miguel de Cervantes Saavedra• 'Miguel de C&rvantes Saavedra

20 21
os seus habitantes são agradáveis, corteses, liberais e · a ~orna. Periandro contentou os marinheiros, que mag-
rupaJxonados, por que discretos. :m a mai'O'f cidade da. ~~f'lcament.e os hruvi-aro tratado, com 0 ouro que Ricla
E uropa, e a de mais desenvolvido· comércio; nela se tirara da ilha sel•vagem, ' tran sformado já desde a Ilha:
descarregam a~ riquezas do Oriente e a partir dela se · ·de Polica.I'Ipo, em moeda cOITente; os marinheiros acha-
di:vid'em pe1o Uni·v erso ; não só o porto é capaz de ram por bem .i>f 'brocá-lo a Lisbo:a; por mercado:r:i;as várias.
albergar navios possíveis de reduzi.r a um número, como · :O. castelão de Sangian transmitiu ao governador de
verdadeiras selvas deles, em sendo necessário; causa Lisboa, ? essa a;ltura o arcebispo de Braga por ausênoia
ad.mll'ação e encanto a formosura das mulheres; a g.alan- . ·de el-re1, ausente da cidade, a notícia da chegada dos
ter;ia dos homens é .d e pasmar, como eles próprios dizem; estrangeirO<s e de como era sem par a beleza de AUTisteia
finalmente, é OOm.bém esta a terra que ao santo céu e_ tam~én_: de Constanza, à qual o trajo de selvage~
oferta copiosissimo tributo. nao so nao encobria, como realçava; chegou ao ponto
-Não digas mruis - retorquiu Periam.dro nesta ·de exagerar a seduç·ã o de P.eriandro e, juntamente com
I pausa..- Deixa ao·s nossos. olohos alguma coisa, António, •ela, a descrição de todos os que não bárbaros mas
;J
pois não podem os elogies dizer tudo: algo haverá que -cortesãos pareciam.
deixar à vista para que através dela possamos outra vez O navio chegou às margens da cidade e 0 desem-
L a:dmiratr e. dessa forma, aumentando consi'deràvelmente barque fez-se em Belém porque:, enarnoll".ada e de~ota.
o gosto, venham a ser maiores os seus extremos. d~. f~ma d~ mosteiro santo, quis Auri'stela primeiro
Contentissima estava Auristela aJO ver que se apro- v:Isltá-lo e, hvre e sem esto'I:"Vo, nele adorar o verdadeiro
ximava a hora de pôr o pé em terra firme, sem andar Deus, dispens·amdo-se ali: das cerjmónias complicadas
de porto .em porto e de ~lha em ilha sujeita à inconstância ·da sua terra. À beira-rio apa:rece:ra muita gente. a con-
do mar e à vontade volúvel dos ventos, mai•s ainda ·temp1ar os estxangeiros desembruroa.dos em Belém; acor-
quando soube que de rali a Roma .p odia a:ndar de pé reram .todos a ~er tal novidade que, atrás de ·si, sempre
enxuto não .t endo que embu.car de novo, se W não qui- ·art3Jsta os deseJOs e os olhos. E já de Be~ém saía: a nova
sesse. Meio-dia ha.via de ser quando chegaram a. Sangia.n -escolita: da nova ·f ormosura: Ricla, medianamente bela
para: o registo do navio, e o castelão do castelo e mais porém ·v estida de fo:rma. bem selvagem ; Consta.nza for:
, . '
os que em sua companhia entra<ram no barco se adlni- mosissima e envolta em peles; António-pa~, nu de braços
r M"am com a formosura de Auristela a: galhardia: de e pernas, o resto do CO'I'pO envolto em peles de lobo·
Peria.ndro1 o t ra.jo bárbatro' dos dois Antónios, o bom · António-filho de idêntica forma mas levando 0 ar~
aJSpecto de Ricla e a beleza a~gradável de Constanza.. na mão e aljava de setas ao ombro; Periandro, coro
Ficaram a swber que ~am estra:ngeiros em peregrinação ·c asaco de veludo verde e calções à marinheiro, do mesmo

Edições Afr od ·J t e - DE F O RA P ARA D ENTRO • -Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Miguel de Cervames Saavedra:• Miguel de Cervarrtes Saavedra

22 23
tecido, na: cabeça um estreito -e pontiagudo barrerte que fazendo, dois dli.Jas ma;is tarde se encontraram peregrina-
não conseguia ocultar os runéis de ouro que o.s seus . mente peregrinos. Aconteceu, porém, que aO' saírem um
cabelos formavam; no vestido, Auristela transportava dia de cas:a, um homem português ·s e rojou aos pés de Pe-
todo o Juxo do s,e tentrião, a maior elegância no corpo - riandro chamando-o pelo nome, abraçando,_lhe as pernas
e, no rosto, a maio;r formosura deste mundo.. Com efe1ito, e dizendo:
todos juntos e cada qual '€iiil separado, causavam espanto, -Que grande ventura, Senhor Periandro, a de 'COnce-
e maravilha a quem para eles oJhav:a; à caheça, porém, deres a esta teTra a' honra da tua presença! Não te CJaJUse
brilhavam Auristeia e o hem-parecido· Peri,a ndro. admiração veres que charrno: pelo. teu nome, pois sou um
Chegarem por terra a Lisboa, rodeados de povo e · daqueles vinte que alcançaram a liberdade na Hha sei-
gente de bom tra.to; levaram-nos ao governador que, vagem e a:bra!sa.idora onde tu próprio perdeste a tua;
após tê-1as admirado, não se cansou de pe:rguntar quem morto Manuel de Sousa Coutinho, o cava:leko português,
eram, de onde ·vinham e para onde iam; Periandro, que de ti me separei, e dos teus, na: hospedaria onde apare-
a semelhantes perguntrus e por saber que haviam muitas ceram Maurício e LruHslau em busca de Transi[a, esposa
vezes de ser feitas já trazlia estudada a :resposta, quando, do .primeiro e fHha do segundo; a boa sorte trouxe-me
queria, ou .parecia que tal conV'inha, relatava por alto à pátda; contei aqui aos pais dele a sua· enamorada
a hi·s tória encobrindo sempre os pai's de forma: a que, morte; mesmo sem que eu a tivesse visto acreditaram
apoiado em breves razões e da.ndo satisfação aos que · nela, e acreditarem nela porque morrer de amor é quase
perguntavam, fazia o relato, se não todo, pelo menos um hábito nos .portugueses; um seu irmã·o, que lhe
em grande parte. Mandou o vlice-rei que os instalassem herdou a fazenda, .fez as exéquias e pôs uma pedra de
num dos melhores atlojamentO's da cidade, por acaso a
mármore bTa1nco num jazigo da família, tal como se
residência de um magnífico cavaleiro português, aonde
estivesse enterrado deba·ixo dela, e mandou escrever um
acorria muita gente para ver Amistela, que soubera
epitáfio que desejo todos venhais ver, assim mesmo como
criar fama de reunir quanto havia em todo· o grupo que
estais, pois acredito que, de ·g racioso e discreto, há-de
merecesse aJ pena ser visto, e de fo'l'ma: tal que, no .parecer·
cair-vos no agrado.
de Periandro, .teriam de ser substituídos os trajos sel-
vagens por outros, de peregrinos, 1p orque estava na no'Vi- Pela fala bem percebeu Periandro que o homem
dade das roupas que tra2Ji:am a razão de serem tão, dizia a verdade; à:quele rosto, po.r ém, não se lembTava
seguidos, chegrundo mesmo a: paTece'l'em alvo de uma per-- alguma vez de o ter visto. Dirigdndo-se então ao
seguição do povo; além do ma:is, nenhum outro surgia a templo a que ele se referia, viram a capela e a pedra
propósito para a viagem que os levava a Roma. Assim, onde havia s~do escrito em língua portuguesa este epi-

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Miguel de Cetvames Saavedra

24 APARTE 24
táfio que António~pai quase conseguiu ler em castelhano,
e assim dizia:
AQUILINO RIBEIRO: - •Os escritores portugueses, entre
Aqui~ viva a memória do já morto Manuel eles o erudito professor Rodrigues Lapa, fundamentam-se
de SCJ~USa OoutinhoJ 00100leiro purtuguês que, com dá-los como unidos de amizade em aparecer Manuel
de Sousa Coutinho [aliás Frei Luís de Sousa] protagonista
não fosse pCYrluguêsJ estOIT"ia vivo; não 'TlWTTeu de uma aventura de amor contada em Persiles y Sigismunda .
Nada nos garante, porém, que o nome seja mais que uma
às mãos de ninguém rna..s ape'M8J ocnno qual- simples reminiscência acústica, aproveitada ocasionalmente
quer awtro, às do Amor; procumJ caminhaJnte, quando no entrecho da novela se entressacham pessoas e
coisas da vida portuguesa. A historieta versa um velho e
lXJIYtheeer-lhe a vida, que hás-de inoojQJr-lhe cediço tema, não comportando mais que variantes de forma.
a marte. Certo fidalgo Manuel de Sousa Coutinho entretinha amores
com uma menina fidalga, sua vizinha, esblpendamente for·
mosa como eram todas as heroínas dos romances àquela
Viu Periandro que o português tivera r,a:zão em altura dos tempos. Pedira-a em casamento. - r: multo nova
- respondeu-lhe o pai. - Vá ganhar nome em Africa e volte
elogiar-lhe o epitáfio, em cujo lavrar se esmera a nação que cá a t em . E ela? Ela jurou que, a casar, só casaria com
portuguesa. Perguntou Auristela ao português que sen- ele. Ao cabo de dois anos voltou o enamorado com a espada
cheia de bocas e o coração em labareda: -Venha domingo
timentos tivera a monja:, dama do falecido, pela morte à •Igreja da Madre de Deus .. . Foi e encontrou Leonor, a sua
amada, nos degraus do altar, quando as .freiras se preparavam
do amante, respondendo-lhe este que pa:ssara desta parru para lhe cortar as formosas madeixas dos cabelos. Titubeou,
melhor vida, dias após tê-lo sabido, fosse pela saúde mas não morreu. Morreu; só mais tarde, mal acabou de conter
a história aos amantes felizes Perlandro e Auristela, soltando
débH que semPTe revelM"a, fosse rpor sentimentos rela- o próprio estas últimas palavras .. . y ahora por la mlsma causa
cionados com o inesperado sucesso. vengo a perder la vida; y dando un gran suspiro 56 Ie sal·ió
el alma, y dló consigo en 'el ~welo. f A novela de PersHes y
De ali se dirigiram à 'casa de um pintor famoso, 8. Siglsmunda veio a lume em 1617, já Manuel de Sousa Cou-
quem Periandro ordenou que pintasse num grande lenço tinho e sua mullter, Madalena de Vllhena, tinham vestido
o hábito, mortos para o século. No mesmo ano saiu nova
os principais factos da sua história. De um lado ele edição, a 4. •, em Lisboa, dos prelos de Jorge Rodriguez.
pintou a ilha selvagem em chamas e; ao pé dessa ilha: da Nada mais natural que chegar às mãos do agora Fr. Lul&
) de Sousa, consagrado exclusivamente· às divinas letras. Que
prisão e um pouco ,maJts desviado, o bosque ou matagal impressão teria sido a dele ao ver o nome ligado a uma
' onde Arnaldo o encontrara q~ando o levou para o seu aventura tão profundamente mundana e sem correspondência,
a mais remota sequer, com a realidade da sua vida? Decerto
t navio; noutro :lugar ficou a Hha nevada onde perdeu a
vida o enamorado português; logo a seguir, a embar-
ficou e imaginar que se tratava de outro que assim se cha-
ma·sse, não dele. Ter-se-ia ao menos lembrado do compa.
nheiro transitório que encontrara no banho de Assan-Baxá?•
·cação que os soldrudos de Arnaldo arrombaram; perto
(No Cavalo de Pau com Sancho Pança)
desta, a divisão do esquife, e da barca; aí se reproduzia
o desafio dos amantes de Taurisa e a sua morte; serra-

Edições Afrodite DE FORA PARA DENTRO Edições Awodl1e DE FORA PARA DENTRO
'Miguel de Cervantes Saavedra

25
va-se aqui pela quilha o bM'co que havia servido de
masmorra a Aur.i ste1a e aos que em sua companhia
estavam; acolá a ilha acolhedora onde Periandro viu
em sonhos os dois exércitos, o das virtudes e o dos
vícios; perto, o navio em que os peixes náufragos pes-
,c aram os dO'is marinheiros e em seu ventre lhes ofere-
ceram sepulturn; não foi esquecido mandar pintar o
aprisionamento: no mar gelado, o assalto e combate no
navio, nem a entrega a CrátHo; rulém do mais pintou-se
a corrida tem'e·rária do possante cavalo que, de espantado,
foi de leão a cordeiro: poi•s que num susto os dessa raça
:Se amansam; como que em esboço, foTam ainda, numa
nesga pintadas as f·e stas de Policarpo ·onde, a si' mesmo,
ele se coroou venc,e dor; ali foram reproduzidos todos os
passos principais da sua história, não haja dúvida, che""
gando mesmo a representar-se a cidade de Lisbo·a e o
desembarque com os trajas da chegada; ainda no mesmo
lenço se via arder a Ilha! de Policarpo, Clódio trespassado
pela seta de António e ·z enótia enforcada na verga;
também foi pintada a Ilha dos Eremitérios e Rutíl:io com
ar de .santo. Servia assim o lenço de :recapitulação que
<>s dispensava de contar a história em pormeno·r, pres-
tando-se António-fHho a mostrar as pinturas e ·o s su-
cessos quando lhe pediam que o fizesse; todavia, no que
o pintor famoso mai·s se evidenciou fo~ no retrato de
Am·istela, alfirmando.-se, ainda que isso a deixasse zan-
gada, que ·b em tinha ali demonstrado como se pintava
um formoso rosto, poi.s à beleza de Auristela· não havia
pincel que :a alcançasse se:m ser e~·evado por um pensa-
mento divino.
Q
Edições A f r o d i t e - DE FORA PARA DENTRO
Miguel de Cervames Saalll'edra
Miguel de Cervootes Saavedre

26 27
Estiverram dez dia,s em Lisboa, todos gastos a visitar
beleza ausente, e pobre sem a riqueza da sua discrição,
templos e a encaminhar as almas pelo caminho recto
trul como ha,v:iam demonstrado os infiniltos ajuntamentos
da salvação, findos os, qurui,s, com licença do vice-reri
que· provocaram, aljuntamentos em que apenas eram
e certifica;dos verdadeiros e firmes de quem eram e para
citadas a modéstia e a beleza desses peregvinos estran-
onde iam, se despediram àJo cavaleiro português que geiros ( ... )
lhes derru hospedagem e de Alberto, irmão do apaixonado,
de quem receberam grandes car,inhos e atenções, pon-
do-S"e a caminho de Castel.a; e tal ,partida foi preciso (Los Trabajos de Persiles y 8ig18munda - Historio
BeptentrimlaZ)
fare-la de noite, com medo de que houvesoo gente
a segui-los e a estorvá-los em pleno di'a, rupesar da mu-
dança de tra:jo já ter conseguido amainar a admiração.

Os verrdes aiDOS de Aur.istela, e os ainda mais verdes de


Co:nstan:za, a! par dos que em Ricla 'se entreviam, estava,m
a pedir coches, exibição e aparato na longru viagem que
se propunham fazer; a devoção de A1wistela, poréll)l,
e a promessa de .seguir a pé até Roma, desde que chegada
a teiTa firme, arrastou 111trás dé si a devoção dos outros
e, homens e mulheres, todos de um só parecer, se
decidiram pela vi1agem a pé e mesmo a mendigar de
porta em .porta, se tal fosse preciso. Periandro descul-
pou-se de nã:o d~spor da cruz de diamantes que Auristela
trazia, guardand'O-a mais às inestimáveis pérolas para
melhor oca;si:ão. Apenas compraram bagagem que levasse
a carga impossível de suportar a10s ombros, prr.averam-se
de varapaus que serviam de apoio e defesa, e .espadas
agudas :mebllas em bruinhas. Com este a;parato humilde
e cristão saíram de Lisboa, deixando-a mais só pela

EdiçõesAfrodite- DE FORA PARA DENTRC


EdiçõesAfrodite - DE FORA PARA DENTRO
YOLTAIRE
(1694-1778)

Os diamantes da nossa ilnteligência nacional -c- HO-


NOR~ DE BALZAO

O francês .supremo, o ma4or escn'tor d;e todos os


tempos - J. W. GOETHE

Ai d e m i m! pois n& era só eu a saber q.u e Voltaire


estava n o index. Nas férias seguintes vi, estupefacto,
que na minha casa se acendia o fogo com os volumes
brochados das suas o·bras completas - a velha edi ção
Hachette em quarenta volumes, contemportinea oo
Segundo Império. Dei altos grito·s . A clWiminé de onde
arranquei, meio calcinada, a Dfatribe do Dr. Akakáa,
tinha sobre mlim efeito idêntico ao do auto-de-fé i/;e
Lisboa, onde Otindido. esteve prest8'8 a ser queirmado
- ROGER PEYREFITTE

Voltaire nasce em Patris com o nome de Fram-


çais Marie Arouet. Aos dezanove anos já é
secretário do embaixador de França, em Haia.
De reg1-esso a Patris, hão-de as suas ideW.S
levá-lo a onze meses de detenção na Bastüha.
Depois de um exílio forçado em Inglaterra,
cumpre uma missão secreta em Berlim por in-·
cumbência ministerial. Voltaire . guinda-se à·
posição de histo'!'iógrafo de Luis XV, é eleito
na Academia Francesa, e aceita na Prússia
o cargo de camareiro-mor de Frederico 11.
Uma de'8(111)ença oom o impemdor há-de trazê-lo·
a França, depois de um regresso lento pela
Suíça e Alsácia. Inicia-se a época dos ,escân-
dalos na Enciclopédia., das polêmicas e cam-

.)
Edições Aiiro<Hte - DE F O RA PA RA D E N T ll O•
Voltaire Voltake

30 31
patnhas varw:s cxmtm os filósofos. Voltaire
jaz-se proprietário de Ferney e Toorney. Mais Quando recobraram um pouco os sentidos, didgi-
tarde oolta a1 Pari.s, <miJe murre.. Tam-se a Lisboa; 3!pós terem escapado à tempestade
restava-lhes algum dinheiro com que pensav.a m livrar-se
da fome.
Todavia:, mal entram na cidade chorando a morte
-do benfeitor, sentem que lhes treme a terrru deb3!ixo dos
pés, e ergue-se o mar no porto, e boobulrui., desped:aça.ndo
I
I
'i
os navios ancorados. Turbilhões de chamas e cinzas
cobrem as ruas e ,praças públicas; as casas desabam,
afundam-se os telhados com os alicerces, e os próprios
alicerces se dispersam; trinta mil hrubitantes de todas
as idades e sexos são esmagados nas ruínas. Di·z ia o
marinheiro, a assobiar e a praguejar: «Qualquer coisa
há-de haver a ganhar por aqui. - Que ra:zão se encon-
trará ;para tal fenómeno? - perguntaJv.a. Pangloss.
- É o derradeiro dia do mundo! -exclamava Cândido ».
O marinheiro- acorre sem tardar ao meio dos destroços,
enfrenta a morte para encontrar dinheiro, encontrra-o,
exaJlta•se e, cozida a bebedeira, compra os favores da:
primeira mulher de boa vontade que acha nas ruínas
das construções destruídrus, no meio de mariibund'os e
mortos. Entretanto Pangloss puxava-lhe pela manga:
«Isso não está bem, meu amigo - disse ele --., estás
a: faltar à rruzão universrul, empregas mal o teu tempo.
- Poi•s quero lá saiber - !I'espondeu o outro -, sou ma-
rinheiro e nasci na Brutá'VIia; ;por boas passei: em qlllatro
viagens ao Japão; estás bem aTTanjado com o teu homem
mais a rruzão universa.:l !»

Eidições Awodite DE FORA PARA DENTRO Ed i çõe •s Af r od i t e - DE FORA PARA DENTRO


I
Voltalre·

32 APARTE 32
Várias la:scws de pedra tinham ferido Cândido que se·
encontrava estendido na rua: e coberto, de de,s troços.
Di·z ia ele a Pangloss: «Ai de mim! procura por aí um
pouco de vinho e azeite, que estou a morrer. -Este
tremor de terra não é coisa nova - respondeu Pangloss ;
o ano ipassrucfu, na Amér.ica, passou a cidade de Lima por·
safanões iguais; idênticas causas, ,i dênticos efeitos: de
Lima a Lisboa há com certezw um rasto de enxofre de-
baixo da terna. - N aJda: mais certo - disse Cândido;
mas, por amor de Deus, dá-me um vouco de azeite·
e ~in:ho. - Nada mais certo? - replicou o filósofo. Ga-
ranto que é ·coisa demonstrada. » Cândido perdeu os
sentidos e Prungloss foi a uma fonte próxima buscar um
pouco de água.
Esgueirando-se através dos escombros,, no dia se-
guinte encontraram aJlgumas p:rovi1sões de boca e recupe-
raram um pouco das forças perdidas. Depois di·sso' traba-
lharam, como os outros, em auxílio dos haibitantes que
haviam escapado à morte. Ao serem socorridos por eles,
vários cidadãos lhes ofereceram bom jantar, pelo menos·
o possíve'l em tal desa;stre': é bem verdade que era triste
a. :refeição e os convirva:s regavam o pão com láJgrimas;
consolou-os Paingloss, porém, a;ssegurando.,lhes que não
podiam as coisas suceder de outra forma: » «Porque tudo
'i sto é o que há de :rrrelhor - dizia;; se existe um vulcão· VOLTAIRE: ·Boldmind: - ( .. .) S6 nos sentimos felizes em
em Li,s boa é porque não podi~ estar noutro lado; irnpos- lngletern~ depois do cada qual gon.r livremente o direito do
manifestar a sua opinião. Medroso: -Também nos achamos
sivet que aJs coisrus não ~sejam como sào ; porque tudo multis.slmo tranqullos em Lisboa, onde ninguém pode revelar
está bem.» a sua. Boldmlnd: - Achais·vos tranqullos mas não felizes ;
a vossa tranquilidade é idêntica à dos galerianos, que remam
Um homenzinho trigueiro que a seu l'a do se encon- em cadência e em silêncio .•
trava, familiar da Inquisição, tomou polidarrnente a pala-·
(Dicionár·io Filosófico - Liberdade de Pensar)

E d I ç õ e s A f r o d i t •e - D E F O R A PA R A D E N T R O•
Edições A~ro<Hte - DE FO RA PA RA D E N T 1! O
Vol1'alre

33
vra: «Dir-se·-ia que não acreditais no pecado o'l'iginal,
senhor; porque se tudo e;s tá pelo melhor, não houve
queda nem punição. -Peço muito humildemente perdão
a Vossa. Excelência - repl.icou Pangloss com polidez
maior-, porém a. queda dO' homem, e -a maldição, have-
riam por força de ter entrado no melhor dos mundos
possível. -Não crê o senhor na libe·rd!ade, afinal? -
pe~rguntou o familiar. -Vossa Excelência há-de des-
culvar-me - diHse Pangloss -, a liberdade pode sub-
sistir com a verdade absoluta: pOTque era necessário
que fôssemos livres; pm~que, enfim, a: vontade deter-
minada ... » E'ncontrava. .se Pa;ngloss no meio da frase,
quando o !familiar fez com a cabeça um s.i nal ao estafeiro
que lhe davru a. beher vinho do Porto, ou do Oporto.

Depois do tremo!!.' de teTra que d!estruira três quad.os


de Lisboa, os sálbios à!o pa.ís não tinham achado mei•o
mais eficaz de prevenir a total ruína do que oferecer
ao povo um auto-de--fé; pela Universidade' de Coimbra
fora decidido que o -espectácul•o de uma/S quantas pessoas
queimadas a: fogo· lento4 e em gr.aiD.de cerimônia., haveri.a
de possuir o infali:vel segredo de· impedil' que a terra
tremesse.
V:i·Sto· isso, prendera-se wn biscaio acusado de ter
contraidb matrimônio com a' ~omadre e dois portugueses
que, ao comerem frrungo, lhe tinham desprezado a gor-
dura;; d~Qis do jruntar vieram prender o doutor Paingloss
e o seu discípulo Cândi'do, um deles por ter falado, o

Q Ediçõe •s Afrodite- DE FORA PARA DENTRO

3
Voltaire

34
outro por ter escutado com ar de aprovação: ambos
foram conduzidos, em separado, a quartos de eoctrema
frescura onde nunca o sol teria incomodado alguém;
oito dias mai1s tarde,, enfiaram aos doi,s um sambenito e
enfeitara.m~lhe:s a cabeça: com mitras de papel: a mitra
e o sambenito de Cândido eram pintados com chamas
invertidas e diabos sem cauda nem garras; os dia1bos
de P,a ngloss tinham porém cauda e garras, e as chamas
estavam direirtas. Assim V'estidos, andaram em proc~ssão
e ouviram um sermão muito patético, ao qual segu:i.u (

uma bonita música em fabordão. Durante o canto, Cân-


dido foi chicoteado a compasso; o hi'Sca:io e os dois
homens que não tinham querido comer o toucinho foram
queimados, Pangloss enforcado, ainda que tail não esti-
vesse nos costumes. Nesse mesmo dia a terra voltou
I a tremer com um pavoroso ruído.
Aterrorizado, desorienta-do, des'Vai:rado, todo ele a
I I sangrar e a palpitar, dizia Cândido consigo mesmo';
«Se assim é 0 ' melhor mundo possível, como serão os
outros? Mas, vá lá, apenas fu:i chicoteado, eoisa que
já me acontecera com os búlgaros; porém, ó meu querido
Pangloss! o maior dos fi.lósofos, teria sido preoiso enfor-
carem-te sem que saiba :porquê? õ meu querido ana-
bapUsta! o melhor dos homen~, melhor seria que te
houvesses afogaJdo no porto!»
(Oandide ou l'Optimisme - Traduit de l'Allffl1Ullnd
de Mr. le Docteur Ralph, avec les additions qu'on
a trouvés darl!'i la poche du oocteur, wrsqu'il mourut
a Minden, l'an de graoe 1759}

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


nm
11 111'

l !
'I Ili
ti 35 APARTE
Voltaire

35
'I Poema sobre o desastre de Lisboa
r
li
CHAMFORT: •No dia do tremor dG terra de Lisboa, o ro l 1
o ralnlm do Portugal estavam em Belém para assistir a ou exame deste axioma : «tudo está bem»
uma cortlda do touro~: . Foi Isso quo os salvou: e umo colso
~ corta, quo ma foi garantido por vllrlos franceses no altura
~ ', [:' presentes, e quo o rei nunca chegou a saber do enormidade
ô infelizes humanos! ó terra deplorável!
do desastre. Primeiro cllsGerom-lhe que tinham caldo algumas
t ~
'I
I
caso , depois umas tantas igl'ejas; não tendo vol tado mais
a Lisboa , poda dizer-se que é o únlcó homem da Europa
·Õ pavorosa uni·ã o de todos os mortai·s !
,. Incapaz do ter \Imo ldola correcto sobro o desastre qua R,e,un·i ão eterna de inúteis dores!
, lt ,!' apenas • uma 16gua da dlst ncia se consumou.•
Filósofos que em erro gritruis: «Tudo está bem»;
' l (M:"Ixlmas o Peo$amentos c Carac teres e AOfKlotas - ll 0 949) Correi e contemplai esta;s ruínas de hor.ror,
ffistes escombros, farrapos, estas cinzas da desgraça,
~ Estas mulheres, as crianças em monte,

~
"111' ! Com os membros di:sperso·s d~baixo do mármore que-
111 'I [brado;
I
Sangrentos, despedaçados, a:inda palpitantes,
~ \, Cem mH infortunados que a terra devora
Acabam sem so·c orro os lamentáveis dias
t li . Sob o próprio tecto e em JHworosos tormentos!
Aos gritos sufocados das vozes que expiram,
i I Ao espectáculo impressionante das cinzas em fumo,
Direis: «Ê por efeito de eterna.s leis
Decididas por um Deus livre e bom»!
~ Vendo a amálgama drus vítimas, direis:
Q «Deus está .v ingado, a morte deles é o preço do seu
[crime?»
)
~
1 O po:ema d e Volta'ilr e :rleiCO'I'I'e ·ao :bettam110to de L~sboa como

t base de refutaçãO' do ax<Loma «tudo está bem». Numa amtx>>logla


deste tnpo é de menocr hxberesse a sua inclusão (poi s são muLto
dlluidas as Intervenções re~ ooallstla.s do a utx>:r); tendo-se optado
I
por uma representação pa.rclail - os pnmeiros 44 v-er-sos de wn
~ total de 234 - , nu:m.a. tradução não metnlillicada n<em rlmada
'I'
li (Nota li<> Trad. )

Edições Af ·r o d i t e - DE FORA PARA DENTRO


edições Afrodite - OE FO RA PA RA OEN T RO
~

2-
l~il l
I
I,
36 OONATIEH-AlfHONSE-FHAN~OIS DE SABE
(1740-1814)
Que crime, que falta cometeram as crianças
E.s magadas e sangrentas jazendo no seio materno?
Lisboa, que já nem é, aJhergau em si mais vícios N o 'IM!o ã e toda esta r1~idosa epopeia i 1n perial vemos
Que Londres ou Pa1ris mergulhados em prazeres? ,/ lclrnejar a cabeça. siderada, esse peítlo amplo r iscado
pelos re'ldmvpagos, o ho?nern-falo, perfiZ aug uiSto e ci-
Lisboa está em r uínas e vai-se bailando em Paris. niço, esgar de titã apavorante e sublime; nas S:ttas
Tranquilos espectadores, valorosos corações, pá{}'itna8 m.aktitas Sfmtimos q1~ circ-ula co1n0 que "''" n
arrepio de infinito, vibra oos lábios qtwimoo.dos co1n0
Contemplando o naufrágio de vossos ·irmãos mori:b undos· que wm. sopro de tempestade ideal. Apro:r:ltma4--vos
Na vossa paz indagais as causas dru tempestade: pa1-a Otwir 11&\S'a carcaça desfeita e sangrenta. pa,Zpi-
tar as artéria.s ãa alma u1~iversaz, as veias inchadas
Tornados, porém, mais humanos, chorais como nós de sangue divhtl>. Essa cloaca é toda ela. f eita de
Quando sentis de perto a vergastada do inimigo, Záp\s-lamnl; nessas latrinas há qualquer coisa àe
D tms. 1Jecha4 o ouvido M tilintar elas bationetiiJS, M
Abrindo a terraJ os seus .ruqismos acreditai h'O'CPI· ãos ca1thães; desvla4 os ol hos dessa maré móvel
No meu queixume inocente, na legitimidade dos meus das batal has perd-Idas ou ganll.llS; -e da solmbra v er eis
então dest acmr-se t4m j anta8m.a iltnen;so, espl endoroso
[gritos. inea:prim~veZ; acima de t oda wma época sente~aãa d~
astros vereis destacar-se a figura e1wrme e sinlistra
Por todo o lado cercados com as crueldades da sorte, ão Marqttá de Bade. - BWI N B UR.NE
A ira dos maus e as armadHhas da morte,
Baãe, em mim , temi o condão - deveras ~tório -
Sofrendo o ataque de todO.s os elementos, de 1»116 provocar muitos botts sentimtmtos. 1J) também.
Permiti o queixume, ó companheiros dos nossos mrules. 'isso qt~ lhe t~do pi}TàoO. 1J) •mais wm ttnotivo por que
~f.o14 oonlll'a. ele. - DAVID MOURA O-FE.RREIRA
Direis que é o orgul·ho, o insubordinado orgulho·,
Pois estando nós mal pretendemos que é possível estar
[melhor. D. A. F. de Sade nasce na mansão Bourbon e
Ide às margens do Tejo fazer perguntas; aos quatro anos é confiado ao abade de
Remexei os destroços desta ·sangrenta de•s ordem; Ebreuil) seu tio) que o leva para o «Serralha»
Nesta jornada de assombro perguntai aos morrihund(}S ( expressão de Sade) do Castelo de Satumane.
Se é o orgulho quem grita: «Socorro, ó céus! Frequenta o oolégio Louis le Gramd e a
Tende piedade, ó céus, da nossa miséria humana! » Escola dos Ch.evaux-Légers, de onde smi ofi-
«Tudo está bem», direis., «e tudo é necessário. » cial do regimento dos Carabineiros do Conde
Poi·s quê! sem esta infernal voragem, sem submergir de Provença. Combate na G-uerra dos Sete
[Lisboa, Anos e é reformado camo capitão de Cwva-
E sta·ria; pior o universo inteiro? laJria. Casa com Mlle de Montreuil) fugindo
mais tOJrde oom a cunhada) freira em Lwunay.
Tem lig·ações co?n div ersas actrizes) envolve-se
Ediçõe ·s Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
,Edições MrocHte - DE FO RA PAR A DENTRO
Donatlen-Aiphonse-Françoi,s de Sade

38
em casos conhecidos como escândalos de
Marselha, Vincennes, Rose Keller, «meni~»
de La Goste. Executado em e fígw, consegue
mais twrde reabillitar-se e desempenJtar o cargo
de secretário, e depois presidente, da Seccion.
des Piques. Ê internaik> como louco no Ma-
nicómio de Clwlr'enton-Swint Maurice, onde
passa a residir com a amante Marie-Constance
Quesnet e onde morre depois de cumpridas,
por diversas veze's ao longo da vida, deten-
ções que totalizam trinta anos de uma exis-
tência de setenta e quatro. Principais obras:·
Justüne, Aline e Va1cour, Filosofia no Tou-
cadoT, Nova Justine seguida de História de·
Juliette, :sua irmã. Os Crimes do Amo!r, Os 120'
Dias de Sodoma, História Secreta de Isabel
da Blllvie~ra.

&lições Afirod~te - DE FO RA PA RA D E N T R o·,


Donatien-Aiphonse-François de Sade

39 ÁPARTE 39
D. A. F. DE SADE: •Ó céus!, digo eu ao achar-me um pouco
mais calma, será afinal aqui o túmulo desta fidelidade que Como sabeis, a meio da largUTa· do Terjo conseguem
me é tão cara • conservo com tanto prazer?... Escapei os maiores barcos atingir a cidade; preenchidas que
às a1·madilhas de um nobre veneziano; um corsário bárbaro
atentou contra o meu pudor que, de Igual modo, não cedeu estejam as fonnailidades aduaneiras, por ali se encontra
aos ataques de um cônsul francês; na véspera de ser empa- um infinito número de galegos a: oferecer-nos os prés-
i&d:ll em Sennar, e apenas salvando a vida ao preço da
honra, encontrei o segredo de guardar uma e outra; vi a timos no transporte drus bagagens. Revolvida:s as malas,
meus pés um imperador canibal; saí intacta das mãos de Clémentine lançou um olhl))r indi:f erente às pessoas que
um jovem p011uguês, de um velho alcaide de Lisboa, dos
quntro maiores debochados dessa cidade; don Fiascos de nos rodeavam e ordenou que fossem carregados os volu-
Benda-Molla não conseguiu vencer a minha intransigência;
uma cigana, dois monges e um chefe de bandidos suspiraram
me!s, logo de seguida., às costas de dois ()lU três daqueles
sem resultado. E tudo isso terá acontecido, Deus meu, patuscos.
para ml!:! tornar presa de um lnquisidor!. .. Ai de mim! que
em todo o lado encontrei recursos e nlio me resta nenhum - Para onde vamos, excelêneia? - perguntou um
aqui! Terei de perecer, ou então será preciso q~ Deus de·les, fixando a minha companheira.
f11ç11 ·um milagre em meu favor, ele, que desde a Anunciação
não tornou a fazer nenhum , que eu saiba, para preservar -Para o Boulnois, na Estrela - respondeu Clémen-
a virtude das mulheres .. .» tine, enquanto dava ao homem o endereço de uma esta-
(lamento de Léonore em Aline e Valcour) lagem que em Benguela um holandês lhe indicara, como
sendo das melhores da cidade.
Palavras ditas, lá partiram os homens seguindo nós
atrás deles. Caminhando pouco afastados, enquanto per-
corremos o cais mantiveram-se os nossos galegos quase
sempre à vista, andando porém muito mai:s depressa não
tardou que a multidão fize·sse com que lhe perdêssemos
a pista e .pouco a pouco deixássemos de vê-los. I(;fesse
mesmo instante ruparnhámo-nos no meio de uma confusão
prodigiosa: .pa·s sava o rei de carruagem de cerimónia,
dir.i:gindo-se a um convento onde ia; tomar véu uma don-
zela da mais alta qualidade. O povo comprimia-se para
contemplar o e•stúpido espectáculo; Clémentine quis parar
como os outros; ficámo-nos a olhar e, enquanto gozá..:
vamos do fútil prazer popular, leváva;mos apertões de
causar desespero. Mal •se enconrtrar.a m desimpedidas as

Edições Afrodite - DE F O RA PA RA DE N T R O Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Donati·en-Aiphonse-Fra,nQois de Sade

40 41
ru:as, continuámos; jnformadas sohre o caminho, não -Fomos roubada'S - disse.
tardou que distinguíssemos a torre do convento de Palavras' ditas.. larga uma execrável hla;sfémia, seu
S. Bento,. casa religiosa à frente da qurul se encontrava costume a cada contraTiedade que e:&perimentàsse:
a estalagem Boulnois que procurávamos; por f.im che- -Sim, D .. . de m ... , fomos roubadas. MaiS nem digas
gámos. uma palavra, pois não será preciso deixar de cear, ou
-Leva-nos aos aposentos que mandámos reservar darm:iJ:o na rua:. Camerioros - disse a chamrur o criado
por três homens encarregados das nossas· bagagens - - da:i-nos ainda assim um quarto e peço-vos que torneis
chss.e Clémentine, rultiv:amenrte, ao criado da casa. atenção no ca:so de aparecerem os três homens. Mal os
-Quais bagagens? - !perguntou, olhando descon- virdes, indicai-lhes quais os nossos aposentos.
fiado para ela. -Talvez os indi·v íduos se tenham engamado, senhora
Nesse momento não pude deixar de estremecer; a - disse o criado. -Foram com certeza ter ru Bueros
desgraça que nos ameaçava parecia abrir caminho na Ciaires, à casa do Sr. WiUiams qu-e dirige a •e stalagem
minha alma. i-nglesa; ·kei• 1á i'lliformar-me, se o desejardes.
- Que resposta é essa, insolente? - disse a fogosa ~ Claro que .s im - respondeu Clémentine - , e voltai
Clémentine; estou a perguntaJr pelas nossas brugagens ; ·o mais d~pressa possível a dar-nos respo•s ta.
digo-te que me leves ao quarto onde se endontral_Il, mais Abriu_-nos a: porta de uns aposentos espaçosos, por
os três homens que as trouxeram. ~erto muito melhorres do que estávamos em condições
-O que .p erguntais nada tem a ver com esta c!l!sa. de pagar, e lá se foi às informações. O primeiro ·i nstante
-Não é então aqui a estalagem Boa Comida? não correu tão mal como seria possível prever; !Testa-
-Pois d:ecer:to que é. va-nos ter esperam.ça, mas no entanto só arram.jámos
- A estal!l!gem holandesa da Estre'l a, dirigida pelo excitação, e esta muito viva. Clémentine passeava a
casal Boulnois? largos passos pelo quarto. Eu mantinha-me prostrada
-Nada mais verdadeiro. num sofá; de nós ambas se esca.pavam pallavras impe-
- E não vieram aqui três galegos descarregar 8iS tuosas e desligadas~ o ma1s ·p equeno ruído nos inquie-
nossas malas? , tava ... Escutávamos ... Voltávamos a mergulhar nos
- Com certeza tereis dado más indicações - res- tristes .p ensamentos ... O cr.iado acabou por chegar, e
pondeu o criado enquanto se a.fastava. Não apareceram fê-lo para nos dar a certeza de que em casa. do
por cá. Sr. Williams nada aiparecera. que apresenta:sse quaJ:quer
E então Clémentine,. agrurrando-me na mão: semelhança com o que pedíamos.

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Dona<t:i·en-Aiphonse-FranÇ)Oi<~ de Sade Donatien-Aiphonse-François de Sade

42 43
-Não faz mal - di·sse Clémentine numa tranquili- sqcial que tenha sido estabelecida apenas para melhor
dade constrangida que melhor revelação me fez do seu a servir e, da forma que ta1is convenções secundárias
cuácter em tal momento do que em qualquer outro,. são feitas, quando faltam ao primeiro voto da natureza
desde que nos conhecíamos. Não .faz mal, ~r-denai ~ue outra coisa não merecem além do desprezo.
nos sirvam de cear ... Hão-de aparecer ... e 1mposs1vel '---Nem· todos os meios são. aceitáwis para atingilr'
que não apareçam... Estamos rperdidas - disse-me esse fim.
quando 0 , criado saiu. Nunca mais encontraremos ru nossa - São, e para1 todas a.s espécies; acaso dará ela
bagagem ... Estamos sem nada, Léonore.. . , . punição ao habitante do ar por todos os meios que ele
E vendo que eu derramava uma torrente de lagnmas: utiliza a encontrar alimento? e a nos•so resp.c ito será
_Não t~ aflijas - prosseguiV: - , pensa. em todos mais cruel? Quando não há outra forma de vivermos,
os perigos que vencemos. Taanbém 'havemos de escapar as convenções que se lhe opõem não são da sua lavra.
deste... Lembra--te, minha filha, que nunca duas ra;pa- Por que deseja:s então que as 'respeite, se outra coisa
rigas morreram de fome tendo um espírito como o não fazem além de contraria1r o que me inspira a única
nosso. voz realmente dirigida ao meu coração? Mas não im-
- õ céus! não esperes que alguma vez venha a dar
porta. Para que não haja nada a a:pontaT-nos, vamos
assentimento à infâmia que a·cabas de fazer-me ouvir.
começar por todas a.s diligências honestas, caJpaz.es de
-Não tenho mads vontade do que tu de me entregar
nos fazer reencontra1r o nosso bem ...
ao deboche; detesto esse género de vida, não por julgar
Descemos.
que ofenda o céu, pois encontro-me longe bast~te de
-Não vale a pena levrur a chave do quarto - disse
tais preconceitos para que possa ceder-l~es, n~o . ~r
imaginar que a cor-r upção da-s mulheres seJa pre]ud1•c1al a louca criatura ao sair. Deus faTá que ninguém toque
à sociedade, pois até 1he serve multiplicando as fontes nas nossas coisas, não a:chas?
de .pra!Zei'; odeio porém a prostituição em si mesma, Menos decidida que a minha compaJnheira a. remediar
temo-a porque nos rebaixa ao olhar dos homens, nos desgraças pelo crime, por isso mais afl;ita do que ela,
faz alvo do desprezo desse sexo que, a ser feita justiça, não dei resposta ao gracejo. Confesso, porém, que i
haveria de merecer-nos indfgnação .. . De inconsequente calma daquela rapaxiga no auge da infeHcidade conse-
que é arra;sta-nos ao abismo e ousa punir-n~s por ~a guiu reanimar a minha coragem por um instante, e
fraqueza de que só ele é causa ... Temos todavta de : l'ver, segui-a cheia de esperança ... Ainda estávamos em pleno
Léonere, esse é o fim primeiro da natmeza, essa Imp_e- dia; vo1támos a:o porto; não nos .saltou à vista. qualquer
riosa lei faz-se o.uvir antes de qualquer outra convençao rosto pa,recido com o das pessoas a quem entregámos a

Edições Afrodlt ·e - DE FORA PARA DENTRO Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Donatien-Aiphons·e-François d·e Sade
DonM:ien-Aipnonse-FranÇ>Ois de Sade

44 45
támos-lhe a nossa históri·a ... Fizemos-lhe pormenor dos:
bagagem; inform:imo-nos sobre o navio que nos desem-
serviços que acabámos de prestar a Portugal ... 1 La-
barcara, po~'S nele talvez achássemos ajuda; deixados os mentou-nos, afirmou que o pior mal do mundo tinha
passageiros em terra e regulaxizados os papéis, firera-se sido não trazetrmos lli!na carta de recomendação dos
o capitão à vela para Cádis onde o chamavam negócios chefes dru colónia, que tal carta maiores serviços nos
da maior importância. Já largara há uma hora. teria prestado que o próprio dinheiro, e com ela; teríamos
Voltámos à cidade e procurámos sa·be·r onde era a achado 't odo o socorro possível na câmara de comércio
crusa do· alcaide do· bairro da nossa estalagem. Fomos de África. ·
apresentar-lhe queixa e pedir conselho. - Ir lá apresentar-vos sem ela - continuou o tar-
D. Laurent de Pardenos era um desses homens cuja tufo - é e~por duas raparigas honestas a prussar por
fisionomia doce e afectada esconde uma alma feroz e aventureiras; não aconselho trul passo ...
coiTompida, um desses prevari.caidbr·es como tantos há, -Que fazer então, senhor? - perguntou amargu-
que no lugar que ocupam apenas vê€m o que mai.s de- rada. A que pretendeis arrastar-nos? ·
pressa pode conduzi-los à sadedade da luxúria ou avareza, -Esperai - prosseguiu o maJgistradO' - para vos
para os quais ·s ão bons todos OS: meios desde que nas suas des-esperardes espera~ que, na ·v erdade, já e'dsta aigo
malhas façam cruir os que· :lhes imploram e tenham esses sobre as investiga~ões que prometo empreender; en-
infelizes qualquer coisa C8íPaz de aplacar-lhes as paixões. quanto esperai,s, comportai·-vos com calma, sobretudo
Hábil velhaco, endure.ci'do a todos os males do .próximo, não façais por sucumbir às inúmeras armadilhas que
vendo-os sem lhes dar socorro, ou então aliviando-os o crime, sempre vigihlJil:te, prepara sem descanso à ino-
na esperança de lhes achar p~ove:ito, libertino ·sem cência - disse a acariciar-nos suavemente a face com
freio, grande hipócrita, profundo celerado, tal era o a mão; por mim tenho esperanças... Ê muito grande
respeitável magistrado a casa de quem fomos informar a bondade de Deus; al'guma vez o amparo da sua mão
contra os ratoneiros que nos reduziam à esmola.
Quando fomos anuncia'Cla·s, D. Laurent mamdou que 1
Núiutro passo do rOIIllance, CLéme:nooe entrega-.se a eS-
entrássemos ;para o seu .gabinete; ao receber-nos com o forçadas volúp~ junto do wl JJtegro Ben Mâa.coro, o m'alls cruel'
ar mais afável e benigno, perguntou o que teria de fazer e 1leroz de ·toda. a Afnloa, 'inslllga.da a. isso por D. I...opes d>e Ri'Y'edra;,
chefe no est..abelecimento .português de Tete, e em cumpr.lm.ento
para nos servir. E, pronuncitando tais pahwras, fixa- de um plano oongemlnadO pelo> Oon'de d e Souza', desejandO, matnte·r
va-nos ·bondoso e encorajante, com ar de quem nos aoolm -entretido o Pe!t negro pata mais fácU conqud-sta. de um
te<rrt>tório- qu-e 'Uiltlsse o !orbe de Tete a. Benguel.a., 6!tr.a.vés dO velno
aplaudia através de leves sinais de ca;beça, ou mãos, de Butua. O fcito bélico é conduzido com êxito, tuãp se pao&sa~ndo
com a mallol' .sem~coo1ianón!la. h:l$tórJJca ~ogeogrãtlca. (Nota. do Trad.)
mesmo antes de· termos dirto qualquer palavra. Cem-

Edições Afrodit •e - DE FORA PARA DEN•TRO


Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Donatien-Aiphonse-FranQOi>S de Sade Oonat~en-Aiphonse-François de Sade

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rubandona o infortunado? ... Dizei-me, bela.s pequenas - -'-Nunca empr·esto dinhe1iro - di:sse o honesto co-
continuau, deixando cair com meiguice uma da;s mãos missário; no entanto - continuou, pondo a mão no seio
no colo de Clémentine que a princípio não· o repeliu - da minha companheira!- por vossa causa e desta que-
di•2Jei-me se chegando à cidade fizestes escolha do vosso rida criança- prosseguiu, tentando tratar-me de forma
confessor? Desde o tempo que vivestes com os selva- idêntica à de ClémenUne - sim, por causa de vós
gens ... Ê que tenho um muito honesto homem a1 aeon- ambas, que me inspira;is veTdadeira compa.ix:ão, aqui
selhar-vo.s .. . tendes a; meia portugue.s a que desejais. Todavia, se
FoTa de si, Clémentine rejeitou prontamente a mão amanhã não acharr boas nova;s prura dar-vos, previno que
cujo progresso se tornarru imenso. tereis de restituir-:me este empréstimo de uma forma ou
-Não, senhor, não- disse eia -,não fi~emos esco- outra. '
lha alguma!; ru vontade de cear é mais urgente· em nós Dizendo isto pôs-nos ambas honestamente à porta
\ do que iT à confissão, e acontece que não temos forma do gabinete.
de satisfazê-la ... -Um momento, ,s enhor ___. di:sse Clémentine ---., ex-
- Ah! que aborrecido, que aJbonecido! - replicou plicai melhor o que acabais de anunciar: se não encon-
o santo homem; na verdade não é possí:ve·l viver ...
trarmos as nossas coisa·s, como prete-ndeis que devol-
Nesse momento tocou o angelus e logo D. Prurdenos
vamos o empréstimo?
se interrompeu, de rojo aos pés de um grande crucifixo,
-Desobrigar-vos-eis como ,se desobrigam as mu-
convidrundo-nos a fa·z er outro: tanrto e demo:ran<fu,-se um
lheres- respondeu D. La;urent. Nã·o é verdade que têm
quarto de hora em prece ...
sempre meio de f~azê~lo? - e levando a mão, às co:stas
- Mais uma ve:z digo - continuou, ao lev:antrur-.se
de Clémentine: acaso não se vê com que poderei.s ·fazer
~ que tudo deveis esperax da 1bondade do céu!. .. Vou
agiT e amanhã de manhã eu pró,prio hei-de ir drur-vos pmga generosa;?
conta das minhas diligênci'a s ... - Seríamos indignas do empréstimo que pretendeis
-Senhor- disse-lhe Clémentine com de's caramento fazer-nos se consentíssemos em tais meios para vos
- tudo isso é muito bonito, ma·s uma vez mai·s vos digo reembo-lsar- respondi, em eóler.a -,e o desprezo que
-q ue não temos um real para nos sustentarmos estru por nós havíeis de sentir impediria que nos fôsseis útit
noi·t e; se sois assim tão devoto, também deveis gostar -Nada entendo· do que di·z eis- rretorquiu o aJlcaide
de fazer ·b oas obras e empresta;i:-nos, ao menos, uma com o rosto já menos circunspecto. Aqui tendes o que me
portuguesa. O céu, assim melhor servido do que através pedis: ou vire1is devolver-mo, ou 'eu próprio cohrar-me-ei
de padTe-nossos, há-'de inrfalivelmente recompensar-vos. pela minha fantasia.

e Edições Afrodite - DE FORA PARA DENTRO


'Ediçõ ·es Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Donatien-Alphonse-Françuis de Sade
Donatien-Aiphcmse-François de S~

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d~sgr~ç.ados é consentido regozijarem-se sem ofender
- Seja; - disse Clémentine. Dessa! f orma não t ere- .nmguem.
mos para convos co qualquer obrigação ; r eceávamos Trouxeram o vi·n·· h o e Cl'.ementi ne ordenou ao criado
merece· o vosso desprezo mas, pelo contrário, ~a vós. que _se retiras~e e não ousasse interromper-nos por outro
afinal, quem há-de merecer em to da a extensão tal sen- motivo que nao o das nossas mala.s:
timent o. Sentir-nos-emos ambas mais à vontade. - _vamos_ cear - d isse-me, no instante em que ficá-
Chegadas que fomos à estalagem, o ,pr.imeh·o cuidado mos .sos -, ainda n ão esgotámos todos os recursos como
foi saber se havia novas das nossas malas; assegura· ~ H' ,
ves: a tempo de nos arrelirurmos quando tivermos por
ram-nos que não e, como em tais casos :desconfiam um mru1s certas a's desditas.'
pouco das pessoas sem bagagem suficiente paTa res- 10 estoicismo da minha companheira animou-me·
ponder pela d espesa, peclir~-nos que adiantadaroente comi quase tão ·b em como e:la, mas bebi menos. Decidid~
pagássemos a ceia, ·Se queriamos ser servidas. a ~ogar os pro·b lemas no delicado sumo das vinha·s de
-Pois pem - disse Clémentine, pousando o olhar Setubal, tragou ambas as garraf~s como e~~ teria feito
em mim - a tal piedade, ·sentimento tão sublime., vês a um copo de limonada: e, no desatino que pouco depois
tu como é guardada entre os homens ; mal desconfiam se wpodera,va dela, t oíl'nou:-se louca, ale-gre e vi·v a co:mo
que e.s tamos n a miséria, s omos em toda a parte .insul- só uma mulher bela pode a;lguma vez mostrar-se. Os foc-
tadas: o que deveria , pelo lugar que ocupa, prestar-nos mosos cab'elos n egros a flut uar no seio de a.lruba·stro os
socorro, p õe ao preço- da nossa v'irtude os fracos serviços ol~os soberbos inflamados pelo· despeito, ou rpela d~r ...
que tenciona prestar-nos; o out ro, que n ada ein ouro,
pretende que lhe paguemos adiantada uma desgraçada
ed: quando :m vez molhados de lágrimas .p or uma 1-ecor-
daçao q~e nao podi·a apagar ... a flutuante desordem de
ceia que tem medo de perder ... Aqui tendes - disse um vestido de gaze, única roupa que o calor consentia
Clémentine, atirando ao nariz do !criado a meia por - que _usás~e~o~, o ar tocante que um pouco de· desa~ento
tuguesftl - , paga-te da ceia, tr at ante mas serve-a boa l~e 1mpnm1a a face, tudo ... numa palavra, tudo a fazia
e sem demora ... tao voluptuosa e befa, que nenhum homem na terra
E quando a puseram na mesa: pod_:ria resistir-lhe, e eu próprio necessitei de toda a
- Todo aquele dinheiro por isto? - perguntou a razao _e _amor para me lembrar que era do mesmo sexo.
minha companheira. ?e1tamo-nos... Fez-me cem 1propostas qual delas a
- Não, senhora, aqui tendes os dois cruzados que ma1s extravagante, e tudo isto na véspera! do· diw em
restam. que talvez ~ôssemos _ob_:igadas a pedir esmola, ou piar,
- Traz-nos v:inho de Setúbal nesse valoc; quero· para garantl!r a subs1stencia.
beber à saúde dos gatunos que nos roubam, pois só aos

Edições Afrodite - O E F o RAPARA DENTRO


Ediçõe ·s Afrodite- DE FORA PARA DENTRO 4
Donatlen-Aiphonse-Françoi•s de Sade
•:Oona1ien·Aiphonse-François de Sade

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Ao abrir os olhos na manhã seguinte, Clémentine
derveteu-se em lágrimas ... A embriaguez é como o ópio, por esta, que à outra chegaremos depois; conjuro-vos
acalma a dor e devolve-a mais viva ao despertar ... ..sobretudo a que vos despacheis, pois falta de prática não
- õ minha .ami:ga - di,s se el'a - , não tivesse eu t enho eu, o Senhor ·s eja louvado, e dá-se o caso de neste
morrido a dOTmir! .. . Quando temos o !infortúnio por mesmo 'i nstante em que vos falo me agua.!I'darem para
tarefa idêntica.
perspectiva, não mais deveríamos despertar ... N~ seria,
para mim, felicidade prussar aos tb raços da morte sem Absorvida .i nteiramente na dO!r, costas voltadas ao
·monstro, cabeça entre as mã·ós e meio' deitada no sofá
abandonar a embriaguez profunda em que me encon- - ~ .
nao VI que JUnto de mim ele já chegara. Apanhando-me
'
trava ontem?
Nesse :instante ·bateram :b ruscamente à porta e, como ' de :repente o traidor nes'Sa; atitude, imorbilizou-me com
ainda estivéssemos no leito, pedimos que nos fosse dado uma das mãos ~ com a outra afastou quanto em mim
tempo para nos levantarmos ... Bor fim rubrimos, e era o atrapalhava, ex:pondo-me um instante quase nua aos
o alcaide ... seus olhares e s·e m que fosse possível defender-me. Não
_Nenhuma esperança - disse ao entrar. Os vossos ' é l~ngo, porém, o t:Tiunfo; erguendo-me com presteza
ladrões dependem de um numeroso grupo que há muito maw~ do que .e le revelara aJ dezTubar~me, projecto-o longe
·de mrm com um SO'CO vigoroso no peito.
infesta a cidade e os arredoo-es; tornando-se <impossível
encontrar-lhe o coio, mais prático será renunciar. -Foge, cobarde - exclamei. Já que és vil bastante
Derreti-me em lá:grimas. Dotada de maior firmeza, para nos recusares os teus serviços, foge, sem que voltes
a ultrajar-nos.
Clémentine respondeu que o facto a de,s olava, tanto mais
que tendo escrit~ à mãe, para Madrid a1 solicit.à:r soc~rro , Clémentine a:bria lestamente a porta durante de-
0
e s endo este aguardado a todo o instante, V1a-se a:mda -bate, chamava a hospedeira em seu socorro .. . que entre-
tanto chegava .. .
a;ssim , e uma vez mais, constrangida a fazer ,a-buso. da
bondade de D. Lau:rent pedindo-lhe novo emprestlmo. - Sen:h~a, a nossa história é curta - diz-lhe a
-Enganaste-vos - retorquiu o alcaJi.de, fechando-se minha companheiTaJ. Dignai-vos a tomar aqui a;ssento
] por um instante· e a escutar. Este homem _ disse;, mos-
connosco no quarto - enganaste-vos , minhas bela'S fi-
lhas· muito longe de me encontrar na intenção de ofe- trando D. Laurent muito conlfundido -, este homem é
J. rece; mais, .venho ,p edir-vos o que emprestei,, QU favores um i?digno, conhece a nossa desgraça .e abusa dela ...
· Chegamos da·s coiónias; por meios nossos conquistámos
que o compensem ...
E dirigindo-se a mim: . . ~ais de tre:entas léguas de terra à nação portuguesa,
_ v .amos, pequena, decidi-vos ... Comecemos primeiro ar~da que nao lhe pertençamos, pois sou espanhola e a
-mmha companheira francesa; recebemos louvores e gra-

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


' <E di ç õ ·e s A f r o dIte - D E F O R A p A RA o E N T R 0
Oonatien-A\phonse-Françoi.s de Saci&
'Ool'l'atien-Aiphonse-FranQOis de Sade

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tificações ·p elos nossos serv~ços; che:gámos ontem a · ·mergulhar-nos. Vamos escrever aos nossos pais .
Lisboa com três malas cheias de roupa e dinheiro ; ..nossos amigos,. vamos . empr.egar todos os esfor . , aos.
seguindo o costume, confiárno-las a galegos e demos· vos reembolsar dos emprestlmos
, · çosf para
que ·s olicitamos ·
ordens para que as trouxessem a vossa casa; roubaram- or n'os'· d urante a espera nos oon·
' s erv . ' açaiS
P '
ref - . aremos como
-nas; fomos pedir c-onselho e socorro a este miserável; ·d ens; ó nao SMremos de vo ssa casa.-. Tende piedade
sabendo, porém, que tudo perdemos e nos encontramos .e n s, senhora, e que o céu vos devolva o b
fora de nós., exige como indemnização que nos preste- f1zer des. em que
mos aos seus infames desejos .. . Terá ele razão, senhora?'
·I gu-Na verdade,
. minhas amigas • n··a o t enho vontade
Devemos obedece:r-lhe·? Terá a vossa ca;sa sido feita para
a ·h ma de .ahmentar . de graça d uas f~emeas - respondeu
duas mulheres honestas, que dentro dlela se julgam pro-
tegidas, •s erem desta forma tratadrus? .. . Decidi vós pró- ha ·ospedelra levantando-se·' se eu qui·se · sse nao - me
aviam de fal~ar raparigas da vossa ~aia, mas a; minha~
pria a quest ão e faremos o que nos o:rdenardes.
Neste momento a Senhora Boulno~s olhou para ca:m, ~us seJa lo~vado!, nunca lhes .serviu de aJsilo.
So de vos dependera ser aqui mantida ., vossa: . .. perma-
D. Laurent; perguntou-lhe se era verdade que um ho- _ A • • • "'

mem, honrado com a confiança pública, se permitia nencia' as mmhas criadas rubamdonaram-me ontem e
·ofereço-vos
· . o lugar
, . delas·• nao - e, ma, cond1çao . _ ...
semelhante coisa ...
-Estas mulheres enganam-na ~ respondeu o hi·pÓ- .
-. t
Deus santissimo - gritou a fogosa Cl,~n~ t'
cr .ita, :reass'U!Inindo o ar adocicado. Pudéssei·s vós própria P~J:c ando-se de punhos erguidos sobre a; hospedeira:
não ser iludida no que por elas fazeis ... De boa vontade· . Nos
• · Ocupar
, • o 1ugar de criadas'• L' ·ca .a sa·ber:, refmadis-
1'71•1 . ,
vos presenteio com a portuguesa que me extorquiram, sur:a galdena, que a minha mãe tem-nas em casa que
às vezes é preciso .saber praticar a caridade. mrus valem do que tu ...
Chegando ao fim destas palavras insultuosas, reti-., - Não lhe deis ou~•y 1'dn."'
v-., - d'lg'O eu a, hospedeira,
· man-
rou-se e deixou-nos com a hospedeira. tendo-me
, entre as duas - não Ih ~~: .~
e ~ ouv1dos pms . . a
~Senhora- digo eu àquela mulher- o embaraço ma .sorte . lhe esquenta 0 J'u'zo· 1 ' d'lgnai-vos .. consentir . que
deste monstro vos dá prova do seu crime; conjuro-vos aqm_ fiquemos o dia de hoje, outra graça não peço
a que tenhais piedade de nós; dissemos a verdade; acre- Aqm tendes - dtgo-lhe eu' retirando um pequeno . colar.
ditai que não vos iludimos em nada; vede a que extremos com cruz de ouro que trazia ao pescoço - aqui tendes
- fnnestos se encontram redUlJi:dals duas rapar.i:g.as se acaso ·rom que segurar-vos.
recusardes o vosso auxílio; sobre vós deixareis caior a -Pois muito ;b em! - disse a estalajadeira saindo
consciência do crime em que o vo;sso aba;ndono há-de .0 a sala C<Xm o colar. Sereis alimentadas até ao custo

Ed i ç õ e s A f r o d i t e - D E F O RA P A R A D E N T R 0' ,:Edições Afrodite _ 0 E F O R A PARA DENTRO


DoooNen-Alphonse-François de Sade
Donatien-Aiophonse-François de Sede-•

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que tu, já disse, e será preciso ver-me chegada a furioso
dente adereço e, depois disso, tornai a decisão que qui-" extremo para me lançar em tal abismo; meditei porém
se·rde.s. e~ tudo e não existe, infelizmente, outro meio capaz de
- A minha está tomada - respondeu Clémentine, tlrar-no·s deste infame país. Bem srubes que os nossos
atkando-se com violência para cima de uma cadeira; . projectos ·s ão dirigir-nos a Madrid; tal como te prometi,
pois está ... ou este dia que me Humina seja o último da~- e agora renovo a jura, desde que se encontrem vivos
m~nha; vida. a minha mãe e o Duque de Medina:-Celi dar-te-ei o neces-
- Oh! meu Deus, meu Deus! ... nunca tomes decisõel'f· sário para viajares até Fran~a; mas será preciso lá che-
em dese.s pero. garmos. Por um dnstante façamos o cálculo de todos os
-Que desejas tu que nos tornemos? meios que a nós se oferecem para atingir esse fim:
_.Pobres e sensatas, trabalharemos. s-erá preciso que,. prostituindo-nos, ganhemos aqui o b3is-
-Nada sei fruzeT. tante .para o transporte, esmolemos pelo caminho ou
-Pois eu sei coser, bordar e trabalharei por nós· - roubemos·; qual dos três achas mais honesto?
en t ao ' ...
ambas; ganharei com que vivermos ... nunca te abando- Propões que· trabalhemos?, para nos darem seis vinténs
narei; só te peço prudência e que não de-i xes desespe-- ao dia, talvez ganhos em doze hor3is de trabalho? ... Dirás
rar-te. que entretanto escrevemos. Fraco recurso, minha cara;
- õ Léonore! - continuou a minha companheira, por vezes obtém-se qualquer coisa pedindo nós mesmas,
atirando-se para os meus braços e regando-os com as: mas quase nunca escrevendo. De resto, quanta gente há
lágrimas ama;rgas daJ dor -'-' ó tu, a quem ma!i-s amo na que tem por máxima não dar resposta aos que se en-
vida, não acredites que também eu alguma vez te· contram na desgraça? Portanto, se tais cartas nada
aba;ndone; de[xa-me po;rém o cuidado de te alimentar ... t~a:em, é preciso vesolvermo-nos a vegetar em qualquer
menos delicada do que tu, ni:sso conseguirei haver-me' sotão sem que alguma <V·ez possamos aproximar-nos d'o
de forma mais segura ... Conserva essa virtude imagi- objectivo a que devemos aspirar. Deixemos pois de
nária da qual fazes o fantasma da tua glória; por mim, avaliar o que lá não é capaz de levar-nos, para só nos
hei-de ultrajar a minha para fazer-te viver e, se os ~uparmos do que lá conduz, seja qual for o .p reço que
remorsos vierem despedaçar-me a alma, a eles hei-de 1sso custe e sacrifício nos exija.
opor os direitos da amizade. - Ah! - respondi a trul discurso. Como podes acre-
- Ah! Acreditas, então, que pudesse ·s er feliz subsis-- ditar ~ue aceite qualquer dos três meios que pr:opões?
tindo pelo fruto doa teus crimes? ... Todav1a, de todos me parece menos horrível mendigar.
-Escuta - continuou Clémentine, um pouco mais· -Minha cara amiga - continuou Clémentine - não
calma - não sinto mai.s vontade de me prostituir do·

Edições Afrodite - D ,E FORA PARA DENTRO


Ediçõe ·s Afrodite- DE FORA PARA DENTRO'
:Oona~Nen·Aiphonse-François de Sade
Donaltlen-Aiphonse-Françol·s de Sade

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1idade. Tornadas d'iignas de muito maior lamento, e sem
eVlitaría.mes o que tanto parece choear-te através de tão escapar a um só escolho, teTíamos com a ignomínia do9
infeliz pMti'do; acredita; que, neste 'Século de hO'l"l'''': e ·costumes todos os perigos do infortúnio, alimentaríamos
depravação, os homens não dão esmola 31 raparigas como a concupiscência dos homens sem lhes moderar a huma-
nós sem exigir ·interesse correspondente ao dinheiro que nidade; serlamos causa de muitos crimes sem aproveitar.,
gastam; não existe caridade gratuita, minha cara; sequer, do fll"uto de uma virtude.
orgulho· e intemperança., ai tens os motivos únicos ~ue Ia replicar-lhe, quando o jantar que nos traziam
a. despertam; quem dá esmola quer o seu acto conhec1do . interrompeu a conversa.
•ou que dele possa. -recolher-se algum fruto. DesiiStiu-se - É pouco farto - disse o criado da estalagem -
da 'd'eia. de ganhar o céu com essa. espécie de boas obras. ma:s encarregou-me a senhora de vo.s di'z er que acha
Foi entendido o poderoso interesse dos que pregavam me~hor mamdar pouco e alilmentM-vos por ma;is tempo,
tais doutr;inas. Pôs-se em dúvida que uma religião, ao a fim de que possais tratar os v.o ssos mssuntos até ao
-principio adoptada •p elos .pobres, da esmola: devesse fazer fim; com o obje'Cto que lhe déstei.s poderá servir-vos
uma virtude, que uma religião perseguida devesse
três dias, desde que reduzida a dose ao ponto que aqui
exortar à benificência e fosse precioo distribuir um. pouco vedes. ·
de ouro pelos altares de um Deus nascido da lama. -Ficamos satisfeitas - respondeu Clémentine ...
A filosofia só B~perfeiçoou o 'espírito do homem endure- Fechai a porta e deixai-nos. Vamos- disse a minha com-
cendo-lhe o coração ... Ensinou-lhe que, para tornar .p uras panhei~a, convidando-me a partilhar um mau pedaço
as luzes de uns, seria necessário desconfiar do órg-ão de coztdo e alguns figos - vem receber dais mãos da
enganador dos outros, e de fonna alguma se chegava nação porlugue1sa o preço do serviço que lhe prestámos·
à descoberta. da verdade sem renúncia das quimeras do •
vem a,prender a servir os reis ... I

bem. J)e ·r esto, para quant81 gente depravada esse estado


-Infelizmente - respondi - o deste Estado em
"Ínfeliz se não transforma em mais um atr.acbivo? Pega ·que nos encontramos ignora. o que por ele fizemos; uma
um instante comigo o fi:O condutor dos impenetráveis
vez que a tal respeito fosse informado, acreditemo-lo
meandros do <Xlração d'e um UbertinO': aca:so não saJberás generoso bastante para não nos deixar sem recompensa.
que ele deseja o martírio do objecto oferecido às suas -Reconhecido, ele!, semelhante virtude em alma de
paixões?, que pela força e violência se diverte aquele ., Ah'. nao
re11.... - contes com 1sso,
. em.pedernindo a a!Illal de
cuja alma enervada pelo deboche perdeu a delica~~Z81'? todos estes celerados com o-s seus vícios, nela deixou a
Recusando-lhe a .iguB~ldade todos os prazer.es despot1cos natur~a a ingratidão como insígnia, a fim de que os
que são alimento da sua luxúria, já ,qó os a:cha provei- homens se enganassem menos.
tosos na vítima que 131 miséria submeteu à sua bruta:-

:Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


">E dições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Dona<tien-Aiphonse-FranÇ>Oí·s de Sade Doootien-Aiphonse-FranÇQis de Sade

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Mal aca.bár.amos de jantwr surgiu o criado solicitando LlnONORE- Passa por estar ligado mo Duque de
permissão pwra introd112iir um moço de recados que Corte Real: conheceis este · duque?
trazia uma importante carta para nós. O CRIADO - Pois decerto·; é um dos mais ricos se-
_Que entre - respondi. Não desprezemos nada na nhores de Lisboa.
nossa situação; as claridades mai·s ténues hem podem CLÊMENTINE - Muito libertino?
conduzir. à luz do dia ... O CRIADO- Gosta de mulheres e .bem lhes paga.
Um lacaio ·s em lihré apareceu e, deixando uma 0LÊMENTINE - Que idade tem?
carta na mesa, desa.ndou sem que fosse possível retê-lo O CRIADO - Cinquenta anos.
e tivesse dado uma só palavra. Abri i cart8.1; eis o que CL'ÊMENTINE - Dizei-nos, amigo ... ' poi.s tendes ar
nela achei: de hom rapaz; informai-nos como é possível tal duque
«0 Duque de Corte Rerul teve notícia da perda que ter notícia drus nossa:s malas.
aca.balis de sofrer; ,pode dar-vos indicações seguras ·sobre O CRIADO - E ele tem?
a bagagem roubada. o me.s mo homem que vos leva este LÊONORE - Tem.
bilhete há-de voltax a buscar-vos com uma carruagem, - Escutai - disse o Tapaz, fechando a porta com
quando for noite; conduzir-vos-á a uma casa de recreio receio de ser ouvido - que vou revelar-vos parte do
situada. a vár.ilas mHhas pwra lá de Belém e que pertence mistério; mas, por S. Tia>go, não me traís.
ao senhor que: por vós parece interessar-se; uma vez LÊONORE - Não tenhai,s medo, servi-nos e acre-
chegadas, pe·l o preço da obediência total ao que vos seTá ditai que uma boa acção nunca deixa de ser recom-
proposto re•encontrareis as vossas malas e mais um terço pensada.
do que é o seu real valor.» O CRIADO - Não duv·ideis que as malas estejam
O primeiro movimento que tivemos foi o de uma na casa desse senhor; não as hav:ei.s de recuperar, porém,
surpresa muda que nos deixou os olhos .p regados uma na se não satisfizerdes os seus dee·s jos, e os dos amigos;
outra, a boca aberta e a respiração suspensa. Sempre tem três, a eie ~igados há trinta anos e todos mais ou
mais viva na desgraça do que eu, Clémentine chamou menos da mesma idade; partiJ.ham o fruto dos seus
imediatamente o criado da estalagem: prazeres e sa·b oreiam-nos em conjunto. As suaJS riquezas
-Quem é o homem que nos acaba de trazer esU.t são prodigiosas, ainda que dois terços delas sejam con~
carta? - perguntou. sumidos com mulheres. Não há espécie de ardis que não
O CRIADO- Na; verdade nem o conheço; é a pri- inventem, eles ou os seus agen~. para wpdsionar 0
meira vez que põe os pés nesta caJsa. pássaro nw rede. Dinheiro, ciladas, sedução, processos,

D E N T R O Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Edições Afrodite- DE FORA PARA
Donatioen-Aiptlonse-Françoi·S de S~ Donati·en-Aiphons·e-FrançD'is de Sade

60 61
prumo, raptQ, violação e taJlvez pior. Nada disso lhes -O quê? No estad · d"
zidas? . o m Igno a que nos vemos redu-
custa, afinal, é como um deles é chefe do património
real, conta entre os processos favoritos envirur ratoneiros - Não importa o estado se a vjrtude resta
à sua ordem para os recintos onde as equipagens dos -Fazermos o papel de 1 ·
rados? or.pas na,s mãos de tais ceie-
navios se reúnem, para daí observrurem ·os viajantes de
terra ou mar e farer-lhes o que a vós fizeram quando se --:::- Ape~a:s cedendo nos transformamos em lor as.
entre ·e les encontram caça a seu gosto. Se fordes ao en- nao cairmos nas suas armad"lh 1
, p ,
a sê-lo. a·s , so eles ficarão
contro desses senhores, ireis recuperar a bag!llgem, sem
dúvida; se não fo'l'des e, aproveitando a carta;, experi- - Não! Temos de .s er mruis c . .
temos de lá Í'!'. . oraJo.sas do que dizes;
mentardes apresentar queixa, hão-de negar que o escrito 'temos de reaver as malas esm . , 1
\tenha partido deles: dirão que as vossas malas estavam as nossas censuras petrif" , 1 , aga- os com
tência! . . . ' · Ica- os com a nossa resis-
cheias de contrabando e, por tal razão, as mandaram ·
reter; se persistirdes, como é imenso o ·seu crédito, hão-de - O vício consumado ri d .rt
se Ih · . a VI ude ; e esta deixa de
fa?Je.T, soib qualquer p'I'€texto imaginário·, que :vos metam Desaf.mmos perigos certos sem ter a
g lóriaed·elmpor.
os vencer.
na casa das raparigas de mau ,p orte onde conseguirão,
apesar de tudo, aJbusar de vós sem que alguma vez - Quem os teme nãü tem coragem!
acheis meio de furtar-vos ~s suas mãos. - Quem os afronta é orgulhoso em dem . '
- Confiem . , asia.
- Deixai-nos, meu amigo - disse Clémentine - os o proJecto. a estalajadeira; façamos-Ih
e mil agradecimentos sinceros pelas informações; acre- a proposta de nos acompanhar. e
ditai que haveis de receber de nós o salário, mal encon- - Podemos tentá-lo mas há d .
Pedi , ' - e r ecusa..r.
tremos condições de vos pagar. , mos a Sra. Boulnoi.s que subisse A .
- Pois muito bem! - disse-me Clémentine quando Mostramos-lhe a carta ·b ·d · · · pareceu ...
aca a: a de receber e
ficámos sós. Desde que ex~stes, alguma vez tiveste conhe- prometer as confissões do criado . : sem com-
que pensava da aventura . , ~erguntamos-Ihe o
cimento de crime enfeitado com tão odiosa·s cores? Boa - rr· . e o que farla em nosso lugar
razão têm rus mulheres para enganar os homens, pois ·l a - respondeu descaradamente . .
não passa um dia em que à sua inocência eles deixem que poderia; segui'!'--se. Examinai 'be ' sem ocul~a: o
será d d m a vossa posiçao ·
de estender semelhantes armadilhas! Mas não é tempo gran e esgra:çru nas circunst A • '

encontrais? anelas em que vos


de dissertar - continuou. ~ preciso agir. Que decisão
tomB.:S? Desde esse instante não mais duv"d'
-Fugir de Lisboa. mulher fora comprada e e ., 1 amos que a
u Ja pensava em despedi-Ia

Edições Afrodite
Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO DE FORA PARA DENTRO
Donatien-Aiphonse-François de Sade 'Dona~ien-Af.phon&e-François de Sade

62 63
qurundo Cléme.nt ine, mais esperta, ousou dizer-lhe com
de uma das facas da mesa e entregando-me a outra......:.
aJtivez que um ta1 conselho a surpreendia e bem via
e não poupemos os que se revelam suficientemente co-
agora como se enga.naxa: julgando que uma mulher
bardes para nos sacr.ifica:rem às suas indignas pairxões.
honesta ficava segura em sua casa.
-Vamos- disse eu levantando-me- aceito 0 de~
- A nossa intenção era bem diferente, senho'l'a safio.
-continuou; pretendíamos ir à caJSa do duque reclamar
Via-o agora como sendo.o melhor; indo lá, podaTíamos
o roubo que teve a: infâmia de fazer-nos e pedir-vos que
escap~ ao crime e recuperar -os nossos bens: não indo,
nos ·servísseis de salva:guarda ...
h~vena~os amb~s de cair numa misérlia certa, da qual
-Eu?.. . eu aparecer em tal casa? .. .
so podermmos smr peilo crime. Avaliámos, pois, todo·s os
- N@.o nos aconselhastes que fôssemos? ...
facto·s; combinámos o plano; estudámos os di.s cursos
- O assunto é vosso e não meu - prosseguiu a; mu-
e aguardámos a hora fatal que 1ir·i a decidir a nossa
lher enquanto· se retiTava; de r~to, faJZei' ~ que. enten-
sorte ... Soou, essa hora cruel, e o lacaio surgiu ... Vinha
derdes; tende apenas em conta que dentTo de vinte e saber se estávamos decididas.
quatro horas não podereis estar em minha casa.
-Estamos - digo eu - estamos... Tendes aí a
- õ justiça do céu! todo o inferno se conjura contra carruagem?
nós - disse Clémentine ao ficarmos sós; os teus maldLtos
-Espera-vos à esquina da rua e seguimos ru pé até
preconceitos de vjrtude hão-de perder-nos ... Fica aqui lá, se o consentirdes.
- continuou furiosa,. 'levant&ndo-se e atingindo a porta -Seja.
- que vou enfrentar sozinha os perigos quiméricos desta.
. E pusemo-nos a caminho ... Subimos, era um carro de
awentura .. . do1-s lugares; o lacaio ia atrás de nós; o cocheiro tocou
-Não! -exclamei, apertando-a nos braços .. . não,
e voámos. E .difícil pintar-vos o estado em que me
l>Ois não hei-de comer o pão da tua prostituição . . : não
e~co~~ava; h~ha suspensa a; ci:rculação do sangue;
viverei do fruto da tua desonra .. . Em que haver11a de
so VIVIa atraves de paLpitações reit·eradas do coii'ação·.
transformar-me, neste horrível quarto? ... A inquietação
Um pouco menos de agitação e teria sucumbido. Ma,is
pelo que te pudesse ter acontecido, o temor de ·dênticas
corajosa ou decidida, Clémentine apenas decidia manter
desgraças de que ta~lvez -f osse 1p resa na ausência fata:l,
sH_êncio e, _sombria, de vez em quando apertava-me a
tudo isso al"''aaSta.ria: o meu espÍI'ito a tal agita:ção que,
~ao sem dizer ~alavra. O trajecto era longo e fora-nos
de regresso, me encontrarias morta.
PII_Lt~do com ma-s cores quando saímos de Lisboa que
-Então coragem; vamos lá as duas, sem ter medo de1xavamos., pela última vez na vida; seguimos as mar-
de nada. Levemos estas armas - diss8!, apoderando-se
gens do Tejo. cerca de dua-s léguas, depois cortámos

'E d -i ç õ e ·s A f ·r o d I t e - D E F O R A P A R A D E N T R O
Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Donat:ien-Aiphonse-Françoi.s de Sa<le

64 Doootíen-Aiphonse-François de Sade

abruptamente à esquerda para os lados de Leiria 1 ;


65
a:bandona.ndo de repente a estrada laxga, metemo-nos Ao mesmo tempo ia tira~d 0 . . .
de Clém .. · os aJfmetes do corpete
pelo meio de um bosque, uma álea r rurnalhuda; que nos €nu1ne • esta por' -"'
·~t.. em, <~~Lastou-a com ~brandura·
- MI.u!.ua cara senhora -
' ,
levou, enfim, ao port ão de uma casa erma, porém de ,. ·
muito bela aparência. A carruagem entrou no pátio cerimónia repugna-nos a mi::P~d~uh- esta aviltante'
- ' a mm a companheira·
e logo as portas ·se fecharam. O lacaio desceu, a:briu assim mesmo como estamos na- h '
o avemos de mostra
a .portinhola e , caminhando na e scuridão, introduziu-nos -nos menos SUJbmissas ao d , r-
vo - . que e nos podem exigir os
num segundo r ecinto onde, sem que víssemos ainda ssos patroes; dlgnai-vos, todavia dizer-Ih - ..
qualqueT luz, pediu que· aguardássemos um inst;ante. tentemente supr . ' es que msis-
Icamos a dispensa da; regra.
Pousando a mão no C{)II'ação da minha companheira A governa nt e saiu, voltando' a: dei .
verifiquei que batia tão forte como o meu. lhada:s em treva. xar-nos mergu-
-Coragem! -digo-lhe. Tu, que há pouco me exor- - Já não há q . d .-.d .
. ue U'VI ar - digo eu a Clémenti . .
tarvas, suporta que seja agora eu a fa:zê-lo; acho-me na na verdade minha car , . ne,
di·sposi~ão de tudo· empreender; o céu encheu a minha longe. , a, e Imprudente chegar mais
alma da força que .s empre oferece à virtude quando -Aguardemos a resposta.
se trata de esma:gar o vício. A velha reaparece
íamos observando; .pareceu-nos haver muito pouca . - u, assegurando-nos que era ridicul
a no·s sa dificuldade um . a
gente nru ha,hitação: as precauções que o crime toma t d . --- a vez que, mai•s cedo ou mais
ar e, h.avia de ser necessário não lhe P"... - ,
qua,ndo' pretende rodear-se de ex-cessivos cuidados vol- . ,
q ue nos f Izessemos ' ' <W.ec1a razoavel
rogada·s.
tam-se às vezes contra ele. Apareceu finalmente uma
velha governante com uma candeia. -Ao menos tudo 'isto - continuou desi d
roupas da cintura; para bruixo. Atend· d' , gnan .o ~s
-Minhas querida;s filha,s - disse-nos - tende a - en o' a subm1ssao
bondade de submeter-vos ao hábito estrubelecido na1 casa; qoue astsim reve1aríels, podia ser que fôs·s eis dispensadas
d · re.s o.
nenhuma mulher pode entrar vestida nos aposcnto.s em
que vos esperam os respeitáveis senhores com os quais ~Nem a maiis pequena coisa, senhora r - dis ,
mentme. Suplicamos-lhe que . . · se Cle-
tendes encontro marcado. __ Ajudar-vos..ei, se achais con- asstm seJa poio t d .
taxemos lá dentro. • · -o u o ace1-
veniente que o faça.
- Bem srubemos que sim - di·s se a, velh·a
1 Não falando já do absurdo g100gráfko qUie é situaT lle:irna que lá entrea.s,
· sera, preciso fazer t d · Uma vez
pama lá d'e Belém (11elativa:m1ente a L~sbOOJ), enoontra,-.se a paJ.avra Se ·_ , . u o o que convém.
gm me, pols, uma; vez que
com grafdlél. e:I1I"a.da (Leiv.ia) 'IlD texto originaL (Nota do Trad.) vos reconheço ·te,imosas
como as mulas da Galiza __ _

E d i ç õ e s A f r o d i te - D E F O R A P A R A D E N T R 0'
Edições Afrodite
DE FORA PARA DENTRO
5
Donatien-Aipflonse-Françoi·s de Sade
'•OooatJ.en-Alphon~&e-François de Sade

'66
67
E fomos: adnda era preciso atravessar três sa:las que
- Que pretende ela di,z er? _
encontrámos mergulhadas em trevas como as prece- ~-primeiro lugar falara. Onde .ir' perguntou o que em
dentes; ao fundo abria--se um salão muito Huminado; a ·de Corte Rea:l ?... a desencantar o Duque
velha entrou à nossa frente e nós seguimo-la. Quando -O quê 7· ·· · ·na-oe.saemcasa?
t'
a !pOrta se abr.i:u, quatro homens de cinquenta a cinquenta
- Que inocentes!... _ disse ~ se
e cinco anos, vestidos com r.oupões de tafetá flutuante "enganaram r S b . . gundo. Como vos
que os de,i xavam meio rms, p3isseavam numa grande agi- . . . -.. a ei que vos encontrais e'
tação; e no instante em que os vimo•s já as três malas, ·~ e Is oa ... Ei-lo _ m .casa
pnmerro correge·do... d L " b .
.
do
mostrando 0 mais velh d contmuou,
pousadas em oima de uma me•sa; à nossa fr.ente, nos · o os quatro-_ que · .
··com três amigos magi tr d aqui se reuniu
atraíam de igu'<l1l modo o olhar. , , ' s a os como ele par d' .
.a custa de dua·s pat. eti·n h a;s como vós • a, se Ive:rbr
- Para que servem tais dificuldades? - di·sse um ,caem nas mãos. • que as vezes lhe
dos personagens dirigindo-se a nós, enquanto os três -No entanto, aqui. estão as .
'!:'estantes nos observavam com atenção. Não parece "Clémentine. Será possível nossas malas - disse
coisa de maior · mi·stério ~er duas p ... ·completamente a ordem possam eles , q~ os encarregados de manter
nuas - prosseguiu o prime~ro o'l'aidor. Acaso julgais . tal?. . . ' proprio~, perturbá-Ia a ~m ponto
que vindes aqui impü'l'-nos a vossa vontade? .. .
-Espero, D. Carlos, ser este o 1
- Oh, não - disse outro - é que as donzelas têm aprender as leis d·" ugar onde iremos
·corregedor - . 'I's se o que nos f01r· a d esignado
· como
medo de se constipar ...
- e aqui temo•s uma bacharel d S
-Nada disso - prosseguiu o terceiro; pretendem a dar-nos instruções sob . . , a e' alamanca
que lhes admi:remos a mrugnid:i'cênoia do trajo ... P "" _ re o que e nosso dever
-Dona Rufina - di,s se o que ainda não falara, - - ac1enc1-a' pacienci•
·" ·aJ - continuou D C · · ·1
nao tarda que sejamos nós a; , , . ar os -
dirigindo-se· à velha - agarrai numa destas vestais - Senhor - . manda-Ias a nossa escola.
digo ao chefe, para cortar -
é que nada lhe reste no corpo em três segundos .. . maus desígnios _ aqu· t' cerce tao
I es a a nossa bag
A velha wproiX'ima-se ... roubada e ·e ncontramo- . , agem que fo·~
-Parai, senhora - digo-lhe eu em tom imperati•vo . nos nesta casa a reclamá-Ia
-, . Haveis de reave- " 1a - di··s se o corregedor '·
d .
e, de tal fo;rma, ·que ·se alrurmou ... parai, pois não foi para porem compreender que antes disso , - - eveis
isso que viemos; .p osso saber, senhores, qual de vós é o mónias prévias a; efectdar V ·I . ' ha diversas ceri-
Duque de Oorte Real?... - continuo eu, dirigindo-me .se não pretend" . a ena a pena te" ~ Ia r et"d I o
essemos que nos fos d .
ao círculo. quistada? ' se, ep01s, recon-

Edlçõe •s Af·rodite- DE FORA PARA DENTRO ~,E d i ç õ e s A f r o d i t •e


DE FORA PARA DENTRO
Donatien-Alphonse-Fr:mçois de Sade·· 1Donàtien-Aiphonse-François de Sade

68 69
_ <X>nquista.r o que nos pe:rtence '· · · · Um magistrado"
. ao peito do outro., enquanto eu agia de igual forma sobre
. fal ? p·e rgunto com a;J.tl,vez. ,os que se encontravam mai.s ao meu alcance:
é quem ousa ass1m ar · -
• A di"N>.<:t quando ·se trata de devolver o que· -Insignes bandalhos - grita ela, dirigindo-se à
Deve1s por con "'~- .
]lOTtal- eis como a inocência e a virtude sabem ·t riunfar
é nosso?... d um ··da infâmia!
- Essa lógica não no•s pertence - :re·spon eu
dos tratantes; o mais forte é sempre• . o, ~enhor das E sai; precipito-me no seu encalço, atravessando
. U , .do o, har sobre a vossa ml'sena, .sobre o· "como um relâmpago os aposentos em que já tínhamos
lets. m rapi . 11 passado, e lançámo:-nos ambas no pátio sem que nenhum
rubandooo em que vos achai~,, sobr~ ~s pessüas a qu::
daqueles homens cobardes e enfraquecidos pelo vício
fala:i~s, e dizei-nos se convira resistir quando algu
·.tivesse coragem de nos seguir, ou força de nos alcançar.
pretende soCOTrer-vos. · ·· ____, Abre essa porta - disse Clémentine imperrJ.osa:-
-Socorrer é de<v:olver o que é nosso. Ousar arre--
mente ao wiado que nos trouxera - tenta reterr-nos se
batá-lo não passa de um cruel insulto. -queres temer pela V\ida.
-Tínheis rrazão, D, Carlos - dis·se o corregedor - -
, Amedrontado com a;s duas facas, o velhaco obedeceu.
devia ter deixado que estas criaturas_ ontem se a~a:: .Apesar da negrura extrema! da noite, esca,pámo-nos sem
, calabouço para que estwessem hoJ~
~parar. ou olhar para trás, saímos do bosque e atingimos
~~m .. numD Rufina! Se tiver uma vez mais de di•zer-vos
.a planície a correr.
ocalei~ .. ·. ~sso deverr mandarei que amanhã vos metam
qu e 0 · ' "d qual não voltareis a -Pois hem! - di;sse Clémentine atirando-se de esgo-
numa ca·sa vüssa conhem a e na ·tamento e fad!iga) de encontro a um pardieir:o que ali se
ver o sol até ao fim dos dias. . - te -encontrava - como vês, minha cara, escapámos sem ter
A talis palavras, a insolente de1rtüu a mao ao corpe, . derramado uma gota de sangue ... sem ter perdido a
arraJstou-me em direcção a um canape' tão preciosa florr do seooo, à qual atrJ.buis tão graJnde
do meu vestido e . lh
, sobrre ela consigo escapar- e e:, preço ... Oh! muito custa a; trilhar o hem! :m verrdade que
Curvando-me ' porem, •
que me encon--
lançando de repente mão da arma com ,o vício não dá tanto trabalho.. Acreditas que os· teus
trava munida: . 1
-belos projectns de C8Jstidade não haviam de causar-nos
_ Desgraçada! MaJis um passo e sere1-s mortru · , -remorsos se acaso houvéssemos estrangulado um quaJ.-
Nesse instante os quatro ami•g os · deitam se
. . a ele- ·> que:r daqueles miseráve:i.s ? Bem podemos estar mergu-
• e a mi·m· a minha valoirosa companheira, que lhadas em virtude, que assim mesmo é possível a melhor
menrt:1ne .• d com. ilL mao - hvre
· d enuibara
entretanto se hama arma o, f ·-das acções deiXar de ser desejável desde que o crime
um deles a seus pes , e, apont ando a extremida:de
. da aca a envolva ou dela poosa. resultar.

DENTRO•
Edições Afrodite- DE FORA PARA !Edições Afrodit·e- DE FORA PARA DENTRO
Donatien-Aiphonse-Fmnçois de Sad.e''
WILLIAM B(CKfORD
70 (1760-1844)

- õ Deus! - exclamei, de igual forma esfailfada ~i~iaim Beckford de Fonthill encarnou wm tipo suf'-
e rendida ~ que infame prostituição de um ~ado, que· ~en;temente bmnal de milionário grande 8enko .t
Jante, bibliófilo,. construtor de 'palácios- e lib:;.ty,::
imprudência do outro! Chapman, seu btógrafo, desen1'eàa ou pretend d ,
-Pelo menos afa:stemos as dúvida.s - continuou redar o labitrinto da sua vida mas dispensa ae a::.;n-
Clémentine - já que •srubemos onde se encontra a nossa ~!mVathek, romance r:ujas dez primeiras págirws ;:.
BOR~~a; a sua glórw, de escritor - JORGE LUIS
bagrugem ..
-Deus do céu! Será possível que -e~istam no mundo· Um dos .homens mais vis do seu tempo, cu ·o
paises em que é de tal ordem o albuso das colisas ma.is quase ratava a loucura - HILAIRE BELLob vício
respeitáveis., a ponto de -entre os primeiros ·inf.ractores: O nome de Beckford de tal mod0 nda .
da lei se -encontrarem os que deviam fazê-la vingar! à história
- ,do s cos tu mes po'T"tugueses do
a século
as8ociado
XVIII
-Nada é ma~s simples do que isso, visto ·ser a impu- ~:e-ruro há atUtor no.sso que não se abone nas obser~
. çoes das suas Cartas para traçar 0 , q'I.Uldro da vida
nidade quem o encor.aja: elevai o homem e logo faz;eis ~l~'i!~RnoS;;;;~~ da senhora D. Maria I _ JOAO
na-scer nele o desejo do mrul, pela esperança que alimenta
de o pra:ticar 1:0em r~is·co.
- Nenhum homem dev.eda ser sUJperior a outro? N_0!8ce em Londres. Beckford-criança teria
- Deve:ria: sê-lo apenas um instante, para que às suas ~o alJUno de música de Mozwrt-criança. Um
paixões se:rvi:sse de freio O' receio de ser tratado-, qU31ndo füho
. natural do Czarr Pedro 0 GrOJYI.de t ena
.
fraco, de forma i•g ual à que ele trata'V.a os outros, quando .nA00 .seu prec:ptorr. Beckford passa a adoles-
dominava. certOUJ, em Génova. Casa com uma filha do
De qualquer forma, no nosso ca:so o que nos espera? Con.de de. Aboyne. Ê eleito no Parrlatmento
A ruína nunca foi tão certa; que asilo se abre à nossa pela circunscrição de Wells. Um escândalo de
miséria e que recocsos ainda nos restam? ... Não devemos costumes e171Volve o seu nome e do jovem Vis-
voltrur a Lisboa,. se acatS.o acredita-s em mim. conde Courtenay~ mterrompendo-lhe a car-
-Também acho - digo eu - alcancemos Madrid reim política. Beckford viaja pela Eur a
op ~
como pudermos; talvez não ach~mos em todo o lado
e""'"""' , .
P ,' ,....,nece varws meses em Portugal como
almas torpes, como exn Portugal. .. Talvez ... hospede do embaixadar da Inglaterra em Lis-
..... . ...
... .. . .. . ... ... ... ... ... ... ... .. . ... .. . .. . ... ... bCX:. De regresso~ manda construir em Fon-
thül
t , , uma grandiooa abadia gótica, 011./k vvve,
·
(AUne et Valcour ou le Rom:an Philosophique} a e a derrocada finanweira que obriga à venda

Edições A~rodite _ DE FO RA PARA DENTRO


Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO•
Wfll.lam Beckford

72
das suas popriedniles. Entre obras várias de
costumes e impressõe~ rela;oimuJ,dos com. os
países que visitau, William Beckford é tam-
Dém autar de Vatheck, narrativa gótica es-
crita ariginalmente em frwncês.

DE FORA PARA DENTRO


Edições Afrodite
WiiHam Beckford

73
73 APARTE

Segunda-feira, 4 de Junho [de 1787] 1

largo no dia 15 de Março,


BOVD ALE>tANDER: •fel·SO ao f I o de Lisboa nove dias
rt m que tocou o •
e o p{lmalro po o e maJor parte do tempo enjoado, ( ... ) Como o céu estava enevoado e a poeim ~ada
depois. Tendo passado a ali ficou oito meses. A sua
•·ecusou-se a Ir mais long~t elJ ave e nessa caso torramos ·pela chuva que ultimamente caiu, saímos antes do
clamor podia tar ab~~ l rnu C~nh~cedor da sua reputação, o jantar para fa.oor umas vi·sitas. Nunca vi tão detestãveis
0
sido privados do r • recusou-se 8 recebê·lo ou
ministro Inglês Roberth W~lpo~ortugal, o. Maria I. E este -subidas e descidalS, tão escaiDpadas vertentes e íngremes
3 0
a apresentâ-lo à Raln t das funções oflcl ls • da
ladei!ras como aqui em Lisboa. Julguei;, por vezes, que
acto exclul~·o, autom~tlca~:n :~onteclmentos tomarem um
sociedade mglesa. Mas se)ll Beckford vlu-so apre· ia ser despejado nO' Tejo ou que iaJ rolar para; dentro de
aspecto inaudito. Como quer qMue • ' d• Marlalva favorito
sentado a OI ogo, 0 «Jovem• arques v •
velho do que ela vinte e um
vala·s de areia, e cair no meio de sa,patos velhos, de grutos
da Rainha e estrlbalro·mO~, mais afundamento dedicado • tor· mortos e das negra!S bruxas que se acolhem nestas ca-
anos. Marlalva fl~ou·.lhe ogo ':;ão Caetano, qu ara quem
naram·sa lnaeparave•s. ( ... )I edeu·lha uma audltincla; vernas e luras no propósito de lerem a si.Il!a e venderem
governava virtualmente o pa si cone desejava sempre per· feiti~s contrru maleitas. A Inqui,sição, às vezes, apanha
Seabra o mRnhoso jurlsconsu to que lma discutiu durante
• ' d estavam por c • estas miseráveis sibilas e trata-as horrorosamente. Hoje,
tencer li facção os que rinclpal nobreza; o Merquh do
horas o seu caso com a P ça do melhorar a sun ao passM', vi que arrastavam uma cá para fo:ra, não sei
Pombal visitou Beckford na ~pe:tan do amigo do Marlolva:
precária situação, graças à s b ~a do n m ntor umo cção dizer se por um Familiar do Santo Oficio. Fosse qu~m
prlmciro·mlnlstro vl u·s~ ;~gnBrasll esporava a primeira
0
0
de retl!guarda; e 0 Princ pe le Todos na melhor
fosse, a verdade é que seuti um gra:nde aJiv.iu quando
conversor com e · me afastei daquele hidiondo ·s er cujos ui.vos me encheram
oportunl dade pera m ll proscrito a quem o seu
disposição do mundo pari! co
0 pro)octo do Morlolva de terror. Qu.a nto maJis conheço Li·sboa, menos gosto da
próprio embaixador Ignorava. (. ~~a filha mais velha} denun·
[cnaar Becldord com Henrl~~::· lnvulgar da dedlcoçiío que cidade. Não tem nem a riquez.ru nem a d'igmdade de uma
clava o tlrmez:a e a nat I de conservar o emlgo
voltava a Becldord. Eral aM::n:~~orn algumas vezes mos·
capital. Parece antes uma série de feios ;povoados ligados
a seu lado, em Portuga · com mulheres. Beckford uns aos outros. As igre·jas, em geral, são desprezivel-
trasse tendências amorosa: c~':nra O. Hcnrlqueta. Mllltisslnto
não era homem para casa Pod Irmão dela. nessa altura
mente pequenas e tão deficientes, no ponto de vista da
ma!s lho interessa~a O. ro , arquitectura, que ·só posso compará-las a certas v~stas
com trezo anos da Jdade.•
imaginária;s dos templos mexicanos que se encontram
.. · d W '1ll ·1 ~m Beckford em nos atlas holandeses. A maior .p arte delas tem a sua
(Introdução <K> D•ano e G

Portuga1 e Espanha} torre no detestável gosto da antiquada moda: da;s caJixas


de relógios franceses, no género das que Boucher de~

1 Tradução de JoãJO Gaapa.T Simões.

' Edições Afrodite- DE FORA PAR A DENTRO


PARA DENTRO
DE FORA
Ediçó&s Afrodi·tO -
WiHI·am Beckford Will>lam Beckford

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senha , com muitos arabescos e floreios, para guarnecer de cidreiras lavados pelaJS chuvas que ultimamente têm
caido. Atra-vés deste vale pa-ssa o enorme aqueduto• de
os a:posentos de Madame de Po~padour.
Esta tarde a:travessámoo a mdade de pon:a a ponta, que tantas vezes tens ouvtdo falar como sendo o mai•s
a caminho da casa de campo· do Duque de Lafoes. o. povo colossal edifício d() género na Europru. Tem rup€nas ú.ma
ficava a olhar, p~smado, para '3J altura d a boleta do linha de arcos em ogiva, e o principal, que abraça uma
·lb- ara outros torrente de águas, mede, apro!Ximadamente., 90 metros
coche., .p ara a: jaqueta curta do post 1 ao e p -
. Co"""O 0 . Duque• nao estava de altura. As pontes de Orurd e Caserta, se estás ~em­
anglici~mos da eqmpagem. .... '
casa continuámos a nossa jornada pela maT~em2 brado, têm várias linhas de arcos; uns por cima dos
em ' · · t d Marvtila outros, o que distraí a atenção da: imponência do con-
do ~ejo, ao longo dos mur~s da qum .a e ,
·. dade do velho Marques de Marvlla. Renques de junto. Há mna grandiosid.ade no desenho desta única
propr1e . '+.· linha de arcos digna: de admiração. Sentei-me deooixo
frondosos ulmeiros tornam muito de'lettos~·s estes s:u..,Ios.
As pequenas colinas da:s vizinhanças estão cobertas de do grande arco:, num fragmento de ,rocha, e olhei para
giestas espanholas. Negras nuvens, mos~ueadas de um
a obra de alvenaria, lá tão a1t a por cima de mim, com
vermelho de tormenta:, pairavam sobre o no-:- que nesta uma sensação ao mesmo tempo de respeito e de terror.
extremidade de Lisboa tem cerca de nove ID.l:has de l81I'- Dir -se-ia que aquela construção' fora levada a cabo por
gura - e a margem oposta, que n::al se via ~anhava qualquer Ente incomensurável, dotado de uma for~-a
pálida e colorida luq; de um desmalado arco-~1S que o gigantesca, a quem talvez pudesse apetecer vaguear ao
:ol, no ocaso, mal já tinha fo.rças para ~luminar. A 'v asta
longo da sua obrru esta mesma manhã, e por mero ca-
superd:icie da$ -águas, o matWado do ceu, ~ frescura do pricho reduzi!T-me a pó. Próximo do sítio em que eu
ar e o contorno azulado da:s montanhas dl'stantes trou- estava sentado havia várJas cercas, cheias de canaviais
xeram-me à lembrança a paisagem do Lago· de Genebra, de 3 a 3,5 metros de a:ltura; ~s .suas frescas folha:s .
e mui:ws outTas circunstâncias que rodear~m . a ~erda verdes, agitando-se à ma~s ·l eve aragem, fa~iam um per-
daquela a: quem eu amav.a mais do que à pl•opna VIda .. . pétuo murmúrio. Gosto muito deste sussurro, que quase
me ado·r meceu, fazendo-me esquecer, por momentos,
todas as minhas preocupações ...
Terça-feira, 5 de Junho .
· ( . .. ) Aproveitei a ausência do sol para ~~r um passe10
a pé peio vale de ~lcânt:al!ra, entre laranJaiS e pomares Quinta-feira, 7 de Junho.
Mal pude dol'mir por causa do repicar dos sinos, o
2 MSJrVi1a. flcaova &
a.ctuaJmentie ocupado ~ ..~a gr~lJ!~r.~,.:-
o Pátio Mo.tr!.al-00, ha.bi........., 1.>01' o..-- '
=
mlCI1a milha. do P-alãolo do ~. lucal
altnda exl•s te
do estãlburo.
rufar dos tambore~, e o toque dos clarins que princi-
piaram logo de madrugada, em honra do pomposo fes-

-DE FORA PARA DENTRO Ed i ções Afrod i te DE FORA PARA DENTRO


Edições Afrodite
WIIHam Beckford
WiHiam Beckford

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tival do Carpo de De'US ( *) . Tinha preferido ficar em lanço de escadas estava guarneCJido pelos archeiros da
crusa escrevendo-te e lendo Camões. Mas haviam-me Guar:da Real com os seus' ricos uniformes de veludo
contado tais mrura vilhas da procrissão em honrru deste multicor e uma infinida:de de clérigos de cruz alçada e
glorioso dia que não resisti ao incómodo de sair para estandar:es em punho., formando uma das mais teatrais
ver com os meus próprios olhos. As ruas do bruirro em pers?ectwas que 'eu ainda contemplei. Bandos de frades
que il'81bito, bem como QS daquel~ que eu atravessei a maciientos, de háJbitos brancos, pardos e negros, per-
camill!ho da p,atriarcal, ~stavam completamente desertas. p~ssavam, continuamente, como se fossem perus a ca-
Dir-ee-ia que a peste tinha varrido a Grande Praça e até mmho do mercado. Esta parte da procissão era muito
mesmo as movimentadas cercanias da Casa da índia mo:osa e enfadonha. Enfastiado, deixei a varanda onde
e da Bolsa, pois, inclusivamente, os vadios, os pária:s estavamos murito bem instalados, mesmo em frente do
e os mendigos cobertos de vermina e nru última fase da ~ainde pórtico, e penetrei na igreja, onde se rezava
mi,s·~a pontificai. Nuvens de incenso erguiam-se no espaço
decrepitude tinhrum abalado para o teatro dru festa.
e milhares de pessoas via:m-se ajoelhadas. Luz de inú-
Apenas se viam miseráveLs rafeims farejando os mon-
meras , v~Ias fazia cintilar os diamantes e os rubis do
turos pelas ruas rubandonada,s e algumas velhas para-
ostensono que o Patriarca eieva;va nas suas trêmulas
líticas. Meia dúzia de ranhosas crianças que choravam
e devotadas mãos para receber a misteriosa hóstia.
porque as tinham d'ed:x:ado em casa, eis tudo quanto eu
. Antes da cerimónia, voltei para a minha janeia a
vi nas janelas sem fim. fim de obter Uffi·a vista geral da saída do Sacramento.
Já ouviru o murmúrio: das vo·zes da multidão apinhada ~udo era expectativa e sHêncio entre 0 povo. Os guardas
em torno da Patriarcal antes de lá chegar. Avançámos tmham formado aos dois lados da escadaria, em frente
com grande dificuldade entre filas de soldados, formados da P~~a do templo. Por fim, uma chuva de plantas
em linha de batalha, e depois de contornarmos um negro ar.omatwas e de flores anunciou a aproximação do Pa-
recanto ensombrado peLa aLta mole do edifício do Semi• t~Iarcru com a hóstia sagrada debaixo de um pálio real
nâxio, junto à Patriarca!l, descobrimos casas, lojas e Circundado ?.e la nobreza e precedido de um vasto' cortej~
paJãcios, tudo transform'8Jdo em .pavilhões e armado de santas figuras mitradas, as mãos juntas em orrução
de alto a. tbailxo de damasco vermelho, de tapetes de _as vestes escarlates van-endo o solo, e os seus caudatário~
variegadas cores, de colchas de cetim e de cobertas de ~m~u~ando crucifixos, reltcários de prata e outras
oamru franjadas de oiro. Julguei-me no mero do acampa- 'l~SI~~Ias da majestarle ·pontificai. Vagarosamente, a pro-
mento do Grão Mogol. A frontaria da grande igreja CI·ssao. desceu o lanço de escadas , ao .oom., de cant·1cos
A

apresentava-se magnificentemente engalanada. O vrusto corais e de; longínquas salvas de artilharia;, perdendo-se

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DENTRO
WilHam Beckford Wll J.i.am Beckford

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numa tortuosa; rua decorada com esplêndidas colgaduras, que o Príncipe do Brasil continuou taciturno e indife-
deixando-me aturdido e os olhos deslumbrados como os rente no meio deste .glorioso entusi'asmo. Embora. os
de um santo que acabasse de ser v,isitado por uma ares ressoassem com altos gritos rogando ao Céu por
visão de celestial esplendor. A cabeça voava-me numa ele, a verdade é que o Príncipe não deu o mruis pequeno
vertigem e os ouvidos ressoavam-me numa v1bra~ão sinal de rugrado ou wprovação. Bastava um aceno de
de sons-sinos., vozes e o eco das salvas dos canhoes mão para calar a alma de centenas de milhares de súb-
ditos seus. Como é que um ser humano se pode reduzir
repercutindo pelos montes e trazido pelas águas.' .
Pwssei a Il!oirt:e em ca·sa de Mr. Horne, dehmado a assim à ordem vegetatirva? ...
ouvir D. Luísa de Almeida e o seu mestre de música,
Sábado, 30 dé Junho
um fradinho quadrado, de olhos verdes, cantando mo-
Pombal veio visitar-me. Ê um homem gasto pelo
dinhas (*) ·brasileiras. Trata·va..se de uma espécie ori-
jogo e pela; luxúria, mas há um à-vontade e uma ele-
ginal de música, diferente de quanta tenho ouvido, a
gância nas suas maneiras nada vulgares em Portugal.
mais sedutora, a mais voluptuosa que imaginar ·Se pode,
Os ingleses têm estado a fazer o que podem para o pre-
a mais calculada para fa·~ perder a cabeça dos ~Santos
di,s porem contra mim e, consciente de ter de dar crédito,
e pama inspirar delírios profanos. Estava muito bem por algum tempo, às ·s uas insinuações, parecia; um pouco
disposto e dancei com uma boa; porção de mulherzinhas embaraçado na minha ;presença. Embora ele seja das
até às duas da manhã. maiores fortunas portuguesas, cerca de cento e dez mil
coroas de rendimento anual, qui~s-me fruzer acreditar que
Quarta-feira, 27 de Junho o pai tinha morrido em péssimas circunstâncias, sobre·
Ouvi dizer que a Rainha anulou o imposto sobre o carregado de dívidas contraídas para manter a digni-
1Jacalhalu (*) ·e, por conseguinte, foi recebida com invul- dade da sua; posição e a honra do· país. Falámos bastante
o-ares a:clama:ções. Mais de mil barcos e barcaças, trans- de Fonthill, de Maria~v.a:, o Grão-Prior e D. Pedro. Jan-
~ormados em caramanc.héis de .flores e grinaldas, acom- támos juntos e mUJito bem. Eu estava com melhor di.s-
panhavam-na com música e foguetes. Seguiu a .pé desde posição do que hwbirtua:lme.nte e de tal modo pude entreter
0 cais de desembarque até ao seu Palácio, sem escolta, o Marquês que ele nem :tempo teve para abordar o seu
por entre a; multidão, cujo reconhecido entusi,asmo atin- tema favorito, que é o meu totai abandono da Inglaterra.
g,i u 0 delírio. Estas genuínas manifestações são_ raras Quanto mails conheço o Marquês, mais razões tenho para
em Portugal, e a Rainha de tal maneira o sen~m -~ue gostar dele. Não há dedicação mais sincera que a que
qua~se tinha lágrima·s nos olhos. Tive pena de ouvir mzer ele me cons,agra. Chega a esquecer, inclusivamente, os

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WiiUam Beckford' Wilf.iam B~ckford

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deveres do seu cargo. Esta tarde, em vez de acompanhar e os pórticos de muitos conventos da:s margens do
Sua Majestade ao convento:, aqui nas vi·z inhanças do rio brHhav,a m como edifícios de mármore, e as fragosas
sítio onde moro, sariu de carruagem comigo. Fomos a rochas e os pobres telheiros que avultavam perdiam..ae
MarvHa, o jardim abandonado e selvagem de que o mergulhados em negras sombras. A Grande Praça, que
Grão-Prior tamto gosta. A minha carruagem, segt11ida nós atravessámos, regurgitava de ociosos de· toda a es-
pelos pajens de Hbré real que acompanham o EstrJheiro- pécie e de todos os sexos, os olhos arregal·a dos para as
-mor, foi o pasmo de toda a cidade. Marvila: tem coisas janelas Huminada;s do· Palácio na esperança:J de verem
bonitas e pitorescas. As árvores, velhas e fantástiJCas, Sua Majestade, o Prínci:pe, as InfantaB, o Confessor
debruçam-se· sobre arruinadrus fontes e mutiladas está- e as damas de honor circulando de sal·a para sala e
tuas de heróis cujas armaduras o perpassar dos anos dando ampla margem 81 divertida·s conjecturas. Dizem-me
matizou de muitas core,s : púrpura, verde, e amarelo. que o Confessor, posto já a;lgo avançado em anos, está
No meio de matagaJ,s quruse .i mpenetráveis, há estrrunhas :longe de ·~r ~insensível aos atractivos da beleza, e cos-
pirâmides de pedra, rodeadas de leões de mármore, com tuma: per~eguir as jovens ninfas do Palácio, de janela
o a;specto de símbolos mágicos. O Marquês tem sensibi- para janela, no meio de grande alacridade. Já pa•ssav•a
lidade bastante para respeitar os toscos monumentos das nove quando chegámos a casa, bebemos o chá, indo-
da: ildade em que os .seus antepassados realiZ'aram tantas lentes e de:scuidados, reclinados em canapés e inai,ando
heróicas empre:sas, e solenemente me prometeu jamais o aroma dos jasmins. Sentia-me inspirado. O Marquês
sacrificar estas venerávei·s sombras ao gosto petulante elogiava a magntficência das óperas do rei D. José II
e V'istoso dos modernos a:jardinamentos portugueses. Fiz quando sessenta cavalos e duzentos soldadoS' costumavam
uma grande proi\llisão de jrusmim branco e amarelo, o aparecer, ao mesmo tempo, no .palco,, na cena do triunfo
ma;is forte e luxuriante que até hoje vi. de Egiziello e de CaffareUi. O . esplêndido teatro onde
Parte do percurso, no ;regresso a casa., fizemo-lo à ~st-es sopranos ultrafamosos estavam habituados a gor-
serena luz da lua cheia, que se •erguia por detrás das Jear e a pavonear-se f.oi destruído, com todas as ·Suas
serras do Alenteija na outr3J margem do· Tejo, espa- decoraçõe·s de veludo lavrado e reluzentes adornos
lhando uma faixa cintilante 3!0 longo da vasta superfície quando da conflagração que se seguiu ao terramot~
das águas. O Marquês bzia a apologia do clima e repetia, de 57. Foi nessa catástrofe que os Marialva·s perderam
continuamente, ser impossível um luar daqueles em a sua galeria: de pintura, as suas ricas jóias e curiosas
terras de Inglaterra. Lisboa, sob esta suave cla~idade:, pra·t as. Segundo o que toda a gente me tem dito, Lisboa
parecia outra. As escadarias, os terraços, as capelas era a cidade do mundo com mais ·p orcelanas do J3!pão
e curiosidades indianas.

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6
William Beckford Wílllam Beckford

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d.a mes~a estúpida maneira. E não houve nada que os
Domingo, 8 de Julho fizesse Irnvestirr contra o cavaleiro, nem perseguildos com
o Marrquês e D. Pedro, que hoje jant.a;ra.m com-igo, o fogo de artifício nem espicaçados a ponta; de espada,
acompa.nhaxam-roe à tarde a uma corrida de tokos. nem acossados pelos cães e provoc-ados por pretos de
Doze destes ·i nfelizes ~nimús lá estavam com toda: a. sua dentes 8Jrreganhados·. Não é preciso grande coragem para
estupidez e resi•g nação bovi:na, no meio de um a~~teatro se atacar estes pacientes animais. O espectáculo des-
descoberto mrui·s ou menos do tamanho e do diaroetro gostou-me profundamente. Tinha os nervos em pé, du-
de Renela~h, que pode levar duas ou três mil pessoas.
rante t~o o :rest? da; ~de só senti· cutiladas e golpe•s.
Os pobres animais não daNam sinal nen: de corrru~m Gregón:o Franchr e Luna 3.1paTeceram e procuraram
nem de ferocidade: nem escavavam, furw·sos, o chao, consolrur-me, fazendo música.
nem atiravam terra ao ar. Nunc•a v.i mais qui:eta manada
nos cercados de vacrus de Tottenham Court Road. Depois Segunda-feira, 9 de Julho
d:e termos esperMkl um quarto de hora no nosso oa.marrote, ( ... ) Assim que acabámos de jantar, dirigimo-nos
entraram, de roldão, na praça, uns doze pretos hedilo~dos, a Colares, onde passe'áimos, para um lado e para 0 outro,
grotescamente vestidos à maneira aproximad<8! dos 1ndo- num terraço que pertenceu a um tal La Roche, negoci•a nte
chine"Ses., que, depois de darem saltos e cambalhotaJs, fran.c~s, que me quis parecer pessoa de certo gosto pela
conduziram a manada de toilros para um recinto fechado, manem1; como arranjou a sua quinta. Oo~are,s com os
feito de rripa:s pintadla!s. Em seguida, entn:ou a; procissão seus pinheiros e ca·s tanheiros, rompendo das f~ndas da
dos pretalhões da jaquetas a.ga.loadas, seguidos dos ·p rin- penedia, uns por cima dos outros, até considerrável alturaj,
cipai·S li.dadores, com o seu ajudrunte-de-campo monta~o pa;rece ~a; pequena alde·ia sa;boiana. Fontes de áJguas
num oa.valo de alta escola~, que curveteava e fatzla claras, a somb:m dos ramos dos sobreiros e dos fron-
mesuras. De,p ois de darem volta à praça e de saUdarem doso·s limoeiros, jorram de paredes axruinadas à beira
a assi.stência dos camarotes, abriu-se a porta do recinto dos caminhos, vindo cair. em bacias de máTinor~ à volta
fechado e um dos bois viu-se forçado,, contra sua von- d . ,
as quais, em geral, se juntam bandos de asquerosos
tade a sair para a; arena. Ali ficou imóvel, por momentos, mendigos.
até ~ue 0 cavaleilro, ,g irando ràipidamente à volta dele,
u~ servidorr do falecido rei, que· tem uma grande
lhe espetou a lrunça no lombo. Embora ferido e do'l"ido, propriedade nos arredore•s, convidou-nos a entrar no
não fez qualquer violento esforço prura se def'enderr ou seu jardim com mui·t as reverências e adulações. Julguei
vinga'!". Depois, oraNaram~lhe ·lamça.s até ele caM- morto, penetrar nos pomares de Aloinuos. Os ramos das árv.ores
os membros ia.ssos e toda a; sua carc~ a estremecer caem, literalmente:, com o peso dos frutos, e 0 mais
na agonia. Onze toi;ros foram abatidos ma-is ou menos

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Wllloiam Beckford
WiHiam Becktord

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Intend:nte da P~lícia., não ter querido deixar :passar, sem
pequeno a:balo 13az que o chão fique coberto de ameixas, um aviso da Ra:nha, ~lguns .caixotes de livros·, etc., que
tairanjas e damascos. Há na quinta UD181 grande cascata me chegaram a Alfandega. Queixei-me e irritei-me
artifiicial com tritões e d'elfin-a a vomitarem torrent-es de alternadamente, declara.n;do que não se podiai viver em
' ~
água;s, coi.s:a a que eu não prestei metade da atençao Portugal ,e que o Marquês estava entorpecido e que a
que o proprietário esperaV'81. E, retirando-me para a verdade e q~e uma pessoa 3Jté podia- escolher um cepo
sombra d8!S árvo!I'es de fruto, banqueteei-me com as para seu am1go do, cora~ão. O Abade deixou-me despejar
doirada;s m:a~ãs e as amei'Xas púrpuras que rolavam o saco, c?m?' qualquer regateira de Bi.Uingsg81te. Depois
em profusão sobre mim. O Marquê~, sa;bedor da minha tentou por agulll na fervura, justificando.,. com grandes
predilecção pelas flores, encheu-me aJ C8:ITtm:gem de ~rgument~s, a. condut·a de Manique. H orne, que' assistia
cravos e ja~mins. Nunca vi mais extraordinárias pla:ntas, a alt:rc~çao, na, entre dente~, cordialmente. Bom inglês
quer em tamanho quaT em vigor, que as que têm aJ sorte qu: e, fica sempre saHsfeito quando qualquer pequena
de crescer nesse afortunado solo. A e~sição da quinta cmsa me desgosta de Portugal .. .
é, também, particularmente feUz, proteg~ida! pela; vertente
dos montes e defendi-da dos ventos do mar por três ou Sexta-fedra, 10 de Agosto
quatro milhas de matas e pomares. Não me apetecia nada . O 'rejo está coberto de embarcações que vão a ca-
abandonar este silvestre e umbroso local. O Marquês, mmho da corrJda de toiroo. Tomei banho. o General
pela ·s ua parte, não se podia ter de contente ao ver-me F?r~s e .D. José jantaram comigo e foram à tourada.
tentado a comprá-lo. Twe as mmha,.s ordens um escaler ou ba•rco de odto remos.
o vento, quando regressámos a;o pavilhão do' Mar- Nunca .em minha; vida vi barqueiros mais valentes que
quês, sopra.va tempestuoso. O céu estava límpido e o est~s algarvi'os. Atravessámos o rio numa espantosa
poente feérico. O convento de Mafra, na: distância, dtr- rapi~ez, ultrapassa~do o velho Marquês de Marialva,
-se-ia! o palácio de' um gigoote., e toda a região em roda que 1a na sua gale de cinquenta remos. Este homem
era como se o monstro tudo houvesse devorado, dei- nunc~ perde uma co roi da de toiros. Desembarcámos numa
xando-a naquela desolação ... a?raz1vel encosta toda coberta de pinheiros e' aromá-
tleos arbustos. ~gui:mos dal·i directamenrte ,pa.ra 0 con-
Sexta-feira:, 20 de Julho ve~t~ o~de ~e :binham insta.l ado D. José, Assumar e os
Embora eu estivesse sem paciêneia rnenhuma, topei prmmpa1s hdadores. Fomos encontrá-los a 8.1taviar-se
com o velho Abade, bode ~piatório, sobre quem eu des- co~ os seus fantásticos trajes espanhóis. D. Bernardo
carrego os pecados dos meus adversários. Hoje veio que1·x ava-se de febre e bebia; grandes tra;gos de cerveja
jantar e eu censurei-o muito por o seu sobr~nho Manique,

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DENTRO
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Wllliam Beckford WiiHam B,eckford

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preta. As decorações da praça eram do mi·s erivel estiio e mestres de esgrima, que ·b atiam com os pés e soltavam
das de Lisboa. Com grande surpresa minha, os meus tais gritos de ( ) \ a pedir cobres, que eu já não
que'cldos amigos D. Bernardo e D. José, em vez de me podia ouvi-los. Perd1 por completo a paciência, e vendo
levarem, cõmod'amente, para; o principal ca;marote, onde que o Genera;l Forhes, D. José eM. Verdeil estavam tão
estava a Condessa de As·s umar e várias outras senhoras, agastados como eu com tudo aquilo, resoJvemos re-
deixaram-me sàzinho, e eu que me arranjasse como gressar, oorcw das nove hora,s, reemba.Tcando no nosso
pudesse. O Gener&l Forbes, que é uma pesso31 realmente escaler, com rumor a Lisboa, o mais de,pre·s sa que pude-
cor.t ês e delicada, teve o ·cuidado de me 81Tanjar onde mos. A noite deliciosa, se~ena, suave e tranquiJa·. Uma
eu fic.a,sse ibem instalado. Foram massacrado-s quinze doce brilsa arrepiava as águas, a;s quais, depois de agi·-
ou dezasseis infeli!zes toiros. Os pretos saltaram para tadas pelos remos, chispavam e fulguravam de uma luz
a praça vestidos de macacos, a: agitar os rabos, no meio azul-clara, à semelhança da que .produzem esses estalos
do hor,roro·so .chiinfrim de não sei quantos horríveis chineses de qu:e a; cânfora é o principal ingrediente.
~agotes e rabecas. Outro grupo de pretos. metidos em Estava muito contente por voltar para casa.
sacos, tropeçavam e il'olarvam diante d'os torros, fazen-
do-os perder a paciência: D. Bernardo, S!pesa.r da febre, Segllilda-fuira, 27 de Agosto
mostrou coragem e perícia, D. José a maior destreza, P,a rtimos para Mafra às nove, apesa,r do vento que
e Assumar nada mais além da sua elegante jaqueta e nos, soprava na cara, o Marquês e eu numa sege, D. Pedro
da·s suas atitudes de peralvHho. e Verdeil no cwrrinho (*). De Siilltra até este estupendo
Dei um passeio: pela feira., depo[s do lúgubre espec- convento distam, aproximadamente, vinte e tTês quHó-
táculo ter acabado, e senti-me meio sufocado pela poeira. metro,s, e a estrada, que ultimamente foi reparada, segue
D. José ve.io dizer-me qoo ia haver dança; numa das atraves de uma planície tisnada e ligeiramente salpicada
barra;cas e qoo esperavru que eu os aco.mpanhaJsse. de ca:sruis e de moi;nhos. A vista sobre os montes à reta-
A barraca eTa tudo quanto haVIi'a de menos convidativo. guarda,
. cobertos de arvoredo e pontiagudas roch""'...,, e'
Toda forrada de damasco vermelho-sujo, lá dentt-o f~a: mmto agradável, mas, quando olhamos em frente nada
muito calor e cheíra;va a b:afio. Tratei de me es.capar. mais desola:do e árido do que esta paisagem. Como ~tínha­
O impudente bufão que dá pela alcunha de Duque de mos três mudas de mulas estacionadas no caminho
Parma 'e ncontrou-me cá fora e não me largou. Os pretos avançámos depressa, e em menos de uma hora e ~
em grupos também s.e a,proximaram, tocavam uns abo- quarto encontrámo-nos diante de uma grande mura;lhru
mináveis instrumentos e pediam dinheiro. Veio jun-
t·ar-se também a nós um grupo de jogadoTes d'e soco 1
Padiavra Hegível no manu.<Jcr!lito. (Nota de J. G. 8.)

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William Beckford
WHH·am Beckford

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88 d: Londres, que se elevam a uma altura de 90 metros.
que serpeia, ousada, ao longo das colinas da ta~ Sao leves e plantadas sobre pilares elegantíssimos, mas
de Mafra. Era pitoresca a vista sobre as torres de mar- a s~a .form& .apr~ima-se muito· da. gótica ou, 0 que é
more .e a cúpula do convento, ·s ubjugando as eminências bem ptor, do estilo do pagode, e carece de solenidade.
cobe!I'taS de urze., aqui e aH mati·z adas pelas cop8!S verde- Estas tpnes contêm vários ,s inos dos maiores que há
jantes dos pinheiros de Itália e a alta Hnha: dos ciprestes. e .um famoso carrHhão que custou muitas centenas de
Os telhado.s do edifício ainda não se v~am e continuámos milhares de oruzadiJ8 (~') e que princi,piou a tocar assim
por algum tempo contornando as ondulações da tapada, que se anunciou a nossa chegada. A plataforma e a
antes que os pudéssemos descobrir. Uma deputação, de escadaria diante da principa;l entrada da igreja é maror
irmãos le•igos e'speravta-nos para nos abrir os portões do que tudo que eu podia conceber de grande em Portugal.
da tap8!da real, tisnada por um fogo que há coisa de um Olhando cá de bSJixo para o Z1imbóri01 que se eleva alta-
mês atrás devorou a maior parte do seu arvoredo e da neiro,, por cima do frontão do pórtico, senti, ao ~esmo
sua verdura. A nossa aproxima~ão lan~ou o alarme entre tempo, um~ ~ande impressão de prazer e de surpresa.
os rebanhos de veados; alguns deles fugiram e foram Alonguei os olhos pela extensão do palác~o que se
refugi'a r-se numa mata de ·pinheiros meio queimados. per~e para. cada 18!do e senti-me esmagado. Foi com satis-
Depoi·s de costearmos o muro da grande quinta, do- façao que os afastei do esplendor daqueles mármores
brámos, ·subitamente,, ta esquina e descobrimos uma das e da confusão dos ornatos escultóri'cos para os des-
vastas frontarias do convento, que dá a; impressão de cansar na nnensidade azul do longínquo oceano. Há
uma rua cheia de palácios. Não creio que o estilo deste um grande largo em frente desta colossal fábrica na
edifício merecesse a aprovação de qualquer arquitecto extremidade do qual se vêem, disper.s as, algumas c~sas
italiano ou inglês; as janelas e ·a s portas são de forma br~ncas. Embora estas construções não ·s ejam de ma-
fantástica, mas, conquanto desastradamente desenhadas, neira alguma insignificantes, quando postSJs em con-
não há dúvida de que têm boas proporções. Ia admirando fro~to com a imensa construção das vizinhanças, pouco
a ·s ua ampla linha, à mediida que seguíamos, ràJpidamente, ma1s .parecem que choças de trabalhadores. Como tal as
ao longo da fachada, quando, rodando em torno do altís- tome1 qua~do.para elas olhei pela primeira vez, e quando
simo pavilhão que .flanqueia o edifício, se me apresentou me aproXIme'!, mai·s surpreendido fiquei com as suas
diante dos olhos a grande fachada que se estende numa verdadeiras dimensões. A v,i sta que se desfruta do adro
linha que tem para cima de 300 metros. O centro é for- de Mafra tem pouco interesse. Vêem-se daLi os telhadús
mado pelos pórticos da igreja, ricamente adornados de de uma aldeia qualquer e uns cabeças arenosos. Ã es-
colunSJs de nichos e de baixo-relevos de mármore. A cada querda, o panorama é delimitado pel-as escarpadas
um dos' lados há uma torre., no géne·r o das de S. Paulo

EdiçõesAfrodite- DE FORA PARA DENTRO


Ediçõe •s Afrodite - DE FORA PARA DENTRO
WV!Ham Beckford WiiHam Beckford

90 91
serranias de Sintra; à direita, um pinhal, d:a grande pro- o mais alto lanternim, tudo é revestido dos mesmos ma-
priedade do Visconde de Ponte de Lima, é um refrigério teriais, Rosas de mármo:r e bTanco e grinaldas de folhas
para os olhos. · de palma, do mais delicado lavor, ornam todo o edifício.
Para; nos protegermos do so~, que dardejava a esca- Tenho visto capitais corintios com melhor desenho, mas
daria, que ·conduz à entrada principal, pe:netrámos na nunca vi nenhum executado com tamanha precisão e
igreja, atrav.essa:ndo o ·s e'u magnífico pórtico, que me finura. Satisfeita a nossa curiosidade, depois de exami-
fez lembrar a entrada de S. Pedro, e está guarnecido narmos os vários ornamentos das capelas, D. Pedro
de colossais e:s tátuas de santos e mártires lav(['adas com e eu seguimos os no·s so•s guias, através de uma galeria
infinita delicadeza em blocos do mais puro mármore arcada, a,té à sacl'li's tia, süberba antecâmarra de abóbada,
branco. A primeira vi,sta da igreja é :impressioDJante. apainelada de mármore, tanto ela como a capela anexa;
O altar-mor, <:om duas majestosas colunas de mármoce forradas de tapetes persas. Atravessámos mais umas
vermelho rajado, talhadas em .bloco de mais de nove poucas de antecâmaras e de capela's decoradas no mesmo
metros de altUTa imediatamente nos chama a; atenção. esti'lo, até nos sentirmos extenuados e perdidos, quais
·'
Trevisani pintou o quadro do altar-mor de maneira ma- cavaleiros. a-ndantes no meio do labirrinto de um palácio
gistral. Repre·s enta Santo António no êxt·a se em que encantado. Comecei· a pensar que· aqueles espaçosos
vê o Menino Jesus descer à sua cela, envolto no esplen- compartimentos nunca mruis aJCaha,vam. O frade que nos
dor da glória. Como amanhã é di,a de Santo Agostinho, conduzia,, certo de que eu não perceberia uma só sílruba
a cuja regra pertence, a:ctualmente, o mosteiro, todos os de português, procurava expHcar-me as coisas que me
candelabros de oiro estão à v,ista e as suas velas acesas. mostrava por mei:o de sina,is, e qual não foi o seu espanto,
Ajoelhámos alguns minutos no meio desta brilha.ute quando. lhe perguntei, em ;b om português, quando aca-
iluminação. bavam as capelas e as sacrist ias. O bom do velho parecia
Os frades vieram até nós, fazendo vénias e adulalll- muito satisfeito com os meninos (*),, assim ele nos cha-
do-nos com a sua hrubitual cortesia,, e cori.duzir:a m-nos mava, a mim e a D. Pedro, e para dar às nossas pernas
a dar a volta pelas capelas laterais, em cada uma das juvenis uma oportunidade de se estenderem, largou num
quai s existem admiráveis baixos-relevos e velhos portms trote tão desemba·r açado que o Marquês e M. Verdeil
de mármore p:reto e amarelo, com riquíssimos veios, estavam mortos por vê-1o pelas costas. Claro está que
e tão polidos que .neles se reflectem os objectos como nós av-ançávamos na ma.i'O!' celeridade, atravessando, de
num espelho. Nunca tinha visto uma tal profusão de ponta a ponta, num minuto ou dois,, um dormitório de
belos mármores resplandecendo por cima, por ·b aixo e 180 metros de comprimento·. Os vastos corredores, e as
em torno de mim. O pav,imento., o tecto, a cúpullJ- e até celas com que comunicava,m são todos em arcada.s do

Ediçõe s Afrodite - DE FORA PARA DENTRO Edições Afrodite - DE FORA PARA DENTRO

. '·
WiiHam Beckford

92 APABTE 92
mais sumptuoso e sólido estilo. Toda·s as celas, ou a:ntes,
todos os quartos, - .pois a verdade é que são suficiente-
mente altos, espaçosos e bem iluminados para merecerem
este nome - têm a·s suas mesa·s e os seus contadores
de madeir:a do BrasiL
Precisamente quando emrávamos na biblioteca, o
Abade do Convento,, revestido dos seus háJbitos de ceri-
mónht, com a cruz episcopal pendente do· peito, caminhou
para nós ·a fim de nos .dar as boas-vindas e convidar-nos
a jantar com ele amanhã, dia de Santo Agostinho, nú
refeitóri'O do convento, o que representa uma :alta dis-
tinção, visto que os hóspedes,, em geral, são recebidos
em aposentos particulares. Achámos melhor declinar
o convite, certos de que, •s e o aceitássemos, teríamos
de sacrificar, .p elo menos, duas horas do nosso tempo
e acabaríamos por ficar meio cozidos .pelo vapor das
gordas viteia·s assada;s •e dos perus e leitões desde muito, GEORG CHRISTOPH LICHTENBERG: uNa biblioteca de Mafta
em Portugal, há 100 volumes a contar a vida de Sant~
sem dúvida, a ceva:r para• esta- solene ocarsião. A biblio- Anlónlo ...
teca é de um tamanho prodi'gioso. Não tem menos de (Afori smos -·-· 2.° C8derno)
90 metros. O tecto é abobadado, de uma forma. muito
elBgante, com belos estuques, e o pavimento de máa'more
vermelho e branco. Não se pode dizer grande coisa: dos
armários em que os livros hão-de ser arrumados. São
salientes de mais, amontoados de maneira pesada, e,,
ainda por cima, escurecidos por uma galeria que anda
em volta, no género de uma; prateleira, e se project:a
dentro. da sala de forma realmente esquisita. A colecção
de livros, que· :s e compõe de,, pelo menos, sessenta mi·l
volumes, está actualmente instalada numa série de gabi-
netes que comunicam com a biblioteca .. O ~rmão bibHo-

Edições Afrodit e - DE FORA PARA DENTRO Ediçõe s Af-rod i te - DE F O RA PA RA DENTRO


William Beckford

93
tecário mostrou-me algumas curiosas primeiras edições
de clássicos gregos e latinos. O meu lépido guia não me
deu muito tempo para eu os examinar. Deitou a correr
e, subindo por uma escada; de caracol, conduziu..;nos aos
telha;dos do conv:ento e palácio, os quais formam um
largo e liso t,erraço cercado por uma magnífdca balaus-
trada, entremeada; de chaminés,, e de onde se de·s fruta
uma; vista geral dos pátios e dos jardins. Desta elevaçã:o,
toda a planta do edifício se abrange num golpe de vista.
No centro eleva-se o zimbór,io como um belo templo
no meio das espaçosas avenidas de um jardim reaL
É infinitamente superior, do ponto de vista do desenho,
a todo o resto do edifício e pode, certamente, ser consi-
derado entre os ma.is elegantemente proporcionados da
Europa. D. Pedro e M. Verdeil propuseram-me que su-
bisse ·uma escada de mão que conduz ao lanternim,, mas
eu pedi que me desculpassem de os não acompanhar, e
durante a sua; aus·ê ncia entreti<ve-me a percorrer as
extensas loggias, aventuramdo, de vez em quando, um
olhM" para o pátio e os terreiros que ficavam em ba;ixo,
mas a maior parte das vezes gomndo a; vista das torres
que rebri:lhavam sob os raios do sol e a :a zulada super-
fície do mar distante. Um .fresco ar balsâmico, trazido
dos pomares de' limoeiros e laranjeiras,, envolveu-me
quando me sentci um momento nos degraus do zimbório
e veio mitigarr a temperatura do éter aJbrasador. Não
tardou, porém, que eu fosse arrancado a esta pacífica
situação por uma confusa matina;da de sinos, a que se
seguiu, depois, uma mais complicada melodia e~ecutada
nos carrilhões por um grande virtuose. O Marquês qui's

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Willram Beckford Will'iam Beckford

94 95
que eu me 8iproximasse para examinar o mecanismo, debald~, persuadi-lo, na noite anterior, a quer nos acom-
e ~senti-me meio '81tord:oado. Não percebo nada de carri- panhasse.
lhões nem de relógü.os,, e fico sem swber que fazer num
Deixámo-l:o com M. VerdeH a tomar um refresco, e
campanário. O meu amigo, que herdou dO! .p ai' aJ pecha
fomos assistir às vésperas ill!)) VSJsta igreja do Convento.
mecâ:nica, .p ôs-se a invesUgar cada roda com a mais
Depois de atravessarmos a fila de capela's iluminadas,
minrucios8! at-enção. Eu, pobre ignoii'ante, que apenas
ajoelhámo-nos diante do altar-mor com devoção e di!gna;
sou c8ipaz de pulsair pelo exteri·o r das coisas deS'tal ordem,
compo,s tura. Dois ingleses de aspecto -ord~náxio, con-
pouco me for dado observar ms peças do r elógio que
fundidos com a populaça:, à entrada do coro, observaram
ti.nha diante dos ol'ho~t a não ser que o rbronze da obra
estava admiràvelmente polido, era ornamentado com todos os meus movime~tos e seguiram-me com os olhos
esculturas, e que, como tudo o mais em M.afra., me pa- até me sentar, entre o Marquês e D. Pedro,, na tribuna
recia muitíssimo bem acabado. rea.J. Não e:s távamos há muito nos nossos lugrures quam.do
Descemos as escadais e esc8!pámo-nos do nosso guia, os frade·s entrrurarn em proci'ssão, atrás do Abade, que
dirigindo-nos par81 casa do Carpitão-'I'YWr (* ) , cuja juris- -subiu ao seu trono, tendo aos pés uma :fHeira de
dição se estende por toda a tapada e região de Malfr.a. sacristães e à sua direita uma fila de cónego's com os
Ganha setecentas ou oitocentas coroa:s por 8/noJ e a sua seus pa.rramentos bordados a oiiro. O ofício div.i no foi can-
casa tem todo· o a~pecto de pertencer a quem v.i.ve à tado com a mais imponente solenidade, ao 'SOm dos
larga ou na opulência. Os sobrados são· coberto·s com órgãos, pois há, pelo menos, seis Ilia igreja, todos de
.asseadas esteira:s, das por-t as pendem reposteiros de enormes proporçõe,s .
da,masco vermelho e as nossas camas, novas em foiha, Findos os ofíc~os. fomos ao encontro do Grão-Prior
estavam cobertas de colchas de cetim r:ic·a mente bor- e de M. Verdeil, que ·aca.bavam de cheg.a.rr, e, mai~s uma
dadas. Tivemos um excelente janJtar, preparado pelos co- ve'z, fomos empolgados pelo lépido irmão leigq, que nos
zi·nheiros e confeiteiros do Marquês, e uma~ sobremesa conduziu ao Pa·l ácio, através de uma sumptuosa escadaria.
muito melhor que aquela que os próprios frades nos Tem a sérri-e de salas 200 ou 250 metros de extensão,
poderiam dar. o Capitão.l'fTIXlt• (• ) 131Ssistiu ra o ja.nta!r, de e a' sucessão de altSJs portas, vi•stars em perspectiva,
pé por detrá:s das nossas cadei<ras, e t omava os pratos causa espa.nto. Não .t arda, porém;, que nos sintamos
das mãos dos cr:iados, para no-los colocal· na mesa. cansados de percorrer a,posentos abandonados e sem
QuandCYse estava. a servir o café, ouvjmos o·r odar de uma mo'biliádo, os mais estúpidos e desconfortáveis que eu
carruagem, e vimos o Grão-Prior ent·r ar ·n a sala, paira ainda vi. São todos iguais na forma e pouco variam nas
nossa grande a;legr.ia' e surpresa, pois eu tinha tentado, dimensões; uma; nua identidooe geral é o que prrevalece:

Ediç õ esAfrodite- DE FORA PARA DENTRO Ediç!lesAf r odit e - DE FORA PARA DENTRO
William Beckford
Wllllam Seckford
97
96 falta ~eágua. Deves calcular que depotis de darmos um
não ·h á um nicho, nã:o há ·uma cornija, não há um ornat o passe~o ao longo das principais avenidas da qutinta
entalhado a quebrar a fastidio·s a uniformid ade daqu~a:a pass~o
- a acresC€ntar
. a todas as nossas outra s peregn- .'
.p aredes br.ancas e nuas. Foi com prar.er que voltei para naçoes, nos sentimos de certo modo fatigados e não nos
o Convento, saciei os olhos com o espectáculo das co- soube mal descansarmos nos aposentos do Abade t'
lunas de mármore e senbil debaixo dos .p és ·o s tapetes da sermos
. cham ad os, uma vez. mais, para a nossa. tribuna• a e
Pérsia. P ara onde quer que fôssemos, éramos seguidos ~ ~~m de assistirmos às matinas. Ia escurecendo, e as
por uma estranha misoolâ-n~ de frades curiososJ sacris- mumeras vel~s acesas, diante dos altare~, por todos os
tães, irmãos 1ei.gos~ corregedo'res (•), curas de aldeia recantos
. da 1greJ'a, pnnclplavam
· · · a espalhar uma mis-
e janotas da terra, com os seus longos espadins e os tenosa luz. Os orgaos
' - ressoaxam outra vez e o Abade
seus ,rabichos. T<Odas as vezes que eu fazia uma per- retomou o seu trono com pompa igual à da·s vésperas
gunta, 'ha:via sempre meia dúzia. que estendia o pescoço O ~rq~ês pnin~ipiou a murmurar as suas orações, ~
para responder, como os peru~. quando ouvem <imitar Grao-Pr~or a recitar o seu breviário, e eu caí num pro-
o seu glu-glu. O Marquês já estava incomodado com fu~d? CISmar que durou tanto tempo quanto o serviço
aquela tumultuosa perseguição e vá-rias vezes tentou reh~Io~o ---: pe:OO de três horas. Verdeil, quase morto
ver-se Uvre da gente que o seguia; mas -esta: não nos de tédio, na.o pode conservar-se na tribuna,, no meio das
lar.O'ava e de tal modo ia: crescendo que dava a impressão nuvens de lncenso que enchiam o coro, e "'.LOI.· respirar .
de oque nós t inhamos despovoado todo o convento e a o ar puro no corpo da igreja e nas suas capelas adja-
povoação inteira, a:rrastando attás de' nós os seus hSJbi- cen.tes. Os meus ortodoxos companheiros pareciam tanto
ta:ntes , .à semelhança do rotante Gia:our na minha his- mais escandalizados por estas impaciências de herético
t óri-a. do V a.theok. Por firo, ao· descobr.iTme·S .u ma t>orta q~~~ se sentiam edificados pelo a,r devoto e o estrito
larga aberta, que dava paTa a quintll\, precipitámo-nos silencio que eu mantinha, pela minha parte. Eram qua-se
por ela e metemo-nos num l~birint:o de murta e lourekos, nove horas quando os frades abandonar"""'
d a.Lu o '-A.a0
nr>m d'epOI•S
. .
eselllpando aos nossos .p erseguidores. A qu~nta, que tem, e ter~m entoado um hino em louvor do seu venerável
aproximadamente, 250 metros de circunferência. encerra, padroelro Santo Agostinho. Seguimos a procissão, atra-
além d-e uroaJ mata de pinheiros bravos e de loureiros, vessando altas capelas e a:bobadados claustros que à
vá:rios pomares de limoeiros e de laranjeiras, e dois ou lu~ bruxuleante pareciam não ter nem tecto nem fim
três c.anteii'.OS, onde h á mais ervas, propriamente, do ate q~e ela penetrou numa sala octógona,, de 12 metro~
que f}Qi'es. Tive pe'D.SJ de encontrar este -lindo jaa'dim tão de diametro, com uma fonte em ~~ ..:~a um d os seus
t;(l,U

desprezado ~ .a luxur·i ante vegetaçã'O quase morta ;por


Edições Afrodite - DE FORA PARA DENTRO
Edlçõe ·s Afrodite- DE F O RA P A RA D E NT R O
William Beckford William Beckford

98 gg
quatro ângulos principaie, e os frades, depois de disper- perspectiva, vier·a m quatro monges alumiar-nos com os
sarem, para lavar as mãos nas várias fontes , de novo seus brandões até fora do convento, e aí nos deram as
formaram cortejo e penetraram, a dois e dois,, pelo boas-noites com muitas cortesias e genufle.x ões. A nossa
pórtico de 9 metros de altur:a, numa vasta quadra que ceia em casa do Ca;pitão-mor ( * ) decorreu na maior
comunicava com o refeitório da ordem por outro pórtico al~gria. D. Pedro, muito bem disposto, impressionado
das mesmas altas dimensões. Aqui a prodssão fez uma com o que tinha visto, deu largas à sua infantil vivaci-
paragem, pois estw casa é consagrada à memória dos . dade. Velámos até tarde, apesar da nossa fadiga, dis-
finados, e chamam-lhe a sala De Profundis. Ali, antes correndo acerca das muitas coisas que havíamos visto
de' cada refeição, os monges,, de pé, em atitude solene, em tão curto espaço de tempq, da multidão de grotescas
meditam ·em silêncio eobre a fragilidade da nossa fraca figuras que tão pertinazmente nos tinha seguido., e da
desastrada: vivacidade do irmão leigo. O .Abade con-
existência, e oferecem as suas orações pela salvação
tou-me lembrar-se ainda do convento de tábuas que ft-
dos seus predecessore,s. Confesso que tive medo quando
cava naquela planície de areia onde a·g ora .s e erguia
vi, à 'luz dos c·a ndelabros flamejantes·, tantas f.i guras
o grandioso edifício do Mosteiro de Mafr.a.
veneráveis, de pé, nos seus hábitos brancos e pretos,,
os olhos fixos no chão e absortos nas mais funéreas Srubado, 3 de Novembro
meditações. Assim que decorreu o tempo conswgrado a
( ... ) Como não tinha aqui, aquela longa série de ,g alas
esta: solene oração, cada um tomou o seu lugar nas onde estenda- as perna·s, que erra o caso do Ram:alhão,
longas mesas do refeitório, que ·s ão de pau-hrasil, e como estava precisado de exercício, convenci o meu
cobertas com o mais alvo linho. Cada frade tinha diante amigo, que anda ·s empre na ponta da unha, que me le-
de si a sua: garrafa de água e a sua garrafa de vinho vasse no seu carro de duas rodas através de Lisboa.
e o seu prato de maçãs e de salada. Não havia carne Só por Deus não atropelámos alguém. Os transeuntes
nem peixe, .p ois o jejum de Santo Agostinho é observado viram-se em apuros para fugk das nossas mulas, que
com o maior rigor. Para desfrutarmo$, no seu conjunto, avançavam, espumando e curveteando, como os cavalos
este singular e majestoso espectáculo, retirámo-nos para do Apocalipse. Perto daJ i'greja: de Santos 1 encontrámos
um vestíbulo que precede o octógono, e daí ficámos o Bon Dieu, como sempre acolitado por Vila Nova e
a observar, através dos portais a;bertos, a extensa f.ileira
de lâmpadas do refeitório que, tendo 60 metros de com-
primento, parecia terminar num .ponto. 1
Igooja prur'O!quiJa;l de .Santos -o-Velho, perto do T ejo e pegado
Depois de demorarmos alguns minutO's a apreciar esta ao PaláciO doiS Vilas Norvrus. ( Nota lfu edição original.)

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Wrlliam Beckford WiiHam Beckford

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os seus irmãos, dois rechonchudos :rapazolas de quinze pálido, tão débil, tão tremendamente magro, que nem
ou dez!lisseis ·anos. Apeámo-nos., claro está, e lá seguimos sei como tinha forças para elevar o cálix. Não o deixou.
0
Bon Dwu até ele ficar depositado em segurança no porém, cair das mãos, e a-ssim que acabou de· dizer mi ssa.,
seu Tabernáculo. Depois de atravessarmos o Terreiro Deus deu-lhe forças para começar outra, para nosso
do Paço, fizemos um desvio, e subimos uma, íngreme consolo e especial ·benefício. Tendo em conta as horríveis
ladeira 1, por entre montões de pedras e arcos d~sp~­ pinturas que cobrem as paredes daquela mansão de
daçados, ruína,s provocad!lis pelo tBTramoto, e dirigi- penitência e mortificações, e a contrição tão visível nas
mo-nos ,810 Bairro Alto. O Marquês mostrou-me :os es- lágrimws, nos gestos e mortificaçõesu e a; dos f)iéis que a
combros do que foi outrora o ·s eu sumptuoso pa:lá:cio, ela acorrem, creio bem que nenhum outr.o C(}nvento
onde hav'ia muita,s e importantíssimas pi:ntll'l'as de Ru- de Lisboa pode ·s er comparado a este em austeridade e
bens e dos p:riimitivnS\, oiro e prata, tapeçar·i as e ~apetes devoção. Eu tremia dos pés à cabeça e o mesmo acon-
persas de dezoito a vinte e dois met:os de com~mmento, tecila ao Marquês. Os meus joelhos começam a ficar
que ficaram completamente destrmdos. O ~a1rro Alto calejados tanta vez me ajoelho ·aqui. Verdeil é de opinião
é um Largo irregular, no topo duma alta colma, cercada que eu hei-de acabar num eremitério ou então doido
de igrejas e palácios e embelezada por uma imponente ~ ou talvez as duas coisas ao mesmo tempo. -E tam-

fonte 2 ••• bém que eu tornei o Marquês dez vezes mais temente
a Deus que antes de me conhecer, e que nesta ordem de
Domingo, 4 de Novembro . , ideia·s, encorajando-nos assim um ao outro, n~ tarda
Precisamente às dez hora,s estava o meu amigo a que aca;bemos por produzir seja o que for em tudo d'Íigno
minha porta, espera,ndo por mim para_ irmos os dois de uma casa de doidos. É verdade . que eu tenh(} uma
ouvir mi,ssa ao convento da Boa Mort-e. E este convento atitude muirto religiosa e uma bonita ma,neira de bater
um verdade-im Gólgota, onde há muitas caveira~, pois no peito, mas o certo é que há vinte ou trinta boas almas
os seus habit-antes, embora estejam vivos e se mexam que batem no peito melhor do que eu. Esta manhã, na
e tenham uma espécie de ·existência, pouco mais são Boa Morte, um velho pecador permaneceu, durante todo
do que esqueletos. O sacerdote que oficiava era tão o tempo que durou a missa, com os <braços aberlos.
Parecia, pela atitude e pel·a inflexibilidade, um ant igo
candeeiro de braços. E uma outra· contrita personagem
1o Crnado (Rua Garrett). (Nota da edição original.) tanto se emocionou no momento da co.nsagração que
2Bairro Alto' é o nom~ de um dos ba:ln'os de Dbsbota, mas poisou o nari-z nas lajes e lambeu o chão. Quando rece-
B eckford, aqurt, pa;rece ·I'eiDeritr-ste M· Largo do .Lo'l'eto, onde ftcaMlJTI
- · · l) berei eu graça bastante para atingir estes excessos? ...
as ruín&s do P&lãd.o MaTia:lva. (No·ta da ed~çao or~gvna ·

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Wili'iam Beckford
WIHI•am Beckford

102 103
Segunda-feira, 5 de Novembro lhes acariciar as penas, quando o Marquês mo impediu
( ... ) O Grã:o-Prio'r e D. Pedro vieram jantar comigo. com .wn olhar reprovador. D. Pedro e o Grão,..Prior,
Mal aca;bámos de jantar, saímos todos juntos, levados cientes do- cerimonial que convinha· manter, conserva-
·n as asas da santidade, .para cumpri1r os nossos deveres ram·se a uma respeitável distância, enquanto: o ,sacristão
com os Corvos Sagr8idos. Uma :soma: considerável tem e um velho padre desdentado, quase .dobrado ao meio,
·Sido despendida, nestes últimos ~séculos, com a manu- nos desfiara;m um longo rosário de anedotas a respeito
tençã:o de duas aves dé tal espécie. Os dois corvos estão daqueles Corvos Sagrados, dos seus imediatos prede-
fechados num escuro recesso de um venerável claustro, cessores e de outros corvos dos velhos tempos anteriores
I
anexo à Catedral 1 • São largamente alimentados e o a eles. O Marquês ·ouvia cheio de fé e cur.io.sidade. Nunca
mais .devotamente venerados. Remonta; este costume abriu a boca., durante a meia horar em que a;l·i estivemos,
original aos :remotos dias de S. Vicente, martirizado no a não ~ser para reforçar a nossa veneração e para excla-
Ca;bo que hoje tem esse nome, e cujo corpo foi miraculo- mar, com a mais piedosa compostura·: Hcmrado
samente conduZJido até Lirsboa num navio acompanhado Corvo (*) ! ...
por corvo~, os qua,is, depois de o .t erem visto convenien-
temente enterrado, perrseguiram os matadoces do Santo, Domingo, 25 de Novembro
despedindo terríveis gritos e .picando-lhes os olhos. Há ( ... ) Marialva, cujo serviço junto da Rainha é por
navios e corvos pintados ou esculpidos a; cada· canto da assim dizer completa; escravidão, mal se sentou à mesa,
lo~o foi outra vez chamado. A Marquesa, D. Henriqueta
catedral.
Era: tM'de quando penetrámos no :s ombrio edifício, e as suas irmãzinhas retirarram-se.• pouco depois. Foram
e os corvos, naturalmente, tinham procurado, com todo para junto da vefha Marquesa de Tancos, nos aposentos
o sossego, o seu poleiro. Mas um sacristão, que nos viu da Oame-reira-mor ( * ). Eu fiquei sozinho com D. Pedro
chegar, foi· ac'Ordá-los. Oh, que sedosos, que nédios e e D. Duarte.
lustroso·s eram! Receio que a minha admiração perante Agarraram-se, firmes, a cada uma das minhas mãos,
o seu tamanho, a sua plumagem e o ·seu .tanitrUJante e, desatando a corre·r como galgos, ao longo dos vastos
grasnar me hajam levado a ultrapassar os limites do corredores do Palácio, levaram-me consigo para uma
santo decoro. Ia eu, precisamente, estender a mão para .v:aranda que domina uma das maiores vias pú:bl'ica·s de
Lisboa. A tarde estava deliciosa e andava na rua uma
1 A rS é (a prU!mitiva e actual Qatedr'al) a que Beckfurd
multidão, de todas a·s classes, cores e nações, velhos e
a'ilnda não fizem qual:qUJer I1eferêncila. No seu OOmlpo, :tJilnha pouca novos, válidos e inválidos, frades e oficiais. Cardumes
import:âncta. rFot1a comp1eta.mente eclipsada e USUII'pada pela de mendigos vinham ·ali desaguar de todos os quartei-
Pa.t rla1•C8Jl. (Nota de edição ori.g im.al .)

EdlçõesAfrodite- DE FORA PARA DENTRO


Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
William Beckford WiiBam Beckford

104 105
rões da cidade, na esperança de arranjarem lugar junto -E verdade, companheiro. -Oh, querri·a ter ainda
dos portões do Palácio para verem sair a Rainha. Sua preciosos olhos, quanto mais não fosse só para ver o
Majestade é uma grande mãe indulgente para estes seu divino rosto - exclamaram os dois ao mesmo tempo.
rudes filhos da ociosidade e raramente sobe para a sua Quando o dueto já ia; mu~to adiantado, um cox~, um
carruagem sem ter antes distri,buído por eles conside- mutilado e um ·s arnento, depois de amarrarem uns se-
ráveis esmolas. Graças a esta mal compreendida cari- bentos gorrros na extremidade de· ·longos varapaus,
dade, centenas de corpulentos indivíduos tmtam de meteram-nos pelas grades da varanda, clamando: -Uma
ap.rendeT a servir-s·e das muletas, em vez de aprenderem esmolinha, uma esmolinha, por amor do Santo de Lisboa.
a servir-se dum mosquete, instrll!indo-se na perfeita - Nunca em mmha vida vira mais disfoTme e repug-
a·r te de manufacturar iferida·S, úlceras e ca:beça:s sa.rnen- nante colecção de earas. Dei'-me pressa em lançar cá
ta,s. Duarte, que é todo vida. e jov·Lalidade, debruçou-se paxa baixo uma copiosa chuva de pequenas moedas
da grade da varanda e ficou, por algum tempo" de tal de cobre. De outra maneira, Duarte teria agarrado os
maneira suspenso no espaço que, se a: mãe ou a ama' varapaus e 10s gorros, atirando com eles, travessura que
o tivessem vi·s to, teriam desma1ado. de susto. Os men- eu a todo o custo quis evita.r, pois, de outra maneira,
digos, que não tinham nada que fazer enquanto Sua lá se iria a minha reputação de santidade por água
Majestade não aparecesse, estavam a,ltamente entre- abaixo. Exactamente quando os oradores estavam a:
tidos com estas provas de actividade. receber .a sua quota-parte no óbulo, o grito de «Lá vem
Não tardou que dessem por mim lá em cima, e dois a Rainha, lá vêm as Princesas!» arrastou: toda aquela
musculosos lapuzes, desprovidos de vista, ;g raças a uma hedionda gent•a lha para o local da: acção, deixando-me
feliz mistura de~ bexigas e escrófulas, -informados, sem completamente à vontade para me divertir, pela minha
dúvida, pelos ·s eus companheiros, do que se' estava a vez, com as façanhas de esquilo do meu endiabrado com-
passar, iniciaram '\lffi cmioso diálogo, numa. voz aiooa panheiro. Era, realmente, um rapaz encantador, arro-
mais wlta e mais áspera do que a dos Corvos Sagrados: jado, activo e desembaraçado, em tudo diferente dos
-Deus faça medrar suas nobres Excelências D. Duarte demais jovens portugueses da aristocracia, raça dege-
Manuel e D. Pedro e todos os Madalva~, lindos meninos! neorada e efeminada .. .
Deus lhes conseTve o uso dO's seus membros. Não está
aquele abençoado inglês na companhia dos meninos?
(The Journal of William Beckford in Portugal anà
- E o segundo cego respondeu: -Está, ·sim, compa- Spain - 1'181-1'188)
nheiro.- Voltou o primeiro: - 0 quê! Aquele generoso
favorito. do glorwsíssimo Senhor Santo Antóndo (")?

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FRAHÇOIS DE CHATEAUBRIAHD
(1768-1848)

No too troçado paraZelo entre Ohateaubrianà e Na-


po"leão, paralelo esse que, por vezes, tkscoll'tinamos
'l1ll8 Memól"itWS correr como filigratrul., e.xiste pelo me-
nos um elemento semelhante em que mula é forçado:
o isolamento - evidente, ilmediato - na superi.oridmZe
- JULIEN GRAOQ

Períodos oratórios à parte, 'fi'IIBlhor do que nmguém


Ohateaubrianà faz levedar a 'I'I'UliSsa da ltilng,w agem -
PIERRE SEGHERS

Nasce em Saint-Malo, como qwi,nto filho do


Conde ire Combourg. Ao entrQff' da idade adulta
filia-se na Ordem de Malta, faz uma viagem
à América. De regresso instala-se em. Bru-
xe"/..a;s na companhia de Jean-Ba;ptiste, seu
irmão. Durante o cerco de Thionville recebe
um ferimento. Enqumnto Jean-Baptiste e ou-
tros memlYros àn- farmília Chateaubrialnd são
guilhotVnados em França, durante a Reoolu-
ção, Fram.çois mamtém-se emigrado na In-
gZrJJterra. Por alturas do império de Bonapatrte,
é nomeado secretário da Legação de Roma.
Depois de uma viagem à Grécia e oo OrWn.te,
é eleito na Academia Francesa, rwmeado mi-
nistro na Suécia, condecorado com. a Cruz de
S. Luís, nmneado Ministro dos Negóc:W8 Es-
trangeiros, Ministro do Interior, Ministro do
Estado, é eleito Par. de França, condecorado
com a Legiã.o de Honra. Uma reviraroolta

EdiÇões Mrodire - DE F O RA PA RA D EN T RO
Françols de OITM:eaubrland

108
política expulsa-o dD Ministério e Chateatu-
briand retira-se, acabando por 'nUYI"7'6T em
Paris. Principais obras: Memórias de Além-
-Túmulo~ O último dos Abencerragens, O Gé-
nio d<> Cristianismo.

Edições A~rodlte - DE FO RA PA RA D EN T RO
Françcrís de Chateaubriand

109 APARH
~~--------------------------------------------------
109
Os Açores -Ilha Graciosa (1791)
VITORINO NEMÉSIO: •A proa do S. Miguel, dobrando a Pudesse Gonçalo Vilo, avô :materno de Camões, prever
Ponto do Monte às duas da tarde, respondia que o Faial fica
a oeste. O vapor saira da Horta na véspera. Fizera nesse o futuro, que ao descobrir parte do Arquipélago dos
mesmo dia a escala do Cais do Pico, fundeara no porto das Açores reservaria uma ooneessão de seis pés de tm-ra
Velas onde passara a noite, até essas três horas, vindo
amanhecer em frente de Santa Cruz da Graciosa, como há para cobrir os ossos do neto.
cento e vinte e oito anos o veleiro do capitão Dujardin , de Ancorámos em quarenta e cinco ;braças de água, na
Salnt-Malo, que levava a Baltlmore o Superior do Seminário
de S. Sulpicio com um bando de seminaristas, e, acicatado base de rochas de uma péssima enseada. A llha Gra-
pelo again to sea! de Byron, ligado a Tulloch, músico, pintor ciosa, perante a qual nos encontrávamos fundeados,
e poliglota com quem passeava na ponte durante o quarto
de alva, e com Villeneuve, o mestre do navio, que mascava apresentava colinas algo inchadas nos contorno.s como
tabaco à proa e lhe matava saudades da Bretanha - o mag- as elipses de uma ânfora etrusca: revestida pela ver-
nífico, o melancólico Cllateaubriand .. .•
dura dos trigai~, deias se libertava um cheiro frumen·
(Mnu Tempo no Canal ! táceo e agradáve~. característico da ceifa nos Açores.
No meio desses tapetes distinguia-se a divisória dos
campos formada de pedras vulcânicas meio brancas, meio
negras, empi~hadas ·umas sobre as O'l.ltras. No a;1to• de
um outeiro ex:Lb.ia-se uma abadia, monumento de um
antigo mundo em terra nova; perto, numa angra seixosa,
:resplandeciam os telhados vermelhos da, cidade de Santa
Cruz. Com as sua·s costas recortadas em baí~, ensea-
das e promontór-ios, toda a ilha repetia nas ondas a
paisagem invertida. Rochedos verticads sobre J·o plano
do mar serviam-lhe de cintwra exterior. Ao furndo do
·quadro, plantado numa cúpula de nuvens, o cone· do
vulcão do Pico trespassava, além Graciosa, a perspectiva
aérea.
Ficou decidido que eu iria a terna com Tuilloch e o
[mediato; deitámos ao mar a chalupa que nadou em
direcção à costa, afastada cerca de duas mmhas. No-
támos que hav:ia agLtaç.ão em terra; para nós se dirigia

Edições Afirodlte - DE F O RA P A RA D E N T R <ll Edições Afrodite- DE FORA PARA OENTRO


François de Chateaub-riand Françols de Chateaubriand

110 111
uma embarcação de guerra,, a vela e remos. Ma1 nos único sobrevi·v ente do naufrágio, não lhe faltando in-
ficou ao aicance de um grito, di-stinguimos padres em teligência mostrou-se dóci:l às lições oos catequd·s tas;
grande número. InterpeLaram-nos em po:rtuguês, ita• aprendeu o português e algumas palalvras do latim;
liano, inglês e francês, e demos-lhes re·spo-sta. nessas milit•a ndo a qualidade de inglês em seu favor, conse-
quatro línguas. Entre ele•s reinava o alarm~, po:i·s era guiram convertê-lo e fazer dele um padre. Alojado, ves-
o nosso navio o primeiro, com envergadura de grande tido e alimentado ao altar, esse mar.inheiro de Jersey
.p orto, a· fundear naqueia enseada perigos·a onde ousá- achara tudo aquilo bem me~lhor do que ferrar a vela da
vamos enfrentar a maré. Por outro lado, vendo os ·i nsu- gata. Mas ll"ecordava ainda a antiga profirSsão e, encon-
lares peila •p rimeira vez a bandeira tricolór, não sabiam trando-se há muito sem falar a sua língua, mostrava-se
se tínhamos •saído de Argel ou 'J'únis: não fora reconhe'- encantado por achar que:rn a; entendesse; ria e prague-
cida por Neptuno a bandeira tão gloriosamente empu- java como um verdadeiro marujo. Levou-nos a um passeio
nhada por Cyhele. Foi extremo o regozijo quando verifi- peia ilha.
caram que tínhamos cara de gente e até peroobfa.mos o Construídas de tá!bua e pedra, as ca·s as das aldeias
que nos dizia:m. Os padres acolheram-nos no barco e, ornamentavam-se à custa de galerias exteriore,s que,
alegremente, remámos para Santa Cruz onde fizemos fazendo reina.r nelas muita luz, empt"estavam um ar de
o desembarque com alguma dificuldade, por ser vi'O- asseio a ta.is ca;barnas. Na maioria vünhateiros, os
lenta a ressaca. campónios andavam meio nus e tinham a: pele bronzeada
Toda a ilha wli acorreu. Armados de lança;s enfer- do sol; as mulheres eram pequenas e amarelada;s como
rujadas, quatro ou cinco aguaús tomaram conta de nós. mulatas, porém muito activas e apresenitando"'se com
Corno o uniforme de Sua Majestade atraía as honras,, garridirce ingénua que as levava a enfeitarem-se com
passei .pelo homem importante da deputação. Condu- ramo•s de silindras, tecendo com elas grinaldas para
ziram-nos a um rpardieiro em que Sua Excelência o Go- usar à maneira de coroas e colares.
vernador, trajando um reles fato verde outrora galonado A vertente das colinas resplendia de cepas cujo vmho
a ouro, concedeu a udiênc1a solene: o reabastecimento quase ~guiava· o que produz o Faial. Sendo ra;ra a água,,
foi-nos autorirzado. ainda assim crescia ·u ma figueira ou se erguia um oca-
Os nossos religiosos levaram-nos ao convento, um tório com pórtico decorado ÇL fresco', em todo o ffido
edifício com varandas, muita comodidade e ltl!Z. Tulloch em que brotasse uma fonte. As <>g~ivas desses pórticos
encontrara um compatriota. O irmão principal, que por enquadr1avam aspectos da irlha e pedaços de mar. Em
nós se dava a todos os tmbalhos, era um marinhed•r o de cima de uma figueira foi r011de eu vi desa.bar um bando
Jersey cujo navio perecera de corpos e bens na Gracio-sa. de cercetas azuis., não palmipedes. A árvore, que não

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Françols de Chateaubriand
François de Chateaobriand

112 113
tinha folh!lls, exibia cadeias de fruta vermelha como se
seu cargo o envio das nossas cartas para a Europa.
fossem cristais. E ao ornamentar--se de aves cerú:leas
Ao J.evantar de llm violento sudeste, o navio esUvera; em
que deixavam pender as asas, dir-se-.ia que os frutos
perigo. A ancoragem fora modülicada; como era de
se hav.i am tornado de uma púrpura gritante, tendo
esperar, porém, a âncora ftcou presa na's rochas e pe:r-
ficado a árvore como se brotasse nela, de repente, toda
deu ...se. Finalmente aparelhámos, o vento continuou a
uma frolh:agem azul.
refrescar e não tardou que ultrapassássemos os Açores.
:É provável que os Cartagineses co~ecessem os
Açores; e é certo que na dlha do Corvo se desenterraram (Mémoi-res dJOutre-Tolmbe)
moedas fenícias. Diz-se que os oovegadores modernos,
que em primeiro lugar abordaram a ilha, encontraram
nela uma estátua equestre· de braço direito estendido a
mostrar o Ocidente, se é que não passa a estátua de uma
imagem inventada para ornamentar os antigos por.
tulanos.
No manuscrito de Les Natchez imagino Oha'Ctas
desembarcado da Europa na Ilha do Corvo e encontrando
a estátua misterirosa. Desta forma ele exprime os senti-
mentos que me invadiram na Graciosa, ao :recordar a
tradi~ão: «Aproximo-me do monumento extraordinário.
Na ~base banhada pela espuma das ondas havia gravados
aiguns caracteres. O musgo e o salitre dos mares roíam
a •s uperfície do 'bronze antigo. Debruçado no capacete
do colosso, Alcyon dirigia-Uhe palavras ~angoro.sas.
Viam-se conchas colaJdas nos flancos e nas crill81S de
bronze do corcel e, aproximando das narinas ~bertas
o ouv:ido, acreditaríamOs distinguir rumores CO·n!fusos. »
Depois do passeio, os religiosos serviram-nos uma
boa ceia e passámos a noite a beber na companhia dos
nossos anfitriões. Provisões embarcadas) voltámos a
bordo pelo meio-dia segtiinte. Os religiosos tomaram a

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Edições Afr{)dite - DE FORA PARA DENTRO
8
LORD BYRON
(1788-1824)

Byr0111 pertence à aatego?'Út dos autores totdmicos.


Mesmo que a 81ta obra desapa,rece.sse das bibztoteca.tt,
ãJas Uvrania..s e elas ~mórtas, o byronismo haveria
ele ntanter·se im1ttável, com, toda..s as S1ta8 atitudes
moraia - a revolta satanica, a altiva melancolia,
o sa,rcasmo dcnjuame..se» - e todos os S{mbolos má-
gicos - o p6 ;mam.co-, o incesto, a separação, a mx>rte
Urica ~n Mi.ssolonghí - ROBJJJRT EBOARPIT

Lord Byron - contÍIMIIOu Goethe - deve s•e r anaU&ado


oomo homem, como inglês e grande génio. As boa..s
obras que 'fez vêm,lhe do homem; as más, de ser ingles
e Par d.e Inglaterra. Mas o seu gánio- é incomens.uráveZ
- E OE.ERMANN

l nff!JUR:, .p.oís, daquele que ao acabar de ler Byron não


sente no .coração um peso ~tSUportáveZ: a sua amta.
será tão e.scura e tão vazia ccmw a ãe..ste poeta subU·
.m81nfmte de..struiido?·. - ALEXANDRE HEROUL ANO'

Gearge Gotrdon Noel Byron nasce em Looil:res.


Ao atingir a maiioridade ingressa na Od'YYIXJh"a
dos L(Yf'ds e patrle, a seguir, parra o Oriente.
Entre as várias ligações amorosas qw teve,
poderão cit«Jr-se a'8 de Augusta Leigh, 81/D; ,

meia-irmã, dxJJ qual virá a ter uma; filha, as de


Owroline Lamb e Lady Oxford. Faz uma via-
gem. à Suíça e à Itália>onde se instafla e en-
tretém novas ligações com Olaiire (Jlairmont
e Teresa Gwiccroli. Byro:n partici-pa no mo-
vimento insurreccional contra a '.Ãustria.
Morre 1d:urwnte u1n.a '[TT"Olon~ viagem à
Grécia, sendo enterrado, por sua '1Xmtadx3,

Edições Afl"odlre - DE F O RA PA RA D EN T RO
Lord Byron

116
em Missolong11!i. Principais Childe
obras:
Harold, Giaour, A noiN1a de kbidos Lara,
Manfred, Don Juan, Sardanapa·lo, Caim, O D['S-
forme Transformado.

Edições Af.rodit e - DE F O RA PA RA D EN T RO
Loro Byron

117 APARTE 117


XIV 1
ANDRll MAUROIS: •Em Lisboa, os viajantes tomaram con-
tacto com a Eluropa em guerra. Os franceses de Junot aca-
bavam de ceder o lugar aos ingleses do Gener.al Crawford. Pros~ue o bM"co em VIOO pelas ondas,
Hobhouse, presidente de um clube liberal, chocou-se com
os costumes do país. Um clero tirânico Impunha as suas Sumiu-se. a terra, os ventos dobram na violência,
leis. Os mortos ficavam expostos nas igrejas com um prato São de vigiHa a•s noites na Baía de Biscaia.
em cima do peito, à espera que houvesse ali dinheiro bas-
tante para pagar o padre do enterro. A Inquisição ainda não Quatro dias ·Sê escoam e aí tem-os novas margens
fora abolida. Prendiam-se homens na rua .Para deles se Que em .todos os corações derramam rulegria;;
fazerem soldados. Mais vivo que Hobhouse, e susceptível de
tanta Impaciência para com os aborrecimentos alheios como
os que a si mesmo diziam respeito, Syron sentia vontade de
pregar a revolta mas ia saboreando o contraste entre a
Vede a serra de Si.ntra espraiada ao nosso olhar,
miSéria dos homens e a beleza das paisagens portuguesas. Vede -o Tejo que ali segue a unir-.se ao oce8.IDO
Gostou das laranjeiras que douravam o verde profundo dos
vales, os mosteiros pendurados ao alto dos rochedos. - Sin-
E em tr-ibuto lhe oferta os fioco·s dourados;
to-me muito feliz porque gosto de laranjas e falo aos padres Não tarda; que os ;pi-lotos lusitanos nos abordem
num mau latim que eles compreendem porque se parece
com o deles - e vou eu por ai fora (com as pistolas no E o navio singre através das margens férteis
bolso), e atravesso o Tejo a nado, a monto num burro ou Onde ficaram camponeses a ultimar a! ceia.
numa mula, e praguejo em português, e apanho diarre.la, e
sou picado pelos mosquitos. Mas que Importa? As pessoas
que andam em viagem da recreio não devem pensar em XV
conforto.•
(Don Juan ou A VIda de Byron)
Que prazer sinto em ver, ó Cristo !
Qu3!nto o céu fez por e-sta· terra de encantos!
Que embalsamados·frutos cobrem as árvores!
Que belas paisagens foi'IIlla a ondulação das colinas!
A rmão ímpia d<>'s homens, porém, tudo estraga;
E empunhando o Deus ,supremo a vergasta justi'ooira
Contra os vi-oladores da: soberana lei,
Há-de fustigar o ·s eu trovão três vezes vingador
A devastadora horda dos Gauleses
E da terra expusar quem ·s e mostrou o immigo mais
[cruel.

1 Tradução· não m€1tr:i!f.icada nem l'ilrnada.

Edlç6ea Afrodite - DE FO RA PA RA D EN T RO Edições Afrodlt ·e - DE FORA PARA DENTRO


Lord Byron

118
XVI ·

Que belezas Lisbo·a nos desvenda


Logo à primeim ~i·sta.! Vê-.se reflectida a. sua imagem
No rio majestoso a que os poetas ·
Inutilmente oferecem uma areia; de omo.
Ra:s gam hoje as suas ondas mil navi!OS poderosos
Que. o percorrem desde que a aliada .AJJ.bion
à Lusitânia corncede o protector apoio;
Nação inflada de orgulho e de ignorância,
Que dá beijos e lança maldições
à mão que em seu prove-ito se armou
Protegend~a da i!l"a implacável desse tirano das GMias.

XVII

Mas se alguém penetra na cidade


Que ao longe brHha como um céu a;berto,
Terá de vaguear, dorido, entre mil coisas
Repulsivas 1a os olhos de um estrangeiro;
Choupanas ·e paláci;os são iguah:r1-ente •s ujos;
Os ha;bitantes vegetam na imundície. '
Seja alta ou baixa a linha:gem,
Não há quem trate do asseio;
Se· neles caisse uma praga do Egipto,
Nem assim garantiriam às pessoas rne~hor .traJto
Nem vi:sível emoção à,s sua.s a;lmas.

Ed •i ções Af•rod ·i t e - DE FORA PARA ·D ENTRO


Lord Byron

119 APARTE
119
I
ALBERTO CANDEIAS: «A violência das apóstrofes de Byron xvm
contra os Portugueses tem sido muito ressentida pela nossa
delicada sensibilidade de patriotas, que às vezes reconhe-
cemos · os nossos males mas não gostemos que est~anhos Escravos mi·seráveis, apesar de nascidos
no-los apontem, principalmente quando o fazem com enfase
desproporcionada às próprias excelências, e sem revelarem Entre as mais nobres cenas! Com tal gente,
0 minlmo esforço de compreensão pelos verdadelr~s respon- ó Natureza! por que desperdiçaste os favores?
sáveis desses males, nem da simpatia pelas tentat~~as sérias
para deles nos libertarmos. Tem-se procurado flltar essas Mas ali temos Sintra, verdadeiro e radioso Pa.rafso,
apóstrofes no despeito e na recordação amarga de uma
.aventura de amor mal sucedida, de que o poeta teria saldo
Sucessão variegada. de montes e va.l~!
desfeite3do e com algumas equimoses. Mas por que se Ah! que pincel ou pena sabe retratar
há-de pedir a um génio poético destemidamente fogoso, a Metade, pelo menos, do q·ue o olhar descobre
um carãcter deformado pelos preconceitos dos mais exclu-
sivos e requintados sentimentos aristocráticos, amante, mais Em locarls de ta.nto deslumrbramento,
do que tudo do pitoresco e dos contrastes - por que lhe
havemos de 'pedir temperança critica e discrição de anAlise?
Melhores, talvez, do que ws outros
~ claro que nunca, como nas estâncias do Childe Harold, Que o Poeta assombrado descreveu
se usou de um tom a tal ponto pessoal e tão lrrltadamenta
exagerado, para se dizer que tudo o que a natureza nos
Quando lhe abriram as portas dos Elísios?
concedeu são - pérolas a porcos; e raras vezes se tem
recorrido a um tão delirante critério de generalização para,
de um . escasso caso contundente, ·mas particular e Justi-
·flcado se saltar para a conclusão geral de que o pais estan
!nfes~o de homicidas a soldo de maridos ultraJados.• XIX

(Portugal em Alguns Escritores Ingleses)


No céu das penedias altas surge um convento,
Velhos sobreiros cobrem fragosos precipícios,
O musgo cresta-se ao sol devorador dos montes,
Há um profundo. vale em que os arbustos choram o sol
[ausente.
O azul suave de um mar sem rugas, as laranjas
De. ouro a brilhar no mais intenso verde '
As torrentes que, do alto das escarpas,
Se projectam no 'mais prof!undo vale,
Ao cimo as vinhas, os salgueiros lá em baixa,
Num só espectáculo tudo .reunido
De magnif·ica e variada beleza.

'
Edições Amxlite DE •FORA PARA DENTRO Edições Af-rodite- DE FORA PARA DENTRO
Lord Byron

120' A PA ATE 120


XX

Trepai agora o atalho sinuoso;


A cada passo voltai para trás o rosto,
Contemplai das eminências as novas maravilhas da pai-
[sagem;
Fazei paragem no templo da Senhora da Penha
Onde ao estrangeiro se exi·bem por austeros monges
As relíquias e são contadas curiosa·s lendas:
Foram ali muitos ímpios castigados;
Naquela caverna profunda, além, viveu Honório
Que, na esperança de alcançar o céu,
Teve artes de fazer neste mundo o seu inferno.

XXI

Vencendo os precipícios, reparai .


Aqui e além nas cruzes de madeira do ,caminho;
Não cuidei·s que, por devoção, ali estejam,
Pois não pa,ssam de frágeis monumentos
Erigidos à memória de qualquer assassinato;
0:(lde caiu a vitima num gri.to, à punhalada cr-iminosa,
Aí mesmo se ergue a cruz f.eita de tábua caruncho·sa;
Vales e hosques milhares deLas nos oferecem
Nesta terra sanguinár.ia em que a vida humana
à sombra da lei não encontra IWOtecção 1 •
LINK: •A primavera - diz um viajante - é a mais perigo111
das épocas. Períodos há em que é possivel contar-se com
1 Bem O<mhecildos Sião os crimles que, em 1809, os Pootugue- 11m assassinato por noite. A audácia dos bandidos é extraor·
ses oometeram em l.Ji!sboa e S&IIS 3.II'Il'edo'res. Não se .1:Jendo Ilimi- dinária, e é mesmo vulgar vê·los atacar liteiras.•
tados aos oompa;triotas suaedieu que apa!l"Elciam, dia a dia,
estrangulados mgleses. Long1e de extgdrmos que 1:ia1ls orlimes fo.ssem (Viagem através de Portugal, de 1797 a 1799)

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO Edições A~rodi·te - DE FO RA PA RA DEN T AO


Lord Byroo

121
xxn
No seio dos vales, na vertente das colinas,
Há castelos que· os rei·s de outrora e•scolheram para
[morada;
, Mas hoje tal saUdão só tem por habitantes
As flores campestres que à sua volta despontam.
Ali se encontram ocultos os vestígios
De um belo e raro esplendor anti:go,
Ali se ergue o majestoso «Castelo do príncipe»,
E também tu, Vatheck, filho opulento da InglateiTa,
Ali soubeste construir um paraíso, esquecendo
Que a ser gasto pela riqueza caprichosa o esforço do
[poder,
Foge sempre a. paz suave às armadilhas da volúpia 1 .

retvact:a.dos, proil!biu-se a 1n.aJ:f.s pequem mterv.ençã.o< quando, era


sabid() terem ailguoo dos nossos Sido ataca:®$ pelos aldado.s. Certa
notte, dJlvJglnd'o-m'ei a'O tlealtn'<> 31 uma. hora. em que as '1"l18.S estavam
quB.JSe desertas, fui. a.~do mesmo em frente de uma loja. aberta..
Ia. de cM'ril'agem oom 'l.1ll1 <81l'lligol: par <S01'1le nos enconrtrávaanos
a'lmado.s, pdis de OU'tro modo ~ stdO eu russunto de lU1lQ história,
em V'ez de aqw!J me wp&ll'ha.t' e. contar outra. O crime por essas-
sinto não é 11efreado em Portugal; tal como. na 'Slcllda ou em
Malta, .p<>dem à n<XIite pa.rtir-noo a cabeQal à vontade. PO!l' tal
motivo nunca houve -sfctl:lalnoo e m<aJlbeses ClllSt!igados. (Nota do
At,tor.)
I Va,theck f~ 'llm <iOS hlVl'OS que lllJ8jjs admirei USJ jUVIentUde
(No-ta de Autor). Já clta.<:lw ne antolbgJJa., est8l n'love1a. de WWllia.m
Beckford, aparreol.da. em: d'Ui!liS v~.sões, uma de m'81iore's <8llldâcias,
em 1787 e outra. ma.Ls sua.v.e, nms esforçada n:o estl.lo, em 1815,
conta. a ltlistót"Wl. de Valtheck, nono cal!M'a da. raçaJ dos Abãssldml,
filho de Motassem e neto de Harun Al·Rtlclú:d. Do te.mo da. estrofe
não deve pdls ()OO)!OllUlir-se ,que lm(Ja. '1'laJ Obra. qu'Silquer oona passada
em ·S!Intva. (Ch. Vatheck et k.~ .epi.sodes, Editl'ooo RJeoontre,
LaU\9Wllne' 1962). (Nota. do Trad.)

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Lurd Byron lord Byron

123
xxm XXV

Ali moravas e rurquitectavas os teus pra:zeres,


Quase ao mais alto do sempre ·b elo topo da. montanha; Convenção ·s e chama essa infernal e minúscula criatura;
·E como se 0 tempo em Si tivesse qualquer co1sa de fatal, Ao engano foi' ela· quem levoo os cavalei.l'os:
Solitár-io como tu é hoje esse palácio encantado.! Privra.ndo-os do sen~ que alguma. vez tenham t ido,
Vencendo o matagal enredado ~~tlcançamos Mudando em tristeza a alegria falsa de toda uma nação.
Os teus salões, <>s t eus pórticos abertos; Ali mesmo calcou a Estupidez aos pés
Nova lição para o coração de quem pensa A flâmula do vencedor, reconquistando ~ Politica
Sobre a vaidade dos paraísos terrestres, Tudo aqui·lo qúe já estava perdidô pelas armas.
Dos quais nada mais sobri!tm que dest~ços, Que os louros despontem em vão para chefes como os
Passada esteja a onda implacável do Tempo! [nossos!
Maldição aos vencedores, não aos vencidost
Depois que essa vitória feita de enganos
XXIV Inclina a sua palma nas costas da Lusitânia. !

Vede 0 palácio em que os chefes :re~am! 1


Visão desagradável para um olhar inglês! XXVI
Envolto em pergaminho, nele campeia aJinda
Um ser demoníaco e sarcástico Depois de reunido, ó Sintra, tão belicoso sínodo,
Que em diadema traz o chapéu da Loucura; Chega o teu nome para fazer pálida a Bretanha;
Ao ombro pendurados um selo e um rolo negro Despeitam-se os m inistros ao ouvi-lo,
Aonde brilham muiitos nomes, alguns deles Corando, se tal fosse .possível, de vergonha.
Bem conhecidos nos anais da melhor cavalaTia, O que dirá, o futuro, desse acto?
E ,assinaturas sem conta H ão-de a;s nações troçrur de nós e dos guerreiros
·Que aponta a dedo, o celerado, Qu~ o i11limigo despojou da glória,
Enquanto ri às garga~hadas. Esse iruimigo que, vencido na batalha
Passou, na diplomacia, a vencedor?
1 A convençã.~ de Slntn<a fod; a:salD:l'Bkla m .ps.lãci.o· do Miarquês
O despre'zo não terá para nós guardado
de Marmlva (Nota do Autoll"). Um lugar feito de toda a evidência?

Edições Ahodlte - DE FORA PARA DENTRO Edições Af ·r odite - DE F O R A PAR A DENTRO


t
Lord Byron

124
XXVII

Assim pensa,va Childe Harold, ca:bisbai·xo,


Galgando, silencioso, 3JS montanhas.
Muito belos lhe pareciam aqueles sitios,
Mas estaria; para breve a su:a fuga,
Mais veloz que a andorinha em pleno céu:
Logrou então fazer :reflex.õe•s morais,
Pois era às ve.oos dado à meditação,
E a voz da razão aconsel'h ou desprezo
Pela sua jowm vida porém já consumida
Em caprichos insensató•s ; olhando então a verdade
Sombrios ficaram os olhos magoados.

XXVDI

A cavalo! a cavalo! 1 E abandona para sempr~


Uma estância de paz que a sua alma já sabe amar;
Abandona atrás de ·s'i os devaneios.
Já não são mulh_eres, nem mesmo o vinho
O que ele procura agora.
Não vê ainda o fim à sua peregrinação;
Hão-de pa·s sar em desfile nos seus olhos
Muitos e variados quadros
Antes que esteja saciada a sede das viagens,
Antes que sinta calmo o coração
Ou a expefliência o tenha feito sábio.

1 Depots d'e oito d'IB.~ em L i'sboa enV!ilámos P'OO' mar as


nossas ba,gagem.s pa.m Gibra1tar, e com e1l8l9 parbe d'a. nossa.
gente, seguindo nós a cavaJJO Pa.m Sev'iJha.. :1!:: uma dllstâneia de

Ediçõe ·s Afrodit •e - DE FORA PARA DENTRO


l:ord Byron
125 ÁPA RTE

125
LORD BYRON: «~ vulgar dizer-se que esta cidade não merece
que dela se faça qualquer descrição, Isto porque além •da XXIX
vista sobre o Tejo, que é esplêndida, de algumas belas igrejas
e alguns conventos, mais não contém do que ruelas desa-
gradáveis e habitantes mais desagradáveis ainda. Para com- Mafra há~de impor-lhe uma paragem breve.
pensar, a cerca de quinze milhas da capital existe a aldeia Ali viveu outrora a infeliz rainha dos lusitanos 1 ;
de Sintra, talvez a mais deliciosa que, em certos aspectos,
na Europa se encontra. Sintra contém belezas de toda a Igreja e corte ali se unem
espécie, naturais ou artificiais. Palácios e jardins erguidos
no meio de rochedos, cataratas e precipicios, conventos le-
Num desfile interminável de missas e festas:
vantados a prodigiosas alturas, uma larga vista sobre o mar Cortesãos e padres, que singular mistura!
e o Tejo. Por outro lado, e ainda' que seja seoundãrio,
Sintra distingue-se como teatro da Convenção de Sir Hew
E também ergueu ali o seu palácio
Dalrymple 1 . O local reúne toda a selvajaria das montanhas A singular prostituta: babilónica: 2
da Escócia à verdura intensa do Sul da França. A cerca de
treze milhas à direita encontramos o palácio de Mafra, Esquecendo os homens pelo brilho dos salões
orgulho de Portugal. Na verdade, a sua magnificência des_ti- Todo o sangue que ela mandou verter,
tuida de elegãncia poderia fazer ·o orgulho de qualquer pa1s.
Anexo a ela existe um convento; os monjas, que dispõem Reverenciando a ·pompa e o esplendor
de grandes fundos, são bastante corteses e compreendem Com que o Cr.ime fabrica os seus enfeites.
o latim; travámos portanto longas conversas: têm uma grand&
biblioteca e perguntaram-me se os Ingleses possuiam livros
no seu pais( ..
XXX
(Carta à Mãe, de 11 de Agosto de 1809)
Através de vales férteis e colinas pitorescas,
(Ah! não serem povoadas de homens livres!)
Deliciosos trechos de permanente encanto,

1 A que permd.tiu a retirada g:tol11io98. de JunoL aproo:!m.a:diamente q~atrocent!aJs mflha.<S; o,s cavalos (excelentes)
(Nota do Trad.) OOb:rtam se"OO.nta. m Lihas dl áriiJa.,s. Ovos, vd!nho e camaJs du.va!S eram
toOO o conforto qll!e enoollltrâtvamos lllesses clilmas abrasadores,
bastallte, de ~·.esto, l[lal'a. a escassez de meios de tais regiôeG.
(Nota do Auto-r-)
1 Depolis diSso, 'S ua Ma;jesta.de -asoabou por flc&r •louca. e o
Dr. WHllis, tão h'âb'i l em tratM" <:) pe!rliorã.n'fb dos .rei<s, adn&l; >ass1rn
na'da pôde faoor pelo s eu (Nota do- Autor). Lord: Byron quer
eV'id'elntam!ffllte referlr-'Se a D. Mania I , a ~iedO>Sa, qwe nunca.
chegaria a vastaibelecer-se e BJOIII'bou por InOIITei' oo Braaill, em
1816. (Nota do Trad.)
2 IIJ prod'ilglosa: 'a ·eX!telllsâo de MBJfra; o edifício .i!nclU!l. um
patlácio, um OOJ:lrvent:o re uma. igtt-eja. megniflca. Os seis ó11g~ que
nel:a wc.l8~em são os matts belos que alguma. vez ~ v:t -e, embora
os não t'ivoos-e ouvtldo. houve qwem rnce afiTmaiSSe sanem os seus
timbres em tudo. <Mgnos de taJl nlqu~ ( Nota do A táor) .

Edições Afrodite - DE FO RA PA R A D EN T RO
EdiçõesAfrodlte - DE FORA PARA DENTRO
Lord Byron Lord Byron

126 12l
Childe Harold vai oriootando os passos. Entre, as dua·s invejosas e bélicas na.ç ões?
Que os amigos do la'r er cobarde Qualquer mOintanha altaneira ergue entre eLas uma
Tenham o amorr das viagens como loucura impensável, barreira hostil?
Caiam no espanto quando alguém de!ixa a poltrona. Ou, quem sabe, então, se uma divisória
E mete ombros à tormentosa caminhada Em tudo iguaJ à muralha célebre da China?
Correndo longas, muito longas, distâncias! Nem muralha, nem rochedos de cenho carregado,
Que importa, se é tão doce respirar o ar dos montes Nem altas serras, como ·e ntre a Gáulila e a Espanha;
Cuja fonte da vida ignora a Indolência!
XXXIIT
XXXI

Ao longe branquemm e amenizam-se as colinas, Apenas um riacho, entr€ os dois países,


Ao nosso olhar vão-se espraiando vales Cuja vaga prateada corre e desliza em silêncio;
Que embora menos ricos são mais planos. Sorte ·s erá se tiver nome, e todavia as margens verdes
Tão longe quanto a nossa vista alcança São a barreira t·emível entre dois estados rivais.
Já vão surgindo os domínios de Espanha Tr:a.nquilamente apoiado no cajado
Onde há paJstores de guarda; àqueles rebanhos Vai o pastor:, indiferente, contemplando
Dos quais o tosão é farto e conhecido dos nossos mer- A ·oillda amena que separa inimigos tão encarniçados:
[cadores. Porque o pastor é, aqui, de uma altivez
Para defender os cordeiros, tem o pastor de andar aqui '
Só comparável à do mais nobre duque ,
[armado. E bem sa;be o espanhol campónio que distância longa
Um inimigo bem temido invade a Espanha; O separa do lusitano escravo, vH entre os via 1 •
Terá cada qual de proteger-se
Ou fazer ex.periência dos tormentos da conquista. (Ohilde Harold)

xxxn 1 A:ssim 3iChed os PortuguJeses e diesta fonna o·s pinted.


Depods disso fizerlam progressos, pelo menoo em comgem. Os
Que ideia fareis vós sobre o que existe últimos fe!i~ dO Dwque de We1l!llngton a;pagruram 81 estupidez
A separar, na fronteira, os rivais países de S'iintra. Esse homem :fiez verdiadeiJroo mUa.gr.es: talvez tenha
mudado o carácter de uma nação, reconcHdado superstições
Que são: a , Lusitânia e sua irmã Espanha? riV'!Iil's. Venceu uan m'imillgo qUJe, ;a ntes dil!sso, nunca recuall'a
Acaso o Tejo se interpõe com vagas poderosas perante nmguém. (Nota do Autor.)

Edições Afrodit ·e - DE FORA PARA DENTRO Edições Afrod'ite - DE FORA PARA DENTRO
JULES VfRHE
(1828-1905)

O prf.mein'o -não só a saber passwr à.s pal<wras o ver-


àa<leit'O aJmo1· elos n~a.s e ~ estampas, o011no aind4
esso•" tra pert'urba.çãoo qt~e ceaJperimentamos em crla?tça.s
ao folhear •ma17A«J,í;s de /isica,, qt~f.mica e asProncmia,
.polwe.s e feios Uvros mt~ito- {orles pwra nós, todavt'a
pümos de palavras twvas, figwra.s iltlàecifr.ávef.s e pro-
messas. - MIOHEL BUTOR

E veràa<le que a qualidade li terária da sua obra dei3:a


a desejar, 11.0 que é i?nítaelo pela, ma,U>r pwrte elos
descendelttes. ( .. .) Desse estilo, porém, não tell1w
conheci?l~tmto ~ os leitores da época, se tenhcw~
qtteia:aelo. A hi.stórla e as ideia.s é ~ irmoportavam -
KINGSLJJlY AMIS

1IJ 1llle, c01m letra maiú.~cula, o maior gé,tio Uterário


de toelos os te111.1p0s; há-de ficar, depois tle os rest(tllttes
autores da 1WS)Sa épooa, seretn esquecíelos - RAY-
MOND ROUS{!IEL

Jvles Verne nasce na oiclade de Nantes, filho


de um axltvogado de pr'ovíncia. Obtém um ba-
charelato em direito na universidade de Paris.
Estreia,.se 11.<W letms como d:ramaturgo e O!Utor
de optJretas, chega a desempenho!r o lu,go;r de
secretátrro do Teat?-o Lírico. Casa-se com uma
viúva nobre e e'l'l'llprega-se numa casa de câm-
bios. Divergências am.tigas decidem a ruptura
com o pai. Paro fazer algumas excursões ma-
ritirruz.s OO'mi[Yrou dive·rsos ba:rooo, to(Jcs eles
baptizaldos oom o nome de SO!int-Michel, em
1wn1·a do filho, também chamado Michel. De-
dica-se apenas à literatura, insta'/JJYndo-se em
Amiens, onde acaba por morrer OXJs 77 anos.

Edições A~rodite - DE F O RA P A RA D E N T RO
9
-.Jules Verne
Jules Veme
131
130
Análise grafológicaf er;•ta pur Pierre
, .
Looys:
r Vista de perto, como é bastante menos cativante
·l . ário subterrâneo -Intrepido, ~ .a Cidade da Horta! Compõe-se quase exclusiv:amente
«Revo um~ ~ t em.e _ Resoluçoo
dizer' coraJOSO que nao r e - de uma só rua bifurcada na extremida~e. Rígida,
. flexfmel porém secreta a todo o pr ço "estreita, irregular., mal pavimentada, essa rua não será
1.n ' . ~ da 'IJ()IYI.taile - Per-
c'1'Zfi)Qfr'iQ,vel aeterm'li~ao - -- ~-'-;In cxmtra o o que pode chamar-se um belo passeio. Já ardente àquela
...nmr.a na acçoo ·- Te'YI.I.JIU~ - hora do dia, o sol metia-se por e1a adentro queimando
serve,""'"=-- z·t, . mudo- Vol-
obstáotilo - Orgu.lho so "' arw e . _·nucas e costas, não tardando as suas dentadas a pro-
. fecha o pensamv.mto ínttm.o.»
ta de cholve que . Balão. - vocar que,i xumes que o severo olhar de Thompson re-
. . . obra;s: Cmco Sem.Qnas em . primia com difkuldade.
Pri~ · · . A Volta ao Mundo
20 000 Légua:S Subma,rnms, As casa·s que ladeiam a Rua da Horta não têm
em 80 Dias, Miguel Strogoff, etc. -interesse sufidente para que, através da alma, saibamos
. desprezar os incômodos do c.orpo. Grosseiramente cons-
·- truídas em paredes de lav:a de grande espessura, a fim
· de resistir melhor aos tremores de terra, inscrever-se-iam
-na banalidade mais acrubada se não fora o aspecto
"original conseguido à força de sujidade. Ne•s sas casas,
-o rés-do-chã-o é irregularmente ocupadO· ,por lojas, cava.-
_.lariças ou estábulos. Graças ao calor e à vizinhança
,desses está;bulos, os rundares superiores, reservados aos
. habitantes, enchem-se dos mais nauseantes odores e
ignóbeis insectos.
Todas as casas se projectam para a: frente numa
varanda; larga, umru oorandhcf; 1 , feehada a gradeamento
,. de cani~o. Os burgueses indígenas fazem longas per-
:. manêntCia:s por detrás do ~brigo protector e daí obser-
-vam a rua, espiam os vizinhos e os transeuntes, passando

LEdições Ahodite- DE FORA PARA DENTRO


FORA PARA DENTRO
Edições Af,rodite - DE
..Jules V•erne

132
à fieira aotos· e gestos de quantos o acaso pôs ao De passagem visitaram-se igrejas e conventos sem
seu alcarnce. Aquela hora matin1ll, por~m. estavam cegas: 'interesse de maior. De igrejas em conventos e conventos
as varandas por terem os ·seus proprietários o costume em igreja;s, foi atingido o :mais alto da eminência que
de prolongar muito além do verosím.il as horas de sono. ·dominava a cidade e, a suar, a bufar, mas sempre em boa
à passagem da coluna, .os Taros ~asseantes. volte.- ·ordem, ·c hegaram pelas dez horas ao pé do antigo con-
va;m-se com surpresa, os cai·x eiros surg.1am à soleira d~s vento dOs jesuítas construído à face do mar. A um sinal
portas. Que significava aquele desembarque? Estarna ·de Thompson, a coluna deslocou-se e fez círculo à volta
por acaso a Hha a ser ~nvadida como no tempo do u~ur­ de Robert. Blockhead empurrara na primeira fila o jovem
pador D. Miguel? Em resumo, era justo o sucesso obtido. .Abel, tendo Van Piperboom- de Roterdão- encaixado
Thompson tinha o direito de e,star orgulhoso. E est~va. ao lado a sua maciça e afrontadora figura.
Sir Hamilton, mais do que ele. Em ~belo, ~O· -O antigo convento dos jesuíta;s- !anunciou Robert,
e desempenado, olhar posto a muito ma1s d~ qumze assumindo o timbre profissional dos guias - é o mais
passos, todos os poros da pele gritavam «EU. ». ~sta belo edifício que alguma vez se construiu nos Açores.
orgulhosa atitude aca:bou .p or pregar-lhe uma· partida. 'T,al como anuncia o programa, podemos visitá-lo. Devo
Não repar.ando onde punha os pés, para não manter os ·contudo advertir que, sendo notável o monumento pelas
olhos humildemente baixos.; o nobre· baronete tropeçou proporções não oferece, todavia;, qualquer interesse
no pavimento irregular e estatelou-se ao. comprido·. Ne- :.artístico.
nhum cavalheiro está li·v re disso. Infehz~ente, s~ da Saciados pelas visitas anteriores, os turistas decla-
aventura sairam intactos os membros de SU' Ham?t~, z:.aram-se convencidos. De programa na mão, só Hamilton
mesmo não aconteceu a um acessório de todo mdis- ·exigiu a sua execução ~ntegral e penetrou, altivo, no
0
pensável. Sir Hamilton queb~ara o lornhão. ~uel ~­ -convento.
tástrofe ! Dali em diante, que prazer o desse m1ope fe1to
cego? .
Administrador vigilante, Thompson tmha por sort:e - Que cidade honivel! - disse um.
tudo v·isto. Apressou-se a mostrar ao bar~ete, un:a loJa -Que rua!
em cuja montra se encontravam alguns m1se~ave1s ap~­ -Que casas!
relhos de óptioo. e, com o auxí·l.i o de Robert, fo1 o negóc10 -Que sol!
depressa: concluido. Pelo custo ~e do:is mil réis - cerca -Que chão!
de doze francos - o comerCiante comprometeu-se a Nesta última reclamação logo reconhecemos o ba-
devolver consertado o instrumento, no dia seguinte. ronete. ·

Edições A fr 0 dite - D E F O R. A P A R A D E N T R O, I'E d i ç õ e s A f r o d i t e - D E F O R A P A R A D E N T R O


Jules Verne
Jules Vern~r.·,

134 135
- provàvelmente divertida, também- pois em visível
- E que hotel! - disse por sua vez Saunders, ~m:. que refreava uma violenta vontade de rir. Depois de tro-
rangidos de serra na: voz. Bem me ·l embro que havlAlll cadas as réplicas, voltou-se para o ba.ranete:
prometido hotéis de primeira classe. -O senhor Luis Monteiro (o oculista que aqui tem
· Devemos :reconhecer que Saunders não dei~va de ter ""
à -s ua frente) recusa-se a: fazeT o trabalho porque ...
razão A mesa figuravam os ovos, não haja dúvida, o·
~Porque ...
touci~ho e o framgo. O serviço, porém, deixava muito-
a desejar. E à toalha não faltavam buracos. Por outro-· -Muito simplesmente ,porque esta tarde o senhor
lado, os garfos eram de· ferro e não havia quem muda,sse· . esqueceu-se de o cumprimentar.
os pratos, aliás de limpeza muito duvidosa. - Hem?. . . ~ fez Hamilton, siderado.
rr'hompson sacudiu: a cabeça com ar belicoso. -Assim mesmo! O se'nhor Luís Monteiro estava à
_ Ser-me-á preciso explicar-lhe, Sr. Saunders, que·· porta quando aqui passámos depois do almoço. Olhou
«hotel de primeira· classe» são palavras de valor rela- · para si, e também o ·senhor para ele, reconheceu-o, sabe
tivo? - silvou com azedume. Qu-ando posta em Kamt- · ele disso muito bem. Não entanto não se dignou dirigir-
cha.tka, uma estalagem dos arredores de Londres trans- · -lhe o menor cumprimento. Tal é o crime, a seus olhos.
forma-se em hotel confortável... -Pois vá para o dia·bo! - exclamou Hamilton,
_E, de uma forma geral, em toda a terra habitada agastado.
por um povo latino, risto é, m.ferior - iJ~.t~ompe~ Ha- Com dificuldade ouviu Robert explicar o rigor invero-
milton. Ah! se estivéssemos numa colóma mglesa . .. . símil do cerimonial nos Açores. Tudo ali se fa.z se·gundo
... ... ... .. . ... .. . ... ... ... ... ... .. .. ........... um protocolo inflexível. Querendo visitar um amigo,
é preciso pedir-lhe consentimento prévio. Se o médico
Sir Hamilton estava furioso. condescende em curar-nos, o sapateiro calçar-nos, o
-Aconteceu-me uma coisa singular - di,s se ex-·· padeiro alimentar-nos, tudo é feito na condição sine
-abrwpto. O oculista a que o senhor me levou esta manhã qua non de os cumprimentarmos com muita delkadeza
recusa-se, sem que eu saiba porquê, a fazer o canse~ · a cada encontro, e ·honrá-los com afectuosos presentes
neces·s ário. Não me sendo possível compreender uma SO· em épocas estabelecidas, de uma vez para sempre e se-
palavra da sua maldita. algaraviada, agradeço que volte · gundo as profissões.
lá comigo para um~ eXplicação. Tudo isto penetrava ·com dificuldade nos conceitos
-As suas oil'dens - respoilldeu Robert. do baronete, mas teve, no entanto, de sujeitar-se. Com
Entrando ambos na loja do vendedor recalcitrante ,. a sua aprovação, Robert apresentou desculpas bastante
Roibert entrubulou uma discussão acalocada e longa.

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Ediçõe·s Afrodite- DE FORA PARA DENTRO.•·
Jul·es Verne

137
sentidas ao picwinhas do Luí·s Monteiro e foi o conserto,
seguiu por vielas quas'e desertas devido a ter-se con-
uma vez m~üs, prometido.
een~rado a multidão nas grandes vias que a procissão
devia percorrer. Nessas vielas havia, no entanto, alguns
homens. Meio nus, com ar ·s órdido e sinistro, justifi-
-Meus caros companheiros - disse D. Higino - cavam amplamente as observações que mais de um turista
um bom conselho antes de nos metermos a C·a minho ... fez a respeito de1es.
-Será.. . - reforçou Thompson.
-Que rostos de facínora!- disse AHce.
- Evitar q~anto possível a multidão.
-Com efeito! - aprovou Thompson. Sabe quem
- O que não parece fácil - observou Thompson,
-é esta gente?- perguntou a D. Higino.
mostrando as rua.s de Angra do Heroísmo a abarrotar de
-Tanto como o senhor.
:gente.
- Concordo - aquiesceu D. Higino - mas ao menos -Não setão, por acaso, agentes da polícia disfar-
fa:zei o poss~vel por evitar contactos. çados? - insinuou Thompson.
- E porquê tal recomendação? - perguntou Ha- - 'Deríamos de confessar que o disfarce era um
milton. ex1"t o.I - exclamou Dolly numa voz zombeteira.
A

-Não tem .u ma rruzão cómoda de explicar, Deus Não tardou que chega$sem. A co1una desembocou
meu! ll'l que ... os ha;bitantes da ilha não são lá muito de repe·n te numa grande praça onde fervilhava o popu-
limpos e, dessa forma., revelam-se extremamente vulne- lacho ao sol brilhante. Graças a uma hábil manobra,
ráveils a d'uas doenças cujo resultado comum é provocar o português conseguiu levar os companheiros a uma
insuportáveis comichões. Uma delas tem um nome muito pequena elevação, ao pé de um edifício de vastas ;pro-
feio, e é a sarna. Quanto à outra, vejamos ... porções. Guardado por alguns políci.as, conservava-se
D. Hi·gino parou, dncapaz de encontrar uma perífrase vazio um ~erto espaço ao abrigo da multidão.
conveniente. Thompson, porém, impossível de amedron- -Aqui tendes o vosso lugar, senhoras e Beillhores
tar em qualquer dificuldade, veio em seu auxílio. Pedindo - disse Hi:gino. Aproveitei o meu conhecimento com 0
ajuda à pantomima, tirou o chapéu e coçou a caibeça com Governador da T·erceira para vos reservar este lugar
energia, olhando ti. Higino com ar interro:g-ador. ao pé do seu palácio.
- Exacto! - disse este a rir, .e nquanto as senhoras Confundiram-no com agradecimentos.
voltavam a carru escandalizadas c0m aquela coisa real- - Agora permiti que vos deixe - continuou. Tenho
mente shocking. alguns preparativos a fazer antes da partida. Além do
D. Higino atravessou a seguir várias ruas afastadas, mais, já não sou preciso. Guardados por _estes bravos

,E d i ç õ •e s A f r o d i t ·e DE FORA PARA DENTRO EdiçõesAfrodite- DE FORA PARA DENTRO


Jules Veme Jules v~m~e

138 139
polícias, 0 lugar é ideal para tudo ver e penso que ides uma curiosidade súbita, a multidão ergueu-se a um só
assistir a um curioso espectáculo. tempo.
Mal tinham ·s ido pronunciadas tai;s palavras, D. Hi- De• resto ninguém viu nada. Apesar de admiràvel-
gino despediu-se com graciosidade perdendo-se na mul- mente instalados, nem os próprios ingleses consegui-
tidão. Era evidente que não temia o contágio. Os turistas ralm compreender o que se passava. Um colossa!l remo-
não trurdara.m a esquecê-lo. Chegava a procissão do Corpo inho, o pálio rolando e bailando como um brurco,
de Deus, patenteando as suas magnificências. desaparecendo depois com o opulento crucifixo por entre
No alto da rua, no largo espaço que a polícia desim- a multidão comn se ela fosse um mar, a seguir gritos,
pedia à frente do cortejo, avançavam estandartes de ou melhor, berros, todo um povo aterrado que fugia,
ouro e seda ao fumo odorífero do incenso, estátuas carre- o esquadrão da polícia colocado à ca;beça do cortejo
gadas aos ombros, auriflamas, coroas, pálios. Brilhavam esforçando-se em vão por refrear a onda irresistivel
uniformes a.o sol, mo me•io de raparigas vestidas de dos fugitivos, eis tudo o que eles viram sem poder dis-
branco. E t81S vozes erguiam-se sustentadas por orques- cernir a· causa.
tras de metais, projectando ao céu a prece de dez mil Num instante foi rompido o cordão de agentes que
criaturas, enquanto de todas as igrejas caía em gr.i naldas os protegia e, tornados parte integrante da multidão em
sonoras o· clamor dos ·sinos, também eles cantando a delírio, foíi'am arrebatados como palhas na formidávél.
glória do Senhor. torrente.
De repente passou um frémito na multidão. De todas Comprimindo-se uns de encontro aos outros, Roger,
as boca•s saiu o mesmo grito : Jack e Robert havtam conseguido proteger Alice e Dol.ly.
-O Cristo! O Cristo! (*) Um esconso -tinha, por sorte, ajudado.
O espectáculo era solene. Chegara a vez de aparecer De repente, o espantoso fenómeno cessou. Sem tran-
0
bispo num trajo violeta que contrastava com o ouro sição, a praça ficou vazia e silenciosa.
brilhante dos dosséis. Caminhava lentamente·, erguendo Ao alto da rua, no sítio em que desaparecera o pálio
a mãos ambas o venerável e pomposo cibório. Com do bispo no furioso remoinho, e o crucifixo, havia um ,
efeito à frente dele seguia um crucifixo cuja pedratia grupo que ronda ·se aJg.itawa, composto em grande parte
' . 'p elos polícias a princípio colocados à cabeça do cortejo
ofuscava aos raios do sol, levado em esplendor ac1ma
da multidão naquele momento prosternada. e que haviam, como é há;bito, chegado tarde. Baixavam-se
Inesperadamente, porém, 1um movimento insólito e levantavam-se, transportando a·s vítimas do inexpli-
pareceu lançar perturbação ao cortejo nas vizinhanças cável pânico às casas próximas.
do bispo. Sem saber do que se tratava, e levado por ~ Todo o perigo me parece conjurado - disse Robert

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Jules Veme Jules Verne

140 141
ao fim de um instante. Creio que faríamos bem em escapar uma ribeira que penetra a no;rde.ste pelo vale
procurar os nossos companheiros. através· de um rego estreito. '
-Aonde? ~ objectou: Jack. Os turistas subiram à Ti!beira, a Ribeira Quente de
-A bordo do SoomewJ mais não seja. Além disso, · margens consagrad;a;s à cultur~ dos legumes te.mporãos
estas complicações não têm nada a ver connosco e, de até às fontes termais situadas além de uma aldeia cujo~
qualquer modo, acho que estamos mais seguros sob telhados, que o sol torna dourados, já à distânCia de doia
a. protecção, da bandeira inglesa. quilómetros ·se distinguem.
Foi reconhecido o ·senso de tal observação. Apres- Esse re·canto é singular. A cada passo surgem fontes.
saram-se ·a 'ir ter ao cais, e de:pois a bordo, onde já se umas quentes, outras frias, todas com elevado grau de
encontrava reunida a maio~ parte dos pa·ssageiros dis- mineralização. Reduzidas a um imperceptível fio de
cutindo com animação as peripécias da espantosa aven- água, várias entre e·las receberam dos .indígenas o nome
tura. Vários entre eles desfaziam-se em queixumes de olhos 1 • Outras existem mais ~importantes. Uma
acrimoniosos. Alguns havi1a que chegavam a reclamar destas nasce numa ·b acia de forma vedonda. Com grande
uma reconfortante indemnização à sucursal inglesa de ruído lança a um metro de alto uma coluna de água fer-
Lisboa, figurando Sir Hamilton numa situação de des- vente cuja temperatura se eleva a 105° centígrados. Em
taque entre estes últimos, diga-se de passagem. redor, o ar obscurece-se· de vapoves espessos e sulfurosos
~1!: uma· vergonha! um~ ver.gonha! ~ decl.arava em que, ·ao depositarem-se no solo, cobrem erva, plantas
todos os tons. Portugues-es, está bem de ver!. .. Qui- e flores de uma ve:vdadeira crosta mineral.
sesse a Inglaterra ouvir-me e haviá de ser ela a «civili- A convite insistente de Thompson, Blockhead enfren-
zar» os Açores, para que víssemos fim a tais escândalos! tou tais vapores. Era essa, de facto, a cura imaginada
por D. Higino que mruis não fazia do que receitar um
remédio popular em S. Miguel, sugerido à razão humana
pelo instinto dos animais a quem incomodavam os pa-
Um pouco antes do meio-dia a caravana foi desem- rasita·s.
bocar num vale muito amplo. Era, com c·erteza, um remédio enérgico. Ao bafo da
-O Vale das Furnas - anunciou o guia. fonté mal podíamos suportar-lhe o calor. Ainda assim
Rodeado por uma: cintura de montanhas áridas, Blockhead não hesitou e desapareceu por inst~tes atrás
<>Vale das Furnas afecta .pela forma, quase à perfeição,
um grande círculo com cerca; de três quilómetros de raio.
A sudeste, a linha das montanhas a;baixa-se para deixar 1
Olhas, no llexto• o~igtirnlaJ:. (Nota do Trad.)

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Jules Vem~t

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da corlina de vapores ardentes. No fundo não se abor-
recia por tentar o remédio insólito.
Quando saiu da estufa talvez não estivesse curado,
porém indubitàv.elme.nte assado. O rostp em congestão,
o suor a pingar-lhe a fio no chão. Blockhead rea.parecia
num estado lastimoso.
Entretanto o suplício não findara. Sob indicação de
D. Higino, os turi·stas reuniram-se ao pé da outra fonte,
afastada esta uma dezena de metros da primeira. Mais
feroz ainda, a fonte denominada Pedro Botelho bor:bulha
ao fundo de uma espécie de caverna que os indígenas ·
crêem tratar-se de ll1lli das bocas do inferno. Invisível
nas entranhas da tal caverna, o facto é que a água
assobia de form.a: aterradora enquanto à superfície sai
uma enotrme quantidade de lama saponácea que D. Hi-
gino pensava utilizar na completa cura do doente.
A sua ordem, Blockh:ead desfez-se da roupa e foi por
diversas vezes mergulhado na lama cuja temperatura
atinge, pelo menos, 45" centígrados. O desgraçado Blo-
ckhead não podia l.i teralmente mais e desatou em ver-
dadeiros urros, cobertos estes pelo ataque de riso estri-
dente dos po:uco caridosos companheiros.
A tais ri·sos, a tais gritos, dá porém a fonte mn ribom-
bar :pavoroso como resposta. Da caveli'D:a escapa-se uma
lufada de fumo espeS'SO raiada de línguas de fogo ame·a-
çadoras, enquanto se eJ.eva nos ares uma girândola de
água que volta a cair em formw de chuva quente nos
audaciosos v~sitantes.
Fugiram terrificados. Para lhes voltar a cora;gem foi
preciso a palavra dos guias, que afiançavam produzir-se

:Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


.Jules Veme

143 APARTE
143
·COm frequência tal fenómeno e com violência tanto
maior quanto o ruído era mais forte nas imediações da
fonte, facto para o qual nunca houve quem achasse acei-
tável explicação.
Quanto a Blockhead, aproveitara o pânico para fugir
do banho de ·lama e já se revol~ia; ·agora na Ri·beira
Quente cujas á;guas, mais do que tépidas, lhe pareciam
deliciosaiD;ente geladas.
O remédio .indicado por D. Higino teria, na verdade,
as propriedades que os indígenas lhe atribuem? Ou
dar-se-ia apenas o ·caso de Absyrthus Blockhead só ter
uma doença imaginária? Não poderá resolver-se a ques-
tão. O certo é que o me.rcee:iro honorário foi dado por
·curado a partir de tal instante e pôde retomar a vida
em comum.

(L'Agence Thompson am.à O•)

DO FOLCLORE DA TRINIDAD: •Go to Madeira Em nenhum outro ponto do globo a vegetação tem
and there you'll see
Portugee belly full of flee. ·esta energia e ampl~itude. Na Madeira transformam-se
Portugee he, em árvores os nossos 1arbustos, e as nossas árvores atin-
Portugee she,
·gem proporções. colossais. Ainda com frequência maior
1
Portugee belly full of flee.» que nos Açores, lado a; 1ado se exi:bem vegetais de climas
os ma!is :variados. Prosperam flore1s e frutos das cinco
partes do mundo. Os càminhos são contornados a rosas,
e basta; que nos baixemos para podermos colher mo-
1 Vrul à Ma.deá:ra 1 que hàs-d. ve r lá / 'Pot•tu~
oorn a. ba.r-rJ'ga dhela de pwlgas, ( Porlu~ ele I
wga. ela. 1 Po.I1tug&~ ~n a bM'l'lga cheta de pu gas.
ror· rangos entre as folhrus de erva.
Como seria esta ilha paradisíaca por alturas da des-
(IVota, do T1·ad,.)

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Edições A~rodlte - DE F O AA PA RA DENTRO
Jttfes Vem~r
Jules Verne

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145
co·b erta, quando a s árvores, hoje relativamente jovens,
mas nesses dias várias vezes seculares, soerguiam as ... ... ... . . . .. ... ... ... ... .. . ... ... ... .. . ... ... ...
~

montanhas com as copas gigantes? Nessa época; a ilha


ma~s não era; do que ·uma floresta imenisa sem uma Desembarcados quase em frente da torre· que suporta
polegada possível de cultivar, e o primeiro goiVernador o mastro. dos sinais, logo a seguir os dois viajantes me-
teve de mandar desencadear um :incêndio naqueles ma- teram por ruelas estreitas e tortuosas do Funchal. Não
tagais impen-etráveis. Diz a crónica que por seis anos tinham caminhado cem metros, porém, quando refrearam
consecum:vos o fogo a devast-ou e· há quem pretenda que o .p asso·. Pouco depois parai)am, fazendo uma careta
a fecundidade do solo provém desse talvez nec-essário, dolorosa ao desola.r pavimento que lhes massa'C:rara
mas bárbaro, vandalismo. os pés. Nada existe mais desumano em qualquer ponto
Acima de• outra. causa, é ao clima de privilégio que do gloibo: feit o de estHhaços basálticos de arestas cor-
tantes, preci•s a dos sapatos mais resistentes. Quanto ao
a Madeira deve a; vegeta~ão luxuriante. Roucos países
passeio, nem pensar. Os passeios são um luxo desconhe-
lhe podem ser comparados sob ta:l aspecto. Menos quente cido na Madeira.
que os Açores no verão, menos fria no inverno, de
A mesa; do 'hotel de Inglaterra r euniu às onze horas
a.penas dez graus centígrados a temperatiD"a dilfere
todos os passageiros do 8e0ffn,ew) excepção feita .aos
entre -as duas estações. :m o p·araisO: dos doentes.
recém-casados sempre :i nvisíveis e a Johnson que, deci-
E por isso ele'S ~hegam em fileiras cerradas a.o começo
didamente, recomeçava com a mesma brincadeiTa dos
do inverno, doentes dngleses, •s obretudo, implorando. a . A~:res.
saúde a este céu de mel e azul. Entre as mãos dos ma - Que diferente aquele almoço do outro, do Faial. Os
deirenses fica desse exército ·u ma s oma anual de três turistas apreciaram-no vi·v amente e afirmaram que a
milhões de fi'aillcos, enquanto os túmulos a:bertos para Agência mantinha, pela primeira vez, as promessas. Não
os que não chegam a volta/r fuzem da Hha, de racordo com fos~em os doces de batata servidos à 'Sobremesa, cujo
uma expressão enérgica, «O maior cemitério, de Londres». fabrico pertence às religiosas do convento de Santa
Na costa meridional, e mesmo à beira-mar, esten- Clara, e julga:ri·am 'encontmr-se na Inglaterra. Essa
de-se a capital. Um milhar de navios vai ancorar por guloseima, exótica mas ·b astante insípida, não teve qua'l-
ano à angra~ pouco aJbrigada, de dia cruzada por inume- quer êxito junto· dos convivrus.
ráJveis -embarcações de pesca que a enchem de pontos Depois do almoço, Roger açam~arcou uma vez mais
brancos, à noite cruzada por outros que a enchem com o compatriota e declarou-lhe que estava a contar com
o falso engodo das suas luzes. ' ele para guia através do Funchal, na companhia da fa-
mília Lindsay.
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Edi ç õe ·sAfrod i t e - DE FORA PARA DENTRO
10
Jules Verne

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146
Depo;i s de Alice e Dolly se instalarem neles, o pequeno
+
:t e _ aorescen~.~ou em
aparte- que às
grupo pôs-se a caminho.
~ Mas acon ec . r um .passeio .prolongado
~ podemos 1.mpo · Chegaram em primeiro lugar ao Palácio de S. Lou-
senhoras nao . . h ,. enfrentámos·. Nesta
nos pavimentos cuJo mau humor? OJe renço, lade;a ndo as fortificações irregulares e flanquea-
das por torres circulares pintadas de amarelo, por trás
terra não existe nenhum carro . s pelo menos - re s -
-Nenhuma viatura com ro d a ' das quais se abriga o Governador da Madeira. Depois,
voltando para leste, atravessaram o jardim público muito
pondeu Roibert.
- DiS~bo! - di·sse Roger' perplexo . belo e bem tratado que se espraia ao la:do do Teatro
__, Ma:s há melhor. do Fnnchal.
Só na catedral as senhm-as desceram das tipóia!S.
- 0 quê? ...
Esforço que poderiam ter poupado, visto ·e sse edifício
-Tipóias. . , . , Um passeio de do século xv já ·s e encontrar destituído de qualquer ca.-
Tipóias' Que encanto, bpOlas. bem
- , . de encontrar essas ' - rácter depois dais pinturas sucessivas' que lhe infligiu
tipóia ser ia delicioso. Ma:s a on .
. . 6 sábio cicerone? a demasiado conservadora administração local .
-aventuradas tlp 6Ias, . d Robert a sorrir Quanto às outras igrejas, re-solveram wbster-se delas
- Praça do Chafariz - respon eu
depoi·s de Robert ter afirmado que não valiam a :penru,
- e se quLser vou já consigo. sabe! - exclamou maJs dirigiram-se ao Coiilvento dos Franciscanos onde
-Até o nome das ruas agora
existia, -ainda: no dizer de Roibert, uma «Cur.io·s idade».
Roger, maraviUrado. em Ro.ger Para ir ao convento, os turistas tiverram de atrave•s-
. Al' a DoUy que os esp erass '
Pedmdo a ICe e . . rém, a ciência sar quase toda a cidade do Funchal. Ladeadas de casas
. . atrás do compatnota.. Na rua, po , h brancas com persianas verdes e enfeitadas por varandas
sam ~ t d . que chegasse a u-
deste era insuf.iciente. N ao ~r ou de ferro, as ruas sucediam-se• umas às outras, igual-
. ~ d erguntar o cammho.
mllhaçao e P ,. h u melhor do· que eu mente sinuosas, sempre viúvas de passeios e pavimen-
- Afinal não se desenvencl1 o . ~ t tadas com os mesmos impiedosos calhaus. No rés-do-
, 1 O seu gul•a nao raz
- concluiu Roger, implacave. -chão as loj81S abriam-se com ar aliciante, mas pela
nenhum~ cartru? . . enfeitada com pobreza; das mercadorias era duvidoso que pudesse o
Chafaxlz mmto amp1a e
Na Praça do · .' · d ultidão de cam- menos difícil do•s compradores s1a;ir satisfeito. Algumas
t al form1gava gran e m delas ofereciam aos amadores os produtos especiais da
uma fonte cen r • . a,d Os dois franceses en-
pónios chegados parn o ~~: o. dificuldade e man- Madeira. Eram bordados, renda·s de linha de piteira,
t r aram a estação de tlpoulJS sem esteiras, pequenos móveis com embutidos. Nas montras
~:~am paJrar doi·s dos agrrudálveis veiculos.
Edi ç õ es Afrodit e - DE FORA PARA DENTRO
DE FORA'PARA DENTRO
Edições Afrodite -
Jules Verne
Jules Verne
149
148 ruas mais
liável A estreitas
. e tortuosas, 0 pavimento
. irreconci-
doa joalheiros exibiam-se pilhas de pulseiras que eram v . o m~smo tempo acentuava-se a subida Oh
am aos brurros pobres onde . . . ega-
a miniatura da ecliptica, visto· os signos do zodiaco se rocha, pelas janelas a;berta . d ~s c·a sas, encostadas à
. s e1xavam. entrev .
encontrarem nelas gravados. seravel recheio. Essas húm'd . . eT o m:r-
De vez em quando era preciso porem-se em f·ila para cavam por que tinha ' . . 11 as_ e 'so~brlas casas expli-
poder passar qualquer transeunte que seguia em sentido c~m doenças que dev.i~oX:s;= d~ Il~ sido_ di,zi~ad!t
oposto. Peões viam-se poucos. De um modo geral an- gmdo: escrófulas lep~a f ece:, chma taoopr1vHe-
davam de tipóia e o passeante muitas vezes a cavalo, . ' ' sem alar Ja da tí .
mgleses, chegados para se curarem
. dela .hSlca. que os
seguido por um infatigável arrieiro ~ encarregado de matado ao meio. , av1am ach-
.
dar caça aos mosquitos. Tipo muito caTacteristico da
Madeira, esse arrieiro. Nunca se deixa ficar para trás, Os condutores da tipóia não re . .
da subida. Continuavam o . hceavam a mclinoação
seja qual for o andamento. Trota: quando· o cava.lo trota, seguro e forte tro d oan:In ~· com passo i'gual,
galopa quando o cavalo galopa, e nunca pede tFégua.s Nem um ,' cano sauda~oes a passagem.
por maiores que sejam a velocidade e a extensão do . . so carro nessas ladeiras. Subst't i .
nnho 1 , uma e • ·, ,. . • . , I u a-os o CO/I'-
. ,spoole de treno admiravelmente arl :ptado
caminho. aos cammhos mgremes da mont . a
Outra'S vezes, o pa.sseante· pavoneava-se debaãxo do eram vistos passar desliz d anha. Em cada momento
impermeável baldaquino de um carro (*), espéci'e de dirigidos por dois hom an bo a toda a velocidade e
ens ro. ustos com 'li
veículo em patins que desliza nas pedras polidas. Puxado
cordas amarrada·s à d'tant eira . do veículo o auxi- o de
a bois enfeitados com sinetas, o ()(11f7'0 avança numa: len-
As senhoras a pearam-se a, frent d · Co
tidão sensata, conduzido por 'Um homem e precedido Frandscanos quase no . ~·1 ~ () nvento dos
por uma cria-nça: que faz o .papel de postilhão. . ' . mats =to da s b'd A
Clada «Curiosidade» consist' - u 1 a. anun-
d Ia num salao ampl .
e c~ela e cujas paredes t' h
- Um pa:r de · bois atrelados, em p81SSO tranquilo e
. o que Servia
lento ... -começou Roger, adaptando o conhecido verso caveiras hum"'n"'S Ne m _am mcrustadas três mil
"' "" · m o guta p · ti
de Boileau. convento :nuder"'m e"' l' . nva vo, nem os do
-Passeiam no Funchal o english indolente - pros- _ ' l:" "' ·....p 1car aos · · .
tao estranho facto. . viaJantes a ortgem de
seguiu Rohert, completando a mutilação.
Entretanto mudavam pouco a: .pouco· as caracterís-
ticas da cidade. As lojas tornavam-se mais raras, as
1 Em português no texto QIIi'
(Nota d<J Trad .. ) Dg.ia:1a.l, com a ·g.ra.flia carrhino.
1 Em pc>J'tuguês no· ·texto oidginal, com a grafia arrieiro .
(Nota do Trad.)
Edições Afrodit·e DE FORA p ARA DENTRO

Edições Afrodite - DE !;ORA PARA DENTRO


Ju•les Verne Jules V:erne

150 151
então de chorá-las? Pelo contrário,, não será devido 0
regozijo .pela morte aos que mais lhes tiveram amor
Na base da descida, os dois france,s es voltaram a na terra? Por isso os cânticos de alegria que· ouvimos.
juntar-se às cOIIllpanheirns, ali entravadas por numerosa Depois de cerimónia, os 'amigos da família hão-de vir
concorrência popu:la.T. O objectivo daquela gente par~ia cumprimentar os pais da criança morta que devem eles
, .
proprws, o·cultar a sua irresistível e humana dor.
'
ser uma. casa de onde saiam risos e exclamações.
Pouco depois formava-se um cortejo que se pôs - Que singular costume! - disse Dolly.
em marcha e desfilou à frente dos turistas, ao som de -Sim - murmurou Alice - muito ·s ingular. Porém
musica alegre e cantos de festa. belo, meigo e também consolador.
Roger soltou uma exclamação de espanto.
~Mas ... mas ... Deus me perdoe! ... lt um enterro! .. . ... ... .. . ... ... ... .... .. ... .. .. .... .
Com efeito, aos ombros de quatro homens e a seguir
às primeiras filas do cortejo, distinguia-se uma espécie Os v1ajantes estavam a meio da refeição quando
de iPadiola! so!bre a quail estava deitado para o ete!l'no foram atraídos por um singular personagem que aoobava
sono um pequeno corpo de menina1 de apareceT no portal da quinta em ruinas. Sujo, ve,stido
Do ·seu lugar, os turistas viam peTfeitamente todos com uns farrapos miseráveis, o rosto cor de tijolo au-
os pormenores. Viam a fronte cercada de flores brancas, reolado por uma barba hirsuta e uma crina louca de
os olhos fechados, as mãos postas do pequeno cadáver cabelos que, a serem limpos, haveriam de fic·a r brancos
. '
levado ao túmulo por entre o folguedo geral. ap01ado na ombreira o personagem .observava 0 gi"Upo
Era impossível pensar que fosse outr·a a cerimónia, esfomeado. Aca;bou, enf:im, por tomar uma decisão e
duvidar de que a criança; estivesse morta. A fronte ama- veio junto dos turistas. .
relecida não enganav,a, o nariz afilado, a rigidez dos pés - Sede bem-vindos a min:ha casa - disse ele erguendo
que saíam das pregas do vestido, a: imobilidade defini- os restos de um guarda-.sol enorme, do qual restavam
tiva daquele ser. apenas as pontas.
-Que enigma será este? - murmur.ou Roger, en- ~A sua casa? - repeüu Ro1b ert, que· se levantou e
quanto a multidão se esco-ava lentamente. fez um delicado cumprim~mto ao. proprietário.
~Não envolve qualquer mistério - respondeu Ro- -Sim; a minha casa, à Quinta do Campamám.
bert. Neste' país religioso e católico· julga-se que, es- - Nesse caso desculpe os turistas estrangeiros intro-
tando rus crianças livres de toda a mác·ula, ~ão [ogo metidos que invadiram os seus domínios.
tomar lu:gar entre os anjos do céu. Por qure thasve:rdam -Não: vale a pena desculpar-se - protestou 0 ma-

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Jules Ve rne Jules Vern e

152 153
Perante o olhar indeciso dos turistas, D. Manuel
deir.en.se num inglês aceitável. Sinto-me bastante feliz
desatou a rir.
por vos oferecer hospitalidade. - Ah! ah! - excl·amou - querem ·com oorteza saibe.r
Rotbert e os companheiros o}havam para ele com
c? mo s~ os outros, não? Pois bem! as suas roupas ainda
surpresa. Os olhares iam da mi serável criatura ao ca'S8br e tem ma1s buracos do que as minhas, as ca·s as menos
em ruinas que servia de refúgio ao extravagante ·pr o- pedras que a minha quinta ( *) . Aí está! Nada· mais
prietâl'io. Dir-se-ia que gozava: com o espanto dos simples, como vêem. .
hóspedes. Os olhos do morgado brilhavam. Era evidente que
- Permita que me apresente pessoalmente às se- o as·s unto lhe agradava.
nhoras, po-is não há aqui ninguém que faça tal serviço. , --:Não,, n~ é mais simples - continuou - graças
Espero que estejam na disposição de perdoar esta incor- as ie1~ estup1das qUJe regem este país. As nossas terras,
recção a D. Manuel de Goiás, vosso h umilde servidor . que nao .podemos cu1tiva·r, alugruram-na:s ns nossos paJi·s
Na verdadeJ o nobre mendigo não· dei:mva de mos- pur contratos e o uso aqui pretende que eles sejam de
tr.ar debaixo dos farr•apos um certo ar. Debitara a tirada lo~ga duração. Esse contrato de arrendamento é pro-
num estilo excelente, meio altivo, meio familiar. Todavia, priedade do rendeiro. Cede-o, vende-o, deixa-o aos filhos
a ·P.olidez não podia impe-dir-lhe a sofreguidão dos olhos. e como renda à:á ao proprietário metade dos lucros. Alé~
H Lpnotizados pela aliciante mesa p osta, os olhos iam disso pode levantar muros, construir casas fazer todas
- I
dos pastéis ao presunto, acariciav.am de passagem os as construçoes que lhe apetecer :na:s terras que alugou
doces tentadores, clamando forte e com eloquência o e, para voltar à posse dos bens por ~pi'I'ação desse con-
grito de um estôma;go esfaimado . trato, deve o proprietário· tornar a comprar tudo ao
Alice teve piedade do anfitrião infeliz. Caridosamente preço. co:-r~nte. Qual de nós pode fazê-lo.? Em princípio
convidou o senhor D. Manuel de Goiás a participar do propnetanos, somos na verdade destituídos, ·s obretudo
por a invasão da filoxera ter permitido aos xendeiros
almoço.
-Muito obrigado, senhora, aceito de todo o coração suprimir a entre.ga de qualquer quanti.a sob pretexto de
que são nulos os lucros. Há vinte anos que istn dura
- respondeu sem se fazer rogar. E peço o favor de não
e aqm veem o resultado. Dos antepassados reoobi terra
·• A '

acredi·t:a.rem que almoçam em má companhia. E sta apa-


bastante para construir uma cidade, mas nem sequer
rência um tanto rude esconde aos vossos olhos um
posso reparar a casa!
roorgado (*), assim nos chamam aqui. À vossa; frente
O rosto do margado ficou sombrio. Estendeu maqui-
está um dos mais ricos pro;prietár.ios em terras da
nalmente o copo que alguém se apressou a encheT. Esta
Madeira.

Ed iç õe s Afrodit e - DE F ORA PARA DENTRO


Edi çõe ·sAfrodite- DE FORA PARA DENT R O
Jules Verne

MIGUEL DE UHAMUNO
154 (1864-1936)

consolação foi com certeza do seu gosto·, ~ois vol~u


a pedi-la muitas vezes. Comial para q~inre dt~s e beb1a J.wntwmente com Ganivet, fez despertar o relógio da
para um mês. Aos rpoucos, o olhar fw~u IllJ8,lS brando, consc~cia nacional - JEAN CAMP

~s olhos tornaram-se-lhe vrugos e mMs doces. Pouco Agõtvicannente preocupado. com a posteridade Una-
depois fechavam-se de todo, caindo o mnrgaJJn em peso muno não desàenka, não despreza aquil<J. a que'ckama
«a mwrtalidade d<> nome e da fama, o reoome a
no chão adormecido em bea.titude. possibilidade de salvar-se, pew rmeno;, na memÓria
'
Os viajantes ,
nem tentaram despertá-lo pa,.ra; a·s des- das gentes. - JULIAN MARIAS
pedidas. _
__.... Bem longe se vem ibuscar a soluçao par·a o ~ro-
Unamuno nasce erm,, Bilbatu no arw de 1864.
blema ·social - disse Roger no momento da. part:J.da.
Na terra natUil frequenta um curso secundário
Aqui e!stá ela, caramiba! Com uma lei destas não tar-
no Instituto Vizowíno, farrrw,-se em Filosofia
dam os camponeses a tornar•se verrdadciros senhores!
e Letra.<J na UrliÍIVersidalde de Maiàrid. A palrlir
_E os senhorres a tornar-se ca,.mponeses- respondeu
de 1891 torru:t! poose da cátedra de Grego na
mélancôlicamente Robert. CaJbe-lhes a vez de se revol-
U'll!iversidade de Salatmmnca.. A partir (k. 19Q1
tarem! exerce na mesma universidade a cátedra de
Roger não encontrou que re,sponder ao tn:s~e ~gu-
HistórW, da. Língua Espa;nhola e as funções de
mento e 0 pequeno grupo voltou à estrada, em sl'lenc1o.
reitor. Emigra pa;ra Paris em 1924, ooltando
..... . ..... . ...
....... ... ... .. . ... ... ... ... ... ,, , ....... .. mais ta;rde ao pais natal pu;ra reassumir o
(L' Agtmce Thompson amà C• ) cargo· docente que abandorurtra. Prirwipalis
obras: Vida! de D. Quichote e Sa:ncho, A Tia
Tula, Do Sentimento Trágico da Vida, A Ago-
ni'a do Cristianismo, Fedra, Medeia, A Esfinge.

Edições Mrodite - DE F O AA P A AA DENTRO


Ediçõ·es Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Miguel de Urramuno

157 APARTE 157


Um povo suicida
JOS!: RODRIGUES MIGUÉIS: «Unamuno deu aoa hlspanos, em
Por Tierras de Portugal y Espalia, e num soneto célebre, de Ainda em Portugal, esta tarde admirei o formoso
Inspiração sebástica, o figurino que colheÚ em certa fase
da v!da portuguesa, penetrada do satanismo junqueiriano, m•numento a Eça de Queiro·z. A inspiração grave de
do pessimismo de Oliveira Martins e da tristeza de Manuel Teixeira Lopes logrou dotar de uma expressão muito
de Laranjeira: e esse figurino ganhou curso livre até na
América do Norte, onde Don Miguel é muito lido e admirado. íntima o rosto do terrível psicólogo, do homem impla-
Uma portuguesada é, no mundo hispânico, o mesmo que
une espagnolade ou galéjade para os iranceses, e para os .cável para com as fraquezas da sua terra.
Italianos também. Não temos o exclusivo da .farronca!• Esse enfastiado, esse céptico, inclina-se a observar
com olhos esquadrínhadores a ima;gem da Verdade sobre
(!: Proibido Apontar)
cuja «nudez crua» quis fazer baixar «O manto diáfano
da fanta·sia». (Esta frase sua figura no pedestal do
monumento.) Dir,.,se-ia, porém, que a crueza da nudez
atr~wessa e desfaz o manto da fanta.si:a. Nem para
ocultar a verdade existe por aqui o bastante.
Pouco depoi·s de haver contemplado a sugestiva figura
do autor de A Oiikule e as Serras, já em pleno cora.ção
desta cidade de Lisboa, mesmo ao pé da estátua de
D. Pedro IV que outorgou a carta e partiu pa·r a o Brasil,
admirei os costados pétreos das ruinas da Igreja do
Carmo recortados contra o céu poente. E olhando o mo-
numento de mau agoiro, recordação do terr:amoto· famoso
do qual surgiu o Portugal contemporâneo, e do Marquês
de Pombal, ia pensando sobre que espécie de terramoto
íntimo, moral, ameaça· este povo. Com um e outro
terramotos ia relacionando as ironias amargas de Eça
de Queiroz, esse tal que não acreditou no seu povo, ou
na cidade poctuguesa, .pelo menos, a ponto de ir encon-
trar Portugal nas serra.s arredadas do contacto com a
civilização.

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Miguel de Unamuno Miguel de Unamuno

158 159
A seguir comprei três diários: O Paiz~ A Lucta e Entretanto vai e vem a gente desta; cidade' cosmo-
A Epoca . .A!bro O Paiz e: o artigo de fundo a!fi.rmai Jque na polita; parece contente, ri, gesticula, acorre aos negócios
vida dos povos há certas crises surdas e em estado ou às di,stracções. E ao vê-la poder:ia um observador
1arte:nte que só aguardam o momento oportuno para reve- superficial dizer: «E um povo como os demai.s ; por aqui
lar-se em retumbante fragor na limpidez e ·serenidade tudo co:rre hem.» E to:dav.ia .o povo desta mesma terra,
ambienJtes, acrescentando que a· alma nacional por- Portugal, é um povo triste.
tuguesa atravessa uma de,ssas cri<ses. Aludindo à nação, Isso me'smo, um povo triste. Daí o encanto que paira
no mesmo artigo se diz que «de'V&n todos ajoelhar-se pe- alguns tem, ape,sar da trivi·alidade e·v·idente das suas
rante o corpo inerte de um moribundo». Ê um artigo manifestações exte!l'iore'S.
que respira morte. Logo a seguir se f,ala de bancarrota O povo de Portugal é triste, mesmo quando sorri.
e de intervenção estrangeira numa interview com um A sua literahrra, incluindo a cómica e a jocosa, é uma
monárquico. Largo O Paiz e agarro n'A Lucta. Para literatura triste.
não falar de Portugal este fala do «keiser». E o artigo É de suicidas o povo de Portugal, talvez ele seja Um.
principal .d'A EpocaJ intitula-oe: «0 problema da felici- povo suicida. Para ele a vida não tem sentido transcen-
dade». Ao longo dele, um tal Sr. P. E. discorre sobre os dente. Sim, talvez queira viver, mas para quê? Mais vale
aforismos de Fontenelle concluindo que o 'Segredo da não viver.
feHcidade está num egoísmo inteligente. E termina a Suicidou-se Antero de Quental, o daqueles ter:ríveis e
recomend!!J' que se contente cada qual com o que tem. lapidares sonetos de elogio à morte, da morte «irmã do
«Sucede à felicidade o mesmo que aos géneros de uso amor~ da verdade», «funérea Beatriz de mão gelada ...

ca·seiro - di,z o articulista; mais valerá contentarmo- Mas única Beatriz consoladora!» ; da morte «irmã coe-
-nos com o que temos do que ·a mbicionar ou procurar terna da minha alm:aJ; da morte em cujo :seio inalterável
obter o que haveriaJ de agradar-nos mas não podemos cuidava dormir «na comunhão da paz universal». «Talvez
alcançar.» seja pe•cado procurar-te - dizia; mas não •sonhar con-
«Que horrível doutrina! », digo a .ntim meSmO' enfiando tigo e adO!l'ar-te, não•ser, que és o Ser único' absoluto.»
o diário no bolso, e recordo Alcácer Qui:bir e o Tei D. Se- «Se houvesse vivido no século VI ou no século XIII
bastião, o terramoto da cidade' de Lisboa, D. Pedro V - di,zia de Antero de Quental o seu amigo Oliveim
- o Hamlet português -, e seu mestre Herculano cujo Martins - este homem fnndrumentalmente bom seria um
soberbo túm·ulo ainda nesta mesma tarde contemplei dos compamheiros de S. Benedito ou S. Francisco de
nos Jerónimos, voltando a padrar à minha frente o SO!l'riso Assis; no século xix, porém, não passa de mais um
enigmático e triste' de Eça de Queiroz. excêntrico nesta corte de excentricidades indispensável,

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Miguel de Unamuno Mi·guel de Unamuno

160
161
porque a todos os tempos foram indispensáveis os a inspiradOTa. dos seus sonetos•. -
hereges.» farsante·!» , nao o fez? pois é um
Com os seus irmãos Obermann, Thomson, Leopardi, Antero e Soares do R · · ·a
Kierkegaard - não mais intensos do que ele no deses- t , s e'ls smci aram-se ... ; suicid'oo-se
amhem Mouzinho de Albuquerque, no qual muitos con-
ta:am ver ~essurgir alguns dos heróis antigos da epo-
pero - Antero dorme para: sempre. Já liberto, o seu
coração dorme eternamente o seu sonho à mão de Deus, pma camomana' Este . .
. .. ano suicidaram-se· dua'S· ou três
à sua mão direita. pessoas conhecidas, entre elas Tri~da.de Coelho E a:. .·
me lá · Izei-
Antero suicidou..:se. Soares dos Reis, o grande es-
~ , . :se a ~o~te de Buíça, o regicida, não foi um
cultor português, também se suicidou. Olhai para a~uela verdade:~ro ·S~IcidiO? Ainda não· há muitos dias publica-
sua estátua O Desterrado inspirada nuns versos de Her- ram-lhe os Jornai· t t
. s o es amento recentemente encon-
culano - a quem o estoicismo salvou do desespe'I'o trado. Nesse docUJment0 d · ·
d' . · ·· e mgenmdade admirável
a;bsoluto - e dizei-me se não vai o pobre náufrago . IZia-se~: _«A minha família vive em Vinhais, onde deverr:
jogar-se de novo ao mar. Ir participar Ih · h
- e a mm a morte ou desaparecimento
Suicidaram-se Antero e Soares dos Reis. Também CaJso ~st:s ocollTam. Os meus filhos ficam na maior po~
se suic'idou Camilo Castelo Branco, o grande Camilo, breza. n~o~ tenho que deixar-lhes além do nome e re·spelito
0 escritor mais rpopular desta terra, o dos sarcasmos e ~o~p~Ixao pel?s que sofrem. Peço quel os eduquem nos
terríveis que viveu e lutou só, contra todos mantendo prmCipios da hbel'dade', igualdade e fraternidade em
desfraldada a 1b andeira do ultra-romantismo. Num artigo ~ue eu c_ozr:,ungo e por causa dos qua<is talvez em breve
que Ca;milo escreveu a ilustrar um retrato de Laura quem orfaos.» Este é o seu testamento e 't .
de Valclusa, depois de lhe falar na morte refere-se à dias antes d . , . ' SCTI o cmco
- . . a morte e do regiCidio. D:izei-me: também
insolência de Petrarca ao sobreviver-lhe vinte anos e nao ~eTla sido este último um verdaldeiro suicídio? Não
acrescenta que os sonetos constituem grande purga nas tomat.s por algo· m~i,s que uma boutade o facto de alguém
paixões excessivas, visto saber-se que alguns sonetistas ter dito ·q ue o ret D. Carlos foi' um suicida e Buíça
morreram de fome, porém nenhum de amor. E é isto quem o suicidou?
o que noutro qualquer, sem ser português, sobretudo sem Lede agora uma cart h, ~
· a que a um mes me escreveu
ser CamHo - ou mesmo Eça de Queiroz entre os seus um dos meus amigos portugueses.
. ~ela referoe a notícia que eu lhe dera de pretender
burgueses - , mais não passava de uma boutade, uma
hrubilidade. É algo mais em Camilo, porém, é o mesmo pu:bhcar um hvro sobre Portugal. Traduzo aqui a ca.rta
que dizer: «Este Pestrarca devia matar-se ao saber morta deixando-a como está, sem nada suprimir. Ei-la:

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DENTRO
1!
Miguel de Unamuno

162 APARTE 162


«Amigo: Não: imagina que prazer senti ao s81bê-lo, ROGER VAILLAND: uEntre 1904 1
espírito superior que é, em vias de compor um livro sobre trinta anos, viaJara nas fé e 914, entre os seus vinte e
a fim de rematar a ed rl~s liunlversltárlos por todn a Europa
as coisa.s da minha terra, desta minha tão desgraç.ad81 Voltando certo ver;;o d lucaçd o, SelJllndo o dosejo do pai
_ " e on res para v - •
terra de Portug1ll. rumo a Napoles, demorou.se alguns d" em a1enoJa embarcar
a si mes-mo mil perguntas b •as em Portugal. Fizera
«Desgraçada, é essa: a .paJavra. O pessim1smo su:ici·d a l'!_ll>érlo e alargara a todo !o ~~H~ decllnlo dusta naç o cujo
de An·t ero• de Quental, de Soares dos Reis, de Camilo, nao escreviam para nlnguóm ~ · Conheceu escritores quo
vam para os Ingleses; hom~nsto;ens pol!ticos quo governa.
e até mesmo· o de Alexandre Hercula-no (que se suicidou as feitorias do Brasil e vivi d a negóctos que liquidavam
por isolamento, como os monges) não são flores negras do provlncla, sem quolque~mobj r~ndos exlguas nas cidades
dos desgraças era nascer porru::ã vo.E Concluiu que e pior
e artificiais da decadentismo literário. Essas figuras ~-~rn vez na vida travara encon1ro s. m Lisboa o pela pri·
"""Interessado.. com um povo· que se tinha
estranhas de desespero trá:gico 9.rrompem espontâneas
com-o árvores envenenadas do seio da terra portuguesa!. (A lei)
São nossa:s, são· portuguesas ; pagam por todos, expiam
a desgraça de todos nós. D.ir..se-ia que uma raça inteira
se suicidou.
«Chegou-se em Portugal a este prjncípio de filosofia
desesperada : o suicídio é um recursó no1bre e uma espécie
de redenção moral. Todo o que é pobre se suicida~ n-este
malfadado país; .todo o que é canaJ.ha triunfa.
«Chegámos a 4sto, amigo. Aqui te'm a nossa desgra93..
Desgraça de todos nós porque todos nós sentimos que
nos pesa em cima:, no nosso espírito, na no'SS!IJ alma deso~
lada e triste como se :f)osse uma atmosfera~ de pesadelo,
depressiva e má. O nosso mal é uma €Spécje de ca~o
moral, de tédio moral: o cans aço e o tédio de todos
aqueles que se farta.ram de crer.
«Crer !.. . A únic-a; crença dign!IJ de r espeito em Por-
tuga;l é a crença na morte l.i bertadora. 1!: h-orrível, mas
é assim.
«A Europa despreza-nos ; a Europa civilizada igno-
ra-nos; ·a Europa medíocre, burguesa, pr-ática e egoista

Edições Af•r od i t e - D E F O RA PA RA DENTRO


DE FORA PARA
DENTRO
Miguel de Unramuno

163
detest~ a-nos, como, se detesta a .g ente sem vergonha e,
sobretudo .. . sem dinheiro·. Apesar dis·s o ainda há em
Portugal muita nobreza moral; pelo menos ainda há
nobreza moral bastante para morrer, e co.i.s8!S muito
dignas de simpat i-a.
«0 se'U! livro há-de rea:bilitar-nos um pouco, estou
certo. Você; que é homem de paixão e sentimento e vê
as coisas da vida através da lógica afectiva., há-de natu-
ralmente ·Ser levado a defender com calor um povo acima
de tudo ~sentimental. Tão sentimental que· se deixou
dominar pel1a emotiv:idade. despótica de um alienado com
o delírio da tirania.
«Bem sei; muitas vezes a lógica afectiv8, turva a visão
nítida e precisa dos factos; mas em compensação per-
mite que ·Se pressintam e compreendam certas coisas que
só pela •inteligência do coração podem s·e r compreen-
didas. Visto à luz fria da lógica utilitarista, amigo, o seu
livro ~sobre as coisas e desventuras da minha terra pode
conter muitas interpretaçõe's erróneas, muitos modos de
ver falsos, ma;s com certeza há-de conter também algumas
verdades que .só podem ser adivinhadas e compreendidas
por esp~ritos afectivo's.
«Diz você que tudo quanto ·s e passou e pa:ssa agora
em Portugal é o re:bentar de uma espécie de tumor
social ...
«Será, será. Será a própria morte. Há quem diga que
o tumoir n:ão pa:ssa de um abces·so e, mal consegue su-
purar, nos .petrmite viver a;inda la!'gOS dias de de~safogo
e bem-estar. (Em Portugal também há optimistas.)

Edlçõ ·es Afr·o d l t e - DE FORA PARA DENTRO


Miguel de Unamuno
Miguel de Unamuno
164·
_ _ _ _ _ _ _ 165
«Por mim, não sei; não sei ; em boa verdade não sei
para. onde va.m.os, amigo. Sei que vamos mal. Pa.ra onde? abatimento e entusiasmo, fé
sespero. e desânimo, crença e de-
Para onde JlO'S levam os maus ventos do Destino? Para
onde? Vwmos.. . Quando penso que pesa •sobre nós a «~uer i.sso essendalmente dizer .
tugues quando fal d . que fato como por-
herança trágica, secular, de uma ignorância pútrida e p ortugal atravessao uma as COI•sas e desditas d p.
h . ·· e ortugaJ.
corrupção ·criminal, o meu espirito faz-se regro· e sin-
crepuscular do ·seu· d . t.. ora Incerta, repito, C•in~enta,
to-me invadido- por um indescritível pavor, talvez ' es mo Trata , d
que precede o- dia e a vida 0. . d r:se-a o crepúsculo
a;bsurdo. E ', mais que' s·aber se va:mo-s para •a vida ou a a noite e a morte? N- . ' ~ ~ crep~usc~Io que· arntecede
rn'Ort-e, me rpreo·c upa saber se mo:r:reremos nobre ou mise·- A' d , ao ·S el, nao seJ :nao sei
. « In a ha meses, quando Port . ' ...
ràvelmente. Bem vê, amigo: ·a vida, seja ela .a: vida; de dras terriveis da ditad d ug;al atrave•s·s ava os
um homem, seja el:a a vida de um povo, é uma coisa; bem íamos ressurg.·ir N""·s saura :_ Franoo, julgava. eu que
pequena, bem desprezivel. O importante é o uso que dela "' • ç · ocasrao bi' ·
fervorosos de optim. pu .r quer· uns artigos
se faz. Um minuto de v'ida bem preenchido v-ale malis do h . rsmo e crença Apesar d' . .
. OJe uma tranquilidade . útrid . . ·Jsso smto
que uma eternidade de vida ·inutilmente vivida. E em Não falta por aí quem pdi: a a que_ deve::as me assusta.
Portugal (veja a profundidade do nosso mal!) alguin:ais antes o cadáver de um po g que wto Ja nem é .povo,
há tão sucumbidas que dizem que tanto faz morrer de - vo.
« N ao sei, não •sei. ..
um O'U outro modo. Esta insensibilidade moral é pior «<nterminável como a desvent
do que a morte, não é verdade? a.migo, do estadb do meu esp'· 't ura, esta carta dir-lhe-á,
Ir! o neste moment "f.\
«Em horas de desânimo chego às vezes a acredi-tar s Í v e1 que me engane (oxal, 1) • • o . .c. pos-
que esta tristeza negra nos sobe da alma aos olhos e, devido ao estado depressi~~ :otudo Isto seJa um pouco
então, sinto a intolerável e louca sensação de que todos Para mai•s, reconheço a res .: meus :nervos doentes.
tem.os em Po-rtug.al os olhos vestidos de luto por nós terra não falo corno ' , d. pei o dos males da mi.nha
E me rco, mas como doente
mesmos. « porque falo como doente t b, . .
«Sou português, é claro, e filho, portanto, de um carta demasiado long . f , . ~m em por ·Isso vai e:s ta
d a e asbdrosa. 'E ..
povo que atravessa uma hora incerta, crepuscular, do oentes gostam muito de falar d que todos os
seu destino. Devido ao nosso estado é possível, pois, esta a minha ún:ica de,s culpa. as suas doença·s, e ·s erá
que não tenha clara a compreensão, como sucede a quase «Perdoe-me e creia-me sempre, etc.»
todos os enfermos. E, tal como também sucede a quase
todos os doentes, o meu espírito ·s ofre intermitências de· ·Todavia, depois de assinar
ranjeira em post-scriptum: acrescentava Ma.nueJ La-

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Ed!çõ·e ·s Afrodit ·e
DE FORA PARA DENTRO
Miguel de Unamuno
Miguel de Unamuno
161
166 Logo faz ~ef~rência aos grandes folgazões, de Aristó-
«P. S. - Tantas coisa:s deseja.rJ:a dizer~lhe em res- fa~es e ?eroocrlto a; Byron e Heine, acrescentando que
posta à sua carta! Ma:s que quer? Quando me ponho fm preci.so ter--se chorado para, no livro e na e:strofe
a falar da minha pobre te;rra, e sobretudo das desditas n~ sentença ou na palavra, imortalizar o riso. També~
da minha pobre ten-a, sou assim (como os doentes!) , nos teremos de dizer - afi!rma ele - : Sivis me rid~
esqueço .tudo o mai&. Desculpe.»
1
dOlendum est tibi primum. e
Depois de repassar e transcrever aqui, no quarto E Ca~.ilo, o suicida Camilo., continua discon-endo
triste do hotel, esta carla tão profundamente reveladora, sobre o _nso em Portugal para afirmar que a ninguém
concordo coro a tranquilidade pútrida e até os :risos ocorreu mscrever ~lguns sa;tíricos portugueses na pléiade
-não muitos; ma;is tdste, muito mais triste que Madrid daqueles que castigaram a rir: «0 espírito português
até na aparência - é a multidão destas mas de Lisboa. - d~cl.8.JI'a ~le ~ nunca espantou ninguém. A bruteza
E, paa:a me distrair nestas no,i tes compr.i das do fim de crurn~cei~a, ·Sim. Assevera-o o douto e pio .bi·spo Amador
Novembro, deito a mão a uma: novela portuguesa, ~n-ais ... Espa:nta~se o mundo e tem inveja à nos·s a fero~
A Mulher FataJ de Camilo. Na <dntrodução» ele discorre cidade.
. . .lsto_ escreveu-se
. ' de boa fé , no sec' uioxvrrentre
.
coro amargura sobre o riso, e entre outra·s coisas diz que a mq~Isiçoo e a pirataria portuguesa no Odente·.»
raciocinar é rir, e ver o reverso das tragédias sociais Frco a pern~ar no espanto e na inveja do mundo
será o cúmulo da sa:bedoria humana, .p ois há-de por perante a feromdade portuguesa. E penso que e.ste
u h d , povo,
força residir ai a comédia. E logo distingue (f riso do q e c a;ua uro e aspero ao castelhano, é muito mais
animal filósofo da g,argalhada plebeia do bí.pede implume duro e aspero do que ele.
e sem carta. de f.ilosofia alguma. A gargalhada plebeia A n:ansidão: ~ meiguice (':!<) portuguesa só se en-
é espasmo cínico, o r.is( SOJt"dórvico, o riso dos que contra_ a ~u~erfiCie; ~aspai·-a e logo haveis de encontrar
0
comeram o tfarnoso ra.inúneulo da Sardenha. E CamB.o ~a vwle~ra plebeia que chegará à assustar-nos. Oli-
acrescenta: «.Ora entre nós os que desta. arte destampam ;elra Mar~:ms conhecia bem os compatriotas. A mansidão
gargalhada;s não comeram reinúnculos: é gente embu- e u~a m~sc~ra. A linguagem da Imprensa sobrepuja
chada de feijão bran{!o e orelha de cevado. Essa ·h edionda aqu1 ~ mats violento que na Espanha se escreve. Lá nunca
deformidade caracteriza estupidez quase sempre malé- podenam escrever-se páginas como as que n'O G t
F" lh d· . . , , s a os,
vola; corresponde ao espojar-se, se o rir é meramente Ia o e _Almeida dedicou a morte do rei D. Luís e à
bruto, e ao escouceaT, quando é bruto e mau.» p:rodamaçoo· de D. Carlos que não tardou aliá
morto el B , , . s, a ser
. ~ o u~ça. E os mais fogosos dos nossos escri-
1 Nãn tendo stdo possív~l transcrever o· por.tugtUês da. carta tore:s tem na· literatura que ceder em força aos daqui.
on\lgtn:al, fol · ~'Uz.id':a. e. ve11São· .espa:ohola. de unamuno. (Nota
do Trad.)
Ediçõ ·e·s Afrodite - DE F O R A pAR A DENTRO

Ediçõe·sAfr'odolt·e- DE FORA PARA DENTRO


Ml·g•uel de Unamuno
MI!J\.Iel de Unamuno

168 169
N~o ainda há muitos dias, na secção intitulada·
Este é um povo não só sentimental como apaixonado ou,
As ~tn'lu;r.y razões (*) que se pub1ica n'O Primeiro 00
melhor dizendo, mais apaixonado que sentimental. A pai-
Janetro do Porto, dizia Jo.ã o Chagas a quem dava aos
xão trrui-o na. vida: e, consumido o seu óleo, há-de a mesma
republ:i~anos ,portugueses o nome de jacobinos, que da
paixão levá-lo à, mort-e. Quem pode· hoje fazê-lo parar?
Dentro de• alguns dias, a 10 de Dezembro, esse R-epública nunca estes fizeram uma qu~stão de direâ.to·
pelo co-ntrá·rio, a cada: passo declararam ootrur disposto~
mesmo povo irá cele:brar as festas da restauração da
a reconhecer uma monarquia que, muito simplesmenteu
sua naciona1idade, de ter sacudido o jugo dos Filipes de
governasse bem. «Tem sido assim de:sde Jo'ã o Falcão
Espanha. No dia seguinte voltar-se-á a falar de bancar-
que exclam<a~va: "Se a monatrquia nos pode ·Salvar, qu~
rota e inter:venção estrangeira. Poibre: Portugal!
nos saive então•!", até Afon1:1o Costa que oferece a
Lisboa, N O'IJ6mbro oo 1908 co~per~ção do partido republicano a uma monar-quiru que
se msp1re em pr.i:ncipios de mor.a.l e justiça. Assim sendo
pergunto eu, desde que há re,publicanos no mundo·, q~
De Portugal se fez de semelha-nte? Poderá dizer-se com ri.go:t· que
em Portu.gal não há republicanos - os republicanos não
Através do regicídio de 1 de Fevereiro, última cena recOillhecem qualquer espécie de monarquia, má ou 00~ _
trágica da Hi·stória de Portugal que é, s:inais tem, mas cidadãos que à monarquia pediram em vão a feli-
contínuo• naufrágio, cons~guiram alguns acreditar que cidade.» Chagas acruba; dizendo que, a morrer .a1 monar-
ia alterar-se o rumo à •s ua vida púbUca. Não aqueles quia, nã~ h~-de. fazê-lo às mãos de republ'icano•s, po:is
que o conheciam, entretanto. O acto talvez justiceiro, estes mais nao fizeram do que dizer-lhe que viva .
.porém fa.tal, foi de uma justiça e fatalidade .anárquicas. Nas papelarias que vendem postais vê-se no entanto
Discutiram-se os adiantamentos (*) à Coroa e o o retrato do regicida Buíça junto do jovem ~i D M·anuel'
Sr. Afonso Costa, repubHc.ano, na Câmara chamou-~hes e até mesmo ao pé da vítima, ·seu pai D. Ca;los. Vi~
:roubos. Roubos, sim, roubos! (*), e repetiu-o entre os aqui no Porto e em Aveiro. E em todo o lado o retrato
aplausos dos companheiros político.s. A Câmara aprovou dos republicanos, até nos rótulos de um novo licor.
os adiantamentos cujo montante ainda não é, com pre- ::m a moda.
cisão, conhecido. Há quem o: faça subir a mais de doze Deitan~o a mão a um jornal, é natural que ele diga
milhões de francos. alguma; cmsa. sobre a questão dos adiantamentos· mas
Tratava-se de uma questão de moralidade!, sem dú- traz muito, muito mais, sobre a fome, a crise do ~inho
vida; todavia, que ideal r~epresentav:am ou representam a má colh~:ita do· milho, traz muitas noticias· de festru~
os re:publicanos peTante a corrupção, monárquica?

Ediçõe ·s Afrodlt ·e - DE F O RA pAR A DENTRO


Ediçõ·esAfrodlt·e- DE FORA PARA DENTRO
M ig~el de Unamuno Miguel de Unamuno

111
170
. • arte. De há ba;stanre t empo maior e profundo que um artista. Este homem é uma
que se f1zeram P01 to~a.. a P ão . .também pode da,s minhas fraquezas. Quanto 'lliprend.i eu nessa: obra
se diz que os duelos dlmfmutem co%;: é 'me.nor. Destllis sua, tão rti-iste como ele rp rópr.io lhe chama!
~:n, ue ha.vendo es as, ·a . 0Hvedr8.1 Martins era um pess imi•s ta; o mesmo é dizer
u.wor-se q , endigo algumas ml-
reuniões de gen~e. a legre s:~~d~: é aqui uma. institui- que português. O português é constit ucionaa.mente um
g·a:lhas e a mendtCldade, a c . ' d d que em pes·simista; ele próprio o repete. Acaso a poe·s ia deses-
ção ainda mai s enraizada e propa.ga a o perada -e. dura: de Antero de Quental não será a flor
Espanha. . . . p rto h á um clube dos fe- amarga deste espírito? Ac81so alguma vez o desespero
0 Minho c11Vert.e~se. No 0 · d tais achou acento mais trágico, mais profundamente poético
d irondinos mas ·sob a ca.pa e
nianos, outro os g . ' . dades par.a; orga- na sua rígida estrutura metafís~ca, menos artístico?
• M esconde que 's oc1e
nomes mat.s nao ;e. F de artifioio, sobretudo, Em ~opardi, a poesia da dor encontra-se temperada
nizar feste'jos pu11licos. ogo 1 pela arte, ma:s aéontece que o português não é artista.
, · · temente portuguesa;.
que e arte emmen . M faz M"te da fel~cidade ~. se- «Pwa; ele ___. di·z Oliveira Martins de Herculano -
Parece- que a diversao p A ó existem em para ele qu:e, como lusitano, nada t inha de artista (prova,
gun do Chagas, o <repubLicano por:tu~es, s . vão os seu:s romances), a liter8Jtura era uma mi·s são e' não um
. dã à monarqma pedwam em
Portugal c1<ia os q~eli .d de é essa que- os cidadãos diletantismo. O Universo, a História, a sociedade não
1
a feHcidade. E que . e c , a goveTno a monarquia, se lhe apresentavam como assunto de estudos subUs e
governo? Ser a que () ' curiosos, de observações finas ou profundas, de quadros
pedem a um . f~ejos? Que felicidade? A de uma
não s8Jbe orgamzar · gundo a frase de brilhantes, vivos ou comoventes; mas camo objecto de
atntiga BeócW., fa?'ta de swras' se afirmações ou negações., inspiradas pela convicção es-
Oli~orns:;::~ Portugal elegíaco tenh.o andado
d ai •b elas e mten$3-s o
b:: tóica.» Artista foi Almeida Garrett, o homem «poUdo,
pintado, postiço, que ocultava a idade, depois que inven-
últimos dias. a le: uma o:V:a ~artins, o seu Partugal tara o nome para se fazer fidalgo» ; mas sob o peso de
do grande historlador . Guerra Jun- uma dor, vendo~se na cama com a perna partida., sem
â He undo uma vez ouvl a
Oonterrvpar neo. . g se ·a a melhor das suas obras. postiços, este mesmo homem escreveu a tragédia. por-
queira, este acre~l~ que J M sou ortuguês. Além tuguesa em que a poesia destrói a: arte; escreveu: o
O mesmo não cliore:L porque nao p 1li M-e- Frei Luís de Sousa, tragédia, que «nem é clássico, nem
Oliveh'a Martins não me parece, çoxn.o , ul romântico; é trágico, na bela e antiga a cepção da pala-
d e que . art' sta. que o sec o
nend~ y Pelaio o historiador ~~ls- ~ o único que vra: superior ws escolas e aos géneros, dando a mão,
deu na; PeninsUla; Iberaca, an , por ·s obre Shake,s peare e Goethe, a Sófocles. Num mo-
.p assad o 1 to quer dizer que e algo
den:tro dela merece tal nome. s .

Ed ·i ções Af r od ·i te - DE FORA PARA DENTRO


DE FORA PARA DENTRO
Miguel de Uoamuno
Ml~~t~el de Unamuno

173
172
·beócios, materialri,s tas, sem fé alguma. em nada que seja
mento umco de intuição genial - continua dizendo duradoiro.
Oliveira Maatins - , Ga<.cret t 'V·iu por dent t'.o o homem Nesse am?~ente suav'e e triste será estra;nho que 0
e •s entiu .o .p alpitar das entranha;s portuguesas. Que austero e estmco HeTculano exclame nos últimos ins-
ouviu? Um choro de afl.ições tr:i.stes, uma resignação tan:e.s de vida: Isto dá vontade da gente morrrer! (*)?
heroicamente passiva, \liila esperança vaga, etére.a, na Ser~ estranho· que Rodrigo, o desdenhoso, ac·a be a mm-
imaginação de uma r apar iga tísica, e no tresvario de murar: Nascer entre brutos, viver entre br'Utos e morrer
um escudeiro seba;sti<anisba». entr'e bmtos é triste (*)? E não vos lembrais também
Artista consegue ser Eça de Queiroz ; ma:s este é um daquele ~oneto de António Nobre: Amigos, que' de'Sgraça
estrangeiro que, no fundo, descobre a suru prosápia pelo ter nasculo em Portugal ('"' ) ? E as i<rorrias amar.ga;s de
sa!I'casmo. feroz e agres·si'VO. A celebrada ironta que é Eça de Queiroz? Até mesmo de Camões calemos alguns
a sua, não é a ironia france~a; Queiroz não e·s correga versos de fogo.
sem encontrar apoio. Nem todos sentem dessa forma, sem düv•ida. Há os
E todos este's ,pessimi·s tas elegíacos não acreditam de boa,s fa~as. Há os que acreditam que Portugal é pe-
na pátria. «As .populações rura;i•s e as urbana;s, a pro- queno, «porém um torrão· de .a:çúcaT», como dizia Link,
priedade e o C3Jl>ital, sem o n exo da ·i ndústroia, desligadas, o OOII"regedor de Vi·seu. «Portuga.J! é uma vasta: brurrubaria
não ·se penetram. Se o ca;pitaiH;gta; compra .t erraJS é .para em que reina: o rei D. Sancho», afÍirmava Garrett. Nela
as arrendar, vivendo sempre da r enda. E capit!llllSta e bem ·s e acham os que não ·s entem necessidade d:e ideias
propriet ário, ,p rov.inc•iano um, cosmopolita o outro, ne- transcendentes, de ide,ias sociai•s.
nhum deles s ente palpitar em si a alma da nação.» Co~o doeram aos portugueses cônscios do seu por-
O r&sgo de· poJ.arizar o sentimento nacionall ·e ntre o pro- tu~e~s~smo - e com ra;zão doeram - aqueles versos
vincianismo e o cosmopoi'itismo é um dos· maiore·s rasgos ternve1s da estrofe 18 do Calllto I do Okilde Hwrold de
de Oliveira MM·tins. «Uma granja e um Banco, aí temos Lçr~ Byron, aqueles «escravos miseráveis, apesar de
P.ort<ugal», diz ele. E assim é. De um lado o campo, o ~sc1dos entre as mais nobres cena.s! Com .tal ge'lllte,
campo poctUJguês em que ~ tão d'Oce vegetar, ta;l como o Natureza, potr que desperd1'ç aste os favores? »!
há-de vegetar no outono da vida e da:s ilu;s ões esse nobre Poo!f, paltry slaves! yet bo'l"n'midst noblest scenes
Passos Manuel que apanhava azeitonas na callmaria de Wky, Nature, waste tky wand;ers on suck men? '
Alpia.rça, comi·a os seus feijões, lia o seu j.ornal e, aper- Que acentos est!ll apóstrofe inspirou a Hercul•a;no!
tando a fi1ha; nos braços e~ de encontro ao peito, pro- Mas por que havia: o nobre estóico- d~ senti-la tão forte
curava esquecer os infortúnios da pátt'liaJ; do outro lado se lhe estava na vontade morrer olhando à ·sua volta?
Lisboa, a cidade cosmopolita: cheia de bro.s.fle'f.tros (*)

Edições Afroodit•e - DE FORA PARA DENTRO


Edições Ah<JdH ·e - DE FORA PARA DENTRO
Miguel de Un<Jmuno
Miguel de Unamuno

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afrancesados cienti·stas portugueses. «A fortuna: dos
Esta tristeza enorme·, este pess1m1smo arreigado,
ricos, a ·sorte dos pobres, andam guiadas por uma cod:sa
têm origem na fulta de um ideal colectivo elevado, um
ainda pior do que a ignorância: a sempre pedante
desses ideai·s que, unHlicando a V'ida; de1 um homem e a faJsa-c~ência.» , /
de um povo, lhes conf.e re .aquela personalidade s_em a
«E a ideia: do progresso é o" que logo atrai o brasi-
qual, e apesatr da riqueza, a vida não pa:ssa: de ~-H~teza leiro (*) que enriqueceu! Sem dúvida alguma será para
e vacuidade. A origem de tal pes·simismo é a, apaJtla, uma
ele sentença quase evangélica aquela frase grotesca de
apatia que às vezes desencadeia ataques de ·f~~a. Fontes, o fam.á;tico das via;s de comunicação, como a si
O :ideal :religioso perdeu-o já a classe di:Ngente, a ,
mesmo Sf chamava, que exclamava num êxta;se de pro-
classe europetiza.d a, melhor dizendo, a classe afram.cesada gressi·s mo: «Acima do cavalo da diligênda €'stá o carro
de Portuga-l. «A trivialidade do c-atolici•s mo liberal era,
eléctrico, acima deste a locomotiva e acima deles todos
sem a fé a: reH..gião do príncipe (D. Pedro IV., o do
o progresso!» Oliveira Martins comenta esta frase ge-
Brasil), e' também ia ser a da nação nova», diz Oliveira.
deónica e digna de l\1iister Homais, acrescentando: «Pa-
O mesmo é a;fittmlar que ·p erder não se· .perdeu, mas trans-
rece inventado e não é.»
formou-se. Hoje é a trivi·a lidade do cioenti..fici'Smo maá·s
Não, não é. Encontrei vários de•s tes brasileiros (*)
ou menos alcanesco. O pobre' Teófilo Braga:, tão simpático
progressista;s que volt·avam a gastar os tostões na aldeia
e nobre caráoter como escritor Lnsuporlável e horrendo .. .
nartiva do Minha, e era ouvi·-los! E o que eles diziam de
poeta ( ?) , é um simbolo. Venha ou não e. propósilto, há
uma fOII'ffia tornada simpática :na ingenuidade e singe-
que sa-car o confronto e.. Auguste Comte. E diga-se- que
leza, dizi·am noutra·s pal·avra;s os que em liceus e acade·-
é trabalhador inCMJ.SáJvel que a pátria deu obras num
mi.as haviam bebido da fonte da Ciência., a;ssim, com letra
total de muitos metros de comprimento. maiúscula. Com encómios ponderativos e pa:ra lisonjear
«ldeias não· se encontram ... além das que .esses ho-
o meu amor pátri·o, um de·stes faiou-me dos trabalhos
mens beberam nos ma.is tri;v'i'a,i•s e banalis livros fran:
de Ramón y Cajal cujo tratado de Histologia. estudara,
ceses.» Hoje e aqui, tudo isto é tão veroade como ha
mas . . . em francês. Sim, •p orque em ca;stelhano corria o
meio século, na altun1; em que Herculano o escreveU'.
risco de, juntamente com a língua·, se lhe .pegar alguma
E veja-se o que diz da ciência desorden~a das c~~es
coi·s a do nosso: e1spírito berberesco e inquisitorial, so-
médias portuguesa:s o Uvro terrível e tr1·ste de Ohve1ra
berbo e desdenhoso.
Martins, da qual venho contando passagens. Aqui, um dos úlrt.imos ídolos é a ciência.
Sim· esta pseudociência, este cientif.icismo progres-
E com que simpatia nobre alguns destes cienti-st!lls
seiro são piores, muito piores que o fatidico oitelllta por
que estenderam a mão ao(3 cienUstrus franceses por
cento de analfrubetos contra o qual tanto declamam os

Ediçõ •e sAfroditoe - DE FORA PARA DENTRO


Ed :içõ ·e ·s Ahod ·i t e - DE FORA PARA DENTRO
Ml{tUe•l de Unamuno

176 APARTE 176


cima da Espanha -.,... o que não quer dizer que eles nã·o
existam entre nós -lamentam-nos, espanhóis, que a.inda
não conseguimos sacudir dos e·s pírítos o velho· fana-
tismo místico! Todavia, a questão religiosa é, em Es-
panha, uma questão nacional! (e oxalá continue a sê-lo
porr muito tempo!). Aqui, em Portugal, já não; nesse
ponto alcançaram a paz tão ans,iada dos espíritos ou,
pelo menos, julgam i•sso. Agora, o que não se lhes de•s-
cobre ·em fanatismo descobre-se :em superstição. Por'que
- e não se alarmem os mentecaptos por :surgirem de
qualquer lado os paradoxos - fanatismo e ·s uperstição
costumam andar na: razão i:nvers·a. Bem diZiia Oliveh·a:
Quando mn céptico .tem superstições - contradição só
aparente e no espírito humano muito vulgar - não ra-
ciocina: obedece; não resi:ste: cai. Atacar um místico
é fortalecê-lo com urma coragem transcendente.»
Lendo há di·as o anúncio de uma deitadara de cartas
num dos jornais de maior circulação em Portugal - não
me lembro se era mulher - pensava eu que, a ser pos-
sivel estudar o curso de: tal negócio, haveríamos de ver
que rendia m!üs em Lisboa e no Porto do que em
Madrid ou Barcelona. Nós, espanhóis, no fundo acredi-
tamos menos em milagre·s; nem mesmo nos da ciência.
E não seTá por ceptidsmo; antes por ainda termos mais
fé em nós próprios. Não aguardamos o regresso de qual-
quer D. Sebastião. «0 futuro Messias há-de· sair de um
laboratório», dizia-me certa vez Guerra Junqueiro. Não
HENRY MlllER: uDiz [o meu amí o Rívas]
será isto um sebastianismo científ.im? são caricatura dos Espanhóis ~ que .os Portugueses
literatura!>• , mas produziram uma bela
Quando em Espanha me encontro• com qualquer
espanhol jeremíaco, pe:Ssimi·Sita, aportuguesado, que se (Cartas a Ana'is Nin) _ 4/B/ 41)

Edições Afrodtte _ 0E F O RA
Ed :Jções Af •rodlt ·e - DE FORA PARA IOEN •T RO PARA DENTRO
Miguel de Unamuno

111
compraz em ponderar e exagerar os males da pMria e
não ver o eVidente e grandíssimo passo em frente dos
últimos anos, digo-lhe sempre: «Vá a Portugal uma
temporada.» Aqu1 sim, alguns existem muito satisfeitos
com a situação do câmbio e com isso de o dinheiro del€8
se trocar a par com o nos-so• - nestes últimos dias,
o duro oscila enrt:re 890 e 900 réis -mesmo com certo
prémio a seu favor e apesa·r da,s suas finanças se encon-
trarem muito mais avariadas do que a·s nossas; mas
digo sempre: não só dinheiro, nem prindpalmente di-
nheko, é o que os povos trocam.
No entanto, que possibilidades as que aqui existem
para o porvo! Que vitalidade a dessa gente! E que pro-
líferos ·são, Deus do Céu! Como é possível que a sua
principal exporrtação •seja hoje a exportação de homens,
gado humano, como um deles disse. E que homens duros,
re,si•stentes, vividos. Afirmava Spencer que a primeira
coisa ·a fazer de um homem era um bom animal; mas
como risso de animal é uma espécie do género vivo, a
primeira coisa a fazer de!le é um bom vivo. Isso mesmo
são-no eles aqui: bons vivos com robusta vitalidade de
plantas, como a desse·s pinhei!I'os que deitam raízes na
a.re1ia das suas costas. E depois, submissos. Submi•ssos
mesmo quando se revoltam. «Ü consentimento inato dle
rebeldia (que não devemos confundk com o da indepen-
dência) - diz Oliveira - essa vis íntima dos celms
submissos da Irlanda e da França, m~iste no min!ho~o ... »
São capazes da ira do cervo ou do carneiro que os leva
a actos de violência f~enética. Quando o V!itelo se irrita:
faz uma arremetida contra o primeiro que encontra e

Ed•ições Afrodite- · DE FORA PARA DENTRO

12
Miguel de Unamuno
\Migllef de Unamu~o
178
logo a seguir volta a ficar tudo como dantes. Assim se
•·que
179
explica o regiddio e :as s~ consequência,s . Rebeldia, na nossa Espanha: está h .
sim; independência, não. Aqui, como na Galiza, pode -e Catalunha! Juntar ~Je a acontecer. PovtuP' I
rr eflex- - , esses dms nomes ba
florescer o anarqUiismo mas não o sentimento de ltber- oes nao ·h a-de provoc ' que mundo de
dade. E a anarqui·a é a servidão.
ar num espanhol!
Ao terminar o doloroso e triste Portugal Oontem- (Por Tierras Espinho~ Julho de· 1908
à8 Portugal y à8 ,~
~();neo, e depois de .pintar o estado da$ classes diri- .cJ~<>Paiía)

g~ntes, Oliveírai Marüns ·a crescenta: «E até hoje, forçaz ·Portugal


é dizer que o povo não descobriu ainda meio de se Ubertar
delaJs», concluindo: «Nem descobriu o meio, nem demons- Dei Atlántico ma
. _ r en las 'lias
trou a vontade. Dorme e ~sonha? Ser-lhe-á dado acordar de·sg;t~enada y descalza . on '
se· sienta al . , . ' una matrona
ainda a tempo?» Págtinas a:nJte.s, falando da invenção da . Pie de SI'erra .
festa do 1." de Dezembro em que e·stala; a retórica anti- ·t raste pinar A que carona
' . poya en 'las or,iUais
castelhana, escreveu: «Daí veio o ,acender-se no coração los codos
. ' y, en las manos 1' ..
do povo passivo, e em proveito da intr iga polítiCSI, um Y clava anslio.sos OJ'os d • aJS· meJillas,
ódio arcaico, absurdo, talvez re sponsável de futurO\ san- ;e n la . e leo.z:ta:
PUerta. dei sol · el
gue inocente derramado, se um dia os vaivéns do equilí- su: trágico c t ' mar entona
. ·a n ar de mara viU as
brio europeu fizerem com que a Espanha nos conqui·s te.» Dice
Leio estas linhas e as que se.guem- estas últimas creio . de lu·e ngas herras · d . ,·
ffi'Ientras eUa su . y e azares
que não devo txaduzi-las agora em crurtelha;no 1 ~ e haií ~ s pies en las espum3!s
ponho-me a pemar na sorte agok,enta desta nação tão ando, suena en el f:a.ta.J . , .
unpeno,
pouco ·n.atura;lmente formada e, ao mesmo· tempo, na que .se le hundió en 1os tenebroco.r.
crubeça mantêm-se-me pensamentos dolOirOS'OS sobre. o Y mira cómo t ""'s mares
se alza D en re a.gorerws brU!lllas '
1 São a.<~ .seguli!n1Jes: «Dad ;veio o rldicuJ.o. de uma: nação k a ca, on SebasUán• re"' ,J
dei . t .
m1s eno 1.
miaà governada, sem mattúnha, co,m um exército lind!l.scl.plinado, (Rosario de Bonet L' .
nem il!nstruído, nem a gum11'i'do, nean numeroso, oom a.s froloJtled.ras 1 Desca.Iça e dles.,..._ "' _.,_ 08 ~rwos)
atbertas-, '86 coot:a<J por d efender: d e um'a IDI.ção que não pod~~ ·vrut S'eio.taJr-.s .,~ ........ ,au..., na Pl'al.iai d
lleSistl!' à ma.ís p~uena das jnv~ões, d:a.!r ao mundo - se o mundo .um tmlste P~ llleSp e"itáV'eJ. ~a, na. o Oceano, Atlântico
olh-aooe pa:N11 nós ! - o ieSpectáculo 'lÚdiculo da foofa;rronif:ce ma.iS e cr.a.va Olh.runes . Apo;fa os bl'taço.s na P~ da set"l·a que coroa
<M.spa:ratada. «Rt'<l'6. . . ben.n... too de fo -o-rça.!:. diZ numa. COIJllédia. o seu t rágico ·c.a.n~:O.SO$ de l:eoa na po.rt;a do 0 1~ nas m ãos,
espa1l!b.o1a um port.ug'llês, inchando-se, com a5 faces rubl'8S; e os más so~ """~ d'e .mat'l!Wiahals 111 sol, o Iml'l' entoa
espwnh6119 vJin:gam-'S'e não nos ouvindo, e chruna.ndb-nos a.màvel- })ensa , enquanto ela vai ..... _.:__ala de terras dfslla,n"""-
menoo pOJ-tug uecitos.» (Not a do Trad.) no fatal império ..._...I.OI.Ildo os Pés ·~ e
:::.~ ..como entre agoh•ento gu~ se afundou llQS tene:;a espuma. e
••-.ténlo. · !S nev'~eit'o-s se ergue D S ros~s ml!l.l'OO,
· ebast!ã,o, lleil do
Ed ,i çõ •e •s AfrodH 1e - OE FORA PARA DENTRO
• ro 1 te
-DE FORA PARA
DENTRO
THOMAS MANH
(1875-1955)

No b!ic et cU:D.<l ele Thomas Mann procurar-se-ia em


Veio qualquer ~ para o tTa1t$Cend.$ate; na
..sua obra, o lugar e o Ulmpo ooncentra•m sem1.pre em.
st pr6prl.os, h48t6rica e socialmente, e em todas os
porm~, o essencial ele wmn situação concreta,
l~i8t6rica e social. Thom.<lls Man:n '1'1!4ntém oo pé8
aasentes na terrt~, me&mo em relação à soctedade
burguesa. Pl>e clara e tran.qutl<Pmente a perspecttva.
do socialismo 8em renunciar ( at~J mesmo nos mo-rlWia-
tos de traqueoo.) ao seu ponto d6 'l>f.sta burgu& oon.,._
ci~~te àe si. próprl<> - GEORG LTJKA.OB

Nfio., Thomul.s Mama, não; o nosso mtmdo ainda mio


estd. peràfdo; não poàe está-lo enqtw.-rtto wma voz
como a 8Ua se (!Jrguer para nos advert>i.r. E11quanto
OO'tt$ciéncia.8 OO'mO a sua se mantiverem à&pert43
e fléis, não àeseaperwmos. - ANDE!b GIDE

T1U1TIUUJ Mann rejeito-o lu>Je CCtW> hábil /al8ifioador,


como minucioso &breír<>, uma espécie d6 oa.valo ele
tiro, 0"14 a8nO in8piraào - BENEY MILLBE
Por se Zer Tlu>mas Ma?ln não se ~ RIJgio. - ARTUR
POETELA FILHO

ThomJ:I,s Mann ~oe em Lübeck, de pai ale-


mão e mãe 'ürasileira, é irmão de HeinricTt.
Mann, que tatmbém 'Viria a ser escritor. Passa
a adolescência, em Munique, (YfljJ;e frequenta
estudos universitários, entra como emprega®
numa sociedade oom..ercial e se dedica ao jor-
'Mli.smo. E m 1929 é designa;(k) como Prémio
Nobel da Literatura. Durante a conflagração
·mundial de 38I 45 emigra para os Estado8
Unitros, onde se entrega a relevatntes pciles-
:tras c<mtra o nacionail-socialismo. Regressa

!Edlçôes Afirodlt~ - OE FO RA PA RA OEN T RO


Thomas Ma100

182
à E·uropa e acaJba par instalar-se n.a Suíça,.
onde morre com 85 anos. Principais obras:
A Montanha Mágica, Os Buddenbrook, O
Eleito, José e seus Irmãos, A Morte em Ve-·
neza, O Doutor Faustus.

Edições Mrodite - OE F O RA PA RA OEN T RO


Thomas Mann

183 AP AATE
183
. A Lisboa que 0 autor descreve
DOMINGOS "'!'ONT~IR.0 : ~-sboa do final do século xrx, com
1
Depois de algumas rull!s estreitas, 'l.lillilJ grande e
com grande sampatla e a I ti icos ignorados pela vasta avemd'!ll desenrolou-se l):>erante nós - a Avenida
seus personagens e seus costumes é.,':,ca , A descrição do
maior parte dos leitores da nossa . "f'cas e porme- da Liberdade, uma das mais magníficas artérias que eu
- de notar as magm I
conjunto é exa~ta_ e sa_o faz ao Jartiim Botãnico e à Torre V1i em toda a mi-n:ha vida, com~ três co1·pos, tendo a~o meio
norizacl!ls referenctas que . d admiração sincera

de Be 1em, que
devem ter susc1ta o a
M Os pormenores sobre a topo-
uma larga: vi'8. para carros e cavaleiros, bordada de cada
e veemente de Thomas a~n. amente esmaecidos e lado de duas soberbas áleiDS bem calcetadas com can-
nímia e a topografia da _clda~e, s~:rt tão escrupulosos. De
deformados pelo temp~, sã na~ ·palmente 0 lisboeta não teiros floridos, e:státuas e fontes. Nesse Corso luxuoso
facto o leitor portug~n:s e pr ncl . I dizer
· sar no tumcu a1· que, no enco1lltrava..se o meu quartel-gene·ral, nru verdade um
pode deixa•· de sorr•r ao pen J - de Castilho
do autor, conduz da Rua Aug~:!~r-:e ~uaRu:a~astilho) (. .. ) palãcio. Que diferença entre a minha chegada lá e a
(Thomas Mann deve querer re t urada à espanhola entrada lastimável, outrora, na casa da Rua de Sai:nt-
A descrição, aliás excelente, de u~a d: um lapso de me·
-Honoré, em Pa!'liiS!
na Praça do Campo P:qu;nod re:~o!as Mann, ou pertence
mórin ou de uma con u~a_o e sia De facto em Por- Três ou quatro mandaretes ragaloados e cdado·s com
deliberadamente ao dommiO da ofr~;ta(ex~epto por uma con·
tugal_ nunca !~ouve touros v::e:'repetida) e a própria núltima avental verde apres·s aram-se logo jnnto da minha bar
cessao espec•al e pouc~:lvaterraw não passa, ao que parece, gagem. Descarregaram a ma:la grande e levaJTam mpida-
corrida de tollros em . . - de um escritor 1 .
também do produto da ,maglnaçao mente a mala de mão·, o sobretudo e a manta de vJagem
Thomas Mann inclui, acidentalmhente, en~~e d:s d:~~:i::::: como se não tive:ssem um minuto a ·perder, precedendo-me
ei o Carlos Sem aver na
nagens, o r · • · ue Thomas Mann, que decerto o
para o soberano, ve-se q b 0 temperamento e o no vestrbulo. Assim, sem qualquer fardo, como um .pas-
não conheceu P_essoalme•~te, :e~a:o c~~cunstãncias histórtcàs seante, só com a minha ;beng·a la de junco espanhol . de
carácter do re• portu~ue~ uma concepção puramente tma·
que rodearam o seu rema o, ponteira de marfim e castão de prata, awavessei com
ginosa. ar naA:ural o vestibulo até à recepção. Ali não tive ocasião
. - de Félix Krull.
(Nota do Tradutor a •.Con f I ssoes de corar porque não houve nenhum: Recue~ recue ime-
Cavalheiro de lndustrla• l
diatannente! Quando de:clinei o meu nome, foi um nun·ca-
-mad·s -acabar de sorrris·os de acolhimento-compreensi•vos,
de reverências alegres, seguidas do- delicado ped·ido: de,
se fosse essa a minha vont'ade e se achasse bem, preen-
1 Rebelo da Silva em Oontos e Ltmdas. - A. F . cher a ficha dos viajantes, limitando-me às i-ndicações
essenciais. Um senhor em jaquetão, que a:nsiava por sruber

1 Tradução de DO!llliiDgos M0111'beliro.

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


FORA PARA DENTRO
Edições Afrodite - DE
Thomas Mann
Thomas Mann

'184 os a'gentes da políci~) mais com o gesto do que pela


. rrido em condiçãês d~ pa:lavra, a propósito da Rua João de Oa.stüho (•) (nome
. ha vi.:oooero tinha deco ,' pn-
ae a ro1n ·" '' . ascensor ate ao que tinha lido no cartão de visita de Kuck.uck). Ele
. ~ -'"· subiu comigo no -
perfeito conJ.O.L vO, • d . . nos 3!posentos reser estendeu o· bra~ para essa rua ladeada de moradias
ara me intro UZlr d
roeiro andar, p . ~ - ·s ala de visitas, quarto e e acrescentou, no seu idiomai - tão incompreensível
vados em minha: mtençao t'do de azulejos. A vista para nrim como o que tinha O'Uvido em sonhos - qual-
arto de banho reves t 'd
dOTillir e qu .. . ' 1 . davarrn sobre a Aveni a, quer coisa a. propósito de trens, dum funicular e de
destes aposentos, cuJas Ja.D.e as . · . permitido deixá-lo «mulas» com o cuidado manifesto de me assegurar o
. do que me sena
encantou-me maJJS lhor a alegria que meio de transporte. Agradeci-lhe várioo vezes em francês
. . :u1 ~ 0 prazer, ou me •
parecer. DisSJ.m e . .m redu:2Jindo-a a. um pelas suas iinformações que, de momento, não corres-
o seu esplendor. ·susmtav·~ ~ :~te com que despedi. pondiam ai nada; de urgente e, para fechrur o nosso
. 1 gesto de aprovaçao g o
simpes diálogo breve, ma-s recreaJti'Vo e rico em gestos, ele
o meu companheiro. .... ... ...
... ... .. . .. . ... ... saudou, levando a mão ao seu cas·co colonial. Como
... ·............... ·~· ·~~; ..uma rua muito frequentada é encantador receber uma marca de respeito dum repre-
Subi a. Rua Augus a, ' que 0 ;port.eiro do sentante da ordem, modesto, é verdade, mas portador
nnr peões e veículos, até uma prruçumaa d1l:S mais im,por- dum vi·s~so uniforme! ...
y- • mendado como
hotel me tmha reco d D Pedro IV (*) que, na
tantes da cidade, a Praça e R.ossio» (*). Paraenten-
t nome de «O • Kuckuck tinha bastante razão em dizer que a viva
boca do povo, orna o . ~ crescentarei que Lisboa
dimento da minha descr~çao a r :vezes bastante altas, -curiosidade de conhecer uma human!ida.de de que se não
está encaixada> entre colmas, po: ·ba-irros de habi- fez ainda a experiência constitui o principal-incitamento
casas brancas dos . de todo o desejo de viajar. Eu senti um pr82Jer cordial
por ond'e sobem as , . 't . e à e~querda das ruas
tação maJis elev~dos, a ~1 ~ ibendo que a haJbitação em olhar à m'inha volta para a população dessa. rua bas-
recbilíneas da cidade nova . ~tuada numa dessas re- tante frequentada, esses .indivíduos de cabelos negros,
ckuck estava SI de olhos vi'Vos e móveis, com as mãos que, através dos
do professor K u . :.;.ft vezes os olhos nessa
. ergur IDU'JJ~.G>S d seus gestos meridiona.i·s, reproduziam os seus discursos,
g iões superloces,fim mformet-me
. . ·unto dum agente a
J d
direcção e, por ' a.zer particular em a.bor ar
-e fiz um ponto de honra em entrar em contacto pessoal
poHcia (tive sempre um pr com ela. Embora conhecesse o nome da praça para a
qual me dirigia, informei-me algumas vezes junto _dos
transeuntes ou dos h3Jbit!llntes - criança;s, mulheres,

iEdições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


PARA DENTRO
rodite- DE FORA
Ediçõ,es Af
Thomas Mann
Thomas Mann

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187
burguese:s e marmhe~ro~
. . . - com o único fim de observar
d cutar a sua linguagem dravam lojas, cafés e restalll"antes. Tendo abundante-
1m1ca e e es ·
o seu rosto, a suam - 'ta vezes duma rou-· mente sa.tisfei't o o meu gosto de tomru" contacto com
,. · b da sua voz mm s
toda a espécie de filhos des~a terra estranha:, fingindo
estranha e o 'l,Im re ' diam me quase
. - ouco exótica. Eles res.pon , -
qmdao uml .dP te e a.bun·d ant emente e separávamo- ·u m grande ardor de me inst.rwr, inst.alei-me na mesinha
sempre po t amen . ~ ·ola cuJ'a importância dum terraço de café para repousar e tomar o meu chá.
b paz Delte!l uma esm '
-nos em oa . .1 d cego sentado sobre .... .... ...... . ......... ..... ....... · -· ................. .
devia causar espanto, na game a um que tinha junto
0 . stado a uma casa, e «Como vêem, a d'UI'ação da minha estadia em LiSiboa.
passeio e enco d à caridade pública.
prolongar-se-á um pouco mais, mas por minha vontade.
dele ·um cartaz que o recornen ava , um homem
M tr...n-me am · d a mMs ,. generoso para com , · Mas tanto pior! O meu alojamento em Lisboa é, posso
os ·v• rta idade que me mterpe •
1ou com um murmurw~ dizê-lo sem exagero, tolerável e não me faltarão distrac-
dll1l1ai
. ce, rto um ca.·s acao - ornado · com uma medalha,.
~ .:~
ções instrutivas até ao momento de embarcar. P<>sso
Tmha,. e ace sapatos ' esburaci11Uos não tinha colarinho.
e , . estar certo <la vossa aprovação?
mas usav . . 'do e deitou algumas lagl'lmas, «Sem ela, bem entendido, acabar-se-ia a. minha paz
Mostrou-se mmto comovl . . t mim com
ue se mclmava peran e . . interior. Mas apro.va.r-me-ão, tanto ma,i,s fàcilm.ente,
ao mesmo · tempo q
e nrov.a vam que, par 1 t'do dum escalão social, creio, quando souberem o aspecto feliz, direi mesmo
mane'lras qu 'r . tmha
ba,s tante e1ev.ado' .
cai, do na indigência, sabe-se 1a. exultante, que tomou a minha audiência com o rei.
0
A de nue fraqueza;s, O sen:hor de Hüon informou-me que Sua Majestade se
em COll]sequenma . ":1. . duas fontes· de bronze,
tinha, dignado conceder-ma. Na hora marcada, mas a.ntes
Atingi o Rossio(*) com as suas . 'mento de mo-
1 . comemorativa e o seu pavi· , . da hora matinal p11evista, o nosso embaixador condu-
a sua co una tranhrus linhas de vagas. AI, tive ziu-me no seu carrO' do .meu hotel ao castelo reat Gragas
saicos que formam es . f J"unto dos passeantes
t. ara me :rn orrnar, ao seu carácter o.ficial e ao traje de corte que ele tinha
ainda mo IVO p . dos das fontes e que se vestido, passámos sem dificu1dade· perante a guarda:
e dos. ociosos, :senta<io~r:~-1~~: sobre o.s edifícios pito- exterior e interior, que nos prestou honrws. Subimos a
a;quemam ao sol. Perg d , muito alto·
rescamente e:rgm'dos contra o azul o ceu, ' . sobre as escadaria enquadTada por um par de !b elas cariáltides
. . das casas que ladeavam a praça, ou tr - em atitudes forçacta.s até à enfiada de :sala·s de recepção
po~r Cima . . ·, a duma cons uçao· . que pr~cedem. a sala das audiências reai:s. São orna-
ruínas gótica;s duma IgreJa, por _m,rn_ u câmara mu.n.i-
. ·ber ser o muntclplO o mentadas com bustos <fus antigos reis, quadros e
nova, que VIm a sa: had d um teatro fechava um lustres de cristal, e na maior Palite revestidas de seda
• ~1 Em baixo, a fac a e .
Clp<U.
lado da praça, enquan to do.s
· dois outros la;dos se enqua- vennelha e ca.m móveis dum estiln histórico. Passa-se
lentamente duma salw para a outra e, ao chegarmos à

Ed ·i çõee Afrod ·l te - DE FORA PARA DENTRO·


Edições Af-rodit-e- DE FORA PARA
DENTRO
Thomas Mann
Thomas Mann

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segunda, 0 mestre-de-ceri.món'ia~ de serviço nesse dia con-
. vr1amen
vJ.dou--nos a; sentar prov1s ~ · t e. A- parte o esplendor
, . . o pe:ito com uma única oondeoor.ação tendo no meio uma
do lugar, é 0 que se pa.ssa no consultório do. médico, e~ águia com o ceptro e o globo pTeso nas garras, rece-
voga, cada ve·z com menos tempo para cumpr1r o horano beu-nos de pé, diante da 'SUa secretárria. As numerosas
das suas consultas, e onde os atrasos se acumulam de conversas ante:riores tinham-lhe colorido o rosto. o rei
maneira que o paciente tem de esp€rar muito par8! ~1~ tem as so,b rancelhas negros,. cor de carvão e um bigode
da hora maread:a. As salas estavam repletas de digni- 1llD. poueo espesso em forma de saca-rolhas, ligeira-
tários talllto autóctones como estrangeiros, em uniforme mente embranqued do'. Acolheu a minha profunda vénia
ou em' traje de gala: civil, que forntavam grup.os de pe, , e a do embat~ador com um gesto. condescendente da
falavam a meia voz, ou se afundavam nos ·sofás. Muitos mão, por ele mil vezes praticado, e saudou em seguida
penachos, colar.in:h:os agaloado< s e condecora:çõe~. Em oAsenhor de Hiion com um p i,s car de olhos em que soube
por uma ligeira faa:niliarddade.
cada novo salão em que penetrávamos, o emba-ixador
trocava saudações cordiais com este ou aquele diplomata . « - Meu caro embaixador, que gra.nde prazer para
do seu conhecimento e apresentava--me. Assim, graças num, como sempre ... Também na cidade ? ... Eu sei, eu
a este exercício, sempre renovado, que me dava; pr33Jer, sei ... Esse novo tra;tado de comércio ... Ma:s tudo se
a nossa. espeira - ce'I'Itamente uns quarenta minutos - resolverá sem nenhuma· d ificuldade, graça.s à vossa bem
pareceu-me breve. . . . conhecida~ habiHdade. E a saúde da amável senhora de
«Um ajudante-de-campo com uma fruxa e uma liJSta Hüon? Excelente? Alegro-me com isso! Alegro-me sin-
de nomes na mão convidou...nos por fim a colocar-nos ceramente.. . E então, que Adóni.s é que o selllhor me
traz hoje?
junto da porta que conduzia. ao gabinete de traJb~ho
real e era flrunqueada por doi:s criados de CaJbeletras «É preciso, meus queddos pais, compreender esta
.., empoadas. Aca;bS~va de sair um velho em unifor:me de pergunta como uma fórmula de cortesia simplesmente
general da guarda e que viera, sem dúvd'd;a, apresen~ agradável, que não corresponde em nada à realidade.
os seus cumpriment os por v.i.a de qualquer f&vor ..o aJU- É ceTto que a casaca me favorece, como acontece com
dante-de-campo entrou para nos anunciar. Depo11s, ~m­ o papá. O:mtudo ~e ·s abem-no tão bem como eu- as
puuados pelos lacaios, os baJtentes dw porta com lfr.J.SOS minhas maçãs do rosto e os meus olhos fendidos, que
dourados a,briram--se. eu nunca. vejo no espelho sem de,speito, não têm nada.
«Embora o rei conte pauco mais de trinta. anos, tem de mLtoiógico. Acolhi 'a !brincadeira real com um gesto
já 0 cabelo raro e uma H.geitra barriga. Vestido com um de resignação jovia!l. MB!s como para: apagar e a fazer
uniforme verde-azeito·n a, de bandas vermelhas, e com esquec_er Sua Majestade, com muita afa,bilidade, pôs a
sua mao na minha e ac~centou:

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


E d I ç õ e ·s A f r o d i te - D E F O RA p A R A D E N r R O•
Thomas Mann
Thomas Mann

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vista! Graças a; rela·ções pessoais, visitei· em primeiro
«-Meu querido marquês: seja ·bem-vindo a Lisboa! lugar, o Museu: de Hi-stória Natuml do professor Kuckuck
Inútil será dizer-lhe que o seu nome é •m uito meu conhe- que e um ma:gnifico insti•t uto. Para mim, 0 seu lad~
cido e que é para mim uma grande alegria ver em minha -oceaa1ográfico· não é a sua menor atracçã.o po:rque alguns
casa um jovem descendente da a;lta nobreza dum pais dos ~spectáculos que nos ap.resenta mo·s tram-nos da
com 0 qual Portugal tem .relações tão cordialmente ami- n:aneiTa ~aJs instrutiva, a origem d~ toda a vida 'nas-
gáveis - relações em grande parte devidas ao senhor mda da agua dos mares. E as marav.ilhas do Jardim
seu companheiro. Diga--me - e reflectiu um instante Botânico, Senhor, do Parque da Avenida (*), do OaJmpo
sobre 0 que eu lhe devia: di2er - o que é que o traz Grande (*), do PaJSseio da Estrela (*) , com a sua incom-
a:o nosso pais? parálvel ~erspectiva sobre a cidade e sobre o rio! ... Quem
«Não quero, meus queridos pais, ga;bar.-me da habili- se podera espa:ntar se perante essas· imagens ideais duma
dade lisonjeira, cortesã, no, melhor sentido da palavra natureza a;bençoada pelo céu e magistralmente tratada
e ao mesmo tempo cheia. de devoção e de à-vontade com pela mão do homem, o nosso olha:r se molha, se for _
que respondi ao monarca. Fa.rErl, notax simplesmente, para pel~ menos um pouco, meu Deus! - um 'o lhar de
vossa tranquilidade e satisfação, que não me mostrei n~ ar~I·~ta:. Confesso, com ·efeito, que embora com menos
tímido nem com a palavra ·embaraçada. Informei Sua fehc1dade do que Vossa Majestade, cujo ta!lento nesse
Majestade do oferecimento da viagOOL educatiwe. de um domínio é ibero conhecido, sacrifiquei um pouco do meu
ano à volta do mundo que a vossl!l generosidade me tinha tempo em Pai'is à ·art~ plástica, isto é, desenhei e pintei
concedido. Para "eSsa viagem deixrura Paris, onde tinha; com~ aluno zeloso (embora não passe dum modesto bos-
residência, e .a minha primeira paragem fora nesta ci- queJa:dor) do professor Estompa!rd, dru Academia da;s
dade incomparável.. Belas:Artes. Mas isso nem sequ·e r merece que se faça
<(- Ah! Lisboa agrada·-lhe? me~çao. O que deve ser di·t o· é d.sto: na pessoa de Vossa
«-Enormemente, si1·e. Fiquei encantado· com a be- MaJestade eu rendo homenagem ao soberano de um
leza da vossa capital, que é verdadeir.rumente dignaJ de dos mais belo:s paises da .terra;- provàveimente o mais
ser a residência dum grande soberano como Vossa Ma- belo. Onde encontrar, a:li·ás, por este mundo um pano-
jestaide. Contava ficv aqui alguns d:iia~ sõment~, .m~ rama comparável aro que se oferece' aos nossos o~hos do
compreendi a. loucura das minb.a;s ;i.ntençoes e modifique~ a1to dos castelos reais de Sintra; :sobre a Estremadura
todo o meu programa para poder consagrar, :pelo· menos, tão r>ica. em cereais, em vinhos e em frutos do sul? '
.algumas semarnas a uma estadia. que eu gostaria, aliás, . «Sej~ di~· ~e. passagem, meUJS queridos pais, que eu
de nunca m:ais interromper. Que cidade, Senhor! Que a.mda; nao v1stte1 o castelo de Sintra nem a torre de
avenidas, que pa;rques, que passeios, que pontos Q.e
Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
.E di ç õ ·e s A f r o d 1te - D E F O R A P A R A D E N T R O
Tlromas Manll Thomas Mann

193
Belém, de graciosa. arquitectura, à qual depois nz alusão. tade real. - a crescen~.el
"" · -
- por reinar ·solbre um povo
Até agora, furi impedido di&so porque consagro uma ta o fascmam.te!
boa parte do meu tempo ao ténis, num clube de jo:vens
«- Sim, sim, m uito bonito, muito lisonõeiiro - disse
de•boa educação, onde os iKuckuck me introdu:zkam. Não D. Carlos. Agrade~>n-lh""
a<mi ~- ..., me•.,
"" 0 aro marques, pelo ol'hM'
A

importaJ! Lancei com entusia:smo· nos ouvidos reais as · g<Y que lançou sobre o s olo e sobre a gente de
impressões que ainda não tin:ha sentido e Sua Majestade Portugal.
dignou-se fa.:rer-me notar que salbia apreci.air a :rrrinha
receptividade.
...... ... ... .. . ... ....... .... . ... ... ... ...
cisto encorajou-me a falar com toda a; eloquência de Tínhamos, sob a conduta de D. Miguei visitado o
que sou capaz do que devia à minha e:xtr>aordinária ve1ho ca·s telo da: vHa e depois as alturas r~chosas dos
siltuação. Gabei ao monarca o pais e a gente de Portugal. castelos donde a; vi,s ta se estende ao longe até à cé1ehre
Disse·-lhe que não rse vh~1tava; um país somente por ele t~ne- de Belém - Bethlem - edifica;da por um rci tão
próprio, ma.s também- e .t alvez de preferência- por piedoso como ·f'austoso, D. Ma:nuel, 0 Venturoso, em honra
causa da gente, por curiosidade •e, se ousava assim ex- e em :ve·c ordação das frutuosas via;gens de descobertas
primir-me, para conhecer uma humanidade de que não portugue.srus. Para fralar francamente, os sábios di1scursos
tinha feito ainda ex;per:iência e .pelo desejo de· olhar para de D. M1:guel sobre o estilo arquitecturai do castelo e
olhos estrangeiros e para fisionomias estrangekas. Eu ~a ~orre e toda essa misturada de1 mom-i,sco, gótico eJ
tinha a c·onsciênc:ia: - acrescentei - de me exp:r imir de· 'Italiano (além das ·s uas .informações complementa;res
maneira mesquinha, mas o que eu tentava definir era sobre as extra'VIagâncias hindus) entravam-me por U!Ina
o desejo de gozar de uma humanidade carnal e de cos- ovelha e saíam-me' pela outra. Tinha outra co:i'sa na
tumes desconhecidos. POII'Ituga!l - muito bem! Mas, no ca:beç~. ~erguntava a mim mesmo como poderia tornar
:fundo, toda ·a; minha aJtenção ia: para os portugue·ses, a noçao do amor compreensível a U!Ina; pessoa tão «Crua»
para os súbditos de Sua Majestade. O elemento ce~ta e como Zuzu. Para quem se preocupai com os ·s eres hu-
libero primitivos, através de toda a espécie de contri:bui- manos, a m~i·s cur.iosa arquitectura:, tal como as pai·s a-
ções históricas, sangue fenício, cartaginês., romano e gens natill'al,s, ~orma mn:a; •simples decoraç·ão, um pano
ára;be - que humanidade encantadora e cativanrt:e resul- de fundo, destmado precisamente ao 'humll!no. Acres-
tava desta mestiçagem, ora dum encam:to altivo, ora cento, contudo, que em Belém senti verdadeiramente 0
eno:brecido1 por um orgulho racial intimidante e que de- encant~, a inverosímil graça mágica da gaieria da torre,
terminava o respeito. Tenho que felicitar Vossa Majes- ~ncebida fora' de todas a:s épocas, sem verdadeira Uga-
çao com nenhuma ~ um sonho de cr.iançru com 08 seus

EdlçõesAfrodlt€- DE FORA PARA DENTRO•


E'C1'ições Afrod ·i t € - DE FORA PARA DEN •T RO
13
)
Thomas Mann
Thomas M~nn

195
194 o touro os des,v entrava de tal forma que as entranhas
sinozinhos Aguçados e as suas finas colunatas no arco
dos nich01s, o ·seu esplendor de conto de fadars, a sua
s: a:r.ras.tavam pelo ch~. .Esta: visão ser-me-ia desagra-
da~el, -sem .falar da mm'ha piedade pelo touro. Podiatm
pedra: esbranquiçada, docemente esctWecida:, di:r-se-ia. por obJec1:ar-me que wn espectáculo a que se acomodavam
mão de anjos. Parecia verdadeiramente que se tmha os· nervos das senhorraiS devia ser-me agradável ou pelo
conseguido cinze~ar a pedra com a :mais· delg~ serra menos,. suportável. Mas a:s damas i béricas tiiilham de,sde
1

de contornear para produzir essaos jóias decorrutlvas de o nascimento, o 'h~bito desses coSitumes rudes, en~uanto
renda a;bertao. Essa feitiç.ari3; de ·p edra, repito, encan- no meu caso .par.twular tra.tava-se dum estrangeil'o Ullll
tou-me positivamente, exa;ltou-me de maneka fantástica pouco emotivo - e outros a.rgumentos da mesma força.
e não delixou certamente de contribuir para a eloquência ~uckuck tra.nquilizou-me. Respondeu-me que não
da.s palavras que dirigi ·a Zuzu. devta formar uma: imagem demasiado repugna.n.t e da
.. .. .... . .. ....... festa. :?mha co:nida era, evidentemente, um assunto sério,
... ... .. . ... ... ... ............. .. m8i~ nao · orr1veL Os portugueses gostavam de :animais
Depoi·s anunciou-me que, nes·s e mesmo. dia..' sá:ba.d~, e nao supo11tavam que se pa·s sasse nada de odioso. Quanto
era· aniversário do .prínctpe Luís Pedro, J.rmao do ret. aos cavaJl~s, há muito tempo já que aventa:i,s protectores
0
Por esse motivo, devia ter lugar no dia segui,n te, do- O'S ga.ranbam contra o.s riscos mais graves. o touro, esse
mingo, à;s três horas, na grande pra:ça do Campo Pe- ~orraa duma morte mais nobre que no matadouro. Além
queno uma corridJx. ire toiros ( • ) , um combaote de tO'Ul'OS dl·Sst>, tinha a liberdade de desviar os olhos à minha
ao qual 0 nobre principe estarita presente. Kuckuck pro- von~ e de fixar a minha atenção de preferência soibre
punha-se assistir a. esse espectáculo nacional ~m as o publLco, a sua entrada, o pitoresco espectáculo da
senhocas da sua. família e o senhor Hurtado. Dispunha arena, dum grande inte'l'es·s e étnico.
de entradaiS, de lugaores na ·sombra e dum bilhete para Compreendi que não devia desapro"ei.ta:r a ocasião
mim também. Pensava; que i·s so caía à maravilha!. Assim nem .a s~ ama:bi.Hdade e Blgl'adeci•lhe. Combinámos que
eu, que fazia: uma viagem educati~a, teria :a sorte de no d1a fixado os esperaria a ele oe aos seus ao pé do funi-
ver uma corrida pouco antes da m1onha .parl1dao de Por- c~ar, ·p ara drmo~ juntos para a praça. Kuckuck preve-
tugal. Qu>e pensava a: esse respeLto? . mu~me que o tra;Jecto seria: longo por causa da aglome-.
Eu pensaJV.a que isso me assustava um pouco e dis- raçao· nas ru:aJS. As ·s uas previsões confirma:ram-~Se
se-lhe. O s 81ngue inspirava-me, declarei, um: certo horror, quando, no domingo, ao calhar, deixei o hotel com duas
e tal como me conhecia, não era; preci.s amente homem h?ra1s e~ quarto de -aNanço·. Na verdad-e, nunca tin:ha
para carnificinas ao gosto popular. A respei~ dos ca- VIsto a. Cidade assim, embora já tivesse pa;ssado vM-ioo
va1os, por >exemplo, tinha ouv.ido dizer que muitaS vezes
Edições Afrod·ite - DE FORA PARA -DENTRO
Ediçõ ·esAhodit •e - DE FORA PARA DENTRO
Thomas Mann

198 199
aUo e a mantilha ('~). Alguns vestidos eram ornamen- com a canüsa atravessada por uma pequena gravata
tados com rus incrustações camponesas de fios de omo e negra e a capa vermelha no braço. Depoi:s,desenrolou-se
prata e o formail,ismo do vestuário dos carv:alheiros parecia urm'a cavalgada de pioailnres ("'), armados de lanças,
uma atenção cortês em velação ao povo ou, pelo menos, cobertos corm chavéus presos deba'ixo do queixo. Mon-
dirigi~-se ao carácter nacional da festa. O imenso cír- tavam cavaJos com gua:ldr31Pas cheias como. eolchões que
culo estava numa expectativa alegre, expressa em sur- lhes pendiam sobre o peito .e so.b re os flanco.s. Uma pare-
dina. Do lado do sol também, e lá preci,SB!ment-e, ela lha de mulas enfeita<ia:s com f·l ores e fitas fechava: 0
diferenciava-se pelo mau .espírito da: plebe que, em geral, cor~j.o•. qu~ atravessou o círculo amarelo da areua para
frequenta as tribunas dos desportos profanos. Excita- se d1~1gn- d1rectamente para o camarote principesco, onde
ção e tensão sentia-as eu próprio. Mas o qUJe li:a tSObre os se dispersou, depois de cada um ·s e ter inclmdo cava-
milhares de rostos curvados para a liça ainda vazia, lhen:e~c~ente·. Alguns toureiros benzeram-se enquanto
cujo tom acre ia em breve encher-se de poças de sangue, se dirJgJam para as barreiras ..protectoras. Br.uscamente
era ·contido e dominado po'I' uma certa solenidade. À che- no meio duma ár.ia, a p.equena. orquestra calou-~Se d~
gada do príncipe, a música interrompeu_,se e passou duma novo. Um ·sina:! de trombeta muito agudo, rompeu. Fez-se
ária de concerto; de inspiração hispano~mouri.sca para um grande silêncio. E, de ·s úbito, duma: pequena porta;
o hino nacional. Era; um homem magro, com uma conde- em qu-e ainda não tinha reparado, e que se abriu de
coração sobre o seu fato e um crisântemo na botoeira. repente, sai a correr (uso do indicativo presente porque
:IDntrou no camarote, acomp!l!nhado da esposa, ela tam- o acontecimento me está . muito presente na memória.)
bém adornada com a mantiloo ( *) . Os espectadores le- qualquer coiS"a de elementar, o t<>UI'o negro pesado
vantaram-se e ll!plaudiram. Esta·s a:clamações deviam re- po.dero'SO, .um irresiatív.el conglomerado de f~ça pro~
produziT-se mais tarde, em honra dum outro. A entrada c~dore e a8Sa1Ssina, .em que os povos primitivos e antigos
de suas altezas teve lugar às três horas~ menos um minuto•. terJ.a.m certamente v1sto ·um aniÍmal-deus, o deus-animal,
Ãs três horrus precisas, no meio dos acordes ininterruptos com os se:us pequenos olhos a:mea!}adores, os seus cornos
da música, a procissão dos toureiros avançO'll pela grande recu:rvos em coTnucópia,s da a!bundância, mas que sa-
entrada central. À frente marchavam três parta-esp!lidas Uentes sobre a ·s ua grande fronte, trazem manifesta~ente
-com galões na sua 1c urta jaqueta bordada, calções de a morte:na ponta recurvada: para o alto. Ele lança-se para
cor colados e igualmente ·b ordados que desciam até meia a frente, pára, especado sobre as patas dianteiras, olha
perna, meias branca·s e srupatos de fivela. Atrás vinham com fUTor prura: a capa vermelha que um caJpea:dar ("'),
os bandaJrülwiros ( *) portadores de farpas, com fit!lJS curvado para executar um passe, estende :diante dele
multicores e os capeadares (*) vestidos no mesmo estilo, sobre a areia, a alguma distância. O touro espeta os

Edições Afr .odite DE FORA PARA DENTRO


Ed i ç Õ'e s A f r o dite - D E F O R A P A R A O E N T R O
Thomas M11nn Thomas Mann

200 201
cornos e fixa! a capa no solo. Mas no momento em que queno visrto de costa-s, vítÍima do sacrifício, cheio de
com a crubeça de lado se dispõe a utilizar o outro para plumas e sujo de sa:ngue.
aJtaca:r, o homenzinho tira-lhe rà:pidamente a; capa e salta Chamo-lhe vitijma po!rque seria necessário um espírito
par~ trás delle. A ma.ssa poderosa gúm pesadamente· sobre muito obtuso para não ser ·sensiv~l ao ambiente angus-
·s i me•s ma e, de repente, dois bam®rilheiros (*) espetam- tiante e soleDJemente dwertido, .w essa ntistura mcom-
-lhe na carne do pescoço um par de ifarpas colo;ridas. Elas parável de palhaçada, de sang.ue e de entusia:smo, ·a esse
desenfreamento de naciona.tismo prjmitivo, a esse aflo-
lá estão. São·, sem dúvida, munida:s de• ganchos porque
ramento duma festa sagradaJ da; morte. Mads tarde, no
se aguentarão. Docante toda a sorte vão oSICilar, mas
carro., quando lhe foi ;possivel fa;lar, o professor de:tWne
ficarão presa;s obliquamente na carne. Um terceiro barn-
a sua opinião aJ esse respeito; mas a sua competência
dotrilheiro (*) me:11gulha-lhe um ferro curto me•smo no
não ensinou nada de novo à m!ínha: muito .sUibtU e emo-
meio da nuca, e doraJVante o animal, durante a; .s ua luta
tiva divinação•. A choca;r.rice, misturada ao furoc, desen-
terrível contra •a morte, conservará no arco do pescoço cadeou-se qua.ndo, após a:lguns minutos, o touro, entre·-
este ornamento semelhante .à:s asas a;bertas duma pomba. vendo sem dú:vida num Juar de !razão que a aventU:ra:
Sentado entre Kuckuok e D. Mari1a Pia, ouvia o pro- terminaria mal para ele, e que a força e o e,s pírito não
fessor comenta.r -a meia voz, em minha :intenção, as fases estavam em igualdade, ·se dirigiu para a :porta por onde
do espectáculo. Soube por el•e os nomes das diferentes tinha; saído, e com a carne e com os músculos enfei-
sortes (*) e .ouvi-lhe di·z er que o touro tinha até esse dia tados com ·banrd:ar iJha;s quis !regressar t rol:amdQI para a
levado. uma; vida de .senhor nu)lla; pastagem Hvre, apa- seu to1ll'H. Uma tempestade de risos :irónicos e 'indignados
paricado e tratado com infinitos cuidados e cortesia. rebentou. Sobretudo do lado do s ol, ma'S também entre
A minha vizinha da direita~ a Majestosa- guardava nós, toda a gente se leva,ntou dum Sll)lto, e aJssobiando
~ilêncio. Ela não tirava os olhos do deus pr.oc:ró.adoii' e e cha.coteandlo, o c:ró.!Vou de insultos e de injúrias. A minha.
assassino, lá em b.aJ~o, e das peripécias da luta, senão majestosa companheira ergueu-se• igualmente e, fazendo
para voltar a ca;beça para seu .esposo, com um ar de ouvir um assobio estridente e imprevisto., esboçou um
censura; quando ele fala·va. O seu rosto severo, duma esgar na' direcção do touro :poltrão e solt ou ,un:n «ho, ho»
pa'lidez meridi:onaJl, à somb~a da mantilha ( *) , cons·e rva- t rocista! e sonoro. Os picadores b8JI1:&ram a entrada: ao
va-se impassível, ma;s o seu peito erguia-se e baix:ava-se touro e bateram-lhe com as suas lanças embotadas.
com um ritmo acelerado. Ê certo que esse rosto e esse Depo[s, encheram-lhe o pescoço, o do!llso e os flancos
seio palpitante duma emoção mal contida, ·eram muito com novaJs 1bandar.illia.s muilticores mun!idas de petardos,
mais para o touro crivado de fatrpas, ridiculamente pe- que rebentavam com fragor e lhe tosqruia.vam os pêlos.

Ediçõe•s Afrodit ·e - DE FORA PARA DENTRO Ediçõ ·es Af ·r odite - DE FORA PARA DENTRO
Th omas Mann

202 203
Perante estas provocações, o pequeno luar de razão que A gravidade s ilenciosa .dos seus pequenos olhos negros
tinha: indignado ·a multidão depressa se transformou era acompanhada dum esboço de sorriso dos lá!bios, tadvez
numa raiva cega, decuplicando as suas forças parn. o por causa: das aclamações, ta;lvez ~também simplesmente
jogo moirltal. De novo ele se voltou de frente', para não porque desprezava a morte• e era consciente da sua efi-
mai,s desi)alecer. Um cavalo e o ·s eu cavaleiro rolaram ciência. A jatqueta ·b or<lada com .g uunições e com as
na axenai. Um capeador ( * ) que escorregou foi: desastro- mang.a:s justas sobre os punhos, assentava-lhe tão per-
samente apanhado pelos cornos poderosos e, .p rojectado feitamente como me a:ssentavru outrora o fS~to (completa-
no ar, caiu pesadalmernte. Enquanto desviavam do corpo mente :igual) com1 que me fatntasil8iva o meu padrinho
~móvel a atenção selvagem, truproveitando a sua repug- Schimmelpre·ester. Rep~i nas suas mãos, de falalllges
nância. idiossincrá:si<m pelo vermelho, o homem que ágeis 7 nobres; com uma brandia·, como um.a bengala,
jazia por teiTa foi, erguido e 'levado sob uma salva de enquadl.to marchava, ·Urna lâmina. d!l:.llmSquina.da, nua e
apiausos que não sei ao certo se se dirigiam parai o luzidia ; coan 81 ourtra a:pertaJVa. contra ele uma pequena
infortun~o toureiro, se para o toiro (*) . Sem dúvida, crupa vermelha. Chegado ao. .mreio: <la pista, espezi.nhada:
ruos dods. Maria da Cruz associou-se a el:a, quer dando e maculada de ·s angue, dehrou cruir a espada; e agitou um
palmas, quer benzendo-se rprecipitada.IMnte e m~u­ pouco ·a ca.pa ·p ara· o touro que, a. alguma distância, sa-
:rou, em português, não sei, o quê, talvez uma orruçao· em cudia as fe;r,pas. Depois, fixou~se imóvel, com um somso
mtençãbl do ferido. O professor calculou que ele se sal- quase imperceptiv.el nos Ol hos graves, oferecendo-se
varia com ~algumas costelas partidas e um pouco de s õzi•n ho como. aJvo à fúria: do már,t ir terrivel, tal como
'- comoção cerebraL «Üra aí t emos Ribeir:o ---1 disse ele, um-a: árvore isolada se orerece ao· raiO'. Ficou assim
depois. - Um rapaz de valor. » Do grupo dos comba- enraizado no solo , demasiado tempo, como t odos demos
tenJtes, um dos espadas ( * ) destJacou-·se, saudado por conta. Era preciso conhecê-lo. h em pava não t er a hor-
«ahs» e gritos que atestavam a sua poputaridade. E como r<>l'Osa certeza de que ele ser·ia, num ·&bl'k e fechM> de
os outros se conservavam na r etaguatrda, ocupou. sõzi'- olh'Os, derrubado, trespassado, massacrado e pisado aos
nho a pista em frente ao touro sangrento e furibundo. pés. Em vez di-sto, qua!lquer coi•s a se produziu de extre-
Já no cortejo o tinha notado porque o meu olhar des- mament~ gracioso, de docemente combinado e preprurado
cobre sempre entre o que é comum a beleza e a ele- para forma.r um quadro magnífico. Já os co:rn01s assas-
gância. Esse RL'beliro poclila ter dezoito: ou de.z.a.nO:ve anos s inos o tinham atingido, já lhe tinham arrancado um
e era bonito .comO' uma; flotr. Por bruixo dos seus crubelos pedaço dos ·b ordaldos da sua jaqueta, qurundo, com um
negros, lisos e sem risca, que caíaan sobre as sobran- ~igeiro movimento da mão e da capa, e:le os desviúu para
celhas, mostrava um rosto espanhol de traços &os. o lado, onde já se não enron-trava, po!rq1u~e, com um

Ed l ç õ ·es Atr .o d i t e - DE FORA PARA DENTRO Ediçõ es Afrodit e - DE FORA PARA DENTRO
Thomas Mann
Thomas Mann

204 205
súbito movimento de ancas, se colocou junto do flanco
por cima do animaL Recebia o seu tr,ibuto de ac:lamações
do monstro. Agora, a formru humana a1ongava' o braço
sem nunca agradecer porque, com toda a .e'Vidência, ele
sobre o dorso negro 'em direcção a:o ponto em qúe os
asso'Ci:ava a e~as 'igua·Lmente o touro :e, para este' último,
cornos furiosos se encarniçavam sobre a capa flutuamte.
homenagens e agradedmentos não .tinham nenhum sen-
O homem e o animal fundiram-se numa massa: que de-
tido. Eu receei quase· que o touro sentisse a ineonve-
sencadeou o entusiaSimo. A multidão, jubilosa., ergueu-se
dum salrto, gr<itando: «Ribeiro» e «toiro», e deu palmaJs. niência que~ h av·i a em .pr.egár essas partidas a um animal
de sacr.ifício, tratado com todos os cuidados na: sua
Eu fiz o mesmo, bem como a rainha ibérica. de 'Seio olfe'-
pasta;gem, mas era nÍ'S>SIO ,p recisamente que: cO'.tl'Sistia a
gante, ·sentada junto de mim. Os meus olhos iam a:lter-
chocarrice que, ,conformemente ao carácter ético, se
nativ:amenoo de'la para' o grupo e:spectacular, depressa
aliava ao gosto fervoroso do .sangue.
separrudo do1 homem e: do animal. Oada, v;ez mais a perso-
nalidade severa e elementar desta· mulher se1 confundia Para terminar, Ribeiro cor11eu para a lâmina, pousada
par.a mim com o espectá!culo 'Sangrento da aren!a. Num em terra. Lá, na: 'sua po:sturru hrubitual, com um joe,lho
dobrado, abriu a. capa; di8Jllte dele, olhou co1m olhar grav:e
duo com o touro, Ribejro deu-nos. ainda ll!lguns exem-
plos da sua bravma e todos nos apercebíamOJs que pre-
1
para o touro, que c-arregava, ga'lopando com :rnn pa.sso
tendia tomar, no meio do perigo, pos,ições graciosas de pesado. Dei~ou-o .aproximar mu:irto per:to e, no instante
preciso, levantou a espada: e mergulhou até às gu'airdas
dançarino para maHzar imagens plásticrus de força
unida à elegância. Numa das vezes, eomo o touro, sem o aç~ delgado e 1u0idio na nuca do animal. O .touro c'aiu,
dúvida ·enfmquecido e desencorajado pela sua cólera: rolando a sua grande massa; por um instante esca:vo:u
impotente, ocultava o seu desejo de vingança numa me- com os cornos o ~solo como se fosse o estofo vermelho,
ditação obtusa, vimos o toureiro virar-lhe as costas, depois deitou-se sobre o flanco e os .Seus o~hos torna-
ram-se vítreos.
ajoelhar-·se na arena, depo'is erguer-se muito deLgado e,
com os :braços Lervantados e a cabeça: haJixa, desenrolar Era verdadei!I1amente a maneira: mais elegante: de mas-
a capa atrás dele. O gesto em 'si pareceu bastante auda- sacrar. Vejo ainda Ribeiro com a capa debaixo do braço,
cioso, ma•s., sem dúvida., o homem estava certo da apatia
1
ligeiramente erguido sobre 1a ponta do's pés, a1f~-se,
momenJtânea do monstro infernal. Uma. outra vez, cor- ao mesmo tempo que se vo1truVIa para o animrul a;batido,
rendo para o tomo, deixou-se' cair a meio eaminho ·solbre que já não mexia. Mas durante .a ,sua 'breve a:goni1a, o
uma das mãos, enquànto com a: outra f.azi.Ja: flutuar o púbHco ·lev:ántou-·se como um só homem e: sauldou o herói
estofo y,ermelho que provocava sempre o seu furor. Por do jogo mortal, que d~pois da: sua tentativa de fuga' se
fim, esquivou-se a cm>ver, para daí a momentos ·sa;ltar tinhru compo.rtado magnificamente. Isto durou até ao
momento em que o cadáver foi levado num carro pintll!do

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Edições Ahodit·e- DE FORA PARA DENTRO
Thomas Mann
Thomas Mann

206 207
e ptmrud.O' a; mulas. Ribeiro saiu oom ele, caminhando ao
pr1são· para a vida e a morte entre todos os prosélitos,
lado do carro, como palia lhe render as últimas' hOimena-
e o seu mistério residta na igualdade e unidaJde do
gens. Não regre•s sou à arena. Um dia, sob um outro nome,
assassino e do assa.Ssinado, do machado e da vítima, da
nUJn outro1papel, e1e devi·a aparecer-me de novo, e'le1pre-
flecha e do alvo. Eu escUJtava com um ouvido diatraído
cisamente, como uma parte da duplru Lmagem. Mas, fal•a rei
e na: medida em que as suas palavras n.ão prejudicavam
disso a seu tempo. Vimos ainda dois to1l!I1os menos boos,
a contemplação. da mulher, cujo a;specto e e•ssêlncia, ~ai­
em todo: o c-aso melhores que O• espada; ('10 ), ele também
tados pela festa popll!lar, tinham sido, de qualquer ma-
duma cla;sse inferior. A sua lâmina •a_,Ungiu tão dewstm-
neira e à primeirn vi's ta, levados até à ·sua plena; expres-
samente um dois animais que este teve uma :hemorragia·,
são e ao seu pleno desenvolv,i meu.to. Agora o s eio estava
sem contudo cair. Tal como 1.liiD. homem com . vómitos,
em repouso, e senti o desejo de o tornar a ver paLpitar.
rimohiJJzo.u-se• com os jaiTetes estendidos e o 'Pescoço
alongado, oospiinldo- vi•são pooosa- um jacto de sangue ... ... ...... ... ...... .... .. .. . ..... ... .. ..... ..... . ......
espesso. Um m.a:tador ( *) baixo ·e forte, com um fato com (Bekenntni.sse Deshochs.taplers Feli3; Krull)
dema1s:iadas lallltejoula,s e um ar galhardo, foi> obrigado
a dar-lhe o golpe de misericórdia de forma que os poohos
das duas esp8!das sobressaíoam •s obre o corpo. Partimos.
No carro, o esposo de Maria Pia forneceu-me· dourt:os
esclarecimentos sobre o espectáculo- que tínhamos visto
-ou melhor, que ~u tinha v.i sto pela: primeka vez. Falou
dum santuário roimano muito· •a ntigo que !3Jtestava a
e"üstência dum culto provindo da camada c.risitã superior
e que descera até um nível muito baixo, ao serviço duma
divindade sanguinoJenta. Pouco faltou par·a que essa
religião tivesse ·s uplantado a de Nosso Senhor como
religião universal porque os seus mistérios gozavam
duma e~trema popularidade. Os novos catequizados eram
baptizados não com água, mas com sangue de tour.o, que
talvez tivesse sido ele próprio um deus, o qual revivia
.aEás naquele que derra:m:ava o seu sangue. Esta doutrina
constituía como que um cimento indestrutível, uma

E d i ç õ e s A f r o d ·i t e - D E F O R A P A R A D E N T R O
EdiçõesAfrodite- DE FORA PARA DENTRO
YALERY LARBAUD
(1881-1957)

8enl dúvida que a esse esteta, esse wZU1}tu.oso, sempre


taZto1t o dom crla.ào-r qt/.6 eZe tanto ad.mira.va. em
Joyoe; e à Ungua. preciosa, aos sen~71Wntos .stt-btls
do famwso ~J~mador, do profissicYnaZ do prazer, C011Se-
fl1lMM'8 preteri-r o natura.Z dos outros qt/.6 ese?"eve;m·
d 11niat1·oca. mas 1>ara a etentfd.ade, se1n atender à
arte. O si.l~wio de LM·bll'll<à, por~1n, ainàci terá outro
sentido: coi?wide comt- o fim da vida fácil. A idade
trági ca StWeàe ao teZiz sécu'lo. de q"e o at~tor eLe
Balmabooth 1uwerla. d-e ceZebrar (Js des'lefxadas cttrio-
sld.ades, os gostos e os prazeres. - PIERRE B0/8-
DEFFRE

O ea:empZo perfeito do escrito1· "'I'VEmmr cuJ.to - DO-


MINIQU]j] Ii'Jj)RNAND]j]Z

Valéry Larba;ud nasce em Vichy. Aos oito


cvrz.o.s mtYrre-lhe o pai e realiza~ com a mãe) a
pr>inneira. 'l>'iagem de um.a s&rie que há-de
ooupa;r-lhe wm<ll parte irn;pm"tante da vida.
Faz esf:udo'8 pouco brilhantes no Liceu. H en-
?'ique IV de Patri.s e aos vinte e um a;rw_s decide
matricular-se em Oxford, mas virá a concluir
os estudos universitários na; Sorbonne. Inicia
a su..a vagabwndagem «M primeira classe»)
visitando quase todo o mundo. R egressa a
França~ onde dará por terminada a obm de
romancista, iniciandlo uma imp01"tante activi-
daoo oCYmO traiJJutor (a ele se jica;rá devendo
a divulgaçào em França; de James Joyce). Em
1952. é conterwplado com. o Prémio Naoi<Yrw.l
das LetraJS. To'fi'Ulldo de patralisia e afasW.,

Edições Afrodite - DE F O RA PA RA DEN T RO

14
Valery L:arbaud ' Valery larbaud

210 211
acaba par morrer em Vichy no ano de 195'1.
Carta de Lisboa (a um grupo de amigos)
Principatis obras: Fermina Marquez, As Poe-
si:as de A. O. Barnahooth, · Amrunte:s Felizes A Avenida da Liberdade- A Avenida por excelên-
Amantes, Leitura, esse Vício Lmpnne. ·. cía - sobre ·a qual dão as minha's janelas, está toda
violeta das árvores floridas e só através das grandes,
· vivas e perfumadas grina1das o sol atinge o pavimento
. de amplos desenho:s brancos em fundo cinza. Para mim,
·caros amigos, será este dia de primavera um dia de
repouso e convalescença depo;is da orgia de ·s impatia em
•que me vi arra•s tado. Não me ·si\Ilto à altura do trab:a'.lho
·nem ca.p az de entregar-me à tarefa do correio·. Admdro
a:s pessoas de correspondênoi•a em dia e quero acreditar
·que ditam :a maior parte das cartas, ou então mandam
·-escrevê-las a; um secretário. Poderia, no entanto, cttar
um personagem polítioo comprometido nos maiores ne-
• gócios de uma g.r ande rraçãJo, um homem de estado de
'
· quem a imprensa do mundo inteiro conta e comenta dia
. a dia os acto;s, e a'ssim mesmo encontr·a tempo para
, escrever por .sua própria mão a um homem de letras,
fazendo-lhe observações sobre velhos autores que a um
·e a outro intere,s sam. Como é capaz de consegui-lo? Ah,
nem quero sabê-lo. Apesar dis·so, vou escrever hoje a
menos urgente das cartas que tenho a escrever, a carta
aos Mads indulgentes Amigo;s.
Já nem sei ao certo há quantas semanas me en-
• contro em Lisboa. Tanta;s coisas vi e realizei< que me
parece longe a Jembrarrça da chegada. Mal recordo o
tempo em que estive instalado .provisoriamente no hotel
. mesmo ao lado da estação do Rossio e onde, prudente,

DENTRO ,E d i ç õ ·e s A f r o d i te DE FORA PARA DENTRO


Edições Afrodite - DE F O RA PA R A
Valery Larbaud''

212
tomava as refeições, sem ousar ainda, poT falt,a de infor--
mação, arriscar-me nos restaurantes da cozinha; por-
tuguesa. Pensaria eu que tomando uma das ruas: tran:s--
versai;s da Avenida fosse parar ao Tejo? Ou ter,ia; sido
bastante recém-chegado, bastante provinciano, a ponto
de nem seque:r s·ruber pronnnciar o nome dos C'igrur.ros ·
que pretendia, e mostrar à vendedor·a uma caixa vazia
dos que trouxera de Paris, dizendo: Una caja: oomo esa,.
por /OJV"ar?
Depois foi: o tempo em que, já instalado aqui e po- .
dendo dizer: o meu quarto, a chave de casa., comecei o
estudo do Português e de Lisboa. T.ive sorte: •sem querer ·
e conduzido pelo meu anjo bom, não haj-a dúvida, dei
comigo à entrada da BibHoteca Nacional onde encontrei
o soberbo Guia de Portugal (vol. I, Lisboa e os wrre-
dores) que a Biblioteca. :edita e é redigido por escri:bO!I''e s
e especi<alistas notórios. Comprei-o na pTimeira 1ivrari•a
que' achei• à saída (50 escudo;s bem empregues) e come- ·
çou a exploração da cidade - a colecção de recordações
adquiridas pelos meus olhos. Logo mos primeiros dias .
entrei de posse das duas peças principai:s.; bem dife- •
rentes uma. da outra, como ireis ver. Uma delas, a enorme
torre de metal pintado de cinzento, o grande elevador
(construído por Eiffel) que põe a parte baixa de Lisboa
(a Baixa) (*) em comunicação com a parte alta (oci-
dental, a Alta) (*). Esta torre tem qualquer coisa de
impressionante, de julesvernesca, um ar de máquina para
vi:sitar a Lua. O outro objecto, mais absorV'ente ainda
de contemplar de memória, foi o Ecce H amo de ca;ra
me~o velada que ex;i:ste no Museu Naciona!l entre muitas

Edições Afrodite - DE FORA PARA DENTRO ·


·v aJ,ery l arbaud

213 APARTE 213


•outras obras espantosas dos primitivos po.rtugueses.
Os mara.V'ilho·s os retr.wtos desses ·p rjmitivos dão muito
que pensar, é certo, tw.to mari.s que pelas ruas de Lisboa
· en~ont.Tamos algumas ca.rns parecidas com as deles;
o Cristo velakio, porém, é obsessi'VO par81 a •imaginaçã,o;
sentimo-nos atraídos por aquele olhar que .nunc81 mais
hB~vemos de voltar a: ver. A ·nenhUJDJ. de vós me atrevi
a mandar o bHhete-postal em que esse quadro está re-
produzido, tanto parece pedir, a quem o vê, que não
lhe desvende o segredo.
CHARLES BAUDI:LAIRE: •Diz lá, minha alma, 6 minha pobre
Entre estas duas re'OOTdações todas as O'Utras tomruram
alma nrrefecldo, que acharias tu do viver em Lisboa? lá dovo ·pouco a pouco o lugar, desde a massa: de mármoTe branco
fazer calor, e com Isso haverias de regalar.te como qualquer ·do túmulo de F.ielding, na sombra cerra.OOJ dos ciprestes
iDQOrto. A cidade é õ beire d'água; dlz·so quo é construido
em mármore e o povo odeia os vegetais a um ponto tal quo ·do cemitér-io protestante, àquela esquina da Rua do
arranca todas as rvores. Ora ai tens um11 paisagem o teu Arsenal e do Terreiro do Pa'ÇO onde o rei Carlos e o
gosto, uma paisagem feita de luz e mineral com o liquido
a oferecer·lhos do seu frescor!• -principe herdeiro receberam no carro descoberto a
·rajada dos conjurados. Certos lugares tor.naram...se-me
(Any where out of the world - O spleen de Paris) fannitliare:s: jardins públicos, terraços do alto dos quais
es pa:lmeiras rt:ram:qu.ilas parecem observar a. Lisboa que
vive ao, sol; um g.rB~nde ja'!'dim de inverno, cheio ?-e fetos
:arbóreos, na; depressão do imenso .ter.reno baldio que
dentro de alguns anos ·há-de ser 1p arque; o mercado
-central onde, ao ,pr.imeiro olhar, nos convencemos de que
nada mais vende além de flores e frutos e onde reina; uma
festa perpétua à claridade amarela; e verd'e de centenas
de ananases ·P.endurados como ·l anternas venezianas;
o nobre espaço solar do TerreiTo do Paço (a m81is bela
'praça da Europa) rodeado de palácios sustentados por
.arcadas e dispondo de· e:sea:daries que descem à água
·do Tejo largo como um braço de mar. A própria oiTcu:ns-

Edições Afrodite - OE FO RA PA RA D EN T R O ';Edi ç ões Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Valery Larba!Kl·. Valery Larbaud

214 215
tância de a prnça não ter pavimento contribui para a im- · bilidades (*), isto é, «fornt différents tours». Para atrair
pressão de majestade que ela causa: foi' feito o principaL. a atenção dos vi:sitam:tes, os elefantes tocam um sino;
Tal como a Piazza dei Popolo na gravura de Piranese, . . metem num tronco a;s notas de 25 e 50 centaJvos que lhes
com os seus trilho:s e regos. dão; e o hipopótamo :sai do tanque a mando dO guarda,
Sem que mo tivessem mostrado vi essas. árvores (agora abrindo a goela enorme quando lhe dizem abra mt1li8 (*)
nuas) da Avenida e da: Praça Camões, onde pousam os" (ouvre davantage) para receber as oferendas que o
pássaros ao cair do dia, em tão grande número que à públ.ioo· faz à sua di'Vindade beemotiana; chega ·a ser-nos
primeira v.ista acreditarí·rumors estarem os ramos coibertos· permitido tocar nos dentes da «mai.s maravHhosa. cria-
da sua folhagem de verão, vâçosa e ~ntacta; fosse a luz·. tw-a de Jeová».
mais viva: e :haveríamos de ficar à s01mbra de:bai~o dessas Bem depressa adoptei: a palavra habüidades. Não
árvores col>ertas de pássaros ... E também já tinha os é uma habilidaide debitar com clareza; e de forma a ser
meus fo:mecedores, escolhidos d'epoi:s de vários ensaios: compreendido, uma fra!Se portuguesa preparada com
café, papelaria, mercearia, bar.bearia, manucure, v;en- cuidado? E encomendar a refeição no restaurante ~
dedo:r de vinho do Porto, uma loda onde só ·e ntrava para . outra habilidade. Fazendo todas as noites o meu: exame
compmr certo queido de Azeitão ... Nessa altura. a;inda de consciência a mim mesmo podia dizer que reali·zara;
eu falava uma espécie de espanhol em que diàriamente vária.s habiliiklides. Vendo certa noite no cinema um do·-
introduzia qualquer pa:lavra nova de português que as-; cumentário que apresentava cenas de caça em Ãf:rica,
. minhas leituras hawiam ensinado, e eu e~perimentava. passou uma manada de hipopótamos e, voltando-se ao
' Bem mais difícil era compreender o que me diZJiam; e no- público (ou àqui!lo que representava o seu público), um
teatro pefdi'a oitenta por cento das réplicas; não era deles desatou a 3Jbrir a bocarra. Do meu lugar na sombra
justo, na· verdade, pagar um lugar inteiro. -em Pari·s nunca: teria feito isso- disse em voz alta:
Chegando ao _terminal das linhas de eléctrico, des-· Abra mais. Toda a assistência riu porque o hipopótamo
cobri o subúrbio. Belém, A:lgés, Dafnndo. O ba:irro indus-· ik> JOJrdtim Zoológico (*) é muito popular em Lis;boa
triial do Bispo. E o jardim zoológico a que voltei diversas· (explicou-mo tempos depois Ramón Gomez de la Serna).
vezes, pela ca;lma, pekt verdura exótica abundante em O que eu fiz tinha sido, de facto, uma grande haibilidade:
todas as estações, e por essa fachada vermelha: de um uma piada em português. Mas, vendo bem, talvez tenha
velho pa;lácio que serve de fundo a toda uma parte do· sido o meu sotaque estrangeiro que os fez rir.
jardim. Existe nele uma bel·a colecção· de macacos, talvez· Flanando um dia pela zona da estação em que se
a mais rica da Europa, e muitos animais af'l'ica.nos e toma o comboio para o Estoril e Ca;scais, fui dar a um
a;siáticos, de :a;Iguns dh~Jendo o Guia que fazem vá'l"ias ha- local de reunião, o quartel-general dessas peixeiras que

Edições Afrodite DE FORA PARA DENTROI Edições Afrodit•e- DE FORA PARA DENTRO
Valery t.aroaúd Val•ery Larbaud

217
se vêem de manhã por toda a Lisboa, e mesmo pela; a irr ter com ela, P.espegar-lhe o aranzel do rpintor em
tarde adiante, caminhando a pé descalço com llllll grande busca de modelo, tranquilizá-la sobre a pureza daJs mi'-
cesto chato em equiUbr.i.o na ca,beça. Bela raça de rapa- nhas intenções, e direr-lhe em português:
:d:gas! SeguTamente as que na Europa são mai1s direitas.
Quando abro '8iS janelas de manhã (no rés-do-chão) acolli- .. .fuge 8U8picari
tece-me ver aquela que traz peixe à casa. Caminha oom Cujus retamum trepidJavit aetas
majestade incomparável e depois, já na solei!'la, incli- Ow:udere lustrum ...
na-se ligeir~amente ·como que numa rerverência ao altar,
para logo de •s eguida reassumir a postura vertical, tendo Ai de· mim! que o meu português não chegava a tanto.
logo aH o c•esto a seus pés. Tão depressa o. executa que E quem sabe lá de encontro a que preconceitos ·selvaget11s
nunca me foi possível swpreender o rpormeMr do mo- teda :ido bater?
vimento. Mas não poderá cUil'Var-se para diante, ou do- Já desaparecera, entre à multidão do Rossio. Ah, que
ooa;r-se, mais do que uma inapredável fracQão de se- pena, :liinoo pe:scivendola do Carmo, e como é mal feita
gundo. Que esplêndidos corpos deve haver por debaixo ai v:ida: ... A propósito dos versos IDcima ci:tados, não
dos vestidos cor de mi•s éri•a. As feições, porém, e a tez, acham que se trata de Uffi8J da:s boas piadas de Horácio?
são quase sempre desagradáveis de contemplar. No Tentar fazer a;credi<bat ao seu jovem .amigo que um ho-
ent·a nto vi uma dela:s que também tinha uma cara linda. mlem de quarenta anos não pa:ssa de um velhote? DessaJ
Descia o Carmo com o cesto vazio na mão. A sua cor forma não teria eUJ vi:sto tal :esplendor, esse brotar de um
pálida e quente era muito bela, grandes olhos negros, corpo tão direilto como um cipreste, árvore gerada pelo
caindo por ·sobre· um deles uma ·comprid8J madeixa de corisco.
cabefos muito pretos e finos, muito flexíveis. Que bela E a propósito desta curiosidwe, ca:ros amigos, acaso
estátua para a jovem República Portuguesa! Não con- não ;s ois co:mo eu, não tendes necessidade da visão de um
segui deixar de voltar-me à :sua passagem, segui-la com nu feminino como tendes da música, da poe•sia, dos :per-
os olhos imobH;i. zadO no meio da multidão de belas mu- fumes, do espectáculo da: floresta e do mar? Quem
lheres que desciam o Chiado. Teria dado sei lá o quê, sabe se a mais reflectida da:s no·s sas vid8JS, e as obras
uma somru em dinheiro -ciente de que me privava de que ela produz, não devem tanto a:o estudo atento do
várias coisas e renunciava à compra d'e livros - para nu como dos livros e à audição da melhor música? Pelo
lhe ver o cor.po. Fiquei paraJ ali «cr.ispado como quailquer que me toca, quando estou a cri:ar mal chego a distinguir
exótico», perguntando a mim mesmo se me atreveria as lembranças e a'S imagens da forma feminimt da ma-

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Valery I.Ja~baud
Valery larbaud

218 219
téria Hnguística que ponho em acção. Parece--me que e tem essa grande elevação e esse gemido de mulher
as ama:sso, acaricio, :r.e crio em conjunto. Que estudo sem feliz (em «feritá») no prim.e~ro terceto:
fim, que louvor eterno, Carmen Deo No>Stro,- e;sse

.. .materrwil contorno~ Baci~ ma son tuoi baci e dolci e rei~·


E esses bordos siri!U0808, essas pregas e esses cálices ... Mira s'omai piagato il ror ne fu.
Che di tua feritá sparge i trofei.
Por ilsso, porque a cada instante é a e:x;pressão per-
feita da nudez feminina, dá-me a poosia. de Paul Valéry O fim do monólogo :não é tão bom: o «Non ooglio
prazeres tão vivos - em especial o Jeune Patrque de piu» demasiado prosruico, directo. Este :soneto recitei-o
que é assunto único. Baudelai:re debruçava-se nela: eu a Paul Valéry e ele disse-me: «Pensamos em Verlaine
a escrever qualquer coi'sa dess.e género.» E justo.
õ tu a: quem a noite faJZ tão bela, A 2 de Fevereiro tirve o espectá.culo de uma: pequena.
Que sUlliiJidade eu sinto~ inclinado nos teus seios .. . revolução que não estava no programa. Primeiro acre-
A poesia de Paul Valéry, porém, introduz-se por de- ditei tratar-se do regresso do Presidente da República.
baixo da epiderme, na circulação do sangue desse corpo que se encontrava no Porto: o se:rv.iço da .ordem, as
.salva·s. Mas os canhões estavam carregados e, do outro
Ata'Yldo e desatando as suas sombras sob o litnoo lado do Tejo, os insurrectos atiravam para cima de
nós. Não houve vítimas. Algumas vidraças quebradas,
tranSiforma'-se nesse corpo, t:ransfoTma-se no seu peso. o troar do canhão du:rap:te uma, parte da noite. Parecia
movimento, sono, no .seu .significado muscular: uma tempestade de Estio. Tal como se diz que a chuva
E ()(Yffl; oo meus braços fartes ... de Verão não molha, .trumbém faço este provérbio para
uso drus pessoas que hesitam em vdr a Lisboa.: Revolução
Como :rival só lhe vejo a poesia de Marino e dos ma- portuguesa não mata. A aütude da multidão era admi-
vinistas; a ainda assim procedem por alusões longínquas rável: indiferença rubsoluta:, curiosidade, sorrisos. Bem
(feminizando a Natureza) ou caJindo numa sensualidade valia à Guarda Republicana invadir a cavalo os .passeios
quaoo ltbertina., indigna de tal a;sunto .. . No entanto que do Rossio. Os grupos de espectadores voltavam a for-
belo é esse soneto, esse «:prazer» de Pietro Paolo B~ssarir mar-se com obstinação•, calma e doçura. T.ão pouco aco-
que começa: tovelados aH éramos, que até consegui fazer o esboço do
uniforme do corneteiro da Guarda Republicana para; a
Bindo~ cke fali? Se non mi baci io muoro ... m-inha colecção.

Edições Afrodit ·e - DE FORA PARA DENTRO


·E d i ç õ ·e s A f r o d i t e - D E F O R A P A R A D E N T R O
Valery larbaud Valery larbaud

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A a;legria portugue.s:a é mna lenda; a polidez por- Verdes - Portugal parece um fragm€nto da Itália
tuguesa, porém, a .suavidade dos ·costumes portugueses, colocado à beira do Atlântico.
são realidade. Portugal é um país onde se é feli-z, onde M.a:s acontece que não é sensível à influência italiana,.
acredito que é rpo1ssível viver-se agmdàvelmente. Por ele trata-se de uma parecença devida à antiguidade da cul-
tem o cldma, as paisagens, o oceano ; e também o clima: tura, a um prolongado uso da riqueza e da pa:z, à edu-
moral de um velho e glorioso reino europeu com vastas cação católica, ao abrir de olhos de todo um povo que
colónia:s, um império no ultramar. Como· a Holanda. Na: resulta das grandes viagens. O que domina é a influência
Europa, há-de ser ·s empre nos pequenos estados onde frances·a, isto é, a influência dos escritores de língua
melhor se vive. Pensa't no ·e xemplo de Descartes, Baylé, francesa e não da França, .potência política. Basta olhar
Voltaire, Stendhal, dos româ-nticos ingleses do séc. xrx as. livrarias: nela:s se vendem tantos livros franceses
radicados na: Toscânia. Quem vai viver voluntàrJ.amente (apesar das restrições absurdas .postas ao seu comércio
para ~a grande nação? E se a estadia no nosso Paris .por um ou pelo outro dos dois governantes., talvez am-
nos está a genro~ não é porque consideramos a cidade bos) como portugueses e brasileiros. De resto, e de um
como um pequeno estado de três milhões de hrubitantes modo grosseiro, as proporções são as seguintes: livros em
e no qual toda: a gente se dá? E quem sabe se Portugal língua portuguesa: cem; em língua francesa: cem;
há--de fazer papel semelhante quando -a África; do Sul, italiana: sei·s ; espanhola: seis; alemã : três; inglesa:
a América do Sul, a América Central se transformarem doi·s. Ape:sar do tratado de: comércio e da aliança que
em países de grande vida intelectual? une o Portugal políti'co à Inglaterra polític.a, e apesar
A Itá1ia parece fazer excepção à regra; a mais amável das influênciws recíprocas (Southey), é curioso verificar
das expressões geográficas também é uma grande nação. que a vida., a língua e a literatura inglesas são quase des-
Mas a ItáHa é demasi·ado rica de .paS'sado' e futuro, já conhecida,s do público português. A maior parte das pes-
«viu de mais», e pode dar-se ao luxo de taJmbém ser uma soas lê os escritores ingleses em traduções francesas ..
grande nação até que o si•stemru nacional seja substituído E be:m verdade que a vida intelectual da Europa e a sua:
por uma ordem nova europeia. Como quer que seja, ou vJda política são coisas completamente diferentes. Possa
faça, há-de ser sempre bom viver nela. A Itália de 1826, tal di·v órcro consumar-se em breve. Apesar disso, é peTia
a Itália de 1926, é sempre a mãe ·bem.~amada e amante. ignorarem-se os púbLicos de dois grandes «países poé-
E Portugal, pois bem - tive impressão idêntica quando ticos» como Portug.al e a; Inglaterra.
apanhava o eléctrioo na pmça que existe à frente do Arrastei comigo um remo:r:so por todo o tempo que
Museu Nacional, também chamado Paládo drus Janelas durou a minha solidão vohmtária em Lisboa. Encorutra-

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Valery Larbaud Vale ry Larbaud

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va-me apenas a uma hora de caminho-de-ferro do Es- livros, da música e pintura que amamos. Há-de ser um
toril e de El Ventanal (a ca,sa que Ramón Gomez de la local escolhido em bom clima, qualquer coisa como uma
Serna mandou construir), Ramón estava lá, ·aguardarva cidade de inverno muito luxuosa mas, apesar disso, pouco
a minh~ visita e, no entanto, os dias passavam mantendo frequentada; haverá sombras esplêndidas, belos passeios;
eu desde a chegada grande desejo de o ver. Pensei· em só se encontrarão pessoa·s de perfeita educação, todas
aparecer-lhe de suxpresa, mas chegava sempre demasiado elas amantes da poesia, música e belas-artes. Aonde
tarde à estaÇão Jongínqua onde devi'a tomar o comboio. existe tal lugar? Aonde encontrei eu a sua descrição?
Ou então o tempo é que estarva mau. Ou então ·S entia-me Ah, s im:
doente. Além di,sso, pensava ficar muito tempo em
Pelas misterriooas sombras .. .
Lisbow e julgava que também ele se encontraria por
muito tempo -- definitivamente - insta·lado n'El yen- os , Campos Eliseos - zona reservada aos homens de
tanai. A passar juntos haveria muitos dias de primavera, letras.
ou mesmo verão. Temi·a sobretudo fazer-lhe perder Soube •e ntretanto que ele ia deixar El Ventanal; que
temrpo. Tenho alguns rum:igos que trabalham muito - pretendi~ vendê-lo; que sonhava instalar-se na Itália;
Ramón Gomez de ia: Serna e James Joyce, em parti- e também VÍ' que w minha: estadia em Portugal não ser.ia
cular-- cujo tempo me parece, por essa razão e quali- tão prolongada como pensara. Escrevi-lhe então a pedir
dade do que produzem, precioso em demasia para que que me reoobes,se no Estoril, e logo no dia seguinte ele
me atreva a wbusar. Tomar a tais amigos uma tarde aparecia na miiliha casa, em Lisboa. Descemos juntos
parece-me qualquer coi·s a menos desculpáve1 do que a Avenida e as ruas d~ B~ixa em direcção ao seu café
pedir-lhes emprestados mil francos na intenção de nunca prefeTido, no rés-do-chão de um dos Palácios do Terreiro
mais lhos pagar. Penso constantemente neles, no seu do Paço -- o mrui1s belo ca,fé de Li·s boa, antigo, instal·ado
tmbalho, na amiza,de que nos liga, e no entanto, quando em duas •sa:la;s de abóbada; com mesas e c~deira;s estilo
me pedem notícias tenho de responder que há muito Império importooa,s a.o tempo da invasão napoleónica.
não os vejo nem lhes escrevo. Parece-me -- noção A partir desse momento, a minha vida Hsboeta
quase tão absurda como vaga1 - que f.icando um dia encheu-se de acontecimentO's que fizeram cessar, toT-
todo o nosso trabalho acabado, publicados todos os naram impüssívei'S, as relações de passeante e estran-
nossos livros, ha·v eremos de estar reunidos num lugar geiro ocioso na cidade. Ramón, que eu acreditava isolado
em que seja possível ver-nos a qualquer hora do dia, de todO' em Portugal era, pelo contrário., centro de um
.onde faremos confidênci.as, conversaremos dos nossos grupo de jOIVens escritores de vanguarda. Anuncio~lhes

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Valery L:arbaud• Valery Larbaud

224 225
a minha chegada.; vieram visitar-me; ·tive consciência de afectação. Ela :não me reconhecera; e, como nenhum
representar, perante Li1s boa e de forma; quase oficiai, outro cliente e·s pet·ava quando :saá., voltou ao jornal vi-
as re'\'istas onde colaboro com os colegas de mairor rando-lhe a págLna com indolência.
aceitação nos meios 1iterário,s avançados da capital por-
F.iquei' sur.p r.e endido e contente a'O veriflcaa· que em
tuguesa:; fHJlaram-me deles, isto é, de vocês~ caros amigos,
Lis boa. havi.a .t anta gente disposta; a in comodar-'se para
evocaram-vos, estáveis todos ruo meu iado, invis ívei·s ;
fi'zeram .o elogio das vossas obras, aplaudiram-vos·, e ouvir frular dos menos conhecidos •poetas franceses do
sendo o úni'co visível e tangível de todos. nós, em vosso· séc. xvr : estava cheia a sala de convívio do teatro
nome recebi, vicariously, essas encorajantes homenagens S. Carlos; viam-se muitas senhoras e na primeira fila
tão cordi'ais, tão espontâneas. Aos olhos daqueles amá- dos auditores estava sent ado o adido militar da Lega.-
veis colegas portugueses. representava ao mesmo tempo ção Francesa. Quem organiza estas conferências é a
e.u próprio, vós e todos os cohtboradores da N. R. F.~ União Intelectual; e o seu representante· em Portugal,
da Révue Européenne~ do NOJIJire d/ Argent~ do Oamrroorce. o historiador e ensaísta: Antón~o SérgJro, apresentou..me
Papel bem dificH de aguentar, note-se, esse de represen- ao público. Fê-lo em português, cuja .p ronúncia ainda
tar condignamente tantas pe:ssorus de espírito e grande tem bastantes dificuldades para mim. Des,s e modo, uma
mérilto. Tornava-se necessário pagá-lo com ru minha das frases da apresentação de António Sérgio que não
pessoa e foi então que me decidi: a fazer uma conferência compreendi na a'ltura em ·que a pronunciou foi precisa-
aqui anrmci,a da desde a partida de Paris, versando em mente aquela onde afirmruva não ter que desculpar-se
geral os nossos menos conhéeidos poetas e em parti- por me apresellltar em português, visto eu sa1b er tão bem
cular Maurice Sceve. Encontrando-me na manucure essa 'língua. Muito comov·ido, captei de pa;ssrugem os
três dias depo:is. da visita de Ramón, numa mesa ao al- títulos dos meus livros, os nomes dos amigos e críticos
cance da mão vi um jornal que na primeira página tra- que deles se ocuparam: Edmond Jaloux, Benjamin Cré-
zia publicada uma reprodução do retrato que de1 mim mieux, Ernst Robert Curtius, Fréderi:c Lefevre. . . Pelos
fez Pierre Sichel. Estavam aca;bados a soJ.id:ão e o ano- a;plausos que saudruram a: minha chegada ao estrado bem
nimato. Na:quela; manhã todo o Us'boeta pagara a minha vi que António Sérgio dissera o necessário para me
cara por trinta centavos. Quando passasse no Rossio tornar simpáJtico.
iam reconhecer-me ... Mas o jornal era da manucure e iNão só tinha medo como temia bastante decepcionar
ela devia conhecer .o cliente. Cheguei ao ponto de lhe o meu público. Falava-lhe de um período pouco conhecido
dizer qualquer coisa deste género: Que caru rrU1Ii.s wnti-
da História Literária da Fra111ça, citava-lhe versos cheios
pática tem esse Senhar (*). Mas senti o ridículo de tal
de di:fict.Udade, mesmo para um públ:ico francês; trata-

Edições Afrodite- DE FORA PARA OENTR(}


EdiçõesAfrodit e - DE FORA PARA OENTRO
15
Valery Larbaud

226
va-se, ean resumo, de uma conferência que poderia ter
fei,to a um público da Margem Esquerda no V:ieux-Co-
lombie:r., por exemplo, ou na crusa dos Amigo.s do Livro.
Sent,i porém que era: seguido com muita atenção e em
tudo compreendido, mesmo nesses versos mais difíceis.
Uma curta experiênci<a da vida portuguesa, de Lisboa,
dos livros portugueses, bem me ensinara que Portugal
é um dos países da Europa onde as letras mais se en-
contrarrn em honra, mas não contava deparar., no seu
escol, com uma cultura francesa tão completa e tão lison-
jeira curiosidade pela nossa literatura.
Dis-so encontrei novas provas durante o banquete que
me oferecer,a;m os cotegas de Lisboa e cuja ementa vos
enviei. Soube que escolhera bem o tema da conferência
por uma conversa que tive com o Sr. Joaquim Manso,
diredor do Diário de Lisboa) antes de me sentar à mesa
(entre o presidente António Sérgio e Ramón Gomez de
la Serna) : «Ü eswl letrado de Lisboa - disse-me ~ àis
vezes fica'Va decepcionado ao ouvir conferencistas estran-
geiros que falavarrn de assuntos demasiado conhecidos,
quase elementares, como se estivessem a J.idrur com um
público ao qua,l teria de ensinar-se tudo na Literatura,
no movimento científico, na arte estrangeira. Nesses
casos vinham ma:i's para ver o conferencista, se era
ilustre, do que para ouvir a conferência. »
O banquete foi uma manifestação inolvidávei de sim-
patia pela literatura francesa. Teve lugar no salão de
festas de um grande círculo, o Brístol Cluh, cujo mobi-
liário, a decoração, os frescos, formam um conjunto mo-

Edi çõ e s Afrodit e - DE FORA PARA DENTRO


Val'ery Larbaud

227 APARTE 227·


derníssimo e mesmo de extrema vanguarda. Depois da
Marselhesa ouvida de pé, e enquanto comíamos o «Con-
somé. A. O. Barnabooth» t, um grupo de ·b aiJarinas
espanhoias· rodeou a me•s a:

Tal oomo um ramo desfeito


Na sala ão banquete,
As nove irmãs espalharam-se ...
(Emmanuel S~gnO!I'et)

A seguir houve uma audição de Fad;os, esses cantos


populare·s ;portugueses arr.a;stados e de uma prosódia e'X-
tremaanente cOiiDplicada, acompanhados por uma música
lenta, triste, apa~xonada, dilacerante e meiga. Lá se
encontravam os guitarristas mais ilustres de Lisboa;:
Armando Augusto Freire, Herculano Rodrigues, Abel
Negrão; e também alguns dos melhores· cantores de
CA SANOVA: • - ( ... ) Depois de saber quo sois portuguesa,
sinto·mc reconciliado co.m 11 vossa n~çlio . - Porquê, nlio gos- fados: Renato Vaxela, Raul Brin:gual, Raul Ce•ia, Alberto
tável$ de nós? - Queria·vos mal porque h6 duzentos anos Costa (é absolutamente necessário que os oiçamos em
deillastes morrer o vosso Virgílio na miséria. - Camões!
Mas antes de nós fizeram os Gregos o erro de deixar morrer Paris). Um des,s es fados·, cria-ção espontânea do po:vo
o seu Homero. - ~ verdade; porém os erros de uns não português, era um verdadeiro poema sobre um tema
desCIUtpam os dos outros.•
literário: no mosteiro de Belém todos os gramdes poetrus,
(Memóri as]
escritores e· mwegadores de Portugal, se reúnem à volta
de Oa:mões ...
HANS CHRISTIAN ANDERSEN: MO africano de feições gros- Gostaria de nomear-vos todas as personalidades pre-
seir<ls, lábio:; espessos e negra carapinha felpuda está sentado sentes no banquete que era, ·ao mesmo .tempo, em minha
nos degraus do palácio de mármore da capital de Portugal,
e mendiga.. . É o fiel escravo de Camões; sem ele e as
moedas que lhe dettam, teria morrldo de fome o seu senhor, 1 A . O . BaTmtbOoth é o h!eró'i e ·awtO'l' fi'Ctício d e três obras
o cantor de Os Lusíadas. Mas hoje cobre o túmulo de Camiies
de Va~éry Larbaud :reunJi.ms IS'ob o titulo gerrul de A . O. Barnabooth
um sumptuoso monumento ...
- Suas Obras Completas> isto é> um Conto> Po'88ia8 e Diário
(Contos) intimo (iNota do Tl'ad.)

Edições Afrodit~ - DE FO RA P A RA D EN T RO Ediçõ ·esAhodite - DE FORA PARA DENTRO


Valery Larbaud
Va~ery Larbaud

228 229
honra e em vossa, meus a,migos, e de todos os colrubora- dação a Paris. «Paris ~ disse ele - não é a Atenas
dores das revistas mencionadas na ementaJ (repare[ que do mundo moderno, essa unilateral, essa exclusiva
as entradas e as carnes tinham os seus nomes) . Estawam Atenas. :É Alexandria, a cidade que resume doi;s ou três
lá pintores: Almada Negreiros (fixai e;ste nome; porque
mundos, duas .ou três c-ivHizações e toda a cultura; do
vi dele coisB.Js excelentes), e Guilherme FiUpe; escritores;
passado e do presente. . . a gloriosa; cidade onde todo o
o embaixB.Jdor de Cuba; em Lisboa; o nosso compatriota
Oriente e todo o Ocidente vêm oonfundir-s,e.» Nada po-
Mar·cel Bataillon, o hi1spanista que traduziu A Essência
deria ele dizer que me emocionasse tanto; não é i'sto
de Espanha de Miguel de Unamuno. Até :mesmo a glo-
a expressão exacta do que nós todos pensamos de Par1s?
riosa aviação portuguesa estava representada.
d~s razões que temos para amá•la e lá viver?
Houve discursos: de António Sérg:i:o; de João de
Ramón Gomez de la; Serna imp~ofV'isou o discurso em
Castro Osório, poeta e dramaturgo (quem redigiu ·a di-
vertida ementa foi o seu irmão José Osório de Oliveira) ; espanho·l e, dess:a forma, ou~imos .a!lgumas páginas de
de António Ferro., Ramón, Almada Negreiros que nos excelente Ramón e vimos desabrochar todo um ramo de
recitou um poema francês de :sua autori:a, uma Histoire gre:guerfas. Para além d8A sua obra, RB!m.ón é na. vida;
de Portugal 1 onde fala; de GuilLaume Apollinaire (se social um centro de simpa:ti1a e agente de ligação inte-
qualquer dia UJma das nossas revistas publicasse um lectual. A sua presença em P.ortugal, ess·ru seminatura-
número consagrado à Literatura Portuguesa, gostava Ji.zação portuguesa que' é ter..se instalado no Esto:rH,
que lá estivesse este poema de Almada Negreiros). An- reaJizou ao plano do.escol o velho sonho da união ilbédca.
tónio Ferro, cuja famtasia das suas obras em português Apagou a frolllt.e:ira entre Espanha e Portuga:l. E como
faz pensar em Joseph Deitei! (trata-se de u:m encontro vos disse, a ele e ao bem que diz de nós devemos em
e não de uma influência), pronunciou em francês um grande parte a simpatia e essa rutenção tão encorajantes
verdadeiro manifesto a favor da jovem literatura por- dos nossos colegrus portugueses.
tuguesa. Aqui, como' noutros domíni:os linguísticos, a Pelo que me toca, balbucio B.Jlgumas palavras de
tradição viva é obrigada a lutar contra uma crítica que agradecimento, falo do. meu muito antigo desejo de ver
julga defender a tradição tratando-a como se estivesse Portugal, dos progressos que começo a fazer na língua
morta. Envio-vos o be:lo di;scurso de João de Castro portuguesa, e termino pronunc·iando o nome de um dos
Osório que contém a; mensagem de Portuga.tl e a sua sau- heróis da minha infância, o explorador portuguê~ Serpa
Pinto. Marselhesa e fim do bamquete. Não é tudo: de1sta
1 V. La:rba!ud refere-se a:o poema Histoire de PortugaZ par
bela reuni,ão guardarei uma :reoo.rdação palpável, uma:
couur. (Nota do Trad.) admirável pad.sagem de Guilherme Filipe com dedicatória

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Valery L!arbaud Val-ery L!arbaud

230 231
e por trás da qual escreveram o nome todo:s os convivas; absorrvenlte e destalc:adia de tuido o que ru €1ll1Volv~, por
uma paisa1gem que, pendurada na parede da sala onde mUiito liiberta qUJe sej:a 1e a si mesma ,se bruste, DOIS' rpermita
trabalho em Paris, há-de misturar vitoriosamente a cla;- ser feiliizes :em quallque;r lado e nãb 1i!mporr:l:iru onde, :iJrnpe!r-
ridade do sol de Portugal à luz tantas vezes tétrica do meáWil às ,ilnfluêndlas qUJ€i ameaçam colll!staillltean.earte a
Jardin-Fleuri. lriherdade das pesso,a:s Ste~m a;peilo de uma quallque:r VJoca-
Ainda teri,a muitas coi1Sa$ a dizer-vos: certos aspectos ção, tem, apetsa:r disso, neaes:Si'drude de Slenltiiir o idieSiapeg:o
e recantos de Lisboa, certos traços dos costumes deste e ,a SUl!!) l!i'beTdadet. die, os Vlffiiitflioa!l' em 1S1i próprri\a ihltbell'ltaln-
povo amável; as conversas com várias das minhas vi~Sita:s do-'se de lugares e la:ÇIOIS O'!l!de IIllãO a!Chia:v;ar maJiS tnada do
portuguesas; o belo dia passado com Ramón na margem que o ragtrarláVJeil. A!lém di,sso, são preci:sm;;, contirruame'llll:e
do Tejo: a; vi:sita ao Ventanal, o longo passeio de carro rul!ilmentos p.am ots '!l!OISISiOIS .oihot~, ,a []JOSS/a cUII'iiloslitdade.
até ao ma'i's longínquo farol, a primeira luz da Europru Não se trat~a de submissão ao mundo, ao objecto, nem
que os nossos amigos da América do Sul distinguem «dlisponib[illidade». Tra1ta-1se d!essa conqUJi!sta ri\nicelsStaiDJte
quallldb voltam 1aJté nós; o jrunJI:iar em Oruscams, o !llegresso que Saint-John PeTse e e[le,lma oo «.Aniaha's e».
lento pela noite tranquila e cheia de odor das açucenas; Vou deixar-vos aquL É tarde. Já não oiço o barulho
e a meilanco]ta, que' nessa ndiJte d~trnamaVIa a Plalrt!iida pll'ó- do's e[édniQOIS da A VJ€1111ida. E trumbém tielll!ho aiS maJl'rus
Xlilm'a de Ramón. No entantto dl~spnnha de muJi.lta ltr:atnqui'- para fazer; porque também vou pairür breve. Sim, vou
~idade para o tll'wbru'ho no seu Ventanail. abeTto ~~L !bodas deixar e.sws novoo amigos, esta cidade da quail gmardo
as brisas do Atlântico; os turistas, porém, começavam a tantas e be1as lembranças. Maits 1lrrml; VJez o ~lrgullho
descobrk, a im.vadi.r a Rli'VIilera poT'tugues~, e rucO!Illtece em v~da rro.va, na so!Nldão e no a!IIDillilmaJbo, no deS~cotnhe­
que' Ramón é citadino do coração, começando o silêncio c:ildo em que vou ~se;r um desconhecido, ilá, omde a vtiidia
desse artr'edoll' die ~amJde ~~uxo a pesar nele; carn:o em da catpitaJl mails não será do que uma coilsa longínqua,
todos nós há enfim o desejo, .a necessidade de' mudar, de um eco impe'I1ceptíveL Viou WJra a proVÍB(!iia portuguesa.
Qompo:r a vtiida em várias eocilsltêniC!iJas,, de abrás de nós
sentii!r vários pa:SISadb's. P:arece1-me U!m.a COi1sa hoii'!I'íveJ não
podermos lembrar essas variadrus existências, di,s:r}ersas, Escrito numa ca~ruagem do sud-express
qu:e não comWlJi.Ciam entre 1si, entxe ,as quaiiJs SO!miO!S eLo entre Guarda (Portugal) e Alsásua (Espanha)
Úllli~o. A mto IS& chlalma «VIeg'eW>>. Como à mali.or p.art,e de
nós, a Ramón são precirs o.s a solidão e, ao m esmo tempo, A janel.!a baixa ,percorre' com esfo;rço a plaJiaagem onde
o esp.e otácu1lo da activ.itlade hum&na:. A Vlida qiU'e v.Lvemoo rus mdmosas e os pimih€1ill'os vão cedendo ~uga!l' Ciada vez
paio p eniSam.eillbo, ,p elo estudo, .pelo nosso ;tr,a;balfuo, tão maioll' aos rochedos cli1!11Ze1Illtos, ~ o páiliildo a1a!l'a!Illjado do

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Valery Larbaud Valery Larbaud

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p.oonte apag.a-I.Se à inv.a•são do páiLido a:wl (1').()01:JUm.o. Aqui mas quase des·c onhecido em Portugal embora na sua
estamos no maüls aJlto degrau do polain>al.to, o~. obra existam quaJlidades superiores à·s que bastam para
A claridade que aJilll!da; >pemn>anece é ref1eXJo do 13iirusltado o consumo imediato, um escritor exportável, numa pala-
Atlânltlico, da zonJa: do At!l'ântiieo e1m qUJe n€1Sjbe meiSmO vra, um grande escritor?
iJnstam.t>e· é meio-dliía? Um esforço mali!s e vtamos a.tilngi!r QU'e exi'gênciia;! Vã:o dei:xrur-me atea:brwruhado. Ah,
a meseta ca>Stelhana «em que todo o cimo é planície'» 1 , prospector de ~irtetraturas esibrang1eitras, d!IlJtrodllft:.oir de
os 808 metros aiSSÜlnlalliadbrs m tab~eta de aJ.Ibi.Itude da fut.Juaio.s clárs·s icos inWI'niruciK:mruiis ! Volta de mãos va2JÍ/aiS!
estação de oaminho..,de'-fer>ro em Srulamanca. Se nem há !Seli;s .semana;s lermos o nosso primefuro liivro
Caminho de regresso; direcção Paris. Neste comboio português! Espe.r'€1m Iá, tenhtam .pruci'êooi:a; de ~.
toda aJ .genrte vai a Pai1S ou p8Jl'a lá rreg:t~ e, ma$ que ail.guma vez n:os ,~ámos em «pro1spootor de· liil:e~
Sud-Express o,u P,rur'liS~IJi'Sbaa, «Oalils de OrisaQ'-Rossio» eEdr,am;ge[rrw.s»? Mesmo ~MJJte!s de collllhecê-lo .e tr:aduzi-'lo
é que eiJ.e deVÜJa chami8Jl'-'S.e aomo comboli~l que é, o. belo em frnJnCês, não ~o1mos semptre ~i'éiiS ao preceiilto de Rrumón
oombod1o-cama qu~ tomamo:s nas !imed:i,ações do Padácio Gomez de>la Sler'Illa: «Não ser derrtaJSiia:d.amente proffil-
da Legjão de Hom.a e OOx,amos à enlt.rada do Rossio, a Siion>aJ de II1ada» ? COIIlltrn told!rus ~rus rtenlta:ções de ruma
grande .praça ce:n:bràll de Lisboa, a. dois palSSOS dai Av.enida caJrTeka especinil.izllJda n:ão conservámO!s ,sempre a po·sição
da LiJber<la.de., a dez m1rnUIOOs do Terred!ro· do Pa~ cujas lilnoopemdeiillte do amad01r, do homem que nãú maliiS co-
esc~s descem à água do Tejo. nhece que o seu desejo e prazer, a posição sem obriga~
ções de um apaJixooa:do, de pr'elfe!I'ên~'ia à de um tli!tU:liado
seT!Vidor das letr.rus estrangeiras? por >bem sa~berr que
o seJ:rViço do amo;r é às ve>~es mais activo, mai\S produtivo
Paris, Paeris com o •ae lrutJi!no nítida: e na t:l'rulJi>or :itnrolllJS- que o servi~ do d>ev€1r, e ~ ca!da passo madls fe!lii!Z. Po:is
c~ência. pronunJCilakiD. PMii:s; 'll.O.ssa cHJsa; iliDssos a.:rnfugos. bem, não foi: ago;ra assim. Caros amigos, de uma estadia
A>s ,~rgnmtas que hão-die fazer-nos. ffinJtre oottras esta: de preguiça, dtssipaç·ã o e festa em Li,sboa, mais não tra-
da pll'>im~ira estad:i!a em Ui1sboa tmz CO'Jl!Sigo 0 IIllome de zemos do que algumas receitas de 'COzinha, e a recordrução
um qualquer escritor digno de ser lido fora do seu domí- de preciosos vinhos bebidos em encantadora companhia!
nio 'linguistico? Um escritorr novo, um contemporâneo,
um jovem, tanto quanto possível muito discutido a.inda,
Não, não é verdade. Como me pedíeis deanJa,siJado,
'11rata-se die uma referênclila a Un:amunJO que, sobre a m'e-
1 menrt:â parn vas f :azJer an-€11lilrur. Trago nOVIÍIIJlhla em folha
seta OOBtelhana, a.fli:rm>a: Toda cumbre 68 tu llanura... (Nota
do Traà.)
uma pequena: maJJa de fli>vr:os po>r!bugueses.

Ediçõ·es Afrodit;e- DE FORA PARA DENTRO EdiçõesAfrodite - DE FORA PARA DENTRO


Valery L:arbaud Valary Larbaud

234 235
Todos eLes ruberto;s; vá!r1itos oam ded!icatótrli.a, preciosas im:t1luêrucia em Espatn!ha: já é um Lacto hlistárioo. Jrulgo
dádivas de coiegBJs (da noSSia 1ildade e mruiis joiV'ellll$) ; três meiSimO que mn dos seus ~:vros foli tra1fu:zido e publii!Cado
ou quatro «batidos», massacrados pela leitura do com- em francês 1 • Confessai, porém, que é be:m. pouco co-
hofuo, de ba:rco, orumJitnho~e. .:fterlro, da me~Sa das pem~ões lllhecido enrt:re nós (e é provável que não seja; maâJs na
em Si'111tra;, Qooluz, Ca'SiCailis. Me:ma.n:ha., em fugl.aJt.e'I"ra,, na ItáJl~, !l1IOS pa.i:ses escamdd!-
E destas vitimas é que eú falarei. QuaJnto aos outros, n'8:vos). Falemos po!ritruntto de um ~SOO!lllhecd.do em
dai-me tempo que 01s Je~a ... Frrunça. e desejemoo, palra hQillr.a como prazer da F:ram.ça:
Não qudiS dmlicl~ar as minhrus lelirburas portalgiOOSas ~ letrada, que não tardem a; ser traduzidas as suas princi-
isto é, a ap~ a; ler pmtuguês - rabolrdlamtdlo a liilte- pais obras. Vejo-lhes um lugalr na colecçã-o estrangeira
ratura contemporânea. Tomei um atalho. Pus-me a par qrue tão bem diilrüge Charles du Bois e le'St<m oerto que os
da panrú:lti:ma secçãO' opam tlreiinar e apa!llh:ar àiepails a ma!ia f\inos àlos msSOIS !J.elbraldos hav;ilam de li!Dlcluí-il&S nas
cabeça da~ co~·nna. A!prendli a [etr m:rus obm.s diOIS esctrtiltores suaJS bilbllio:tooas ao lado dais traduções d~ seuiS oonrt:.em-
de anteontem (último terço do séc. XIX e dez primeiros porâm.eos ii!nglesieiS: GeotrgJe MeTeditth, Samuel BU/t:Jler~
am.10s de'stre séc.UJlo) oojOiS nomes SIOibre'Viveram. Em Es-- Joseph Conrad.
p.a.Il!ha ouvlilra falJa!r de• Eç.a; de QU!ei·r oz (morto em PariiS Ã espera,, aqui vai uma; am.~ rápida deste J.Iivro
em 1900; as sua:s datas são quase iguais às de• Samuel póstumo recent.emenlt.e puWc.ado («A Ca.piltall·» ; La. Ca-
But.le!r) ; aabi'a q~ :tli.iVe'r'a dJrutliJUên:ci'Bi nos escriltares espa:- piltale) , que talvez dê uma aJbraemJte 1Jdeii1a dws qiWlJliidades
lllhóirs da geração de 1898 ; acabava.,se justamelillte de de romruncista. de Eça de Qtreir.qz.
publicar em Li·sboaJ A Capital) uma obra póstuma; Ei-la.
comrpreli'-a; à e;msba de dJLciiO'Illátr!i..o pen!savra ler dez a Vlimlte
páginas por dia; terminei-a ao fim de quatro dias: 573
(Jat.IRI.e B~eu Blanc)
págünas de ~ aJbsorVIiid:ais corm .vocrucidade:, :sem I\.1Jil18,
9JV8.rila, •serm um se.g.Uiilrd.o de à!esenOOil".ajamooii:O!. Srublila; leii'
po1rb,1guês! e ®abava de le<r :a obr~JJ de urm mesi1IDe, ~e um
dos grandes romancistas europeus do séc. XIX.

Vede lá bem: nãJo é .u m a;cha.do, 1\lill.aJ «ooscoberta»,


uma «rr'e.VIeliação» (es'trus prulavras desollllr'arllrus). EÇ3J de 1 La ReliqueJ tradução de M. M. Ma.nool Gah!rstb e PhMéas
Queiroz é clássico em Podugal e no Brasil, a ·sua Lebelsg'llla (Nota do Autor.)

Ediçõoe ·s Atr.oditoe- DE FORA PARA DENTRO Edições Af ·r od ·ite - DE FORA PARA DENTRO
JEAN GIRAUDOUX
(1882-1944)

Jean Gi1'(l1.(.doua; nunca rm.vindicou outro· titulo além'


" de «/~"ticeiro do .lMen»- REN1! LALOU

Também 'imlagim.o que um marroista c1wJmaria racüm.a-


Nsmo cortês às o-pilniões de Giraudoua; e ea:plioe»ria taJ
racionalistmo peTxJ triunfante pro!J'I"BSso- do capitalismo
no imcio de8te séculio, a cortesia pela po&ição 1)11111Í.t.o
esp·ecial à e Gir®.doua: ?W seio· àa b1~rguesia francesa :
orl.g ens campes-inas, cult ura helénica, diplomacia. -
JEAN-PAUL SARTRE

Gimudoru.x 'Yitmce em Be"llac m alta burguesia,


for<: ~s '1'IJO liceu de OhaJte'CDUroux e m Es-
cola NurmaJ, Superior. Depois de unna estOJdw
m AlermtJ.mha e '1'108 Estados Uni<Ws for<: a sua
estreia literárw com Provim.cm.ds. lnioini a catr-
reira dJiplamática qzre viria a inÍterrorrvper-se
pela mobilização (no gra;u de s0l1'gento) du-
rante a ccmflagrax;ão de 14, <:JIYiik recebe um
feritrMnto. Rea;t())(Ja a omtreira diplomática,
executa uma missão em Portugàl, e t'ID8 Es-
taxros Unti.dos (1916). 11 nomeado Ohe:fe tkJ
Serviço de Obras Francesas no Estralngew,
Chefe ®8 Serviços de I_nfO'r?'YIQ)ÇiW e d4 Im-
prensa no Oa!is d'Orsay, Inspeatur dos l'U{/Oltes
diplmnátioos e consUlares, OomtLssári.o da ln-
/CYrmCXÇão. Marre em POJ1'is. PrVncipatis obras:
SimãJo o PaUMoo, Susama .e o Pacífdco, Slileg-
:fried e o Uimoru.slinol, Bel11a,, A veiilltums de Jé-

Edições Afrodl·te DE FORA PARA DENTRO


'l i
li Jean Giraudoux

238
râme Brurd.iilli (no romance) , Não li:rá travar-se
a Gue:rtrn; de Tróila;, Electra, Ondiin~ Sod;oma;
e Gomon-a (no teatro).

Edições Mrodite - DE FO RA PA R A D EN T RO
Jean Giraudoux

239 ÁPARTE
239
A jornada portuguesa
VJCTOR-HE;NRY DEBIDOUR: « (. , ) Na sua vida de diplom ata
Ao maior Carlos de Albuquerque de Santa
e escritor, Giraudoux pôde procumr o estrangeim muito em Rosa e Ovar
conta . É o seu lado Paul Morand. A sua carreira foi mais a
de um vi sitanto al ém-fronteiras do que a de um residente :
encarre g<~ do de missões, inspector dos postos diplomáticos
e consul ares. Que viagens as dele, mais a poesia dos ex- Como eu vesitó.a urr11i'foTtme d<e grul.·a., todos ms segudlam.
J>resso5 internacionais! Oue visitas! (É uma vi ngança: «Ouvir PI'iime~:ro a[guma's mernin:a;s que :ruprurentam, :também lá
o nome de uma cidade CJuando estamos internados e pri·
sioneii'Os é fazer logo o voto de conhecê-la. Consumai a na turu terra, malis idade do que os I"ajpla:z:i!niho~, e são
minha peregrinação por cada uma das cidades que no liceu levadas à cabeça, no fundo de um cesto. Na Mo~aria 1
me curaram de uma noite de solidão ou i11justiça• - Simão
o Patéti co, ) E ai temo s as estrofes sob~e a Holanda ( .. ) , andavam IlJUa!S, na Lapa - o •1ocwl onde a embaixada
sobre a Alemanha - simples prelúdio antes de 14 - , sobre alemã em rtempos· protJe,srtotu - ernvolvia:m-i!lJas e1m parnns,
a Suécia (. . . ) , sobre Lisboa ( .. . ). Esboços feitos a pata de
veludo ou arranhadela, por vezes. à !ind:iaJlia. Depo:i1s .as pediiinltels, reconhelcíveLs p.ela pll.aca
de cohre que tem .g rava;da ru pia1avra mendigo (*).Depois
(J ea n Girnudou x, Cláss ico do Século XX)
a1s pe-scad.o1ras de Ovmr, oi'Illtada:s de corda como os· vossos
I monumentos mamJUJeiti'J]os, e cO:m um olho de· ca.ida lado
da car·a , não lhes ibas:taln:do segurir a;trás de milm, sell1ldo
preCÜISo palssa!l'em a. meu lado para me verem. Por nossa
causa, as vendedoras de -brincos-de-princesa rubando-
navattn a tenda, não há quem roube ·lmilncoo-de·-pr:i!Jl.oosa
em Portugal, e atilnda: aprureCJiarrn os órfãos de Bélém
metidos em gabões cor-de-ro:Sa, raJirudos de, crurtmim que,
~gnarante•s do númell'o de amos que deVte •sep;alrlar o paJiJ
de um fi[ho, certamente me deseJavam como prui.
- O que é que queres? - dilziws. Em Paris é o mesmo,
quando aparece um portlllguês.
Todos de pé descalço, andando no chão deles com
menos ruído do que os lrupões pela neve, quando ao
nosso la;do se O!UV1ia um taJCão· pressentíamos log.o que
ala prussava um ente m€U10'S ooc!'lificado. Com efetiro, oru

1 Mau.r•eria no or~·gina:l. (Nota do Trad.)

êdiçõ es Afrodite - DE FO RA PA RA DENTRO


Edições Afrodit ·e DE FORA PARA DENTRO
Jean Giraudoux Jean Giraudoux

240 241
era um desses espamhó~s qUJe vd!nham a Portugal fa.?H' todrus a:s fachadaSt, o Luís XV drus jruneLrus e o chiilnês dos
esP'ionagem sob!re a forr.ma como rucabavatm. aJd, os seUJS telha.dos lutavam .sem co·n!se:gu!i:r tocrur-:Se, recuaJndo sem
três rios, ou um poil.icda: e!I1Ca!I'T.eg1ado de à millllha passw- coragem os dente~x:Ios de~ste peramte o1s atruqrues dots d!en-
gem ~itar: Viva a guerra e vida à vida; ou então- a Rei·- tea.idos do o1Wtr10. Nrus J:"UUas a pli:que, a1s or!i:amça.s de UJm 8lliO
gini- da companhia italiana, amortecida pelas peles do dO!I"ffiiam no·s pav!iimemrt:os CO!m o bibe erguJido aJté aos
pescoço, dos pu~sos, dos totrnJozeO.os e ta i'nda las daquele ombro:s, pOJusada no pooseio a C!l!beça enonne que vol-
sHJiiO onde os amamJte~s .a pma;m, que usando o mesmo tavrum quando· wlgtllm crurro prussaMa. Co~ruda1s àis fiaiamÇaJS
bâton avermelhava os láhios e o canto dos olhos. Entre- das casas, ra;parlguinhaiS. nurus; entre o impllidJOII' e o
tanto., também su:rgliu um velhote de botlrus dJe el:ástJ:i.co amo~r:, m malils aJI.rba da:s Sia!Cadrus e sem quaJqUJer !imltenne-
que dmiSiiiStiu €lffi acompa!nhrur-mo's., chegando mesmo - ó di:ário IIlOIS Otlltr'o.s aJnJdrure~, .a1s v:os:sa's mulheres joven!S de
cúmulo da admii!I'ia;ção - •a :flaz€ir-lille parax e, a~ponibam.do forntes SIUaà.a;s, en11uiV'rudaJS de amar~elo e ve1slt~das de mous-
a :núin!ha espada., a peirgruJntaJ:r nurrn fraJncês que ignoraVaJ se!line, calçaJndo meiiaiS negiirus com ramageiilis e clm!péuls
os verbos, taft qua;l o teu, por que ra·z ão ela tinha a bainha de lfe~tro bralllCO•. Atmíi<.fus pell.o ruido, a!lgum;rus raparigas
C.Om ffiO'SS•!l!S. passavrum a ca~beça entxe aJS gradets do rés-do-chão e
- Guerre? BrutaliUe? - inquli~~a. assim, piThsliotooi(['laJS, só saibiam fechar os olhos quan~do
- Não! - respOIIlidii:a eu. Maia. para elas olhávamos. Se 111/0s a.pr~ilmá'V'aJmOis maJi1s•, fic•a-
De eléctr'i!CO e depois fum:iouiJJar,, afastando de.ssa forma vam SUirdrus - mruiJs rui!Ilda, ficavam de :r:espdração car-
os que só têm um tostão, e a seguir os que só têm dois, tada e mUJito páJl'idais. DepoiiS o noSiso cortejo, rutmves-
apenas coan os :rúlcos SU!bim01s até Alcânbalra. Aprasen- saJlldo ruas sem honra com papagaios em cima de cada:
tavas-me Lisboa ar;ranjando para mim um lugar entre porta a gritar-lhes sonoramente os números, desenhando
as pa~medras, no po1I1to ca1cwad.o de forrma a cada uma figurais de circunstância •em redor de cada local histó-
delas tapar a sua cha:miné de fábrtica. - fUilll!eg:arvam ... rico, um círculo à volta do pavimento em que 0 rei
- e depois. à volta da Esd:lr:ela;, .fu:2Jiais-me ava:nçrur em marreu, um ovall à vo!ltru do ba:nJco em que Pombail expuil-
cÍlreuJo até ao momeinibo em que o c'éu dos caJffipa:nJáJr:ios sou OIS jesuí~, cheg0111 à:s ool'l.m:a:s, ao 'IIejo. Debruçados
codncidi'a e era .p01Ssível e:u a\t.J'Iavessá-los ambos de uma na ba:l•a ustrada do rio, porque ele desi.iza ao rés da praça
só f,lecha. Po~rque me se!Ilftlia fa.t!igado - p01ré:m :Ill!t con- e é mesmo preci•so subitr do1i1s detg:naUJs prura embarcarmo.$,
dição de vexmos à tarde o castelo construído• de Clalllas mostravas-me o Vaosco da GamxlJ, o vosoo na'VILo-ailrrnJma.nrte
de pesca - , corudies'C·etn.deste· fi!nrulme.nlte em délsc& ax> cujos o1litcilaJis só .podem amd:rur de ca.valo ettn Lilsboa. · o
pOII'to. As grandes praças da tua cidade, CiO!lil mosaioos Adamastor que levava a férias, para a outra banda, um '
negros onduLados, parecitaJ.m regadrus a t1ma fu-esca:. Em pensio!IlaJto de fliJ:has ill,egíiti:ma~s - a1s mãe!S di·~i!a.m a.doos

EdiçõesAfrodite- DE FORA PARA DENTRO Edições Afrodite- OE FORA PARA DENTRO


16
Jean mraudoux
Jean mraudoux

242 243
já fora; guardado na mala o minúsculo vestrdo de seda.
a cho!I"rur, do ouJtro }ado do l'lio oruVIÍi3lm-se os parus a gritar Ao .OUJtro Olfi~iaà da mi:ssão, 1impla.càvelme:nte poosegurido.
de alegria durante a espera - e o navio sem ponte· onde hav:iJ8Js-lhe e%plliic8Jdo que 'IliUJnca se dá nada aos metniddgos
a trOIUXe-mQU!Xe oo despej•av8J!Ill as [e:t;r.rus de oobre que portugue·ses, apenas se diz «Tenha paci•ência!», e eles
comprum.hrum os :ruomes dOis •s essenta nruvi:os aJLemães con- logo param de foil"'lla brusca:, mend~gos que são, c101mo
fiscados para os vossos literatos passarem, mais tarde,, se lhe hO!Uvéssemos .indiicaJdo pela: prtimeli:ra ve'Z uma; re-
a enconltt~ar nei1es .núm€!I'O iguail de n01Ill'€is pOOtugueses ceti.lta dé Vtida.. Ma;s ele dli12Ji:a «Tenha pruciêncdla! » ao's ven-
pertJencentes ·aos vosso1s -po-etrus e oois. Poli' baJiXJo das dedores de jocnais, àrs :filor:istas, às v€1IlidJedoras de Jli.n...
olllidaJs briilhavam às vezes c.ompr.id.aJs 11i:stai~, 'Ús crurTi'S do guaàb, a todo,s aqueLes .para quetm a tua :frase er'a; um
e1stalelii1o que deportam um na Viilo para Rail1ilfax ou P&- convite a segui~lo, e então seguiam-no, com paciência,
nambuco; mx:mstrua.sos, também p.assav8J!Ill •b arros à vela esperando que ele soubesse· o português s'l.llf.ici'elll!OO para
de ~o~ :recutrV'aida,, oilho.s de cíclope pintados à fl!"elnte, lhes faJOOr aJ oompra.
e, não lhes brustalndo um, todos eles tinham doli.is. O ar que!ima.va, porém lambido po'I' lingu3JS de ge[o.
- Barcos romaJn.o:s! - dli2Jia eu. Os carros desciam a Avenlida a toda a velocidade, os dos
-Não, portugueses - d!i!Zias tu. a;ltos funcionários não Jtemilam a:s mu!Ltas e voiLtavam
Uma nuvem ocU!Ltaw.a o ·soil., desviava~se, Disboa fecha- em ZlÍgu!ezague em redor dbs camdeei'I'os .oentraJi1s. Arma-
va-IS€ e JaJbria;-se como um leque. Tudo o que !l'dl.aJV'a d3l tua dos com tubos de bOJ:Tacha, homens negr'Ois afa;ga;v8J!Ill
oidade de gesso caia !Illll'm ba!rloo do oaJi's. Nos paus de com . a mão .rus pallrrneliJr~ me1nos gocd8JS ; perg'Uilllteii-4:e se
b8JII1delira dos palácJios trenw!l·ava aquele atr que se agita lhes m~iam ar e expNICaste-me que as regaViam. No
em tredor dos s~smógrafos. Os cãe;s etspilrr'a.vrum,.heSitavam Rossio todos se aglome~ravam à frenJte do Clube dos
em meter-se pelo mar apimentado. Pa·ssavam os cortejos Chapéus Verdes, de pé ou sentados frente ao mostrador
das <mze harrus, eTam os :unliooi:sta;s em .cólera porque, do relógio da estação, ·porque Í8J!Illos passar à hora de
devli.do à guerra, tlfulhatm Sli.dlo aJs coodecorações acabadas iiilverno., do meio-dia prura aJs onze!, e receber e1m siesta
o que entre nós o Estado oferece em hora de sonu. Meio
de rest~bellecer,, e taJmbém a pena de mo:rt~, prura todo-s.
SOiltos da;s fachaldaiS oogras, com porbas dehruad.as rmrm
Era o corpo diplomático que metia a bordo uma das
cinzetnto. .a;zulado, ós :inúmeros relógiilas da cidade agttb-
sua1s três mU!l:her.es, os aditdios cantando a frase comum
vrum-se na certeza de que serlia preciso rodar onze vezes
de todos os hinos nacionais, os segundos-secretários tra-
o pooceiro maJio!r, com palragetm nas hor8Js e meia;s ho.ms;
.zetnJdo as o1felrtas da p.artlida;, já desdobrados os p:aJil.OS
e então, s01rridentes de €?qpectativa e volúpia na;s espla-
de linho azul para os cestos vermelhos, os tinteiros de
nada!s d01s cafés, lá estavaJlll todos os paiiS que ruo pôr-
campainh{L, 8JS Santas Mooalenas nuas de maJrfim, pois

Edições Afrodit ·e - DE FORA PARA DENTRO


Edições Afrodite-'- DE FORA PARA DENTRO

L
Jean G iMUdoux
Jean mraudoux
244
245
-do-sol levam ~as três filhrus ao :rnrur para ver jorrar o
raro verde. Maio. .dia menos um miilnutto. Erguiam-se os Ungua. Todas a:s ~vezes que me rupresent!Was a um. dos
binóculos ... Mielio. .dia.. O pollllteill'o mais peque1no recuou teiUS am.JÍtg1os, r:~pondiia com as mi~ preiCauções, os mil
apenas uma hora e os rel!ojooilros mete!I'am.-se pa:ra de!Il- escrúpulos necessáll1i.1os 1en/tre nós - palra ;ev~iJtair quaJI.que:r
tro, despeiJtados. Os pa:is eram vítMnrus de trliisbeZJa súblilta, inconveniência- falava aos desconhecidos como se e'l es
aJS fi1'has mostraNatrn-se mJiJmad!a:s. Chegadas nessa hoca estivessem, de nascença, ·s ozinhos no mundo. Tagarelava
supérflua, as :bralSilei!I"aos em escala sorriam ao tempo com avós e netos s.em deixar desconfiar que, pall'a o seu
da Eur10pa que as ai'Teootava f.leotindo-se como uma: grupo outrora se ter fo.rmado fora preciso haver um
cama de rede e, no fundb' de uma preguiça, dupla:, as fhl'ho ou um ge'DII'o dura111te um mMmto. De madru:gada,
orie111ta~; s de :soblranceil:hru 8:2l1.lll metb~das na ca;Leche fa;zirun 1 sucedia às vezes que um mendigo ,s acudia a sua artesa

o VleÍ'OUilo rodrur em àlirecção a nós prura; !llão ter a necessi- debruixo da mimha jalillela e então eu desperta'V'a pe1a
dade de voltrur os olhos. Nlllmru ;prulavra: 'como tudo saJbes, manhã num sobressallito, invadi<lo pelas mU!lheres do pe-
expLi'cavas-iille por que ,sarrliam aque1les serres soibocbos dli.tório do:s nossos domi1Illg1os sérv:LOs, belg~, ou rom8Jll!os.
aos o~icirui.s franceses, pOli' que ei:I1am assim dliv:ell"bildos e Belo ,país este l€íln que os maqui!Illi!Strus, os Call'Tega.dores
tristes, tagarelas e mudos, constelados de pedradas, e de piamos, não se tramJSifOii"lllJM'am -- a; arte peLa guerra
por que tal outro ostentava ambos os seios a descoberto: consternada! - em seres desgraçados e f.ranmnos, em
- Mrmdrun:a.s ... ~ era o que dizias. que as mulheres nos escdtórios e nos €1lootr.1cos não
mrurcavam o lugar de homens ausentes, em que mUII.her
de luto a'HIVliado é mllll.hell' de um. desaparecido, em.. que
é prec,iJso Vlivermos como há três am.os eu Wriia vWlido num
ParaJ mim, o teu país ameno era o primeill'o aonde país Olllide a morte não existe, meirgU!lha!lldo o braço ao
não tinha havido guerra de há dois anos àquela parte. Foi acaso dos CO!I"ações, faJl.am.do do pa;ssrudo., do futburo, como
preciso tempo para reencontrar os meus olhos de paz, não nll!ílna; :terra de CI1ilam:çrus ...
sentir em mim a aJlegri:a de um filho em período de licença,
- Fazei colllJtim.ência aos ofidais porque nos traoom.
QU de ·u m ferido foll"a de pe!'l~go 's empre que uma velha
a guerra!
ria, sem..·p re que surgia Uim mdiiOSo transetiiil/t:€. Pr'ooipi-
Desta forma: nos apresentavam. aos oficiais da vossa
tava-illle à montra subitamente rodeada dé' gente, como
tropa os três imgleses e os três fmnceses da miiSSão. Era
se fusse questão de dez mJiJl ,prisiiooeljros,, como se fosse
nos campos de exereicilo usados pela; e~ola do soldado,
questão de ruma SaJim!t QU!elllibiizl reco!Illqu1Sta.da, quando
ne sse.s locruiiS que em todo o .mundo se prure:cem UII1S com
1

afinaJI. IIl!ão passava de um cão de pOII'ce'lama a mexer a


os ootros como dOIÍJs crâmlios crulvos, ~pois neles se vê a pró-

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Edições Afrodlt ·e - DE FORA PARA DENTRO
Jean Giraudoux
J~an Ginaudoux

246 247
pria trama do mundo. Era em. Tomar 1 , entre a1 p8ipe- dres, nome de fruttos, pessoas - porque am8Js os nomes
laria e os cl<ruustro,s hi'OOlliS hrubittados }JOir a-be[has, :ilnoha:- do teu povo, nomes em que não eX!istem memos de cinoo
d!os como se todas se tivessem encarniçado contra aqueles apelidos de família - e o coroneJ .fazia uma vênia.
mái'!lllores; ao1pé drus trlinta ti.gr:ejrus de Braga, úndk!a enitre - Comandante. . . - respond:iw-te ele, pronU!IlC'ilam.do
·8!8 vossrus cidades em que não é chinesa a sombm oos
tarrnbém uma frase de pall. aJV:ras •rubstractaJs; orutra com
casa:s projectadas na rua, na pra:ça em que os maTCOS nomes de CÍ!d ades, ago;ra frruncesa;s; e a:gitava;-s~, fiicava
mit1:iárrios da: via romana, próximos U!Il:S dú<s OIUtros - e venne:lho à .p a!awa JOinVii:ltle-SUT...Je-POIIllt; aproiV'avas oom
ali:nda ma~:s fel'ÍzeiS do que 8iS datas l·albilnrus suas carutem- a:ceno's de <!wbeça e qwrundo e'le se a~ealmaiV~, no ·Dilnail do
porâ;Mas, todas .elas :telescopadas- não se ~o!IlJtira.Vam discurso, v.dlt:Jando..te p8!ra nós, dirzirus:
espaçados mais de cinco metros; em Év01ra,, onde os - O corronel agradece-lhe os agradecimentos.
chimpanzés. com menos de um ano .são metidos em inter- Tudo se pa;ssava assim ffillta".e vós e devollvi~s-ms a
natos, já que' no re;sto da Europa sucumbem. A bt<i,s pail.a- palavra amável dep01is de ambos terem 1Í1Illchado em ex-
vr,a;s, 'OS ciVJis descoibd,a:m-se e nós tilrávamos as mãos dos ces'so, e se terem esgotado, tal como na ve[hice vazios
bo~sos para provatr já não se:i que tinocência, que não
se devolvettn, ,auwa. Viez, os pequenos sentimemos que em
rucar~ciávamos ruli, por .exemplo, nenhum revólver. cri'a nça nos cODJfiia,vrum e fora;m pela nossa vida o anlOr,
O general :i nglês, porém, desejava felwi'tar os vossos o .orgu~ho e: a amizade.
oficims. Era ele quem comandava; o exércilto bri!tândco V'ÍJsitámos então a.s cruse.rnas, os of.iici:a!i·s olhavam
em Tsing-'l'ao, e apostara com DobeH, dos Camarões, embeveciidos uns p8ira os outr.os qUJrundo um resetrVislta
em como seria; o primeiro general inglês aJ entrar em aparecia tr8.1Zemdo lliiil tTI8!vesseiilro ·relnda,do1, 01111 lliiil oavaJ.o
território ·alemão. Fizeram-no ambos no mesmo d'ia e à se chamava Zeppeil!i:n. As m'i'am!}as persegui'arrn-ms com
mesma hora mas, p01r camsa da latitude, o nosso foi pro- os jornais de Lisboa que taJrjavam de negro sempre que
clamado vencedo;r. Benévolo, respeitável, apro!XIimou-se um qua'lquer se1n:ador frruncês., TrouHlot, Na!quelt., morria
do co:r.onel po!I"tuguês e foste tu ·que~m serViilu de mtér- na véspera; ensinavas-me a ler o soneto· que eles publi-
pr:ete. ca;wlm à!i'a a dia na .prim€iirn pág1in~, a'IWoveitamldO o que
~Diga ao co;ronel que lhe agradeço! - pedia ele. a tua língua se p8JI"€'Ce, tpal8JWa a p.alaNra, CQID o meu
- Coó['ICliilcl ... ____.. começava-s tu em portugru:ês, indo dialecto limousino e, de ali em diante, já sabia como se
por aí fo;ra nU'ffi discrurso dmetnso em que nós captávamos diz Ulisses em liÍIInousi!no, e Agamémnon, e Desdémo~n.a.
as mai,s vruriad8Js pa1avvrus, o nome Roma, o nome Lon- A estrada 1ad~:aJV-a: oca o mar, ora o r~io no seiU a;qued.uto,
ou ~então debruava-se de muro!s 3J1tos tfuraldos ~calda hootó-
metro com jrunelas gradeadaJs cujas perrstiam:rus os campo-
1 No- o'rigina;l Thaanar. (No·ta do Trad.)

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Jean m~9Udoux Jean Glra:udoux

248 249
neses abri1Mn, pa1r1a mos ver. VaJranidas, muiliheres a :fall'a- da Améd1ca se po;vo.avam., todas fugidas dos barcos. Eu
!I1em ao rwpaz de pé, no me:io da rua, prollltmcimdo o s encoiilrtrava-me exactamemlte no ponto, o ma;is lollllginquo
S€IIll o deixar mo~hado e, ao sajilr de Eispiallllhia, subiJtamemte dos pontos, a.J que o desejo da criança me conduz.iira, e
li!berta e frrurliC'a , esta letra tocawa corno se uma ;pre- recuava dJez centímert::ros pM"a te não tocar, soibreltudo
tensão e wn puidOT tirvessem :nelas, muilheves, de:s vanecid.o. com esta pintura fresca, um dos paim.éi~s da mirruha pró-
Nos dias semiúteis, assim apelidam por aí os sáJbados, pria vdda.
os :rrossos u.utomóveli:s ti'Illham de mrurcaT pass"O - porque
o teu p!lJis é aquele, nru Europa, aonde marls veze·s se
mulda de crusa - atrás da fi!la. dos casaiis tagrurelas cujos
móv.eis mrui'S ínfimos eu f:ic!llva a oo111hecer até c'onsegU'k De repente, porem, e através de um ul:uJair selvagem,
ultrapassá-los, por fim, enqu:aJnto tu, os seus mais escon- a sentinela de um depósito de arma;s chamara à guarda
didos pensalffi€\nltos. Tudo o que eu devia; no ~i,ceu mventalr os S€1U!s quatro .soldados que se prec1ipitaTam do posto
sÕ:zJÍllliho 18.3:i ~estawa, OIS palácio:s de arcebispo oom as e Ms apresentaTam armas. Olhava-os b€m no rosto,
cúpllias rosadas e seUJs jardii~ns a provocaJr ruma il1usão de retarda1ndo..me em cada um deles e, mruis fàci:lme:rute que
óptica,, as lliÍlnfws de .seii!o ÍlnJC'hado pela;s camaJda;s 8Jillu:ais nos sQildaidos IÍinteioros, nos oli.to meios soldados procurava
de gesso, os miihos que a;travalllicam os vrules, o rio e!Illorme a bel~prazetr as mi!nJhas semelhrunças da guerra, as mim.has
bebido :pela v~ante e vemwlho ootre os diques de por- recordações da Frrunça. Depoi,s, já r8V1hrta a sdbra'IlJCelha
celana e os euca;liptos,, o m!lltaga.il de bamaneira;s e ciprestes de Artaurl, r001ncontrada a têmpora de Dohlero, distin-
com as suas alegorias de f,a iança; a Poesi•a a alimentar guido trumbém nos seus oJhos o pa,rentesco com o mar-
um ganso, a Retórica frulsa;me:nte aco~hedoil'a, de braços f·im e o ouro, fruzia-os des,C8!111sar a arma e e'llltão ocrum
abertos mas pe~rnas cruzadas; e a outir8J com arllJilm:ali!s de eJles, de norvo ruglomerados, quem nos rodeava para me-
máiilllore aos quais o Tempo, aJrl. encl1ausurado um ins- lhor nos v&.
ltrunte, ilnfliogira trato iguaJl ruo que de si já haviam sofrido - São hora's - dii'Zlia's tu. Abandonemo.Jlos!
as estátuas de Vénus ou Ndobe,, o cão sem ca;beça atra- Sempre contfundiste ,a;brundol11ar e d eixar., como Miás
vessado pehvs flechas, o mwcaco sem os braços, e do subir e descoc... AbaiJJdo!náJino-los, po.is,, como ex:ilglias,
rirnooeil'onte nada mais que o dorso. Paira engam.rur não sei no seu crumpo verde e bralllJco, abam.don:ámos rus pontes
já que piratt;a, enJtre oUveirns e paJ1mas. haV'iam os artli~ junto aos lárices, a;s passagens de níveil gua.rrdadas por
lhairos pinrtrudo de ,a zul o fa~ro~ que outrora era: vermelho; m u~heres Íllldigo dehrua!das ~ vermelho., peil"to das !igrejas,
e as árvore,s, pressentíamo-lo nas ramagens, só de aves aband.oil11áJmos n'Uima jalllela: ro·sada as dull!s gémeas de

Ed ·i ções Ahodit ·e - DE FORA PARA DENTRO Edições Af r od ·i t e - DE FORA PARA DENTRO


Jean Giraudoux

250 A PARTE 250


Oeiras 1 com laços verdes, e ainda· a tempo descemos
ao alto da Torre de Belém, de lá podíamos ver o sOil! no
meio do estuário e um pouco. mais à frente o horizonte
- S€1 nos. debruçássemos - sub:h·, subir e deS·3ipairecer.

Setembro de 1916.
(Aàorable Olio)

Elvas
JEAN·PIERRE GIRAUDOUX: - A 9 de Junho de 1940 Jean
G!raucloux conduzia o filho ao regimento de infanta;ia de
E hrooco-pUJro tudo o que · deve ser bramco, é rosa- Dijon onde se encontrava mobilizado. (Jean censurara a
·ros·a tudo o que deve seT rosado. Tudo o que é azqi nas Jean·Pierre o facto de ele ter apertado a mão ao coronel,
gesto que tinha como pouco militar. uMas foi ele quem ma
casas parece :recortado em hori'ZOil'llte, e 8iS jalllelas nessa estendeu, papá!n) Nesse 9 de Junho, um domingo, enquanto
fachada azUJl são as pír1imeiirras que vejo ;oo céu. Aquli Suzann~ 9i.raucloux se tomava de um pressentimento e pro·
curava mu!1lmcnte um fotógrafo, Jean e Jean·Pierre Giraudoux
está o úDJico paás da Europa onde a cor não desbotou vlam·se pela última vez. I A 19 de Junho de 1940, quando
dep:ü,s de andrur um ano por mãos humanas. AlViejam Jean_ Giraudoux, ministro plenipotenciário, se encontrava em
Bordeus com o Ministro dos Negócios Estrangeiros Jean
os ma~rcos a toda a extensão das estr·a das. Um homem Pierre desertava em llayonne para responder ao ap~lo do
armado de pincel espera cada pedira que surge da terrra, G.encr<tl De Gaulle. Atravessou Espanha, permaneceu qulnl&
d1as em Portugal e foi apresentar·se em Londres ao General
logo à nascença ... Aqui está Portugal. .. Os moinhos de De Gaulle, depois de ter esperado durante algum tempo
vento na linha do·s montes estão ·Caiados como f.a;rói,s, oo encontrar·se com o pai e ter com ele uma explicação, alis-
lllndo·se nas Forças Navais Francesas Livres. I Entretanto,
herdades como casaJs de .pescador. Ê toda uma pralia com Jean Giraudoux partia na companhia de Suzanne à procura
a sua iluminura marítima o que Po:r.tugal desdobra neste de Jean·Pierre, e escrevia o texto Pol'tugal cuja publicação
preparou pouco antes de morrer e cujo prolongamento se en·
planalto que o solda à EuTiopa. Aliás, tudo em PorUu:gal contra nas cartas que então, e mais tarde, escreveu ao
filho ...
é como se ele houvesse decidido não aJcred~taii' IIlla Europa
nesta: hora de catástrofe, isto sem o significado que a (Nota Liminar a •Portugal•)
linguaJgem corrente oferece à expre~ssão, e rupoorus niU!ffia

1 Oirrus no orig'i'n~l. (Nota ào T1·ad .)

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EdiçõesAfrodit•e- DE FORA PARA DENTRO
Jean GkatJdoux

251
lingua de me:táfOTa,s <Hgna do seu drama .. . A Europa
é uma tempestade ? :mt~lo entãio nestaJs serrrunirus à espoca:
das jangada15,, dos Illáuíra:gos, dos nadadores, e paira que
o abordem co~nvém fazer uan 'Siinal de cada ca.sa, cada
torre. A Europa é um cego Leviatã? Pois muito bem,
vamos reanimar-lhe a íris com e·scarlate e anil! Comigo
sucedeu isto. Há dois meses ausente, foi-me a vista
devoJvida cam esrt:e ouro que: comtor:n:a todas as murrulhas
de Elva;s. Há doils me:se·s que o mesmo clocão sem clruri-
dade me !ilumin~ava, t:i:nham sido :roru.baJdos todos os meus
vi:traJis. 'Tii111ha; visto uma Toledo glra'Uica e turvru no que
se chama nrus'oor do dita, ou púrpura, onltenn uma Ãvila
pardacenta no que se chama meio-dia, ou açafrão. Aqui
e~stá hoje o Portu:grul que me devolV1€U a vitsta .. . Ainda;
não sei que país <i;rá devolver-me o tacto, q ouv:idO, o
paiada1r; a vdsta fo,i: e·s te. Vejo o gaào de lfertO. maror dio
mundo nesta :peqoonaJ igreja. Tem pregos dorurados nJa
c:oded!ra. Neste cOJ'Idei.To preto aJinda wgor,a nasdido, e que
lambe a mãe, vejo dois olhos de ágata como os olhos
de cab11ito que 's e vendem no México para dar sorte. Vejo
o primei:ro olha;r de um c01rdeiro. E tarrn:bém é decilsiva a
contraprova. Se fecho os oThos deixo de ver, já não
vejo as duas !Pailmeira's entre dois teixos espantaJdos nJa
própria; i 1mobirliidàde po'I' cada um deles porssuir sua palma
a tremular; nem por entre as pegas este pássaro. verde
e azul. Derixo de vê~lo desenfreado em puilo·s msólitoiS que
nos fazem crell" que tem ru.ma ·a sa verde e outra a.zul. Vejo
que é impo,ssível dUJV'ida.T... O que irá suceder logo, à
janela, qurundo em vez de envolver a 'CaJbeça na il:linta
n~ctuma, oomeçrur a distilngulir todas 'aJS corers da ill!oi:be?

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Jean Giraudoux
Jean Gireudoux

252 253
Lisboa largaJI'arrn. Se depararunos 'com um tramooUJnte desaJCom-
pwnhado é porque nião ·chegou da Europa, é poii'que va.i
para lá, chegou d:o Novo Mundo, pensa sÕZJinho, faia
consigo mesmo, é gémeo de si própr1~o, o seu espelho.
Carrn:i!Il!ha com .passo implacável, que não 'CODJsegue todawia
Ago!I1a é Lisboa, oode SaTIJto Anltónio de Pádua :n:asceu,
destru;i,r estws Ligações que o exH:io e a renúncia cons-
onde fui melllJiii10--de-iCO!I1o nU!lll COTO que o ter!rMnoto pou-
pou, e onde .poll' sua graça; tudo hoje se reenJCOntra. troem, nem mesmo os dois velhos ... De repente pára,
Encontra-se no Rossio tudo o que a IDurorpa peirdeu ou curioso, porque avirvaJda pelas desgraças da Europa
rubandonou. E aos !PalreS, não há que e~sco,lher. Se queTe- a Miss Europa em pe·ssoa acaha de ro~a:r por ele ves-
mos o mawr rug1io.ta. da Hotlamda, aí está e:le pelo b:mço tida de luto· eurorpeu, .sruia vermelha, blusa branca, carsaco
da enf.emwii:ra; giDgueja e t.ropeça, ·não é possível sepa- a·zul. Segue'-a com o1s ·dlhos ... Segue-a ... Não tem qual-
rá-los, não podellllOs .tê~o a sós. Se queremos o que sete quer hipótese. Também ela amda com a fidelidade, nin-
vez'es dirigiu a Frrunça, aí está ele a d!Lrligir...no's Ulill silll!al, gufun é capaz de sepa:rá-Ja1s ...
carregando consigo a aicofa da filha toda tensa de A praça está chei'a. As pomba;s drcularrn por ellltre
brocados e renda feita à mão, como ruma ja;nela espa- as nossas peTillrus, rtra'IllsfO'rmaraJm-se em a.ves tre;padoras.
nhola quando ,pa!ssa o rei; .ninguém os serprura. Uma tem- Aqui e wlém di1stinguimos car~s coohecLda1s que Vlimos
pestade num barco não COIDJseguiu fazê-lo. Não é possível em PM'i's, Vii,eTIJa, BetrHm, wlgumws dcias dir.i:gem~nos um
separar este chefe do exército polaco daquele escocês sorr.iso sem ·31proximação, como ·se os corpos que as levam.
c01leccLonrudor de desenhos, esta hnperatriz da:quele cam- lhe tfossem e'stramhos ou seguis1settn uma 'braje'Ctória; rim-
peão de tiro. Ao rucaJso dos eniContros, formou-se uma placável; ·outras oiham para nós, impassLveis, como se
.série de gruJpos e casamentos indrssolúv>ei1s para uma a:Credlirbrus.sem num ·sósia nos~, como se ne'Site mundo de
nova arca pobre e rica, sobell'ba e cheia de fealdade, decepção prefe!I1ilssem wcredJÍJtatt' em ·sósias dos amilgo's,
a!I'i:a>na e judii:a. Indissolúveis ruté oo momento em que dos inimi~os, dos ·indiferentes, de preferência aos pró-
sobre wm deles o visto pousa o dedo, como se fosse um prios amigos ou mimrigos. Sem comprar, sem se' ueres-
dedo do demdlllo. Esse desaparece então e OtS outros SaJrem, viio o[hrundo paira sósias de jornaJi,s, rpwra sósi'as
ainda mru~s se unem. Nnnca se dão notíiCiirus. O rp~imeiro de si mesmos 'Illos espelhos. De fructo, é esse o remédio.
dia é dUii'o, mas depo1i:s habituamo-nos. Parece a morte. Sendo sósias de ,gi mesmos, ta.mbém só have:rá sósita;s de
Ali estão dodls velhos de mãos dadas; um veio de
dore:s, pobrezas, aJilJgústias... E suportável. Apena;s
ústia, o outro de Mónruco. Em Bilbau foi oode pela pri-
cflirunçll!s e cães difidlrrnente se traDJsformam em sósiws.
meira vez deram as mãos, e depoi1s di:sso nunca maü1s se

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Jee·n mraudoux Jean mraudoux

254
Sem eles hem d~reissa chegaríamos a firca:r tranquilos mesmo o ,nlav:io' de Vasco da; Gama em tam:a:nho Ili8Jturral ...
nesta sósia de viilda! ... E e~es soibem a toma:r chá no castelo de pro'a e no cama-
Quem mrui;s alto f,ala; são os judeus, não hesitam rote do almirrunte ... É prerci:so não perder tempo porque
nos oruzrumentos, •imter.pe~am em português, exolatmam têm todos muLto que fazer ...
em português «QUJe tempo tão bom! Que bom vinho Todo;s os que admini1Sitrwvam a Europa, os que dird-
verde!», tudo para fazerr crer, com certeza, que estão giarm as suas fáJbrilcrus, ou escrev.iatm as suas tragédias,
em sua caiSa e oito ruas de Lisborru brustaram parru os ou eram os seus ma;i.ores pintores, dão-se agora à paixoo,
tr·a nsformar em judeiUs IUJsriJtano·s, a nobreza; dos judeus, que é o seu único afazer, de encontrar na cidade os mais
esses que votaram a morte de CrJJgto, Passam rápidos pequenos tesom"os da vida desruparecida: um no;ve[o de
à frem:t.e do aUito'Crurro que tra•n sporla judeus ·s uíços atra- seda, uma obra de Proust, papel de -lustro, eM-bom para
vés de um itin:erário·clandestino que contorna as cidarl'es os dentes, pantufaJs com forro. E tudo, ~~sso aqui se en-
im.d:i scretas, que aJO pre·ço de cdnquernta léguaJs ev:Lta uma
1
contra. Uma generosidade sem limite~s anima as lojaJS,
encruzilhada onde doü> catmponeses ati·ram pedras aos os fra;scos da montra não são fictícios, a roupa é para
vidrD's, e do qu:aà descem, com olho claro e caJbelo morto, vender. A lã, o algodão., -a borrach~, o peltróleo, são· pa.ra
seres progtrados que rui'nda falam francês, •im..glês, ail.ettnão; quem gosta e os quer. É ·a qui desconhecida a; desavença
esses que votaJram ... terrível com as dquezws mundanas; o amigo do a:zeiite
Hoje há ta.!I'de de gala na Exposição do Mundo Poc- circula com uma [rata de 'cinco 11tros chei:a;; o atmrígo da
tuguês; atravessam ru muillbidão delegações de camponeses banha de porco com ·caJi~a;s e-speciais para ba!lllha, a trans-
em trajas da provínci:a,, e os emignados do dira seguem bordar; e em todos o:s rosto·s, por cima drus camad'a!S de
o cortejo que os leva a01 coca1ção d'o único pa:ís em cujo amsiedalde, lut~, injúrias, como ,s e fosse uma paz suprema
passado o mar foi liv:re. Nesse mar só estão ragora; um espalha-se a serenidade de estarmos num pais que tem
baJr'Co· grego e outro ja~pc:mês., ambos oom a lotaçãJo es- algodão e H'Illha. Onde desde aJlguns meses e:xliSte me1sm.o
I

gotada um mês antes ida partida. Em Belém, aJs moillJtras a liberdade de esco-lha. Podemos escolher trinta espécies
da Exposição o!fer.ecem-nos todo·s os modelos e Ó·s dese- de sardinhas, três de haJcalhau, a:zeitt.e desta e dlaque:la
nhos das cara:velas de Hein~ique o Navegador. Só temos qurulidade, lagostas e lrugostins e os diversos autores nas
que esoo·lher. Em placas de· Vlidro e em corte, tail. como os livrarias. AqUJi. está o homem mai,s fantá·s tico do Ooidein:te,
barcos nos estaieli!ros, a !caJrave:la de AJibuqueii'que prestes pela p11Lmedra vez coln!sigo vê-1o calmo: encontrou o dental
a largar i>ara Ormuz, a crurruve:la de Dilas prestes a largar si'lk que a Europa lhe recusava há três meses. Aqui está
para o Rio do Infante ... Os emigrados debruçam-se como o mais inquieto dos esc~itores franoeses que me sorri
para escoJhex o caunarote. . . Fundeado no caJis., ~~ste num sorriso de mãe feliz: anda grávido de Uim quilo de

Ediçõ •e s Afrodit ·e - DE FORA PARA -DENTRO Edições Ahodite - DE FORA PARA DENTRO
Jean Gkaudoux
Jean Gkaudoux

256 257
açúcar de cana. É nesta busca de insectos que o dia se chegam atrasados, no ma:r como nos céus. Não é uma
passa: o órfão eDic<mtra a manteiga dos Açores., o ban- surpresa o que nesta manhã traiD:Sf.i.Jgura; a a,tmosfera
e as lin:has, mas uma deoi:sãQ. Uma deoisão d~ pró-
queiro en'c0111tra o champrunhe, a ga..rvida aJama:res verme-
lhos para cha:péu, o aleijado 'srupatos de pé manco, a avõ- prias. .. A grande v<mtade está ocupada no.utro sitio
quatlquerr., ou distraída;; nada maJils fáci[ do que aJi.nda
zinha botõe,s para roupa interior, e este zumbido à volta
d()S destroços é a a1egri.a da abelha que se vwi estendendo am'editrur no verão. E 'a s banhistas ainda acreditam e
ooDiti:nua:m a ,gua; luta nas praças dos quatro ESitoiris com
como insU!liim:a pela desgraça dos homens.
os polícias encarregados de ·rus surpreender, um segundo
Feli'z, li;geli.tro, também eu estou na Rua db Ou:ro que
que seja, com a peça 'SU'[}eri'o r do fato de ham:ho S€1[Ja.r:ada
vai dar ao Tejo.. EilJCO~ei., aJtacadores aJmare[os na me1Sillla
da :peça de bwi:xo ... Um aJneil de peU.e à vista e é !logo uma
loja onde aquele que eu pr01curo trocou os srupaJtos g.iig an-
co.rrida e a mU!lta.
te~scos por outros à medida. Nada mai,s simples. Tra;z;ia
os pés em sam;gue, tirveram de Eevá-lo alii de Packard. . .... .. .. ... ... .. . ··'·
Não tinha dinheiro para os pwgar e deram-lhe dois mil
escudos. Não ·srubi:aJ oomo d:ilzer pés dorddos e c~alos em
:português e o maJior escritor de Portugal soprou-lho ao O milagre de· Viseu
olurvido. Ao primeiro olhar viu 1ogo o par de S31patos que
lhe conv:inhaJ e o caJi.~eiro vendeu-lhos sem qua[quer
objecção, sem ruzeéhrme. Um .c aixeiro é pa.'l"a ,i sso e o A noite cruía em Viseu. Entrevi-o da com osse!IT~

caixei!I'o que não é imp!ingi.d,o,r não é nad8..! CaJlçou-os logo. seu:s muros, as suas cores, a;oredilbando qoo me ,prepara-
Agradeceu como COnVIill'ha, e:stelndendo a mão a;o empre- vam a noite portll!guesa; no meu derraJdeiTo dia em
gado, à empregada que se ap:r'O'Ximara para ver, ao PorlUJgail. Eimdos coan palmeitt"rus, capel.a1s cor de romã,
patrão que nun~ru senti'l"a tanlto contentamento na; missão vibe:i:ra de luar, cemkio e luzes prestes ao adeus do
de vendedo,r de sapatos ... :país na sua própda língua. Foi uma tfraJSe portuguesa
a que ontem, à milllha partida de Lisboa, do passeio
me gdtou Ma!Iluel Be:ntes com qu€!m eUJ nnnca frulara
Monte Estoril, 21 de Setembro smão francês. De quaJlquer fo'l'lna,, o ruído do motoil"
!impediu que ouv'i,s se o que ele me dizi:a, assim, no seu
ve:rdadeiro aJdeus. De Vi's eu esp€!rava essa lte!I'nma es-
Hoje é out01l1Q. Desde oDitem não houve tempestade:,
tramgei:ra, mas num só !Ipiiiiliuto a noite ex.tõngUJiu os
n€!lll frio,, nem vento. "É o mesmo so~ a; meSIIna calma
'
mas nada I"esta do ve~ão. Os sobress8J1tos da estação
' miradouros, as pall.mas, os ca.ilvário-s, e nada ma.i,s oresceu

Edições Afrodit:e - DE FORA PARA DENTRO


Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
17
Jean Gimudoux
Jean Glraudoux

258 259.
aJlém da~s sombras e rumores de uma qurulquer da,s nossas _por i-sso, única: felilcita:ção que em nome da mÍi:llha pátria
provinc:ia.s da Firam:ça. Nem guitarra, ne!m fa!dos. Vliseu
:r.ecebi ean quatro meses, mas, ao que parece, se não
descolorida ressorna esta n'()lite como a; mi'n!haJ prefeitura.
. me abraça é .porque já .p8Jssoru todo o teinpo a da:r-me
Porque a fruta é a me'sma, idênttco o camlta:r do ga!Lo às
abraços, se não pede nenhum papel é porque já saJbe do
nove horas, 1iguJall o a:juste dos postigos na fachada, a
. meu nome. do meu naseiment<l, se .n1ão volta: a dl!halr-me
escola dos COII'neteiros, a11ém da; 'equivalêillda que à se:ri-
é porque sempre me Vliru. -
tinela druqu:i corufere o gr.itto do nosso vendedor de
laJI'anjas, ou faz r.anger a nora· como o tomador do café Em vão .procuro verun:im&r em mim o -sentido da v.i-a..
que o nosso merceei!ro .teimaN8J em pvep~ar de noite. · gem. Cada homem, .cada; mulher, 'Cada cl'li:a!nça, quwisquer
Subo à clildarle. QU!e:r'O ·apamhá-'la em flaJgramrt:e 'deiLito da; que sejam o ·s eu tr.ajo e t ip·o, não me entregam nada de
su:a poiLidez e fraude. E ,8JpaJILho-a. O ruído dos passos si mesmos e, pelo corntrárj'~ tudo me enrtregam de JDJim.
do no:sso ipll'·OCU!II'a.dor, e do nosso director d8J Sodedade lndlllbitàve!hnente me ooceruo numa dessas noiltes em
Geral, di!scutilndo VaJléry em pleno ~sfa1to da Place du · que a nossa própria vida olha para nós; o tempo é dll!l'o,
CentenaiTe, é feito aqui por dois estudantes de Coimbra .: a -semana cruel; para que o confron:to n-ão signifique
com ,capa e 1brutilna qu€1, nos mosaicos da Praça da Repú- um suplemento do maJ., esco'l heu para me olhar esta má-s-
ibli'ca, talvez se enrtx~guem a debate :i!dênrti:co ... Dirigem-se . cara que -suavá!za: o arrependimento e a ce1nsura, oilha
paTa mim. Olhaim-me ... Declara-se e~tão o milagre de para mim revestida de suawda:de e óistrli•bud.u-~ por cada
Viseu. uma dessass pe~oas -que .não me <C_OIIlhooem mars têm
PeiJ.a piliimedra vez me encontro nesta cidade, pela para ~m o sorniso, o desafogo e o desapego de quem
prlmed,r;a v;ez eu vejo cada 1l!ill dos seus hrubitantes, e o · t udo sabe.
que me .submell'ge é a iooimidade. Não que o ,olhar dos V:ieeu é aJSsim rpa!ra: todos os visitantes; !recomenda-
tramseurntes evidencie maiiOII' benEWo[ência;. Na sua no- ram-me que foss~ vê ia como -se recomendam os loca is
breza, todos os portugueses olharam sempre os viajantes ··de eco., .os mia.'adoocos; -será a cidade onde cia'Clillaan-os
da guerTa collllo se ~ossem d~ pa;z, como se fossem Livre1s, -num conhecimelllta uniVersal de lllós mesmos? N o fim da
:dicos e felizes, ilnvejá'VIeis, 'como -se v1essem wqui vê.Jos, viagem em que descobri· a cidade que não distingue os
furla:ndo.-se às li:nconcebíveis alegrias e ao rpall'aíso da judeus, não distingue os pobres, os vencidos, PortugaJ.
Europa, num aCeisso de simpatia que roçass~ o sacrifício. · otferece-me a cid8Jde onde o estrrungeiro é aài·v iado da opa-
A gente de Viiseu riJião me rubra:ç:a como os arrnligos de cidade humana, . onde é transparrente, onde os seus se-
Li-sbo8J. Não me pede os rpwpéi's como o rugente da poJícia. gredos vagueiam ean ·J:icençw .p elos rostos dos cr1a:dos de
em Evor:a, para depoos ler que oo:u :f::mTI!cês e me feHottar crufé e das cnia.nç8JS;, das :faces dos homens - que ne-

Ed'ições Af·rod•ite - DE FORA PARA DENTRO


1:;.€ d l ç õ e s A f r o dI t-e - D E F O R A P A R A D E N T RO
Jean Gireudoux.,
• Jean Gimudoux

260 261
lllihuma portuguesa anda fora de casru a esta hoca- e ·
·de padeiTo que voode bOilos na ~crópo:le carregando, para
ornde ele não e!stá condelllJado a embaJter dte em0111tro a
aJnU'IliCiar, numa buzina. de bireireleta, e interpela um per-
todos como ,se fosse uma denegrução de si mesmo, e uma
sonagem todo barba e arzedUiffie, também sa:be que €!U,, com
ignorância. esta ridade, mandei à merda um ministro ... Um bo1o CSJi
Porque .os de VisEm não -srubem apenJas rcomo sou bom, ' Cer.tinho do seu prato para a minha mão, aJgar.ro, pago,
ou mau, cobM'de ou corajo·so. Também sa;bem dos meus · ·como-o, é o mH.agre de Virseu.
ructos maJis ~nsi:gn:ilf.icantes neste começo de Outubro, e · À med!irda que voru subindo também sobe .a minha
mesmo à Juz desta lua o sabem. Este correeiro que lê o idade. Os pdsionei~ros, que através das grades da janela
jO!l"llal porque desconhe.ce · em que dirstri:to Salazar irá passam cestos acllatB!dos e sustidos por ·c ordas ornde as
&ssistir às m:an:owrus sabe, oo oot-anto., que eu vou ma.is mullieres deles a;corndiciornam cachos de uvas, cavalas
0 meu prui pe'scair caraiDlguejos no Naho:n. Porque as ·e quedljo, hem sabem que a prisão me conhece, e os pe:r-
pessoas de Vi:seu conhecem o· meu prui, e o pai do meu pali, cevejos também, que sou um irrmão. O sacristão da sé,
e aquele co:rreeiro chega a ;ter oonhecimenrto da existência ·que é obrigado a descrevê-la: porque o eSCU!I'o l'he proíbe
de um ninho por entre a hera do seu túmulo. Se o Illirnho '(}Ue eu lá entre, p&ssei:ru-.me à frente de mruraJV.H has
foi felito por um telllbi[hão ou melharUJco é que não, poi~s ·obscuras a que ele dá uma: idade, ·Um claustro de granito
mesmo eu só de inverno dei com ele. E aquele senhor ~rnv,is~verl que é de 1543, um impalpável ba;ixo-relevo
que paJSseia cOIIll um taco de 'b:Hhar., bem sabe cOIIllo pe'lo framco-português die 1567, mas tudo paira me dirzer atra-
sillêncio da noitte aJtirávamos à água a crurne das redes · vés de tai!S datas que iiTão ignora o que foram o meu
lagoste:Was e as rc orujas passavam baixo paira capturá-la 12 de Julho de 1913, o meu 29 de D~zembro de 1920,
no voo. E esse Sr. Crumões - tem o nome na faChada e, se a candeeiro eléctrioo se digna mostrar-me o :vetá!bulo
e vejo, portanto, que não ~se trata: daqueloutro que em que o rei-ma:go ne'gro foi certa noite ~subsbttuído, nin-
escreveu Os Lusíadas - bem srube como se apertava de guém sabe como, po!r um chefe índio do Brasil, é para,
amar e desespero o mEm coração pelo caminho que nos ·muito simplesmente. me dmer que há mil8Jgres em Viseu.
levava ao Nahon, perto do domínio chamado Émile, po;r Os transeun:te:s são cadw vez mwis n;umerosos, toda
causa de um cavallinho bra;Il!co que ali haVlila e às vezes a minha VJida se aJgita. No meio da Pav:i'a há ruído de
me deixavam montar, um .cavailinho que nascera há de- :festa.. Do pá;tio do quairtel sobem os ape~os de corneta:
zoito ano~, enquanto eu apenas há dez, tendo p()(I' isso de ,que retêm a tropa nas casernas, anunciam o rancho, a
morrer ante•s de mim. O Sr. Camões deve com certe:?Ja :guerra, o rec-o lher, e dele se escapa uma centena de
·sOilda.d.ors que corre à dança, ao concei'Ito, ao amor. Os
ter-me 'dito o seu nome, mas esqueci. E aquele aprendiz
:mesmos toques que em FTrunça, porém com acordes, às

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO ,


JEdiçõ ·es Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Jean Gimudoux ·· Jean Giraudoux

262 263
vezes, ~sustelllJidos e bemóis. De sustend:do e ibemdl no., brrunce1has de arcada desconhecida, [áibios que nunca
coração, maga:lrus e soldados sorriem aos vi,ajamtes. Tam- me di·ssenm uma só :palavra, frolllites de ;proeminênc:iws
bém eles conhecem tudo ,a meu respeito, excep.tuados contra a:s qua;i,s nuooa a minha fronte chocou, em virtude
alguns erros ... E um francês, diz-me o soTriso- deles, um: do milagre desfHo à frenrt:e de cada ructo, cada gesrto,
vitorioso ... E lá ~se afa;stam em direcção ·ao rio-,, segu:idos. cada paJla;vra, cada clarão e c!Lda retrato da minha vida.
por cães que tudo sa'bem dos meus cães ... E meia-noite, hora de regressaT a casa.. Os encarntos
Nem uma s.ó pessoa, 1e ruqui estou eu na rua mais. find.a:m à meli,a-no:ilte e o que havia eu de fazer, assim,
antiga, na rua em que devo repaJ!'!Lr na,s portas a con--- ao V'1vo, perante todos esses rostos súbttamente estra-
selho do Manue[, célebres pelos seus batentes. Pregada; nhos. e ignorantes? Desço pelo jardim, evito a·s pessoas
em todll!s aquela;s de que: me apro~imo 'rodste uma aJldraba como um qualquer esfo[ado a1s evita aJté que a pele lhe
de bronze, uma mão, um dclope, um ·leão de dorso, um cresça. Vai ser preciso tornar-me rijo e duro, para
licorne de frente, um fruto, uma sereia, tudo o que· amanhã, debaixo dos plátanos do Gemera[ Andersen
melhor se a;carioia. Desde sempre foram estas as formas~ - pobres p[átanos que conserrvam a suw memória enfor-
encornradas com ma:tores qualidades .pam a função de· cada ne[es, ma;i,s ao seu nome e data;s nU:IDa placa de
bater. Ao longo do p8!sse:io, :bastaria lev·anlta:r e baixa:r · metal -, eu encontrar sem dificuldade, e logo à primeira
uma delas par-8! dmedi~tamente :surg.ir à valranda um ho- hora, o primeiro de,sses homens que não me conhecem.
mem ou uma mulher que muito bem sabem como eu amei O Largo Alberlo Martins 1 oferece à lua os ·seus can-
e traí, como ,fui importunado na minha perseguição ou teiros de begónrias gigantes. Inodora's, liinsensiveis nessw
fuga. Levanto o 1rcorne, deixo-o ca;ir na palma da mão crueldade pa'ra com os homens que, guernra à ;porta;, a
pal'la amortecer o ru:ído. Devia po~rém descomiar da nod:t~· natureza me dedarava; através drus begórrirus de Vilttel,
de Vi,seu. A .sileDJciosaJ p.a;ncada ,aJI,ertou ru rua. Cabeças . as mais belas e egoístas da França - pensemos na va-
ried!Lde chamadru Glória de Lcwena;! - aquit nesta luru
n:as jane[a:s, bustos que ~surgem, não ta1rdru que estejam
seguem o regUrlamento oficial das begón:i'as que é não
todas guarnecitdrus, os pruis em cima, as crianças em
ofereceil' perfume a!lgum e em troca não receber qual-
baixo, porque em PortugaJl também rus ooi'anças são ·
queil' carinho. A malim é monstruosa na segUTa;nça que
noctâmbu:las, os avós a p~reencher os espa;ços vagos. _
ostenta de não ser aspiil'rudru, não seil' colhida, não ser
Volto ao cimo da calçada; e corntinuo o passeio. SoHtário,
tocada po1r mãos humanas. No seu veTmeJho, que não
desfilo enrtre as fruchada;s decorada;s com flooos viva;s..
Mudas, imóveis, fruces de um oval perfeito como eu mmiCa
Vli!ra, e todas olhos que n'liDCa foTrum tão gm.·ndes, so-.. 1 Alberto Martine no original. (Nota do Trad.)

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO; Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Jean Gi-l'audoux

~264 JULES SUPERVIEUE


(1884-1960)
sabemos daqui di'z er ·s e é de estopa ou chumbo, repre-
senta um desafio à imbe~cilidade desta alma e ruos seus
movimentos. E o que neste mnndo se não respira, não Este homem só, desapossado, que nem a si mesmo
se reco1~h ece, ma-s penmeável e de coroção a berl:o a
acaricia. ~~ Ninguém ous·ou a;i:nda fazê..J.o ... », grita-me. tudo, é o mttndo qtt.etn o- recebe. N fio. 86 f ormas e
Isso crui-me mrul ... Atravesso o relvado. Ela; vai ver ... CO'I'es, agra<ldvets o" pitor escas imagens; porám o, que
?na48 intim<J tem esse mundo, o mais próo:-imo e o
(Portugal) ?n<Us long·tnquo, pa.ssageirro e eterno-: os vivos e 018
mor tos, os •espíri~os, os fantasmas, o seu mistério e a
transparência.- MARCEL ARLAND

Descrever Supervielle é sermos levados a colocá-lo


nessa posiç® privilegiada do f1·ontelir.iço, wm l!mne;m
instalado p elo nascimtento, cultura gostos numa en-
CT11Zilhada de mont anha'.s, de oceanws e cOJmipitlms,
essa Ba.ima Navar-ra prol<mgada por ele à.s palm>pas d()
Urugtwi, aot~d-6 o ve~~to tra-z o eco- d() aZiltW.e de Ron -
sard ou da guita-rra d e Lope, conforme sopra daqui
ou dali. - OLA UDill RO'Y

Falei na fantasmagoria supermelliana. E na verdade,


a pa.l avra fanta!sm·8Jg'OO'Iia, no meu v ocabulário - esse
vocabulário pessoal que tem cada um de nós, '/UÍ()• um
vocabulário· de palavras só nos81ll8, mas de palavras
comt~-tl-8 qtu: por certas ctrmtnst<incias adqttiriram . pa;.ra.
nós um 88'1tt>id() a1100 r ico, nl4is 'fXJJpresBivo., e até às
vezes d/ erente d() que l hes dá o dicionár w -sugere
toda essa riqueza 1771/Ulthnoàa de i m ag8'11oS vind<t.s de
todos os recah~tos do Universo, e as est'l'amll~s, nunca
vúttas r epercussões de ~~·mas às e»,t'l·a.s~ essa ilmpl!Lcaçã.o
fie lll!7niilr.osidaàe e br:t,ma., d e grLto e de ?nurmt{lrl.o qu-e
r essoa por ~da a poes-ia de Superv!.eZZe... - ADOLF O
CASAIS MONTEIRO

Nasce em Montevidéu e possui dJuas ruwiona-


lidades, a francesa e a uruguaiana. Faz os
primeiros estudos no liceu de Parris. Sofre
desde cedo a influência dos ramânticos e dos
parnasianos. Em 1955 recebe o GraYn.de Premio
oo Literatura atribuído pela Academia Fran-

t:dições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO Edi ções Afnxlite - DE FO RA PA RA D E N T RO


Jules Supervielle Jules Supervielle

266 267
A escala portuguesa :1.
cesa. Marre em Pan"i.s1 algumas semtllnllS depois
de ter sido eleito «príncipe oos poetas». Prin-
cipwis obras: O Forçado Inocente, O Corpo As brMlcUTa's da escala secam no terraço
'l'rágiro, Ladl'ão de Cr:iança;s, A Crdamça do Que o vento gallga,
Alto-Mar. E o casario unido ao SOil num rubraço
Cheira a ruru e a srulga.

A can.a:Sitra ~sa~ta de pe:ixe luzidio


Nas mãos da varina
Que em festa aiTumru aos calo~res do estio
A ex:posição submair'ina.

O verde eSit.ridente das folh3is derramou-se em ooudruis


Pela mare do brruseiTO
E as ros3is no cartdveiro
VioJ:aram as grades dos quinta~s .

.1 L'esca.le fatit sécher ses blancheurs e.ux t-et'll-aesel9 1 Oi'l


~ ven'l: s'évertue, I Le.s mallsoins .rooes au ool.eil qui les endace 1
I Sentent l'algue et J.a. :ru:e. I I I.les femme-s de la mer, des .~s
de poiS\SO'DiS I lrlsés ~ la tête, I Elxpo.s ent a.u soleil bruyoot de
la sa'loon 1 L& sous-maJI1l!nle fête. I I L'e feu.ma~ge sllrl:doot ar d'éboroé
le vert I SO'U\9 la mue d'e ·l umiêre, I Les reses pr.f:scmnli~l'!Ei5 I On
falllt d~Jtt~U,p:lll,on par 1es grill'eS de ter. I I Le pla!ls1:r m81tln3il des
boutlqu·e s OO'Verntles 1 Au ma:t'lltlme é1íé I Et lJes fenêtres vertes I
I Qul se M.'Vl'lent a1J, ci'~, les volés écartés, I I S'éooule vers la.
Pla.ce ou stagnent les pa;ssan!ts I Jusqu'e ce que so1t i'IOOlde I L'om-
bl1e des Ol'3Jllg'elt'S qu'l slmuJJe .un, cadran 1 Ou ]e doux midil gu-ogne .
.A!n11e.t<im· a. teSta. v,ersão, exmbe oUJtrta ~te e miS.lts ~.sa.
publlcadla. em iNo.vem·b ro de 1919: «l/escale fad.t sécher ses bloo-
cheU'I.\S 8IUX terT81S13eS I Oi'l 1~ ve:tllt -s'évert:Uie, I lies mailoons ros.es
au solA!di qu les ~e I Sentent l'a.J.gu.e et lia. rue. I I Deis ten.mes
jaun'eS v<mt, des panll~ de poii$Sons I Irlsé.s sur la. têt:e, I Et
l'<m vo.tt se mêler &us jewc. de lia. S8Jiooni I La. sou~ fêtle; I I
li Le :Jle'Ull:~ge sllrd'dEmlt a débardé lle vellt I Sou.s la. crua õe

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Edições A~rodite - DE F O RA P A RA D E N T RO
Jules Supervielle

BLAISE CEHDRARS
268 (1887-1961)

O prazer matinal drus lojas desm-tas


Ao vm-ão do mar., M assa poéticJa fulgurante dedicada ao arquipélago
E das jam.e1las aJberlas da insónia - HENRY MILLER
Entregues ao céu de par em par, Capaz do meUwr e do pior, de ser wm grande poeta
·e wm triste sargento-ajudamte, por que não há-de ele
d eci dir , entre estes dois, manter-se pe"bo primeiro ? -
Corre à praça em que o V'.i:andante OLAUDE ROY
Pára até surgir'€1rn circulares
Os .seus Document á rios, as sua-s Folha,s da E strada
A:s ·sombra'S das laranjeivas f.eirtrus quadrante n a mi~r part·e serã:o sitmpl es a notações, «fotografia~
v erbW~,S» qwe há-de'' r·ecolher ao sabor d as viagoo.s sem
Das branduras pemrnsulares. qu e lhes mude uma palavra. - LOUIS PARROT
( D ébO!l'caderes)

Frédéric Saucer (na Literatura Bla!ise Cen-


drars) ntliSce em La Ch(J)ux-de-Foncw, de mãe
escocesa e pai suíço. Conhece nw infância os
meios mai8 variados, o E gipto num palácio, o
mar a bordo de um iate, a Inglaterra num
castelo, Paris em grandes apartamwntos de-
sertos, Montreux num hotel, Nápoles num
jardim e num parque. Faz uma viagem à Si-
cília com um precepto!f inglês. Depois de uma
lumiêre, I Les roses p ri.ISonni er es I Ont fait timtptif.on rpa.r leis estadia na Suíça com a idade de quinze amos,
gl1111~ de 1er; I I L& plalllsd.T miWtiDatl. des •bouttq~ ouv,erttes I Au resolve correr o mundo e satisfaz incansàvel-
mall'ltilme été I Et des fenêtn'leS v~tes I Se livml!lt à l'azur, lee mente esse desejo com uma edição original de
volets écaii!tés, I I S'écoule vers 1at P la.cle ou sta,gnent 1~ passa.nts I
I J usqu'à ce qu<e •SO'it ronde I L 'omblle des O!relngerG qUI!! ai'm.ul'e Framçois Villon no bolso. Na guerra de 14.
un caxJ:l"aal 1 Ou d'e douoc mddil grogne. 1I Alcms, 4Lnattend us, les perde o braço direito. Depois de termtinada a
corrlrlo'I1S ~bscurs 1 Enfantent les cla.rtés de mfLHe jeunes fl1INle,s I
I ·Et les désirs ne.ufs plllent I L'âme comme un frult m (lr. I I La guerra, faz nov·as viagens pela AmériQa do
vúlle en se. pelnturre a des 18ll!r.s de march'é, I L 'O(edil él!l.mllne l'ombre, I S·ul, com uma estadia prolongada no Brasil.
I Retenrunt · l~ea ooulleJu'l'S et .Jeurr goüt de p éché I Q ui, lbel un sei!n,
se bombe; 1I J 'asttll!re à motJ. l'EOOSJle entl.êre, je la hume I EDJ ron Morre em Paris a 21 de Janeiro de 1961.
eel .et sa. chailr, I Comme un, ruame1 a~bsorbe <Un b.rusque tirailn qUi Principais obras: A Prosa dn Transiber.iano
fume, I T.outes v11:J:1es en f!Jamme et fa.u!Ve la palllarche I V1.1Va.CG, '
saDJs broncher.» (Nota do T'1YUL.)

Edições A~rodite - DE F O RA PA RA D E N T R O·
Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Blaise Oendrars

270 271
Porto de Leixões
O Panamá ou As Avenbwa;s dos meus Sete
'.mos, Do· Mundo Inrteiro ao Coração do Mundo
(na poesia); O Ouro, Mocravagine, Rum~ O Ho- Ê tarde e chegamos num domingo
mem Sidera;do, V adiando., Leva;-me ao- Fhn do O porto é um rio em Híberdade
Mundo (na proro) ; Blaise Cendrars também Os pobres emi:gra;ntes e:spm-a;m que> a autoiridad.e ve:n:ha
é o «(l!Utor» da traxilução froncero de A Selva a borrdo e :s ão hrurta)lme!nte sa1cudidos na,.s bar-
de Ferreira de Castro. c,a ças que sobem umas pela;s outr-a;s e não mudam
de lugar
Um olho do porto é doente outro ;va:za;do·
E o guindaste que se ruba:ixa parece um canhão apon-
2
[rtarlo \ •

Nas costas de Portugal


Desde o Ha·vre não f!i:z emos mrui's do que se'gui:r as çostas
[como nave:ga!dOII'es anrt:Ji,g os
Ao l-a rgo de Poctugal o mar está pejado de :barcos e
[ trruineira;s de pesca
O seu azul é constaiilte a transparênciaJ pelá;g:ica
O tempo ca1mo e quente
O sol batendo em che1io

t Esbe po1ellll~, inclluido em .bu Monde Entiev au Coewr du


Monde ·com o títulO Porto. de Leixões é !lnesp~'am'Emtie ciJbado
pelo autotr a ~e:~tlo dà. Ooirn.lnha, numa obra de m~ól11'as em
prosa : V'er o Olllpitulo La Corogne em B ourZitnguer ("Ed'itrom DEmoel,
Pwis). (Nota ® Trad. )
• 2 On &lUllv~ taJrd et c'est dlmtm:ch!e I Le poat ~ un fl'euve
déclm.tn.é I Les •p&l.Vl"e,9 émdgra.nts qui ·81tten.dEmt qwe J.1es autorités
-v!'Emnent à boro oont n~dGme.nt seooués dalns de i)&UVI1eS petites
baa<qu~ qui mon.tent les U!ll.$ ·S llll' loes SJUtroes sans cou:t.er 1 L e port
a un o ~ m aJ!ade l 'au t:re crevé I Et une grue éll'Oirlne &':Incline
comme U'D! canOIIl à JoDJgu;e pomtée.

:E d i ç õ e s A f r o d i t e - D E F O R A P A R A O E N T R O
'Edições A~rodite - DE F O RA PA RA D EN T R O
Bhl!i·se Oendrars

272 ·PAUL MORANB


E à supe'l"fíci•e flUJtuam :inumetr"áveis m[lcroscópicas wligas (1888)
· [verdes
Que fa:brircam os ailitmentos da; muitipli!cação :rápidaJ
E são. a reservw inesgortáve[ das legiões de ~IIllfusórios NtMte ambiente restrito, mr.ãe as irMgen, a881~.
o a.specto dos [ITatndes püm.Os do cim.enu.t, a incfsíva
[e larvrus marilnhws deliicadas nitidez de Mo-r(lltzd taz ?n.arawhas e ele revela-se
.AJnitmai:s de toda a espécie como dtign& 81«:68801" de Mérimée. - RlílNJ!J LALOU
Seguem diire1tos às estre~as-do-mar aos oruriços PauZ Morand, o digno conten1.p0ranBo de Valéry Lar-
Crustáceos milnúsculos baud. - BERNARD DELVAILLJiJ
Pequeno mnndo formigante ao Tés da água toda pene-
[trarl.a; de luz
NOi8ce em Paris e cresce num meio cUltivado.
Insruci:áveirs e gulosos
Oxfard e a Escola das Ciênc1xl,s Políticas com-
ApM"e!Cem as. .sa;rdilll!hrus os amenques a~s cavalas
pletam a sua fo'T"YnXJ,ção. Em 1913 itnricia a COJr-
No elnCa~Ce! dors germões dos bonitos dos a.tuns'
reira dflplormática, interrompend;o-(1). ik' 1926 a
No ·enealce dos marr:suínos tubarões e de[rfi:rJJs
1932, anos em que viaj(ll por conta própria.
O dia é luminoso ,a pesca fwvoráverl
Retoma, depois di.sso, a dilplornn;ci.a; até 1944.
Se bai'Xax a névoa; os pescado~res dão l&'gas ao de,s.oon-
Duratnte os arrws de. «requtintadu vagabwnda-
[tentatmemto e fazem ohega;r rus querixas às tribunas
gem» C((;Sa com a Princesa 8outzo. :S em 1943
[do parlamento 8 •
(Du Monde Entier au Ooeur du Monde)
ministro da Framça em Bucareste, e em 1944
embatia;ador em Berna. Eleito na Aca:demia
a Du Ha.Vl1e n'avon~s fa.tt qUJe .suiV11e lie.s cõtres oomme 1es
D!awiga1Jeurs ·!liii'cliiems 1 Aiu liall'ge du Plontrugal Ira mleT •erst CIOUVel'te Francesa em 1968. Principais obras: O Homem
de oovques et de chaJllwtlilers de rpêch!e I .Ell<e est d'un blieUJ CIODJstan:t Apressado, Lewis e !rene (ri() romance)).
ert d'une tr~eDJOO péla.gilque I n fa.ilt ·~U et c.haud I Le soiliffiJ: Aberto à N oirt;e1, Fechado à Notite·, Temos
mpe •em plei!n: I D'inntlmbraJb1e::' algues Vl~ers miCl'?ISCIOpilqwes
fl.Qtte:nt à l:a ,gu'I"fuioe I E]l1lels fa.brilqUJent d~s a-limle:nts qU!l! leur per- Stocks (na rwvela) ). Lâmprudas de .AJrco, Fo-
merttetnt de se mulitJi!p]~elr l"aapi<liement I E11es sont l''in~épuri19able
pr1overnde vers laquelLe ·acoo.UJrt Iru légliorn <liers fufusodrr<es et ~es
l'has dei Teiil!Pera.Jtum ( M poesia).
la.vv·es maJI'mers délilca.ters I Ani'maux de tourtes sortJes I V•el'SI étb~l·es
dle meT oumtins 1 Cru~cés mltmUJs I Pletit mon~de grt)Uibl11arnt prês
dJe 1a; swmoe des rea.ux toiUI!Je pénétrée dle lwn:iê11e I Gourlmarndis
et frilarnds1 1 Amwmt 1es hiarengs Lers ·S3JI'dmes ]es maqu~ I
1 Que pOiursud:'\nern;t 1es gell'llllonrs les thons ~es botnoi.tes I QUJe polllr-
su:iVIe:nt liels m!M1SOU<irns les 11equJinls les dauphlm<l! I Le 1:Je!llLpiS est
clalir lia pêche .est fi8N'Oimb1e 1 Qua.IJJd le temps se voilil!e ]es pêcheul'S
IS!Oillt méooiD.tJernts et foiD.t oote!Illdt1e leuTs liam•entlaJtiorn~ jUisqru'à Ira
imbu!Die du pa.rlemJtmt.

EdiçõesAhodite- DE FORA PARA DENTRO•


5dições Afrodi~e - DE F O RA PA RA D EN T RO
18
Paul Morand

275 APARTE
275
Lorenzaccio
- ARMAND GUIBERT: •Apesar de brandos, bem sabem [os
ou o regresso do proscrito

próprios portugueses] como é duro o seu dente e oMran~r I


tenaz; alguma coisa a tal respeito conhece Pau~ oran •
pois no tempo em que solicitava o lugar de embaixador nas
margens do Tejo viu recusado com firme~a o exequator: Ainda que a es'Pem durasse .há quinze mil n01ites, iJSto
é que nas altas esferas não tinham esq'Uec1do certo Loren-
zacc io da sua Europe Galante.•
é, cerca de quarenrt:a e do1is anos, Tarquinio GoltlÇail'Ves
sentia-se impacieni€ por voltar a casa. A noite tardava
[.Portugal - Savolr Vivre Internacional , a che:gar. Deitado desde manhã na relva do 18izar,eto da
de Pierre Danlnos e Doré Ogrlzekl
margem ·esquerda do Tejo, face a Lisboa, vi:ra agora o
que num di~ p<:Jd:e o sol fazer com uma das sua•s cildades
preiferli.das; ..renunciamos a d'iizer que hrirnrc,a. Sem que o
português tivesse de levar às têmporas os. olhos de esole-
rótic·a amarela, desco:bda vinrte quHómetros de costa
desde o convenlto dos J erónilmos, Beiém mais a sua torre
de xadrez de ma:I"fiim trruba1hado, lliO norrte,, às saUnas de
Sacavém, essa; nerve.
Desde mad:rugada fora desembarcado o :homem de
Estado, à hora em ·q ue Lisboa dorme no V8ipor atlântico.
Arredllido o mosquiteitro, rupareceu: a cidade rna:s suas
cores baças, hoje como .foi no séc. xvur, uma cidade-
-modelo pelo urobaniSIJll.o mllls também pela b~eza maiiS
rara;.
«Va,s co da Gruma rp8iSSO'U de joelhos lli no:ilte: que mte-
cedeu a partida de Li•s boa pa:raJ as índias», pensou Gon-
çalves. «De .iguail forma cele'brarci: o regresso do meu
exíJJio.»
Ajoelha•.se e chora. Estirado no cimento fendido -
porque é da linhagem dos prüscrito's românticos~ rega
de lágrilnlas a erva queimada que vai brotando ra·l a à

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Paul Morand Paul Morand

276 277
voJta do gume das arma-s dos Bra-ga-nça. As sereias opini.ã o da cor:rente, os barcos da R'ayal MaüJ da·s Messa-
fazem tTem:er o. ar do rporto com os carntos da partida. geries e aitnda um transatlântico da Booth Line estão
É domin.go e ressoam todos os carri!lhões: a cidade vibra an:narrados à nassa cónica do estuário; anais ~ooge, as
como um copo à frdlc~o de urm dedo molhado. Depois, de velas vermelhas dos ~scadores de OvaJr saem do Mar
binóculo ainda turvo pendurado ao pescoço, Tarquínio da ~alha, essa hérnJia fluvial. O sol caiu atTás da Afdca,
Gonçalves a:dormeroo de boca raberta; chei:a de dentes vestido de ver.m.elho; está julgado o mundo. As estações
brilhante.s, os cabelos crespos e tintos fundem ao; sol ma-rítimas deitaJm fwmo.
como o a:sfaJ.to, os mbios estão azuis, aos naTLlla:S dila-
tadas. (Enquanto dorme lembremos que o seu a;vô ma- II
terno foi goverrnador de Moçambique.)
à noitinha Tarquínio GonçaJlvers desperta e já Lisboa Nas costa~s da Abaidia de Westminste·r na zona. ma:is
adquirriu todo o relevo!. Apresentamdo-se como num CRI- nebulosa de Londres, sem dúvida o ,loca;} o:nde exi:sbia
valete e erguida: na; verte:rute do monte, sobe àquele céu ·an~es do·s oito mi::hhões de habitantes um vau em que os
português aonde reina Augusto Comte, fare:ndo face a.o b01s selvagens vion!haan beberr dru água aamacenrta: que l:hes
so-L No horizonte, moinhos; o mesmo vento que em rodeava os cascos, encontram-se algumas vielas de um
baixo fa;z inchar as vela's, mói ao aJI.rto o grão. lnviis íwl, séc. xv:rrr desolado e anglicano com apartamentos mo-
desceo aJtrás d~ Li·s boa' a vertente atlântica: banhada de bilados por graduados sem futuro unive:rsiltário, isto é,
contrra-alísios e outros sopros equBJto:r.iai;s, Gonçaàves ~ sucessos desportivos. Ta:rquínio Gonçalves viera
pensa que, mag;ra: ou gorrda, tórrikla ou sombria, ta.m- flxa.r-se em Londres após a deportação em S. Tomé
bém :a vilda; parece' obedetc er à lei da ;parti~'ha das águas. (aonde ~~a,s estivera doze anos, 1ibertado que foi por
E talvez mesmo ·as casas; é dessa: forma! que à dtreirta uma ammstra:). Tinha a:li Viivido vinte e rsete anos. Nunca
existe1o seu árido paJLácio de Sintra:, por detrás druqueles saí.r a, nem mesmo nos di'as mruis quentes, nem para
montes da: Ajuda que• ava-nçam até ao pomrto mairs oci- esse Bank Holri<:Uey do mês de Agosto que :l!h'e lembrava
dental da Europa como se fossem um3.! varanda de os seus piores instantes de inrt~a.mento ; nunca apa-
camélioas e fetos florida sobre o va.zi,o dos mares. receTa ;pela Legação n os aniveT·Sári'Os. As nove horas
Provocado pela maré, eis que o Tejo vri:ra de bordo de cada manhã, o português di~~gia-se à brbliorteca do
pela 111:oirte e sobe ·como que a fender Portugail. em dois. Museu Brirtâni·co. Em diaJs fedado·s fi'ca.va na cama.
A cidade i[umina:-se e transfoTIDa-se nll!ffia daquelas Ta:rquíni,o GonçalV'es. Quem esqueiCeu este Gambetta:
vistas de apa:re1ho de ópti:ca, atrás das quais se faz português? Estragou a vida, bem entendido. A-ntidmás-
passar uma vela. A mei·o do rio e se~guindo sempre a tico sob a mo:na.rquia e punido como tail, democraJta de-

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~ui Morand Paul Morand

278 '279
masiado .tépido, que era, perdeu os melhores amigos EM LISBOA
quando os republ:icanos subiram ao poder. Isolado :pelo O PROFESSOR AMARANTE
desinteresse, pe:la a;Itiva recusw de aHanç!l!s ou prebendas, FORMA UM MINISTÉRIO DE CONCENTRAÇÃO
liberal mas a.ntilf:ranco-mrução (pois não obr~gou .a fechar
as lojas das índias ? ) , tradi:cionaliista ·mas illlimigo dos Ora aí está Narci·so Amarante 1 , seu condiscípulo
jesuíbs, não tardou que fosse por todos odi•ado. A sua no Uceu Henrique IV, amigo de tin!f'ânci•a, professor de
mo:ralidade poHrt!ica tornavaJ-lhe a Vli:da difícil, ·só um Fisiologia Vegetal na Untvwsidade: de Coimbra.,. esco-
acaso o levara a chefe do gDv:erno na Regência. Aí de- lhido numa hora dilfíci~ como Presidmte do Consélho.
setrnpenhou o prupeJ. que sabemos. Mostrou-:se orador bri- G<Jnçal'Ves predisserw-o: os repulblticanos estirvooam mutito
lhante mas autocr.itário, exasperado rpelos ataques mais longe; a guerra: com as suas ·correntes d~ ar inão poUipou
fracos da oposição. De onde: a censura, a suspensão de Portugal; mais do qure a qualquer outro país da Europa,
jornwis, juJ.gamento•s sumários. Temido pelos homens o bolchervi:smo esoo'lheu-o; a elootvicida.id.e co!['lre1 primeiro
que nos Paços do Conselho pro'Cl!l!maram a 1e1 nova, sus-
1
às .pontas, :pensa; o proscdto. Tornou-se necessário um
peito de ·anglofi'lia, receado por aqueles a quem chamava ministério de tmião. Amarante, porém, sábio fraJCo e
«universitários ébrios por assinar decretos ·absurdos, bom, porá .o freio? Há-de gemer como um freio., lá isso
só pelo prazer de ver o nome no Diário do Governo (*) », há-de, mas chegará a: parar? Gonçalves duvida que
alvo da hostiiL~dade dos membros das sociedades secretas possa aguentar-se esse generoso ·amigo que, nru própriw
que ele acusava de conspi<rarem em faJ.so, em vez de noite da surbida ao poder, lhe enviou rpara: Londre:s um
fazerem bwixar o preço do bacalhau, não tardou que telegrama convidando-o a regressar ao: país, e graçaJS ao
tivesse• a nação contra ele. Acusaram-no de lutar por qua:l a;li se encont:ra,. Esses naVJios de guerra que, na;quele
fins pessoai•s. A mona;rquia; envioo-o ao Forte de Caxias; instante, dormem como ca;imõe·s no Tejo escurecido, G<Jn-
a Regênci•a reservou~lhe a: Ilha "de S. Tomé; qUJ8lnto çalves atdivinh!l.hos cheíos por detrás da blin:dagem, cheios
à Repúbli•ca, largou-o no exílio de Londres, ne:sse cor- de oficiai·s revoltosos, rmarin:heiros irriltados, mecânJtcOs
redor de Great CoíUege St para onde o pensamento da rperverti<ios. Ainda mais algll!ll:s mese•s de concessões a
tarde o arrasta. Moscovo e rebenta a revolução; as fortalezas de Lisboa
Apenas um dia de cfarida.id.e Hsboeta e tudo será hão-de cuspir fogo; o Catorze de Maio de torres brancaJS
esquecido ... M!!is afinal, .pór que já não •se encontra em e gémeas viJsará os paióis que hão-de voar desp€da.Qados;
Londres? Lembra-se de repente da no:va Reuter, ~ida um o Deza'8sete de Setembro (ex Kronprinzessin Coecüie)
mês antes no Pall Mall Gazette comprado .todas as noiltes
à entrada do tube: 1 No orig1D.all Narci&so Aan.ialraa11fu. (Nota do Trtul.)

Edições AfrodHe- DE FORA PARA DENTRO E d i ç õ •e s A f r o d i t •e - D E F O R A P A R A D E N T .R O


~aul Morand Paul Morand

280 281
fará s·a ltar o Cinco de Agwto, o Vinte e Dois de Outubro molhe. Amarram à barca, rebocam, e a:s duas emb8Jrca-
mergulhará o na;r.iz no Tejo, dm:amente tocado pelas ções atravessam o Tejo. Um1i: vez fora da cocrente, Lisboa
baterias do arsen:a;l, ,e a torcer-se' em revoluçÕ€rs como se é alcançll!dru a remo.
fossem cóli~a;s este irne:H1z país retomará o calvário de Gonça:lves já não reconhece a cidade. No seu tempo
i:nva:SÕ€'8 tremores de terrru e a:ssa:ssinatos rpolíticos. descia em jardilns à beira'-rio para se refrescar. Hoje
'
vo1lrtaJ-lhe as costas e :procura as ·elegâiliCias pelos baJtvros
absll!!rdos. Construíram um rporto, como' se o Tejo acaso
m · já não o fosse. Adjudicado a 'e mpreiteiros espanhóis, uma
parte de·smoronou-se e aJi estão, ao menos, ruínas pito-
Assim vai pensando Tarquínio Gonça;lves quanldo rescas; a outra, .p orém, é um porto francês, racional,
des~ p.wra Almada. E como proscrito que entra em agravado com e:ntrrepostos e aperfeiçoamentos modernos.
Lisboa, e em segredo, poirs não é o Governo tbastante Gonçaives desembwrcou a leste dru Praça do Comércio.,
sólido para l'he pagar um triurufo. Saúda as 8Jlltiig·a s casa·s cujos degraus descem à beira daJ água. No menos escorre-
po:rtugue·s as de telhados ergUJidos nos cantos como os gadio pousa o pequeno pé calçado de a!ntHope ciill.Zento,
pagodes. Passa pelo cárcere de jamelas gradeadas sem com tacão aJlto de tenor. Ã frente os seus antigos es-
vJdraças. Isso fruz-lhe lembrrur ·a s ·surus prisões, as crulças cravos, os milllliiStêrios formados parra ibata1ha, a toda-
de burel (nas quai·$ mantinha, por gacridice, um v:inco -poderosa: Adminristrração portuguesa; à direita, na
britânico) ; os ,prussetos no ,pátio de Vhla Nova, abafados
esquina das a:rc8Jdas, o local em que foi abaJtido o Rei,
nas pantufas de detido; a ~sua ce~a de Pedras Tinhosas
Muito F.iel Majest8Jde, Rei dos Mga:rves, Senhor da'S
enfeitada com recortes de caixas de chiarutoiS e, na
Guinés e das Conqu:istBJs.
mesa, um volume de Gil Vicente, o Plauto português;
ou aJinda a penitenc'iár~a de Bombom, quando em CaJgula: Vendo-se rode'a do de polícias e conhecimentos velhos,
faz;ia o paJPel de segundo conduJtor na ger:ado:ra de elec- sorri: o oportunista almirante Silva de Lima:, seu antúgo
tricidade. Ministro da Marinha; Manuel de Lobos, um belo e loiro
T.a rquínio :nada: esque.ceu. Mas é forte, resistiu a todos português da: Galiza, de ra:ça! celta; Amândio A!breu,
os cárceres. Atr8Jvés d8Js gr8Jdes os prisioneiros faJZem antigo chefe protestatário., bandido de rosto azeitonado;
desce:r uma; lata de conse!lwas n:a ponta de um fio. Ele o seu fiel Rodrigues CM-do·so1. A todos abraça, mesmo
a-tira:~~he's um dauro (*) que vai rca:ir no azeite do aJtum, os traidores, mesmo os policii8.S, e depo[s despede-os e
recebe :bênção·s na 'CaJbeça e cont:inua o caminho debruado afasta~se com a alma: t.rdste, OheiaJ de uma antig we moura.
por agudos aloés africanos. O barqueiro espera-o no melwncolia.

Ediçõ ·es Afrodite- DE FORA PARA DENTRO Ediçõ ·e ·s Afrodit ·e - DE FORA PARA DENTRO
!'laul Morand l'laul Moraod

282 283
IV quando não tinha a'ltUi['SJ :b astante para atingir a aldraba.
Atrás del~e havia; um porteiro de fraque americano com
O Ditador sorv~ o ar c·o m o nariz .abaJtatado. Sempre galões de seda: negra'. Pela forma como é saudado,, com-
os veJlhos cheiros de Lisboa, primeiro o pei:x~. depois o preende que está num lugar públioo. Conrvd.dam-oo aJ
café fresco a;cabado de mo1er. P~corre a1 Rua ~ugusta, subir. Ã altura de um homem, reconhece na runte:câm.ani
seguindo o trajecto que nos di•a;s de revolução traçaram o antigo friso de louças co:r de beringela debruadas a
::~,s granadas que vã:o dos torpedeiros do porto aos CSJfés amarelo representando o fasto de antigas hatall:ias;
polítirco's do Rossio. Estes cafés, rbão cheios de coospi.- por cima e até às traves do tecto a parede coberta de
rado:res como no ·s eu tempo ___.,. quantas vezes mandara damasco cor de groselha:, a mostJra:r ~al branca !laJS racha-
fechar 'esses mtros de formigas àramcas - aJbrem-se delas. No alto da escadaria monumentaJ sobrec!lJn'lelgada
como goffia·s perfumaidas de .a romas brasi[eiros. Os grupos ·COm um corrimão de aço e colbre que em llisboa é célebre,
vaci'lam ao anúncio dos nÚJmeros da; 'lotamta e drus norvas um levantino em smoking aco}he o .proscrito e facilita-
políticas, fazem sombras chinesas à frente das pautas -l·h e as coisas:
dos jornaJi·s; por cima de tudo d,,sto passam daquele·s - O ·senhor esquooeu-se, com certeza, do bill·h ete.
ventos giratórios que em vinte e, quatro horas aparecem São dez réis.
vindos dos quatro pontos cardeais, uma espe-cialidade da Desta forma: é que Tarqufnlio Gonçalves percebeu que
terra. Muito inglês, aJtravessa esse gesticular de· 'b raços a sua casa· natal ·s e transformam em club nocturno.
soldados ao cor:po, livre como um prisioneiro solto dos
ferros. Alcança depois a Avenida da Liberdade, gaLga uma
rua hirta e descobre o seu palácio numa pequena praça v
secreta. Revê o portaJ sdbrecaTregado de armas da fa-
mília· e pesadas escultura:s manueli:n:a!s representando Ficou por aili: fatigado, a meter os pés para; dentro,
frutos indianos, âncoras, cordalme:, macacos, toda uma sem mnseg;uàr acredita!r que se encontrava no saJlão
geografia :petrificada.. Construídas com musitado luxo, da mãe onde tiD:Iha havido tantas reuniões, tantos bai~es,
as gra:nde's residência,s do bairro .contam hiistórias seme- proezas mundana;s tornadas célebres. Quatro ourtros
lhantes de furtunaJs submeMas em processos, em exílios·y salões 'havia à desfiiada com ~lhas douradas, lâminSJs
revoluções ou •escâ,ndalo's financei:ros. Tail como as outras, de espelho incrustadas; em todos os tremós o G dos
a casal fOIÍ! 'llllugada, nem sabe me:smo a; quem. Gonçalves em conchari!a maciÇa e, ao centro, u.m cesto
O portão está entreaiberto. Gonç·rulves não pode :resis- de luzes, um lustre de Veneza de umSJ pasta: leitosa;
tir à necessidade de o em.pllii'Tar como em criança o fazia., representa:ndo o Bucen.tauro, com todas as corda:s de
'

Ed·ições Afrod·lte- DE FORA PARA DENTRO Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Paul Morand Paul Morand

284 285
vidro enredado. Por ibaixo, o tapete de jogo. Tod3is a:s da Guiné, das roletas de Moçambique a!lugadas à So-
salas com roletas muito alfectadas e croupim-s embos- credade de Pompa:s Fúnebres, e de Macau, esse casino-
cados. Aqui o incerto ba~rurá, aiém o «·corte francês», -espe'lunc·a do Extremo OTiente onde o pav:imento de
esse jogo que entre nós é desconhecido como quase tudo mosa;i'co de umru prnçru pública de outr01ra desenhava
o que no estrangeilro dizem frruncês. Domdna1ndo a:s núme'l'os, rpares e: impa:res·, de fo:rma: a: que os mo'l'adoores
cartas, um público escolhido. Arruinados de smoking apostassem das jmela•s, fa•zen:do: descer as pa:radas dentro
e calça cirnzenta, ~tnfort1mados, compl·ac·enlbes, sargentos de pequenos cesto·s pendurados em cordéi:s.
de Hcença; ilegal, 31Ventureiro:s de Angola:, rapari·g as vin- ~Empreste-me qurulquer ·coi'sa para; eu cerur, pois
das dos lbordéi·s de TouJouse e a:lguns estrangeiros, nego- perdi tudo.
ciantes de vinho iinig leses e alemães, ca:i:x:eó.Jr os-viajantes Tarquínio Gonçalves pôs o monóculo por debaixo da
de estupefacientes. Por ·entre o :ruído das jogadas e da so.brance:lha crespa: e volOOu:-s·e, feito de uma só peça.
limonada desrolhada saía o número, era divulgado, e Quem arssim farla'Va e·ra um• marinheiro do ixwpedeiro
o ancirihn do crourp~er descrevi'a o iJDquietamte semi- E 87, um homem do ·povo muito jovem, ·SUÍça:s a;o de
círculo. leve desenhada:s na fa~e p~Lida, cabelos gordurosos, den-
Tarquínio Gonçalves cuspiu no chão. tes de lobo. Nele _viu Gonça:lves um desses vadios
- Povo mole 1 , povo de suicidas e ar tri•stonho, de flexíveis e debochados da frota que desfrutam, pelo mau
opra:zeres negros ape'sar de truntos dons do céu: e da1 terra; comportamento ou t:insoolência, uma autoridade incon-
triunfo da cana:liha:, demrugogi;a, «direito de os pli.o[hos testada nos ai~senai<s e ·p ostos de eqUJipaJgem. Esteve
comerem os leões», greves, sociedades secreta•s, eleições prestes a; responder-lhe v:árria'S' coisas, mas :não chegou
falsificadas, orçamentos deficitários, e este· pa·l ácio uma a expritmiir' nenhuma. Ti!rou da carteofra uma; nota, me-
rrufeiri•ce pegada•. teu-a com um gesto· brusco no· peito do marinheiro reves-
Levantou ao tecto o olhar, um tecto de falsas colunas tido de um jersey muito ~ecotadO', voltou-lhe as cos·tas
em perspectiva de acentuada. profundidade, elevando-se e saiu.
a 1llill céu onde pas·s avam deusas possuída:s por águia•s
libertinas, tudo entre nuvens de gr3!nde efeito decorativo. VI
O jogo - e que jogo aquele! -- como o deo todo o lado
onde existe o• Português dos provocadores de· naufrágios Apesar de solicitado pelos ami.igos, 'l'arquínio Gon-
çalves recusou-se a permanecer em Lirs boa. Propuseram
1 O autO!l' nãO prurtHoo de qwa1ql\ll€ll' dais orpiln:i:õesr dleste
ag'aistadbl herórl sobre ia ooboo nJação port~. (Avmo mel!llllente devolver-lhe o uw do pa1lácio; n:ão aceitou. Promessa: vã,
tramcr'llto diOi lliOdlapé da oo1!ção orrigl!nra.li. ) de resto, po~s os que .tinham 1levado o Governo ao novo

Edlçõ•es Afrodite - DE FORA PARA DENTRO


Ediçõe ·s Afrodite - DE FORA PARA DENTRO
Paul Morand Paul Mor~nd

286 287
poder ~.evantaJVam ante.ci'pada:mente dos jogos, a sua parte coc-de-rosa e iTTegular como uma concha;, dehruada de
e não iii'Iiam toleraT que lhe·s frohrussem trul circulo. Gon- branco na:s esquinas e caixilhos, uma daJs poucas que
çalves retirou-s·e para a ca.sa de campo,. a sua quinta (") resistira:, na região, ao tremor de terra. Móverus desas-
situada a uma ·h ora de Lisboa', por ·trás dos montes da trados de influência; inglesa, ·v indos do Porto, enfeita-
Ajuda:. vam-na por ibaixo dos suaves tectos cor de pi1staoha .e
Aí, sem wbdicrur de uma elegânciru urbana., cUiltivou com relevos de estuque brancO'. Gonçalves encontrara
a,s .rosas e pôde •seT viisto de fr,aque, caJça,s à tabuleiro al.i o' velho jwrdineiro, os seus Hvros pi,cados de ferrru-
de damas e polaina:s britânicas, 1nantendo um se'cador gem; nos dia·s, se não de' frio pelo menos de vento·, tomava
entre as luvws cor de man~ga frescru; aguaTda'Vru que como dantes um ca;fé muito neigro e lentamente filtrado
a situação piorasse a recitar Camõe:s. O professor num jardim de inverno do tempo de D. Pedro, onde
Amarante DJão tardou em drur às ;partes enremas cauções cresciam palmeiraJs, :papagaiüs e ornamentos chineses
di:veTsa·s que levruram ao lilmite as concessões. Neste
com per.specUvas desregrada!s.
país, em que os ministérios s'ã o comidos alinda, verdes
'Ohegou o bo:r:n; tempo.. Os revolucionários no poder
pela opos-ição-, chegou-'l-he depressa: a vez. ·Foi: mais do
tinham e'X!ecutado ou exHado os: chefels da oposição e rei-
que o fim de um governo, foii. quase o .fiJm de um regime.
navaim pelo ten-or. Muitos dos seus ·adversários ga;nharam
No decwso do inverno, o dinheiro de Mosco;vo fora es-
tempo no estrangeiro. O professor Amarante refugia-
banjado às mãos-cheias. :mstalM~am as perturbações.
Depois da'S granadas começarem a amadureoor nas barn- ra-se no Brasil. Gonçalves, esse, não fora i'ncomodad~ e
cadas, um Comiité de tendências comunistas tomou posse julga:va;-se em segurança. A ·s ua presença, .porém, era:
de Lisboa co:mo resposta às trombas de água~ que os uma; repro:vação muda. Se bem que houvesse expulsado
explosivos reaccion:ários eTguiam no Tejo. os jornaHsms, condenado a' porta' aos admiradoces, aos
Durante esse tempo, 'lalll~a em riste, T·arquimio Gon- loucos, ao·s fotógra:fos, tudo quanto em Portugal a;mava
çalves regava o jrurdim deixado ao a'ba:ndono durante a ordem mantinha: os o:lhos voltados para ü que não
o seu exílio e transformado em florestal. D1stribuia o se pusera em fuga. Do 'homem de nome romalllo espe-
adubo·, arrancava a ervi:lhaca de raízes profnndas. Ave- rarva-se a: saúde. «Não voltaria a rug.k o velho leão?»,
getwção que escorre nesta maTgem atlântica' pelo côncavo perguntava ,uma cantiga .popular. O Omlité executivo
das falhas vulcânicas, em riqueza semelhante às selvas começou ru desconfi a;r. A correspondêncilt de GonçaJlves
1

do Ceilão ou às chinas d'a llha de Whight, rodeava, pesada com Londres foi aJPreendida;: nela se exprimia sem Tebuço
de rododendros gilgantes .:........ em fnndo·s sombrdlo s de flores a respeito do Governo. Certa manhã de Maio foi decidida
berrantes como cretone acetinado - uma ca:sa: Luís XV a sua perda.

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P-aul Morand Paul Morand

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Tarquinio Gonçrulves saiu para o jardim. O ma:n-
jerico, as pimenteiras, o tomilho exalavatm :fragrâncias
Nessa noite, '.Darquínio Gonçalves jantara rui. sala de estimulados pelas foniels quentes invi:sívcl·s e em todo
veT'ão. Ao ·esvazirur ·o copo, a sua cabeça atirada para o 'lado presentes. Sentou-s e nmn banco de a:zulejos a;zui1s
trás podia di;stJinguir como que os restos de um ninho e acendeu um charuto. Estava húmido'. A sua pe[e de
de andorinhas no tecto· côncavo, incrustado de1frrugmen- largos poros suava como um pão de rala oleoso.
tos de porcelana;. Segundo um .antigo costmne português, No silêncio da noH:e caJiu uma' vrugem de, magnólia com
depois de uma casa: ser honrada com a visita do rei par- um ruído de jarra quebrada espalhando pelo solo os
tia~-se de segu:idw todru a haixelru da' Companihia das grãos, deixa:nd() a flutuar um aroma de musgo e limão.
índias em que o soberano comerw ; p~ra comemorar tal Gonçrulves voitou-se, ma:s não havia nadru. Apenas um
deferência amrulgamavam-se no cimento os cacos da louça silêncio que era 1.1tm sHêncio ha·b itado. Levantou-se e pôs
partida. Gonçalves 'lembrou-se de que já ti!IllhaJ aquela o monóculo. Os o:lhos de mHhano perfurarrum a foJhagem
casa recebido vári~os reis. Na: cwlma da no~te aichav·a -se espessa. Depois endireitou-se, com os cotovelos para
supe:ri'or àquélas coroas martas ou ca·ídas em desgraça. trás e o peito enohumaçado pelo colete; no dedo, um
1

Olhou~se num espelho, sem mela,ncoHru. As rugas, repTe- diamante do Bmsil expelia fogos ameaçado:res:
sentaç;ão gótica da vida;, fizerrum-no soiTk. Desejando - Saia da·í, senhor!
poucaJ coisa, sentia-se senhor de tudo·. Não que estivesse A sua voz fez tremer o vale tépido.
em segurança. Mas fazia bolinhas com as cart3!s anó- - SaJia daí, ordeno..:lho !
nimas e atirava-aJs aos peixes. Vtivera demasiado em Fora das foJ!has, tra:nqui'lo, surgiu então um homem
oceanos tormentosos, oonquistara; ao pa;ís e a ·s i próprio que atrás dele refechou o maciço como se fosse uma
demasiadas li'berdades para temer bandidos mini·steriais. porta. Ve,stia nnifo11me' de marinheiro da frota, uma
De resto, a; sua falmÍlia encontrav~se hem 'honrada: por cami·s a caqui e boné aos qua<IDados.
mortes violentas. Rodrigues Gonçalves gove~rnador de Gingava-se como a catatua na gaiola de rporcelanru,
Zanzibar estrangwlado no séc. xvr; Amândio Gonçalves atrás dele. Gonçrulves reconheceu o jogador falido que
morla;lmente ferido no cerco de Mrulaca, a[.guns anos mais socorrera na noite da ;c hegada a Lisiboa.
tarde; Manuel de Pa~va, seu ·antepassrudo materno, em - É insuportável! - di,sse. - Mais um que me quer
data 'Uffi dos primeiros jornalistas portugue's es e re- maA:ar.
daotor das Ephemerides NaJUticq;s, a·ssassinado em pleno -Sim.
café; e Lourenço Gonçalves, bispo do Porto em 1833, -Pode dizer: sim, excelência.
executado num guarda-fato por um marido ciumento. O assassino gSAVga:lhou.

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Paul Morand Paul Morand

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-Já não são precisas excelências. A voz de Tarquínio Gonçalves estava; muca quando
--Talvez já não sejam, mas 'h á-de .havê-Ias sempre. dizia:
Antigamente, todos os marinhekos ·e ram excelências em - Mwis ainda: te dar·i a ...
Portugal. Os que conqui·s taram o mar sempre foram Encaminhava a mão para o pescoço do marinheiro.
exaltados. Embarcavam parru a·s índias de• pé descalço e Este .sentiu meda:, e'squi:vou-se e prendeu o homem de
vela• na mão, benzidos p elos monges de Tomar. VoUavam estado pelo coT-po. Na escurid ão mistmavam-se a:s res-
carregados dessas descobertas que faziam o mundo ban- pirações com um brando hálito de alho; um contra o
zar e depois morriam pobres e honrados. Hoje não há outro, sentiam-se va.nger as .ba!lba:s, vartirem-se os
marinheiros, apenas mecânico-s atirados à água em barcos punhos, saUarrem os botões. O rubraço prolongou-se.
de .ferro que parecem locomotivas, vadios como tu. Depois houve um gemido de ~utador derrubado· que veio
do ma:i!s novo.
-Falas· bem. Até isso :5aze•s.
-Está a ma:goar·-me ... basta ...
O marujo rapou de uma: pistoJa. automática.
A vo~ de Gonçalves acrescida de umUJ urgência .t irâ-
Gonçalves empinou-·s e contra' ele. nica ultrapassUJva as romãzeims:
- Larga essa ferramenta:. Bom. Tira também a outra.
-Vou dizer-te aquilo que te f.a;1ta ...
'Tanto me fari·ru ser morto por alguém que gosta de matar.
Mas tu é~ bem da tua geralção, ni'i.o gostas de nada. Tens
simplesmente necessidade de dinheiro.
~Fui eu quem matou o a•lmirante Rosa Barroca. A lua: apareceu e a noite foi apanhada de sur.~e.sa.
-Devias ficar-te pelos aiJ.m~rantes. Não és feito para A claridade banhou os doi·s .h omens fundindo numa só as
assassinatos •e m terra fi.rme. Não me: adm1:ra que tenhas sua,;s :s ombras com o• feitio de1 fantástico bovídeo. O saibro
pedido para comer. Cada: vez que puseres o· pé fora da teve um ibrHho de jo.alhariat.
barco deixa·s de ser um favorecido dru sort€1, está:s a com- De pé entre o perfume inocente das tílias, perdido· em
preender?, deixas de ser um aristocrata. Passas a ser todas as voluptuosi'dades penitenciárias e coloniais, Tar-
um pobre-diabo oprimido pela necessidade. quinio Gonçalves mantinha o jovem marinheiro a,per-
r - Po:r que me deu tanto dinheiro na outra: noite·? tado no.s joelhos de ferro. À ~uz das estrela's e rodeado
- .. . Porque és belo com os teus braços brancos de de outros mais doces queixumes, o velho homem de e·s-
criminoso ingénuo, porque tens dezo~to anos e a1 pele sem tado vestido de fraque e peitHho de piqué branco, so-
rugas e o rosto fenício· dos .p escadores de Ovar, po:rqu~ prava no auge do prazer.
és vítima de sujeitos de casaca, porque danças bem .. . A vítima leva;ntou-se.

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Paul Morand Paul Morand

292 ·293
Imóvel, obscuro, de um dandismo de cipreste sempre a da·r para o torto, D. Sidónia suspira, decidida já a
enchapelado com um Cro~stadt, o antigo proscrtto falar de outra co1i•s a.
obs·ervaJVa-o enquanto fazia subir ,a;s calças. Depois, num . Ainda pela manh!ã o céu babava nuvens cinzentas e
tom seco: embaraçadas, mas fora entretanto lavado pela maré; ao
-Volte pa'l'a Lisboa. Diga-lhe's que o assa:ssina,to fim do dia; estruva a: partida ganha e a tempestade da
de Tarquínio Gonçalves não ·se executa por cootrato. véspera não passava já de uma recordação desaJgmdável.
Alto aí! Esqueceu-se disto ... -Que lindo céu (*).
Estendeu ao marinheiro os dois ca,rregadores de aço O desenodoado azul celeste dominava o vale, o
oceano, a serra ( *).
com as bllilas .i ntacta·s, e acrescentou-lhes uma rosa.
(1925) - Contempla o céu, meu f1i•1ho, que ele canta a g1lória
(L'Europe Galante I Nouvel"te$ àes YB'Uil:)
de Derus!
-Ah ... sim?
Eduardo lançou à mãe um olhar tão ironicamente
O pnstonetro de Sintra frio, que ela aconChegou-se arrepiada :rro :xaMe de lã
negra, um desses xailes da; pobreza que .t anto .agradam
às damrus velhas e ricas.
FHho e mã~ num antigo pa!lácio •português atravan-
-Não sentes descer em ti a pruz da noite?
cado de !bitbelots, colecções de arte ·seiJ.vwgem e obje'Ctos - A .paz?. . . Aca,s o a mãe nunca ouviu perorar esse
de madrepérola, m·a,rfim, ouro moldado, que mobil~vam inefável céu, essa reseTVa: de caça de Nosso Senhor,
o seu vaziio mora;l nos fundos de um bairlro im.f.requentado
1
essa voz do parruí·s o? ~ste llltenção, se faz favor., po·i s
de Sintra, arredores de Usboa. o crepúsCU!lo vai falar com[go.
Desamparados pelos vivos, atulhados de mortos, na Eduardo puxou descuidadamente para a mesa o
espera do jantar delibera,rani os restos desta família cadeirão de damasco v.e rmelho com :b arbilho esmagado
ilustre, ~situada fora das corre:nJtes do mundo, sobre o por um século de preguiça, acendeu o Hallicrafter,
envio a Eton do descendente mrui-s novo. Educado nessa grande estação de rádio de triste cor ·s ubmarina com
anglofHia lusitana que remonta aos tempos em que a a qual .s e d1straía nas horas de solidão, feito ~mador
Dinrusttia de Aviz se aliava à Casa de LencaJS1re, o pa:i desocupado e maníaco a captar ondas curtas extra-
era favorável; a avó contra, por recear toda e qualquer viadas, mensagens do mllir ou postos cla,nd.estinos em
influência que aHenasse os seus e os fizesse escapar à mo:r"~se. Deu volta aos botões de ebonite que abrira,m
presa que ·sobre e:les exe11cia. Arriscando-se a conversa as jlllnelaJs sobre o universo negro ·dos SOinS.

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Paul Morand P-aul Morand

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- Que estalidos s·ã o esses? - .pe!I'guntou espantada de exilados. De Damasco, um Pensamento Re j<Yrm!Í8ta
a veiha senhora. suplicruva que desconfi•ás-semos dos Russos, sendo esta
-São as fronteirrus a esta,lar, minha mãé. O nosso voz rouca e martelada brll!SC3!mente impelida para fora
velho mundo está a descoser-se. do mi'crofone, com o grito de repente abrufado, géne!ro
Caia sobre vós a maldU;ão de Deus!) clamou uma vo.z mão na· lboca, de um torturado no suplício. A trezentos
sinistra;. mil qui,l ómetms por s~gundo, os raios da morte (sobre-
- :m Chipr~ - ex,plicou Edwa:rdo,; gregos livres a tudo da morte à Europa) decup~icavam à distância as
afinar a ·rede. . . Con!he:ço..lhes o indicativo. . . Não, alf.inal paixões arn3irelas ou negras.
não ,e stão a frular de Chipre, mas de Nice. A eles ·todos! A vós) irrnãos ... Por terwpo igual ao ·
Segunda volta ao botão: súbita afonia; dos cipriotas que ...
rervoltados. Pancrudas, detonações em explosão, fazendo lemhra'r
- Por terrvpo igual oo que os nossos jellahs hão-de ti~ros de gene!rais facciosos num ·s8!lão de treino• tomado
gemer sob o peso da bota de Ben Gourion ... -repete de assalto à mão armada-.
Eduardo encantado, numru :i mitação do locutor resistente. As urgências do momento. . . As necessi®des da
Aqui está a, voz do Egipto, minha mãe ... Já não existem Defesa Nacional.
obstácU'los ao ódio do éter. .. Ora vej3!mo·s, Israel agi- Em todo o lado se arrancavam emissoras, se pres-
ta-'Se ... em vão., porque apertaram a garganta• ao emissor. crevia, punia, condenava à morte; os fusos das PaTcas
Olhe! um misterioso agressor aproveita a ocasião para eram fusos horários; as estações não paravam de anate-
assaltar o comprimento de onda Ubertado! Que refrega m8Jtizar, só para engodar um instante com ja:zz ou me-
esta! lopeias árabes mHhões de ouvidos. Acabava a fJauta
Aqui Cairo) aqwi Cai ... Hussein Majiz é wm cagOll'Ola! ou o saxofone de encantá-los, porém, e já a ratoei!I'a da
Submerso nestes. ultrajes celestes, o verdadeiro Cairo harmonia se levantava com brutaiidade em impl8!cáveis
cal<YU-se em proveito do, falso. De que súbito deserto o:bjectivos de guerra enuncia.dos por uma vooz inimiga
surgia a imunda do:c umentação anti-N8!sser? e, para melhor engano, pedida de empréstimo a um
Anwar Hakim Amer é um esm-oque) sabem-'YiiO vinte idioma amigo.
milh.ões de habitamtes.. . Kamal el Dim ()(YN'ampe todos ...,....- Aden ... aqui temos Aden a re:s ponder em :russo ...
os pequenos cameleiros do mercado. - disse D. Eduardo. Aqui temos Karruchi a negar em
Co:nduzida·s à distância, as paiiXÕes polític8!s reben- po:laco, aqui temos o Yemen a :interromper bll'U!scamente
tavam sobre os complexos de raça, desabrochavam em a sua Annie La;urie para informar os Escoceses que
vinganças gritadas, irreconciliáveis rancores pessoais vinte homens dos Gordon Highlanders foram esta noite

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~ul Morand Paul Morand

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estripados na frente de batalha... Estou a ouvir a persas espe1hados, a .pratada a remi:rar-se no a{:llijU
Al,b ânia Livre! Escute, mãe, como ela. .fulmin.a a Ale- brasilei!I'o ; a bi·bUoteca do seu defunto marido, do seu
manha Orientai!: avô, aJtrás da·s ;portas em ogi'Va; a;linihava encaderna~
Grandes cães, mercadorr'es de fumo, locatári..os do românUcas; aquele velho salão português respirava:
wrruMuu1o 008telo soviético ... uma etevniidade britânica de mistura com o aroma afri-
-Que abominável! A tua rádio é uma i.nvenção do cano do café.
dia!bo! Rodru o botão, Eduardo, ife!d ha . .. O teu céu tor- - Sei que a Providência nos protege; que acima; das
nou-se ülifrequentável - disse D. Sidónia com dignidade, .nossa;s cabeças o céu, penses tu o que pensares, foi
acaxiciando o cão2Jin:ho nos joelhos. sempre do :nosso partido - aifinnou a velha: a: tll'emer
-Não é o meu céu, é o céu. Quem ~l'he di'Z ra si que e fazendo baloi~ar os seus berloques de jade. Com a
ad:ma dB·s ta alga-zarra: de desafios, ameaças, as próprias condição de nos mantermos quietos, tal· como os nossos
estre~as não arrepelam os cabelos umas às outras, os a'll!tepassado's tiveram o se'Iliso de estar, com a condição
come:ta·s não puooam os ra~bo~s mutuamente, os anjos não de não nos mexermos; com a condição de não :mam.dar o
se depenam, os plameta>s não ·reboiMll juntos no esterco, Mrunuel estudar ao estrangeim; tem um exceh:mte pre-
os anos-luz não interferem nas emissões? ceptor, o. que lhe ·p ermitirá !ignorar os .pecados düa ho-
- Blasfema;s! mens até à mai'Oddade.
- Não sou eu quem h1asfemo, é o firma;mento. _. Ignorando também a Ü1ifelicidade e a morte?
-Esses milhões de :luzes· brilham de amor, meu filho, - A infelicidade e a morte não fiigui'am nos progra-
so.b o ce;ptro de Deus! e os homens são demasiado .pe- mas de uma boa educação.
quenos para emporcalhar as minhias estrelas eternas. -Julgo que são coisas piores de descobrir por nós
-São oito horas. Quer ouvir agora a Ohina Nacio- próprios.
nahsta invectivar a República de S. Mari.no? - Quanto mruis tarde melhor, meu filho.
- Parecem solfat.ams intei'llacionais a; cuspir os - A mãe fala como os pais de Buda.
seus jactas de enxofre. Ê de uma gra;ndeza! A velha; senhora de cabelos hra.nc0s ergueu-se, pou-
D. Sidónia olhou amedrontada paira o céu, oomo que sou no coxim acolchoado o ·sacro da: Madeira bordado,
a certificar-se de que :não andava: à deriva tudo quanto levou a mão aos cabelos gdsalihos do filho. A mão esque-
ele prot€1gia desde há :setenta; e cinco anos, ela e a sua lêtica. e ffu·a não devia pesar mai's do que uma casca de
.pátria, ela e o seu .palácio de Sintra; vário•s séculos hrubi- ovo; para Eduardro era; uma mão de pedrla.
ta;do pelos Abreu de Fontarcada. Deteve o olhar no - O que eu agora peço a Deus é deixar~me cons-
salão à inglesa oom a: chaminé de bucrânio Adrums, os truir, entre vós, um fim fe1iz- di·sse D. Si'dóniat.

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Paul Merand
Paul Morand

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- Espere aí, mãe. . . aipena;s um momento, se faz
brincava com a tradição. No meio da toalha em ponto de
favor.
Veneza r€spl,andecia: naquela noite sem fim uma das
-Só ~espero o Juizo Final, e mesmo desse :não tenho
mruio!'les camélias subtraida·s à álea das camélias cor-
medo. Para a mesa .. . o Or.isóstomo :av:isa que a refeição
está servida. -de-rosa do jardim, precisamente debaixo do lustre em
Passaram à sala de jantar. De um amarelo-limão, a girândolas cuj!lls velas 1637 haviam sido substituídas,
cabeça de Cdsósrbomo aparecia 1atrás do espaldar alto da; em 1904, por lâmpadas eléctricas sem quebra-'luz nem
arandelas.
cátedra que ia arra:s tando ·com esforço· até à mesa:, depois
de D. Sidóni'a :s e ter sentado, po'i's era bem maciÇa a Metido no smoking de intedor, feito de veludo gravi-
madeira de jacarandá de que a po1trona era: feita. nha-de-parra, D. Eduardo exibia um ar !infinitamente
Subjugado por esta: mulher fam:illiar ma·s sempre es- pobre no mei'o de todrus aquelas jarra's do Japão, sedas
tranha, ~sB.enci:osa, cheia de orgulho, D. Eduardo calou-se d3.is índias, aqueles blllfetes de marfim. Uma não. profun-
e olhou para o tecto com um suspiro. Era um curioso damente consentida submissão à mãe, aos mais distantes
t ecto de caixões dourados; nas Hnhas tormentosas da- antepassados, castrara...lhe a alma desde há cinquenta e
quele favo de cem carats encaJstravam-se pratos de sei·s a:n<)S; vivia fechado numa re·s erva distinta e! :re·sig-
velho Japão e travessas da; Companhia das ln<lias, s~­ nada que nem sequer ap~esentava as nódoas quotidia:na's
tenrtados acima dos comensai,s por uma rede de arame. que à gente da cidade fazem esquecer os gra;ndes intentos
Da tlltima vez que um rei de Portugal honra(t'a o palácio ou a a;tracção do nada. Manteve-se fiel a st próprio, se é
com a sua presença, fieis a: um costume antigo os Abreu que um si próprio houvera:; conservava-se por encetar,
de Fontarcada tin:ham pregado ao tedo a baixela em não que tivesse endurecido, mas porque tivera D. Si...
que o soberano comera, para que nenhuma boca, depois dónia o euidado de ruff!istar dele todas as facas e objectos '
dele, a conspurca:sse. cortantes. Num. oativeim voluntário e detfinitivo·, sem
- D. Ma·nucl. pede desculpai, tem dores de C!llbeça e acordo fundamental com o tempo, com o naturall vigor
não desce ... - 1anuncinu o mordomo. do país, as gerações que haveriam de seguir a sua, sem
D. Sidónia e Eduardo jantaram sem ruído, com o correspondência de a:lma com a esplendoTosa ressUITei-
mofo vegetal de Sintra. no fundo· das narinas. N~' to- ção do Portugal modeTno, encerrado na floresta encan-
caram naLguns dos pratos que lhes serviram; nunca sen- tada de Sintra: como numa prisão ideaJ, continuava a;
tiam fome mas não ousavam, apesar di~sso, reduzir o vida vegetativa que os Albreu de FonltaTcada; sempre
que lhes era hábito, pois é a númerO' dos pratos que tin'ham levado, .pelo menos depois da época em que
se mede a condição soeial e o .pessoal da cozinha não D. João li, e:rn Teconhecimento .pel()'S raLtos feitos ao ser-

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Pool Morand Paul Morand

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vi~ de Deus e da Coroa, lhes havia concedido o precioso repes desde 1867, por ocasiJão dos últimos 8irrmjos que
monopólio dw navegação para Timor. ali fizera o tape.ceiro daquele sombrio paJ.ácio. (Sua mãe
Que contraste exhnia entre i1sto e aquiio, entre as conservarru as facturas; nunca destruía nada·... além
vitóriaJS de antanho e os troféus tão poeirentos do palácio dos seres que viviam a seu lado·.) Com essa sovinaria
ao fundo do coll'l'edor de Sintra, estreito e comprido de alm~t das pessoa:s muLto ricas, isto é, muito medTosas,
como a má consciêncila de uma iilatureza, demaJSiado rica. muito enroladas em si mesmas, que sempre acrubam por
Inteligente :m.a;s fraco, com a: lucidez do isolamento', teT razão em tudo, até no próprio rosto, aJo fim de cada
Eduardo à>s veze's sentia: o sequestro de Un1.3i vida que dia inútH Eduardo enfiava o corpo adiposo por mau
começara a. decrescer por altUTas da: quarentena. Antes
funcionamento do fígado, aba;fante como uma chaminé
disso usara a batina de Coimbra, o trll!jo vermelho do
de má tiragem, entre os lençóis, rendados de um imenso
Bullington Club de OJd'ord, a lavalliere positivista do
leito de baldaquino que na: sua ausência fazia hoje lem-
Quartier La:tin; também frequentara; os salõe,s romamos
brar um co~he e, quando e·s tava dei·tado, um catre.
nru época em que os v~~sit8Jntes deixa,vam debaixo da
cadeira o chapéu alto, oolecciooara! convites à dança Com Manuel, seu filho de cato·r ze anos, as relações
berlinenses na moldura; do toucador, usara luvrus ama- ora amenas, 'Ora tensa;s, nunca! haNiam sido naturais.
relas listadas de preto nos five-o'clock de Pécivier, no A cr.ia:nça eTa; fechada de carácter como a avó, e ao
Figaro da Rua Drouot, trocara bengaladas em S. Carlos, mesmo tempo sonhadora como o pai. Tudo i~sto se mis-
calcara os tapetes vermelhos oficia:i'S como pajem dO' rei turava., 8!tropelarva, contradi2Jia. Quando D. Eduardo
Manuel, colecciona:ra; o wedgwood, bandarHharaJ touros. decidia ser amigo do filho, os resultados não eram
num cavaio pescoço-de-cisne e apagara à pistola chamas menos aflitivos do que na altura em que entendia domi-
de vela:. Tudo tinha acabado aos trinta e cinco anos. ná-lo com severidade. De olhar negro nas faces rosadas,
De tão bri'liha,nte passado só guardarru a; convicção bem D. Sidónia (que faziaJ uma pintura: carre,g ada e colorida
ancorada de que a educaQão de um jovem português de\re como as inglesas do séc. xvnt) mantinha-se ao olhar
fazer-se num ·colégio inglês. Como os outros, Eduardo do filho como era para o·s demais, furta-cores, capri~hosa,
transformara-se num retrato de família destinado a cai- desconfiada, autoritária, e um pouco desaparafusada,
xilho, chapéu branco, barba negra, ca,lças de namquim, o que não excluiru uma! velhacaria muito en'coberta, hábi'l
no Portugal imóvel e bichoso dos derradeiros anos d~t e vigiada. A ifriaidade dos contactos fazia o mordomo
rea!lezai ... De:poi,s disso sobrevi'Vera sem viver,, ocupado Crisóstomo afirmar: «Quando 8J senhora; dá os bons-dias,
em contemplar a subida dos anéis de fliDl.O dos seus é como se dissesse até mais ver.» O que ela pedia à
três havanos negros em direcção a um tecto esticado a criança era 01bediência. O seu «iresponde'-q,ua;ndo..falam-

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Paul Morand Paul Morand

302 ,
303
-contigo·» e o seu «elatá-qu:ieto» ter-iam exaspetrado os para o chá no seu domínio •situado na e,xtremidade de
mais pacientes. tudo, no fundo de um pais já de si instalado na ponta
«Está quieto!» Herdeiro de vinte e cinco gerações da Europa ou do que rainda se conserv.a dela.
de sentados, deitados, jazentes em vida, o que Manuel Deste cativeiTo definitivo, Manue1 não se libertava
sentia era vontade de mexer. Essa paragem total da sem mergulhax na 'biblioteca. da f·amília. Os navegadores
vida numa antecâmara do prulácio de Sintra, esse entor- e almirantes da sua linhagem contavam-lhe a sua gesta
pecim~Emto no fundo de 1llllill familia cujo destino era: não através do•s atla:s e das cartaJs do arquivo. Mapa-múndi
mari·s dar sinal de si, atraía o adolescente para uma voca- em pergaminho, atlas catalão de Cresques o Judeu da-
ção contrária. Queria S8iir' daque'la floresta onde os tando do séc. xvr, ortelius et mercator, primeiros relatos
troncos das árvm:-es à procura da •luz •se erguiam tão di- de viagem do séc. xvr, portulanos genenses, bizantinos,
reitos, tão cerrados, que pareciam as lanças de ferro pisanos, maiorquinos, tão 'I'Ia;ros pelas épocas em que
de um gradeamento. Na descida; para Colares, a enre- os marinheitros áraJbes e europeus deitavam ao mar as
midade da serra. ( *) onde se encontrava o palá'Cio dos cartas, em caso de presa, para despi·star a!S rota:s. (Nas
Abreu era tão· sombria que fazi'a lembrar um calabouço. gavetas chegara mesmo a haver um mapa do Paraíso . )
Estranha vida: essa em 1958, tão estranha como Manuel a,prendera astronomia em Hiparco, geografia
aquele recanto negro de um Portugal todo de branco! em Ptolomeu, as Cruzada:s nrus narratirvas mowa·s e as
Estranha; existência num palácio tão anacrón:ico de uma rotas do comércio nos livros de bordo dos pilotos ou
nação em rejUJVenescimento! No decurso dos passeios nos a:utolf!es chineses traduzidos pelos jesuít!l!s. Naque·le
com o Sr. Rocoot, o preceptor suíço - o último dos pequeno palácio, arca enca~hada; no Ararat, tudo evocava
La Harpe rousseauistrus que ensinaram ao mundo a; a imensidão do mundo, tudo lhe falava de partida: os ,
herborrização e a democracia - Manuel percorria a a:strolábios debaixo das vitrinas, a;s esferas rai'Imri1lares
estrada sinuosa que no flanco da montan!ha: ladeia os por cima das bihliotrecas, as gravuras pendu:radrus na;
nobres domtnios dos vel'I8Jneantes [usitanos; portões de parede representando carracas de duas pontes, caraveliDS
colunas manuelinas cintadas a cordame torcido, gradea- de veiame• latino inchado como ma;çã·s do rosto, de linha
'
mentos barrocos num verdadeiro deboche de ferro for- tão e[evada no casteio da proa e da popa, 'que o• seu con-
jado abriam-se ao vazio do vale; neles via: a; criam.ça tOr-no as fazia semelhantes àJs ondas. P ara as ver melhor
1

o símbolo da sUia vida reclusa, sem principio viital, entor- aproximava um candeeiro de globo coberto de rendi-
pecida de silêncio, 3J)rilsionando sentimentos desbotados, lhados de ouro, que fora ada.ptado à electricidade. As
impulsos que logo a:podreciam como• maciços de hortenses palavras Congo e Equador cantavam como o fundo de
jama;~s cortados. Era com desespero mudo que v:o1tava uma concha, acompanhavam o ruído do mar e do vento

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Paul Morand Pau l Morand

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a assobiar nos cedros .hori~ontais ou despedaçado nos -relâmpago e esgares- envi'ados à s lljpeflfície por estranhas
braços estendidos da·s 1araucári'rus. descarga·s do sistema nervoso, o pequeno Manuel, ági:l
Para desculpar a si próprio o desleixo e a inutilidade, e seco como umaJ .p antera, compunha uma pessoa bem
D. Eduardo relembrava certo pensamento de Bi·sma.rck: diferente do·s rapazes da sua idade e da CaJsa Fonta:rcada.
«que a altura: de um ser é precisamente a da onda que Os lálbios .unidos deixavrun aos olhos :m•illlantes o cuidado
nele se abate ». Nisso via o pai de Manuel uma; que·s tão de falar; a eloq uênci a do olhar operava mais prestigio
de sorte; há povos que não têm hi1stória:, pensava ele, do que a palavra, naquele melo em que tudo se pa:ssava
e gerações que nenhuma onda vem erguer acima de si à superfície. Pressentíamo-lo1de uma e ouu·a naturezas,
mesmas. de uma essência intacta; que grulgara sécill.os de 'Prazer,
Uma vo.z mais profunda que a s ua própria voz dizia preguiça, facilidade, de uma raça que através dos insó-
ao adolescente que o univeTso não terminava em Lisboa, litos da hereditariedade nele respondia, como um eco
no Chiado e na Ruru Garrett. Havendo ainda lUJgar para; longínquo, a antepassados mortos :pela glória~ e pela
a aventura, este pensamento único e repetido à obsessão vitória.
permitia-lhe suportarr a estupidez da avó e a moleza do O adolescente sentia de um modo obscuro que o seu
pai. EncUITalado entre uma Ãfrica i:nacessíve1 e um
1
destino seria singular, mas nã.o chegava a r econhecê-lo
Atlântico intransponível, o fabuloso Portugal de Hen- nem a dom.iná...lo. No meio da ·i ndiferença daquela pe-
rique o Nave1g ador não achara; em Sagres a chave da quena cidade sonoienm de ari·s tocracia e anacronismo,
evasão? Os mares sem farol cujas fogueiras de 1l~nha daquela sesta contemplativa de uma ·Iocallidade turística
depressa se aprugavam, a: navegação sem estrelas no apen1a s visi.Jtada por enm-mes e brutas camionetas que
meio de recifes não assinalrudos, a concOITência dos transpo:rta;vam estramgeir.os enor mes e brut os, também
Dieppenenses, Vickings, Mouros, Venezianos e Pisanos, eles, gra:ndes máquinaJS que mal conse·guiaa:n passar nas
as revoltas das equipagens, o escorbuto, acaso impediram ruelas estr eitas do seio de um ·n ada onde os homens, em-
que as embarcruções do rrei saíssem do Tejo, captassem pobrecidos pela riqueza, tudo tinham cedido à luxúri~
nas vergas a borrasca e fizessem o império, um império vegeta,l, Manuel empinava-se, r ecusava-se, deixava .que
que ainda ~esistia, magnífico, quando todos ·os outros dentro dele subi·s se a !t'evolta. Não queria ser uma ostra
se aJfundavam? estacionada, como os demais. Uma necessidade louca
Com o seu rosto cheio de fil'meza, a fronte bai·x a à de adquirir, anexar, apall'har, obrigaJVa-lhe as têmporas
Jean Mall'ais, os ma-,cllares trulhados a machado (sur- a bater e enxarcava-lhe as mãos dentro dos punhos
gidos n ão se sabe de onde numa família sem queixo), fechados pela rai•v a. «Há-de ser duro saparar-me um
a face incessantemente C'Oirtada, e o n ariz, por tiques- dia do que viveu comigo», di'2ia muitas vezes D. Sidónia.

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Paiul Morand ·: Paul Morand
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«Que agradável seda deixar tudo isto!», re,spondi•a em . jardim. Este ·s er ·b ravio e singular para lá ficava: horas
silêncio o neto. O entorpecente mutismo de Sirntra, as num e-stato de total ausência ou distracção, magnetizado
sua;s noites mortas, da;va:m-lhe vontade de_ gritar ao por qualquer pólo longínquo e invisível.
pai do fundo do leito com cortinas de damasco: «Por Exotismo reencontrava ele em casa, no sal•ã o Paulo
.que é que o P rupá nunca se af81Sto.u par,a muito ~onge?», · e Virgínia do palácio de Sintra; em um salão do fiim do
ou: «Por que é que o Papá voltou?» séc. xvrrr pintado por Fillement, onde as paredes pro-
Por desespero, Manuel tentara uma vez afogar-se longavam a nostaigia: portuguesa das feitorias ultrama-
rinas~ O sa!lão, tecto compreendido, representava uma
no Cabo da Roca, e de outra vez enforcar..;se num euca-
lipto. Ninguém soube. Não fora o medo a retê-lo, ma;s cabana de hrumhus com falsas janelas que se abriam a
uma curiosidade misteriosa a di'z er-lhe ba;ixinho que· um porto deserto cuja água molhava brigues pálidos
os teiil!J?OS iam mudar e rupro".ldmá-lo da vida perigosa· eternamente prestes a par.tir. Papagaio;s pintados man-
dos ante passados mortos no exé:rc~to do lfHho de Inês tinham-se pendurados na's adormecidas manobras; este
de Castro, que voltaria a idade do'S descobridores, os idílio deixava-se arrastar 1JOr s·éculos sem vento, müle-
primeiros descobridmes (*) da famíli·a;, e talvez novas mente, em teLas recolaJda:s, num perfume de· hurnidade.
ilha;s encantadas se oferecessem ... Para Manuel, esta; divi1são à moda de 1780 desprendia
Tomava-o como uma raiva a necessidade louca de · um forte che·i ro a a:lta's aventuras; que importava aquelas
v:estir cores vivas entt~e ws pessoas como deve ser, pes- persianas serem falsas e wbrirem-se a: perspectivas i1usó-
soa;s sempre de negro, de .luto .pela própri'a vida. A ddade r.ias, se conduziam a eaminhos de .sonho!
dos alfinetes de gravata dava o lugar à outra, do pes- Era tãü bela de ouvir a história dos Abreu de Fon-
coço nu; com ele aca;baria a capela de genuflexórios, tarcada ... «Conta outra vez ... », dizia aos ·s ete anos
o botão de caméli'a na botoeira, a civiHzação ocidental · quandü Eduardo descrevia pela centésima vez o cerco
/
desembaTcada em navios, acabM'iaJm os ja,ntares vindos de 'l'ânger, narrava a morte• do antepassado Alvwre:z de
de Paris prontos a servk, as barbas e os binóculos da: Souza y Sá comido pelos selvagens das Moluca;s e ter-
lfa:mHia, os grooms, os la:ndaus, as sobre,casacas, as me- minava gravemente assim: «Dos duzentos homens da
lodias de Gounod, o Joclooy Club) e os criados a três ··equipagem apenas sessenta regressaram»;
par·a fazerem uma cama. Qualquer coisa se iria pwssar ou ainda:
no mundo ... Mas o quê? «Graças a uma árvore desconhecida chei.a de ninhos
Aos catorze anos Manuel só saía acompanlhado. Só que deu .~ costa na Ilha Terceira dos Açores, ex-Heis pé-
nas fronteiras se sentia em contacto directo e solitário ridas, é que se descobriu que a oeste ainda havia mais
com a natureza, isto é, no pavHhão gótico do fundo do terras ... ».

;;,F. dI ç õ e s A f ·r o dite - D E F O R A P A R A D E N T R O
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Paul Morand' ::Paul Morand

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A mais fabulosa lenda era a do famoso antepassado"' - Porque o homem tem os seus limites; e a •geografia
o fidalgo (*) Pacheco Pereira da Cunha, Grande Mestre· também.
da Ordem de Cristo, que à partida não !Possuía mari•s do· Manuel insisUa:
que um moinho de vento e acabou vizir do Grão Mon- - E por que tem o homem os seus limites?
gol; sendo tão há:bH como os navegadoTes árabes a . No leito. cheio de insóni:a, Manuel roía-se de impa-
·ciência: «Por que é que já não somos como fomos, ho-
calcular a altura do sol, nunca mai's deixaram que revisse
-mens insaciáveis e sem ;escrúpulos que ninguém convidou
a pátria e acabou por morreT em DeU, num palácio•
mas devoraram sàzinhos o festim ... Quero ser como eles,
magnífico cuja cúpllia l•embrava uma de·s tas abóboras-·
.devorar o p-laneta como os nossos antepassados, devorá-lo
-meninas que ao outono amadurecem nos telhados de
com um rugido feli'z ... como os Russos ... sem vergonha,
Alcobaç.a.
·sem medo do ~castiogo, de censuras ... Nunca estar em
Numa vitrina tam}:)ém havia o srubre de brornze do·
1
falta por não ·ser apa:nlhado em falta ... E meter medo
rei do Benim, testemunha derradeira do anrterpassado· -ao mundo inteiro!»
· Hen:rique; o bracelete de escamas de peixe arrancado Deu umru volta com raiva; a vertente siJenciosa e
por um ascendente materno, um Vila Reatl, à rainha ·secreta da negra Serra de Sintra (*) esmagava-o, co-
das Ilha•s Afortunadas. Manuel nunca passava sem ·roada pelo castelo mouro desmantelado e pelo Castelo
estremecer pela antecâmara em que ·b rilhava a; serra de~ ·da Pena com as suas amei'a·s de teatro, a si1lhueta: saída.
cortar as pernas dos escorbúticos, conservada como re- · de um desenho de Victor Hugo, verti-cal, naufragada, um
cordação do tio-·a vô António da Fonseca, cirurgião da. ·barco em plena selva.
mrurinha. O illegreiro Miguel de Ramalhão Peckalva, seu - Tivemos tudo; o que nos resta ágora? Oliveiras,
tatarayô materno, decorara no séc. xvrrr o jardim de ·cortiça, amêndoa•s, uvas ... Como odeio Sintra! E um
inverno com os ferros dos escravos da entreponte; no· corredor maldito que não ·conduz a nada, cheio de arqui-
tecto de vidro ainda hoje estava pendurado um caimão . tecturas extravagantes, rrobr:es mansões dementes ...
gigante cujo pescoço se ornava de um laço cor-d~rosa Vi~ do letto as du-as chaminés do velho palácio; insen-
e servia de lustre. Este passeio mitológico através do sível a tanta singulrur be·leza, invectivaVía:
palácio terminava sempre, na; beiçada algo vioJeta de· - Byron, Beckford, todos os chalupas da Inglaterra
D. Eduardo, por: «Era. no tempo em que Portugal fazia · vieram naturailmente fazer a sua estadia em Sintra! Sim,
História ... » ·todos os desaparrufusados aqui, desde o rei Afonso VI
~E por que é que já não faz? -perguntava Manuel .·que o irmão aprisionou e pôs nove a;nos a desgastar os
Jesus. ·ladrilhos do quarto, até àquele 8!lemão grotesco de

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Paul Morantf <· Pau·l Morand

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1840 ... que, todo orgulhoso do seu castelo gótico e desa- - horizontal arquitectura das administrações corrige os
tinado, .pespegou lá na crista a própria estátua de pedra, sobrepostos andares ruivos de Alfama e o eri'ç:ado ro-
feito pa.ladino das Cruzadas! mântico do Alcazar mourisco.
Sentiu desejo de rever o mar do alto da estrada do · «Aqui é a antecâmara da Europa ... A antecâmara do
Estoril e primeiro o Mar da Palha, a cerca de dez quiló- mundo ... », repeUam-'lhe.
metros, onde desagua o Tejo. Quantas vezes invejara as «0 mundo é pequeno ... », pensava Manuel.
crianças de Sintra, rapazes e raparigas. que ao. irem à Duas horas da manihã soaram no palácio de Sintra;
escola nas suas blusas brancas (lembram adormecrdos · não eram o badalar apressado dos relógios ráJpidos de
tirados da ·c ama e empurrados para a rua por um tremor hoje, que atiram com o tempo à·s mãos-cheias ~ um
de terra) podiam quatro vezes ao dia gozar a vista: um tempo tão degradado como o espaço - , porém lentas
bad ah~;das que ressoavam no vazio como os sapatos de
primeiro plano de vel'has apanhadoras de ·l enha, campo-
nesas adoràvelmente cohreadas carregadas de couves feno de um burgra ve no seu caminho da ronda.
ou mesmo a;rmações de cama à caJbeça, como g.:=~ fossem «Na idade em que a força e a esperança da Terra
uma tiara, árvores torcidas pelas bo:rrascas do oeste esta.vam aqui, entr.e nós, as crianças deviam ser os reis
e que crescem corcundas entre 'a s giestas e mimosas . da casa porque os pais andavam em viagem pe'lo fim do
amarelas, quando os cubo·s rosados das construções da·s .. mundo ... As crianças saíam, portanto, sozinhas, tãn sós
quintas ( *) não se encontram lá rpara lhes. cortar o vento. como eu vou fazer ... »
Os campos descem às ondas de colinas até ao estuário, Sem ruído abandonou o leito e deslizou através do
seme}hantes aos folhos dos vestido-s ciganos. Ao fundo parque, até à estrada. Os pinhekos mansos balançavam
o Alentejo e a Serra da Arrábida, onde: o duque, seu as massas horizontais como. uma ponte de navio. Ao luar,
parente, tem um castelo. Quando lá ia merendar e vol- os ramos dos carvalhos recobertos de um líquen branco-
tava de barcaça, os olhos de Manuel enc'hiam-se do fer- -esverdeado pareciam ossadas fosforescentes de uma
vilhar do estuár.it>·: acima os estaleiros onde as caravelas dança de mortos. O solo, ainda juncado de ramos da tem-
querenavam, as nurvens de uma tempestade de chumbo, pestade da véspera, estalava debaixo dos p·é s da criança.
suspensa.s ·em baldaquino barroco sobre ü lençol liso do. Aqui e além uma fonte d e faianças. 3!marelas e a.zuis,
rio, recusavam-se a romper. Através da floresta dos. uma estufa coberta de folhas de palmeira secas, um
mastros, o olhar via ;e levar-se a catedral com as suas . canteiro cultivado. de ümoeiros, um charco artificial
torres de amei~s e a igreja onde dormem os Bragança. onde flutuavam lótus ... A sombra era tão negra debaixo
O adolescente reentrava pela nobre Praça do Comércio, das árvores cerradas, que a lua- tal qual a ;l uz do dia-
uma das mais bela·s do mundo, onde a rígida e verde · desanimava ao querer lá penetrar; os muros de suporte

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Paul Morand Paul Morand

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bolorentos e sobrecarregados de saxifrágias gigantes, :sintegrar pedras corcundas, rugosas, · barrocas como a
os misteriosos postigos nas vedações de torreões e pintu- concha das ostras portuguesas.
ras ferrugentas, as portadas, !assas de abrir sobre man- Manuel não chegava a comp:reende:r como esse lugar
sões de há muito arruinadas, submersas no apetite feir'oz de eleição natal ipU:des,se constituir objecto de curiosidade
das árvores, a humid:ade natural somada ao ·frio de uma para estrangeiros, uma ;pausa num circuito turístico, uma;
noite de Dezembro, tudo !Se aliava contra o va:ga.bundo sombra rpara piqueniques. Era avi·ltar a: estranheza espi-
nocturno. ritual de um. lugar que ele desejaTia ·subtrair aos bárbaros
Não fraquejou; o cheiro balsâmico dos euca:Ii:ptos, do American Express~ a fi'm de melhor proteger a de-
cuja casca molhada: e fiLamentosa; se despedaça nos dedos, sordem. «Para traduzir a nossa Sintra :seria preciso um
revigorou-o. Já não senti:a medo de estar só. Começava Leonardo ~ dizia às vezes o pai - , o lá;p:is do Vinci,
mesmo a sentir grande prazer. Uma. alegria subitamente ()S seus sfumatos 1ombardos; .as neblinas da manhã são

virH for o :preço desta coacção à aventura que al,guma as dos lakis.tas e os carreiras da serra são meandros
coisa mais farte do que ele impunha e lhe chegava de maUarmeanos.» Manuel nada compreendia desta;g refe-
muito longe. rências literárias, mas a.gradavam . .lhe, acre•scentavam
-Cresci - exclamou ... - Finalmente cresci! o seu véu ao da floresta imperturbável, até mesmo nas
teias de aranha, essa floresta em que as árvores são
E~perimentava um sentimento de fmça em estado
aviários e a :rocha pousa em ponto final do fim da fra·se
puro, o regozijo de uma escolha. Imaginou que navegava
tortuosa das veredas. O fulcro deste sistema vegetal
debaixo do mar (a pesca submarina estava-lhe pro.i:bida:
-era o Palá;cio, o verdadeiro entr.e os outros falsos.
pela avó, por causa das moreias). A floresta de Sintra
A amêndoa das suas arcadas góticas abria-se rpara belos
tornava-se submarina pela desordem viscosa, pelo encan-
salões pintados, o das Corças, o dos Cisnes que desde a
tamento dos ruídos de água; esperava ver circular entre
infância o encantavam como último livro de imagens de
as árvores e destacarem-se do húmus bolhas de ar, de
uma verdadeira civili'zação. o exterior do p.alácio não lhe
tal forma ·sentia no fundo do coração essa prodigiosa causava .o menor de~eite: brotando completamente nus
efervescência poética do velho bosque. Enredados uns de uma sombria natureza de colete engalanado, os dois
nos outros, os carvalhos de folha caduca e os carvalhos eones que tudo dominavam e apenas eram chami!lllés
de folha persistente baUam-se de morte pela conquista de uma cozinha rabelaisiana perturbavam-no como enor-
do firmamento, trazendo agarrados mil parasitas, buxo, mes tetas de ama de leite.
espinheiros, azevhlhos, tufos de pêlo e cogumelos ver- Manuel trepou ao pequeno oratório dos capuchinhos,
melhos, enquanto as raízes-polvo se esforçavam em de- abandonado desde há séculos pelos nove monges mortos

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Paul Morand
Paul Morand

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de pleurisia! e reumatismos na inibição das celas cavadas
A seus pés, o palãcio da famfii.a pare.CÍ'a-Ihe coberto
no solo como toc·a s de .coelho. Era~ mn cenário do Fro
de bolor como a superfície dos boiões de doce da; avó,
DiavoZo. As celas haviam sido concebidas para a expia.- «Aqui está o derradei:vo apelo dw coruja, que d;ã um
ção dos pecados; não era possível lá e~srtarmos de pé nem pio antes de ir para a cama ... Vou provar a;o mundo
deitados; lajes fúnebves serviam de ·b ancos e mesas. que o verdadeiro Portugal -ainda existe. A via está tra-
Os revestimentos de cortiça Ubertavam um cheiro a çada; vou dar à minha pátria. uma oportunidade como
roJ:has podres. Este pico do Monge era muito alto; fica- de:Sde há séculos não tem! », exclamou.
vam à porta todas as esperanças, todas as necessidades Distinguia o seu palácio um pouco pagode pelo te-
humanas se' anulavam nesta aterradora miséria. O ado- lhado carnudo, um pouco parthénon pelas colunas, de-
lescente pensou em FHipe II, dupl.a mente orgulhoso de bruçado por cima da ravina e rodeado de um jardim de
pos·s uir o Escurial, o mai·s rico dos mosteiros, e estes buxo talhado à caniche.
Crupuchinhos, o mais pobre ... Caminhava num solo ave- Manuel .pôs-se a dançar ali mesmo, ·batendo de alegria
ludado pelo musgo enverdecido em inv.isí;vei·s molhas, em na cabeça como fazem os gr:andes símios. A tomada de
regatos que gorgolejavam em cima da~s pedras. Os fios. consc.iência da sua v:ocação precisava~se com a intensi-
pendentes das teias de: aranha, as franjas de musgo, dade dos apelos místicos.
os folhos de líquen membranoso agarravam-se aos tron- A lua!- gritou. Novo diamante de um novo Brasil,
cos bolorentos como guklandas aos pinheiros de Natal. ó lua, conto contigo para reencontrar o direito de ser
Que divindade pagã sobrevivia ali~ ao Cristo? homem! Vou finalmente ser tomado a sério!
Atingiu enfim o alto, termo da passeata nocturna. Ao meio-dia, D. Sidónia e D. Eduardo encontravam-se
Pela .primeira :vez dominava a noite, o oceano e os seus na sala de jantar; ela apertada numa cinta de insecto,
paquetes ilunünados, ·a planície e as suas dewito aldeias ele esterlicado na última sobrecasaca da Europa.
até Mafra, o estuário de Lisboa sob O' halo vermelho dos -Manuel não desce para almoçar?
reclamos luminosos entre os faróis da barra e os radio- -Ainda não o vi. ..
faróis do aeroporto. O sol nascente· muito em breve lan- -Não esteve a tocar piano?
çaria as flechas ca.rmins entre os ramos, pela mais bela -Nunca se sa,be; as teclas estã9 de tal modo inchadas
das manhãs de Dezembro. de humidade que o som é abafado.
Crisóstomo apareceu, erguendo a porta em kara-
Manuel bateu no peito e com o ta:cão. «AC3ibada a
manieh; trazia mn:a travessa com ·l egumes ingleses,
submissão aos que só querem uma coisa: que eu me pa-
trupada.
reça com eles!»
-Vai ver... Eduardo.

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO I


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Paul Morand
1 Jlool Morand

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-Não seja impaciente, mãe! Esperemos :ma:is um -Antes de mais, diz lá o que é essa carta, meu
:pouco. filho.
Crisóstomo bai!Kava os olhos para não ·ser !interro- D. Eduardo sobressaltou-se:
gado; não ousava; dizer que o quarto do jovem patrão - É dele, do Manuel. Vou ler':
·estava vazio e intacto, na mesa-de-caibeceira: o café frib. «As minhas d13sculpas, rn.as niio posso oontifi/UO/r em.
_ Quando es·s es dois :rostos de patrão, um deles esque- casa. Não mamdem ninguém à minha procura. Vou paro;
letizado, a caminho da caveira, o outro pesado de gor- muito longe para me alistar como voluntário do espaço.
dura, ambos fa:tigados por nunca terem vivido, se vol- Quero que seja um partuguês o primeiro a desembo!rcar
tavam para o jardim, o que logo discerniam no relvado noutro astro ... Ofereço a minha vida pela primeira via-
era o mausoléu dos Abreu de Fontarcada aquartelado gem que se fizer nrum fog'UX3tão. Não me tomem por
por qua.t ro anjos do cinzel de Jacinto Vieira. Um mau- louco, pow foi assim que ao leroontar da âncora em
:soléu, única perspectiva dos seus futuros ... Ban Lucar cha'mll!T"àlm a MagalhOOs ... Mesmo que nã<:>
-Vai sair no Bentley ou no VauxhaH? reine sobre a Lu!J,, hei-de ao me'Yiios reitnn,r em. mim.
Num tédio que nada podia divertir, na esmagadora E quando o meu preceptor voltar iJn, Suíça, façann o jQ11XY1"
-perspectiva de uma: perfeita economia doméstica, quwl- ~ lhe dizer que dou hoje, filnalmente, todo o sentido-
quer deles se ruba:tia como um muro que sucumbe aJO a um ca;nto da Eneida que ele me obrigou a traduzir::
próprio peso. «Macte no:va :virtut,e, puer; sic :i.tur ad astra» («Tende
--Não devias ter consentido que o preceptOil' ficasse uma caragem nova, criamça, pais é assim que se · 30be·
oo. Suíça. até oo Natal. aos astros») .
......-O Manuel não há-de·andar sempre com o Sr. Rochat Vooso füho sem regreslJO.,
:atrás dele; lembre-se de que vai fa;zer quinw anos ... Manuel.»
- É melhor telefon8ir para o centro hípico do Estoril. (Nouvenes de8 Yewx;)'
Como o tempo está bom, .talvez tenham saído mai·s tarde!
De qualquer modo, a «cri:ança» não pode continuar sem
ser V'igiada ... Vou telefon.a.r para Genebra e mandar vir
o Sr. Roohat o mais depressa possível.
Na altura do café, Crisóstomo trouxe uma carta numa
salva de acaju.
--'- Ã frente dos criados não torne a chamar «Criança»
ao seu neto, minha mãe. Isso· humilha-o - disse Eduardo·.

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PHILIPPE SOUPAULT
(1897)

Phillipe Soupault. Pooso neste homem incapturável


que desliza co'mO o vooto, hO'mem clo!ro· e secreto,
gentil e cruel, cortês e insoloote, ligeiro e profundo.
Imagino esse viajante sem bagagens que atravessou
tantos paises, tantas relações, tantas leituras. Penso
no OJmigo fiel, disponível, sempre aberto· a outrem,
atooto ao que vai nascoodo, maravilhosamoote à von-
tade rr;o clima da juventude porq.u e joverm incansável,
ele próprio. Penso no poeta desenvolto e sincero fol-
gazão e patético, o das confissões a,.,~gu.stia<las e o
que se esmigalha a rir dos grandes ventos do Amor
e da Liberdade. - HENRI-JACQUES DUPUY

Nasce em Chaville, de pais burgueses. Faz


o liceu em Paris. Aos quinze a;n;os visita a Ale-
manha e a Inglaterra. Depois do bacharelato
em Filosofia, empreende sem entusiasmo o
curso de Direito. A mobilização de 111118 fá-lo
artilheiro-condutor no 33: Regimento de Ar-
tilharia de Angers. Durante o mesmo período
vê a sua vocação literária estimulada por
Apollinaire. Adere ao movimento surrealista
e, depois, ao movimento DacM. A partir de
1942 reinioia as suas viagens por todo o
mundo, tendo estado em Portugal por oca-
siões diversas. Em 1950 visitou Angola e Mo-
ça.mbique. Principoo obras: Os Campos Mag-
néticos (de colaboração com André Breton),
Aquário, Rosa dos Ventos, Westwetgo (na
poesia), Convite ao Suicídio, O Bom Apóstolo,
Os Irmãos Durandeau, História de um Branco
(na prosa).

Eidiçõ•es Afirodite - DE F O RA PAR A O EN TRO


Philippe Soupault

321
Bilhete-postal
Lisboa, de madrugada.
O comboio sai de um túnel e a cidade surge com a
lentidão de um sol que nasce. Através das janelas das
carruagens distinguem-se gotas de orva·Lho que são os
lagos das pr-aças públicas.
Ma.!l descemos do comboio, o rodopi'a r da Grande
Praça de D. Pedro engole os viajantes. Temos de atra-
vessar os riachos de sol e o passo torna-se lento. Car-
tazes langorosos fazem-nos sinais, uma cr.iança com
·jornais grita catástrofes e crimes.
Damos a volta à estátua equestre de Pedro que, gene-
ralíssimo, imperador e rei passa revista aos fiéis lisboe-
tas enquanto os raios de sol jogam às damas no pavi-
mento ·b ranco e n;e gro da praça. Como está bom o tempo
nesta cidade Iíquida! Ouve-se a água, através•de• um arco
de triunfo distinguimos .o mar que é um r.io e um rio que
já é mar. Ainda mal chegava e já me decidia a reem-
barcar.
O porto é um amante que lampeja: um enorme sus-
piro de sereia dá o- sinal da partida. Escutamos: flutua
uma bandeira para anunciar uma ,p assagem e· os grandes
pássaros marinhos, que ainda há pouco enfeitavam com
a plumagem vi'Va o bi'córnio de D. Pedro, levantam voo
em direcção aos países fr.i.os.
Também •a s mulheres, todas as mulheres, le'Vantaram
voo. Nunca lhe·s pomüs a vista em cima;. No ·entanto,
várias de·l as à saída das esta·ções espreitam os viajantes,
para entre eles escol-herem os estrangeiros e oferecerem

EdiçõesAfrodlte - DE FORA PARA DENTRO


21
Philippe Soupault Phillppe Soupault

322 323
flores com um sorriso que, a acreditar no guia, pode tra-
odor a maçãs. Há uma explosão imprervista de vozes no
duzir-se desta forma:: «Aceirte estas flores por amor de
mar ou ~os cais. Fic-amos cegos p.elos reflexos da. água,
mim.» Sorriso :irresistível! Aceitamos o dom tão gra-
pela clartdade: que adivi•n hamos atrás de nós, graças ao
cioso. Também sorrimos e oferecemos um escudo, e em
português esse sorriso pode traduzir-se desta forma: bttr~buriniho que desce da cidade p.a ra :s e deitar a"O silêncio
do porto, imenso túmulo.
«Aceite este papel por amor de mim. »
Para chegarmos ao porto percorremos uma rua onde São oito horas: o sino de uma pa>rtida faz despertar
flutu&m bandeiras de todas as naçõe~s. Com efeito, os relógios e toda-s as igrejas cantam uma prece; cada
qualquer imóvel que a ·si mesmo respeite abdga um esta- um dos pássa;ros lisboetas Ieva consigo uma nota um
belecimento de crédito. Ouvem-se máquinas de escrever versículo, e dispara no firmamento para iluminar 'uma
a solfejar créditos e débitos. Ã volta dos postigos há estrela, um rosário de estrelas.
inúmeros clientes. São tão numerosos esses estrubeleci- Abandono a noite, penso neste porto que é um ninho
mentos como os de venda de vinho em Pari>s. Derpo,i s das para os vefeiros, par·a os grandes .p aquetes sacudidos
cinco horas toma-se o gosto às cotações da Bo}sa, bebem- pela _:empestalde, .p ara os páJssaros que hahitam a praça
-se Royal Dutch, Beers ... Ca~oes .onde também fica situado o meu hotel. Há par-
Refugio-me no cais do porto que :adormece, enquanto dais que esperam pousados nos fios telegráfi:cos como se
o sol poente de:s dobra no céu bandeiras multicores. Sem- fossem cachos de pequenas flores. Esperam um sina!l do
pre bandeiras! Param todos os vapores; desliza em si- poeta que, no seu :Pedestal, .parece um chefe de orquestra.
lêncio uma grande barcaça; cai uma vela como umat folha Milhares de pássaros sabem de cor cada um dos versos
morta, como uma pálpebra. O imenso· barco da noite des- dos Lusíadas. A ·s egunda árvore será o segundo canto.
dobra o seu velame de luto e na baía cintilam milhares Tudo acabou. Tocam as horas e todos os músicos re!Petem
de olhos como ventosas de um polvo fosforescente. Ao a lição em conjunto. Para- o estrangeiro é um tumulto
crepúsculo surgem enlfim as mulheres, todas as muLheres, inquietante. Dir-se-ia um gigante que sacode sacos de
carregadas com cestos altos: vêm eolher as flores, os nozes. Debruço-me na minlhru janela para observar o fe-
peixes de· um pescador. A água marulha, concerto de nómeno. Ca,da um dos ramos, cada um dos galhos das
rãs, ~a água empUTra destroços com sapiência, um saco árrvores, é rum dormitório. As famílias di's cutem entre si
estampado U. S. A., o cadáver de um cão. Repelente para recuperar o seu lugar. As folhas tremem. Petrifi-
de brancura, uma comprida serpente marinJha ausculta cado, o poeta carrega o sobrolho. Tudo se cala. Faz-se
o cadáver, fá-l'o desviar-se e atfasta-se mole .em direcção o sHêncio na praça. Pode finalmente ouvir-se o roncar
a outras putrefacções. O vento arra;sta um carregado dos automóveis e o barulho dos eléctdcos.

Ediçõe ·s Afrodite - DE FORA PARA DENTRO EdiçõesAfrodite - DE FORA PARA DENTRO


Philippe Soopault Philippe Soupault

324 325
O meu quarto é escuro; oíi'iento·-me sem dificuldade francês e parisiense! Europa! . Bem te reconheço-. Este
às apalpadelas.: é um quarto de hotel que se parece com hotel é uma das tuas inumeráveis sucursais. Atravesso
todos os quartos de hotel! O ·lavatório escondido por um uma rua e eis-me em Portugal à noite.
biombo, o gua.rda-fato• de madeira: envernizada, um cin- As ruas estão desertas, as ·lojas fechadas. O ci'colone
zeiro de cobre, a mesirrha-de-ca:beceira ... do repouso caiu 'na capital. Todos os habitantes se refu-
Mal fecho os olhos o vento suave, o calor claro, o gia,ram no te·rutro; àquela hora mais ríão se ouve do que
cheiro das tílias ensinam-me que estou longe, que este o ruído dos aplausos ou a tempestade: dos risos. Nos
clima é o de um porto ·situado ruo sul no Ocea:no Atlântico; cafés, os criados dormem é nos· céus a, lua e·sconde'-se.
0 s.om das vozes que sdbe da rua permite-me! que il'eco- Esforço-me por descobrir o segredo dé Lisboa. Como
nheça o exacto gra:u de longitude. A·brindo porém os um detective procuro .p istas, ·s inais, rastos. Persigo o fa-n-
olhos fico desori:entado; Se olho· a po·Ltrona estou. em tasma de uma multidão. O meu caminho, a minha pis·t a
Berlim, se oJho o tinteiro em Boston; o tapete em Parios está recheada de cadáven:~s. Ali está a estação morta,
(na Praça CJi:chy). Batem à porta como em Ca11p€ntras; o falecido D. Pedro, a praça sem v.ida. Ali está o mercado
entram como em Lião. É o empregado da recepção que onde as correntes de ar levantam pa.péis, desarrumam
me pede instruções. É tagarela:. Não tarda que fique cestos, põem cheiros em mdvimento. Uma avenida; com-
a sa·be·r como ele «adora» a ·l iteratura e sobretudo Henri prida, tão comprida que lhe chamam ·s implesmente
(ou Henry, já não me lembro) · Ardel, ·t al' como em «A Avenida», não passa de um cemitéri'o: há nela tantas
Puget-Théniers. Faço-lihe perguntas. Responde com volu- estátuas, tantas flore's imortais!
bilidade. Fala alto e grosso: é um conspirador. «Estive Abandono-me às ruas que são como riachos de so-
muito tempo em França; fui "e~lado político". Voltei· nhos. Está uma noite azul por causa do calor que mur-
e não tarda que façamos a revolução a que havemos de mura aqui e rulém, nas rugas de um tanque, num monte
chamar Manuel.» Exwlta-'se e faz gestos largo·s. Fecho a de arei·a de um parque, no alto de uma palmei·r a resse-
janela. Ao deixar-me, grita na escada: «Sim. senhor, o quida. O ar estiá calmo. O vento pass·a sem levantar
~mtel vai surgir rpor aí depressa». Neste ,país os admi- um só grão de .poeira, sem agitar a menor trubu1eta, a
radores de Henry Ardel :não têm frio nos. olhos. mais pequena bandeira.
Fujo do Hotel da Europa que bem merece esse nome. Os quilómetros que· me separam de Paris são [nvi-
Tal como os móveis, os· homens são europeus. O criado sívei·s como as ondas hertzi:ana•s. Estou «na província».
de quarto espanhol. Desço um andar e a criada é italiana; Ali está o a:rnna~m do «Petit Paris», a modista «Au Chie
máis outro andar e o chefe dos criados é b,elga, o gerente Parisien», o ca!baret «Montma:riois». .Fumo cigarTos
suíço, o porteiro marroquino e eu, no espelho da entrada, «feuilles de :rose». Vai' dar a meia-noite ... Erram ao acaso

EdiçõesAfrodite- DE FORA PARA DENTRO Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Phili'Ppe Soupault
P~llippe Soupalll·t

326 327
Antes de chegar ao meu hotel tenho de. aJtravessar
os si'l1!ais nocturnO.s: é um canto velado que se esc8ipa
da cave de uma rpaste~aria, é um candeeiro que· projecta ll!ma rua. Vislumbro o porto e a tentação é muito forte·.
um raio no pavimento, é uma. mulher que sorri. E meia- Falta-me ainda um pouco· de noite, um pouco de vento.
-noite. Ouvem~se· portas que rangem, murmúrios de As estrelas e as. luzes vermelha-s e verdes dos navios ,
que vão partir são o.s meus guias. Ainda; não cheguei
multidão. Um automóvel atravessa a grande praça.
ao cais e já .s onho com a partida. Os meus ol!hos fixam-se
Os ·Criados dos cafés despertam em so·b re·s salto, as.
numa sombra que mexe no escuro da noite. ·Estou à
amáveis ·florista.s estremecem, sacodem os cravos para
espera de todos os ;p ensamentos que, não tarda, me vão
lhes aviva.r o rosa-pálido.
abordar. Sinto-me tão. só que sinto necessidaJde de ima-
Sento-me numa cervejaria e peço ingenuamente um
ginar logo ali uma presença. Serei eu o fantasma, ou
porto. Vários cLientes se voltam num espanto. O meu
aquela sombra? ó céu, face estrelada de olhos, ainda
vizinho observa-me e pergunta: «Vaus êtes lfranç.a;is?»
· ignoro a tua •s everidade, a tua paixão, o teu reconheci-
Responde por mim: «Üui». Cumprimento. Falamos ou,
mento. Estendo as mãos frias·, as mãos que jâ nem se
para ser mais exacto, ele fala e com muita correcção,
lembram do torneado das ancas. E é uma •som'bra o que
tanJta correcção que acontece muitas vezes eu não com-
espreito nesse recanto nocturno, hesitante, inflado de
preender o que ele me diz. Possui um vocabulário extenso.
pensamentos, pequenas ondas furtivas. Que me dmporta
«Ce que j'aime de•s Français, c'est la perspicacité. Les
este pais onde me surpreendo a voar, pois que ele tem
Porlugais sont des malacostraoés. » Não tenho tempo de
a sombra e o meu desejo!
compreender e protestar. Acompanha-me à porta do
Prefiro dormir e volto •a o quarto como o fatigado
hotel: «Naus avons ·aussil des cajiibi•s de• nnit ou dansent
viajante de uma excursão, vou para a cama chata, rija
de três belles gonze·s ses. Si vous n'avez pas les foies,
e simétrica.
allez-y.»
Fa1a do Presidente da República sem respeito e à
maneira dos cançoneUstas de Montmartre. :m republi-
cano, democra-ta, socialista e comuni•s ta. Mas esse revo-
~ despertar na manhã segui:nte procurei à minha
lucionário tem remorsos. Pergunta'-me: «Avez-vous
entendu parler de Manuel? Comment va-t-il? HeureuS:e- volta uma lembrança, um .p rojecto. O C·8ilor era muito
ment, H a beauooup de pere. Nous ne sommes pas des forte. Volto a adormecer mas sou um vrajante e não
miquelets.» posso sem remorsos ficar inactivo. Tenho como dever im-
Aperta-me a mão dizendo «A Dieu!». E depois lá ·se perioso visitar a cidade. Apresso-me. Estou certo de
afasta a escarrar, ·segundo o costume português. que existe alguém à minha espera. Todas as sereias do

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Edlçõ ,es ' Ahodlte DE FORA PARA DENTRO
Philippe Soopalllt

328
porto uivam, chamam. Gritam-se jornais, fLores e frutos .'
O sol :persegue-me na rua e, envergonhado, precipito-me
em direcção à -praça, cumprimento respeitosamente o
senhor e caro confrade que lhe deu: o nqme e a estátua,
subo ao acaso num eléctrico. O condutor propõe-me um í
bHhete para Buenos Aires! Recuso, pois na verdade é
muito longe. Desço à frente de uma igreja. Não tenho
escolha: é o terminal. Está por completo abandonada
e só a utHizam para secar roupa. Subo por uma ruazinha
populosa. As casa·S são negras; ao fundo dos pátio·s dis-
tingo um fervH'har de seres, oiço gritar. Miúdos encar-
didos seguem-me por cur.iosidade mas vão mendigando,
l[lOr discriç·ão. Um ajuntamento à porta de uma casa.
Penso numa rixa «Sangrenta», bem entendido. Olho:
são músicos que afinam guitarras e esperam o meio-dia
na soleira de um bar. Marinheiros, faces morenas, bebem
sentados às mesas. Entro: mal reparam em mim. Es-
condo-me entre a fumarada e escuto. Não se passa nada.
Continuo a minha ascensão. As casas são ·a gora mais
limpas, as valetas menos ,pardas, mas a rua é triste;
salta-nos ao pensamento a imagem de funcionários tími-
dos, pobres mas orgulhosos. Ora aqui temos lojas de
grande movimento. De repente paro. Ao fundo de uma
rua acabo· de ver uma placa imensa que resplandece.
«0 Tejo, o céu?» Chego por fim •a uma praçà. Deparo
I
com á'I'Vores, a cruz de uma carpela e, de um só trago,
LISBOA.
Dá-me idei·a que as casas se precipitam ao meu en-
contro, o céu me submerge e eu sufoco. Ao mesmo tempo
os telhados vermelhos, os telhados negros, as ruas

Edlçõ'ElsAfrodite- DE FORA PARA DENTRO


Philippe Soopault

329 APARTE
329
azuis, as árvores multicores, o campo encarnado, o Tejo
castanho, o mar violeta, o céu cor de fogo ... Oiço mu-
!lOBERT DESNOS: nOue bonita, Lisboa. gidb·s de navios, zumbidos de animais, fontes, motores,
Na chaminé dos vapores uma criança que chora e, muito ao ionge, di's tingo um
Molda-se o fumo, voa
Sob a forma de flores.n 1 pescador que deita: num cesto uma porção de pe-mtes bri-
lhantes. De um •SÓ trago, num segundo, recolliheci ao
(Sortes)
norte as bandeiras da embaixada de França, a:s da Itália
ao sul, as da· Turrquia a=sudoeste ...
Assisto à .p artida de um vapor e à venda de uma
laranja, a um acidente de eléctrico e w casto bei1j0 de
' Que Lislx:mllle est jolie. I La fumée des va- uma noiva. Não teniho tempo de me lembrar de tudo o
peurs 1 So!Us Ja br:Ls:e mollle I Prel!ld des form.e,s de que vejo e oiço. Tenho ainda de sentir os perfumes que
fleurs. sobem dos diferentes bairros.
A luz do sol desdobra-se .pela: cidade como um leque.
Um dos bairms fica na sombra; o palácio do rei, o ce-
mitério; outro cintHa. Há .g randes pássa·r os que esperam
como se estivessem pregados ao céu. Toca um: sino para:
qualquer casamento, os .pombos mergulham e pousam
numa áxwore. A sereia de um navio apita, a:s gaivotas
atiram-se ao mar. Há nuvens a fumegar a oeste; oiço
um grito de vítima nos matadouros.
Apo[:ado no parapeito, estou ate,n to à vida de Lisboa.
A cidade entrega-se a mim com im,pudor, com genero•
sidade. Assisto ao conselho dos ministros mudo·s, a cri-
mes silenciosos.
Erguida: pelo sol, uma grande lassidão escapa-se de
todas as casas, das docas e da:s ruas. Volto-lhe as costas:
a pequena: praça é calma à força de frescura. As árvores
parecem afundar-se na contemplação e na: medirta:ção:
nem unta: .só foJha estremece. Em ·todos os !bancos há

Edições Af·rodite - DE F O RA PA RA D EN T RO EdiçõesAhodlte- DE FORA PARA DENTRO


Philippe Sol!pault

330
ANTOINE DE SAINT. EXUPÉRY
apaixonados que esperam a bem-amada (não tarda· que
(1900-1944)
seja. uma hora). Olham todos para sua casa, oada qual
escuta um coração ... Uma· das ·b em-amadas abre a porta,
passa ao rés dos muros (por causa da maledicência, por
causa do calor). Outra põe pó-de-arroz, bâton ... Batem
os coraçõe•s dos apaixonados. É uma hora..
Ergue-se~ na praça uma casa de adobe rosado. Das
suas janelas pode admirar-se um dos mai-s belos pano-
ramas do mundo: está desabitada. As vidraças partidas
estão cinzentas de poeira.
Penso· na; ingratidão. Este mosaico de te1hados e
rua·s, de- água e ,p edras, de sombras e manchas de lu~
atrai como um ~bismo. Não é possível dominar uma
espécie de .p avor, como se repentinamente esperássemos
sentir 'u:ma pancada forte no coração. Este polvo mons-
truoso move-se lentamente na perseguição do sol. Cres-
ce-nos .a incomodidade a cada olhar,· a cada eco. Já não
é possível partir, temos de fugir, de nos afogar numa
pequena rua sombria; nem ousamos voltar-nos, fecha-
mos os olho·s. Através das muralhas formadas pelas N_asce em Lião de uma fannília 00 ari8tOC7"aeia
ruas perpendicularHs distingue-se o céu. É um pântano h11WU8ina. órfão de pai desde 1901., matri-
que reflecte as enormes sombras e os ruídos. r:u_Za-se na Escola NOJVal e tira o brevet de piloto
O grande leque levanta voo. aereo durante o serviço militar. Enc(Çf'1'(Jga,...se
Os meus braços caem, os meus olhos muito aber:tos da linha Touloru.se-Casablanca-Dafkarr e .
já não conseguem guiar-me. t'!"'~ ~linha do Atlântico Sul. A sua~=
Amanhã, já mesmo amanhã, a:bandono terra. l~terana

faz-se com r~age"'><'
~l'~' •
f
'"' e oon eren-
A

Mais três horas e aí está o mar. c:as· Agregando-se ao grupo 2/33.} é mobi-
1926. hzado em 1940 palra '[Yl'estar serviço nos Es-
tados Unidos. Em 1943 vai para a Argélia.
Em 31 de Julho de 1944 o aviiio """"~
, -z,.~ • ' que ""'w!UZ
e avu,tulo por um atVião nazi ao la!rgo da 06r-

Edições Afrodite - DE FORA PARA DENTRO


Edições A~rodltoe _ DE FO RA
PARA DENTRO
Antalne de Saint-Exupéry Antoine ele Salnt-Exupéry

332 333
Correio Sul, Voo
sego. Principalis ol:Yras:
Carta a um refém
Noctmno, Terra dos Homens, Piloto de
Guerra, A Cidadela, O Principezinho. Quando em Dezembro de 1940 atmvessei Portugal
para ir aos Estados Unidos, Lisboa surgiu-me como se
fosse uma espécie de paraíso claro e triste. Naquela
época falava-se muito de invasão iminente e Portugal
/ agarrava-se à ilusão do seu bem-estar. Lisboa, que orga-
ni'z ara a mais bela exposição possível, sorria num sorriso
um tanto pálido, como o das mães que não têm quaisquer
not ícias do filho ausente em combate e se esforçam por
sa•lvá-lo a poder de confiança: «0 meu filho continua
vivo porque eu sorrio ... » «Vejam como estou feliz, dizia
por seu lado Lisboa, como estou feliz, calma e bem ilu-
mi-nada ... » O continente inteiro pesava contra: Portugal
como se fosse umai montanha se-lvagem carregada de
tribos hostis; Lisboa em festa des·a fiava a Europa: «Ha-
verá -alguém CaJP3-'Z de me tomar por alvo se nem tento
esconder-me? Se até sou tão vulnerável! ... »
à noite as cidades d~ minh11J terra eram cor de cinza.
Vivendo nelas perdera o hábito de toda a claridade e
esta capitaJ radiosa causava-me um certo incómodo.
Se é escura a vi!Zinhança, os diamantes da montra muito
iJ-uminada atraem os que ali: vagueiam. Vemo-los cir-
cu1ar. Contra Lisboa: sentia eu que pesaNa a noite da
Europa habitada por grupos errantes de bombardeiros,
como se -ao longe tives-sem farejado aquele tesouro.
Mas Portugal ignorava o apetite do monstro. Recusa-
va-se a acreditar il'l!OS maus sinais. Portugal falava de
arte . com uma desesperada confiança:. Haveria: quem
ousasse esmagá-lo no cu1to da arte? Puser!l! à mostra

Edições A~rodlte - DE FO RA PA R A D EN T RO Edições Afrodit ·e - DE FORA PARA DENTRO


Antoine de Saint-Exupéry

334
todas as suas maravilhas. Haveria quem ousasse e•s ma-
gá-1o na;s marr-avHhas? Mostrava; os ·s eus grandes ho-
mens. À falta de exército~ e ca·nhões, contra o ferro do
invasor erguem todas a:s sentinelas de pedra:, poetas,
exploradores, conquistadores. À falta de exército e
canhões, todo o pa;ssado de Portugal barra;va a entrada.
Haveria quem ousas·s e esma·gá-lo na herança de um
passado grandioso.?
Noite rupós noite eu errava, assim melancólico, através
dos êxitos dessa exposição de extremo bom gosto onde
tudo roçava a perfeição, até a música tão discreta e
escolhida ·com imenso tacto a correr nos jMdins com
suavidade, sem estddências, como um simples murmu-
rej'ar de fonte. Haveria quem destruísse no mundo esse
ma:ravifhoso gosto pela justa medida?
Mas por bai!Xo do sorriso encontrava Lisboa maJÍ's
triste que as minhas cidades extintas.
Conheci (vós também, po!l' certo) dessas famílias um
pouco excêntrícas que mantêm à mesa; o lugar do morto.
Negam o irreparáveL Não cuido, porém, que tal desa;fio
consolasse. nos mortos devemos fazer mortos. E no
papel de mortos recU!Peram outra forma de' prresençw.
Mas aquelas famílias suspendiam o seu :r egresso. Fa·z iam
deles ausentes eternos, convivas em atraso rpara toda a
eternidade. Trocavam o luto ·p or uma espera sem con-
teúdo.. E essa:s casas pareciam-me mergulhadas num
mal-estar sem perdão e tão abafante como o desgosto.
Por Guillaumet consenti pôr luto, Deus meu!, o último
amigo que perdi, piloto morto em serviÇo postal aéreo.
Guillaumet não há-de alguma vez ser diferente. Se não

EdiçõesAfrodite- DE FORA PARA DENTRO


I

Antoine de Saint-Exupéry

335 APARTE
335
voltar a estar presente, também não há-de estar ausente.
Sa,crifiquei-lhe o lugar à mesa, essa ·armadHha inútil, e
fiz dele um verdadeiro ami:g;o morto.
Mas Portugal tentava acreditar no bem-estar matn-
tendo-lhe o lugar, conservando os candeeiros e a música.
Em Lis:boa jogava'-se ao hem-estar para que Deus acre-
ERICH MARIA REMARQUE: u.A costa de Portugal mantinha-se
ditasse nele.
como refúgio últim o dos emigrantes para quem a Justiça, a Em pa.rte, o clima de tri,ste·za devia-o Li'Sboa à pre-
liberdade e a tolerancla eram mais preciosas do que o solo
natal e a certeza do pão quotidiano. Mas quem não pudesse sença de certos refugiados. Não me refiro a proscritos
partir com destino à América, a terra prometida, estava per· em husca de asHo. Não falo de imigrantes à procura
dido. Finava-sa de hemorragia lenta pelo dédalo espinhoso dos
vistos de entrada e saída, das autorizações de estadia e tra-
de uma terra a; fecundar com o ·seu esforço. Falo dos que
balho, dos campos de internamento, da burocracia , solidão, do se e~patriam para longe da miséria dos seus a fim de
exílio, da aterradora indiferença geral. Indiferença pelo des-
tino alheio; e este sentimento outra origem não tinha senão manter o dinhei:to a bom recato.
a guerra, a miséria e o medo. Por s~ próprio já um homem Não consegui alojamento na cidade e fui para o
não era nada; e um passaporte válido era tudo.•
Estoril, a dois passos do casino. Tinha saído de uma
(A Noite de Lisboa)
guerra densa: o meu grupo aéreo, que durante nove
meses não interrompera os voos pela Alemanha, perdera
três qua;rtos da equipagem no decurso da única ofensiva
alemã. De volta a ca,sa sentira a atmosfera s<>turna da
escravidão e •a ameaça da fome. Viv-i a noite cerrada das
cidades. E veja lá bem como a dois passos o casino do
Estoril se povoava de espectros. Cadillacs silenciosos que
pareciam dirigil'-se a qualquer destino largavam-nos ali,
na areia fina do pórtico da entrada. Tinham-se vestido
pa;ra o jantar como noutros tempos. Exihiam a gravata
ou as pérolas. Convidavam-se uns aos outros pa'!'a refei-
ções de figurantes onde nooa havia a dizer.
Depois jogavam à roleta ou ao bacará, coilif'OTme as
fortunas. Ãs vezes ia vê-los. Não sentia indignação nem
qualquer sentimento irónico, porém uma angústia vaga.

Edições AfTodlte - DE FO RA PA RA D EN T RO
Edições Afrodite - DE FORA PARA DENTRO
Amoine de Saint-Exupéry

'336 VERCORS
A que nos assalta no jard'im wológico perante os sobre- (1902)
vi-ventes de uma espécie extinta1• Instalavam-se em redor
das mesa·s. Apertawam-se de encontro a um croupier
austero e esforçávam-se por ter esperança, desespero, Se é legitimo pensar-se e-m algum escritor quanoo
ttOs refel'inMs a Veraors, sobretudo no perf.oào «resis-
medo inveja e satisfação. Tal como os seres vivos. Jo- tente:», o tt01ne que nos v~m à mente é o àe Anatol~
' ., Frcmae. - MARI O BRAGA.
gavam fortunas que talvez naquele minuto ~a~ encon-
trassem va:zias de significado. Usavam dmhetro que Nem mot·alista, ~n filósofo, 1~em romanai8ta, nem·
contista, em defi nitivo nada àe preciso. ( .. . ) .A 1ninlla
talvez já não tivesse valor. Talvez o valor dos seus a·mbição basta ser ~un ho1nem. - VEROOR8
cofres fosse garantido por fá;bricas já confiscadas ou, de
ameaçadas que estavam pelos torpedos aéreos, em vias
de ruina. Atiravam dardos a Sírius. Apegando-se ao Jean B_ruller (na Literatura Vercors) nasce
passado, esforçavamo.se em crer na legitimidade da suw em POJris no princípio do século. Licencia-se
febre como se de há uns tantos mese·s àquela parte nada. erm engenharia electrotécnica7 mas renuncia à
houves·s e começado a rebentar na terra, na cobertura OO!I'reira que daJí poderia advir parra se consa-
dos seus che·ques, na eternidade da·s suas convenções. Era grar ao desenho satírico: publica álbuns subor-
irrea'l. Um verdadeiro baHe de bonecas. Porém triste. dinados ao título geral de Relevés Tr:imestriels
Com certeza não sentiam nada. Eu a:bandonava-os. (1932-1940). Ilustra obras de biblliofi'Ua.
Ia respirar à beira-mar. ·E esse ~ar do Esto~rH, mar ~e Durante a Ocupação participa na Resis-
cidade riibeirinlha, mar domestlcado, também a rntm tência e torna-se então célebre com o nome
me rpareci•a entrar no jogo. Empurrava i(>ara o golfo de V eroars quando funda Les Editions de
uma onda única e mole, toda luztdia de lua, como se Minuit, que ao tempo funcionarm clandestina-
fora um vestido de ra:bona fora de estação. rrwnte7 e sob a égide das quais publica O Si-
lêncio do Mar. Depais da Libertação prossegue
o trabalho de ilustradxYr e esaritor, sendo as
(Lettre a un Otage) seguintes obras as rn.ais significativas da s~
ewpressão literária: O SHêncio do Mar, As
Armas da Noite, Os Animais Desnaturados,
Nesta Margem, A Areia do Tempo, Mais ou
Menos Homem, A Batalha do SHêncio.

Edições Afrodite DE FORA PARA DENTRO


Edições A~rodite - OE FO RA PA RA Df NT RO
22
" Vercors

339
Uma mentira política
·.
«Que diacho! (*) O que se .p assa comig o?», pensa
·. Gaspar enquanto corre a Rua dos Coutinhos 1 , de
cabeça baixa e meditativo. «Palavra que até parece .. . »
Tão sin:gular e perturbll)nte é a ideia que flutua peJas
margens da consciência, que mesmo sem querer a subs-
titui logo por outra. «Por causa do Ca;pitão (*) ?», diz
consigo mesmo. «0 nosso grande Valadares 2 », «O Au-
: gusto Valadares», nun~a apreciara por aí a~ém destes
. altissonantes epítetos, mas chegar a pensar ... » «Em quem
nos dervemos fi>ar? », dissera na véspera a si próprio
. quando Oliveiros Spanza 3 , o cabeça políti'c a da Santa
Liga C' ), o convocara pa•r a da,r conhecimento da decisão
tomada. Nesse instante mostrara-se à altura, sem deixar
transparecer mais do que umru su!'lpresa fria, e quanto
a hesitação nenhuma, como qualquer bom e disciplinado
frade (*). Apesar de tudo, a história era tremenda
· e ficou-lhe um pouco atravessada na garganta.
Aos olhos de Gas.par, :p orém, a missão pràpdrunente
dita nada continha de estranho: ordem para mentir, levar
·· um testemunho objectivamente falso ao Grande Con-
. selho 4 • para obter um veredito· necessário, coisas que
não lhe punham qualquer problema. A verdade, a men-

1 Co:DJUnhoe, no or<.i!g1nal. (Nota do Trad.)


2 Va lladar, no Otrigllnal, substituído em todO o texto poT-
tuguês por VwlQda'l·es. (Nota do Trad.)
a OUveiiro, no origirnal, sul:>stltuido em todo o t~to por-
tuguês <po;r Oliv>etroiS. (Nota do· T raà. )
4 GrâJo Coll!selho , l]O OO'i:g.inal, substituído em tod~ o texto
pDirtuguês por Grande Co=elho. (Nota do Trad.)

\ E dições Afrodite - DE FORA PARA DENTRO


Veroors·. .. Vercors

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tira, de há muito não significavam para ele os va:lores . 'dúvida a noção de cega. obediência (sobretudo tratan-
intangíveis de outrora. Dizer verdades, dizer mentiras, ·do-se de coisa tão natural como uma mentira úti'l).
nada mais do que eficácia. Pertence a essa categoria Recorda as discussões apaixonadas e tempestuosas
a ordem recebida do Cenáculo ( * ) que dentro em breve · "COm o amigo Pedrito, quando ele, Gaspar, resolveu subi-
Gaspar vai cumprir. Por que razão se encontra naquela tamente entrar para a Santa Liga. Após o·exílio e a disso-
noite tão perturbado? lução dos jesuítas tinham ambos lutado (ou pelo menos
«Fora: daqui, ultrapassados rommtismos», esfor- tentado lutar) contra -a ditadura feroz de D. Sebastião
ça-se por pensar. Esforçar não é bem o termo: pensa <de Carvalho 1 , Marquês de Pombal, que há oito anos
com sinceridade em tais palavras - aquela espécie de · dominava o país por fraqueza de José I. Muito li'gado
sinceridade que recalca outra. ainda mais funda. Na ver- nessa altura às virtudes cristãs, como Pedrito, Gaspar
dade, ·a sua antiga ideia de que era indilgno de um sentia relutância em lançar mão de qualquer meio que
cristão enganar o próximo, mesmo para a maior glória inspirasse censuras à sua consciência moral. Deixava
de Deus, não passa hoje a seus olhos de um «ultrapas- ao Marquês as ignóbeis práticas que ele usava para man-
sado romantismo». Desde que é filiado na Santa Liga ter seguro o domínio.
sabe mentir a sério - quamdo é preciso -, fá-lo tão. Certo dia, a profunda durplicidade dessa nobre atitude
fàcilmente como respirar. ·surgira-lhe ao clarão de uma luz terrível: foi quando
«Trata-se do Capitão», pensa ele. Sim, aquela angústia viu pre·s o o padre Gusmão Riento 2 , seu antigo pro-
física, a espécie de aperto no coração que torna algo fessor e alma da resistência, quando o viu enc~rcerado,
difícil o respirar quando ·s e aproxima da Sala ( * ) levado a comparecer perante a Inquisição e condenado
(a bem dizer uma oave) onde- o Grande Cowelko (*) à morte por não ter querido proteger-se numa mentira.
espera por ele, tudo isso finge atribuir ao derradeiro Q falecimento de Gusmão e o pânico dos seus parti-
elo que ainda o prende ao Capitão (*) e vai cortar· ·dários haviam destruído uma das rara:s ameaças que
dentro em :breve. Nem se lembra de que nada semelhante ainda pesavam no poderio de Pombal. O implacável
sentiu, vai para dois a;nos, quando Castro trai\! e foi D. Sebastião tornara-se ma~s .forte do q1le nunca, e mais
preciso participar na sua supressão : destruída de um ·d o que nunca enfraquecido o partido de Deus. Julgan-
só golpe toda a antiga amizade pela pro-va dessa ~nfâmia. ·do-se forte bastamte para romper com Roma, pouco
Nisso não pensa el~. esta: noite, a si~ mesmo .p r oibe · tempo mai-s tarde Pombal expulsara o Núncio.
tal pensamento, pois se não é a ideia do Capit~o que o 1 Sebasbi~ em vez de Seba~stião, no or.lgm1. (Nota do
perturba, inevitável será confessar que é a ordem rece- :Trad.)
bida; ora a última coisa que pode admitir é pôr em 2 Guzmão Ri'ento, .no orig'ilfirul. (Nota do Trad.)

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Vercors: ., Vercors

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De um dia para o outro, o espírito de Gaspar vira-se · voltarem, Deus regressaria a Lisboa como verdadeiro
a braços com um~ revolução brutal: a si mesmo jurara senhor.
auxiliar a combater o Marquês por todos os meios ao . . Mais do. que qualquer outro, Gaspar se convencia
seu ·alcance, a começar por aqueles que o déspota usava d1st~, e ma1s do ~ue qualquer outro se via resolvido a
com a maior dewergonha, se bem que misturando-lhes partilhar dos metodos que tão frutuosos resultados
da; mais adocicada hipocrisia. Nem por isso Gaspar · tinham dado, ·a vergar-se-lhes sem reserva, na letra
votava menos ódio à mentira, à violência, à injustiça. como no espí.rito. Não conseguiu fazê-lo sem algumas
Porém, dali em diante estava resolvido a ceder-l:q.es. dores. Estes métodos insensíveis, a hierarquia de ferro
contra: D. Sebastião, pois a tanto o constrangia Pombal a .integral submissão, aquela dureza de sempre, às veze~
pela própria dupliddade, crueldade trajada de inocência, duplicidade, tudo isso ofuscava as almas demasiado
por aquela enganadora piedade. Entrou para a muito · tímidas. Pedrito suplicara a Gaspar que desistisse.
clandestina organização da Santa Liga (*),e -adaptou-lhe «Às ordens de Valadares!», exclamara. «0 homem de
os métodos. aço! Sabes o que dele se diz?» Naquela noite Gaspar
No seio da Santa Liga a disciplina ainda era mais recordava a expressão inquieta, indignada, do rosto fra-
severa do que ao tempo em que a Companhia de Jesus ternal. «Claro que sim», respondera, «sei perfeitamente.»
dominava o poder civil. Escondidos, perseguidos, menos- Falava sem sorrir, com uma gravidade à medida da de-
auxiliados que manietados pela prudência do Papa, dessa. cisão. «E vais curvar~te aos seus terríveis métodos?»,
obediência infle-xível .os conjurados extraíam toda a sua perguntara Peddto. «Não vai,s conseguir.» Com a mesm8)
força. Vendo crescer a Liga dia a dia, e depois de ter gravidade tranquH:a, Gaspar asse-gurara: «Claro que vou.
rido dela, :pombal começou a fazer tudo para a des-· Basta que, de hoje~ em djante, encare· as coisas sob um
truir. Dez anos de vida clandestina, porém, haviam-na ângulo diferente-.» Pedrito lançara-lhe- então uma série
transformado em impalpável sombra por todo o lado' de ataques violentos, <!Omo quem sonda a vanguarda
presente. Além disso, tão rápidos e eficazes se mostravam de um exército em demanda do ponto fraco. «Não acei-
os meios de acção, que Pombal já só ousava tratá-la tarás», predizia. «A injustiça, o crime, deixa-me rir!»
como rival. De então para diante os seus chefes, ou Mas não ria. «Como é que Pombal se desfez dos Tá-
mesmo os elos de menor importância, parece terem come-· voras», inquiriu Gaspar, «do Duque de Aveiro t, d~
çado a desfrutar de uma espécie de impunidade. Em face· irmãos do próprio rei? Forjando contra o rei um aten~
disto, cada qual se convencera de que a vitória chegaria tado falso que custou a vida a seiscenta·s pessoas. E nada
mais ou menos tarde, mas haveria inevitàvelmente de·
chegar. A Companhia de Je·sus veria os bons tempos, 1 No oru•gÍI!Jal, Avayro. (Nota cU> Trad.)

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V:eroors Veroors

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se pode fazer contra esse beato de uma figa, que ri e lugar de peregrinação clandestina rpara uma grande
torna a rir como o outro, do reino da Dinamarca.» massa de católicos. Muitos juravam que chegariam a
Naquele instante ainda Gaspar ouvia a voz de Pedrito, aderir se Zacar ainda fosse virvo. Ma-s Valadares! A esse
como a de um soldado que defendesse o terreno palmo acusavam-no de em poucos anos ter degredado a Santa
a palmo: «Mas fazer como ele é colocarmo-nos a igua·l Liga, de ter feito dela uma camorra ( *) , uma corja de
nível!» - «Renunciarmos ai isso é fazermo-nos cúm- bandidos. Em ;vez de Caríbdis e Sila, divertiam-se dí-
plices.» Pedrito continuava: «Aquelas mentiras! Aquela zendo «Cair de Pombal em Valadares (*) ».
má fé! Nunca na vida mentiste, Gaspar. » - «Gusmão Desde os primeiros tempos em que assumira a direcção
Riento também não, e ei-lo· reduzido para sempre ao da Liga, a brutalidade dos seus actos enchera de aterro-
silêncio. Para mim já vai o tempo em que me embaraçava
rizada desconfiança os melhores amigos dos jesuítas.
com es·crúptilos, Pedrito.» Viu verdadeiras lágrimas nos
Chegado secretamente a Coimbra como sucessor de
olhos do amigo, que respondeu com os lábios trémulos
Zacar, um antigo Consultor do Padre Provincial fora
e de uma forma inesperada: «Talvez tenhas razão.»
obrigado a regressar a Roma de forma inesperada. Vala-
E a seguir: «Um de nós dois se engana, Gaspar, e se for
dares limpava: o te;rreno à sua volta com um dgor insen-
eu é porque sou cobarde.» Gaspar sentiu pena dele e
sível. Após julgamento sumário, três velhos conspira-
disse-lhe, enquanto o beijava: «Não acredites. Pelo
dores dos tempos heróicos tinham sido ·s uprimidos por
contrário, as hesitações honrarnAe a virtude. Mas hesitar
já é aprovar: um di·a virá em que te hás-de juntar a fazerem sombra a Valadares (ao que pretendiam os seus
mim.» Pedrito teve um brusco movimento de revolta: adversários) e .a princípio Gaspar acreditara. Depois,
«A ti, ainda vá, mas nunca a Valadares!» - «Que mal quando se viu tentado a pertencer à Santa Liga, estudara
te fez -ele?», perguntou Ga·s par. a coisa ma-is de rperto e reconhecera o erro: conspiração
Conhecia de antemão a resposta. A reputação de Vala- a favor do antigo jesuíta chegado de Roma, pU®ando
dares estava sobejam-ente est8Jbelecida entre os burgueses Pombal os cordelinhos através do Rei. A hostil descon-
de Coimbra, como aliás de todo o Portugal, e talvez fiança de Gaspar perante o Capitão ( *) da Santa
mesmo de fora dele. Quase lhe tiillham tanto medo e Liga ( *) transformara-se depois disto em calorosa fide-
ódio como ao Marquês. Esqueciam quanto haviam lidade, tal como acontecera, de resto, com os restantes
detestado Zacar, o fundador da Santa Liga, até ao ins- membros. «Não se compreende», pensava. «A dureza
tante em que ele fora assassinado. Por comparação, do Valadares é filha de uma resolução,- como de a;gora
mais tarde chegaram a levá-lo às nuvens, precisamente em diante a minha. Mas tudo o que ele faz é para o hem
quando Valadares lhe sucedeu. O seu túmulo fez-se do povo e glória de Deus. Não tem o coração corrompido.»

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Vercors. Vercors

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-Se já não tem, há-de vir a tê-lo - respondera-lhe prever. Acont eceu quando· Pombal mandou emparedar
Pedrito. E qualquer dia, Gaspar, também o teu. os sessenta jesuita.s escondidos no ant igo Conventb do
-Nesse dia hei-de eu próprio pedir-te que me mates Mogadouro. Fiel a si próprio, e ao cont r ário do amigo
- acrescentou Gaspar com um sorriso. que s e encontrava ao serviço de Valadares, so'licitara
Pedrito que· o enfileirassem com os subordinados de
Spanm. Foi assim que no dia de S. Jorge 1 o encarre-
gruram de prevenir Gaspar de que Spanza pretendia
Ainda mais do que os actos, censurava em Valadares falar-lh~.
as pessoas da ·sua roda. Reprovavam-lhe que no Cená-
culo (*) (o cérebro da Liga) reunisse homens ·e scolhidos
muito mais .pela habilidade do que pelo vigor da fé. Isto
não seriá exacto no caso de Jorge dos Reis, o decano, Nunca Oliveiros Spanza pedira a Gaspar que viesse
mas dizia-se que este velho beato não passava de um a sua casa. Mas de há muito Gaspar desejava aproxi-
joguete nas suas mãos. Pelo contrário, o sensual e obeso mar-se dele, que considerava a mruis sólida cabeça de
Luis da Cun:ha conduzia as e~eriências dos seus homens toda a Liga. Talve'z gostasse' mais de Valadares, pois
com uma violência que se diria crueldade. Também 'e ra debaixo do rigor inflexível que atemorizava Pedrito
reputada a velhacaria ·s inuosa do questor Rebelo. A tal adivinhava uma sujeição profunda a todas as virtudes
desfavor só escapava Oliveiras Spanza, chefe do gabinete cristãs, logo a seguir a Deus o rumor do próximo - esse
político. povo português que Pombal oprimia. No que :respeitava
Se bem que o não odiassem, a e ste também não pre- a Spanza, mesmo sem o conhecer era; diverso o senti-
tendamos que o arriassem; pelo menos,. juntamente com mento de concreta e racionada admiração; na sua con-
as virtudes de um católico existiam nele as de um duta existia oculta uma confiança sem reservas no ressur-
ca;valheiro (*). Soubera-se por mais de uma vez que cen- gimento em toda a glória da Companhia de Jesus. Deste
surara crimes inúteis. Era tido como devoto. Considera- modo, quando na véspera galgara as vielas tortuosas de
vam-no recto. Dizia-se que Pombal desejava oferecer- Coimbra sob um céu brilhante de estrelas, para corres-
-lhe a mitra de Coimbra para o ter calmo. Ele recusava ponder ao seu apelo, sentia um temor, uma ~reensão,
com desprezo, porém, e continuava pobre. pois talvez não se encontrasse à altura da entrevista que
Talvez a presença tranquilizante de Spanza no Ce- no entanto desejava, desde há muito.
nácUlo (*) tivesse feito Pedrito decidir-se, três anos
depois do alistamento de Gaspar e tal como este soubera 1 Santo Jorge, no 0\I'ig.!lnal. (Nota do Traà.)

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Vercors Veroors

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Oliveiras Spanza habitava uma casa (*) modesta. Gaspar sorriu interiormente. Era a sua coroa de
Viera em pessoa abrir a porta e acolhera Gaspar com glória o jantar na casa de Bocage, o magistrado mais
um sorriso. Só muito raramente sorria. Limitava-se às fiel à fortuna do Marquês. Teri'a a pobre Pilar adivi-
vezes a arregaçar ao de leve o lábio fino, descobrindo nhado que papel desempenhara na tramóia? Recordou a
pontiagudos can~nos. O resto da cara permanecia im- face magra e pálida, os olhos enormes.. . Por um ins-
passível, uma cara alta e estreita, de olhos negros muito tante chegou a sentir constrangido o coração, mas re-
juntos. Ao que .se dizia, indício de contentamento mais peliu a imagem ao cemitério das memórias já mortas.
vivo seria nele b!l!stante excepcional. - Dir-se-ia que não vos custa mentir - observou
Foi recebido numa sala caiada de branco. Apesar de Spanza num tom em que existia algo de equívoco.
muito pouco ornamentada, possuía um qualquer requinte - Minto sem o menor esforço - reconheceu Gaspar
a que Gaspar foi sensível e não deixava que lhe parecesse com uma ponta de provocação.
pobre: uma mesa muito simples, porém antiquíssima; - É uma forçru - admitiu Spanza. Calou-se um
um tapete fino talvez chegado do Oriente ou das índias; momento e Gaspar viu que era observado na sombra.
variados cobres. Na parede uma Descida da Cruz pin- Aprendestes sozinho?- acabou por inquirir.
tada sobre madeira, que Gaspar atribuiu a LUJís de - Será coisa; que possa aprender-se com os outros?
Morales. - Ãs vezes acontece, mas sempre mal - respondeu
Naque'la altura ainda era capaz de em todo o por- Spanza. Estais em iPaz com a vossru consciência? - per-
menor ver Spanza a levantá-lo da genuflexão, manàlá-lo guntou ainda.
sentar numa poltrona de couro trabalhado. E depois disso Na voz de Spanza julgou descortinar como que um
tomar lugar atrás da mesa coberta de papéis e os mais indício de censura, de sarcasmo. E replicou:
variados livros. Um candeeiro iluminava-lhe as mãos -Absolutamente. Que outra arma teríamos contra
conservando, ;porém, o seu rosto na penumbra. uma duplicidade cínica?
-Gaspar Dias? - perguntou Oliveiras, como que -Mas acontece que sois jovem - disse Spanm.
numa verificação de identidade. Gaspar confirmou com De um modo geral, a juventude não se conforma ...
um movimento da cabeça. A partir do caso dos seios - Tudo isso deitei para trás das costas - respondeu
comecei a reparar ·em vós - disse Spanza em voz baixa Gaspar com voz calma.
e trauteante. Por três meses desempenhastes sem fra- -Nunca vos sentis atormentado? - perguntou
quejar uma tarefa bem dura. Conseguistes enganar as Spanza sem o desfitar. Não fazeis perguntas? Há quem
pessoas como um mestre. Se não estou em erro, o fiscal diga que é !P'reciso ter medo... ·
Bocage recebeu-vos à mesa ... Os meus parabéns. -Bem sei - disse Gaspar.

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Vercors Vercors

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-O quê? pesada - se vos dissessem que eu ti:nha traído a L'iga,
- Que ao endurecer pode o coração perder a glória que pensaríeis?
divina de vista e comprazer-se em crueldade. É um risco, -Não acreditava - respondeu Gi:t:spar dominando
na verdade, mas temos de o enfrentar. a voz para dissimular o espanto.
Spanza abanou a cabeça duas ou três vezes. -Poderia acontecer que eu me visse consumido em
~Pois é, temos de o enfrentar. Suspirou.. Não existe ambições impacientes- sugeriu Oliveiras. Temesse uma
Qutro -caminho - disse. Também será esta a vossa vitória demorada, ou mesmo improvável. E me resolvesse
opinião? por um bispado cujo preço fosse um atroz ·s erviço.
-Estou convencido disso - respondeu Gaspar. -Como poderia acreditá-lo? - insistiu Gaspar.
Ao fim de um instante, Spanza murmlli'OU para con- As mãos iluminadas descruzaram-se para voltarem,
sigo me-smo: «Pois bem.» Gaspar ouviu-o e pensou: depois, a cruzar-se. Gaspar sentiu-se observado rpor um
«Estou numa prova de exame.» olhar de falcão.
-Dias - começou Oliveiras numa voz ·c ontida, com - E se o vosso chefe hierárquico ... - disse Spanza.
uma lentidão pesada -.-..... acreditais. que o inimigo esteja Como se chama ele?
sempre do lado de fora'? - Miguel de Palma·.
-Não compreendo. .. - observou Gaspar de cenho - E se ·esse Miguel de Palma, a quem deveis obe-
franzido. diênda cega, vos .g arantisse que sou traidor à Causa e
.._Sim. AlgumaJ vez pensaste que ele pudesse encon- ordenasse· que me liquidásseis?
trar..se no seio da própria Liga? Gaspar esforçava-se por pensar depressa. Tinha
-Traidores? 'rodas as ligas secretas têm os seus a certeza de que as respostas levariam Spanza a con-
bufos; já Castro .. . fiar-lhe qua·lquer missão .s urpreendente, ou com des-
-Pois ... pois ... mas a minha pergunta é mais do prezo obrigar que voltasse à massa anónima.
.que isso. - Faria um apelo ao Oenáoulo ( *) - respondeu
Spanza cruzou as mãos. Eram finas e compridas, um Gaspar - e pediria que me confirmassem a ordem, para
pouco ossudas. Gaspar notou que o indicador da mão ter a certeza de que o próprio Miguel de Palma não
esquerda era constantemente agitado num tremor quase dava apenas ouvidos à sua pessoal ambição.
imperceptível. - E se a ordem fosse confirmada?
-Se vos dissessem ~ continuou Oliveiras sem -Então suprimir-vos-ia- declarou Gaspar com voz
erguer a voz, mas de uma forma que ·se ia tornando mais tranquila .

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Veroors
Vercors-

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Mais uma vez se descruzaram ás mãos, quedando - Tam.b ém poderiamos imagina:r que o perigo não
abe·rtas sobre a: me!sa;. A direita começou a brincar com fosse assim tão iminente. Muito menos do que i1sso. Que
um estilete. Oliveiras recostou-se na poltrona: eu fos•se. . . digam0s .. ~ uma espécie de· ·p erigo· latente,
- Pa:rece que em caso tão sério poderíeis requerer incerto. Por resultar menos das minhas possíveis acções
um Grande Conselho (*). NãO'? Talvez os membros do do que, por exemplo, inquietantes ideias, atrevidas, ou
Ce'YI.áculo ( *) , exactamente como o Miguel de Palma,. temerárias ...
alimentassem todos contra mim uma ambição comum. - Isso apenas desvia o problema - disse Gaspar.
~ Supunha tratar-se de uma ordem de extrema Perigo ou injustiça, o resu1tado é ·idêntico. No entanto ...
urgência. Um tal recurso haveria de consumir-vos muito -O quê?
tempo:. Ainda: há pouco a;ssentámos em como era necessá- - Se na verdade estivéssemos menos pressionados
rio sa;ber correr o risco. pelo tempo, parece que um GrCllYUJJ3· Conseloo (*) haveria
-De me Liquidarem, apesar de inocente? de tornar-se necessário.
- Sim, de·sde que as circunstâncias o exigissem. -Atenção! S.panza parou de repente para o en-
- Precis·a mente: talvez pudesse• o meu desapareci- frentar. Apoiou-se a mãos ambas no espaldar d8: cadeira
mento pesar bastante no futUTo da Santa Liga. e deu início a um balanço lento. -Que prova apresentar
____.Menos do que a vossa traição. de urna falta tão vaga·? Ideias ousadas! Poderia defen-
- E se el~ não fosse confirmada? Também é grande dê-las perante o Cotnselho (*), ou fa·z er mesmo com que
o peso da injustiça. lhes aderissem pelas artes do meu talento! Perigo redo-
-Menos do que um tão grande perigo. brado!
- Tendes a; certeza de não manejar pesos fa·lsos? - rrendes razão - di·sse Gaspar. Baixou a cabeça
Não iria, talvez, a minha morte retardar a vitória?
e moi'discou os Lá;bios com ar meditativo. Spanza con-
-Ta:lvez.
tinuava a balançar-se em silêncio. Mesmo sem ver,
-Em prQIVeito de um grupo de homens de méritos
Gaspar sentia-se ·a lvo dos seus olhos brilhantes. Com-
fracos ao pé dos meus?
preendeu que Olivei:ros nada diria sem que ele próprio
-Talvez.
chegasse, sózin'ho, a conclusões. Pesava as ideias com
- E então?
inquieta precipitação.
- A vossa .trai:ção poderia si:gni·:ficar a ruina total.
Spall.Zla quedou-se imóvel por um instante, e de:pois, -Primeiro seria preci.so que vos afastassem ...
empurrando a cadeira, iniciou um pas·seio de passos - arriscou, numa lentidão prudente. -Não importa o
lentos e curtos, cabeça baixa, mãos atrás das costas. meio ... e, conjurado assim o perigo, nada mais haveria

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23
J

li!
Ili Vercors "Vercors

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do que justificar... esse a.éto arbitmrio perante o Con- - :m verdade. Visto isso, estarias disposto a passar
selho (•). ' aos actos? I
Hesitou, decidiu-se, concluiu: -Aqui e·s tou para obedecer - respondeu Gaspar.
- Para justificá-lo, forjar contra vós uma sólida. e . E a refoTçar, acrescentou:: «Cegamente·».
ca.pitaiJ. acusação... fabt~ioar provas obje'Ctivas ... -Quaisquer que sejam os actos?
Voltou a hesitar, de lábios entreabertos. Spanza endi- - Sim, desde que o Cenáculo ("") os ordene. 'ri
reitou~ e perguntou num tom de certo modo ambiguo: -Mesmo um falso testemunho?
-Em suma, enganar o Cunselho ( "") ? - Pois com certeza, desde que sirva para .p reservar
I «Terei• ido demasiado longe ?»1, magicou Gaspar. •,. de um perigo a Santa Liga- observou Gaspar.
«Tanto pior. Digo o que penso. Logo se há-de ver ... ~ Spanza ergueu-se e veio pousar-lhe a mão no ombro.
- Enganá-lo sobre as causas do perigo ....:.... respondeu. - Dias, a Santa Liga corre perigo.
- Não com o perigo .p ropriamente dito. -Já tinha compreendido - di:sse Gaspar.
E acresCientou, como que a justificar-se: - Pois bem, ·segue-me então.
-Quem lucraria com os nossos escrúpulos? Desceram pelos jardins, caminharam rodeados de
- Pombal - admitiu OHV'eiros como facto evidente. loureiros e alcaparras, envoLtos num odor cálido de I
'I

'I -Portanto os inimigos da Igreja e do po:vo. Antes _pimenta. Um gato passou de raspão entre os pés de
de mais, será preciso vencê-los. Daqui até lá ... Ga·s par e o coração pôs~se-lh~· a bater desordenado.
-Sim - interrompeu Oliveiras, num tom que signi- Andaram muito tempo e acabaram po:r subir uma '
ficava «basta». _pequena escada de tijolo, penetrando assim numa
Chegou-se à zona :Huminada e sentou-se na beira da . casa ( "" ) maio:r do que a primeira. Os postigos estavam
mesa, em frente de Gaspar. Seria;· da luz? Pareceu-lhe .fechados. Só uma candeia de três braços iluminava a
I li
que o rosto de Oliveiras era o de um homem subitamente · sala com o seu trémulo clarão. Aguardando silenciosa-
diferenrte. _mente a sua entrada, ali estava meia dúzia de pessoas
-Acreditas, de facto, naquilo que di•z es? - per- . sentadas em cadeiras, ou no chão ; mais duas ou três
guntou Spanza, tratando-o por tu de uma forma ines- ·de pé, encostadas à parede. «0 Cenáculo (*) em peso»,
peraJda. -Isto é, profundamente? Ou não passará tudo pensou Gaspar quando reconheceu o velho Jorge dos
de um jogo do espírito? Reis, o avantajado Da Cunha, o Rebelo dos gestos felinos.
-Julgo que já dei provas - disse Gaspar com Procurou com o olhar o Capitão ( *), mas Spanza em-
alguma secura. ·purrou-o à frente, anunciando sem preâmbulos:

Edições Afrodlt•e- DE FORA PARA DENTRO ··:..E d i ç õ e s A f r o d I t e - O E F O R A P A R A O E N T R O


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Vercors:

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-Aqui tendes o Gaspar Dias. Preparado para o que·
Até no instante em que pensava vertiginosamente: «Va-
for preciso.
ladares? Qu~· loucura!», ouvia a própria voz responder
- Dissestes-'lhe ... - perguntou o decano na sua voz
num tom admiràvelmente frio:
trémula.
-Ah, sim?
- Tudo, excepto o nome - respondeu Spanza.
Entre os lábios de Oliveiras distinguiu um canino
Voltou-se para Dias, cujo coração não achava paz.
pequêno e muito branco:
«0 que se passa comigo? Tem calma, vamos lá», pensava
- És de força - Teconheceu Spanza.
ele, esforçando-se por sustentar o o~har de Spanza.
Apesar disso não foi possível, a Gaspar, dissimular
-O nome há-de causar-te ·espanto - declarou por ·
:os sentimentos, e acabou por inquirir numa voz alterada::
fim, martelando o verbo para lhe conferir toda a força.
- Trata-se de uma... traição?
-Estás pronto a: ouvi-lo?
-Não, não - disse Spanza com vivacidade. E le-
-Espero por e}e - disse Gaspar. Mas o coração
vantou a mão. Gaspar sentiu-se invadido por um mara-
batia·-lhe e via com dificuldade. Tinha vontade de des-
vilhoso alívio. Mil perguntas lhe acudiram aos lá;bios,
cobrir por a'li o Capitão ( *) .
mas ficou calado. Spanza continuou: «Nem por isso deixa
-Na minha intenção estava dizer: tens a certeza
de ter gravidade iguaL» Parecia à es·p era de mais per-
de não voltar atrás quando o ouvires? - insistia OH-
guntas, mas Gaspar continuava mudo. «Não perguntas
veiros.
nada? » Gaspar engoliu um enorme trago de ar:
Gaspar sentia-se a meio caminho entre a impaciên-
-Estou aqui para obedecer - repetiu. Não para
cia e o terror. Aonde estava, rufinal, o Capitão (*)?
fazer perguntas.
Respondeu com voz incolor:
Oliveiras sorriu:
-Obedecer ou trair, já não terei outra escolha.
-Isso mesmo te responderíamos se ousasses fazê-lo.
Ê caso consumado, estou pronto a escutar.
Rebelo destacou-se da parede e aproximou-se da luz.
-Valadares.
O seu corpo não deixava de ondular, sempre que ele
~<Estava mesmo à espera», pensou Gaspar, e durante
andava. Sorria, de mão afilada ·e rguida saindo do punho
um momento nada mais sentiu do que uma gelada indi-
de fina renda. («E dizer que foi ·esta a mão que apunha-
ferença. Depois, quase a seguir, foi submerso num fluxo
lou o Lopes», pensou Gaspar.)
de revolta e de incredulidade. Sem ser preciso mexer os
- Parece-me encorajante tal discrição - disse Re-
olhos, viu distintamente voltadas vara ele as faces dos·
belo. -Nem por alto podemos dizer-lhe a razão de
membros do Cenáculo ( *) com uma expressão de impas-.
termos resolvido tomar contra o Capitão (*) ... uma
sível espera. Fez um esforço prodigioso para se recompor.
medida ...

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO .


,Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
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358 359
- Com certeza - disse Spanza. aproxima, conservar aquilo que já não é permitido à luz
Baixou a cabeça, durante um momento pareceu pro-·- do dia ... para que a seu tempo ren8isça, mais forte e viva
curar a seus pés o que tinha a dizer, e acabou depois por" do que nunca ... ;e sta santa Companhia que inteira se
reerguer a fronte. dedica à maior glória de Deus.
-Valadares depende em excesso da Santa Sé - - Parou e olhou de frente para Gaspar.
_disse ele. -Já não é nosso dever a fiel obediência à pe·s soa
À surpresa de Gaspar opôs a palma da sua mão, do Santo Padre - disse com firmeza. Estamos sós.
aberta. Pode acontecer que tenhamos ... de ... interpretar as
-Não quer dizer que seja crime - observou Spanza mensa:gens de Roma ... no plano temporal ... até ao ponto
com vivacidade. «Mas .. . », cruzou e descruzou as m_ã os de as contrariar, desde que necessário. As urgências do
à sua frente·, começou a andar de um lado para o outro: instante podem forçar-nos a tais reviravoltas. O Papa
« ... nem sempre a posição de Roma ... » Pesava as pala--- tem de fevar em consideração o Marquês, é obrigado
vras: « ... nem sempre é a; mais ·a pta a sustentar-nos . . a isso. Mas o nosso .. . o nosso dever continua acima de
Compreende-se fàcHmente », recon:heceu logo de seguida. .
tudo a se·r Deus. Lutar, ·p ortanto, lutar sempre e com
«Primeiro do que tudo, à Santa Sé compete defender a .
todas as nossas forças.
Igreja no seu todo. E pode muito bem acontecer», con- .
Descruzou as mãos, abriu-as, estendeu os dedos na
tinuou em voz moderada, «pode muito bem acontecer ..
direcção de Gaspar:
que Roma avalie maL . as consequências... que este ou·.
aquele ponto de vista, esta 011' aquela política ... .pos·s am ~ -O Capitão ( * ) já voltou de Roma- afirmou em
ter num movimento como o nosso ... » voz mais baixa. -Quis impor-nos uma decisão ... terri-
Parecia que observava as mãos juntas enquanto-· velmente contráriru à nossa ·Vida. Reunimos uma «Con-
caminhava em passos lentos. gregação» e contra ele todos se opuseram. Mas Vala--
-Tenhamos como certo - prosseguiu - que o , dares foi inflexível. Manteve a tal decisão, mesmo
Muito Santo Padre reserva à Companhia de Jesus um ' em risco de no seio da Santa Liga provocar uma cisão
lugar no mais fundo do coração. Acontece, no entanto, mortal. Valadares apoia-se no Rei e Pombal mantém-se
que em todo o lado ele a abandona aos poucos. Depois .. à nossa espreita. A ameaça tornou-se iminente, a ma-
de Pombal, acaba de ceder ao rei de Espanha. Não tar-- chadada tem de ser desfer-ida.
dará que ceda a Choiseul. E talvez chegue ainda mais · Gaspar já recuperam todo o sangue-frio. O coração
longe .... o que confere à Santa Liga uma missão tanto. deixara-lhe de palpitar. Ouvia friamente, admirawa a
mais alta quanto essencia)l: através da noite que se·· própria calma. «Que progressos os destes três anos: em

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO', Ed i ções Afrod i t e - DE FORA PARA DENTRO
Vercors

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mim já os sentimentos não desempenham qualquer trinta e seis frades (*) tirados à sorte. Na maioria gente
papel.» simples, e q~e na maioria também gostru de Valadares
-Ontem o Cenáculo ( * ) exigiu que Valadares pe- até à adoração. A esses é que será preciso convencer
disse a demissão - continuou Spanza. E ele recusou; através de meins tão ·s,imples como eles.
meteu-se num convento da Serra do l'/larão I. Vamos - É verdade- admitiu Gaspar. Abriu e fechou as
r eunir um Gr>ande Conselho e ' ) para dá-lo como rebelde mãos enquanto dizia: «Pois muito bem. » E então sem
e nos conferir autoridade. Esta aprovação é capital e tem mais nenhuma palavra de amizade ou consolo, Spanza '
de ser conseguida;. São vagas a s acusações contra o voltou a levá-lo para fora. Deu-lhe a bênção na soleira
Capitão (*), compreendeste isso, muitos espíritos po- da porta e murmurou: «Não estás arrependido?»
deriam manrter-·s e-lhe fav or áveis. D2cidimos acusá-lo de E Gaspar: «De forma alguma ». Spanza sorriu: «0 Con -
conluio com D. Sebastião. E a prova hás-de ser tu a selho ( * ) está marcado para amanhã. Não te espantes
dá-la: jurando que o encontraste no jantar em casa do se fores vigiado de aqui até lá». «Ê muito na;tural»,
Bocage. disse Gaspar. Spanza; aprovou com um aceno de cabeça
Spanza calou-se. Gaspar respirou fundo e disse: breve e seco, voltando a fechar a porta.
-Bastará ?
- Ohega e sobra. Por certo não ignoras que, no dia
a seguir ao jantar, três Confrarrias ( *) inteiras foram
destruídas: cento e oitenta dos nossos metidos na: Seguido de perto por dois homens da confiança de
prisão, o Ranzo, o Bayez e o Mata bem e belamente Da Cunha, já liberto de toda a; excitação, Ga·s par entre-
enforcados. gava-se a mil reflexões sobre a incrível entrevista en-
Gaspar não respondeu: sorriu. quanto calcorreava as vielas da Coimbra adormecida.
- Objecções ? - perguntou Spanza em tom seco. «Que homem aquele! », pensava. «Esvaziou-me a:S entra-
-Não será um tanto... elementar? - arriscou nhas como se eu fosse um pebre·.» Ele próprio se espan-
Gaspar. Um pouco transparente? É que um homem como tava de quanto havia dito: tantos pensamentos não
Valadares, vejamos ... formulados ali postos, bruscamente, à luz do dia.
-Estás a esquecer...te de quem vai presidir. Saberás Uma brisa tépida escoava-se p elas ruas em degrausl
tu, por aca·so, como é constituído um Grande Conse- por entre as fachadas daqueles Palácios Confusos ( *)
lho (*)?Doze jurados, doze árbitros, doze testemunhas: de todas as épocas, todos os estilos, em certos sítios
iluminados por alvadios quadrados de luar. A Gaspar
1 Serra de Ma..r~aJO, no ortgirntal. (Nota do Trad. l parecia que transportava o ar do mar, ainda que este

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se encontrasse a dez léguas. O vento nascido do oceano força que teria o meu testemunho. Jogou e ganhou.»
trepava sem esforço o Mondego, aquecendo-se· de pas- Outro ;pensamento lhe acudiu a;inda: «Ter-me-á escolhido
srugem pela terra queimada. só pelo jantar na casa do Bocage? Ou, pelo contrãrio.
Gaspar respirruva-o e ;procurava destrinçar os per- aprove:ita o jantar por me ter escolhido?» Lembrou-se
fumes de que ele vinha carregado. De repente acudiu-lhe das palavras de Miguel de Palma: «Salta aos ollhos de
esta ide ia: «E se fora Valadares a chamar-me para todos que a Pifar anda louca .p or vós. Apr.oveitai, tratai
dizer: Spanzru traiu?» Reflectindo um pouco, teve de de ser recebido na casa do Bocage: a ideia vem de
admitir: «De igual forma teria obedecido. » Avaliou com D. Oliveiros. Comporta riscos, já vos previno. Se fa-
incómodo e•s se pensamento. «Apesar do que eu sei?» lhardes na empresa, não haverá quem possa defen-
Tornou a r.efl.ectir e concluiu: «Sim. Não é a tal ou tal der-vos, nem mesmo eu.»
doutrina que obedeço. É às ordens.» O mal-estar au- Estava quase a ado!rmecer. «Sim», recorda~e,
mentava, como se debaixo dos pés sentis·s e amolecerem, ' «a ideia viera de Sp:anza.» No limite da vigília e do
fugirem, as pedras redondas da; rua. Por fim estacou. sonho, apercebia-se de toda uma escala de inquietantes
«0 quê?- disse com certo humor. Que oJUtra coisa posso perspectivas. «Que homem! », voltou a pensar, e qu'ando
fazer? Obediência, e quero lá saber de outras leis.» mergulhava no sono ainda: entreviu de um modo quase
Continuou a andar em passos mais lentos. «Além disso», distinto um personagem desconhecido, gelado, fugidio.
acrescentou para se tranquilizar, «acaso Valadares man- impalpável.
dou que o procurasse? Não. Pois não há problema». Foi
trégua de pouca dura. «Mas .ge amanhã me convocasse
na presença de todos os meus chefes? Rui:z, Areia, Miguel
de Palma?» Esforçou-se por ser irónico: «Qual caso, nem
meio caso de consciência! Tenho-lhes um azar ... » Enco- A cave só •e ra iluminada por alguns cotos de vela que
lheu os ombros e sorriu: «Só me resta desejar que ele distribuíam uma luz des-igual nas paredes e na assis-
não me chame. Além disso, com estes dois carrascos à tência. Rosto.g vários mergulhavam por completo na som-
trela ... » Mas este pensamento não o tranquilizava po_r bra, outros recebiam uma c'laridade dourada que punha
aí aJém e o mal-estar continuou por algum tempo. em destaque o nar.iz e os malares, deixando oo olhos
Metido entre os lençóis, repetia um pouco mais tarde como dois buracos escuros; outros ainda, iluminados
para consigo mesmo: «Qtre homem (*)!Terem escolhido de frente, exibiam uma máscara de grande serenidade.
precisamente um homem do VaLadares! Por um lado O calor principiara a fazer-se pesado, mesmo antes da
pesou o risco da minha fidelidade, por outro a maior sessão estar a·berta. Repartidos em três grupos ao fundo.

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da sala, muitos dos jurados tinham tirado os casacos pedir-lhe 9ue aprovasse a acção empreendida e 11acti-
e luziam na sombra as suas camisas brancas. fica·sse a expulsão de Val·adares do seio da Santa Liga.
A Corte ( *) (o presidente e os dois adjuntos) fazia- Durante o discurso Gaspar ia o:bservando Spanm. i
-lhes frente, envergada de negro como convinha; à cir- e aqueles que o rodeavam. «Domina-os a todos», pen- ~I
fi
cunstância. Sentados à direita, num banco encostado sava. O velho Senhor (*) dos Reis enroscava ao fundo
à parede, esperavam Gaspar e três outros membros da poltrona o velho co11po franzino, passeando nuns e
da Liga que, não tardou ele ;a saber, haviam esc8.1pado noutros o darão ainda vivo do-s olhos húmidos; Da Cun1ha
no caso das cenJto e oitenta prisões. De encontro à outra parecia esmagar o assento com a massa adiposa e movia
parede estava o Cenáculo (*) em peso instalado nas suas lentamente os grandes olhos adormecidos; nas mãos
poltronas - só uma• delas va·zia: a de Valadares, o de :m,uita agilidade, Rebelo envolViia um dos joelhos.
Ca;pitão (*) foragido. «Leva-os a todo-s para onde quer», pensava Gaspar com
Ninguém ouvi~ o presidente dizer o discurso ritual um respeito admirativo.
em que eram relembrados os deveres do conjurado·, bem Quando o presidente ~e calou, fez~se nas bancadas
como os estritos deveres dos que ali tomavam assento. um ligeiro murmúrio e um dos Frades (*) pedilll a:
Mas como ·empenhavam na escuta toda a alma:, aqueles ;palavra. Gaspar julgou reconhecer nele um dos antigos
honestos «Irmã:os» que t;iDiha à sua frente! Esses homens padres da igreja de S. Marcos.
simples ouviam pela primeira vez a tradicional arenga. -O Cenáculo (*) compreenderá que nos sintamos
E as p31lavras provocavam-~hes algum susto; tremiam consternados, confundidos - disse em voz trémula.
à ideia de compreendê-las mal, e mrul se 'inteiraram de Ainda há oito dias, para nós, o Ca;pitão (*) era sempre
uma tarefa que adivinhavam grave. Ga·s par sentiu-se- «O nosso grande Valadares». Há oito anos lhe obede-
-lhes unído rp.or um laço de profunda simpatia, calorosa, cíamos com amor. Admirávamo-lo por saber conduzir
fraterna. Feliz por usar nome de Irmão que ·a eles fazia a luta dentro de um implacável rigor; amávamo-lo por
com que pertencesse. saber manter presente nas nossas fileiras a Justiça, a
Naquele momento já o presidente expunha a situa- Veroade, o Amor a Deus. Esperamos que não tenha
ção. Indícios vários, afirmava, tinham convencido o o Cenáculo ( *) agido com leviandade. Fi:cariamos ...
Cenáculo (*) de que o Padre Valadares, o seu Capi- ficaríamos ... - Voltou a cabeça para os companheiros
tãx:J ('•), mantinha junto de Pombal relações culposas. emudecidos mas tão leaiiS, tão a;plicados, como se no
,I
Descoberto, coagido a demitir-se, Valadares recusara olhar deles esperasse encontr,ar as palavras que pro-
e procurara refúgio nos montes. Vinha pois o Cená- curava: «Humilhados» - disse em voz forte. Respirou
crulo (*) fornecer as provas ao Gramde Conaelho (*), fundo e acrescentou: Nesta circunstância havemos de

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nos mostrar difíceis. Ê preciso tratar-se de um caso de festadas pelo frade (*) que acaba de intervir, quase
extrema gravidade.» Sentou-se. aflorando a indisciplina? Seria indispensável que o fri-
O decano levantou-se para responder. Numa voz sasse mas, uma vez feito, volto a repetir que 3/S espe-
um pouco trémul'a di·sse que o Cenáculo (*) dera S'llfi- radas pro·vas serão fornecida·s dentro de .instantes.
cientes provas de dedicação à Santa Liga para não ser :IDstas palavras deixaram um subtil incómodo no
suspeito de 1leviandade. Que não empreendera sem razões espírito de Gaspar. Ou seria antes a forma como foram
de extrema gravidade uma acção tão vasta. E seriam recebidas? Não saberia dizê-lo. Todos aqueles homens,
prestadM toda·s as provas. sem excepção, baixavam a CaJbeça em sinal de assenti-
Gaspar ouvia com dificuldade. Não deixava de mento. Ao mesmo tempo, porém, al:g111ns gestos breves
observar os Frades (*), admirar-lhes o olhar reflectido, reveJavam uma es·condida perturbação. Um deles esfre-
escrupuloso, a expres'São vigilante dos rostos trigueiros gava suavemente a asa do nariz, outro pra;ssava e re-
marcados pelos e·stigmas do trabalho e do esforço. Acima passava nas faJCes cavada·s e mal barbeadas um dedo
de tudo li'a neles a incerteza, a angústia, uma interroga- indicador meio d01brado. Todots franziam o cenho por
ção patética, o receio, enfim, de não· serem penetra;ntes sobre uns olhos bdlhantes de boa vontade e de inquieta-
e vivos a ponto de discernirem a verdade e cumprir, ção. Um singular pensamento aflorou o espírito de
como de•les se esperava, um dever obscuro, enigmático. Gaspar; «Pedrito vai saber» - mas nem tempo teve
«Valorosos frades (*), amigos valorosos!», pensava de se deter nele: o seu vizinho erguia-se à chamada do
Gaspar ca.'lorosamente. Mas 3.1Pe•sar de tudo perseguia-o presidente, prestava juramento e, muna linguagem um
a palavra que acabava de ouvir: «Humilhados ... Por- pouco balbuciante, começav1a a descrever as circuns-
quê?», dizia consigo próprio. Porque de tão enganados tâncias em que se tinha dado a sua prisão. O presidente
lhes havia de p'arecer que os ti·nham tratado como ... ? tentava arrancar-lhe pormenores que chamassem ao
Viu Oliveiros que, por sua vez, se levantava traJnquilo sentimento, mas ele era desajeitado em demasia e nada
-e lento. mais sabia do que r:epetir: «Oro bem ... que camisa ... (*)
- Terei·s todas as provas necessárias - disse Spanza. éles me enfi'aram! »
Mas se não as déssemos - a;creSICentou com vivacidade Logo a seguir chamaram a segunda testemunha.
- qua'l a diferença? Tendes, ou não, confiança no Era um sujeito espadaúdo, tinha a língua mais desem-
Cenáculo (*)? Se não tendes, forçoso será destitJuir-nos. perrada. «Oorrespondia» admiràvelmente aos apelos
Se tendes, bem sabeis que nada faremos que o futuro que o presidente lhe fazra. Nos mstos à sua frente,
não venha a justilficar. Neste caso, como não· teT por Gaspar podia. seguir os progressos de uma emoção pal-
injuriosas as dúvida;s para com o Cenáculo ( *) mani- pitante.

'Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO IEd·ições Ahodite- DE FORA PARA DENTRO
Vercor5' Veroors

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-Falastes, ao recuperar os sentidos? - perguntava. Olhou para Spanza.
E também Spanza observava os conjurados. Pelo
o presidente. . .
_Não, padre ( *) -disse o homenzl'lllho ·com org~hho·. canto do olho espiava os pressentidos sinai·s da cres-
Nem uma :palavra. Além do mai1s - càlntinuou a rir-:- cente revolta. Era um olhar furtivo e .frio, sem o menor ·
tinha sei·s dentes partidos. A boca cheia de sa;ngue. Nao traço de simpatia, ou mesmo cordialidade. Ne·1e era
é lá muito fácil falar assim! possível ~er uma espécie de contentamento clínico, cal-
Gaspar viu bem nítido um dos rostos à sua frente culista, de mistura com algum escárnio·,. desdém, e em
_um rosto comprido, moreno e magro, de te'sta enru- certa medida aveTsão. Gaspar viu ·e rguer-se impercep-
gada, nariz proemine:nJte - deixar cair subitamente o tlvelmente o lábio fino, surgir o clarão bramco e zom-
queixo como .s e tivesse o maxilar quebrado. beteiro de um pequeno canino pontiagudo ...
-'Ameaçaram-vos? «Despreza-o·s! », eX!clamou Gaspar no íntimo, sen-
_De que .maneira, padre (*)! «Seu idiota, diziam tindo-'se envolvido por um frio de gelo. «Não gosta
e'les, foste denunciado!» - «Por quem?», perguntava deles!», indignava-se. «Serve-·s e deles e inai•s nada. Ele ...
eu. - «Pelo teu chefe! », respondi81m. ele .. . » A cólera sufocava-o. «Engana-nos a todos! A sua
- Di<Sseram mesmo: «Pelo teu .c hefe! »? moderação, a sua humanidade, não pa'Ss·a m de uma
-«Pelo teu chefe», paJdre (*). má:scara!» Compreendeu de repente, como se desde
Sobre tais palavras deixou o presidente que pairass_e sempre tivesse sabido: «Utilizava-os contra Valadares .. .
um .siHmcio de chumbo.. Gaspar viu as faces horrori- para se reconciliar ·com todos os tímidos, todos os bur-
zadas inclinarem-·se umas para as outras, revestirem-se gueses de Coimbra ... » Sufocava e repetia para consigo
de uma e~pres,são em que se misturava indig__nação e .próprio numa ênfase cruel}: «Não .p assamos de um uten-
cólera. E isto, sem que percebesse ainda p~rqu~ conse- silio' da •sua ambição, nada mais do que uma !Porção de
guiu mergulhá-lo, de facto, em plena humllhaça~. Pen- desprezíveis pedras de um xadrez! » Apertavam-se-lhe
sou com clareza: «Humilhado por e'les. » Pens~u-o, ll'a aJS têmporas dolorosamente e foi nessa altura que tudo

surpresa e quase no remorso·. Quase no res-sentimento. ruiu.


Sentiu que amava profundamente aque}es homens,_ toda Já não ouvia. AtraVIés da emoção, coisas e pessoas
aquela simpática gente, que a eles se encontrava h~ado apareciaJm-lhe numá ·a málgama nauseante e fofa, num
por cada uma das fibras, só através daquele ·a mor tmha ema.ranhado de sons absurdos, luzes trémulas, vozear
sigil!Í.'f icado cada um dos seus a)ctos, toda a 'SU~ luta pel~ confuso, gestos desconcertados. O pre·side.nte chamou:
glória de Deus, que em tal amor é que senha a humi- «Gaspar Dias». E Ga;srpar 'levantou-1se, ·atingiu o qua-
lhação e, apoucado ... drado vazio à sua frente. Avançava como se houvesse
'

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nevoeiro. Prestou juramento sem que chegasse a dar voltas'. às volt""" E do fiscal
.
a..o . · · « m casa Bocage _ dizia
conta de o ter feito. Lançou um derradeiro olhar aos
conjurados reunidos na penumbra, aos rostos mara-
o
t presidente. Precisamente na véspera .. . » A o mesmo
emp? levantava-se dentro de Gaspar uma voz que
vilhosamente honestos e graves, confiantes e atentos, repetia nu ma especl'a • · de obstinação desesperada: «Obe-
partilhando de luz e sombra c·omo o eS(pírito desolado
decer. Obedecer. Ou estará tudo peT'dido. Sim, de· qua~­
de Gaspar ...
quer for ma obedecer ... » Fornecia a si próprio razõe
Perguntava a 'S i mesmo: «Que hei-de fazer?» E res-
pondia numa vergonha: súbita: «Todos de .tal forma poder~sa:s : «Não f oi Spanza quem me deu a ordem. F~
prontos a acreditar-me! Olha-me para esses oLhos: bebem o Cenaculo ( *) . Não tens o direito de discuti.r. O Cená-
cada gesto, eada· palavra, como se fosse .uma hóstia. Uma culo (*)' pensav~, «o Cenáculo (*). Obedecer e calar.»
confiança tão grande, uma tão boa vontade. E eu, eu é Apesar dos maXIlares fechados até à dor, debaixo das
que vou .. . » Sem que prestrusse atenção, oruviu o presi- pálpebra~ cerrada·s com obstinaç·ão .v ia arp:av~rado a bela
dente dizer « ...Valadares .. . irei·s saber .. . uma vergonhosa c~ru:t~çao de pedra e cimento, a sua bela construção de
mentira .. . » Gaspar sacudia ,oi; pensamentos como o cão dliSCipltna e obediência, tremer pela base tomb
«Cent 't . - ' ar ...
faz à mosca importuna ~que volta e torna a: voltar, insis- o ~ OI enta prisoes!», artti~ulava o presidente.
tente: «Não é - já não é - mentir! É .. . é ... abusar ... » ~a-~par ~ulgou encontrar um refúgio: «Cegamente·»,
E de um modo ·b rusco: «Só aos nossos inimigos tenho dizia a SI mesmo, «tal como eles». Mas logo a seguir :
mentido!», reconheceu num lampejo. «É uma arma e «~ng~nado como e·l es?», e com horror: «Neste moment o
arrojada, eheia de riscos. Mas enganar estes bons irmãos, c~m?hce ?» Foi preciso que se interrogasse, numa a:bo-
todos estes pobres-diabos! É demasiado fácil, ignóbil e mmave1 angústia: «E se Valadares fosse um homem
cobarde.» «A te's temunha que aqui ~se encontra ... » - seguro, e se Spanza.... » De qualquer forma estava atolado
dizia o presidente - «há-de dizer-vos ... » Gaspar tentou · nu~ desses odiosos ca,so·s de consciência! ó consciência
reagir contra si mesmo e, durante um segundo, julgou d~vidosa, desc<mf.iada, indecisa, absurda consdência!
eD'contrar resposta: <<Para o bem deles», disse sem grande Nao era pos·sfvel evadir-se, está visto, evadir-se, ó meu
força, ma's agarrou-se a esta ilusão. Repetia: «Enga- Deus, evadir-se ... para sempre .. .
ná-los para o bem deles.» Era um frágil dique: «Enga- Ouviu: «Vamos lá, Dias, respondei!»
ná-los... quem, eu? Não», pensava com violência, «eu _.Não.
não, Spanza!» Voltou a pensar a uma nova luz: «Pa:ra o Gaspar arremessara a palavra com voz seca, me;smo
hem deles? Ora, ora! Ele quer lá saber, quer lá ·s,a ber. antes de se ter apercebido de que o fazia.
E então?» Sentia-se 'como a raposa na armadilha, às -Que dizeis (*)? -exclamou o presidente.

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-Não o encontrei 1á - di·sse Gaspar com a maior
tão (*) a prova sinistra do que desconfiávamos. Res-
clareza.
ta-nos, poí·s, que acabe alguém de recon~hecer perante
O peso da~quele silêncio! Ma s Ga:spar sentia-se estra-
1

o Ooru;elho { *) ter participado nesse fatal jantar em


nhamente leve. «Pois bem», ia pensando, «joguei a car-
que foram den'l.Ulc.iad.os cento e oitenta dos nossos, e
tada.» Distinguia nas suaiS costas o mUTmúr.io dos con-
esse alguém é a testemunha Dia;s. Que faria ele em
jurados. Ouviu uma voz: «De onde saiu ele?», sem estar
casa db· Boca:ge? Recebera uma ordem? De qu€1ll?
seguro de que era de si que fa:lavam, porque outra voz Poderá re:sponder?
cochichoo: «Não, não, esse rrão» , m.un tom 3/lgo irritado.
Sentou-se. «Como está senhor se si!», pensou Gaspar.
O presidente, porém, já se refizera. ExplodiJU:
«Tem razão: que posso d!izer? Previu tudo», reparou
~Estais a 'desmentir-vos! Na instrução declarastes ...
admirado. Os pensamentos ·sucediam-s·e numa vertigem:
Ga:spar 'Confirmou. Acrescentou que ·s e tratava de um
«ACU!sá-lo? Todo o 00'Yl8elho (*) ir.á desmentir-me.
erro. Sim, julgara com efei·t o ter visto o Oatpitão (•)
Mesmo que venha a confessar ter sido ele a mentir,
no ta:l jantar. Mas tomara-o ·por um comerciante de
conseguirá aprove~tá-lo, depois, em seu proveito·: «0 fu-
Coimbra que ainda•na véspera ·r econhecera na cidade.
turo há-de justificar-me. Como provar o contrário?
O •rwes'idente metia dó. Estasva completamente desmo-
E além do mais ... além do mais ... » - disse a si- próprio
ralizado. Não pôde furtar-se a procurat' Spanza com o
com amarga melauco'lia - «nem mesmo ten:ho a cer-
olhar, como se quisesse pedir-lhe socorro. Spanza, teza ... isso é que é o pior.»
porém, manüDJha ...se impaiSsivel com os olhos postos
- O nosso Padre ( *) Spanza - disse por fim Gaspar
no chão.
com voz cansada e ·só pa:r'a não continuar mudo - me-
- Visto isso - começou o presidente numa voz
lhor do que eu sabe se posso re'sponder, ou não.
tacteante - visto isso. . . t:a:lvez fosse. . . prefa-ivel.. .
S}:>anza voltou ao presidente um rosto surpreendido:
Spanza ergueu-se sem pressa e voltou-'se• iPara ele.
-O que quer eJ.e dizer? Nunca vi este home'm. Qual
- PoSISO pedir a: palavra? é a sua confraria ( *) ?
-Está concedida.
-De que confrwria (*)sois?- perguntou 0 pre-
Apareceu o pequeno canino branco. sidente.
-Ao que parece, a instrução foi conduzida de um ___.De Mi!guel de Pa·lma -respondeu Gaspar.
"--o

modo muito leV'iano. Antes 'de convocado o Grande - E de que família (*)?
OomJelho ( • ), haveria que ter a certeza de estar . a tes-
«0 dia·bo do hom€1ll!», tpensou Gaspar. «Poi'S bem,
temunha segura do facto. Sentimo-nos felizes e alirvia- os dados estão lançados». Esclareceu:
dos por, de fol'ma alguma, constituir a fuga do Oapi- -Da família (*) de Valadares.

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Edlçõ ·es Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
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Houve um silêncio. cia tremia uma voz que queri a dizer: «está tudo a·ca-
- Aí está . . . --,---- disse Spanza. hado.» Mas Gaspar .fê-la calar-se e ela acabou apenas
Deixou que o silêncio se arra,s ta·sse· ainda: um pouco por murmurar: «Que irá fazer?»
mais e voltou a levantar-se:
-Julgo que o menos que se pode fazer será retomar
o inquérito a partir deste novo facto - propôs. Isto
para termos a certeza de que a falsa testemunha. Dias As ordens foram esperar a madrugada antes de
não irá escapar-nos. r econduzir Gaspar a casa, para aí ficar guardado à
Voltou a sentar-se e pareceu desinteressar-se· do vist a. A Corte ( * ) e o·s demais participantes já tinJham
as·s unto. Foi tomada a deliberação e Gaspar levado para abandonado aqueles lugares. Ficara o Cenáculo (*)
fora. Não pensava em nada -- a si próprio impedia de para deli.b erar. Era cerca de meia-noite.
pensar nalguma coisa. Olhou para trás. Jorge dos Rei•s Os guardas de Gaspar sentaram-se e COIJlleçaram a
levantara-se, todos mantinham os olhos ~resos ao jogar aos dados. Gaspar foi encostar-se à parede num
decano; Spanza desviara a vista. canto escuro e por ali se ficou a pensar, a pensar,
Enquanto o fechavam na sala contígua, à espera a pensar.
de ordens, Gaspar distinguia através da porta a voz «Terei agido como um homem de senso ou como um
trémula sem chegar a perceber as palavras. Por fim louco? E em primeiro lugar: o que me ter'ia enfiado
a voz calou-se. Outras se elevaram num vozear entre- a mentira pela garganta a'b aixo ?» 'J'entava avaliar com
meado de exclamações. A de Spanza dominou-as para calma a sua atitude. Já compreendi qua:lquer coisa»,
dizer com brutalidade: disse consigo mesmo, e franzia a testa porque já não
- Ê evidente o conluio. sabia o que tinha compreendido. «Se os tivesse enga-
Voltou o rumor, como um ruído alternado das ondas nado », pensava, «fazia, ó se fazia, o jogo de Spanza.
do mar. Depois um profundo silêncio, seguido de um Bem. De qualquer forma, fiz. E ainda por cima me
prolongado arrastar de pés sobre um fundo indistinto. perdi.» Interrogou-se: «Lamento? » Sacudiu a cabeça:
Decorridos que foram alguns intermináveis minUJtos, «Não. Nada de remorsos. A questão não é essa- nem
ergueu-se por fim uma voz: mesmo para mim.» «Já compreendi qualquer coisa»,
-Está votada a moção de des·c onfiança. repetiu, «vamos lá a ver ... vamos lá a; ver ... » E reco-
«Spanza vencedor», pensou Gaspar, voltando contra meçou: «Se os Uvesse enganado volJUntàriamente ...
si mesmo o doloroso sarcasmo. E voltoJU a pensar: Ah! », pensava com esforço, «ter-me-ia colocado ;pera:nte
«Senhor da Santa Liga». Nas margens da sua cons'Ciên- eles como - o quê? - adversário... Sangue de Cris-

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to (*) !», exclamou intel'iormente, «aÍ está! Fosse qual onde irá arrastar-nos agora?» «Se nos engam é porque
fosse o pretexto, se consentisse .enganá-los, então e·s taria nos despreza, enganar os amigos é de·s prezá-los, separar-
a encorajá-los ao mesmo: tratar-me .c omo a eles tratei. .. mo-n'Os deles, tratá-los como a inimigos, Spanza tra-
mentir. .. e •se nos começamos a enganar uns aos ou- ta-no·s como a inimigos. Age !pOr conta própria e não
tros .. . » Acabou por fazer-se luz dentro dele: « ... se por nós, pela Santa Liga, não por Deus!» «Mas se não
mentimos sem vergonha, nunca chegaremos a ... di•s tin- podia fa·z er de outro modo? Se não podia di:z er a ver-
guir o verdadeiro do falso, a saber se ajudamos ou com- dade?» «Não! O que eu compreendi e admiti, também
batemos, ou se andamos a lutar pela mesma coi•s a! » os outros pod~am compreender e admitir... Será bem
Chegavam-lhe agora rupressados os pensamentos, num assim? De facto, não tenho a certeza. Podiam dividir-se.
atropelo tal que não conseguia orientá-los ou segui-los. Pôr em perigo a; unidade da: Santa Liga. Spanza tem
«Que grande confusão! » «Será Valadares verdadeira- razão ... Mas será verdade o que a; mim me dis•s e sobre
mente perigoso?» «Spanza congeminara tudo. Desde o f;01pitão (*) , sobre o Papa? Provàv;elmoote também não
quando?» «0 que é verdade nisto? E como srubê-lo? é verdade. Por que haveria de ser mais verdade o- que
Não é possível sruber.» «<sso mesmo: o veneno da me ordenava que fingisse? Onde começava a mentira,
mentira!» «Como ·s aber onde nos levam os chefes, e se onde aca,bava? A que obedeci eu, afinal?»
nos enganam? Dizem 'i sto e fazem aquHo.» «Para nog;so Reparou que ·se encontrava no centro· da; sala escura.
bem talvez seja melhor .isto do que ruquHo!» «·E se nãl() for O suor corria-lhe ao longo da·s faces. Os guardas vtigtia-
para o nosso bem? E apenas pela nossa ambição? Como vam-'llo, inquietos. Voltou para: o canto e sentou-se no
distinguir?» «Foi Sprunza quem me mrundou à casa do chão.
Bocag.e.. . Dar-se-á o caso de já nessa altura ele ter pre- «Um pouco de ordem», pensa'Va. «Pergunta: o que te
visto? .. . » «A que me sujeite'i, ·santo Deus?» «Todos os faz atormentado é teres ajudado Spanza a perder o
fracres (*) presos no dia seguinte ... como se hoiUvesse Valadares? Não. Sin!ceramente?» Meditou, con-cluiu:
um acto premeditado ... Quem fez a denúncia?» Quase «Sinceramente. Se te tivessem dito: lirqwda-o? Liqui-
eX!çlamou em voz alta: «Não! não! Não é possível!» dava-o. Ainda agora o farias? Com certeza. Mesmo sa-
Os pensamentos sucediam ...se uns atrás d:Os outros: bendo que te mentiram?» Pôs-se de pé, num salto. «Ah!
«A obediência cega ... cega até que ponto? Até ao crime?» Isso não!»
«Spanza tdiirá: os fins justificam-me.» «Pois bem, será Ficou imóvel, petrifi.cado. «Por que não? Uiquida;ste-o,
.verdade?» «·E se ele fosse ·sincera?» «E se não fosse? » portanto, pela única razão de ser «demasirudo submisso
«Quem sabe? Quem pode sal:re-lo? Ninguém, ninguém ao Papa» ? .A:bsUI'do·: de igual forma terias obedecido se
~excepto ele. Só ele sabe ·s e é verdade ou não.» «Para Spanza te tive·sse dito: Liquida-o porque não é submisso
l

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a poeira dos vícios.
. Os conjurados são ho·m.,...s .
"'""' e mars
bastante. Não' .necessLto de razões pa:ra obedecer. No en-
nada: nem anJos • nem. hestas · Os chefe -
· s sao como os
tanto, se mas derem) quero-as verdlldeíras ... Alh! alfinal
outr?s_ - ou ma.is do que os outros - por causa da
o que te reteve não foi a razão ma'S a mentira. Lá volta·
ambrçao. E as sua:s ordens feitas à sua ima:gem. Obe-
mos ao mesmo e .não saímos dlisto.» De repente pareceu-
decer
. cegamente ta,lvez seja de igual forma o.bed"'"'cer aJO
-lhe que w.a muito claro dentro de si; «Ai está, ora ai ,
a~Jo e a besta ... >> E pensou mais: «Pretendii desistir de
está: tenho necessidade de confiança, só isso. De ter
a certeza .que obedeço a ord(ms que ~Servem os interesses mrm próprio... abolir o meu raciocínio a mr~nha cons-
·A • '

da Santa Liga, de oDeus, dal Sua Justiça, - não os frio:s crencra ... e aqui está onde cheguei...»
designios de-um a.mJbicioso. Nada mwis do que isto. Desta Sobressaltou-se. A porta albria-se o veiho Senho (•)
do s· R·ers sa:m· acompanhado de Rebelo.' r
Nãio vdram
forma, se me dizem mentiras, ou mesmiQ se iPretendem
que é tudo para meu bem, como ter a certeza?» Naquele Gas~ar ou, não quiseram vê-lo. O enorme Da Cunha

instante sentia-se inva·dlido por uma 'Calma admiTâvel. segma atras deles, empurrando o ventre pelo meio das
«De onde viniha a confiança que eu ti'IIIha no Va1adares? coxas gordas aJfastadas. Rodeavam-no três outros mem-
Velhruco e menUroso .como os outros, como eu próprio, bros da Santa Li.ga. Por um segundo ;pousou em G.a;sprur,
e sem escrúpul1os, - porém co-ntra o inimigo. Contra agachado no canto escuro, os .g randes e inexpressivos
aquele ~'Ilimigo que através de hiJl)ocris'ias e manhas foi olhos, mas logo os desviou.
o primeiro a separar-se de nós, que a: ~ mesmo se ex- Spanza foi o último a sair. A sua silhueta aJta e
pulsou do ~Seio de um :piedoso povo. Ma·s a: nós nunca magra, um pouco curvada, parou um instante· na soleira
Valadares mentiu, quando muilto diz1a: Por hoje não há da por:a, o tempo bastante para a·s pirar uma pitada
explicações, .não· posso dá-las. Mai's tarde havereis de de rape. Enquanto sacudia os restos <Com o auxílio de
sabê-las. E, c1om efeito, num ou noutro dia chegávamos um dedo, Gaspar observava-lhe o rosto esguio e .
ond . . magro
a saibê-la.s. E acima de tudo, acima de tudo»,, pensava . e o na.r.rz surgra implantado como umaJ lâmina entre
com maravilhosa evidência, «nunca ordenou que men- os olhos JUntos e duros . . Spanza atravessou a sala sem
tíssemos uns aos outros! Nada de nos enganarmos uns que G_aspar esboçasse um movimento; remexeu os bdlsos
aos outros! Então sim, a esse homem podíamos obedecer emrar_u deles um objecto que fez saltar duas ou três veze~
cegamente» ... Suspirou: «Esta; O'onfiança di·s traiu-me ... na mao, com ar indeciso; voltou-se , mor .t' flr"m , e !i!proxr-
.
Era tão repousante que foi muito fáclL. muito mais mou-se de Gaspar em pa:sso l·ento. «Não me digam que
fá:cil do que ... » Pensou com amargura: «Mas a Santa. me vem dar a bênção!», pensou Gáspar. Spanza, porém
Liga não é nenhuma mesquita em cuja povta dei:Kamos apenas lhe estendeu a tabaqueira · Gaspar se rvm-se · d'e
as sandálias do nosso tempez:amento juntamente com

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uma pitada, sP.m agradecer. Spanza acabou por per- -Vamos! -protestou Spanza -vamos 1á! Se eu
guntar: fo~s·seambicioso., desde há muito tempo tinha vend~do
-Que mosca te mordeu? a Liga a Pombal.
- Não sei - disse Ga13par. - ... Não podia fa2J€r -Não, não pretendeis um poder frágil, à meTcê
outra coisa. Sorriu e a'crescentou: Ao cabo e ao re.sto, dos ·caprichos de um senhor. E acrescentou: sa:bereis
pouca importância tem. utilizar a força da Liga em favor de um mais seguro
- É verdade - admitiu SpaJnza f:damente. poder. Hesitou e dlisse, como que penalisado: Além disso,
-Pergunto a mim mesmo ... -murmurou Gaspar, não vos conside!'lo infame a tal ponrto.
olhando Spanza no rosto - se no fundo não vos serão - É uma sorte.
úteis os meus tardio·s r.emorsos. -Não, é uma desgraça. Suspirou: É o que complica
Pela primeih·a vez se diria que Spanza olhava para tudo. Refez-se e acrescentou com dureza: S;panza:, S!p:anza,
Gaspar com um amável interesse, sem 'Sombra de cal- para que me haveis agora de mentir? Já sei quem ·sois.
culismo - como ·ser humano. Demasiado tarde; já não vou a tempo de o ensinar aos
-Adivinhaste isso? - perguntou numa voz lenta. outros; e o pior é que terei sido cúmplice da vossa
- Ainda há pouco adivinhei muitas coisa·s - disse ascensão.
Gaspar 'Com melaneolia. Para vós eu não passava de um - Já não dii,zes: É preciso correr o risco ?
instrumento, não é verdade?, e desde há muito: sacri-
-Não renego as mi·nhas palavras - excepto uma.
ficado desde o princÍ\pdo. -Qual?
'Spanza pousou nele os olhos fvios e respondeu:
- Cegamernte.
- Recusar-te-ias a sacrificar pela glória de Deus?
-Porque te humilhas?
Gaspar albanou a cabe•ça.
- Porque favorece a amb!ição cín!ilca.
~Não, desde que tivesse uma certeza.
~ Pois bem, podes tê-la. Que 'Suspeitas aàimentas tu
Spanza fez caiX a máscara e disse:
-Valadares é um peri<go para a vitóvia. Preferes
a meu respeito? Não de traição ...
esse risco?
Gaspar hesitou e di~Bse:
- ... Não. E a:creooentlou: Agora não. Rectificou: - Não sei se é perigo, uma vez que mentis. Sei
Depende do sentido que dermos à palavra. Serv~ireis a apenas que nos é fiel, a nós, a Roma e a Deus. · E vós?
Uig.a até à 'VIiltória. Mas depoiis ... depois ... Tende·s a alma Quem despreza o povo, e o engana, é da: raça de Pombal:
de um sátrapa! - ~ançou-'lhe com violência. Não servis há"<ie mais tarde espe2lirrhar os seus. Vergá-ios ao seu
a Deus nem •ao povo! Só a vós próprio servi:s! jugo!

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Spanza compnm1u o·s lábios num melio sorriso e - Outros, que não eu,, hão-de aperceber-se disso!
encoiheu os ombros como se quisesse fazer cadr uma - respondeu Gaspar numa voz desespeTada.
carapaça Jncómoda. Sacudiu lentamente a cabeça e -Leva para o céu es·s a esperança - resmungou
disse: Spanza 'COm violência - e ·bom proveito te faça!
- :m pena. Não eras parvo de todo ... -Hão-de liquidar-te! - gritou Gaspar. Hão-de fazer
«Já me põe no passado - morto», pensou Gaspar. com que a Liga vo:lte ·p ara Deus!
- No fundq, Vtias longe ... - continuou Spa:nza. Podiia -Não: serei amado. Um senhor vitorioso é sempre
ter feito 'de ti al·g uma coisa .. . Mas para quê? Tens a amado!
cabeça demasiado cheia de historr·retas. -Já dissemos tudo. Adeus, Spanza.
-A que chamais assim? A Deus, à justiça, ao·amor? -Adeus, imbooH.
-Claro que não ... (Les Y~ et la Luimrere)
Foi replicado num tom de imitação, porém tão débH
que Gaspar empalideceu. «Ah! estava mesmo a ver ... »,
pensou,, «acabou-se.»
-Não poderás .fazer mais nada do que jogar com
as palavras?- perguntou Spanzru. Pareceu que tomava
bala·nço, vencia uma ihesitação para exclamar finalmente:
Que doudo (•)! Se bem me lembro, mostraste gosto
pela luta! Esse prazer não te brusta?
-Não - disse Gaspar. Nem a Valadares, estou
certo, nem a nenhum de nós. E disse ainda,, como que
a avaliar a ampli.·t ude da catástmfe: Ad Majarem Dei
Gloriam ... : esta é a menor das vossas preo·cupaçõe·s,
não é verdade?
De impa'Ci'ência, Oliveiras arremessou:
-Acaso jwlgarás que Deus tem assim tanrta neces·si-
dade de ti para a Sua Glór'ia ?
-Mas tendes necessida~e de nós para a vossa!
Spanza explodiu num riso eivado de cólera:
- E se assim fosse?

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LEOPOLD SÉDAR SENGHOR
(1906 )

De Fernando P&soa conheço t~m e-pi.gram14 bem teroz,


do q1w:Z. trOAI.Screvo tum, t.,.agrnento: Dos Lloyd Geor~
da Ba:b'llón<la I N ão re za a histór'Ja n:aàa. 1 Dos
Brlands da Assíria; ou do Egdlpto. I Dos Trotskys de
qualquer colónira I Grega ou roma'll.a. jll. passada, 1
I O IlOIIllle é mo:vto, inda que es011lto. I I <S6 o parvo
dum poeta., ou um Louoo I Que fazia filoSIO<f.ia, I Ou
um geóm~tra maduro, I Sobr~ve a esse tanto
pouco 1. Apesar àe totla a St~ extraluci.àez, o autor
à e O Guardador de R'eb"anhos não previt~ e8te caso
Umtite : que L'loy à Geo1·ge e o poeta pod€:11-iam jazer
wm só, e que impossível se tornaria dissociar as suas
actividades. - ARMAND GUIBERT, a propósffo de
Senghor.

Os s~s versos amplos, irrigados' pela poesia oral dos


narradores ajrica.n os, é a própria voz do continente
em~ q1~ a 1')(l.lavra p~àeu, os mfstli.cos poderes. Poes-Ia
de encantOAn'tmto, 'IW' solo reencontra a nascente, 1~
lfng1~ ft·ancesa intrdàtt~ termos af'l"iaaanos intraà1'-
zlveis, no"nes de- àanca.s e in.stn~mm~tos de •música,
t er1no.s locais de que o próprio canto participa numa
das mais belas partiturias ascritas em francês. A este
po·eta é precisa grande coragem para aceitar as suas
responsabilidades, ele que tão bem sabe como «o es-
plendor dos homens é um autêntico Saha!l'a». -
PIERRE SEGHERS

Nasce em Joal-la-Partugaise (Senegal), na


burguesia negra e em familia de farrruu;ão
católica. É o primeiro ajricar10 aceite na Fa-
culdade de L etras de Paris como assistente.
Exerce a profissão de professor oo seu país.
Em 1945 é eleito como deputado e mais tarde
C01Yin Presidente da República, cargo que ainda

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25
Léopold Sédar Senghor Léopold Sédar S-enghor

386 387
desempenha. Principais obras: Cantos de Som-
Elegias das saudades •
bra Hósbi:as Negras, Etiópicos, Nocturnos (na A Humberto Luís Barahona de Lemos
poo~ia); Teilhard de Chardin e a Política
I
Afi"Iicana (na prosa). Dentro de mim oiço o canto em voz de sombra das
[ s(JJU,(J(u]es ( * )
S€·r á a ·voz antiga, a gota de sangue português que sobe
[<do fundo dos tempos?
Meu nome que regressa à fonte?
Gota de sangue ou mesmo Senhor (*), akunha outrora
[dada :por um ca:piitão a um valente marinheiro senegalês?
Reenc ontrei o meu sangue, acheri o meu nome em Coim-
1

[.bra; .f az um ano, por entre o matagal dos Hvros.


Mundo fe·chado de caracteres precisos e misteriosos, ó
[noite das florestas verdes, madrugada de praias nunca
\. [ouvi'das!
Bebi - paredes brancas colinas de oliveiras ~ mundo
[de proezas de aventuras de amores violentos e ci!Clones.
Ah! beber todos os rios: o Níger o Congo e o Zrumbeze·,
[o Amazonas e o Gange.
Beber todos os mares de um só trago negro sem pausa
[mas com sotaque
E todos os sonihos, beber todos os livros os metais pre-
[ciosos, todos os prodí~ios de Coimbra
Lembrar, mas simplesmente lembrar ...

Um dia em Lagos wberto ao mar como o outro Lagos.


Não só um rio mas um milhar deles, não só uma lagoa 'i
[maJs outras mil

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Edições Afrodite - DE F OR A PA RA D E N T RO I

'
L:éopold Sédar Ssnghor

388 ÁPARTE 388


Um só mar. às quatro distânci1as.
Nem uma árvoi'e dos rtrópicos: uma floresta no· dilúvio
[sobre a vasa; formigante dos répteis do Terceiro Dia
E enltre os pássaros - clarim, os símios do gritar de
[·címbalo, o eTguer dos odores mortais
E de outros, suaves como oboés.
Reinava o Terceiro Dia e era boa a vida.
.. . .. ............. ... ... ... ... ..... . .... .. ... ooo o •o oo o ooo I

O sangue português esvaiu-se-me no mar da minha ANDRÉ BAY: aA saudade ( 0 ). de ressaibo doloroso nos ins·
[Negritude. tante~ da fel!cidade que se pretende fazer reviver, é um
substituto agl'ldoce ou trágico que se prolonga no fado e faz
Canta, Amália Rodri.gues, com a tua voz gmve canta o êxito de Amália Rodrigues.,
[as sOJUAlnxks ( *) dos meus amoTes antigos
(Cartas a Umas Tantas)
Dos rios das flor.e stas das ve>
las, dos oceanos das pra!ias
[do sol
E as vergastadas e o sangue derramado pelas coisas
[fúteis.

Oiço dentro de mim o lamento em voz de sombra; das


[saudades ( *) .

(Nocturnes)

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SIMONE DE BEAUVOIR
(1908)

O intelect'IUl-lism:o de Simone de B eauvoir , severwment e


ra ciom~ lis ta, não t em a subtileza sensorial e intuitiva
do olhar muito fe,nvinino d e Augustina Bessa Luf.s -
A NT6NIO QUA DROS

86 quem 1100 conhece a. vertige·m, da tlSpec'U~ão i1,te-


lectual e não sabe de qt~e imateríais generaZidaàes
é Jeito o mundo- en~ que se debate>m os pro b~as
"~etafisicos, poãe surp?·eender-se con' a atittule de
uma Simone de B eauvoir.- JOAO GASPAR SIMõES

Simone de Be'arUvoir nasce em Parris e ai mesmo


faz os 8e'U8 estudos. Licencia-se em Letras e
desempenha o cargo de assistente de Filosofia
na Sarbonne. Depois disso lecci(YJW, em Mar-
selha, Ruão, e de novo em Paris. Com o
dealbar do existerwiailismo, decide comparti-
lhar da vida e ékJs comprometimentos políticos
de Jeam.-Pwul Sartre. Faz viagens por quase
todo o mundo, as estadias nos EstaikJs Unidos
e na Ghirw; servem-lhe para dois livros com
alguma importância na sua obra: A Améri'c a
Dia a Dia, A Longa Mareha. Em 1954 recebe
o Prémw Goncourt com Os Mandarins, um
romamce. Outras obras: A ConVIidada., O Se-
gundo Sexo, A Velhice, três livros autobW-
gráficos: Memórirus de uma Rapariga Decente,
A Força da Idade, A Força das Coisas.

Ed ições Af.rodl·t e - DE F O RA PA RA D EN T RO
Simone de Beauvolr

391 APARTE 391


SiMONE DE BEAUVOIR: • - Mas ainda tenho imensas per·
guntas a fazer: que impressões levas tu de Portugal? Henri
encolheu os ombros: É uma nojice. - Porquê? Po~ tudo.M Em Lisboa encontrei no cais da estação a minha
irmã e Lionel; de táX:i, a pé, sentados, de pé, na·s ruas,
(Os Mandarins)
no restaurante, no apa~tarrnento, falámos até que o
sono me vencesse. A alegria desta chegada descrevi-a
n'Os Manda?~tn.s. Reencontrava Marsel•h a Atenas, Ná-
pole~. Barcell.ona: uma cida:de escaldrunte, fustigada pelo
odor do mar; o passado ressuscitava de repente na no-
Vlida'de das colinas e dos promontórios, das cores sua;ve.s,
dos barcos de velas brancas.
Tal como em Madrid, pareceu-me de outra idade o
luxo dos est•abele'Cimentos; e eu entrava. «Que galochas
as tuas! » - dissera a; minha irmã com o olh:ar posto
nos meus pés; e logo tratou de me calçar. Nunca dantes
me entregara a semelhante deboehe; o meu ci'clo de
conferências era generosamente pago e, numa só tarde,
arranjei um enrxoval comp[eto: três pares de sapatos,
uma carteira, meias, roupa inte:dor, camiso.Ja·s, vestidos,
saias, •blusas, um fato de linho branco , um casaco de
peles. Fui vestida de roupa nova ao cockta:i'l oferecido
pelo Instituto Francês. Aí encontrei alguns amigos por-
tugueses do Lionel, todos adversários do regime; todos
me falaram zangados de Valéry, que em Portugal só
quisera ver o céu azul e as romãzeiras em f1lor. Além
de todas essas mixórdias sobre o mistério e a melancolia
da alma portuguesa! Em sete mi1hões de po-rtugueses há
setenta mil que se ailiimentam sem privações: as pessoas
são tristes porque têm fome.
Com a minha irmã e o Lionel ouvi os fado~ assisti
a uma tourada à portuguesa. Passeei nos ja,rdins de

Edições Afrodite - DE F O RA PA AA D E N T RO Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Simorre de Beauvoir

392
Sintra entre camélias e os fetos arbóreos. Apesar dos
«dias sem carro» e do racionamento de gasolina, demos
um grande passeio pelo Algarve num automóvel em-
prestado pelo Instituto Francês; o tempo não embotou
essa alegria: dia a dia, hora a hora, des~ohrh· novos
rostos do mundo. v,i uma terr.a de cores afdcanas flo-
rida de mimosaJS e eriçada de piteiras, de faJlésias abrup-
tas que feriam um oceano calmante das suavidades do
céu,, aldeias cai.adas de ·bra!ll'co, igrejas de um barroco
mais comedido que o de Espanha; por detráJs da fachada
sóbria de linhas rectas, muitas vezes se abria uma caixa
de 'Surpresas: paredes e colunas surgiam pintalgadas,
como de .r esto os confessionários, o púlpito e o altar;
da sombra emergi•am estramhos objectos de madeira, de
pano, cabelos e cera, que eram ~istos ou santos. Nas
estradas cruzava com homens do campo que usavam
calções de pele de oveLha e ao ombro uma mamta garrida;
as mulheres andavam com vestidos berrantes; por cima
do lenço amarrado no queixo enfiavam grandes chapéus;
muitas de,las mantinham um cântaro em equilíbrio na
cabeça, ou então bem :apoiado na anca. De longe em
longe distinguia grupos de homens e mulheres debruça-
dos para o solo, que sachavam com o mesmo movimento
ritmado: vermelhos, azuis, amarelos,, cor de laranja, os
trajos briilhavam ao sol. Mas. não me de,ixava iludir;
havia uma palavra- fome~ da qual começava a medir
o peso. Aquela gente tirnha fome por baixo dos tecidos
coloridos; andava de pé descalço, rosto fechado e, nas
povoações frulsamente airosas, notava-lhes o oLhar mor-
tiço; sob o peso do sol queimava-os um desespero sel-

EdiçõesAfrodite- DE FORA PARA DENTRO


Simone de Beauvoir

I 393
393 APARTE

! vagem. Na· semana seguinte tomámos o comboio para


o Porto; em t odas as estações ha'Via mendigos que ilnva-
diam aos carruagens. A tarde , o Porto cintilaJV!!J; era ver-
melho e belo p~la manhã, debaixo do nevoeiro tépido e
branco que subia d'o Douro; porém, cedo fiz a: descoberta
do esterco húmido das· «i·lhas» insalubres e a gurgita•
rem de crianças escrofu1osas; rapariguinhas andrajosas
remexiam nos caixotes do lixo com avidez. Eu não cedia
ao desagrado nem à compaixão; bebia vinho verde (•),
aguardente de medronhos, perdia-me na a.l egria ga.Jiata
do meu sa:ngue e do céu; levantáva,mo-nos cedo para ve.r
a aurora embranquecer o ma:r; víamos a noite iluminar
os faróis enquanto o mar engoiia ·l entamente o sol em
brasa; a:co•l hia com satisfação a beleza das paisagens e
das pedras: as colinas floridas do Minho, Coimbra,
Tomar, Batalha, Lei'ria, õbidos. Mas a miséria era de-
masiado flagrante em todo o lado, para que a esquecêsse-
mos muito tempo. Em Braga: havia festa; havia; procis-
sões e uma .feira ; comprei lenços,, jarras, bHha,s, .g alos de
cerâm:i ca; admirei bois magnificos com os cornos em
forma de lira, presos dois a doi-s em cangas de madeira
trrubal:bada; jmpossível no entaJnto ignorar os mendigos,
WILLIAM SI,I.ROVAN: • Agora que estou em P~r~u~al penso no as crianças ·c obertas de usagre, as rapariguinhas cam-
que tenho visto por essa Europa cheia de ~tserta, de neces·
·d d de opróbrios. Um espectáculo temvel. Pede·se es-
pónias de pé descalço, as mU!lheres curvadas ao peso dos
SI a es, · N"
.
mo Ia, pe de se
pão em todos os países que percorri.
- d d" A
ao
que
fardos. Na Naza:r~, o pitoresco do porto, das barcas, dos
critico Mas vi. Precisam e pedem. E uro pe tr. gora
estou ·~~ Portugal parece-me outra coisa, que estou nout~
trajos não mascarava a t11isteza dos olhos. A burguesia
continente. o vosso povo tem dignidad':: Desde que_ aqut portuguesa suportava com muita serenidade a miséria
estou nem um só groom me estendeu a mao a. pedir ~o neta .. ·
As pessoas parecem·me saudáveis e é agradavel ve·las nas rulheia. Às crianças exangues que pediam esmola, res-
ruas . .. Tudo tão diferente do que vi por essa Europa ... » pondiam as senhoras de peles com itnlpaciência: «Tenha
(segundo o Diário Popular de 26/5/1949)

Edições A f r o d i t e - DE FORA PARA DENTRO


PARA DENTRO
Edições Afrodite - DE FO RA
Simorte de Beauvoir

394 ANDRE PIEYRE DE MANDIARGUES


(1909)
paciência» (*). Em V., pequeno porto do Minlb.o, a:lmo-
çámos numa esplanada: com o agente consular, ~ ~il'­
tuguês; havi'a: criança'S que nos viam comer em st•lenmo; Mesmo q.'U!e exerça apfflUl8 o papel àe teste:munha, em
correu com elaB; uma vo'litou e dei-lhe cinco escuik>s (*). seus escritos Mandiargues compromete-se como artista
e homem. A cada instante reveZa as p'ffl/erências e
0 português ~evantou•se num sobressaJlto: «~muito! ela acrimónias. Vol1mtàriamlente i-nsolente para com os
vai ga•s tar tudo em rebuçados!» falsos vawre.s que a ordem .socia~ obriga a re~encfar,
sem que o saiba talvez este artista seja um m:oraUsta,
este wuvador dos seres que ama seja um viole1~to polé-
(La Force da Ohoses) mico. - GUY DUMUR

Muito pouco bastaria para passar àe wn ea:trerno ao


outro e cometer graves equ{vocos, coomo elllse àe afir-
mar que André Pieyre de Mandiargues recuaa por
.sistema o mundo qu,e o ·vtu .tl/Q8cer e, àe uma v~ para
semípre, com p?"opósito deliberado, escolheu o re/tígic
.t.
do 80?~lio e tomQtt o 1'/atrt'ido da. wU!Ctualoid4de. - B.
BARONIAN

MO!fl,(];imrgues nasce em Paris de uma famílU:t


com tradições oalvinistas. Aos 'Vinte QIIWS co-
meça a escrev·e r poemas no intuito de reen-
oantrarr «perdidas emoções sentidas em amti ...
gas leitvwras dos poetas». Entre estuiros e letras
vai vU:tjando pela Europa e Oriente mediter-
rânico. Durante a guerra de Hitkr refugU:t-se
em Monte COJrlo. Actualnwnte 'Vive em Paris.
Suas obras principais: A Idade do Giz, Nos
Anos Sórdidos, Hedera, O Ponto em que me
Encontro (na poesia); O Museu Negro, O Sol
dos Lobos, A Motocicleta, A Margem (na
prosa).

Edições Afrodite - DE FORA PARA DENTRO Edições Mrodi.te - DE F O RA PA RA D EN T RO


André Piey,ra de Mandiargues

397
Em Coimbra

Estou em Coimbra, quer dizer em Portugal,


Os Franceses compram bonecos em trajo regional.
Eu cá comprei sabão na «Drogaria Astral»
Pois quero lavar as mãos das terras que existem sob
[a. lua,
A minha, as outras, incluindo a tua.

O que mais graça a terra tem, ainda assim,


É uma espécie de edifício que não é jardim
E ao qua;l chamaram, no entanto, Jardim da Manga.

Faz lembrar um aJlambique (de quatro bicos)


E os cornichos são quatro modestos pa.rvilhões
Usados já, quem sa;be, nalgumas fumigações ...

E os tristes da noite vão armar-se cavaleiros no punho


[da camisa,
Ouvem as gotas pingar na bica avarenta
Que por doutdn:a ou eJq)eriência - todos sa:bem,
Ninguém toma pela Fonte de J uventa.

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


A·ndré Pieyre de Mandiargues

398 THOMAS OWEH


(1910)
Em todo o lado vejo um tédio mortal capaz de me agradar
Num d~ pelo menos,
E de um instante ao outro me roubar aos pensa- E?n declíve stur:ve chega Ow.'"~ ao MedlJ, toma pelo
[mentos 1 • braço o leitor num i?wcente passeio com. a mfíençcfQ
1J&rvérsa rJ,e o éteia;ar só quanão à sua frente jti «ver
Coimbra, 18 de Agosto de 1960 o /atntásfico t6rr0r. - J]j)AN RAY
(Le Point ou j'en Su-as)

Tlwrnas Owen 'IW8ce em Louvaina, onde vive


nos amos da adolescência e frequenta a Uni-
versidade que virá a licenciá-lo em Direito.
A sua vida artística tem-se dividido pela crí-
tica de a;rte e literatura, iwi.ciada esta em tom
menor com a publicação de romances policülis
de acentuado pendtJr hrumorístico. Mais ta;rde
envereda com relevância pela chamada «escola
belga do insólito» (Jean Ra;y, MOJrcf3'l Thiry,
Frwnz Hellens, Ghelderode ... ). Principais
obras: A Cave dos Sapos, Os Caminhos Estra-
nhos, Cerimonial Nocturno,, O Jogo Secreto.

1 Je Slrils à Coimbre 8Jiltant dh'e au Portugal I Les Fra111çaris


achêtent des poupée.s ~ costume régiooal I Mod j'ai ruch!eté du .
savon à La «Drogulerile Asbra;le» I Car j'a.t bien l'mte'llltlon de me
laver ·les m'!llmS I De morn pay.s coonm.e tous les autres y colmpr'i.S
!e Uan, 11 Ce qu'il y a de plus currerux dians ce co~n I EBt une
s011'11Je d'éd!iJfioe qui! n'est guêre U!Il jlaJrdin 1 Et quli pourt81Ilt se nomme
le Jardin de la Ma.nJche, I I n a l'atr d'un ailrambi:c à quatve becs I
1 Ses quatre corn111es sont quatre petits pavffillons I Quli pou'Vraii.nt
avorlr sel'Vi à des subl:ilmatiorns, I 1 Les tl'isters dans La nuit s'y font
cheval:ders de lia mrunchlett:Je I Au bruit d'une foDJtaJi!nre avave en I I
goutelettes 1 Qui n'a I'!ien de commun avec l'a Source de Jouvcence I
1 Cb:acUID. le 3alilt pa1r do:ctrme ou par expéM!ence, I I Tout CJella est
d'un ennui assez tuant pour :rrw p!Jaire 1 Un soir au moms I Et
quelque insta.nt me soustraire aux pensées.

Edições Afrodite - DE FORA PARA DENTRO Edições Mrodite - DE F O RA PA R A D EN T RO


Thomas Ow€n

,
401
O improviso de Evora
(História secreta)

To dos somos um d:e8erto


F RANÇOIS MAU!UAC

Eu tinha ido es:pecia[mente a Evora, rainha da pla-


nície alentejana em pleno eoração da terra férti'l onde
se colhe o trigo, a azeitona e a rc ortiça. E a Ebora dos
Romanos, péro1a do turismo português com mzõe.s mil
de encantar o visitante. Na região a pedra é lis.a de tão
afagada pelo vento e poilida perlo sol. As. sombras de uma
violência contrastada. ·
Nem só o templo de Diana me havüv 8.1li chamado,
ou a catedral, ou mesmo a fonte encantadora e a sua
bola de mármore que, à luz, parece rosada ~cera.
Pretendia vi·s itar a horrível Capela dos Ossos que
segue à bela igreja de S. Francisco. Os francisea.nos são
macabros. No interior desta cripta, as colunas, rubóba-
das, paredes, são .gua.rnecidas de tíhiars aos mirl hares,
costela;s, crânios humanos, presos na cal onde se ajustam
num aperto, uns contra os outros. Antes de lhe che-
garmos o nariz, pensamos num qualquer de'corativo
revestimento sem lhe destrinçar logo a natureza fúnebre.
Que velho arquivo forneceu tais relíquias amareladas?
Como autênticos manequins, penduram-se ao longo de
uma das paredes dois despojos meio mumificados, inter-
rompidos desde séculos na decomposição. Já não são
esqueletos,, porém restos arc a;stanhados, fibrosos, que
fazem pensar na matéria que compõe a noz do coco.
Desses doi·s corpos um é muito grande, o outro muito

EdiçõesAfrod i t e - DE FORA PARA DENTRO

26
Thomas Owen Thomas Owen

402 403
pequeno. ·E todos os amos, garantem-nos, um deles au- aqui chegarem. Das mulhere!s que os ofeveceram à Vir-
menta de tamanho e o outro :diminui. São restos de um gem, algumas estão morta~, outras vivem ainda ... Em
pai e de um fi,l'ho. Por ter erguido a mão contra o autor certos dias .fe•stivos do ano, gosto de voltar aqui a rev•iver
dos seus dias, o outro - ama;ldiçoado rulém-túmulo - recordações galantes.
pouco a pouco há-de reduzir-se a nada,, contribuindo O sujeito tinha uma voz estranha que desmentia a
assim para a edifica~ão dos peregrinos. bondade, a cordiaHda'<ieo, o bom ar 'da sua pessoa.
Que aos poucos se reduza a múmia, se faça: poeira, -Vai ficar muito mai1s tempo em Portugal?
ainda vá. Mas que uma outra já desmesurada a;inda mais ~Ainda uma semana,, segundo creio.
cresça, aí está o que perturba. . - Jornalista?
O subterrâneo é sombrio. Cíd'os amarelos fazem ba1lar -Não exactamente ...
através de[e luminosidades pálidas. A opressão que nos ~Vii-o tomar notas. Escritor, então?
invade não se descreve. Pior ainda, numa pequena; ca.Jpela - Qua'lquer coisa do género .
. lateraL, é o horror que em nós provoca uma série de com- - Está hospedado em Évora?
pridas tranças de ca:belo oferecidas num ex-voto por ~Não, em Lisboa.
piedosa·s damas, ou arrependidas•. Ali estão, poeirentas Olhou o relógio e depois reflectiu alguns instamtes.
mrus ainda vivas, negras ou .l oiras, ofertadas após que -Quer almo~ar comigo? Recebo hoje vár.ios amigos.
hesitações e em que circrmstâncias! A mão no meu braço era um gesto de insistência.
Foi ali que eu encontrei Manuel Valadas a obser- Sentia-me tentado.
var-me;, sem dúvida, há muiito tempo. Tod<Y entregue à f - 'É um a!lmoço regional, em pleno campo, à beira
minha contempla~ão, deixara o guia e o grupo de visi- de um lago artificial que mandei fruzer no meio da minha
tantes aproximarem-se da saída. herdark ( *) . Alimenta-me os arrozais. Há-de encontrar
Um deSúonhecido de e~essão aitirvru, grrunde, forte, muita gente. As pessoas :importantes da região,, cria-
aspe'c to cordirul, que me di~i·giu a ,p alavra num francês dores de gado, prop11ietá:rios ...
excelente. Aceite,i mais depressa do que devia, sem dúvida.
-Este crubelo de mulher é hem mais emocionante do Preveni o condutor do autocarro que me trouxera e segui
que todo o carnaval fúne~bre ali do- lado. Não aJCha? o novo amigo, depois de uma apresentação recíproca
_'É verdade. Não consigo despregar os olhos destas trocada em boa forma·.
tranças. Curioso hábito! Manuel Valadas encamill11h.ou-me em direcç:ão a um
- Que se vai perdendo. Proporciona-me, no entanto, carro potente e descapotáve'l que estava esta·cionado à
secretas delícias. Eu próprio a,faguei ca:belos, aJiltes de sombra da catedriDl. Teve de entrar na igreja para encon-

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO Ed ·i ções Afrodfte- DE FORA PARA DENTRO
Thomas Owen Thomas Owen

404 405 .
trar 0 chauffeur instalado ao fres~o, debaixo daquelas Designava-me um ponto distante.
abóbadas .pálidas de pão de centeio. A medida que nos a;proX'imávamos, pude distinguir
Saímos da cidade através de ruelas íngremes, ora várias tendas de cores vivas que em mim evocavam
brancas à luz muito crua, ora mergulhadas na sombra. urna espécie de campo do Drap d'Or. O sol fazia reluzir
Depois, quase de imed1'ato nos vimos em estradas aca- a:::; carroçarias dos carros já estacionados, e cheguei a
ooa:das que sulcaa:n o· campo alentéjano, .g rande pla11ura pensar na cintilação das armas que referem as nan:a-
de ondulações moles a peroer de vist a, onde as past81gens tivas rnilitaxes de antigamente. De todos os cantos da
suce'diam aos trigais, aos olivais, às formações de so- planície chegavam outros veículos em rnar<ma lenta,
breir os que pareciam monstruosos troncos de carne en- levantando uma nuvem de poeira acastanhada.
chapelados com um velo de folhagem verde. . De repente, com toda a superfíc.ie prateada pôs-se
Ca;mpinoo (• ) de bo-n:é de lã verde e .p onta caida, com a brilhar um la•g o que determinada prega do terreno
a borla a varrer-lhes o pescoço, seguiam despreocupa- havia, até ali, ocultado ao meu olhar. Era de uma
damente os rebanhos cor de terra. Campónios desco- beleza inesquecive•l1
briam-se à passagem do nosso carro e quedavam-s'e O carro deixou •a estrada, deslizou na erva e parou.
muito tempo a seguir-nos com os olhos, chapéu de feltro Os criados apressavam-se. Descemos.
na mão. Sentia-me• transportado longe, no tempo,, evo- Duas camionetas a·zuis do Negresco tinham trazido
cando co·s tumes am'tigos em que ao senhor se devia de Lisboa uma porção considerável de vituaihas, aTina-
respeito. das )á sumptuosamente numa imensidade de mesas ao
A herdmk ( *) do meu anfitrião era grande como abrigo das tendas vermelhas ·franjadas a dourado.
uma província. Ele própr:io me explicou a amplidão dos Numerosos convivas se ha~iarn reunido ali, organi-
trabalhos que empreendia para adimentar de água os zado grupos, instalado cadeiras desdobráveis de·baixo
arrozais cujo verde tenro se estendia por hectares, ao dos guarda-sóis ou na sombra dos sobreiros.
sa:bor das conlfigurações do terreno ora encurvado, ora A recepção era muito mundana e Manuel Valadas
arredondado, :com a fle.xilbHidade sem dissonância de um entrou na multidão elegante corno um rei, mão erguida
manto- de água que· julgariamo~. à primeira vi'sta, imóvel. num sinal de boas-vindas a todos, sorriso rasgado a
Andámos lbásta11te, o vento da corrida tornava quase i-luminar-lhe a máscara voluntária.
agradável o calor que adivinhávamos pesado, sobre o Aquele homem ri·co e poderoso, ta-lhado à Hércules,
campo. rosto de ar livre, porém vincado pelo signo do nasci-
Por fim, Manuel Valaldas tocou no meu braço. mento ilustre, decidia-se a gozar o instante em cheio.
- Chegámos - di•sse, clarificando a voz. Tanta gente lograra reunir ali! ' Tantas mulheres belas

Edtçõe ·s Afrodite- DE FORA PARA DENTRO Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Thomas Owen T·homas Owen

406 401
a saltitar na erva dos seus domínios com sapatos de parados de dez maneh-as, pastelarias desconhecidas,
tacão alto, tantos homens importantes a testemunhar o cestos de fruta; sorvetes ... E os vinhos! e os licores! e
seu êxito!· aquele bagaço velho da 11eserva de 1900 ...
Dirigiu-se a um grupo em que a sua muiher, ao Eu encontrara um reeanto na sombra, um cadeirão
centro, recebia cumprimentos dos conv:idados. Er.a uma confortável e, não obstante a ·b risa fraca que mov~a o ar,
portuguesa formosa,, de olhar ao mesmo tempo cálido o ca-lor ajudava-me a sucumbir . Ent re as páipebras caidas
e trJste, e extrema distinção. Pequena ao lado do ma·rido, via um homem muito morem:o, de tez esverdeada, que
de notável finura e belamente at aviada num vestido de comia gulosamente e fazia lembrar um bárbaro na pHha-
renda preta. A todos dizia palavras de acoihimento em gem, isto ape·s ar da elegância incontestável nas maneiras.
voz grave e cati:vamte. A mim, dirigiu-se-me em francês A v:erdaxle é que o seu olhar revelava um clarão de cruel
e de uma forma aJlgo cantante, cheia de oodução, que volúpia, mas ... disse para comigo mesmo. Manuel Va-
nunca mais esqueci. A . VO'Z parecia: deslizar em torno ladas só reunia ali dos seus amigos ...
das palavra:s, com suavidade, a fim de lhe's dar poli-
mento, oferecer-lhes quaJlquer coii·s a de quente e luzi'dio
importada do :sul,, sem nunca atingir o mais fundo do
que procurava exprimir.
Essa mulher desempenhava o s·eu papel de forma · Ainda a festa estarva; no auge quando o anfitri·ã o me
encant!!idOTa. conduziu ao carro.
O dono da casa preocupava-se muito comigo. Apre- . -Há pou~o _falávamos de cavalos. O senhor apre-
sentou-me aos amigos que f alavam a minha língua, sem Cia-os .... DeseJaria; mostrar-lhe a minha estrebaria.
que, apesar disso, me abandonasse. Atravessámos o campo numa di~ecção diferente
Quase fazia fiigura de favorito. Arrastando-me por e, vencida que :foi uma dezena de quilómetros descemos
' . '
capricho àquele lugar, entendia que o seu dever era ao patlo de uma grande quinta solaxenga de paredes
honrar-me ~. então, não me deixava. rosa-pálido que muito realçavam os motivos de cerâmica
O mestre-de-cer:imóni1as tocou uma 'Sineta cujos re- vi?let_a. A [mrpr~ssão rnàis crua que em tal lugar nos
flexos dourados cint ilaram fortes, ao sol. Estava aberto a~II).g.r:a .era a limpeza quase agre•ssiva: de tudo o que
o ·b ufete, e que bufete! Nunca hei-de ver outro seme- v1amos a nossa volta. Tudo ali se apresentava a reluzir:
lhante. Conchas marinhas no gelo, lagostas , carilJeiS frias, o carvalho das p~, o negro das ferragens, as telhas,
enchidos, galantines, leitões a reluzir de geleia dourada, mesmo a calçada corcovada do pátio, di,s posta em cír-
com a cabeça entre as pata~, aves estufadas, ovos pre- culos concêntri'cos como se fosse um gigantesco azulejo.

Ed ·i çõ •e s Afrod i t e - DE FORA PARA DENTRO Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


T'homa;s Owen Thomas Owen

408 409
A estrebaria ainda mais asseada se encontrava. Dez Manuel Valadas abordou este capítulo com um prazer
cava'los de alto preço, magníficos anima.is metido:s em malévolo. Longe de incitar à discrição, a presença da
compartimentos envernizados, exibiam as crinas en- mulher arrastava-o, muito pelo contrário, a uma mi-
quanto recebiam os cuidados atentos dos palafreneiros núcia extrema com o seu quê de desagradável.
em libré. Consultando o meu relógio verifiquei que se fazia
Uma selaria de riqueza extraordinária ostentava-se tarde e informei-me sobre a forma de regressar a Lisboa.
aos meus olhos, como num museu. Reluziam todos os -Mas o meu amigo vai .fi!Car connosco! Vai ficar
arreios, catalogados, ordenados como objectos de co- connosco•!
lecção. Já me :tinha: levantado e ele forçou a que me sentasse
Manuel Valadas agarrou num pingalim e desatou a de :novo·.
picar as pernas dos cava<los, enquanto estalava a língua. -Rara é a oportunidade de hospedar aqui estran-
Isso forçava-os à impruciência, a contra;cções, a espezi- geiros tão s•impáticos •como o senhor. Vou mandar buscar
nhar, a pôr em evidência a musculatura e o brilho da a sua bagagem a Lisboa. Há·de repousar aqui alguns
pele. Ordenou então aos palaJfren~iros que os fizessem dias. O tempo que qui ser ...
ir lá fora trotar à nossa frente., na ca;lçada do pátio, Declinei o convite a rir. Já tinha abusado da sua
enquanto me expHcava a origem de ca:da um deles e hospitalidade.
anunciava os preços, o nome dos pais, o,s êxitos já obti" O meu anfitrião fechou o rosto, e a mulher, de modo
dos. Chegou a pretender que selassem o que eu achava bem sim.ple.s e ·c om uma cortesia onde adivinhei que
mais belo, para mo fazer montar. melhor andava em recusar, insistiu para que acedesse
O aparecimento da mulher acalmou-lhe, porém, a ao convite do mwrido.
excitação hípica. Quando ela o olhou com uma ponta de -Lamento-o, na verdade, ma.s é impossível. Toda
impaciência, fez um sinal à cr.iadage~ e a cava:lgada a minha viagem está organizada e ainda esta :noite tenho
terminou. de voltar a Lisboa. Sinto-me desolrudo.
Entrámos então na grande casa', muito fresca por Manuel Vàladas, porém, não gostava que o contradis-
trás dos cortinados caídos. No corredor evolucionava:m sessem. Mantinha-se obstinado e capri'choso como se
duas criadas à espanhola, com enormes laçarotes brancos fosse uma criança grande e mimada,, lançando à muLher
pousados nos rins. olhares fulminantes.
Serviram-nos bebidas geladas e a conversa man- -Há-de ficar, querida, há-de fdcM'! Nem todos os
teve-se pelo tema dos cava,los, o treinamento dos tollil'os, dias temos a: sorte de ;hospedar aqui um intelectual
muLheres e caça. susceptível de me agradar. Para mais, um intelectual

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO
Thomas Owen Thomas Owen

410 411
apreciador de cavaJos! O que honra o nosso país e a de meia hora. Peço-lhe encarec,i damente, disso depende
nossa: ca,sa. Considere-se poi's em sua casa. Está a;ssente. a Vlida dela!
Vou telefonar parai o seu hotel. Entretanto vão indicar- E já ia de escanti1hão pela .g rande escadaria abaixo.
-lhe qual é o seu quarto. A ;porta bateu. Ouvi-o lá fora a correr no areão. Pouco
Homem do diabo. Senti que a mulher cedia à sua depois o carro arrancava.
vontade. Fi·z outro tanto. Eu estava paralisado,, sem ·sruber o que a:li me reUnha
e conseguia impedir que corresse à cabeceira da Sr." V8.1-
ladas. Medo, suponho, de qualquer coisa rterríve·l a en-
frentar, talvez a morte de uma mulher que ainda pela
Ia a: noite a meio quando des·p ertei num sobressalto., manhã não conhecia. uma mulher que podia à minha:
com a luz do quarto acesa. De pé, ao lado da cama, frente exaJar o último suspiro, :ffinar-se perante a minha
Manuel Valadas virava rpara mim o rosto desfiigurado. impotência. Quem sa:be lá se naquele momento não
-A minha mulher está muito. mal - disse, enquanto estaria morta;?
abotoava a camisa numa .p ressa febril. Vou numa corrida Sentia-me gelado. Encontrava·-me face a face com um
procurar o médico, que está sem carro e mora: a quinze horrível caso de consdência:. Ape,s ar do convite que o
quilómetros de distância. marido me fizera, com que direito ia penetrar no qUJal'to
- Posso ser-'lhe útil de a1.gum modo? daquela mulher aJgora; inconsciente, mas que eu sabia
-Vá para o meu quarto:, sem ma:i·s demoras. Faça distante, quase a~ltiva, e me fi'zera um acolhiimento con-
qualquer codsa. Não me fique para lá a dormir! trariado.? Além do mais, nem médico eu era!
Sentia-me aterrado com a emoção dele. Saltei: da A vergonha de não ser prestável fez-me decidir.
cama, calcei as pantufas, e já me empurrava para fora Percorri em silênocio o grande corredor, preocupado
do quarto, com um ar ao mesmo tempo irritado e com mil coi,s as. La abrir a porta. Não sei' que intuição me
suplicante. reteve, porém, e me fez colar um olho à fechadura.
- É aquele quarto, a;,o fim do corredor. A Sr.• Valadrus não estava em perigo de morte!
Tinha a sensação de que empaHdecia, descobria-me Metida num roupão de noite, vi-a percorrer o quarto de
·c om medo da!s minb:as :inesperada;s responsa;bili'dades. um lado para o outro, muito nervosa, muito agitada
- Não seria melhor chamar os criados? É que não e a mordiscar um lenço. Em ' certas ocasiões mal a
conheço nada da ca;sa. Como é possível tornar-me útil? entrevia porque ultrapassava o meu campo de visão.
-Não meta os criados no assunto, por amor de Noutras, parada à frente de um toucador romântico
Deus! Vamos, desp.aJChe-se! Hei-de estar de volta dentro iluminado a · velas, contemplava-se com gravidade a-per-

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Thomas Owen Thomas Owen

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tando de encontro ao corpo, e a mãos ambas, as pregas conheddo na casa,, escondia~me tomado de angústia e de
do roupão. irritação nas prega•s de um reposteiro, enquanto o novo
Qual era ali o meu pa>pel, que significado tinha aquela personagem invisível e ameaçador se preparava para
comédia? faze·r fogo, a poucos metros de mim. Mas fazer fogo sobre
Voltei de novo pelo escuro,, em diirecção ao meu quem? Sobre mim, talvez,, que me cuidava invisível só
quarto. Ne,s se mesmo instante senti o ruído de uma porta porque nada via.
de carro suavemente batida, não muito longe dali. Pela Por sorte o intruso caminhava naquele instante, em
janela verifiquei que a noüe estava clara, embora não direcção oposta. Avançava. muito lento e suave, mas o
distinguisse nenhuma viatura. Apurei o ouvido. Os esta- seu peso fazia o soalho estremecer ligeiramente a cada
lidos do areão eram quase imperceptíveis. Alguém con- passo. Num gesto brutal ·deitou a mão à porta do
tornava a casa. quarto e albriu-a. Foi então que ouvi o grito de terror
Um pouco de claridade noctur:na penetrou na casa da dona da casa e reconheci,, recortada no quadrado de
quando a porta se abriu, sem ruído, ao fundo da escada. luz, a silhueta maciça de Manuel Valadas.
CoJei-me vivamente de encontro à parede, a coberto do Deix'lndo que a cabeça pendesse, o meu anfitrião
pregueado espesso de uma cortina de veludo que exalava ainda demorou um segundo no limiar da porta. Depois
um curioso odor a água-de-colónia e a desinfectante. fechou-se lá dentro, com a mulher. Percebi então que
Agora havJa aH alguém que retinha o fôlego e subia as vozes de ambos se elevavam num português querelento.
a escada com prudência. Senti, nítida,, a vibração dos Voltei ao quarto sem ·saJber exactamente o que pensar
degraus. Ohegado que foi àquele andar, o visitante cir- de tudo aquilo. Esquisita maquinação aquela! Porquê
cunspecto parou, como se hesitasse em tomar o rumo tais mentiras, o precipitado regresso, o evidente desejo
do meu quarto., ou do· qua.rto dos donos da casa. Encur- de surpreender? Porquê a arma na mão, pronta a dis-
ralado como estava não conseguia ver nada, mas aJinda parar?
assim reconheci o ruído característico da pistola que se E porquê, a,gora, o silêncio inquietante caindo como
carrega. Ruídos há que não enganam. um peso em toda a casa;?
Em tais instantes a velocidade dos pensamentos é Apesar de· perturbado,, acabei por me vergar ao peso
vertiginosa. Imag.inava: o meu pobre amigo com a morte do sono.
na alma, a lutar com a noite na demanda de um médico.
A mulher, intérprete de uma comédia indigna,, andava
às voltas no quarto, presa de uma agitação doentia e O primeiro ruído que ouvi na manhã seguinte foi o
nervosa. Pelo que me tocava, hóspede ruinda ontem des- de um cavalo a· campear no pátio. Por tráJs das cortinas

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Thomoo Owen Thomas Owen

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pude ver Manuel Valadas calçado de botas neg.ras, -O senhor tem de partir já - disse em voz grave.
a montar o garanhão baio que um palafreneiro dominava O mais depressa possível. Antes do Manuel entrar!
com dificuldade. O animal soberbo ainda dançou 'um Despojara-se de todo o ar altivo. Eu pressentia que
pouco, sempre no mesmo lugar, de,poi's acalmou-se e lá aquela mulher ansiosa falava verdade e rece·ava o pior,
partiu a passOj, com o dono bem fincado na se~a. Seguindo por ela ou por mim. Não compreendia, mas disse que
o costume de todos os dias, Manuel Valadas dava o «sim» com a crubeça, para a rucalmar.
passeio matinal. Ficámos silenciosos um longo instante. Os móveis
Quando acabei de me arranjar desci, bastante emba- encerados exalavam um cheiro a encáustica, nada desa-
raçado. A criada introduziu-me numa sa:la de jantar onde gradável. Uma criada trouxe o café e retirou-se logo a
a luz entrava a jorros, espalhando reflexos em todos os seguir. Fi·z estalar um pão pequeno e dourado entre o
cantos. polegar e o indicador. Servi-me da manteiga e a lâmina
A Sr." Valadas já lá se encontrava. Parecia amo- da faca fez tilintar o recipiente de cri!staL
lecida, embora menos distante. Chegou mesmo a sorrir- Por , fim, a minha interlocutora decidiu-se a dizer
-me de um modo muito amigo e, num gesto gracioso do ainda mais.
pulso, convidou-me a tomar lugar na mesa, à sua frente. - O meu marido é louco! Medicamente falando, está
O pequeno-almoça consistia em frutos, compotas, a .perceber? (Destacava as sílabas P'ara reforçar a insis-
pãezin:hos minúsculos, mas a r-iqueza da baixela oferecia tência.) Acredite em mim! Não fique por aqui nem mais
algo de principesco àquela refeição· tão simples. uma hora.
- P®ssou bem a noite? - perguntou. :É certo que eu estava resolv-ido a abandonar a casa
-Nem por dsso. Sonhed muito. O dia de ontem foi mais os seus estr!linhos anfitriões; conhecendo-os tão
muito agitado'. mal, vi!ll com dificuldade em qual deles depositar a sus-
- Talvez pudesse ter sido ainda mais. peita de loucura. No homem acolhedor,, jovial, hospi-
Assumia um ar um tanto enigmáti'co, que me divertia. taleiro, imperioso? Na: mulher fria, dominando mal a
Juntou as mão~, fechou um instante os olhos e perguntou: angústia, nevrótica, não duvidemo~, mas que se conso-
-Quando parte? lava a falar comigo a ponto de se tornar natural?
Sorri s·em dar resposta. Na sua voz ainda restava uma -Ele há-de matar-me - disse. Te,nho a certeza
certa altivez que me irritava. Fixava-me intensamente, disso. Se· o não f1zer hoje há-de fazê-lo, dentro de um
com autoridade, mas de repente os seus olhos comeÇ3JI"am mês ou de um ano. Pretendeu matar-me ontem, e ao
a implorar pdedade e as mãos pequenas amarrotavam, senhor comigo. Confessou-mo cinicamente.
nervosa~, o guardanrupo branco. -A mim?

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Thomas Owen Thomas Owen

416 417
A minha emoção fez-lhe chegar aos lábios a amostra - O senhor ainda é novo e bastante imprudente ...
de um SOITÍ'SO. Espero que conserve boas recordações de Portuga:l.
-Se o tivesse encontrado em pijama no meu quarto, Saiu da sala com alguns p8!Ssos atrás, ol·hando-me
tal como o incitou a fazer sem meu conhecimento, ma- gentilmente, deixam.do transparecer nos olhos qualquer
tava-nos aos dois. A ocasião era belíssima ... Lá arran- coisa de terno e natural. Era uma condenada à morte
java o seu flagrante delito! que ali deixava. Sentia uma vontade forte de a beijar.
Sentia a respiração cortada, não acredit~va no que Tudo .prosseguda, no entanto, com demasiada pressa.
ouvia mas começava: a compreender. A Sr.a Valadas Desapareceu da minha vista; e minutos depo1is já um
arredara a chávena e o pires. Com ambas as mãos na carro me levava, angustiado, rumo a Lisboa.
mesa debruçava-se para mim, convincente ao máXJimo . .
-Bem pode o ·s enhor imaginar - prosseguiu - (La Trwie et Autres Bistoire.! Bécretea)
como um homem , da esUrpe dele nem inquieto f1icaria:
ao agir com honra numa circunstância tão humilhante.
Levantou-se, permanecendo encostada à cadeira: a
olhar o vazio. Irritava-me tanta a•stúc.ia, manha-, hipo-
crisia, fria meditação. Mas ainda pretendia duvidar.
- Se o que a sen:hora diz é verdade ...
Beijando o crucifixo de ouro que trazia ao peito,
afirmou em voz grave e distinta:
-Juro-Lhe que é verdade! Vá-se embora daqui!
Levantei-me, hesitante e compungido. Nesse mo-
mento já a Sr.a Valada;s chorava em silêncio e com uma
dignidade pertUI1bante. Também ela se levantou e ficâmos
frente a frente, na porta da sala de jantar. Eu olhava·
impressionado a'quela mulher ainda •b ela mas prometida
a um trágico destino.
!Estendeu-me a mão hranca e ftna. Beijei-a com
respeito. Em seguida ergueu os dedos trémulos ao meu
rosto e, num gesto doce, acariciou-me a têmpora e a
face.

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27
REYHALDO ARENAS
(1943)

Nasce em Holguim. (Cuba). Estuda em HO/Va/YI.a


na Escola de Planificação e depois na Facul-
dade de Letras. Os seus primeiros empregos
são no Instituto da Reforma Agrária e na
biblioteca itinerante José Marti. Principais
obras: Celestino antes do A1ba. O Mundo
Mucinante (até à data não publicado em
Cuba 'fl'/0,8 com edições várias noutros países).

Edições Afrodite - DE FO RA PA R A D EN T R O
·Reynaldo Ar~as

421
Do que é Portugal

Nada mais do que silêncio por toda esta cidade.


'Silêncio e fome. Acabo de atravessar de um extremo
ao outro a Rua do Ouro e a Rua Augusta e reparei que
ninguém faLava. As pessoas cruzam-se em silêncio
e, mesmo que sejam conhecidas, não se cumprimentam;
no .próprio Chiado, que é a ZOIIla de maior comércio, nem
uma só voz eu ouvi. Que rsi~êncio. Que diferença entre
a ruidosa Madrid e a cidade de Lisboa. Apesar de tão
pouco acolhedoras uma como a outra. Em Madrid a.s
pessoas alim€Iltam-se de gritos, mas aqui parece que
a miséria já nem os deixa gritar. Tanta é a fome po:r
estes lados., que o que fala é considerado rico. Aconteceu
à chegada lembrar-me de pedir informações a um hrubi-
tante ·sobre uma direcção, e ele estender a mão sem
responder; de seguida veio logo atrás de mim uma
quadril!ha de me:ndigos; de ta:l forma esfarrrupados e
silenciosos os mendigos que, por instantes, pensei tra-
tar-se de uma alucinação, pois ,bem podia tê-la depois
de atravessar toda a Biscaria num madeiro. bem pequeno
por sinal...
Que fazer para sobreviver num lugar onde nem uma
esmola se pode pedir em voz alta, pois tal seria tomado
como esbanjar de riquezas. Que fazer. .. Estava; eu
mergulhado nestes pensamentos quando senti o tr'oa.r
de clal'ins e tambores. Ainda que de princípio não qui-
sesse acreditar, veio tudo a confirmar-se quando vi um
grande 1b ataLhão atravessar a rufo de tambores a ponte
sabre o Tejo e penetrar na cida.de como um verdadeiro

Edições Afrodite - DE FORA PARA DENTRO


Reyooldo Arenas

422
sacrilégio. E regressam as vozes: excedidas ao máximo,
a:s mulheres gritam; num derradeiro desbarato, os ho-
mens saem à ru:a e tentam suster 8J inva;são ... As tropas
francesas acabam de ohe:gar a Portugal. Esse gatnno
do Napoleão resolveu domdnar o mundo, e tu, Lisboa,
pode·s sentir-te Ql'gulhosa de te incluírem nele.
Não pude fazer mais nada para sobreviver. Parti
(confesso) arrastado pela gula, arrastado pelo miserável
sustento. Alistei-me no exército português .
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. . ... .. . ... ... ... ...
(EZ Murnlo Alucinante)

BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL

Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


Bibllogmfia Essenoial

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1966)
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E ckermann - Conv.ersações com Goethe CGeSprache von
Goethe mit Eckermann) (Livraria Tavares Martins -
Porto, 1947)
Voltaire - Dictionnaire Philosophique (Garnier-Flammarion
- P·a ris, 1964)
Chamf0111t - Maooimes 'e't P~ll'l5ées, ~meteres et Anedlo'Ctes
(Le Livre de Poche - Paris, 197il)

DONATIEN-ALPHONSE-FRANÇOIS DE SADE
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burne) (Gallimard - Paris , 1964)
D. A. F. d e Sa!de - Filosofi~ dia AJ.OOV'a (Arrod[rte - lJilsbo~.
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Gilbert Lély - Vie du Marquis die Sade (Jean-Jacques Pau-
vert - Paris, 1965)
D. A. F. de Sade - Aline et Valcour (Jean-Jacques Pauvert
- Paris, 1965)

WILLIAM BECKFORD
Jorge Luis Borges - Enquêtes (Q.tras Inquisiciones) (Galli-
mard - Paris, 1i)63)
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William Beckford - Diário em Portugal (Empresa Nacional
de Publicidade - Lisboa, sem data)
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(Jean-Jacques Pauve~t - Paris, 1966)

'Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO


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ANDRÉ PIEYRE DE MANDIARGUES


André Pieyre de Mandia·rgues - Le Musée Noir (Union
Générale d'Éditions - Paris, 1963)
André Pieyre de Mandiargues - Soleil des Loups (Des
Presses de Gérard & co - Verviers, Belgique, 1970)
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de Dalila Éxaltés et de La NU!irt de l'AmoUJI' (Ga!lilJimJard
- Plaris, 1964)

THOMAS OWEN
DISTRIBUIÇÃO DE PUBLIS
Thomas Owen- Cérémonial Nocturne (cit. Jean Ray) (Des
Presses de Gérard & co - Verviers, Belgique, 1966) Rua Tenente Espanca, n.0 13- 4. 0 • Esq."·
ThomaJs Owen - La Truie et Autres Histoü:1es SéorêtJels (Des Telef. 77 64 80 L I SBO A
Presses de Gémrd & co - Verviers, Belgique, 1972)
REYNALDO ARENAS
·Rieynaldo Arenas - O Mundo Alucinante (El Mundo Aluci-
nante) (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1971) ·

Composto e }mpresso pare Fe~nando Ribei'l'o de MeUo I Edições Afrodite


!Edições Afrodite- DE FORA PARA DENTRO oa Tip. Henrique Toll'es- R. de S. Bento, 279-B-1.•- Liisboo-2- MarQ0/1973

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