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04/05/2018 Bergmanorama, por Jean-Luc Godard | revista taturana

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Bergmanorama, por Jean-Luc Godard


24 abr
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24, 2010 às 8:46 pm. Ele está
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Na história do cinema, existem cinco ou seis filmes os quais adoramos criticar


somente pelas palavras: “É o mais belo dos filmes!”. Porque não existe elogio mais
bonito. Por que se estender falando de Tabu, Viagem à Itália, ou de A Carruagem de
Ouro? Como a estrela do mar que se abre e se fecha, eles sabem oferecer e esconder
o segredo de um mundo do qual eles são, ao mesmo tempo, o único depositário e o
fascinante reflexo. A verdade é a verdade deles. Eles carregam-na profundamente
em si mesmos e, no entanto, a tela se rasga a cada plano para semeá-la aos quatro
ventos. Dizer deles: “é o mais belo dos filmes” é dizer tudo. Porquê? Porque é
assim. E esse raciocínio infantil, somente o cinema se permite utilizar sem falsa
vergonha. Por quê? Porque ele é o cinema. E o cinema basta a si próprio. De Welles
a Ophüls, de Dreyer, de Hawks, de Cukor, mesmo de Vadim, para se gabar de seus
méritos nos bastará dizer: é cinema! E quando o nome de grandes artistas dos
séculos passados aparecem em comparação sob nossa pena, nós não queremos
dizer nada além disso. Imaginemos, por oposição, um crítico se gabando da última
obra de Faulkner dizendo: é a literatura; de Stravinsky, de Paul Klee: é a música, é
a pintura? Ainda mais com Shakespeare, Mozart ou Raphael. Não faria parte das
idéias de um editor, fosse ele Bernard Grasset, de lançar um poeta com o slogan: é
a poesia! Mesmo Jean Vilar, enquanto consertava El Cid, enrubesceria ao colocar
nos cartazes: “isso é o teatro!”. Enquanto que “isso é o cinema!” mais do que uma
senha, continua sendo o grito de guerra do vendedor, tanto quanto do amante de
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filmes. Ou seja, dentre todos os privilégios, o menor, para o cinema, com certeza
não é erigir em razão de ser sua própria existência, e transformar, na mesma
ocasião, a ética em sua estética. Cinco ou seis filmes, eu disse, mais um, porque
Juventude (Sommarlek, SUE, 1951) é o mais belo dos filmes.

O último grande romântico


Os grandes autores são provavelmente aqueles dos quais só sabemos pronunciar o
nome, uma vez que é impossível explicar de outro jeito as sensações e sentimentos
múltiplos que nos assaltam em determinadas circunstâncias excepcionais, diante
de uma paisagem espantosa, ou em ocasião de um evento imprevisto: Beethoven,
sob as estrelas, sobre uma falésia construída pelo mar; Balzac, quando, vista de
Montmartre, Paris parece lhe pertencer; mas, daqui em diante, se o passado brinca
de esconde-esconde com o presente no rosto daquela ou daquele que você ama; se
a morte, quando chegar enfim a lhe fazer a pergunta suprema, você responda com
uma ironia valéryana que é preciso tentar viver; daqui em diante então, se as
palavras verão prodigioso, últimas férias, espelho eterno, reaparecem em seus
lábios, é que automaticamente você pronunciou o nome daquele que uma segunda
retrospectiva na Cinemathèque Française veio definitivamente, para aqueles que
não haviam visto qualquer de seus dezenove filmes, de consagrar como o autor
mais original do cinema europeu moderno: Ingmar Bergman.

Original? O Sétimo Selo ou Noites de Circo passe, a rigor Sorrisos de uma Noite de Amor;
mas Monika e o Desejo, Sonhos de Mulheres, Rumo à Alegria, no máximo um sub-
Maupassant, no tocante à técnica, falemos dos enquadramentos à la Germaine
Dulac, dos efeitos à la Man Ray, dos reflexos n’água como não é mais permitido
fazer de tão ultrapassado: “Não, o cinema é outra coisa” berram nossos técnicos
patenteados; e, antes de tudo, é uma profissão.

Na verdade não! O cinema não é uma profissão. É uma arte. Não é uma equipe.
Estamos sempre sozinhos, sobre o palco como em frente à página em branco. E
para Bergman, estar só, é fazer perguntas. E fazer filmes, é respondê-las. Não
saberíamos como ser mais classicamente românticos.

Com certeza, dentre todos os cineastas contemporâneos, ele é sem nenhuma


dúvida o único a não renegar abertamente os processos caros aos vanguardistas
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dos anos 1930, que se arrastam ainda em cada festival de filmes experimentais ou
amadores. Mas é mais ousadia da parte do diretor de Sede de Paixões, porque
Bergman destina essa confusão, com perfeito conhecimento de causa, a outros
fins. Esses planos de lagos, de florestas, de plantas, de nuvens, esses ângulos
falsamente insólitos, os contraluzes excessivamente estudados, não são mais,
dentro da estética bergmaniana, brincadeiras abstratas de câmera ou proezas de
fotógrafo: eles integram-se, ao contrário, dentro da psicologia dos personagens ao
instante preciso o qual se trata, para Bergman, de exprimir um sentimento não
menos preciso; por exemplo, o prazer de Monika, atravessando de barco uma
Estocolmo que acorda, depois sua preguiça invertendo o trajeto através da
Estocolmo que dorme.

A eternidade ao auxílio da instantaneidade


No instante preciso. Com efeito, Ingmar Bergman é o cineasta do instante. Cada
um de seus filmes nasce de uma reflexão do protagonista sobre o momento
presente, reflexão aprofundada por um tipo de alargamento da duração, um pouco
à maneira de Proust, mas com mais poder, como se multiplicássemos Proust ao
mesmo tempo por Joyce e Rousseau, e se tornasse finalmente uma gigantesca e
desmesurada meditação a partir de um instantâneo. Um filme de Ingmar Bergman é,
se quisermos, 1/24 de segundo que se metamorfoseia e se estica durante uma hora

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e meia. É o mundo entre dois piscares de olhos, a tristeza entre dois batimentos de
coração, a alegria de viver entre o bater de duas palmas.

De onde vem a importância primordial do flash-back nesses devaneios


escandinavos de solitários errantes. Em Sommarlek, é suficiente um olhar no
espelho para que Maj-Britt Nilsson parta como Orfeu e Lancelot em busca do
paraíso perdido e do tempo redescoberto. Utilizado quase sistematicamente por
Bergman na maior parte de suas obras, o retrocesso deixa de ser, então um desses
“poor tricks” dos quais falava Orson Welles para se tornar, se não o próprio sujeito
do filme, ao menos sua condição sine qua non. Por baixo do mercado, essa figura de
estilo, mesmo empregada como tal, tem, a partir de hoje a vantagem incomparável
de sufocar consideravelmente o roteiro, uma vez que ela tanto constitui a história,
quanto o ritmo interno e o esqueleto dramático. Basta ter visto qualquer um dos
filmes de Bergman para reparar que cada retrocesso termina ou começa sempre
“em situação”, em dupla situação, eu deveria dizer, porque quanto mais forte é
essa mudança de seqüência, como em Hitchcock no auge da forma, corresponde
sempre à emoção interior dos protagonistas, dito de outra forma, provoca a
repercussão da ação, o que é um dos atributos mais fortes. Tomaríamos por
facilidade o que nada mais é que um acréscimo de rigor. Ingmar Bergman, o
autodidata caluniado por seus “colegas de profissão”, ensina aqui uma lição ao
melhor de nossos roteiristas. Vamos ver que esta não é a primeira vez.

Sempre à frente
Quando Vadim apareceu, nós o aplaudimos por estar na hora exata quando a
maior parte de seus colegas ainda estava uma guerra atrasados. Quando nós vimos
as caretas poéticas de Giulietta Massina, nós aplaudimos também Fellini, a quem o
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frescor barroco trouxe uma boa renovação. Mas, cinco anos antes, o filho de um
pastor sueco já havia levado esse renascimento do cinema moderno ao seu apogeu.
Com o quê estávamos sonhando então quando Monika foi lançado em telas
parisienses? Tudo o que nós reprovávamos por não ter sido feito pelos cineastas
franceses, Ingmar Bergman já tinha feito. Monika já era E Deus Criou a Mulher, mas
executado de maneira perfeita. E esse último plano de Noites de Cabíria, enquanto
Giulietta Massina olha fixa e obstinadamente para a câmera, nós havíamos já
esquecido que acontece também na penúltima bobina de Monika? Essa brusca
conspiração entre o espectador e o ator que tanto entusiasma André Bazin,
havíamos nós esquecido já tê-la vivido, com mil vezes mais força e poesia, quando
Harriett Andersson, seus olhos risonhos transbordando aflição voltados para a
objetiva, nos tornando testemunhas do nojo que ela experimenta por optar pelo
inferno ao invés do céu?

Um autor verdadeiramente original é aquele que não deixará jamais seus roteiros
à sociedade do mesmo nome. Porque Bergman nos prova que o que é novo é exato,
e será exato o que é profundo. Ou, a profunda novidade de Juventude, de Sede de
Paixões, d’O Sétimo Selo, é de ter, antes de qualquer coisa, uma admirável exatidão
de tom. Para Bergman, com certeza, um gato é só um gato. Mas ele o é por outras
tantas razões e esta é a menor das coisas. O importante é que, dotado de uma
elegância moral a toda prova, Bergman pode se acomodar dentro de não importa
qual verdade, mesmo a mais escabrosa (o último sketch de Quando as Mulheres
Esperam). É profundo o que é imprevisível, e cada novo filme de nosso autor
desnorteia constantemente os partidários do precedente. Quando se espera uma
comédia, segue um filme de mistério da Idade Média. O único ponto em comum
entre os dois é comumente essa liberdade incrível de situações às quais Feydeau
apontava, como Montherlant poderia fazer à veracidade dos diálogos, ao momento
também de supremo paradoxo, quando Giraudoux fará a mesma coisa quanto ao
pudor. Não é preciso dizer que esse desembaraço soberano na elaboração do
manuscrito se duplica, desde que a câmera ronrona, em uma mestria absoluta na
direção dos atores. Ingmar Bergman, nessse asunto, é o equivalente a um Cukor ou
um Renoir. É verdade que na maior parte seus intérpretes, que também fizeram
parte algumas vezes de sua trupe de teatro, são em geral profissionais notáveis.
Penso sobretudo em Maj-Britt Nilsson, de quem o queixo protuberante e os
biquinhos de desprezo fazem lembrar Ingrid Bergman. Mas é preciso ter visto
Birger Malmsten como jovem sonhador em Juventude, e reencontrá-lo,
irreconhecível, como burguês engomado em Sede de Paixões; É preciso ter visto
Gunnar Björnstrand e Harriet Andersson no primeiro episódio de Sonhos de
Mulheres e reencontrá-los, com outro olhar, novas manias, um ritmo de corpo
diferente em Sorrisos de uma Noite de Verão, para se dar conta do prodigioso
trabalho de modelagem que Bergman é capaz a partir desse “gado” do qual falava
Hitchcock.

Bergman contra Visconti


Ou roteiro contra mise en scène. Será que é isso mesmo? Podemos opor um Alex
Joffé e um René Clément por exemplo, porque é uma questão de talento. Mas
quando o talento chega tão perto da genialidade obtida em Juventude e Noites
Brancas, será que é útil dissertar a perder de vista até saber quem é superior no fim

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das contas: o autor completo ou o puro encenador? Talvez sim, afinal de contas, é
analisar duas concepções de cinema das quais uma talvez seja melhor que a outra.

Existem, grosso modo, dois tipos de cineastas. Aqueles que andam na rua de
cabeça baixa e aqueles que andam de cabeça erguida. Os primeiros, para ver o que
se passa ao seu redor, são obrigados a levantar seguida e rapidamente a cabeça, e
girá-la às vezes para a esquerda, às vezes para a direita, abarcando com uma série
de olhadelas o campo que se abre à sua visão. Eles vêem. Os segundos não vêem
nada, eles olham, fixando a atenção em um ponto preciso que lhes interessa.
Quando rodarem um filme, o enquadramento dos primeiros será aéreo, fluído
(Rosselini), o dos segundos, medido em milímetros (Hitchcock). Encontraremos
nos filmes dos primeiros uma decupagem sem dúvida disparatada, mas
terrivelmente sensível à tentação do acaso (Welles), e nos filmes dos segundos os
movimentos do aparato, não somente de uma precisão incrível sobre o palco, mas
que têm seu próprio valor abstrato de movimento no espaço (Lang). Bergman faria
parte do primeiro grupo, o do cinema livre. Visconti, do segundo, o do cinema
rigoroso.

De minha parte, prefiro Monika e o Desejo a Sedução da Carne, e a política dos autores
à dos encenadores. Que Bergman, com efeito, mais do que qualquer cineasta
europeu, exceto Renoir, seja o mais típico representante, a quem ainda duvida,
Prisão traz se não a prova, ao menos o símbolo mais evidente. Conhecemos o
assunto: um encenador recebeu como proposta de seu professor de matemática
um roteiro sobre o diabo. Portanto, não é a ele que aparecerão as séries de
desventuras diabólicas, mas sim a seu roteirista, a quem ele pediu uma
continuação.

Enquanto homem do teatro, Bergman admite encenar as peças dos outros. Mas,
enquanto homem do cinema, ele permanece o único mestre a bordo. Ao contrário
de um Bresson e de um Visconti, que transfiguram um ponto de partida que lhes é
raramente pessoal, Bergman cria ex nihilo aventuras e personagens. O Sétimo Selo é
menos habilmente encenado que Noites Brancas, seus enquadramentos são menos
precisos, seus ângulos menos rigorosos, ninguém negará: mas, e aí é o ponto
capital da distinção, por um homem de um talento tão imenso quanto Visconti,
fazer um filme muito bom, no fim das contas, é coisa de muito bom gosto. Ele tem
certeza de não se enganar, e em certa medida, é fácil. É fácil escolher as cortinas
mais bonitas, os móveis mais perfeitos, fazer somente os movimentos de aparato
possíveis, se soubermos antes que temos o talento pra isso. Da parte de um artista,
se conhecer bem demais é um pouco ceder à facilidade.

O que é difícil, ao contrário, é avançar em território desconhecido, reconhecer o


perigo, correr riscos, ter medo. Sublime é o instante, em Noites Brancas quando a
neve cai em grandes flocos ao redor da barca de Maria Schell e Marcello
Mastroianni! Mas o sublime ali não é nada ao lado do velho maestro de Rumo à
Alegria que, deitado sobre a grama, olha Stig Olin encarando apaixonadamente
Maj-Britt Nilsson na cadeira e pensa: “Como descrever um espetáculo de tanta
beleza”! Eu admiro Noites Brancas, mas adoro Juventude.

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Cahiers du cinema, nº 85, Julho de 1958.


disponível em http://www.cahiersducinema.com/article1204.html

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