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Jean Paul Belmondo (Poiccard) e Jean Seberg (Patrícia) são metáforas do cinema indústria e o
cinema arte

Godard em Londrina aos sábados


Na contramão do mercado de massa, cineasta londrinense organiza com sucesso de público
jornada sobre diretor franco-suíço

Lembro de uma aula de Estética com o professor Leon Kossovich na FFLCH-USP na qual ele
disse que um texto teórico o qual você entende tudo numa primeira e única leitura é um texto
que não vale a pena ser lido. Leitura que se preza demanda paradas, retomadas, abandonos e
reconciliações com o texto. Decifrações e redescobertas. Insights. Uma boa leitura demanda
tempo. Theodore Adorno já recomendava cautela com a cultura aligeirada. Um bom texto é
um enigma. Um labirinto cujas frases são caminhos que muitas vezes se bifurcam. E não é
diferente com um bom filme.

O cinema de Jean-Luc Godard é um exemplo fundamental dessa demanda por tempo na


fruição de uma obra de arte. Desde o começo de sua trajetória Godard tem antes de tudo o
cinema como o grande objeto em todos os seus filmes. É de uma auto-referencialidade
exemplar de um espírito moderno. E o público cinéfilo de Londrina e de toda região está tendo
a oportunidade de ver os principais filmes da primeira fase das produções do diretor na grande
tela do Espaço Vila Rica. Quem organizou o evento foi o cineasta londrinense Rodrigo Grota e a
Kinopus, com o suporte e apoio da embaixada da França no Brasil que disponibilizou super
cópias restauradas dos filmes. É um grande privilégio poder assistir grandes clássicos de
Godard numa tela como a do Vila Rica.

Participei como convidado da sessão e do debate logo após a exibição do primeiro longa de
Godard, Acossado, que aconteceu no sábado passado. Grota chamou também como
convidada para discutir o filme a atriz Luli Rodrigues. O público compareceu em peso e o
evento foi vitorioso e heroico. Falo isso porque a sessão começou às 15h00, com o filme
durando pouco menos do que uma hora e meia, a maior parte do público permaneceu para o
debate que se estendeu até as 19H00 com ampla e marcante participação.

O cinema de Godard não é dos mais fáceis. Mesmo em sua primeira fase na qual prevalece
uma forma mais narrativa, mesmo assim existem muitas referências no subtexto da trama que
se desenrola na grande tela. Além disso o diretor franco-suíço recorre vigorosamente a toda
sorte de experimentalismos como false raccords, quebras de eixo, efeitos de montagem e
também explorando ao máximo um repertório muito amplo de referências à história do
cinema. É que antes de ser diretor de cinema, Godard participou ativamente da famosa revista
Cahiers Du Cinema como crítico. Fazer cinema para ele é antes de tudo conectar essa bagagem
crítica com os filmes que dirigia.
Foi uma experiência gratificante mergulhar na polissemia de Acossado, filme de 1960 com Jean
Paul Belmondo e Jean Seberg. O filme originalmente foi concebido por François Trufault, que
escreveu a estória. Rodado em preto e branco, Acossado conta com um elenco reduzido,
captação direta do som ambiente e uma profusão de tomadas externas feitas com câmera na
mão – tudo para baixar o orçamento. É um filme emblema do início da Nouvelle Vague,
movimento que vai servir de inspiração para o nosso Cinema Novo. “À Boute de Suffle”, título
original em francês significa literalmente “Sem Fôlego”. A narrativa do filme é centrada na fuga
constante do protagonista Michel Poiccard vivido por Belmondo. Com um cigarro aceso
pendendo da boca praticamente a narrativa quase inteira do filme, o personagem de
Belmondo vive realizando furtos de carros e ao iniciar uma viagem com um desses carros para
Paris logo no começo do filme ele acaba por matar um policial rodoviário, motivo do início de
sua fuga desenfreada. Chegando a Paris ele se encontra com Patrícia (Jean Seberg) e a convida
insistentemente para que ela vá com ele para Roma. Formado o par de personagens
discutimos no debate a referência crítica de Godard como uma discussão na qual Poiccard
encarna metaforicamente o cinema indústria hollywoodiano e narrativo portanto enquanto
Patrícia com seus momentos disjuntivos acaba por contrair em sua densidade dramática o
cinema experimental da Nouvelle Vague.

Comentei a partir de uma pergunta de um participante do debate que entendia essa


configuração dos personagens a partir de uma ideia do filósofo francês Gilles Deleuze. Poiccard
e Patrícia são personagens conceituais – eles desdobram ideias e noções que estão para além
de suas narrativas, funcionando num plano abstrato mesmo. Luli Rodrigues e Rodrigo Grota
elevaram a discussão ainda mais com suas leituras. Luli fez toda uma leitura do personagem
vivido por Jean Seberg e Grota pontuava a todo o momento a discussão com dados e
referências que tornaram a tarde uma verdadeira aula sobre cinema. É enriquecedor e
gratificante poder participar de momentos assim. Londrina sempre teve essa vocação para a
cultura e as artes e é comovente ver isso renascendo espontaneamente no coração da cidade.
Acredito que aquela esquina onde fica o Vila Rica deve ser frequentada pelo espírito do poeta
Torquato Neto. Ele era piauiense e a esquina é entre a Rua Piauí e a Rio de Janeiro, cidade que
recebeu o poeta que também era jornalista e gostava de escrever sobre o cinema marginal
brasileiro (movimento que tinha em Godard uma referência muito forte).

Amanhã é sábado mais uma vez e novamente Godard e o fantasma de Torquato Neto vão
assombrar os olhares do público londrinense com suas belezas cinematográficas complexas.
Começa a partir das 15H00 a exibição de Mepris (“Desprezo” em francês), filme de Godard
estrelado por Brigitte Bardot. Tudo na tela grande e com imagem e som restauradíssimos.
Vamos apoiar essa campanha em prol de uma tarde de sábado dedicada ao cinema de
invenção e ao espírito moderno e progressista de Londrina. É nesses eventos que se forjam
sensibilidades que captam os devires. É assim que se combate o ódio e o obscurantismo. Arte
e cultura para todos.

Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL.

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