Você está na página 1de 3

(legenda foto)

Capa que R. Crumb criou para o disco Cheap Thrills (Janis Joplin and
the Holding Company)

ENSAIO
Clássicos do rock completam 40 anos
Psicodelia e contracultura foram imortalizadas em grandes
bolachas de vinil

Silvio Demétrio

Algo da inocência naive dos tempos em que se entupiam rifles de soldados


com flores foi preservado por um certo tipo de cera negra e brilhante, da
qual a carnaúba entra na composição, e cujas sílabas que compõem seu
nome estalavam em frases elétricas de roqueiros que pronunciavam a
palavra VINIL. Sim, nada representa melhor a contracultura do que os bons
e velhos bolachões , porque eles foram o veículo de expressão da potência
criativa da geração que bagunçou com inspiração a indústria fonográfica.
De Hendrix a Janis, de Jefferson Airplane a Grateful Dead, de Dylan a
Beatles, de... a... ... , de .... a.... a lista é enorme – 1968 foi um ano
encharcado de referências musicais que se tornaram clássicos da cultura de
massa . E o tempo não diluiu sua consistência, pelo contrário, conforme os
anos passam essas gravações se estabelecem como definitivas em sua
estética, para além das ingenuidades que as cercam com muito incenso de
patchouli.
De 1968 a 2008 lá se vão 40 anos e se o Zuenir Ventura está certo, o maior
ano de todos os tempos não acabou, pelo menos para as gravadores que
tiveram a sorte de registrar esses momentos em sulcos profundos sobre
ambos os lados de suas mandalas de VINIL. A insistência nas maiúsculas é
porque este artefato, o disco de VINIL, foi o artefato que marcou o auge de
um sistema industrial de produção e divulgação de música que agora está
numa enrascada chamada MP3 ou MP4 ou MP5. A própria tecnologia
extinguiu com o suporte material da música produzida industrialmente.
Talvez não tenhamos mais o tipo de circuito que os bolachões criaram.
Talvez isto tudo também signifique uma democratização maior do acesso à
cultura. A verdade é que está tudo muito confuso e torna-se cada vez mais
difícil encontrar alguma coisa de autêntica em meio ao excesso de
informação que povoa esse deserto do pastiche descartável. Se tudo o que
se produz é só uma releitura, voltemos a beber diretamente do olho da
fonte. Voltemos aos clássicos. E clássico que é clássico, no mundo do rock,
é clássico em VINIL.
Vamos então a uma relação do que escutar entre as gravações que estão se
tornando quarentonas este ano. O Primeiro de todos é um dos exemplos
mais radicais de que o melhor da contracultura não é algo digestivo para
ouvidos primários: Anthem of the Sun, foi uma experiência alucinante do
Grateful Dead. Um disco que transcende qualquer limite pelo qual se possa
pensar música como mera mercadoria. É uma grande viagem que retrata
Neal Cassidy na direção do ônibus psicodélico de Ken Kesey. Neal
Cassidy foi quem inspirou o escritor beat Jack Kerouac a escrever On the
Road – livro que influenciou toda a contracultura. Kesey foi o autor de Um
Estranho no Ninho, que mais tarde foi adptado para o cinema. No disco do
Grateful Dead toda a atmosfera da grande jornada que ambos fizeram a
bordo de um ônibus escolar todo pintado com motivos psicodélicos e que
atravessou a América de costa a costa. É um disco somente para os
escolhidos, para os iluminados.
Seguindo a trilha da maturidade no desbunde, Axis Bold As Love do
Jimmi Hendrix Experience imortalizou o gênio canhoto do Garrincha Sioux
da Guitarra Elétrica. Esse disco pirou muita gente na época e, se você quer
entender porque se fala tanto de Hendrix até hoje, não passe ileso a faixas
como a que dá nome ao disco e Golden Rose. Em pensar que todo gênio é
excessivo, chega-se à conclusão de que isto é uma verdade no caso de
Jimmi Hendrix que, não satisfeito com um disco eterno lançado em 1968,
resolveu lançar dois petardos e deixou de presente para nosso ouvidos
Eletric Ladyland, que na época do vinil era duplo. A edição americana do
disco saiu com uma capa alternativa, com a tradicional imagem do artista –
a original trazia uma foto de uma massa de mulheres todas nuas e saiu
primeiro na Inglaterra e depois ganhou o mundo. Alguns críticos apontam a
faixa “1983 – the Mermer Should I Turn to Be” como precursora do rock
progressivo com seus loopings hipnóticos e atmosfera barroca. Em alguns
momentos esta composição de Hendrix chega a ser uma citação do
minimalismo de Terry Riley.
E se o que importa é a densidade que o tempo deposita na poeira da estante,
um dos discos mais densos de todos os tempos foi gravado em 68 pelo
irlandês Van Morrison. Astral Weeks é uma mistura de folk com jazz que
não tem par dentro da indústria fonográfica. Com baixos soturnos e naipes
de cordas luminosos, o disco percorre uma paisagem sonora intensa. Como
fundo desse composto incomum resplandece um sabor de musica
tradicional irlandesa, talvez a melhor companhia que existe para uma
cerveja escura.
E nenhuma relação de clássicos de rock poderia ficar sem a presença deles:
Os Stones e os Beatles também deixaram suas marcas há 40 anos atrás
quando gravaram coisas como Beggars Banquet e o famoso Album
Branco. Ambos dispensam maiores comentários a não ser de que mais uma
vez se pode observar um certo antagonismo entre os imaginários que
nutrem os fãs das duas maiores bandas de rock de toda a história.
Enquando no Álbum Branco se ouve Obladi-Obladá, em Beggars
Banquet os Stones saem com Street Fight Man, uma crônica sobre a
violência das ruas na vida de um jovem operário inglês.
Junto com Hendrix, os outros dois integrantes da trilogia da morte precoce
também fizeram sua parte: Janis Joplin and the Holding Company lançaram
em 1968 o disco Cheap Thrills, que tornou conhecido o trabalho de um
então obscuro quadrinista que desenhou sua capa: Robert Crumb, o rei
undergournd das HQs. Jim Morrison e os Doors lançaram Waiting For
the Sun. É curioso como aqui também é possível de se estabelecer
paralelos como no caso dos Stones e dos Beatles. O disco de Janis tem um
clima festivo e flower power enquanto as músicas dos Doors duelam com o
sublime na poesia de Morrison.
No Brasil a fisionomia do rock é plenamente representada pelos Mutantes e
suas participações nos discos dos tropicalistas. A mais radical de todas
essas parcerias talvez seja A Banda Tropicalista do Duprat, uma
participação que os Mutantes fizeram no registro da genialidade radical e
experimental do maestro canibalista Rogério Duprat (no sentido empregado
por Oswald de Andrade!).
Além de todos esses bilhetes de viagem no tempo ainda ficam outros tão
geniais como o Wheels of Fire do Cream – power trio liderado por Eric
Clapton como também Beacon From Mars, disco experimental de uma
banda fundamental de Los Angeles e que está sendo aos poucos
redescoberta com o tempo – o Kaleidoscope de David Lindley. O primeiro
disco do Creedence Clearwater Revival, o primeiro também do
Pentangle de John Renbourn, e muitos outros – 1968 foi definitivamente
um exagero no mundo da música pop de qualidade.
E o que você está esperando, você já experimentou? Diria Hendrix. Eu,
aproveitando a deixa, recomendo qualquer uma dessas bolachas assim
como recomendo também a edição de amanhã do Gazeta Alt, com mais
uma parte do ensaio de Lester Bangs (Como Ser Um Crítico de Rock),
além de uma matéria especial sobre uma profissão incomum num lugar
insólito (Aqui se Faz – Aqui se Paga). O tempo é uma substância que
revela o valor histórico da cultura. – 40 anos é uma expressão de
autenticidade, até mesmo no rock.

Você também pode gostar