Você está na página 1de 3

(VÍDEOS)

O clip de “Hard To Build. Easy To Break”.


https://www.youtube.com/watch?v=B-TflyvzrwY

“Shadows 2” – Margot e Michael Timmins


https://www.youtube.com/watch?v=Ef0ATCIycCA

(IMAGEM 1)
“Such Ferocious Beauty”, lançado no último dia 2 de junho.

(IMAGEM 2)
Margot Timmins, vocalista do Cowboy Junkies. (licença Creative Commons)

A BORDA
Sobre microfones e parágrafos solitários
Cowboy Junkies mostra em novo disco que ainda tem muito a dizer

Silvio Demétrio

Ainda mastigo a sombra das últimas semanas. Perdi dois grandes amigos que eram
antes de tudo pessoas incríveis. Primeiro foi Gutemberg Medeiros. Pessoas que te
apresentam a prosa de um Mikhail Bulgakov são importantes. Gutemberg me
apresentou esse autor e muitos outros. Nesses últimos tempos trabalhávamos juntos
aqui na UEL. Alunos nos fotografavam tomando café no quiosque da dona Elair nos
intervalos enquanto a mesquinharia dos dias quaisquer derretia o calendário como
uma vela acesa pelas almas perdidas na batalha contra a babaquice. No começo dessa
semana foi Hélcio Kovaleski, que conheci como aluno quando era professor na UEPG.
Hélcio era uma alma do teatro. Mas também da poesia e da música. Da literatura.
Pessoas que conversam sobre Becket e Joyce são raras e imprescindíveis, ainda mais
quando falam com humor e engenho. O mundo inteiro vinha à mesa do botequim e a
conversação não era menos que infinita. Pelo menos quanto à intensidade. O mundo
fica um pouco mais oco por conta dessas ausências. É difícil escrever sem ser afetado
por essa sombra. Então vou escrever sem respeitar parágrafos. Tudo de uma vez só.
Um fôlego apenas, que é para o abismo não vencer. Porque essa vida é assim, um
capricho do acaso, ao mesmo tempo feérica e na mesma medida assustadora. Só
consegui escolher como tema para a coluna de hoje o lançamento que traz um
Cowboy Junkies assim, soturno e diferente: “Such Ferocious Beauty”, que já está
disponível nas plataformas de streaming e foi lançado em vinil também. Aquele
andamento mais sereno com guitarras meditativas e contrabaixo de profundezas
abissais mantém-se igual ao de sempre, talvez um pouco mais pronunciado até por
conta da pós-pandemia como catalisadora de subjetividades mais graves. É uma “tal
beleza feroz”, como no título. Se você nunca ouviu o Cowboy Junkies, é uma banda
canadense que fez da trilha dos anos 90 um cenário cheio de som e fúria. Tudo
começou em Toronto quando os irmãos Margot (vocais), Peter (bateria) e Michael
Timmins convidaram um amigo, Alan Anton(contrabaixo) para formar uma banda. O
primeiro disco, “Whites Off, Earth Now” (1986), conseguiu um sucesso considerável
mas foi com o segundo disco que o Cowboy Junkies se projetou. “Trinity Sessions” foi
lançado em 1988 tornando-se uma lenda. Gravado ao vivo numa igreja e com o uso de
apenas um microfone, o disco imprimiu uma atmosfera intimista que a banda acabou
assumindo como marca de sua sonoridade dali em diante. Daí esse texto também ser
em um parágrafo só, tal como a beleza furiosa do disco-lenda que foi gravado com um
microfone só. Procure aí em algum streaming de alguma plataforma a versão de
“Sweet Jane” do Cowboy Junkies (a música é do Lou Reed, outro monstro sagrado).
Você nunca mais vai ser o mesmo. Se você já a conhece coloca ela pra rolar de novo.
“Trinity Sessions” é o emblema de uma época e a versão de “Sweet Jane” na voz da
Margot sintetiza o que de melhor os anos 90 produziram. Mas o Cowboy Junkies ainda
está na estrada e vai muito bem. Ao invés de parodiar a si mesma, a banda tem
energia para bancar uma aposta na exploração de novas paisagens sonoras com
diferentes texturas sonoras. “Such Ferocious Beauty” traz ao todo 10 faixas que
afirmam isso de um jeito singular em cada uma das composições. No jornalismo a
gente sempre começa pelo mais importante. Pelo que é decisivo. Chama-se de
pirâmide invertida. Com a grande mudança para o digital alguns autores começaram a
defender uma pirâmide deitada, tombada, oblíqua. Gosto mais desse último
qualificativo. Oblíquo é tudo o que é de banda, de lado, com efeito, de letra. Então
começo pelo mais importante, mas assim de letra: “Knives” e “Circe and Penelope” são
as mais acachapantes, sétima e quarta faixas respectivamente. Assim com tudo,
embaralhado, porque aí misturamos com uma noção que vem da música indiana:
ragas são sequências musicais cuja execução e audição se relacionam com momentos
do dia. Existem ragas matinais e vespertinas como também ragas que são noturnas. Se
fossem ragas, “Knives” e “Circe and Penelope” seriam para audições em noites de
plenilúnio. Absolutamente nada é vulgar na voz de Margot. Até ela tossindo deve ser
lindo de se escutar. “What I Lost” abre o disco com uma atmosfera de luto pós-
pandêmico. O andamento é um pouco mais rápido do que a banda geralmente impõe
em suas canções. Soa com uma textura diferente do habitual. Na música seguinte,
“Flood”, Michael Timmins explora a saturação e textura de sua guitarra ao extremo
num diálogo com a voz de Margot. É música de prospecção. Espeleologia de fermatas
profundas atravessadas pelo incontrolável fluxo de microfonias colhidas no jardim de
microfones. “Hell is Real” é a quinta faixa, purgatório e limbo entre dois momentos
fortes do disco. Encravada entre “Circe and Penelope” e “Shadows 2”, é uma balada
acústica que faz a ponte para os climas grandiosos das faixas que a delimitam no disco.
“Shadow 2” é um oximoro – ao contrário do título, é uma canção em tom maior que
evoca um clima luminoso para um álbum de penumbra. Tudo aquilo que falei até aqui
sobre texturas e sonoridades em clima de exploração criativa se confirma na oitava
faixa “Mike Tysson (Here It Comes)”. “Throw a Match” e “Blue Sky” selam a
maturidade do Cowboy Junkies chegando à idade da razão. Mas guardei para o último
momento do texto a terceira faixa porque ela é especial. Terminar bem um texto é tão
importante como começá-lo. “Hard To Build. Easy To Break” (ver o clip). “Difícil de
construir. Fácil de quebrar”. Nunca o baixo foi tão protagonista numa gravação do
Cowboy Junkies. Musas envelhecem com dignidade porque ficam ainda mais lindas.
Margot Timmins é uma entidade espectral nascida do orvalho sobre o jardim das
musas. Nessa aventura deveras frágil que é viver sob os golpes do tempo só a arte
abranda o açoite. Tudo é belo demais porque é trágico. O assombro e o mistério. A
fúria e o som. Uma beleza furiosa porque frágil e errante. Tudo pode vir a ser outro
num instante qualquer. Assim, num parágrafo só.

Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL.

Você também pode gostar