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Formada em 2006, São Francisco, California, pelo multi-instrumentista Meric Long e pelo

baterista Logan Kroeber, o duo The Dodos se classifica como um grupo de rock alternativo indie-
folk. Normalmente utilizando dedilhados complexos no violão e por vezes na guitarra, adicionados
à linhas rítmicas que fogem do padrão de uma bateria de rock indie, a música do duo é caracterizada
por compassos irregulares, afinações alternativas, imprevisibilidade, forte energia e harmonias que
tendem a um estado modal. Meric, nos três primeiros discos do duo (Beware of the Maniacs, 2005;
Visiter, 2008; Time to die, 2009) performa as canções através do lugar que provavelmente saíram:
do violão com cordas de aço acompanhando sua própria voz. A partir do quarto disco (No Color,
2011), o violão abre espaço para a guitarra, uma Fender Jazzmaster que soa presente e viva em
todos os álbuns seguintes. O dedilhado complexo e veloz de Meric se sustenta e é muitas vezes
combinados com a técnica de strumming, a “levada" ou “palhetada" da nossa língua, porém de
maneira organizada e minimalista. Logan, na bateria, cada vez mais encontrará um lugar preciso e
enxuto para suas calculadas levadas, o que reflete bem a sonoridade do disco que comentaremos
aqui, o quinto álbum da dupla The Dodos, Carrier.

Lançado em Agosto de 2013, Carrier marca o início da parceria da banda com o selo americano
Polyvinyl Records. É formado por 11 musicas, com duração média de 3 minutos e meio, cada uma
contendo em seu título um substantivo: Transformer, Substance, Confidence, Stranger, Relief,
Holidays, Family, The Current, Destroyer, Death e The Ocean. Todos esses assuntos são usados
para homenagear o falecido amigo Christopher Reimer, ex-guitarrista da banda Women e que
acompanhou o duo durante a turnê de seu disco anterior, No Color. Christopher era uma inspiração
para Meric, principalmente no âmbito do instrumento e da tecnologia para se obter diferentes sons
da guitarra, e isso é intensamente exaltado ao longo do álbum.

Invertendo o processo criativo, Meric começou a compor as musicas pelas letras, que antes eram
as ultimas a serem adicionadas na produção, depois de longas sessões de criações e improvisações.
De certa forma isso resultou em letras mais simples, como o começo de Transformer: “What is a
song?/ What is love?/ What does a song hold?”. Simples porém não excluem a profundidade e
complexidade dos questionamentos que a morte de um amigo próximo tão jovem podem nos causar.
Depois de quatro discos compondo da mesma forma, Carrier em certo sentido marca o início de
uma nova sonoridade da dupla, e a escolha de inverter o processo de criação de papel fundamental
nisso, como uma maneira de procurar soluções novas ao invés de combinar soluções pré-
estabelecidas1. Apesar de dispensarem os velhos hábitos, em Carrier não conseguiram encontrar um
jeito de substituí-los2. Individ (2015), disco seguinte a Carrier, nos mostra Meric e Logan muito
mais confortáveis com a sonoridade que iniciaram no disco passado, o que se reflete na temática das
letras, falando de aceitação das coisas naturais da vida, de certa maneira um amadurecimento
pessoal identificável na musica dos dois.

Utilizaremos a primeira e a quarta faixa do disco, Transformer e Stranger respectivamente, para


sintetizar os processos de construção e sonoridade do disco.

A instrumentação do disco não se altera tanto ao longo do mesmo. Meric sempre presente com a
guitarra, com exceção da faixa Holidays, em que usa somente violão de aço. Mas nota-se a presença
do violão em somatória com a guitarra em quase todas as musicas, para gerar um terceiro som, uma
mistura dos dois instrumentos encarada como um elemento sonoro distinto e único. Logan
permanece com seu kit protagonizado por tambores mais graves - surdos - e mantendo sua
sonoridade do disco anterior No Color, irá usar mais a caixa e também pratos, como em Substance,
ou stack, dois pratos sobrepostos e quando percutidos projetam um som complexo e curto, bem
utilizado na faixa Stranger. Em adição ao duo, escutaremos metais em Substance, Holidays e Relief,
violinos e violas em The Ocean e um metalofone tocado com arco e processado em Holidays.

O disco começa com a música Transformer. Dois riffs de guitarra em loop surgem em fade in,
acentuando o pulso a cada 3 tempos. Entram a voz e o violão, com acentuação rítmica a cada 2
tempos, gerando uma polirritmia em relação ao riff de guitarra, e se convergem num compasso
reduzido, de 4 tempos, para então retomar o loop do começo. O que acontece entre as guitarras e o
violão faz surgir uma base que chama a atenção por si só, um acontecimento musical, composto por
uma sonoridade complexa. Durante três momentos de Transformer temos cortes na música,
marcados pela mudança de andamento, mas os timbres das guitarras se mantém, procurando realizar
uma linha que converse com a anterior. O primeiro corte muda o andamento da música, inserindo a
bateria que não havia sido apresentada ainda e colocando o violão de aço junto com as guitarras,
desfazendo a polirritmia anterior, se unindo num som só. No segundo corte temos a alteração do
contorno da melodia da voz, com outra subdivisão do ritmo dos riffs de guitarra e o violão se altera

1 MAMMÍ, Lorenzo. A era do disco. Piauí, São Paulo, edição 89, Novembro, 2014.
2 Opinião de Ian Cohen, do site de musica Pitchfork, na sua resenha sobre o disco Carrier.
https://pitchfork.com/reviews/albums/18384-the-dodos-carrier/
para um dedilhado, acompanhado pelos padrões imprevisíveis de bateria feitos por Logan. Um
terceiro corte retoma a melodia e letra do início, mas a guitarra muda o ritmo de sua linha, mesmo
mantendo as notas originais. Apesar de retomar elementos apresentados no começo, o andamento e
subdivisão são alterados, somados aos tambores que antes não estavam tocando. A sonoridade,
nesse caso, aponta mais para a existência de uma nova parte do que a mecânica repetição do início.
Temos mais uma mudança no final da musica, que se organiza em compassos de 11 tempos, em
outra pulsação. De certa forma podemos enxergar a construção dessa canção com um senso de
montagem, uma edição de diferentes partes justapostas, mas que mantém uma linguagem comum.

A quarta faixa, Stranger, apresenta uma construção interessante, prezando também muito mais
pelas sonoridades de cada momento, nessa somatória de timbres entre o duo e também de cada
musico consigo mesmo. A guitarra apresenta riffs curtos tocados em loop e sobrepostos durante toda
a introdução, nos 14 segundos, e a bateria também entra em loop com dois timbres predominantes:
um chimbal mais delicado e um ataque duplo de sonoridade de frequências médias, lembrando o aro
de um tambor ou um stack. Nesse ambiente se soma a voz de Meric, cantando numa região de voz
de peito aguda. Até então não temos nenhuma atividade nas frequências mais graves, uma sensação
de vazio que se encerra depois de 1 minuto e 25 segundos de canção, com a entrada dos tambores
graves. Nesse momento já foram apresentadas as melodias que compõe o verso da canção, uma
ponte para o refrão e o próprio refrão. A música então se repete, mas com uma base agora bem
preenchida de tambores graves rápidos, os loops de guitarra dão lugar a um riff mais grave.
Harmonicamente não temos grandes cadências. Os acordes presentes nos versos são resultados das
sobreposições de loops da guitarra. O único momento em que vemos uma sequencia clara de
acordes é no refrão.

Temos uma divisão na musica, um primeiro momento com menos graves e um segundo momento
mais preenchido de graves, o primeiro com dinâmica mais fraca e o segundo mais forte. No final da
canção se repetem oito compassos com a sonoridade inicial.

Um elemento interessante dessa mesma faixa é o backing vocal performado pelo próprio Meric,
mas com um timbre de reverberação e distorção somados, levando a voz num local parecido com o
da guitarra, tendo assim mais uma somatória de timbres. “As a stranger, do you see me?” canta
Meric, falando com o recém falecido amigo, na busca por entender agora o lugar da relação entre os
dois, também querendo atravessar o processo de luto, quando diz “I plan to see this through until
it’s done”.

Carrier é um álbum coeso em sua sonoridade, prezando mais por pequenas variações de timbre do
que mudanças abruptas de arranjo entre faixas, cortes que alteram andamentos e subdivisões,
montagens, e reserva momentos agitados, contemplativos, enérgicos e reflexivos. Meric e Logan
contém uma intimidade inquestionável, e mesmo por momentos difíceis ela parece se manter como
um fio-de-prumo para a musica da dupla de São Francisco.

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