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RESUMO
Analisando a música Amiga que é Amiga (2017), produzida pelo DJ Perera e cantada pelo MC
Brisola, este artigo tem o objetivo de expor a organização musical na produção do funk. Além
da análise das alturas e timbres, a análise rítmica mostra uma suposta ancestralidade afro
presente no gênero, algo que, a partir das pesquisas de Carlos Palombini, Marcos Branda
Lacerda e Enrique Valarelli Menezes, sugere uma relação entre a música e a organização
social. Ao mesmo tempo, a análise verbal aponta, tendo como referência as ideias da
pesquisadora Diana Deutsch, para a importância da repetição verbal para a escuta musical.
Assim, a justificativa deste artigo é buscar formas de compreensão do funk, manifestação
presente na vida de muitos jovens brasileiros.
PALAVRAS-CHAVE
Funk. Música afro-brasileira. Videoclipe. MC Brisola. DJ Perera.
ABSTRACT
Analyzing the Amiga que é Amiga (2017) produced by DJ Perera and sung by MC Brisola this
article aims to expose the way to make music in the production of funk. In addition to the
analysis of notes and timbres the rhythmic analysis shows a supposed Afro ancestry present in
the genre, based on the research of Carlos Palombini, Marcos Branda Lacerda and Enrique
Valarelli Menezes. This ancestry exposes the relationship between music and social
organization. The verbal analysis points, with reference to the ideas of researcher Diana
Deutsch, to the importance of verbal repetition for listening to music. Thus, the justification of this
article is to look for ways to understand funk, a manifestation present in the lives of many young
Brazilians.
KEYWORDS
Funk. Afro-Brazilian music. Video clip. MC Brisola. DJ Perera.
JORNADA DE PESQUISA EM ARTE UNESP PPG IA 2019 – 3a edição internacional
… [sons] tão arraigados ao nosso dia a dia que já não são mais percebidos atentamente.
MARISA TRENCH DE OLIVEIRA FONTERRADA
1
Em reportagem de 4 de junho de 2019 no portal de notícias G1, o canal GR6 aparece como o canal de
funk mais acessado, ultrapassando o canal Kondzilla que permanece como o canal do YouTube com
mais inscritos do Brasil e o maior canal de música do YouTube. A reportagem intitulada Kondzilla em
queda: Por que o canal de funk perdeu audiência e a liderança nas paradas? pode ser acessada em
<https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2019/06/04/kondzilla-em-queda-por-que-o-canal-de-funk-pe
rdeu-audiencia-e-a-lideranca-nas-paradas.ghtml>.
2
ouTube. Amiga que é Amiga. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=-DO0NlDeVvA>.
Y
Acesso em: 25 jun. 2019. Vídeo publicado em 08 nov. 2017. Dur: 3m55s.
3
Para uma descrição dos diversos subgêneros do funk, ver PALOMBINI, 2009: p. 52.
4
O padrão utilizado aqui para identificação da oitavas é o mesmo utilizado em países de língua francesa,
em que o Dó central é classificado como o Dó₃ (HENRIQUE, 1999, p. 13 e LEIPP, 1967, p. 143).
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Embora a gravação use provavelmente o registro digital do som de um derbaki, vale ressaltar que o
instrumento real consiste em espécie de tambor “de uma ‘pele’, ‘casco’ de madeira em forma de taça,
semelhante à ‘darabuka’, usado na Grécia” (FRUNGILLO, 2003: 107).
6
A transcrição foi realizada pelo autor, com objetivo de analisar as camadas de sons da música.
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Se o compasso quaternário simples (4/4, neste caso) não foge à regra do ritmo mais
comum do funk, em compensação, as síncopas recorrentes no grave são uma espécie
de caso raro, ao mesmo tempo que remetem, pela maneira como são executadas, a
outros gêneros de música brasileira de origem afro como será demonstrado a seguir.
Timbres e vozes
Olhando para o parâmetro das alturas, a marca do funk aqui analisado é o buraco na
tessitura: o glockenspiel é um instrumento agudo – sua extensão costuma ser de Sol₄ a
Dó₇ –, mas, o resto das camadas de timbre está concentrada no grave: a voz, o bumbo
e o som chamado de “sub grave” em referência aos sons sub-bass de muitos
sintetizadores. Apenas o derbaki, com um timbre agudo-médio, foge a regra dos
extremos grave/agudo, ainda assim, o buraco na tessitura permanece, não havendo um
registro médio na música.
7
Sobre a relação entre a música concreta francesa e a música eletrônica alemã, ver CORRÊA.
8
Dentre os idiofones de altura definida, o glockenspiel é classificado como um metalofone de barras
retangulares, com a disposição de um teclado de piano, colocadas em cima de uma estrutura e percutido
por diversos tipos de baquetas (FRUNGILLO, 2003: 139 e HENRIQUE, 1999: 36-37 ).
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Fig. 2. Melodia cíclica, de apenas 2 compassos, repetida durante toda a música pelo timbre do
glockenspiel.
A melodia cíclica em Ré menor possui entre cada nota um Ré⁶, constituindo uma
espécie de nota pedal, ou seja, uma nota mantida ou repetida.
As notas Ré, contudo, não são ouvidas como parte da melodia, mas sim como um
preenchimento entre cada nota da melodia. De modo que a melodia que realmente é
ouvida como tal é a sequência formada pelas primeiras notas de cada colcheia:
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O Ré₆ repetido, além de ser a tônica, também é a nota mais aguda da música, de
maneira que, ao lado do Ré₁, delimitam os extremos da tessitura: a nota mais grave e a
nota mais aguda.
Fig. 5. Nota mais aguda e mais grave da música, ambas Ré, demarcando os limites da tessitura da
música.
Olhando a estrutura do micro ao macro, se o Ré₆ é a nota pedal mais aguda da melodia
do glockenspiel, a própria frase melódica, por se repetir quase que ininterruptamente,
acaba sendo uma espécie de macro pedal da música. Esta marca dá ao funk Amiga
que é Amiga uma unidade estrutural do micro ao macro.
Fig. 6. Transcrição do grupo de notas que tem o envelope dinâmico invertido, junto do destaque da nota
axial, nota-eixo.
Como a tarefa de grafar, na partitura, notas com envelope invertido de modo claro é
complexa, cabe exibir o fenômeno mostrando o próprio envelope:
Fig.7. Envelope dinâmico destacado da melodia apresentada pelo glockenspiel no momento em que as
notas soam com invertidas. Captura de tela da música vista pelo software Reaper.
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Letra e Repetição
Convidei a bebê
Depois do show
Perguntei: motel?
História real
Compartilha os segredos
As aventuras
E até as roupas
Imagina eu e você
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Como refrão, o MC repete várias vezes a frase “amiga que é amiga compartilha o boy
com a outra”. Há diversos MC’s e diversas formas de se cantar funk, mas a
característica das músicas do MC Brisola é a forma falada de cantar, como a maneira
mais habitual de cantar o rap. A repetição constante de uma frase falada, de acordo
com Diana Deutsch – importante pesquisadora da psicologia da música, com ênfase no
estudo dos chamados sons paradoxais –, transforma o que é dito numa sequência que
passa a ser ouvida como música; dizendo de outro modo, o simples ato de repetir
converte a fala em um material musical. “Em nossa demonstração final, a fala passa a
ser ouvida como música, e isso é conseguido sem transformar os sons de forma
alguma, ou adicionando qualquer contexto musical, mas simplesmente repetindo uma
frase várias vezes.” (DEUTSCH, 2019).
A autora demonstra que através da repetição passamos até mesmo a ouvir um perfil
melódico com notas e intervalos delineados. Esse fenômeno é chamada pela autora de
speech to song illusion [“a ilusão da fala à canção”].
Esta descoberta desta ilusão fala-canção ocorreu em 1995 quando a autora estava
editando e ouvindo repetidamente uma fala que sairia em seu CD Musical Illusions and
Paradoxes (DEUTSCH, 2019 e 1995). Assim, é possível entrever uma relação entre
tecnologia e repetição, isto é, embora a repetição possa ser executada por um músico
em seu instrumento, foi apenas com o surgimento de dispositivos reprodutores de áudio
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que foi possível pausar, repetir, lentear, acelerar, retrogradar um mesmo trecho sonoro.
Repetir exatamente um mesmo trecho por muito tempo, como na peça Come Out
(1966) de Steve Reich. A ideia da relação entre tecnologia de reprodução de áudio e a
produção musical do século XX foi sugerida, aliás, por Lorenzo Mammi. No artigo A Era
do Disco, Mammi traz a ideia de que tanto a complexidade serial quanto o minimalismo
são frutos de um tempo em que é possível ouvir e reouvir música nos dispositivos de
reprodução de áudio, inaugurando também uma escuta solitária (MAMMI, 2014). Ainda
assim, como demonstra Deutsch, a repetição, mesmo quando é apenas falada, torna a
fala musical, independente desta fala ser uma gravação repetida em um sequenciador
ou falada por alguém em tempo real.
E embora muitas vezes se faça críticas ao funk e ao rap pela “ausência de melodia” e
“repetição verbal e musical constante”, talvez os funkeiros e rappers façam isso há
muito tempo graças a percepção (consciente ou inconsciente) do mesmo fenômeno
observado por Diana Deutsch.
Tome seu próprio nome. Repita-o muitas vezes, até que, gradualmente,
ele perca sua identidade. Embale o sentido dele para que durma,
hipnotize-o até que não mais lhe pertença. Agora que ele é apenas um
belo objeto sonoro pendurado à sua frente, examine-o totalmente com os
ouvidos (SHAFER, 2011: 197).
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Vale ressaltar que o tempo atual tem visto nascer novas formas de relacionamento,
formas efêmeras, amores líquidos, para citar o livro de Zygmunt Bauman. Há um certo
culto à diversidade amorosa, a ideia de casamento – e até de namoro – não mais seduz
muitos, o que confirma o conceito de “dessublimação repressiva” de Joseph
Schumpeter e Luc Ferry. Dessublimar é quebrar valores tradicionalmente consagrados
para estimular novos comportamentos e, principalmente, aumentar o consumo (FERRY,
2014).
Tal fato é evidenciado em diversas letras de funk: “sou todo errado nessa história de
amor9” e “namorar pra quê?10” (canta MC Kekel nas músicas Mandella é Meu Nome e
Namorar Pra Quê?, respectivamente, o que demonstra o declínio dos valores
românticos, valores estes presente em muitas músicas populares, do trovadorismo aos
dias de hoje.
Letras céticas em relação à ideia do amor romântico não são marca exclusiva do funk,
as falas “si conmigo te quedas o con otro tu te vas no me importa un carajo11” e “se que
no eres sola pa’ mi pa’ mi pa’ mi y yo no soy solo pa’ ti pa’ ti pa’ ti12” ocorrem nos
9
Acesso à música no Youtube: <https://www.youtube.com/watch?v=joD3MNl8rEY>.
10
Acesso à música no Youtube <:https://www.youtube.com/watch?v=byXfKMEmVZc>.
11
Em tradução livre “se comigo fica ou com outro vai, não me importa um caralho”. Acesso à música no
YouTube: <https://www.youtube.com/watch?v=t_jHrUE5IOk>.
12
Em tradução livre “sei que você não é só pra mim pra mim pra mim e eu não sou só pra você pra você
pra você”. Acesso à música no YouTube: <https://www.youtube.com/watch?v=DpM62ZwR15g>. Último
acesso em: 25 jun. 2019.
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reggaetons Felices los 4 [Felizes os 4] e Mi Mala [Minha Má], respectivamente. Nestes
casos, como na música Amiga que é Amiga, vemos possibilidades amorosas com mais
de duas pessoas.
África Latente
De acordo com Carlos Palombini, logo nos primeiros anos de existência, o funk já
incorporava elementos afro à suas bases eletrônicas:
Certamente, entendendo a música (arte, de forma geral) como processo social – numa
abordagem que Menezes considera uspiano, remontando a Antônio Cândido –
podemos deduzir que a causa da incorporação de elementos afro ao funk está
vinculada à sua origem social, que é a mesma dos gêneros populares afro-brasileiros:
negros e pobres marginalizados.
Há ainda um ponto em comum com a música africana do Benim – país que presenciou
a volta de ex-escravos vindos do Brasil – pode ser marcado, pois como demonstra
Marcos Branda Lacerda no livro Música Instrumental no Benim: repertório Fon e Bàtá a
música para percussão deste país africano é caracterizada por tambores graves
solistas em contraponto com instrumentos percussivos agudos que executam um
ostinato (LACERDA, 2014), semelhante a organização do funk aqui analisado. Em
Amiga que é Amiga, enquanto o derbaki executa o ritmo já do funk (como um ostinato,
ainda que com pequenas variações), o grave sincopado sobressai e traz variação
(como o solo de um tambor grave) . Mesmo que a relação do funk de MC Brisola e DJ
Perera com a música africana do Benim possa ser muito longínqua, há o mesmo
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princípio rítmico, embora no caso do funk seja algo mais simples, dado o caráter
funcional de sua música.
O prazer do grave
É preciso destacar, para que não haja a ideia de exclusividade do som grave no funk,
que as diversas formas de música eletrônica dançante fazem uso de frequências
graves. Há um vínculo entre as músicas feitas para serem dançadas em momentos de
festa e sons de baixa frequência. Isso porque, de acordo com Barry Blesser:
Conclusões
Neste conjunto de ideias, o funk pode ser visto como um desses tipos de sons que não
mais ouvimos, não por estarem esquecidos, mas pelo oposto. Deve-se levar em conta
que este gênero faz parte da vida de muitos jovens brasileiros, o som do funk invade as
ruas e se faz ser ouvido, seja nos fluxos ou nos bailes de rua, de modo que pela sua
constante presença no Brasil, talvez não seja realmente ouvido. Apesar do impacto
social do gênero, há pouquíssimos estudos musicológicos, há, consequentemente,
muito preconceito.
Este artigo procurou abordar o funk Amiga que é Amiga como um representante do
gênero musical Funk, que possui uma enorme diversidade, riqueza e experimentalismo.
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No texto original, “there are reports that the sacculus (a component of the inner ear’s
vestibular/balancing system) responds to low frequency sounds that are above 90 dB (Todd and Cody,
2000; Todd, 2001). Furthermore, the sacculus has neural connections to those parts of the brain that are
responsive to all forms of pleasure.”
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É preciso dizer ainda que o funk de Brisola e Perera, com seu caráter experimental, tem
até o momento mais de 8 milhões de visualizações no YouTube, pouco, se comparado
aos mais de 1 bilhão da música Bum Bum Tam Tam14 do MC Fioti – o videoclipe desta
música permanece como o vídeo mais visto no YouTube Brasil –, mas muito para uma
música com riqueza sonora e experimental.
Se, como o senso comum acredita, “ostra feliz não produz pérola”, ou seja, para haver
algo valioso há que se ter antes circunstâncias adversas, a beleza dos gêneros
musicais afro está na trazida para a música deste “soluçar de dor15” social.
REFERÊNCIAS
FERRY, Luc. A Inovação Destruidora: ensaio sobre a lógica das sociedades modernas.
Tradução:Véra Lucia dos Reis. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
FRUNGILLO, Mário D. Dicionário de Percussão. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial
do Estado, 2003.
HENRIQUE, Luís L. Instrumentos Musicais. 3. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian,
1999.
LACERDA, Marcos Branda. Música instrumental no Benim: música Fon e música Bàtá.
1. Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014.
LEIPP, Emile. Acoustique et Musique. Paris: Masson,1967.
MAMMI, Lorenzo. A Era do Disco. Em: Revista Piauí. N. 89 de 8 de fev. de 2014.
MED. Bohumil. Teoria da Música. 4.Ed. rev. e ampl. Brasília: DF, 1996.
NETO, Lira. Uma história do samba: volume I (As origens). 1. Ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
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Acesso ao videoclipe no YouTube, no canal Kondzilla:
<https://www.youtube.com/watch?v=_P7S2lKif-A>. Último acesso em 25. jun. 2019.
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A expressão “soluçar de dor” foi tirada da letra do samba Canto das Três Raças, que trata da formação
social brasileira, com letra de Paulo César Pinheiro e música de Mauro Duarte.
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SCHAFER, Murray. O Ouvido Pensante.2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
- Dissertações ou Teses
MENEZES, Enrique Valarelli. Mário de Andrade e a síncopa do Brasil. São Paulo, 2016. 310 p.
Tese (Doutorado em Musicologia). ECA, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
- Artigo em Periódico
PALOMBINI, Carlos. Soul brasileiro e funk carioca. Opus: Revista da ANPPOM. V. 15. 140p. p.
37-61, 2009.