Você está na página 1de 44

Mario Ficarelli:

As obras para flauta solo


dedicadas a Expedito Vianna
Introdução:
● Como surgiu a ideia do trabalho;
● Quais são as obras;
● Principais objetivos;
● Dificuldades;
● Bibliografia.

2
Mario Ficarelli
Nascido na Capital paulista, em 1937, foi compositor, professor e pianista.
Iniciou seus estudos aos 17 anos de idade.
Passou por diversas carreiras antes de alcançar reconhecimento no meio
musical. Foi pintor, ajustador, secretário de escola, vendedor de porta-em-porta,
comerciário como auxiliar de escritório, correspondente comercial e operador de
computador em corretora de Bolsa de Valores.
Em 1957, ingressou na Academia Paulista de Música, onde passou a ter contato,
além do piano, com as aulas de harmonia e contraponto.

3
Teve notável atuação como professor em São Paulo, Belo Horizonte,
Paranapanema e Tatuí, a partir de 1975.

Foi professor de rítmica, harmonia, contraponto, formas e composição no


Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo, o qual dirigiu entre 1997 e 2005.

Algumas de suas obras que ganharam concursos ou foram premiadas:


Sapo-jururu (coral), Novelo (quinteto de sopros), Transfigurationis (orquestra).

Faleceu aos 79 anos, no dia 2 de maio de 2012.

4
“Para poder atuar livremente sobre si
mesmo, é absolutamente necessário que o
compositor seja livre de cabrestos de
qualquer espécie. Só assim se pode chegar
a resolver o maior de todos os problemas da
composição: o estilo. Só tem estilo quem
está preocupado com a música em si e não
consigo mesmo.” (FICARELLI, 1982, p. 14).

5
Expedito Vianna
Nascido em 1928, na cidade de Visconde do Rio Branco, Minas Gerais, foi um
dos principais nomes do ensino de flauta no Brasil.

Iniciou seus estudos com o flautim, sob orientação de seu irmão, Sebastião
Vianna. Seis de seus irmãos atuaram como músicos profissionais.

Em 1958, conheceu e teve aulas de teoria com o notável compositor e professor


Hans-Joachim Koellreuter, em Salvador (BA).

Em 1964, regressou para Belo Horizonte, e concluiu seus estudos no antigo


Conservatório, atual Escola de Música da UFMG, orientado pelo docente Fausto
Assumpção.
6
No ano de 1965, assumiu o cargo de professor da UFMG, onde atuou até
1992.

Atuou, entre 1981 e 1988, como flauta solo na Orquestra Sinfônica de Minas
Gerais (OSMG).

De acordo com Myriam Viana, viúva de Expedito, o casal nutria uma


admiração pelo compositor Mario Ficarelli, e foi uma alegria, para Vianna, ter
uma peça (Trítonos) do compositor dedicada a ele.

Faleceu em 22 de Janeiro de 2012.

7
Com grande destaque na área da educação, foi responsável por criar pelo
menos quatro principais propostas pedagógicas para o ensino de flauta: 1)
alteração do timbre através do uso de vogais; 2) a aplicação dos estudos de
Marcel Moyse no estudo de trechos difíceis do repertório; 3) a utilização de
reagrupamentos de notas para os estudos de agilidade; 4) o estudo de
tonalidades baseado na transposição de melodias fáceis.

8
Trítonos (1979):

O trítono é o intervalo musical que contém 3 tons e pode ser nomeado como
4aum ou 5dim.
Na era medieval, a igreja católica proibia o uso do intervalo de trítono, e era
nomeado como "diabolus in musica”.
Na música tonal, a sua utilização é muito conhecida por gerar a tensão no
acorde de dominante entre a 3M e a 7m. No pós tonalismo, seu uso se torna
uma consonância.

9
Exemplo: o acorde de G7 (dominante) resolve em C (fundamental), e o
trítono entre as notas Si e Fá, presentes no acorde de G7, se encaminham,
por meio de 2m para as notas Dó (ascendente) e Mi (descendente),
presentes no acorde de C, respectivamente. (Koellreutter, 2008, p. 20-21.)
10
A peça foi escrita em 1979, para o Álbum “Nova Música Brasileira para Flauta”,
foi estreada em 1981, pelo intérprete João Dias Carrasqueira, na cidade de
Piracicaba.
Trítonos apresenta uma versão manuscrita e outra editada pela SISTRUM.
Após contato com a editora SISTRUM, foi possível determinar que Ficarelli
participou da revisão da obra.
“[...] Toda a peça é baseada no uso de intervalos de quarta aumentada, e em
uma série de oito sons comportando dois trítonos. Esta série não é utilizada de
uma maneira serial: o compositor a dissocia em pequenas células melódicas
que são desenvolvidas através de inversões, repetições, retrogradações e
transposições. A obra se divide em três partes que sucedem-se com o equilíbrio
tradicional: lento, vivo, lento.” (SISTRUM, Nova Música Brasileira para Flauta,
2001, p.29).
11
Série utilizada por Ficarelli.

12
Quando organizamos as terças entre as notas da série, é possível perceber a
presença dos acordes de D7 e um acorde de Em(b9).

13
O acorde de Em(b9) passa a soar como um acorde de G7 em alguns momentos
da música, graças à disposição das notas da série.

14
A música ocidental tem 12 notas, que são organizadas de maneira cromática.
No pós-tonalismo, Straus sugere que cada uma das “Classes de Notas” seja
numerada de 0 a 11, levando-se em consideração as “Equivalências
enarmônicas”.

15
Classe de notas: “[...] A classe de notas Lá, por exemplo, contém todas as notas
chamadas Lá. Para colocar de outra maneira, qualquer nota chamada Lá é um
membro da classe de notas Lá [...]” (STRAUS, 2013, p. 2)

Equivalência enarmônica: “Na música tonal da prática comum, um Sib não é o


mesmo que um Lá#. Mesmo num instrumento com temperamento igual como o
piano, o sistema tonal dá ao Sib e ao Lá# diferentes funções e diferentes
significados. [...] Essas distinções são amplamente abandonadas na música
pós-tonal, entretanto, onde notas que são enarmonicamente equivalentes (como
Sib e Lá#) são também funcionalmente equivalentes [...]” (Ibid. p.2)

16
Kostka propõe a organização das 12 notas que existem na música tonal como
um relógio, nos Gráficos Mod 12:

17
Desta forma, é possível perceber que o intervalo de trítono divide,
simetricamente, a escala cromática em duas partes, logo, por razão matemática,
este intervalo passa a ser um intervalo consonante.

18
Movimento I
O primeiro movimento divide-se em três momentos, que se encontram: a) do
compasso 1 ao primeiro tempo do compasso 14, b) do terceiro tempo do
compasso 14 ao compasso 28, c) do compasso 28 ao fim. Inicia-se com a
indicação metronômica de semínima igual a 66 bpm.

Ficarelli, nos primeiros 5 compassos da obra, explora o uso das dinâmicas nas
semibreves, em notas graves. A região da flauta em que a peça inicia é
conhecida por apresentar uma difícil emissão e uma gama de dinâmicas muito
restrita. Os exercícios de Moyse, intitulados “Souplesse des sons graves” podem
auxiliar na execução do trecho.
19
O intérprete pode se preocupar com o fluxo de ar para sustentar todas as notas
da sequência proposta na edição entre os compassos 1 e 8, que é um período
longo em um andamento lento. Neste momento torna-se quase impossível
completar a frase fazendo as nuances timbrísticas e dinâmicas em uma só
respiração. Como sugestão, o executante pode respirar antes da aparição da
nota Fá, que evidenciará o acento e a dinâmica nesta nota, além de ressaltar a
presença desta nova sonoridade que é proposta antes da aparição do acorde de
G7.

20
O compositor insere o intervalo de trítono que é o ápice da obra, no que diz
respeito à natureza sonora do instrumento.

Para deixar o som na região aguda do instrumento mais harmonioso, os


exercícios de sonoridade de Moyse (1934, p. 3-9) do livro “De La Sonorité: art et
technique" podem ser muito úteis.

21
O compositor insere dois intervalos de trítono, entre as notas Lá e Mib e entre as
notas Ré e Sol#. As novas notas não foram utilizadas anteriormente e não fazem
parte da série, fazendo com que a inserção desses intervalos de trítonos com
novas notas realce a importância que o intervalo tem para a composição.

É possível relacionar a aparição das notas Mib e Sol# como sensíveis que
resolvem sonoramente nas notas Ré e Lá, que são notas importantíssimas
dentro do principal acorde utilizado por Mario Ficarelli, o acorde D7.
22
Movimento II
O segundo movimento apresenta uma característica mais jocosa. O metrônomo
indica colcheia pontuada entre 80 e 88 bpm, uma notação de fórmula de
compasso pouco usual, com a unidade de tempo representada por uma colcheia
pontuada. Aqui, temos três seções: a) entre os compassos 1 e 11, b) do
compasso 12 ao compasso 19, c) compasso 20 ao fim.

Logo no primeiro compasso, é possível notar a insistência de Ficarelli com a


utilização do intervalo de trítono entre as notas Si e Fá.

23
O compasso 11 chama atenção, pois a diferença entre a edição e o manuscrito
são enormes. Ficarelli não escreve, em seu esboço, a última nota Dó, muito
menos utiliza um harmônico, como aparece na versão editada. As quiálteras,
que na versão manuscrita ocupavam, individualmente, um tempo do compasso,
diminuem de valor, visto que o compositor insere uma colcheia pontuada ao
final do compasso, na versão editada, e coloca as duas quiálteras em um só
tempo.

24
A segunda parte deste movimento faz uma clara menção ao primeiro
movimento, e utiliza as quatro notas iniciais da série com seus respectivos
intervalos, que formam o acorde de D7. Desta vez, porém, a edição explora uma
notação pouco usual, para indicar por quantos compassos cada nota deve soar,
utilizando um traço. É importante ressaltar que no manuscrito, Ficarelli utiliza a
notação comum, com mínimas pontuadas unidas por ligaduras.

25
O que chama atenção do intérprete no compasso 21, é que a nota Si aparece
uma oitava acima na edição em relação ao manuscrito, e a nota Fá, aparece sem
acidente na versão editada, porém, no esboço, aparece como Fá#. O intervalo
entre Dó e Fá# forma um trítono, o que nos faz refletir se o Fá natural presente
na versão da SISTRUM é um erro de edição.

26
No momento final, a versão editada insere mais três compassos com a nota Si
sustentada ao final da obra, além de colocar também, apojaturas que formam
intervalos de Segundas Maiores com a nota Si, que neste trecho serve como um
pedal.

27
Movimento III
Este movimento pode ser dividido em três principais momentos: a) do início ao
compasso 16; b) do compasso 17 ao segundo tempo do compasso 20; c) do
terceiro tempo do compasso 20 ao fim. Na partitura editada, não é possível
encontrar uma indicação de metrônomo, porém, no manuscrito, o compositor
sugere mínima igual a 44 bpm.

É o movimento em que a versão editada mais se diferencia do manuscrito.

28
Em relação às dinâmicas, a única proposta feita pelo compositor no manuscrito
foi omitida após a edição, entre os compassos 17 e 19.

Os dois primeiros compassos apresentam os seis primeiros intervalos da série,


embora sejam representados por outras notas da “Classe de Notas”.

29
Entre os compassos 17 e 20, é possível perceber a presença dos três primeiros
intervalos da série, que aparecem de maneira bem evidente em outros
momentos nos movimentos anteriores. Desta vez, porém, eles aparecem na
oitava mais aguda da flauta.

30
Entre os compassos 27 e 28, a versão editada conta com a adição de uma
tercina de semínimas e duas semínimas com a nota Fá# que não se encontram
no manuscrito, além disso, o Mi, do compasso 28, passa a ser bemol na edição.
Para equilibrar a frase, ocorre a adição de um compasso na versão editada,
preenchido pela nota Si.

31
A peça acaba com um pedal de Dó. A versão editada ganha três compassos
com duas notas Dó em relação ao manuscrito. A primeira delas tem uma
apojatura de Fá#, relembrando o trítono que abre a peça, e a segunda, deve ser
executada com um harmônico. Neste trecho, a dinâmica de poco crescendo que
se encontra na última nota, pode ser facilmente ignorada por um intérprete
menos atento.

32
Uma Lágrima (2012)
A obra, escrita in memorian a Expedito Vianna, teve sua composição iniciada no
ano anterior ao falecimento de Expedito, após o contato de Ficarelli com o
Professor Raul Costa D’Avila, na 19º Bienal de Música Brasileira Contemporânea,
em outubro de 2011. No encontro, Raul informou ao compositor a piora de
saúde de Vianna, deixando-o visivelmente triste. Após o falecimento do flautista,
em janeiro de 2012, D’Avila relata ter enviado um e-mail notificando o ocorrido ao
professor Ficarelli, que o enviou como resposta, dias depois, a primeira versão
de Uma Lágrima.

33
A música é dividida em três partes. Ficarelli não utiliza uma armadura de clave
para designar tonalidade, um ponto raro na produção do compositor, que faz
com que a obra tenha uma grande incidência de acidentes ocorrentes. De
acordo com seu filho, Alexandre Ficarelli, nesta época, o compositor escrevia
diretamente no computador, e não existe uma versão manuscrita desta obra.

34
No canto superior esquerdo da primeira página, Ficarelli insere a informação:
“Para Flauta em Sol, ou Flauta em Dó, ou em Sol na primeira parte e em Dó na
parte central voltando Flauta em Sol no final”, dando ao intérprete três opções de
execução. Porém, nos e-mails que o compositor trocou com D’Avila, é possível
perceber que a ideia inicial era compor uma obra somente para flauta em sol.
Após um comentário feito pelo professor, a respeito da difícil execução do
movimento Vivo na flauta em sol, o compositor optou por deixar a escolha mais
livre. Segundo o professor D’Avila ele chegou a realizar uma gravação caseira
com a flauta em dó a parte central a título de experiência.

35
Lento
O movimento inicia com uma indicação de semínima a 52 bpm. Apesar disso, a
instrução senza rigore di tempo unida a não utilização de fórmula de compasso
e a falta de demarcação de compasso faz com que o intérprete sinta-se com
certa liberdade para executar a obra. Num primeiro contato, essa liberdade pode
causar certo espanto e receio, mas é recomendável que o executante entenda as
frases musicais e como cada uma delas funciona ritmicamente com o tempo
indicado, e busque sua interpretação a partir dessa compreensão.

No que diz respeito a processos composicionais, Ficarelli utiliza três materiais


principais para escrever o primeiro movimento.
36
Numa primeira leitura, as pausas e a cesuras podem ser um bom guia para
encontrar e delimitar as frases musicais. Para organizar o ritmo, pode ser
interessante utilizar um metrônomo com o beat em 52 e entender as relações de
tempo entre as notas, já que o compositor escreve alguns ritmos que soam
iguais de maneiras diferentes.

37
O trecho lento desta obra é um ótimo espaço para explorar novos timbres, de
forma livre. Dito isso, a utilização das vogais enquanto se toca, proposta por
Vianna em sua metodologia de ensino pode ser utilizada como uma maneira
enriquecedora de estudo, a fim de fazer com que o executante conheça e
explore novos timbres e sonoridades no instrumento. É possível encontrar mais
informações a respeito desta técnica no trabalho de Homem (2005), intitulado
“Expedito Vianna: um flautista à frente de seu tempo”.

38
Até o primeiro fortissimo, Ficarelli utiliza como material principal, uma escala
pouco conhecida pelos intérpretes, que pode ser denominada como escala
Maior Menor, também conhecida como escala Mixolídio com 4aum, escala
acústica, entre outros. Se colocarmos as notas da escala no sistema de relógio,
é possível perceber que a mesma é simétrica, e seus intervalos colaboram com
a dificuldade de estabelecer uma tonalidade, já que diferem dos intervalos da
escala diatônica.

39
Entre o Si no fortissimo e a fermata, podemos perceber a utilização da escala de
Lá Maior, de maneira diatônica, e este é o momento mais tonal da obra.

Depois da fermata, Ficarelli utiliza um material cromático, não sequencial, que


faz com que o ouvinte não consiga prever exatamente para onde o compositor
está caminhando.

40
Vivo
O movimento vivo inicia-se com a indicação de semínima a 152 bpm e a
inscrição tempo giusto. Ainda sem barras de compasso, o compositor muda
drasticamente o caráter da peça. Em contraste com o primeiro movimento,
cantabile e com o tempo livre, nesta parte da obra o compositor insere diversas
semicolcheias e fusas, com frases de difícil execução.

Ficarelli utiliza cromatismos, intervalos de um tom, saltos de terça e quintas


como material. Tecnicamente, esta seção exige muito domínio técnico do
instrumentista, pois nem todos os saltos seguem a mesma lógica. É
necessário estudar todo o trecho bem lento, variando articulações e ritmos,
buscando homogeneidade sonora e também da digitação.
41
Depois da respiração, Ficarelli inicia a última grande frase do trecho, que cresce
do forte ao fortississimo, enquanto sobe para a oitava mais brilhante da flauta,
separando as três últimas notas, por pausas. Nessas notas, o intérprete pode
utilizar o vibrato, a fim de valorizar a dinâmica e enfatizar o brilho natural das
notas, que sobem em intervalos cromáticos até o Fá, que encerra o trecho.

42
Tempo I
No pequeno trecho que encerra a obra, Ficarelli retoma o trecho inicial da
música, uma 3m abaixo, com a indicação senza vibrato. Desta vez, ao invés de
desenvolver o tema, como no movimento lento, o compositor encerra a obra
com o mesmo Mib que a iniciou, com um piano em decrescendo.

É importante ressaltar a presença da expressão lontano, que traduzida do


italiano, significa distante. Para o intérprete, essa sugestão é um guia da
sonoridade que o compositor idealizou, como se todo o trecho fosse uma
lembrança.

43
Considerações finais
Ao falar de maneira sucinta a respeito da vida de Mario Ficarelli e Expedito
Vianna, a monografia pretende divulgar e apresentar o trabalho destes grandes,
porém por vezes pouco lembrados, músicos brasileiros.

Assim como toda análise, as sugestões aqui apresentadas estão abertas a


novas perspectivas e abordagens, que possam complementar as propostas aqui
apresentadas, além de contribuir para a difusão e estudo das obras do
compositor.

44

Você também pode gostar