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REGRAS DO CONTRAPONTO DE ESPÉCIES


COMPLEMENTO TEXTUAL À SEBENTA DE TAM – MÓDULO 1

1) Preâmbulo – O contraponto de espécies

A aprendizagem do contraponto de espécies é uma prática implementada desde o


século XVII e fez parte da formação de inúmeros compositores como Mozart, Beethoven,
Mendelssohn ou Brahms. Instituída oficialmente no livro Gradus ad Parnasum (1725,
“Passos para o Parnaso”1) pelo compositor vienense Joseph Fux, esta metodologia
procurava que o/a discente aprendesse de um modo progressivo a compor contraponto.
De facto, o contraponto firma-se no princípio da polifonia, que implica uma
composição com duas ou mais vozes independentes, mas que se relacionam
intervalarmente para gerar harmonia. Nas espécies de contraponto, parte-se de uma
melodia pré-existente de cantus firmus (CF), isto é, um canto firmado que não pode ser
modificado, para a construção de uma nova linha melódica acima ou abaixo da primeira.
Efetivamente, existem cinco espécies de contraponto, cada uma baseada numa
premissa própria e gradualmente mais desafiante, culminando no domínio total da arte do
contraponto renascentista a duas, três ou quatro vozes: 1) nota contra nota; 2) duas notas
contra uma; 3) quatro notas contra uma; 4) síncopas; 5) contraponto florido.
Posteriormente, a evolução da investigação no domínio musical trouxe algumas
objeções às propostas de Fux, que se encontravam desatualizadas ou desligadas da
realidade musical que tentava retratar – o Renascimento, apogeu do contraponto. Desta
forma, no século XX vários teóricos tentaram redigir novas propostas que se fundassem
nesta abordagem progressiva ao estudo do contraponto, mas que estivessem mais
entranhadas quer no estudo da música do século XVI, quer numa visão holística sobre a
música posterior do Barroco, do Clássico e até do Romântico, onde a tradição polifónica
e/ou os ensinamentos das espécies permanecem visíveis.
De entre essas iniciativas, salientam-se a abordagem de: Henrich Schenker em
Kontrapunkt (1910), que explicita a condução de vozes à luz das espécies de contraponto
no repertório erudito; Kund Jeppesen, que escreveu Counterpoint: The Polyphonic Vocal
Style of the Sixteenth Century (1939) que se baseia no estudo da música de Palestrina para
descrever novas formulações a partir de Fux; e os teóricos Felix Salzer e Carl Schachter,

1Na Grécia Antiga, Parnaso era o monte no qual se acreditava que habitavam as musas. Assim, esta caminhada em
direção a esse local simboliza a conquista da arte das musas: a música.
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que reuniram as duas abordagens anteriores em Counterpoint in Composition (1969),


repleto de exemplos oriundos da prática. No que toca aos textos em português, destaca-
se Contraponto Modal: Manual Prático (2000) da brasileira Any Raquel Carvalho. Em
jeito de conclusão, foi toda esta bibliografia que inspirou a redação do presente
documento, convergindo diferentes abordagens teóricas e práticas.

2) Relações intervalares

Na composição de contrapontos, temos sempre de ter em consideração duas


dimensões: a horizontal (melodia) e a vertical (harmonia). O pensamento melódico tem
que ver com a relação entre notas de uma melodia. Já o pensamento harmónico está
intimamente ligado à sobreposição das notas de duas ou mais vozes.

Ao nível harmónico, temos dois tipos de intervalos: consonâncias, que por sua vez se
subdividem em dois – as perfeitas e as imperfeitas –, e dissonâncias. Consequentemente,
a classificação dos intervalos nestas duas tipologias vai condicionar o tratamento dos
intervalos em cada espécie de contraponto.

Tabela 1 - Intervalos Harmónicos

Consonâncias
Dissonâncias
Perfeitas Imperfeitas
Uníssono, 5ªP, 8ªP 3ªm, 3ªM, 6ªm, 6ªM Meio-tom cromático, 2ªm, 2ªM, 7ªm,
7ªM, Trítono (4ª/5d) e demais
intervalos diminutos e aumentados

Ao nível melódico, o pensamento composicional vai ao encontro das melodias de


cantochão, que é um canto formado proeminentemente por graus conjuntos. Os saltos (ou
graus disjuntos) são tratados de forma específica, pois contradizem esta tendência.
Normalmente, quando a melodia utiliza saltos estes são compensados em grau conjunto
por movimento contrário, podendo ainda ser precedido por outro salto. Porém, os saltos
não são “tabu” e podem dar riqueza e diversidade às melodias. Discussão mais específicas
da utilização do salto serão abordadas aquando da explicação de cada espécie.

Tabela 2 - Intervalos melódicos

Permitidos Não permitidos


2ªm, 2ªM, 3ªm, 3ªM, 4ªP, 5ªP, 8ªP e 6ª Meio-tom cromático, 6ª descendente, 7ªm,
ascendente 7ªM Trítono (4ª/5d) e demais intervalos
diminutos e aumentados
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3) Considerações sobre a melodia

Sobre as melodias no âmbito do contraponto de espécies, Salzer & Schachter (1969),


propõe a seguinte reflexão:
“Quando escutamos uma melodia, experienciamos mais
do que uma sucessão de notas; ouvimos um movimento
tonal. Que a música é uma arte cinética, que envolve
movimento, isso faz parte da experiência de toda a
pessoa musicalmente sensível; a analogia entre música e
movimento faz parte dos textos escritos desde o início
dos tempos até ao presente. Um movimento musical tem
direção se demonstrar um início e um objetivo claros e
definidos. Na composição, com a sua rede intrincada de
relações [sonoras], a qualidade da direção advém de um
conjunto de fatores – melodia, contraponto, harmonia e
ritmo. No mundo específico do contraponto de espécies,
existe apenas um único fator [determinante]: o clímax
melódico com relação ao início e fim do exercício.” (p.
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Assim, os autores defendem que um bom exercício melódico deve apresentar
continuidade (usando com moderação os saltos), variedade (não ser também só
unidirecional ou muito sequencial) e equilíbrio (não haver elementos predominantes, e.g.
só grau conjunto/só saltos). Portanto, procura-se evitar a repetição exaustiva de uma nota,
a reiteração de conjuntos de notas ou sequências melódicas (mesmo formato, mas
diferentes notas) e tensão melódica não resolvida (geralmente caracterizada pelo clímax
na sensível – sétimo grau – ou movimentos de trítono, onde a nota “si” tende a querer
resolver para “dó”).
Na verdade, na formulação de melodias, para além dos intervalos melódicos, devemos
ter em estima duas questões: o contorno melódico e o clímax. Estes devem ser diferentes
nas duas melodias para denotar uma independência de vozes. Existem vários tipos de
contornos melódicos, sendo que os mais comuns são: em arco, ascendente, descendente
ou ondulante. Igualmente, privilegia-se o movimento contrário na conceção de uma linha
de contraponto para reforçar esta noção de independência e evitar erros, ou seja,
consonâncias perfeitas atingidas por movimento direto ou paralelo.
No mesmo sentido, define-se normalmente por clímax a nota mais aguda atingida,
para a qual a melodia habitualmente se dirige. Marca não só o final ao primeiro
movimento melódico, ou seja, aquele que parte da primeira nota, mas dá também início
ao segundo, que se dirige naturalmente para a última nota. Os autores supracitados
defendem ainda que, para que o clímax seja verdadeiramente efetivo, deve ser um
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momento único, isto é, não ser repetida essa nota. Em situações que o contraponto seja
construído na voz inferior, o movimento melódico pode-se dirigir também para uma nota
mais grave que constitua o clímax. Habitualmente, planeia-se que surja posteriormente
ao meio da melodia, sendo ainda admitidas diferentes situações.
Observe-se, nos exemplos seguintes, o planeamento do clímax na linha de
contraponto. Repare-se que, geralmente, este é realizado de forma desfasada ao ápice da
melodia de CF. Comparem-se ainda as diferentes melodias em relação aos aspetos acima
enunciados.
Proposta: Toca os exemplos ao piano e reflete sobre as seguintes perguntas: Qual foi
aquele que te agradou mais? Porquê?
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4) Contraponto de 1ª espécie

No contraponto de primeira espécie, trabalhamos sobre o princípio de nota contra


nota, ou seja, a cada nota do CF faz-se corresponder uma só nota. Logo, em termos
rítmicos, operamos sobre o princípio de uma breve por compasso em ambas as vozes. As
regras desta 1ª espécie encontram-se descritas na Sebenta do Módulo 1 (p. 20), daí não
ser necessário repeti-las neste documento.
Contudo, deixam-se algumas considerações extra:
• Caso o contraponto surja na voz inferior, não é possível começar com o
intervalo de 5ª P.
• A última nota deve ser abordada por grau conjunto nas duas vozes, isto é, por
movimento contrário.
• A sensibilização na penúltima nota deve ser feita somente se esta for atingida
por grau conjunto ou salto de terceira descendente (como era comum na época
de Palestrina) e só ocorre nos modos dórico, mixolídio e eólio.

Exercícios complementares de primeira espécie:


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5) Contraponto de 2ª espécie

O contraponto de segunda espécie estabelece-se sobre o princípio de 2 notas contra


1, sendo que sobre cada breve do CF compõe-se duas mínimas. Esta nova dinâmica
rítmica trará desafios próprios. Novamente, podem-se encontrar as regras desta 2ª espécie
elencadas na Sebenta do Módulo 1 (p. 22).
Porém, acrescentam-se algumas adendas a esses textos:
• Na literatura, apenas é permitido o surgimento das dissonâncias na parte fraca
do compasso como notas de passagem, isto é, atingidas e deixadas por grau
conjunto na mesma direção.
• A repetição de notas passa a ser proibida nesta espécie.
• A ocorrência de consonâncias perfeitas (uníssono, 5ª e 8ªP) deve ser separada
por duas mínimas de distância, para evitar sensação auditiva de paralelismo.
• A utilização de saltos pode ser interpretada da seguinte maneira:
o Perante saltos pequenos (i.e. 3ª e 4ª), não há obrigatoriedade de
compensação (grau conjunto, movimento contrário) e pode-se
proceder a um novo salto, preferencialmente em direção oposta;
o Perante saltos grandes (i.e. 5ª e 6ª – esta última só ascendente), é
exigida compensação por grau conjunto em movimento contrário;
o Os saltos de 8ª podem ser realizados, desde que em intervalos
harmónicos de 3ª ou 6ª (nunca 8ª ou 5ª = paralelas ocultas) e devem
ser, obviamente, compensados como saltos grandes.
• No penúltimo compasso, pode-se utilizar o ritmo de semibreve, como forma
de alcançar a sensível.
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Exercícios complementares de segunda espécie:


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6) Contraponto de 3ª espécie

O contraponto de terceira espécie rege-se pela norma de 4 notas contra 1, sendo que
a linha de contraponto é construída à semínima, estabelecendo-se sobre cada breve do CF.
Desta forma, a noção de parte forte do compasso passa a corresponder aos 1º e 3º tempos,
enquanto a parte fraca decorre nos 2º e 4º tempos. Mais uma vez, paute-se a composição
pelas regras explanadas na Sebenta do Módulo 1 (p. 25).
Por conseguinte, apresenta-se alguns apontamentos a esse material:
• O contraponto pode iniciar com uma pausa de semínima (cf. p. 27 da Sebenta).
• O ornato passa a ser permitido na terceira espécie, surgindo na parte fraca por
grau conjunto e deixado por grau conjunto na mesma direção. Contudo, não
se pode deixar de referir que, segundo Jeppesen (1939), este tipo de
dissonância surge com maior expressão no repertório renascentista como
ornato inferior.
• Tanto o ornato duplo como a cambiata devem ser sucedidos por grau conjunto,
conforme os exemplos apresentados.

Exercícios complementares de terceira espécie:

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