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FACULDADE SANTA MARCELINA

RUBENS SPEGIORIN ADATI

TORU TAKEMITSU E O MA:


estudo sobre a expressão do Ma na composição para violão solo de Toru
Takemitsu

SÃO PAULO
2021
RUBENS SPEGIORIN ADATI

TORU TAKEMITSU E O MA:


estudo sobre a expressão do Ma na composição para violão solo de Toru
Takemitsu

Monografia apresentada à Disciplina Trabalho de


Conclusão de Curso da Faculdade Santa Marcelina,
como requisito parcial para obtenção do título de
Bacharel em Violão Popular

Orientadora: Profa. Ma. Andrea Paola Picherzky

SÃO PAULO
2021
Sumário

1 Introdução 6
2 Sobre o Ma 9
3 Sobre Toru Takemitsu 12
4 Sobre os harmônicos 15
5 Sobre o som e o silêncio 19
6 Considerações finais 27
Referências 28
ADATI, Rubens Spegiorin. Toru Takemitsu e o Ma: estudo sobre a expressão do Ma
na composição para violão solo de Toru Takemitsu. 2021. Trabalho de Conclusão de
Curso (Bacharelado em Violão Popular) - Faculdade Santa Marcelina, São Paulo,
2021.

Resumo

Esse trabalho investiga um elemento cultural japonês chamado Ma e o


relaciona com uma peça para violão solo de Toru Takemitsu, All in Twilight, e como
tal elemento é fundamental para a compreensão da composição de Takemitsu e da
música japonesa tradicional e contemporânea em geral. Ma está relacionado
intrinsecamente com a compreensão do tempo, que no Japão acontece de maneira
singular. Procuramos ainda entender o contexto histórico do compositor, mostrando
uma vanguarda artística japonesa de um período traumático da história: o fim da
Segunda Guerra mundial e a submissão nipônica perante a Aliança.
Para essa tarefa, fizemos algumas leituras de suma importância sobre o
tema. Vimos como Luciana Galliano escreve sobre a música japonesa do século XX;
como Shuichi Kato explica os diferentes conceitos de tempo e espaço que existiram
e existem no Japão; como Junichiro Tanizaki explica questões de arquitetura
japonesa, uma vez que tempo e espaço caminham juntos; e por fim, usamos a trilha
deixada por Michiko Okano para compreender do que se trata o Ma como elemento
semiótico, de intercomunicação japonesa, analisado na sua tese Ma: entre-espaço
da comunicação no Japão.
O objetivo principal foi mostrar como Takemitsu expressa esse elemento
cultural através da composição para violão, quais são os recursos que ele lança mão
para tal tarefa e como essa maneira de pensar tempo, espaço e música geram uma
composição singular.

Palavras-chave: Toru Takemitsu. Ma. Violão.


Abstract

This paper investigates a Japanese cultural element called Ma and relates it


to a solo guitar piece by Toru Takemitsu, All in Twilight, and how such an element is
fundamental to understanding Takemitsu's composition and traditional and
contemporary Japanese music in general. Ma is intrinsically related to the
understanding of time, which in Japan happens in a unique way. We also tried to
understand the historical context of the composer, showing a Japanese artistic
vanguard from a traumatic period in history: the end of World War II and the
Japanese submission to the Alliance.
For this task we have done some very important reading on the subject. We
have seen how Luciana Galliano writes about Japanese music of the 20th century;
how Shuichi Kato explains the different concepts of time and space that have existed
and still exist in Japan; how Junichiro Tanizaki explains characteristics of Japanese
architecture, since time and space go together; and finally, we have used the trail left
by Michiko Okano to understand what Ma is about as a semiotic element of
Japanese intercommunication, analyzed in her thesis Ma: between-space
communication in Japan.
The main objective was to show how Takemitsu expresses this cultural
element through his guitar composition, what are the resources he uses for such
task, and how this way of thinking time and space generates an unique composition.

Keywords: Toru Takemitsu. Ma. Guitar.


1 Introdução

Parte desse trabalho constitui-se da vontade de compreender as escolhas


de composição de Toru Takemitsu: entender os silêncios deixados na partitura pelo
prolífico compositor japonês, destacado como talvez o principal compositor do Japão
do século XX. De onde eles vêm? O que significam? Nessa pesquisa nos
deparamos com o conceito Ma, que irá se fazer presente em toda a compreensão
japonesa sobre o tempo, uma vez que entendemos a música como arte do tempo
(Fubini, 1993, p. 14). Mas o tempo não existe por si só no entendimento japonês. Ele
está entrelaçado com a ideia de espaço, porque o tempo acontece no espaço. E se
não há nada no espaço, ele se torna vazio? Ora, está sempre cheio de ar,
necessário para nossa sobrevivência. Esse mesmo ar combinado com algumas
condições fez possível toda a história da humanidade. Então, vazio esse espaço não
está, na verdade está cheio de possibilidades.
O japonês de antes do séc. XIX irá pautar suas criações no que acredita e
tem como compreensão do mundo, o que Junichiro Tanizaki irá discorrer em seu
pequeno livro Em Louvor da Sombra1 (1933), jogando luz às sombras tão apreciadas
no Japão tradicional, mostrando o apreço da cultura japonesa pela sombra no
período de modernização do Japão no começo do século XX, quando deparados
com a lâmpada e a iluminação excessiva dos ambientes internos. Uma reflexão
pertinente de Tanizaki em seu livro é a sobre o desenvolvimento de tecnologias que
foram importadas para o Japão:

O mesmo pode se dizer de toca-discos e rádios: caso os tivéssemos


inventado, na certa eles ressaltariam as características de nossas vozes e
instrumentos musicais. Nossa música primitiva é contida, toda feita de
atmosfera. Gravada em disco ou amplificada, perde boa parte de seu
encanto. (TANIZAKI, 1933, p. 27 - 28).

Tanizaki aponta como as construções japonesas valorizam os ambientes sombrios,


contendo grandes e robustos telhados com pequenas entradas por baixo deles,
ocultadas por sombras por eles lançadas. Dentro das salas tradicionais japonesas,
que se organizam como espaços livres e disponíveis para diferentes funções, sem

1 TANIZAKI, Junichiro. Em Louvor da Sombra. Tradução Leiko Gotoda. São Paulo: Penguin
Companhia, 2017.
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móveis e indiferentes em sua aparência, a sombra é valorizada em pequenos nichos
que adentram a parede da sala (tokonoma, figura 1), feitos para se pendurar um rolo
de papel com uma pintura ou exercício
caligráfico, cujo conteúdo se relaciona com Figura 1— tokonoma com bonsai
o ambiente (kakejiku) e talvez uma planta
(bonsai ou ikebana). Essas reentrâncias
da arquitetura japonesa mostram mais
ainda o apreço pela sombra. A iluminação
feita por velas nas noites revela um mundo
de possibilidades que estão ocultas na
presença da luz. A sombra é a
possibilidade: como não enxergamos o
que existe nela, nela tudo pode existir2.
Michiko Okano, já em 2007,
buscará uma maneira de entender o Ma
através da semiótica de Charles Sanders
Peirce, relacionando-o com a arquitetura
japonesa, em outros termos, com a
concepção espacial nipônica. Jonathan
Lee Chenette irá buscar diretamente o Ma Fonte: https://www.interactiongreen.com/kyoto-
na obra de Takemitsu, afirmando que ele chashitsu/yuhikaku-tokonoma-2/

existe dentro da música, uma vez que


constitui o pensamento sobre o tempo japonês. Esse trabalho mostrará em apenas
uma obra específica de Takemitsu, All in Twilight, como o Ma se manifesta.
Outra parte desse trabalho iniciou-se com uma pergunta: por que Takemitsu
compõe para violão? Ele não é violonista, tão pouco um compositor acadêmico, uma
vez que é um autodidata declarado. Existem características no violão que
ultrapassam as barreiras culturais de ocidente e oriente, que Takemitsu irá explorar

2 Onde está a chave desse mistério? Para dizer a verdade, na magia das sombras. Se a sombra
originada em recessos e recantos fosse sumariamente banida, o nicho reverteria de imediato à
condição de simples espaço vazio. A genialidade de nossos antepassados escureceu propositalmente
um espaço vazio e conferiu ao mundo de sombras que ali se formou profundeza e sutilidade que
superam qualquer mural ou peça decorativa. (TANIZAKI, 1933, p. 40)


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empregando sua bagagem cultural em um instrumento que não fez parte de sua
história.
Timbre e silêncio são destaques no conjunto de obras de Takemitsu, e aqui
entenderemos por que e como são utilizados.
Ainda há uma parte desse trabalho que se afirma na condição de ser
mestiço, pois na origem do autor, parte da família é japonesa, que vive em São
Paulo, cidade que possui um bairro inteiro marcado pela presença japonesa e
asiática como um todo. Portanto, há um esforço do autor em entender de onde vem
seus traços, seus gostos, seu passado. Fiquemos atentos, no entanto, que tal busca
não trará respostas claras, objetivas e lógicas, mas sim instigará em nós o desejo de
entender qual a nossa própria relação com o tempo, com o espaço, com som e
silêncio, luz e sombra. Também é motivo dessa busca a abertura sensorial para
captar o Ma que pode existir em qualquer lugar, pois é frágil e efêmero, e não
existirá se não estivermos também disponíveis em nossa atenção, como telas em
branco que permitem ser rascunhadas. Para senti-lo é necessário sê-lo também.

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2 Sobre o Ma

Faz-se imprescindível nesse trabalho a compreensão mais profunda sobre o


que se trata o termo Ma, suas características singulares, como se dá nas artes e em
outros contextos sociais.
Ma é um “[…]’modus operandi’ vivo no cotidiano dos japoneses e presente
em todas as suas manifestações culturais.” (OKANO, 2007, p. 1). Ele permeia
também as comunicações interpessoais, os comportamentos, o modo de falar e se
expressar gestualmente. Para os japoneses o Ma não é uma coisa explicável, mas
uma coisa que se sente, como diz Okano citando Kawaguchi: “'Ma não possui
explicação lógica e que ele é Ma justamente porque não possui essa lógica. E
quando se força, Ma distancia-se da sua essência.'” (OKANO, 2007, p. 2).
O não-conceito de Ma está relacionado com a compreensão do tempo que,
por sua vez, está atrelado a compreensão de espaço, em outras palavras, o aqui e
agora são diretamente ligados, pois são a mesma representação do presente. No
Japão, essa linha de pensamento vem do Budismo, que mesmo se dividindo em
diferentes vertentes ao longo do tempo, mantém a ideia de que o tempo é uma “[…]
linha reta infinita […]” (KATO, 2007, p. 47) formada por “agoras” que se sucedem.
Diferente de uma noção de tempo mais ocidental, em que o presente é entendido
muitas vezes como uma navalha que corta o tempo entre passado e futuro, no
Japão o presente

[…] estica e encolhe como um fio elástico. Pode incluir um passado e


futuro próximos, e, nele, a abrangência que serve de referencial para pensá-
lo não muda, de modo que vamos deixar-lo determinado como uma
extensão que permite ser extrapolada. (KATO, 2007, p. 49).

Um curto ou longo período pode ser entendido como o agora, tendo sempre em vista
a igualdade aqui = agora budista, que inclui o espaço como elemento necessário
para a existência do tempo.
A não-conceituação do Ma também está ligada ao Budismo porque a
racionalização de algo como o Ma resultaria na sua objetificação:

[…] o tempo é percebido com o mesmo grau de falsa objetividade como


cada indivíduo forma sua percepção de si mesmo. Para o budista esse
conceito de tempo é um conceito vazio, sem sentido. Como o conceito de si
mesmo, é um produto da mente da mesma maneira que o passado e o
futuro são, na qual o passado é algo que deixou de existir e o futuro está

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por acontecer. A única realidade ‘concreta' (e isso é um aspecto complexo
do pensamento budista por si só) é aquela do "presente momento", que
surge e desaparece como vapor ou como uma imagem refletida na água.
(GALLIANO, 2002, p. 13, tradução nossa)3.

Não existe apenas a visualização do tempo como a linha reta infinita, mas como
cíclico também, que remonta à vida no campo, no interior, muito pautado nas quatro
estações do ano, como escreve Kato:

O segundo tipo de expressão de tempo da cultura japonesa é um tempo


rotativo sem começo e sem fim. Não são as posições dos corpos celestes
que se sucedem, como no caso do helenismo, mas as estações. A lavoura
não se ultimava sem o trabalho da semeadura, de extração das ervas
daninhas, da colheita, etc., que estava de acordo com o ciclo das quatro
estações. (KATO, 2007, p. 49).

Para compreender mais a fundo a visão sobre o tempo como cíclico na tradição
japonesa, Galliano discorre: “Os japoneses pensam o tempo como sendo circular e
feito de instantes únicos que existem simultaneamente, e pensam a realidade como
sendo de uma natureza impermanente e transitória.” (GALLIANO, 2002, p. 12,
tradução nossa)4.
Shuichi Kato, em seu livro Tempo e Espaço na Cultura Japonesa (2007) irá
apresentar ainda uma terceira compreensão de tempo, relacionado a brevidade da
vida, que contém um início e um fim claros, nascimento e morte, sugerindo a
apreciação pelo “aqui = agora”, ainda que nos termos de um “agora” elástico.
A fim de termos uma base lógica e racional que possibilite a investigação de
um assunto irracional como o Ma, usaremos como referência a teoria da semiótica
de Charles Sanders Peirce, mais especificamente sua categorização do universo
nas categorias Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, descritas no ensaio Sobre
uma nova lista de categorias, de 1867. Nos ateremos neste trabalho somente a essa
parte da teoria. Resumidamente, a teoria peirciana irá organizar as experiencias
fenomenológicas em três graus e o estudo do Ma é possível de ser feito nos termos
da Primeiridade, pois abordará as coisas que existem como possibilidade no

3 […] time is perceived with the same degree of false objectivity as that with which each individual
forms their own perception of themselves. For the Buddhist this concept of time is a meaningless
concept. Like the concept of self, it is a product of the mind in the same way that the past or future are,
for the past is something that has ceased to exist and the future has yet to happen. The only concrete
"reality" (and this in itself is a complex aspect of Buddhist thought) is that of the "present moment,"
which arises and disappears like vapor or an image reflected on water. (GALLIANO, 2002, p.13)
4 The Japanese think of time as being circular and made up of single instants all of which exist
simultaneously, and of reality as being of a transitory and impermanent nature. (GALLIANO, 2002,
p.12).
10
universo, uma pré-existência, uma qualidade de vir a ser. Nesse aspecto, o Ma é a
sugestão de algo, uma “[…] mera possibilidade […]” (OKANO, 2007, p. 10). Unindo o
modus operandi japonês com a teoria peirciana é possível que compreendamos do
que se trata essa qualidade sugestiva do comportamento nipônico e como ela se
manifesta na música de Toru Takemitsu, tendo como expressões principais o silêncio
e o timbre.
A qualidade sugestiva do silêncio é trabalhada na obra All in Twilight de Toru
Takemitsu de modo consciente, ainda que pautada no Ma, que se afasta da
racionalidade. Takemitsu não escreve símbolos de pausa, mas deixa que as notas
ressoem por determinado tempo, criando uma atmosfera sonora de momento de
silêncio, e quando trabalhamos mentalmente durante esse momento de intervalo,
fazendo ressoar em nossa mente o que foi tocado e imaginando o que virá em
seguida, com atenção voltada para esse momento, experimentamos de certa
maneira o Ma. Uma das características do intervalo sonoro japonês que se relaciona
com a arquitetura tradicional é a sensação de eternidade, de não perceber o passar
do tempo. Tanizaki, em Em Louvor das Sombras (1933) explica:

Esse estranho efeito é causado pela claridade esbranquiçada que se reflete


no papel do shoji: sem forças para expulsar a densa treva reinante no nicho,
claro e escuro não têm limites definidos. Ao entrar nesse tipo de aposento,
não terá o leitor alguma vez sentido que sua claridade é diferente de todas
as outras, que há algo solene e aprazível no ar? Talvez desconfie que
meses e anos podem transcorrer despercebidos, e que quando de lá sair
poderá estar transformado num ancião de cabelos brancos como a neve. E
talvez sinta um reverente temor da eternidade… (TANIZAKI, 1933, p. 41).

Essas conexões entre música e arquitetura reforçam mais ainda a igualdade aqui =
agora, arquitetura como arte do espaço e música como arte do tempo. O apreço
pelo “agora” se expressa na valorização do timbre e da pausa, como já mencionado.
Shuichi Kato define isso quando diz: “A estrutura (da composição) liga-se ao fluir do
tempo de uma composição musical como um todo, mas tanto o ‘timbre’ como a
‘pausa’ ligam-se a partes do fluir, ou seja, ao presente de cada momento.” (KATO,
2007, p. 110). Essa relação do “agora” com o timbre de um instrumento será o
assunto de um próximo capítulo.

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3 Sobre Toru Takemitsu

Toru Takemitsu nasceu no dia 8 de outubro de 1930 na cidade de Tóquio,


mas passa os primeiros sete anos da sua vida na China (GALLIANO, 2002, p. 160).
O Japão recebia, nesse período, grande influência ocidental em diferentes níveis
sociais e culturais, sendo a música um deles, desde a base escolar até as bandas
marciais que tocavam para o império do período Showa (1929 - 1989), um resquício
do período Meiji (1868 - 1912), que protagonizou a inserção ocidental no país e
renovou seu sistema, se libertando do sistema feudal mas ao mesmo tempo se
confrontando com uma feroz e acelerada modernização. A pretensão por parte dos
intelectuais influentes do governo que insistiram na abertura nipônica ao ocidente no
final do século XIX era utilizar a tecnologia ocidental com os valores morais
japoneses, e através da obtenção da técnica de composição musical ocidental os
líderes desse movimento de abertura procuravam acostumar e aproximar o povo
japonês da sonoridade europeia. Mas com o passar dos anos, por volta da década
de 30, o embrião de um movimento insatisfeito com esse procedimento surge,
alegando que a música feita nos moldes ocidentais não continha nenhum sentido,
moral ou conteúdo para os próprios japoneses: era uma arte tecnocrata.
Aos 16 anos de idade, um ano após o desfecho trágico da Segunda Guerra
Mundial, Takemitsu decide ser um compositor de música ocidental, alegando que
“[…] tudo que era japonês se tornou odioso para ele […]” (GALLIANO, 2002, p. 150,
tradução nossa) e mesmo sendo autodidata na maior parte de sua carreira, alcança
um altíssimo patamar entre os compositores de todo o mundo, premiado diversas
vezes em festivais de música contemporânea. Aos 66 anos morre na cidade que
cresceu, deixando um legado transformador para a música de seu país.
Seu primeiro trabalho a chamar atenção dos críticos e dos compositores
contemporâneos é a obra para cordas Requiem, publicada em 1957. O que chamou
a atenção nessa obra era a qualidade de fusão entre mundos, o Ocidente e o
Oriente, com a base melódica pautada em “escalas” tradicionais japonesas mas com
instrumentação e formato ocidental, que fugia da caricatura japonesa feita pelo
próprio ocidente. Takemitsu era a ponte entre os dois mundos, mas agora provendo
a perspectiva do lado da Terra em que o Sol nasce primeiro. O mundo ocidental
europeu só virá a ter contato mais a fundo com a cultura japonesa moderna quando

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a exposição “Ma: Espace - Temps du Japon” é realizada em Paris, no ano de 1978,
como fruto da estratégia politica do

[…] Ministro da Cultura da França da época, Michel Guy, de fomentar


culturalmente Paris no momento em que o seu lugar de centro irradiador da
cultura estava sendo ameaçado pela cidade de Nova York. Incluída nessa
estratégia, estava a construção do Centro George Pompidou. (OKANO,
2007, p. 24).

Um dos artistas que contribuíram para essa exposição foi Toru Takemitsu, propondo
“[…] ’a Música Tradicional e Contemporânea Japonesa’ […]” (OKANO, 2007, P. 24).
Através dessa exposição iniciou-se um contato ambivalente entre culturas, e o Ma
era objeto principal de pesquisa, o que instigou os próprios artistas japoneses a
pensar sobre ele e como se manifestava em suas artes. Apesar de Takemitsu ter
participado ativamente, o foco de tal exposição era mais arquitetônico, dando ênfase
nos espaços japoneses. Se para o ministro francês a exposição era uma maneira
de trazer Paris para o centro das atenções novamente, para o Japão era uma
oportunidade de se mostrar para o ocidente, numa época de “ […] franco
desenvolvimento […]” (OKANO, 2007, p. 24).
É importante falarmos aqui da participação de Takemitsu no Jikkenkōbbō,
movimento de vanguarda japonês do pós-guerra. O nome do movimento pode ser
traduzido para o português em “Laboratório Experimental”, e não só a música mas a
poesia e as artes plásticas também compartilhavam desse ambiente. Esse
movimento buscava sempre a síntese de elementos audiovisuais, uma inter-relação
entre os gêneros artísticos. Assim como Takemitsu, os outros integrantes desse
movimento também desprezavam a parte da cultura japonesa que havia sido
utilizada como propaganda política antes e durante a guerra, e em um primeiro
momento procuravam mais os compositores - não só musicais, mas compositores de
arte - ocidentais. Para a música, se iniciou a pesquisa no trabalho de Messian, mas
em pouco também foi deixado de lado pelo seu forte caráter cristão, que não fazia
sentido para os japoneses. Então passou-se a olhar o trabalho de Jolivet. Esse de
fato trazia algo de familiar para o grupo: “[…] atonalidade e assimetria rítmica, e uma
noção de fé universal que era livre da magia terrível e misteriosa do Cristo de
Messian.” (GALLIANO, 2002, p. 152). Junto com Takemitsu, Yuasa Jōji (1929- )
contribuiu para a compreensão do pequeno grupo sobre as diferenças conceituais
sobre o tempo ocidental e oriental, além de ser o único no grupo com experiência
13
dentro da música tradicional japonesa, uma vez que havia participado do teatro nō e
da prática de canto utai. Reafirmando a característica de inter-relação do grupo, os
integrantes do Jikkenkōbbō trocavam entre si não só sua arte mas suas experiencias
de vida e conhecimentos culturais. Dentro desse grupo, Takemitsu consegue um
contato maior com a sua tradição e inicia seus trabalhos de composição.
Jikkenkōbbō foi oficialmente fundado em 1951, e tinha na sua formação original os
compositores Yuasa Joji,Toru Takemitsu, Fukushima Kazuo e Suzuki Hiroyoshi; o
crítico de arte Akiyama Kuniharo; o pintor Yamaguchi Kasuhiro; o fotógrafo Ōtsuji
Kiyoshi; designer de iluminação Imai Naotsugu e o perfomer Sonoda Takahiro
(GALLIANO, 2002, p. 151). Posteriormente o compositor Sato Ken`ijiro entra no
grupo e Fukushima deixa-o.
No final da década de 50 o cenário musical de Tóquio estava mudado, mais
rico e variado, com bastante atividade musical, e o grupo Jikkenkōbbō sentiu que
deveria encerrar e que seus integrantes procurassem novas ideias e maneiras de
realizar o próprio trabalho. Importante também ressaltarmos aqui que a obra
Requiem (1957), de Takemitsu, teve papel importantíssimo, junto com a obra do
mesmo ano, Naishokkakutei Uchū (Cosmic Haptic) de Yuasa, para afirmar a
qualidade da arte e cultura japonesa perante o ocidente e inspirar os japoneses a
fazerem música contemporânea, agora que os olhos do mundo haviam se voltado
para esses dois compositores.
Takemitsu inicia então sua pesquisa sonora, tendo como mote ainda a
junção ocidente e oriente através da combinação de formatos tradicionais e
tecnologias novas de sua época. Uma das obras que simboliza muito bem esse
conceito é a Stanza II (1971) em que usa como instrumentação harpa e fita
magnética, adicionando elementos pré-gravados e ruídos da cidade, carros, pessoas
falando na rua.
Seus trabalhos orquestrais foram premiados mundialmente e se fizeram
eternos através do uso como trilha sonora para diversos filmes, incluindo alguns do
diretor Akira Kurosawa, como o aclamado Ran (1985).

14
4 Sobre os harmônicos

Para este trabalho será explicada a técnica de harmônicos artificiais,


recorrentemente usada por Toru Takemitsu em All in Twilight.
O termo “harmônico”, quando usado no contexto do violão, significa uma
técnica de obtenção sonora de uma nota ao posicionar o dedo em partes específicas
de uma corda, sem apertá-la totalmente. Essas partes específicas estão explicadas
por Pitágoras em seu monocórdio, que define as proporções de divisão de uma
corda com as notas que produzirá. Nos termos de vibração e frequência, por
exemplo, uma corda que vibra a uma frequência de X Hertz irá vibrar no dobro
dessa frequência, 2X Hertz, quando dividida na metade. Isso significa que soará
uma oitava acima de quando estava na sua extensão inicial. Um lá de 220hz, que é
o caso da quinta corda do violão, irá vibrar a 440hz quando dividida pela metade.
Essa divisão exata da metade de uma corda encontra-se na 12ª casa do violão, e se
temos a técnica normal de obtenção sonora dessa nota, que seria pressionar a

Figura 2 — Técnica de harmônico natural

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=nMeG7X8lSEs

corda na 12ª casa, tendo assim a duração da nota condicionada a quanto tempo
ficará pressionada a corda e ao decaimento natural do som do instrumento, o
harmônico proverá a mesma frequência mas com a possibilidade de prolongar o
som da nota, já que não há a necessidade de manter o dedo pressionando a corda.
Outra característica do harmônico é seu timbre diferenciado. Por se tratar de
diferenças subjetivas de som, que comumente irá nos levar a adjetivos de

15
sinestesia, como “som mais aveludado”, “mais claro” ou “mais escuro”, nos
reservaremos a entender que o harmônico tem sua sonoridade única.
Os harmônicos artificiais são harmônicos de notas que não podem ser
tocados com a corda solta e/ou são feitos com a corda pressionada em algum ponto.
Por exemplo, a nota fá não pode ser obtida com a técnica de harmônico simples
numa corda afinada em Mi, pois não existe nenhum lugar dela em que essa nota
ressoará com bom volume e distinção. Porém, ao pressionar a corda Mi na primeira
casa, fazendo com que a corda reduza de tamanho e obtenha agora a nota Fá como
fundamental, é possível obter o mesmo fá em harmônico na 13ª casa, que será a
metade da corda. Assim é viável obter qualquer nota desejada com o timbre de
harmônico, mas o artificial em especial terá sua duração condicionada ao tempo que
a corda está sendo pressionada.
A técnica simples do harmônico consiste em posicionar levemente um dedo
da mão esquerda (para os destros) sobre um ponto específico da corda, por
exemplo na sua metade exata, e então dedilhar ou palhetar essa corda. O dedo que
está levemente posicionado sobre a corda pode então ser retirado dela ou mantido,
a critério de quem toca. O harmônico artificial também é obtido com o leve
posicionamento de um dedo sobre a corda, mas será feito pela mão direita (destros),
uma vez que a mão esquerda estará pressionando a corda em um ponto específico
distinto. Ao mesmo tempo que amplia o cardápio de notas que podem ser tocadas
com esse timbre, o harmônico artificial requer uma técnica mais complexa, exigindo
mais precisão da mão direita. A figura 2 ilustra a técnica de harmônico natural,
retirada de um vídeo do violonista Fábio Lima. Na marcação de 1 minuto e 30
segundos do vídeo o mesmo irá demonstrar a técnica de harmônico artificial.
O que isso possibilita para Takemitsu, além do timbre diferenciado que o
harmônico produz, é a extensão do registro alcançável nas primeiras posições do
instrumento. No segundo compasso da peça All in Twilight (figura 5), por exemplo, a
mão esquerda está fixa na segunda posição, com uma pestana na primeira casa,
mas a extensão das notas escritas é impossível de ser tocada sem o recurso do
harmônico artificial - aliás foram compostas para serem tocadas dessa maneira - ou
seja, não é só um capricho de timbre, é elemento fundamental da escrita de
Takemitsu para violão.

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Figura 5 — Compasso 2 e 3 de All in Twilight

Fonte: Elaboração do autor a partir do recorte da


partitura original publicada por Schott Music, 2007

Na partitura estará indicado o uso do harmônico artificial pela abreviação “Art


Harm” e pela diferenciação na cabeça da figura, que se mantém não preenchida e
quadrada. Outro trecho que utiliza essa técnica, entre tantos outros presentes na
obra, é no quarto movimento, como mostra a figura 6.

Figura 6 — Compassos 18 a 21 do quarto movimento de All in Twilight

Fonte: Elaboração do autor a partir do recorte da


partitura original publicada por Schott Music, 2007

É possível notar que Takemitsu cria duas linhas melódicas, uma que
acontece na região aguda da partitura realizada somente com harmônicos e outra
que acontece na região média, que sempre termina com um harmônico também,
mas esse está na mesma região de frequência que as notas do mesmo trecho. A
primeira está marcada com o quadrado vermelho e a segunda com o quadrado azul
na figura 6. Esse trecho é tocado alternando entre a quinta e a sétima posição de
mão esquerda, mas o registro que Takemitsu utiliza vai muito além ao criar a linha
melódica superior, que tem como nota mais aguda um dó sustenido, obtido
pressionando a nona casa da primeira corda afinada em mi natural e tocando com o
dedo indicador da mão direita levemente encostando na mesma corda, numa região

17
na qual já não temos mais trastes no instrumento, na exata metade entre a nona
casa pressionada e o cavalete do violão. Também utilizará harmônicos naturais
presentes na sétima casa da quinta e sexta corda, que são os harmônicos que
produzem o intervalo de quinta justa em relação à nota fundamental da corda.

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5 Sobre o som e o silêncio

A valorização pelo momento presente se expressa na música japonesa


através de dois aspectos: timbre e pausa (KATO, 2007, p. 106). Ambos são
personagens principais na composição All in Twilight, composta para violão solo por
Takemitsu, em 1987. Diferente da arquitetura musical típica do ocidente, em que a
lógica musical está em primeiro plano e a sonoridade em segundo, Takemitsu lança
mão da sonoridade como elemento principal de sua música. Kato exemplifica essa
oposição, ao afirmar que

[…] a fuga de Bach pode ser tocada tanto com um instrumento musical
antigo quando com um piano posterior ao século XIX. Com certeza, os
timbres são bem diferentes, mas a beleza estrutural da fuga não muda. Ao
contrário, o encanto da música de timbre manifesta-se maravilhosamente
mesmo sem ouvir tudo, em cada momento, separado do que vem antes e
do que vem depois. Porém, não se consegue mudar o instrumento musical
(KATO, 2007, p. 109).

Quando Takemitsu compõe para violão, um instrumento típico ocidental do


século XX, está simbolizando a união do Ocidente com o Oriente tão procurada pela
cultura japonesa ao longo do século XX, e agora apresentada por alguém do
Oriente, que não só irá se apropriar de um instrumento diferente de sua tradição
mas que irá enxergá-lo a partir do seu próprio ponto de vista. Nessa tarefa Takemitsu
contou sempre com o apoio dos violonistas Shin-Ichi Fukuda e Leo Brouwer.
Em diferentes momentos da obra de Takemitsu é possível apontarmos o uso
do silêncio e do timbre, como já discorremos. Comecemos pelo começo: os
primeiros compasso do primeiro movimento de All in Twilight (figura 7).

Figura 7 — Compassos 1 a 3 do primeiro movimento de All in Twilight

Fonte: Elaboração do autor a partir do recorte da


partitura original publicada por Schott Music, 2007

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A primeira nota do primeiro compasso (quadrado vermelho) é um mi natural
que deve ser tocado como um harmônico na quinta corda, sétima casa. Em seguida
toca-se o mesmo mi natural mas com outro timbre. O segundo mi é formado tocando
a primeira corda solta e a sexta corda com o harmônico na décima segunda casa. O
primeiro mi é poco mf, ou seja, pouco meio forte, expressão subjetiva de dinâmica,
ou volume, e o segundo é p, de piano, sugerindo uma dinâmica mais baixa. Porém o
segundo mi é formado por dois “mis" de registros diferentes, e essa soma
naturalmente traz mais volume, mas Takemitsu pede que seja o oposto. Temos
então dois timbres diferentes para a mesma nota, um timbre formado por um som e
outro composto, formado pela somatória de dois sons. No segundo compasso
(quadrado verde) temos seis notas em semicolcheias, agrupadas de duas em duas
notas. As figuras que não são pretas, que contém apenas o contorno da cabeça e
essa é quadrada, indicam os harmônicos a serem usados, nesse caso a primeira,
quinta e sexta nota do segundo compasso. Olhando por agrupamentos de duas
notas, o primeiro grupo é formado por um harmônico artificial e uma nota de técnica
comum, o segundo por duas notas tocadas normalmente e o terceiro por dois
harmônicos artificiais. Nos termos da harmonia tradicional são dois compassos sem
nota em comum, que dão a impressão de momentos únicos, diferentes, e sem
conexão. A dinâmica do segundo compasso começa em meio forte, cresce e diminui
rapidamente, fazendo com que as últimas notas soem menos na sustentação. O
terceiro compasso (quadrado azul) nada mais é do que a sustentação de todas as
notas do compasso anterior, denominada aqui como “resultante sonora”, um
intervalo entre os momentos sonoros dos dois primeiros compassos com o que virá,
mas não é uma pausa de silêncio pois ainda ressoam as notas do segundo
compasso. Nos três compassos já temos exemplos de variação e complexidade de
timbre, na medida que Takemitsu mescla técnica ordinária com técnica estendida de
harmônicos artificiais para obter uma resultante sonora mais complexa; temos
exemplo de intervalo sonoro, com a suspensão da resultante sonora por um
compasso inteiro. Essa sustentação pode gerar - e aí dependemos também da
atenção e disponibilidade do ouvinte - um momento reflexivo: o que virá a seguir?
Também pode ser entendido com o encerramento de um momento sonoro, pois no
quarto compasso (figura 8), seguinte aos três que vimos agora, o compositor irá

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trazer uma sonoridade mais agressiva e dissonante em relação ao começo, como
que atravessando a suspensão deixada no terceiro compasso.
Do ponto de vista do timbre, temos uma dualidade que remete ao primeiro

Figura 8 — Compasso 4 do primeiro movimento da obra All in Twilight

Fonte: Recorte da partitura original publicada por


Schott Music, 2007

compasso: um primeiro ataque meio forte e um segundo mais delicado. Takemitsu


enfatiza ainda mais a diferença entre os dois ataque ao sugerir que o primeiro seja
feito com a mão direita (para os destros) na região próxima ao cavalete do
instrumento, tendo como resultado uma sonoridade metálica, média-aguda, ainda
que tocando a nota lá na segunda linha complementar inferior, que se encontra no
registro de médio-grave (220hz). A distribuição das notas que formam o primeiro
ataque é visualmente oposta ao segundo ataque. Num pequeno gráfico temos a
ilustração da dualidade proposta por Takemitsu como mostrada na figura 9.

Figura 9 — Gráfico ilustrativo da oposição do quarto


compasso da obra All in Twilight

Fonte: Elaboração do autor

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Para finalizar a oposição, o segundo ataque deve ser tocado perto dos trates
do violão, tasto, fazendo com que a mão direita se desloque de uma região extrema
da corda para uma região central, que trará harmônicos mais graves para o som,
dando a sensação de um som mais cheio, ainda que seja constituída por menos
notas que o primeiro ataque e também tenha notas numa mesma região média, em
contraste a abertura mais extensa do primeiro ataque.
Essa dualidade, se valorizada na performance, traz a qualidade interruptiva
de uma ideia pelo seu oposto, como um corte cinematográfico entre cenas que
aparentemente não se conectam. O timbre do segundo ataque ganha mais destaque
porque o seu oposto foi apresentado antes.
Se pegarmos agora os três primeiros compassos anteriores e relacionarmos
com esse quarto compasso teremos a expressão da ideia de tempo cíclico
apresentada por Galliano. Instantes únicos que existem simultaneamente. O quarto
compasso não é fruto dos três primeiros compassos, não existe uma relação de
causalidade, nem uma cronologia. Fazem parte de um mesmo presente.
Vimos como timbre e pausa existem como elementos fundamentais na
composição de Takemitsu nesses quatro primeiros compassos, e daremos enfoque
agora somente no timbre. Para isso, iremos usar o segundo movimento de All in
Twilight. O compositor sugere a palavra Dark na partitura (figura 10), e isso por si só
já contextualiza o modo de se tocar a peça e consequentemente o timbre. Dark
nessa peça pode influenciar o timbre na medida que sugere a penumbra, uma
música “escura” como imaginando a noite.

Figura 10 — Compassos 1 a 5 do segundo movimento da obra All in Twilight

Fonte: Recorte da partitura original publicada por


Schott Music, 2007

Isso faz sentido com o nome da peça, All in Twilight, ou em português, “tudo
no crepúsculo”. “Dark" seria então o momento de escuridão no final do crepúsculo,
que também representa um intervalo de transição importante durante o ciclo diário,
em que se encerra o período diurno e se inicia o período noturno. Termos um
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momento de transição como título da peça também é uma maneira de expressar o
Ma pois traz em evidência esse processo que acontece todos os dias, e sua
contemplação nada mais é do que estar no presente, no agora. O crepúsculo pode
ser entendido, aqui, como a existência concomitante de dois momentos opostos: dia
e noite. A peça também faz referência a obra do pintor expressionista Paul Klee
(WADE, 2014, p.3), chamada “Tropical Twilight” , de 1921 (figura 11).

Figura 11 — Tropical Twilight, Paul Klee, 1921

Fonte: https://www.wikiart.org/en/paul-klee/tropical-twilight-1921

Vamos fazer apenas uma conexão entre a composição de Takemitsu e o


quadro de Paul Klee, sabendo que muitas outras podem ser feitas mas não trarão
conteúdo relacionado diretamente com o que estamos analisando na música, que é
a expressão do Ma. Relacionamos então o uso da palavra “dark” feito por Takemitsu
com a parte mais escura do quadro de Klee, que preenche uma parte importante da
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pintura, justamente a parte do crepúsculo que já virou noite e cerca as plantas de
escuridão. Nesse escuro está a “magia das sombras”5, como se existisse no quadro
uma pausa de cores, intervalo entre céu e natureza, e que existe simultaneamente
com o final do tempo diurno, representado pelos tons azulados e esverdeados da
parte superior da tela. Com apenas uma palavra Takemitsu situa a música no espaço
e no tempo.
Notemos também que a peça demanda que a quinta corda do violão esteja
afinada na nota sol, um tom mais grave que a nota Lá que é usada de referencia
para afinação padrão do violão. Ao mudar a nota fundamental dessa corda, espera-
se novas ressonâncias entre as cordas do instrumento. Quando afinada em Lá, a
mesma irá fazer vibrar, quando tocada, as cordas afinadas em Mi, e isso é explicado
pelo fenômeno da “série harmônica”, que “[…] é o conjunto de ondas composto da
frequência fundamental e de todos os múltiplos inteiros desta frequência.” (SÉRIE
harmônica, 2021). Portanto, quando temos a quinta corda afinada em Sol, e essa
nota será recorrente no segundo movimento, obtemos uma nova série harmônica no
violão. Esses dois fatores apontados até agora mostram o timbre como preocupação
primária de Takemitsu.
O seguinte trecho nos mostra como ele trabalha a variação de timbres de
maneira subjetiva:

Figura 12 — Compassos 55 a 64 do segundo movimento da obra All in Twilight

Fonte: Recorte da partitura original publicada por Schott Music, 2007

5 Onde está a chave desse mistério? Para dizer a verdade, na magia das sombras. Se a sombra
originada em recessos e recantos fosse sumariamente banida, o nicho reverteria de imediato à
condição de simples espaço vazio. A genialidade de nossos antepassados escureceu
propositalmente um espaço vazio e conferiu ao mundo de sombras que ali se formou profundeza e
sutilidade que superam qualquer mural ou peça decorativa (TANIZAKI, 1933, p. 40).


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Ainda no segundo movimento, mas agora nos últimos compassos (figura 13),
Takemitsu realiza uma repetição com variação. Repetição pois dos oito últimos
compassos (desconsiderando o último, que é a cadência final), os quatro primeiros
se repetem nos outros quatro compassos. Apesar de já estarmos no final da peça,
numeraremos os compassos de 1 a 9, a título de análise.

Figura 13 — Compassos 55 a 58 do segundo movimento da obra All in Twilight

1 3

Fonte: Recorte da partitura original publicada por Schott Music, 2007

A dinâmica dos quatro primeiros compassos é mais forte, começando em


piano e terminando em forte. Já a segunda começa em pianíssimo e termina em
mezzo forte. Mas a indicação de as echo, como um eco, eleva o trecho da condição
de repetição para uma nova relação entre partes. Takemitsu quer que o trecho soe
como uma reverberação do que foi tocado no momento, tendo como ferramenta
primeira a dinâmica, que consequentemente afetará o timbre, mas a indicação
subjetiva as echo que está colocada no compasso 5 traz a escolha da intenção com
que o interprete deve realizar, ou da sonoridade da música em si, e isso deve ser
tomado como necessário para a execução da peça.

Figura 14 — Compassos 59 a 62 do segundo movimento da obra All in Twilight

Fonte: Elaboração do autor a partir do recorte da partitura original publicada por


Schott Music, 2007

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O que se espera dessa indicação é que a repetição seja ouvida como
reverberação, como se lançássemos as notas para as montanhas e as ouvíssemos
de volta. Aqui a relação de timbre e intervalo se mistura, pois ao trazer essa figura
do eco, Takemitsu suspende a música no tempo, um momento para ouvirmos de
volta o som que lançamos no espaço.

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6 Considerações finais

Entender o Ma, ainda que uma parte pequena dele, é uma maneira de
entender como se organiza a composição tradicional e contemporânea de música
japonesa e de compositores ocidentais que tiveram contato com a cultura japonesa
em meados do século XX. Quando timbre e silêncio tomam a maior importância na
música naturalmente essa será organizada de um modo diferente àquelas que se
organizam colocando a estrutura como elemento principal, e na música de Takemitsu
para violão solo isso acontece majoritariamente através da utilização de harmônicos
artificiais e de resultantes sonoras. O que se destaca aqui é como Takemitsu usa os
harmônicos e como ele se apropria do violão, visualizando no instrumento a sua
própria identidade de composição e pesquisando, a sua maneira, novas sonoridades
de um instrumento largamente disseminado na cultura ocidental. Sabendo das
características do Ma e sabendo também que ele está presente na peça All in
Twilight, é trabalho do interprete buscá-lo e, mais que tudo, experiencia-lo. Assim
transmitirá, se o ouvinte se permitir escutar, o ma, quando é possível que exista
surpresa nas pequenas e grandes mudanças da música e da vida, e que aproveitar
e viver o momento presente é o caminho para encontrar respostas de perguntas que
não conseguimos responder.
Outro aspecto relevante que o Ma agrega na música japonesa é a
compreensão do som como parte da natureza. A possibilidade de haver som na
natureza é eterna, diferentes timbres que formam uma floresta, o fluir do rio e seu
constante ruído, canto dos pássaros e zunidos dos besouros, um forte trovão e sua
reverberação, o eco de um latido nas montanhas, ou até os sons de um organismo
vivo como a cidade estão cheios de música e Ma. E no momento que entendemos
que somos parte da natureza que nos cerca, experienciamos o divino, e assim
nossa música também é de alguma forma a música da natureza e a música divina.

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Referências

CHENETTE, Jonathan Lee. The Concept of Ma and the Music of Takemitsu.


Grinell: Grinell College,1985.

FUBINI, Enrico. Estética da Música. Tradução: Sandra Escobar. Lisboa: Edições


70, 2008.

GALLIANO, Luciana. Yogaku: Japanese Music of the Twentieth Century.


Tradução: Martin Mayes. Londres: The Scarecrow Press, 2002.

KATO, Shuichi. Tempo e Espaço na Cultura Japonesa. Tradução: Neide Nagae e


Fernando Chamas. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.

OKANO, Michiko. Ma: Entre-Espaço da Comunicação no Japão. Tese (Doutorado


em Comunicação e Semiótica) - Pontifícia universidade de São Paulo. PUC - SP São
Paulo, 2007.

PEIRCE, Charles S. Collected papers of Charles S. Peirce. C. Harthorne; P. Weiss


(Ed.), v. 1-6; W. Burks (Ed.) , v. 7-8. Cambridge: Harvard University Press, 1931-58.

SÉRIE harmônica (musica) In: Wikipedia: a enciclopédia livre, 24 ago. 2021.


Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Série_harmônica_(música)> acesso em:
19 de out de 2021

TAKEMITSU, Toru. Confronting Silence. California: Fallen Leaf Press, 1995.

TANIZAKI Junichiro. Em Louvor da Sombra. Tradução: Leiko Gotoda. São Paulo:


Companhia das Letras, 2007.

WADE, Graham. Toru Takemitsu Original Solo Guitar Works. Tóquio: Gendai
Guitar, 2014.

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