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SÃO PAULO
2021
RUBENS SPEGIORIN ADATI
SÃO PAULO
2021
Sumário
1 Introdução 6
2 Sobre o Ma 9
3 Sobre Toru Takemitsu 12
4 Sobre os harmônicos 15
5 Sobre o som e o silêncio 19
6 Considerações finais 27
Referências 28
ADATI, Rubens Spegiorin. Toru Takemitsu e o Ma: estudo sobre a expressão do Ma
na composição para violão solo de Toru Takemitsu. 2021. Trabalho de Conclusão de
Curso (Bacharelado em Violão Popular) - Faculdade Santa Marcelina, São Paulo,
2021.
Resumo
1 TANIZAKI, Junichiro. Em Louvor da Sombra. Tradução Leiko Gotoda. São Paulo: Penguin
Companhia, 2017.
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móveis e indiferentes em sua aparência, a sombra é valorizada em pequenos nichos
que adentram a parede da sala (tokonoma, figura 1), feitos para se pendurar um rolo
de papel com uma pintura ou exercício
caligráfico, cujo conteúdo se relaciona com Figura 1— tokonoma com bonsai
o ambiente (kakejiku) e talvez uma planta
(bonsai ou ikebana). Essas reentrâncias
da arquitetura japonesa mostram mais
ainda o apreço pela sombra. A iluminação
feita por velas nas noites revela um mundo
de possibilidades que estão ocultas na
presença da luz. A sombra é a
possibilidade: como não enxergamos o
que existe nela, nela tudo pode existir2.
Michiko Okano, já em 2007,
buscará uma maneira de entender o Ma
através da semiótica de Charles Sanders
Peirce, relacionando-o com a arquitetura
japonesa, em outros termos, com a
concepção espacial nipônica. Jonathan
Lee Chenette irá buscar diretamente o Ma Fonte: https://www.interactiongreen.com/kyoto-
na obra de Takemitsu, afirmando que ele chashitsu/yuhikaku-tokonoma-2/
2 Onde está a chave desse mistério? Para dizer a verdade, na magia das sombras. Se a sombra
originada em recessos e recantos fosse sumariamente banida, o nicho reverteria de imediato à
condição de simples espaço vazio. A genialidade de nossos antepassados escureceu propositalmente
um espaço vazio e conferiu ao mundo de sombras que ali se formou profundeza e sutilidade que
superam qualquer mural ou peça decorativa. (TANIZAKI, 1933, p. 40)
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empregando sua bagagem cultural em um instrumento que não fez parte de sua
história.
Timbre e silêncio são destaques no conjunto de obras de Takemitsu, e aqui
entenderemos por que e como são utilizados.
Ainda há uma parte desse trabalho que se afirma na condição de ser
mestiço, pois na origem do autor, parte da família é japonesa, que vive em São
Paulo, cidade que possui um bairro inteiro marcado pela presença japonesa e
asiática como um todo. Portanto, há um esforço do autor em entender de onde vem
seus traços, seus gostos, seu passado. Fiquemos atentos, no entanto, que tal busca
não trará respostas claras, objetivas e lógicas, mas sim instigará em nós o desejo de
entender qual a nossa própria relação com o tempo, com o espaço, com som e
silêncio, luz e sombra. Também é motivo dessa busca a abertura sensorial para
captar o Ma que pode existir em qualquer lugar, pois é frágil e efêmero, e não
existirá se não estivermos também disponíveis em nossa atenção, como telas em
branco que permitem ser rascunhadas. Para senti-lo é necessário sê-lo também.
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2 Sobre o Ma
Um curto ou longo período pode ser entendido como o agora, tendo sempre em vista
a igualdade aqui = agora budista, que inclui o espaço como elemento necessário
para a existência do tempo.
A não-conceituação do Ma também está ligada ao Budismo porque a
racionalização de algo como o Ma resultaria na sua objetificação:
9
por acontecer. A única realidade ‘concreta' (e isso é um aspecto complexo
do pensamento budista por si só) é aquela do "presente momento", que
surge e desaparece como vapor ou como uma imagem refletida na água.
(GALLIANO, 2002, p. 13, tradução nossa)3.
Não existe apenas a visualização do tempo como a linha reta infinita, mas como
cíclico também, que remonta à vida no campo, no interior, muito pautado nas quatro
estações do ano, como escreve Kato:
Para compreender mais a fundo a visão sobre o tempo como cíclico na tradição
japonesa, Galliano discorre: “Os japoneses pensam o tempo como sendo circular e
feito de instantes únicos que existem simultaneamente, e pensam a realidade como
sendo de uma natureza impermanente e transitória.” (GALLIANO, 2002, p. 12,
tradução nossa)4.
Shuichi Kato, em seu livro Tempo e Espaço na Cultura Japonesa (2007) irá
apresentar ainda uma terceira compreensão de tempo, relacionado a brevidade da
vida, que contém um início e um fim claros, nascimento e morte, sugerindo a
apreciação pelo “aqui = agora”, ainda que nos termos de um “agora” elástico.
A fim de termos uma base lógica e racional que possibilite a investigação de
um assunto irracional como o Ma, usaremos como referência a teoria da semiótica
de Charles Sanders Peirce, mais especificamente sua categorização do universo
nas categorias Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, descritas no ensaio Sobre
uma nova lista de categorias, de 1867. Nos ateremos neste trabalho somente a essa
parte da teoria. Resumidamente, a teoria peirciana irá organizar as experiencias
fenomenológicas em três graus e o estudo do Ma é possível de ser feito nos termos
da Primeiridade, pois abordará as coisas que existem como possibilidade no
3 […] time is perceived with the same degree of false objectivity as that with which each individual
forms their own perception of themselves. For the Buddhist this concept of time is a meaningless
concept. Like the concept of self, it is a product of the mind in the same way that the past or future are,
for the past is something that has ceased to exist and the future has yet to happen. The only concrete
"reality" (and this in itself is a complex aspect of Buddhist thought) is that of the "present moment,"
which arises and disappears like vapor or an image reflected on water. (GALLIANO, 2002, p.13)
4 The Japanese think of time as being circular and made up of single instants all of which exist
simultaneously, and of reality as being of a transitory and impermanent nature. (GALLIANO, 2002,
p.12).
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universo, uma pré-existência, uma qualidade de vir a ser. Nesse aspecto, o Ma é a
sugestão de algo, uma “[…] mera possibilidade […]” (OKANO, 2007, p. 10). Unindo o
modus operandi japonês com a teoria peirciana é possível que compreendamos do
que se trata essa qualidade sugestiva do comportamento nipônico e como ela se
manifesta na música de Toru Takemitsu, tendo como expressões principais o silêncio
e o timbre.
A qualidade sugestiva do silêncio é trabalhada na obra All in Twilight de Toru
Takemitsu de modo consciente, ainda que pautada no Ma, que se afasta da
racionalidade. Takemitsu não escreve símbolos de pausa, mas deixa que as notas
ressoem por determinado tempo, criando uma atmosfera sonora de momento de
silêncio, e quando trabalhamos mentalmente durante esse momento de intervalo,
fazendo ressoar em nossa mente o que foi tocado e imaginando o que virá em
seguida, com atenção voltada para esse momento, experimentamos de certa
maneira o Ma. Uma das características do intervalo sonoro japonês que se relaciona
com a arquitetura tradicional é a sensação de eternidade, de não perceber o passar
do tempo. Tanizaki, em Em Louvor das Sombras (1933) explica:
Essas conexões entre música e arquitetura reforçam mais ainda a igualdade aqui =
agora, arquitetura como arte do espaço e música como arte do tempo. O apreço
pelo “agora” se expressa na valorização do timbre e da pausa, como já mencionado.
Shuichi Kato define isso quando diz: “A estrutura (da composição) liga-se ao fluir do
tempo de uma composição musical como um todo, mas tanto o ‘timbre’ como a
‘pausa’ ligam-se a partes do fluir, ou seja, ao presente de cada momento.” (KATO,
2007, p. 110). Essa relação do “agora” com o timbre de um instrumento será o
assunto de um próximo capítulo.
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3 Sobre Toru Takemitsu
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a exposição “Ma: Espace - Temps du Japon” é realizada em Paris, no ano de 1978,
como fruto da estratégia politica do
Um dos artistas que contribuíram para essa exposição foi Toru Takemitsu, propondo
“[…] ’a Música Tradicional e Contemporânea Japonesa’ […]” (OKANO, 2007, P. 24).
Através dessa exposição iniciou-se um contato ambivalente entre culturas, e o Ma
era objeto principal de pesquisa, o que instigou os próprios artistas japoneses a
pensar sobre ele e como se manifestava em suas artes. Apesar de Takemitsu ter
participado ativamente, o foco de tal exposição era mais arquitetônico, dando ênfase
nos espaços japoneses. Se para o ministro francês a exposição era uma maneira
de trazer Paris para o centro das atenções novamente, para o Japão era uma
oportunidade de se mostrar para o ocidente, numa época de “ […] franco
desenvolvimento […]” (OKANO, 2007, p. 24).
É importante falarmos aqui da participação de Takemitsu no Jikkenkōbbō,
movimento de vanguarda japonês do pós-guerra. O nome do movimento pode ser
traduzido para o português em “Laboratório Experimental”, e não só a música mas a
poesia e as artes plásticas também compartilhavam desse ambiente. Esse
movimento buscava sempre a síntese de elementos audiovisuais, uma inter-relação
entre os gêneros artísticos. Assim como Takemitsu, os outros integrantes desse
movimento também desprezavam a parte da cultura japonesa que havia sido
utilizada como propaganda política antes e durante a guerra, e em um primeiro
momento procuravam mais os compositores - não só musicais, mas compositores de
arte - ocidentais. Para a música, se iniciou a pesquisa no trabalho de Messian, mas
em pouco também foi deixado de lado pelo seu forte caráter cristão, que não fazia
sentido para os japoneses. Então passou-se a olhar o trabalho de Jolivet. Esse de
fato trazia algo de familiar para o grupo: “[…] atonalidade e assimetria rítmica, e uma
noção de fé universal que era livre da magia terrível e misteriosa do Cristo de
Messian.” (GALLIANO, 2002, p. 152). Junto com Takemitsu, Yuasa Jōji (1929- )
contribuiu para a compreensão do pequeno grupo sobre as diferenças conceituais
sobre o tempo ocidental e oriental, além de ser o único no grupo com experiência
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dentro da música tradicional japonesa, uma vez que havia participado do teatro nō e
da prática de canto utai. Reafirmando a característica de inter-relação do grupo, os
integrantes do Jikkenkōbbō trocavam entre si não só sua arte mas suas experiencias
de vida e conhecimentos culturais. Dentro desse grupo, Takemitsu consegue um
contato maior com a sua tradição e inicia seus trabalhos de composição.
Jikkenkōbbō foi oficialmente fundado em 1951, e tinha na sua formação original os
compositores Yuasa Joji,Toru Takemitsu, Fukushima Kazuo e Suzuki Hiroyoshi; o
crítico de arte Akiyama Kuniharo; o pintor Yamaguchi Kasuhiro; o fotógrafo Ōtsuji
Kiyoshi; designer de iluminação Imai Naotsugu e o perfomer Sonoda Takahiro
(GALLIANO, 2002, p. 151). Posteriormente o compositor Sato Ken`ijiro entra no
grupo e Fukushima deixa-o.
No final da década de 50 o cenário musical de Tóquio estava mudado, mais
rico e variado, com bastante atividade musical, e o grupo Jikkenkōbbō sentiu que
deveria encerrar e que seus integrantes procurassem novas ideias e maneiras de
realizar o próprio trabalho. Importante também ressaltarmos aqui que a obra
Requiem (1957), de Takemitsu, teve papel importantíssimo, junto com a obra do
mesmo ano, Naishokkakutei Uchū (Cosmic Haptic) de Yuasa, para afirmar a
qualidade da arte e cultura japonesa perante o ocidente e inspirar os japoneses a
fazerem música contemporânea, agora que os olhos do mundo haviam se voltado
para esses dois compositores.
Takemitsu inicia então sua pesquisa sonora, tendo como mote ainda a
junção ocidente e oriente através da combinação de formatos tradicionais e
tecnologias novas de sua época. Uma das obras que simboliza muito bem esse
conceito é a Stanza II (1971) em que usa como instrumentação harpa e fita
magnética, adicionando elementos pré-gravados e ruídos da cidade, carros, pessoas
falando na rua.
Seus trabalhos orquestrais foram premiados mundialmente e se fizeram
eternos através do uso como trilha sonora para diversos filmes, incluindo alguns do
diretor Akira Kurosawa, como o aclamado Ran (1985).
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4 Sobre os harmônicos
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=nMeG7X8lSEs
corda na 12ª casa, tendo assim a duração da nota condicionada a quanto tempo
ficará pressionada a corda e ao decaimento natural do som do instrumento, o
harmônico proverá a mesma frequência mas com a possibilidade de prolongar o
som da nota, já que não há a necessidade de manter o dedo pressionando a corda.
Outra característica do harmônico é seu timbre diferenciado. Por se tratar de
diferenças subjetivas de som, que comumente irá nos levar a adjetivos de
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sinestesia, como “som mais aveludado”, “mais claro” ou “mais escuro”, nos
reservaremos a entender que o harmônico tem sua sonoridade única.
Os harmônicos artificiais são harmônicos de notas que não podem ser
tocados com a corda solta e/ou são feitos com a corda pressionada em algum ponto.
Por exemplo, a nota fá não pode ser obtida com a técnica de harmônico simples
numa corda afinada em Mi, pois não existe nenhum lugar dela em que essa nota
ressoará com bom volume e distinção. Porém, ao pressionar a corda Mi na primeira
casa, fazendo com que a corda reduza de tamanho e obtenha agora a nota Fá como
fundamental, é possível obter o mesmo fá em harmônico na 13ª casa, que será a
metade da corda. Assim é viável obter qualquer nota desejada com o timbre de
harmônico, mas o artificial em especial terá sua duração condicionada ao tempo que
a corda está sendo pressionada.
A técnica simples do harmônico consiste em posicionar levemente um dedo
da mão esquerda (para os destros) sobre um ponto específico da corda, por
exemplo na sua metade exata, e então dedilhar ou palhetar essa corda. O dedo que
está levemente posicionado sobre a corda pode então ser retirado dela ou mantido,
a critério de quem toca. O harmônico artificial também é obtido com o leve
posicionamento de um dedo sobre a corda, mas será feito pela mão direita (destros),
uma vez que a mão esquerda estará pressionando a corda em um ponto específico
distinto. Ao mesmo tempo que amplia o cardápio de notas que podem ser tocadas
com esse timbre, o harmônico artificial requer uma técnica mais complexa, exigindo
mais precisão da mão direita. A figura 2 ilustra a técnica de harmônico natural,
retirada de um vídeo do violonista Fábio Lima. Na marcação de 1 minuto e 30
segundos do vídeo o mesmo irá demonstrar a técnica de harmônico artificial.
O que isso possibilita para Takemitsu, além do timbre diferenciado que o
harmônico produz, é a extensão do registro alcançável nas primeiras posições do
instrumento. No segundo compasso da peça All in Twilight (figura 5), por exemplo, a
mão esquerda está fixa na segunda posição, com uma pestana na primeira casa,
mas a extensão das notas escritas é impossível de ser tocada sem o recurso do
harmônico artificial - aliás foram compostas para serem tocadas dessa maneira - ou
seja, não é só um capricho de timbre, é elemento fundamental da escrita de
Takemitsu para violão.
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Figura 5 — Compasso 2 e 3 de All in Twilight
É possível notar que Takemitsu cria duas linhas melódicas, uma que
acontece na região aguda da partitura realizada somente com harmônicos e outra
que acontece na região média, que sempre termina com um harmônico também,
mas esse está na mesma região de frequência que as notas do mesmo trecho. A
primeira está marcada com o quadrado vermelho e a segunda com o quadrado azul
na figura 6. Esse trecho é tocado alternando entre a quinta e a sétima posição de
mão esquerda, mas o registro que Takemitsu utiliza vai muito além ao criar a linha
melódica superior, que tem como nota mais aguda um dó sustenido, obtido
pressionando a nona casa da primeira corda afinada em mi natural e tocando com o
dedo indicador da mão direita levemente encostando na mesma corda, numa região
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na qual já não temos mais trastes no instrumento, na exata metade entre a nona
casa pressionada e o cavalete do violão. Também utilizará harmônicos naturais
presentes na sétima casa da quinta e sexta corda, que são os harmônicos que
produzem o intervalo de quinta justa em relação à nota fundamental da corda.
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5 Sobre o som e o silêncio
[…] a fuga de Bach pode ser tocada tanto com um instrumento musical
antigo quando com um piano posterior ao século XIX. Com certeza, os
timbres são bem diferentes, mas a beleza estrutural da fuga não muda. Ao
contrário, o encanto da música de timbre manifesta-se maravilhosamente
mesmo sem ouvir tudo, em cada momento, separado do que vem antes e
do que vem depois. Porém, não se consegue mudar o instrumento musical
(KATO, 2007, p. 109).
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A primeira nota do primeiro compasso (quadrado vermelho) é um mi natural
que deve ser tocado como um harmônico na quinta corda, sétima casa. Em seguida
toca-se o mesmo mi natural mas com outro timbre. O segundo mi é formado tocando
a primeira corda solta e a sexta corda com o harmônico na décima segunda casa. O
primeiro mi é poco mf, ou seja, pouco meio forte, expressão subjetiva de dinâmica,
ou volume, e o segundo é p, de piano, sugerindo uma dinâmica mais baixa. Porém o
segundo mi é formado por dois “mis" de registros diferentes, e essa soma
naturalmente traz mais volume, mas Takemitsu pede que seja o oposto. Temos
então dois timbres diferentes para a mesma nota, um timbre formado por um som e
outro composto, formado pela somatória de dois sons. No segundo compasso
(quadrado verde) temos seis notas em semicolcheias, agrupadas de duas em duas
notas. As figuras que não são pretas, que contém apenas o contorno da cabeça e
essa é quadrada, indicam os harmônicos a serem usados, nesse caso a primeira,
quinta e sexta nota do segundo compasso. Olhando por agrupamentos de duas
notas, o primeiro grupo é formado por um harmônico artificial e uma nota de técnica
comum, o segundo por duas notas tocadas normalmente e o terceiro por dois
harmônicos artificiais. Nos termos da harmonia tradicional são dois compassos sem
nota em comum, que dão a impressão de momentos únicos, diferentes, e sem
conexão. A dinâmica do segundo compasso começa em meio forte, cresce e diminui
rapidamente, fazendo com que as últimas notas soem menos na sustentação. O
terceiro compasso (quadrado azul) nada mais é do que a sustentação de todas as
notas do compasso anterior, denominada aqui como “resultante sonora”, um
intervalo entre os momentos sonoros dos dois primeiros compassos com o que virá,
mas não é uma pausa de silêncio pois ainda ressoam as notas do segundo
compasso. Nos três compassos já temos exemplos de variação e complexidade de
timbre, na medida que Takemitsu mescla técnica ordinária com técnica estendida de
harmônicos artificiais para obter uma resultante sonora mais complexa; temos
exemplo de intervalo sonoro, com a suspensão da resultante sonora por um
compasso inteiro. Essa sustentação pode gerar - e aí dependemos também da
atenção e disponibilidade do ouvinte - um momento reflexivo: o que virá a seguir?
Também pode ser entendido com o encerramento de um momento sonoro, pois no
quarto compasso (figura 8), seguinte aos três que vimos agora, o compositor irá
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trazer uma sonoridade mais agressiva e dissonante em relação ao começo, como
que atravessando a suspensão deixada no terceiro compasso.
Do ponto de vista do timbre, temos uma dualidade que remete ao primeiro
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Para finalizar a oposição, o segundo ataque deve ser tocado perto dos trates
do violão, tasto, fazendo com que a mão direita se desloque de uma região extrema
da corda para uma região central, que trará harmônicos mais graves para o som,
dando a sensação de um som mais cheio, ainda que seja constituída por menos
notas que o primeiro ataque e também tenha notas numa mesma região média, em
contraste a abertura mais extensa do primeiro ataque.
Essa dualidade, se valorizada na performance, traz a qualidade interruptiva
de uma ideia pelo seu oposto, como um corte cinematográfico entre cenas que
aparentemente não se conectam. O timbre do segundo ataque ganha mais destaque
porque o seu oposto foi apresentado antes.
Se pegarmos agora os três primeiros compassos anteriores e relacionarmos
com esse quarto compasso teremos a expressão da ideia de tempo cíclico
apresentada por Galliano. Instantes únicos que existem simultaneamente. O quarto
compasso não é fruto dos três primeiros compassos, não existe uma relação de
causalidade, nem uma cronologia. Fazem parte de um mesmo presente.
Vimos como timbre e pausa existem como elementos fundamentais na
composição de Takemitsu nesses quatro primeiros compassos, e daremos enfoque
agora somente no timbre. Para isso, iremos usar o segundo movimento de All in
Twilight. O compositor sugere a palavra Dark na partitura (figura 10), e isso por si só
já contextualiza o modo de se tocar a peça e consequentemente o timbre. Dark
nessa peça pode influenciar o timbre na medida que sugere a penumbra, uma
música “escura” como imaginando a noite.
Isso faz sentido com o nome da peça, All in Twilight, ou em português, “tudo
no crepúsculo”. “Dark" seria então o momento de escuridão no final do crepúsculo,
que também representa um intervalo de transição importante durante o ciclo diário,
em que se encerra o período diurno e se inicia o período noturno. Termos um
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momento de transição como título da peça também é uma maneira de expressar o
Ma pois traz em evidência esse processo que acontece todos os dias, e sua
contemplação nada mais é do que estar no presente, no agora. O crepúsculo pode
ser entendido, aqui, como a existência concomitante de dois momentos opostos: dia
e noite. A peça também faz referência a obra do pintor expressionista Paul Klee
(WADE, 2014, p.3), chamada “Tropical Twilight” , de 1921 (figura 11).
Fonte: https://www.wikiart.org/en/paul-klee/tropical-twilight-1921
5 Onde está a chave desse mistério? Para dizer a verdade, na magia das sombras. Se a sombra
originada em recessos e recantos fosse sumariamente banida, o nicho reverteria de imediato à
condição de simples espaço vazio. A genialidade de nossos antepassados escureceu
propositalmente um espaço vazio e conferiu ao mundo de sombras que ali se formou profundeza e
sutilidade que superam qualquer mural ou peça decorativa (TANIZAKI, 1933, p. 40).
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Ainda no segundo movimento, mas agora nos últimos compassos (figura 13),
Takemitsu realiza uma repetição com variação. Repetição pois dos oito últimos
compassos (desconsiderando o último, que é a cadência final), os quatro primeiros
se repetem nos outros quatro compassos. Apesar de já estarmos no final da peça,
numeraremos os compassos de 1 a 9, a título de análise.
1 3
25
O que se espera dessa indicação é que a repetição seja ouvida como
reverberação, como se lançássemos as notas para as montanhas e as ouvíssemos
de volta. Aqui a relação de timbre e intervalo se mistura, pois ao trazer essa figura
do eco, Takemitsu suspende a música no tempo, um momento para ouvirmos de
volta o som que lançamos no espaço.
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6 Considerações finais
Entender o Ma, ainda que uma parte pequena dele, é uma maneira de
entender como se organiza a composição tradicional e contemporânea de música
japonesa e de compositores ocidentais que tiveram contato com a cultura japonesa
em meados do século XX. Quando timbre e silêncio tomam a maior importância na
música naturalmente essa será organizada de um modo diferente àquelas que se
organizam colocando a estrutura como elemento principal, e na música de Takemitsu
para violão solo isso acontece majoritariamente através da utilização de harmônicos
artificiais e de resultantes sonoras. O que se destaca aqui é como Takemitsu usa os
harmônicos e como ele se apropria do violão, visualizando no instrumento a sua
própria identidade de composição e pesquisando, a sua maneira, novas sonoridades
de um instrumento largamente disseminado na cultura ocidental. Sabendo das
características do Ma e sabendo também que ele está presente na peça All in
Twilight, é trabalho do interprete buscá-lo e, mais que tudo, experiencia-lo. Assim
transmitirá, se o ouvinte se permitir escutar, o ma, quando é possível que exista
surpresa nas pequenas e grandes mudanças da música e da vida, e que aproveitar
e viver o momento presente é o caminho para encontrar respostas de perguntas que
não conseguimos responder.
Outro aspecto relevante que o Ma agrega na música japonesa é a
compreensão do som como parte da natureza. A possibilidade de haver som na
natureza é eterna, diferentes timbres que formam uma floresta, o fluir do rio e seu
constante ruído, canto dos pássaros e zunidos dos besouros, um forte trovão e sua
reverberação, o eco de um latido nas montanhas, ou até os sons de um organismo
vivo como a cidade estão cheios de música e Ma. E no momento que entendemos
que somos parte da natureza que nos cerca, experienciamos o divino, e assim
nossa música também é de alguma forma a música da natureza e a música divina.
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Referências
WADE, Graham. Toru Takemitsu Original Solo Guitar Works. Tóquio: Gendai
Guitar, 2014.
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