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ECOS

DE
CATÁSTROFES
O r g a n iz a d o r e s
At í l i o Ava n c i n i
Madalena Hashimoto
M i c h i ko O k a n o
ECOS
DE
CATÁSTROFES
O r g a n iz a d o r e s
At í l i o Ava n c i n i
Madalena Hashimoto
M i c h i ko O k a n o
ECOS
DE
CATÁSTROFES
O r g a n iz a d o r e s
At í l i o Ava n c i n i
Madalena Hashimoto
M i c h i ko O k a n o
Organização
Atílio Avancini
Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro
Michiko Okano

Tradução de “De Nagasaki para arquipélagos do tempo: a Nagasaki de


Shōmei Tōmatsu”, de Ryūta Imafuku
Lucas Gibson
Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro
Michiko Okano

Revisão
Atílio Avancini
Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro
Michiko Okano
Renata Manoni Castanho
Tikinet

Capa e projeto gráfico


Gustavo Nunes | Tikinet sobre imagem de Madalena Hashimoto

Comissão editorial
Cynthia Andersen Sarti (Universidade Federal de São Paulo)
Joel La Laina Sene (Universidade de São Paulo)
José Afonso Medeiros de Souza (Universidade Federal do Pará)
Marco Giannotti (Universidade de São Paulo)
Pedro Rabelo Erber (Universidade Waseda)
Rosana Pereira de Freitas (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Seth David Jacobowitz (Universidade do Estado do Texas)
Shiro Iyanaga (Universidade de Quioto para Estudos Estrangeiros)

Comissão técnica
João Kurohiji
Rafael Mariano Garcia
Alexandre Nakahara
Ryanddre Sampaio de Souza

ECA-USP Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo


Diretora: Prof.ª Dr.ª Brasilina Passarelli
Vice-diretor: Prof. Dr. Eduardo Monteiro

Avenida Professor Lúcio Martins Rodrigues, 443


Cidade Universitária
CEP 05508020
São Paulo-SP
Programa de Apoio à Pós-graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Proap-CAPES) para a produção e o aprofun-
damento do conhecimento e destinado pelo Programa de Pós-graduação
em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (PPGMPA-ECA-USP)

   

EFLCH – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp


Diretor: Prof. Dr. Bruno Konder Comparato
Vice-Diretora: Profa. Dra. Sandra Regina Leite de Campos

Campus Guarulhos – Unifesp


Estrada do Caminho Velho, 333
Jardim Nova Cidade
Guarulhos-SP

Programa de Pós-graduação em História da Arte


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

A946 Avancini, Atílio, Cordaro, Madalena Natsuko Hashimoto,


Okano, Michiko (Organizadores)
Ecos de catástrofes / Organização de Atílio Avancini, Madalena
Natsuko Hashimoto Cordaro e Michiko Okano. – São Paulo:
GEAA, 2023.
E-Book: PDF: 512 p.; il.

Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA)

ISBN : 978-65-87080-52-9 .

1. Arte. 2. Arte Asiática. 3. Arte Japonesa. 4. Arte Histórica.


5. Artes da Guerra. 6. Cultura Japonesa. 7. Cinema. 8. Fotografia.
9. Artes Plásticas. I. Título. II. Grupo de Estudos Arte Ásia.
III. Ecos nucleares. IV. Ecos outros. V. Avancini, Atílio,
Organizador. VI. Cordaro, Madalena Natsuko Hashimoto,
Organizadora. VII. Okano, Michiko, Organizadora. VIII. Gibson,
Lucas, Tradutor. IX. Cordaro, Madalena Natsuko Hashimoto,
Tradutora. X. Okano, Michiko, Tradutora. XI. ECAUSP Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
XII. EFLCH – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Unifesp.

CDU 7 CDD 700

Catalogação elaborada por Regina Simão Paulino – CRB 6/1154

Para citar este livro:


AVANCINI, Atílio; HASHIMOTO CORDARO, Madalena; OKANO, Michiko
(orgs.). Ecos de Catástrofes. São Paulo: GEAA, 2023.
Natsugusa ya tsuwamono-domo-ga yume-no ato
夏草や 兵どもが 夢の跡

Relvas de verão:
Combates dos heróis
Menos que um sonho.
Trad. de Olga Savary

Relvas de verão!
Dos sonhos dos guerreiros,
Apenas o que restaram.
Trad. de Meiko Shimon

Poema de Matsuo Bashō 松尾芭蕉 (1644-1694), contido


no excerto “Hiraizumi 平泉”, em Oku-no hosomichi
奥の細道 (Sendas de Oku/Trilhas longínquas de Oku).
O poema marca uma reflexão sobre a queda de três
gerações do clã Fujiwara da região de Hiraizumi no
século XI.
SUMÁRIO

14 IMAGENS ARTÍSTICAS POR MADALENA HASHIMOTO

19 Prefácio

29 PARTE 1: ECOS NUCLEARES

30 IMAGENS ARTÍSTICAS POR M.A.D.A.L.I

35 Reflexões sobre mono-no-aware e


a representação de Hiroshima no cinema
Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro e Michiko Okano

59 A arte da paz: o coração de Hiroshima atenua a bomba atômica


Atílio Avancini

77 Tempos de guerra: a arte e a devastação nuclear


Michiko Okano e Paulo Endo

105 De Nagasaki, para arquipélagos do tempo:


a Nagasaki de Shōmei Tōmatsu
Ryūta Imafuku

125  resentificação da catástrofe: Chim↑ Pom e os limites e


P
ausências das zonas de exclusão nuclear pós-2011
Ryanddre Sampaio de Souza

155 Radioatividade: a invisibilidade do medo


Heloisa Okamoto Pinho

181  desastre triplo na fotografia japonesa contemporânea:


O
Takashi Arai e Shimpei Takeda
Juliana Akstein

201 Cinema japonês: experimentações frente à Era Atômica


Alice Andrade Drummond
231  apa do medo, território da confiança: reflexões acerca do
M
devir ambiente_devir pós-anímico em criações artísticas
Dudu Tsuda (Carlos Eduardo Tsuda)

259 Respostas poéticas ao trauma de Hiroshima


Gisele Giandoni Wolkoff, Marina Bertani Gazola e
Rafael Teles da Silva

273 PARTE 2: ECOS OUTROS

274 IMAGENS ARTÍSTICAS POR PLINIO RIBEIRO JR.

279  lamento uivante do vento pelos pinheiros: mugen-nō, morte e


O
luto na peça de nō Matsukaze
Felipe Mendes Pinto

293 Arte como consolo: Os quinhentos arhats de


Kazunobu e Murakami
Lizia Maria Ymanaka Barretto

317 O Grande Terremoto de Kantō de 1923 em estampas japonesas


Priscila Yanagihara Shimizu

333 Habitar com a pedra, habitar outros futuros


João Kurohiji

361 As subculturas da moda japonesa como um ato de resistência


Rafael Hett

387 Uma dança só de olhos: a dança Butō na travessia da catástrofe


Anais Murakami

409  ukio Mishima, patriotismo e tragédia: a política e o corpo no


Y
curta-metragem Yūkoku
Helena Ariano

435  ntre sirenes e sussurros: a palavra como relicário de


E
ecos catastróficos
Plinio Ribeiro Jr.
455 Filho de Ubume: genealogia de um yōkai no mangá do
Japão Pós-Guerra
Maria Ivette Job

473 Mapeando o tempo: trauma, guerra e memória no fotolivro


Chizu (1965) de Kikuji Kawada
Lucas Gibson

496 IMAGENS ARTÍSTICAS POR CLAUDIO MUBARAC

501 Referências das imagens artísticas

505 Sobre os autores


PREFÁCIO

O Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) é um dos raros grupos


acadêmicos do Brasil de pesquisadores de arte e cultura
asiáticas, especialmente a japonesa, registrado, desde
2014, no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq). O objetivo do grupo é produzir e
discutir pesquisas científicas que partam de revisões histo-
riográficas, bem como de contextos de produção, recepção e
circulação de objetos artísticos e culturais japoneses e seus
trânsitos em diferentes suportes e linguagens.
O grupo criou o site http://www.geaa.art.br e um perfil
no Instagram, o @grupogeaa. As pesquisas do GEAA inse-
rem-se em vários campos, como as artes visuais (arqui-
tetura, arte urbana, artesanato, audiovisual, cerâmica,
desenho, design, escultura, fotografia, gravura, instalação,
mangá, pintura), as sonoras e performáticas (canto, teatro,
dança, música) e as práticas tradicionais (artes marciais,
caligrafia shodō, cerimônia do chá, jardim japonês, arranjo
floral ikebana, poesia haiku), que são oportunidades artís-
ticas que vão além do pragmatismo da cultura ocidental.
O enfoque dado à arte japonesa contempla a tempora-
lidade-espacialidade diversa, que lhe é intrínseca, desde a
tradicional, passando pela moderna, até a contemporânea,
produzida no território japonês e em outras localidades.
Constam entre os projetos de pesquisa recentemente desen-
volvidos pelo grupo: Elementos fundamentais da espacialidade
nas artes visuais japonesas; Conceitos estéticos transtemporais e
espaciais: a tradição cultural da cópia e a arte contemporânea;
e A arte da catástrofe e a cultura japonesa.
20 

Esta segunda publicação do GEAA resulta de pesquisas


pertinentes ao último projeto, com o objetivo de rever e
desenvolver pontos de vista a partir de preceitos teóricos.
Centrado em reverberações de catástrofes compreendidas
de modo amplo, Ecos de catástrofes contém dezenove ensaios,
uma tradução do antropólogo japonês Ryūta Imafuku e
quatro conjuntos de imagens visuais, os quais utilizamos
como referência estética para promover o diálogo entre os
textos escritos.
A temática “A arte da catástrofe e a cultura japonesa”,
iniciado como projeto de pesquisa em janeiro de 2020, visou
estudar a arte de catástrofe, isto é, analisar e compreender
o significado dos acontecimentos desastrosos de grandes
proporções. Existem os desastres naturais, como terremoto,
tsunami e maremoto, ou aqueles causados pelo homem,
como é o caso da bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki,
e uma combinação dos dois, como o acidente nuclear de
Fukushima e a epidemia do coronavírus. O cientista polí-
tico Mikuriya Takashi especifica a mudança de paradigma
no Japão do sengo — período do Pós-Guerra — ao saigo —
pós-desastre de Fukushima.
O leitor de Ecos de catástrofes se deparará com reflexões
de pesquisadores que visam acessar aspectos artísticos
e culturais do Japão. Em alguns casos, a arte pode ser a
representação do horror, dor, estupor, desesperança, mas
também pode refletir a ressignificação de valores, resis-
tência crítica ou ressurgimento de sentimentos, como a
solidariedade. Visões e pontos de vista de outros países,
com experiências trágicas, também poderão ser incorpo-
rados e relacionados com o Japão.
Financiado pelo Programa de Apoio à Pós-Graduação
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Proap-CAPES) para a produção e o aprofun-
damento do conhecimento e destinado pelo Programa
de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais
da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
Prefácio 21

São Paulo (PPGMPA-ECA-USP), este livro foi selecionado


por meio de edital. Adentrar estas páginas será seguir
os passos de cada autor pelos caminhos ondulantes da
cultura japonesa e ampliar a proximidade centenária de
convivência com o Brasil.
A obra está subdividida em duas partes: a primeira —
“Ecos nucleares” — faz referência às experiências decor-
rentes de eventos nucleares de Hiroshima em 1945 e de
Fukushima em 2011; a segunda — “Ecos outros” — tem escopo
mais abrangente, focando em outras decorrências de catás-
trofes ocorridas no Japão, como terremotos, assombrações
e subjetividades em torno da morte. Alguns ensaios tratam
do consolo, perda, inexorabilidade e renovação decorrentes
tanto de grandes eventos quanto daqueles tocantes e sutis.
A primeira parte do livro é composta de escritos de
Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro e Michiko Okano;
Atílio Avancini; Michiko Okano e Paulo Endo; Ryūta
Imafuku; Ryanddre Sampaio de Souza; Heloisa Okamoto
Pinho; Juliana Akstein; Alice Andrade Drummond; Dudu
Tsuda (Carlos Eduardo Tsuda); e Gisele Giandoni Wolkoff,
Marina Bertani Gazola e Rafael Teles da Silva.
O capítulo “Reflexões sobre mono-no-aware e a repre-
sentação de Hiroshima no cinema”, de Madalena Natsuko
Hashimoto Cordaro e Michiko Okano, aprofunda o signifi-
cado do conceito literário e estético mono-no-aware. A reação
às catástrofes toca a essência da história artística e cultural
japonesa, nesse caso, voltada à poética e à narrativa ficcional.
Atílio Avancini, em “A arte da paz: o coração de
Hiroshima atenua a bomba atômica”, apresenta um relato
crítico de experiência pessoal no parque Memorial da Paz e
no museu Memorial da Paz, ambos em Hiroshima, refletindo
a respeito dos efeitos traumáticos e da atualização do bombar-
deio nuclear sobre a cidade, passados cinquenta anos, usando
de modo significativo as fotografias capturadas em 2006.
O objeto do capítulo “Tempos de guerra: a arte e a devas-
tação nuclear”, de Michiko Okano e Paulo Endo, é o trabalho
22 

autoral do casal Iri e Toshi Maruki, que registraram as


catástrofes nucleares ao longo de cinquenta anos de ativi-
dade artística. São temas candentes o bombardeio nuclear
em Hiroshima e Nagasaki, bem como os ainda possíveis
efeitos de uma devastação nuclear.
Ryūta Imafuku, em “De Nagasaki, para arquipélagos do
tempo: a Nagasaki de Shōmei Tōmatsu”, analisa as fotografias
de Shōmei Tōmatsu apresentadas na exposição Mandalas
de Nagasaki, que registrou, por cinquenta anos, os testemu-
nhos da explosão nuclear em Nagasaki, esmiuçando de modo
contundente diferentes e inéditos conceitos de tempo.
Ryanddre Sampaio de Souza apresenta em “Presentificação
da catástrofe: Chim↑Pom e os limites e ausências das zonas de
exclusão nuclear pós-2011” reflexão sobre os limites e ausên-
cias presentes nas obras REAL TIMES (2011) e Don’t Follow the
Wind (2015), do coletivo Chim↑Pom, por meio do conceito de
presentificação, a partir da ideia de representação da ausência
de Kenichi Kondo.
Heloisa Okamoto Pinho, em “Radiatividade: a invi-
sibilidade do medo”, analisa a exposição Não siga o
vento (Don’t Follow the Wind) — de curadoria do coletivo
Chim↑Pom —, situada dentro da zona de exclusão pós-ca-
tástrofe em Fukushima. Nesse capítulo, a autora desenvolve
debate acerca da memória coletiva de sobreviventes da
tríplice catástrofe de Fukushima.
Juliana Akstein, em “O desastre triplo na fotografia
japonesa contemporânea: Takashi Arai e Shimpei Takeda”,
analisa a catástrofe de 11 de março de 2011, que envolveu
terremoto, tsunami e acidente nuclear. Aborda a subjetivi-
dade fotográfica de Arai e Takeda e discorre sobre a descons-
trução oficial e midiática, que minimizou os efeitos danosos
da radiação sobre a população.
Alice Andrade Drummond, no capítulo “Cinema japonês:
experimentações frente à Era Atômica”, debruça-se sobre três
obras audiovisuais de artistas japoneses que tratam da tripla
catástrofe de Fukushima: 1945-1998 (2003), de Isao Hashimoto;
Prefácio 23

Generator (2011), de Takashi Makino; e Sound of a Million Insects,


Light of a Thousand Stars (2014), de Tomonari Nishikawa.
Dudu Tsuda (Carlos Eduardo Tsuda), em “Mapa do medo,
território da confiança: reflexões acerca do devir ambiente_
devir pós-anímico em criações artísticas”, aborda as rela-
ções sócio-político-ambientais sobre o acidente nuclear de
Fukushima, discutidas nas performances Jantar e ILHA por
meio dos conceitos de devir ambiente e devir pós-anímico.
Gisele Giandoni Wolkoff, Marina Bertani Gazola e Rafael
Teles da Silva apresentam em “Respostas poéticas ao trauma
de Hiroshima” um prisma irlandês à discussão sensível sobre
a bomba por meio da tradução de cinco poemas de Thomas
Kinsella e quatro de Anthony Glavin. O capítulo é complemen-
tado com um poema-resposta de Gisele Giandoni Wolkoff:
“Longe do mar, amor, Hiroshima sem fim”.
Por sua vez, a segunda parte é composta por ensaios
de Felipe Mendes Pinto; Lizia Maria Ymanaka Barretto;
Priscila Yanagihara Shimizu; João Kurohiji; Rafael Hett;
Anais Murakami; Helena Ariano; Plinio Ribeiro Jr.; Maria
Ivette Job; e Lucas Gibson.
Felipe Mendes Pinto apresenta em “O lamento uivante
do vento pelos pinheiros: mugen-nō, morte e luto na peça
de nō Matsukaze” o papel central da morte na construção
da narrativa, bem como uma reflexão acerca de uma catás-
trofe vista de forma individual, consistente em perda, dor e a
pungente impossibilidade do reencontro.
Lizia Maria Ymanaka Barretto, em “Arte como consolo:
Os quinhentos arhats de Kazunobu e Murakami”, analisa o
papel trazido pela representação dos quinhentos arhats do
budismo num tempo passado, pelo pintor Kazunobu Kanō, e
na contemporaneidade, por Takashi Murakami, em reação
à destruição deixada por catástrofes naturais ocorridas em
seus tempos de vida.
Priscila Yanagihara Shimizu, em “O Grande Terremoto
de Kantō de 1923 em estampas japonesas”, analisa algumas
xilogravuras de Sengai Igawa referente ao abalo sísmico
24 

de 1923, de magnitude 7,9 na escala Richter, acompanhado


de tsunami. As obras selecionadas são da série Imagens do
terremoto de Taishō, realizada por nove artistas, centradas em
cenas de destruição e suas resultantes carências.
João Kurohiji, em “Habitar com a pedra, habitar outros
futuros”, relaciona o filme de ficção científica Agosto na água a
um ensaio do artista plástico coreano Lee Ufan e à pandemia
da covid19, e reflete de modo filosófico sobre a existência
humano-mineral, centrando-se na pedra e referindo ideias
de Krenak e Stengers de intenção ecológica.
Rafael Hett, no ensaio “As subculturas da moda japo-
nesa como um ato de resistência”, analisa as características
da moda seguida pelos jovens nipônicos nos anos 1980 e
1990, fortemente marcada pelas redes sociais, tanto on-line
quanto off-line. O papel de revistas como FRUiTS e Ryuko
Tsushin também é enfatizado, em especial na popularização
e visibilidade das subculturas.
Anais Murakami, em “Uma dança só de olhos: a dança
Butō na travessia da catástrofe”, traz o Butō como objeto inte-
grador da corporalidade física e espiritual. A construção dessa
dança aborda a cultura e a fisicalidade japonesa, um instru-
mento para a travessia do pensamento crítico e racional visto,
nesse caso, como catastrófico, no trabalho de Kazuo e Yoshito
Ohno, Min Tanaka, Tadashi Endo e Tatsumi Hijikata.
Helena Ariano, no ensaio “Yukio Mishima, patriotismo
e tragédia: a política e o corpo no curta-metragem Yūkoku”,
levanta reflexões sobre o corpo e suas relações com a morte,
o erotismo e o patriotismo. A influência do Pós-Guerra em
Mishima, bem como suas reflexões históricas acerca da
ética samurai e da ocidentalização nipônica são analisadas
tendo como centro a obra Yūkoku.
Em “Entre sirenes e sussurros: a palavra como relicário
de ecos catastróficos”, Plinio Ribeiro Jr. amplia o significado
da palavra catástrofe para acontecimentos mais subjetivos e
íntimos (sirenes ou sussurros?) por meio de exemplos em
escritos literários do século XX: das jovens Yōko Tawada e
Prefácio 25

Reiko Kruk-Nishioka, bem como dos mais célebres Haruki


Murakami e Kenzaburō Ōe.
Maria Ivette Job apresenta em “Filho de Ubume: gene-
alogia de um yōkai no mangá do Japão Pós-Guerra” uma
narrativa de experimento que utiliza a noção de Pathosformel
do historiador alemão Aby Warburg para investigar a
formação e o desenvolvimento de GeGeGe-no Kitarō, o filho
de Ubume, personagem de sucesso de Shigeru Mizuki.
Por fim, em “Mapeando o tempo: trauma, guerra e
memória no fotolivro Chizu (1965) de Kikuji Kawada”, Lucas
Gibson integra a realidade do Japão Pós-Guerra com a
expressão técnico-estética do autor. A discussão assume a
fotografia como documento, enfatizando também o caráter
abstrato dela. Analisa-se ademais o formato fotolivro e sua
dinâmica em presentificar tempo, memória e trauma.
Além das imagens contidas nos capítulos, utilizamos
como recurso gráfico de conexão entre as partes do livro
uma série de obras visuais que apresentam conexão com
a discussão aqui em foco. As quatro séries artísticas são
de autoria de Madalena Hashimoto (Madalena Natsuko
Hashimoto Cordaro), M.A.D.A.L.I (Madali Rosa Tschope),
Plinio Ribeiro Jr. e Claudio Mubarac (Luiz Claudio Mubarac).
Madalena Hashimoto exibe imagens da série Hokusai
nos trópicos, tendo elegido a presença de monges constantes
no volume 2 do Manga, em colagem de excertos de xilo e
tinta sumi ou acrílica sobre papel artesanal executadas entre
1996 e 2022. Uma resposta a catástrofes de toda ordem, o
consolo mescla budismo com taoísmo e magia centrada em
deidades kami, bodhisattvas, adivinhos e místicos.
M.A.D.A.L.I apresenta fotografias de série sobre a morte
e os fantasmas, parte de um projeto mais amplo, aqui inti-
tulada Yūrei, em preto e branco, nas quais sombras e esfu-
maçados bruxuleantes formam imagens que oscilam entre
formas conhecidas e abstrações intuídas. A série resulta de
pesquisa sobre pinturas e estampas de fantasmas no Japão
e apresenta uma caligrafia contrastante.
26 

Plinio Ribeiro Jr. expõe fotografias de sua jornada reali-


zada em Berlim, Varsóvia, Hiroshima e Tóquio. Nelas, ele
registrou vestígios sutis de catástrofes humanas em obras
arquitetônicas e em paisagens: o muro de um gueto; um campo
de concentração e extermínio; uma rosa que alude ao poema
de Vinícius de Morais sobre a hecatombe de Hiroshima.
Por sua vez, Claudio Mubarac utiliza fotografias de guerra
em preto e branco encontradas na internet para estabelecer
leituras ressoantes com suas composições gráficas. Sua
justaposição em cores tece uma faceta lúdica, dando forma
a imagens do inconsciente. As composições em dípticos,
anônimas e autorais, estabelecem relações temporais e espa-
ciais distintas providas de significados nada superficiais.
Para a transcrição de vocábulos japoneses, foi adotado
o método Hepburn, como geisha em vez de gueixa, inclusive
para topônimos ou nomes próprios, por exemplo, Shōmei
Tōmatsu, com o diacrítico para vogais prolongados, exceto
em nomes mais consagrados no Ocidente, como é o caso de
Eikoh Hosoe (e não Eikō Hosoe). Registra-se a ordem Nome
Sobrenome mais corrente entre nós.
O livro que o leitor tem agora em mãos é uma fonte
de conhecimento para aqueles interessados pelo Japão,
sua arte e cultura, sobretudo docentes, discentes, artistas,
viajantes e curiosos. Nesta segunda publicação do GEAA,
sinalizamos nosso prazer em apresentá-los esta obra,
que é caminho de ensino, pesquisa e extensão cultural
para aproximar a espacialidade entre o Japão e o Brasil.
Endossando Virginia Woolf, cada capítulo de Ecos de catás-
trofes oferecerá simbolicamente aos leitores “uma pequena
faísca de fogo” de aprendizado.
PARTE 1
ECOS NUCLEARES
Cordaro M. N. H. & Okano M.

REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE


E A REPRESENTAÇÃO DE HIROSHIMA
NO CINEMA
Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro
Universidade de São Paulo (USP)

Michiko Okano
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

RESUMO
Conceito importante na estética japonesa, mono-no-aware foi
associado por Donald Richie a alguns filmes, que abordam a
bomba atômica de Hiroshima, como um modo de se caracte-
rizar a reação passiva e conformista autenticamente nipônica
perante catástrofes. Este texto procura revisitar o significado
desse conceito, geralmente compreendido como uma sensi-
bilidade centrada na percepção de transitoriedade, efemeri-
dade e melancolia que cerca as coisas do mundo, bem como
discutir as relações estabelecidas por Richie. Observa-se que
o vocábulo adquiriu significados diversos de acordo com os
períodos e permanece atualmente a correlação realizada
por Motoori Norinaga, pesquisador da linhagem Kokugaku
no período Edo (1603-1868), vinculando-o especificamente
à obra clássica Narrativas de Genji, de Murasaki Shikibu,
do período Heian (794-1185). Para aprofundar no tema e
seu diálogo com a arte e cultura japonesa, serão utilizados
teóricos como Yoshinori Ōnishi, Yoshie Okazaki e Takahito
Momokawa, entre outros.
Palavras-chave: Arte. Estética japonesa. Cinema japonês.
Mono-no-aware.
36 Cordaro M. N. H. & Okano M.

ABSTRACT
An important concept in Japanese aesthetics, mono-no-aware
was associated by Donald Richie with some films, which deal
with Hiroshima’s atomic bomb, as a way of characterizing the
typical passive and conformist Nipponese reaction in the face of
catastrophes. This text intends to revisit the meaning of this concept,
usually understood as a sensibility centered on the perception of
transience, ephemerality, and melancholy towards the things of the
world, and discuss the relationship established by Richie. We observe
that the word acquired different meanings according to the periods
and, to this day, the correlation carried out by Motoori Norinaga
(1730-1801), researcher and linguist from the Kokugaku lineage
in the Edo period (1603-1868), remains, linking it specifically to
the classic oeuvre The Tale of Genji, by Murasaki Shikibu, of the
Heian period (794-1185). To deepen the theme and its dialogue
with art and culture, works from scholars such as Yoshinori Ōnishi,
Yoshie Okazaki, and Takahito Momokawa will be used.
Keywords: Art. Japanese Aesthetics. Japanese Movies. Mono no aware.

Este artigo procura refletir sobre o conceito estético japonês


mono-no-awareもののあわれ,1 comumente associado à beleza e
à tristeza originárias de uma percepção do estado transitório,
efêmero e melancólico em relação às coisas do mundo. Essa
associação foi abordada pelo estadunidense Donald Richie
(1924-2013) em “Mono no aware: Hiroshima in film” (1960),
capítulo que integra o livro Hibakusha Cinema: Hiroshima,
Nagasaki and the Nuclear Image in Japanese Film (Cinema
hibakusha: Hiroshima, Nagasaki e a imagem nuclear nos
filmes japoneses).

1 As autoras registram o vocábulo com hífen, no sentido de torná-lo


um substantivo composto. Existem outras formas encontradas entre
os pesquisadores como mono no aware, mono-no aware, mononoaware,
que serão respeitadas nas citações.
REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE 37

Richie viajou ao Japão pela primeira vez em 1947 com


as Forças Aliadas da Ocupação, na posição de colunista do
jornal Pacific Stars and Stripes, e fascinou-se pela cultura japo-
nesa, particularmente pelo cinema, assunto de sua especiali-
dade. Após retornar aos Estados Unidos, terminou os estudos
na Universidade Columbia em 1953 e voltou ao Japão no ano
seguinte como crítico de cinema, dessa feita ligado ao Japan
Times. Teve o mérito de ter sido o divulgador no Ocidente dos
filmes de Yasujirō Ozu, Kenji Mizoguchi e Akira Kurosawa
na década de 1960, tendo participado inclusive da criação
de algumas películas experimentais. Publicou vários livros
sobre a cultura japonesa, com predominância do cinema,
e permaneceu no Japão até a morte.
Conforme o texto ora analisado de Richie, os aconteci-
mentos em Hiroshima e Nagasaki foram compreendidos,
no início, como fatos dos quais ninguém tinha controle,
como se tivesse sido uma “ação divina” ou uma catástrofe
natural do tipo tsunami, tufão ou terremoto, e assim esses
eventos foram representados em filmes do início da década
de 1950. Nos primeiros filmes produzidos após a ocupação
americana, o horror do ato em si não é sequer referido,
assumindo uma perspectiva de transformação das atroci-
dades humanas em tragédia divina, fazendo-se prevalecer
um olhar elegíaco sobre Hiroshima. Do lado da ocupação
estadunidense, teria havido, segundo o autor, um horrível
sentimento de culpa e remorso, um dos motivos pelos
quais teriam tentado “salvar” o Japão. A questão é bastante
complexa e talvez nunca seja esclarecida.
Ao analisar dois filmes de 1952, Nagasaki da bomba
atômica (Genbaku-no Nagasaki 原爆の長崎) e Imagens da
bomba atômica (Genbaku-no zu 原爆の図), o autor os situa como
eivados do conceito de mono-no-aware, assim explicitados:

“Aconteceu; está tudo acabado, mas foi tão terrível assim?


De qualquer modo, este mundo é um lugar transitório,
isso também é triste; o que sentimos hoje, nós esquece-
remos amanhã; isso não é como deveria ser, mas é o que é”.
38 Cordaro M. N. H. & Okano M.

Esta percepção da evanescência e da lamentação resultante


tem um termo em japonês: mono no aware. Isso indica um
sentimento de transitoriedade de todas as coisas terrenas;
envolve uma insistência quase budista no reconhecimento
do fluxo eterno da vida sobre a terra. É uma autêntica atitude
japonesa perante mortes e desastres (desde que tenha se
passado um intervalo de tempo) e tanto o primeiro quanto
o segundo filme, em parte, insistem nisso (RICHIE, 2009,
p. 23, tradução nossa).2

Dentre os vários filmes analisados no texto, Filhos de


Hiroshima (Hiroshima-no ko 広島の子) de 1952, realizado pelo
diretor Kaneto Shindō (1912-2012), foi considerado uma obra
da qual se depreenderia uma atitude mono-no-aware por
excelência. Nas cenas vemos uma professora do jardim de
infância que vai visitar alguns alunos em Hiroshima poucos
anos após a bomba; uma mocinha se encontra acamada
na igreja, prestes a morrer; um menino, que vive com seus
irmãos, tem uma irmã com problemas na perna; outro aluno
enfrenta o falecimento do pai justamente quando a profes-
sora chega ao local; além do antigo empregado da casa da
professora, tomado de queloides na face e quase cego, cujo
neto ela tenta levar consigo para proporcionar-lhe cuidados
mais apropriados, e uma amiga que não consegue engra-
vidar como consequência da radiação. Em todas as cenas
permeia um modo resignado de enfrentar essas situações
que causam lágrimas ao público, o que foi interpretado por
Richie como uma prevalecente filosofia segundo a qual
it can’t be helped (não há saída; em japonês, expressão muito
corrente: shikata ga nai 仕方がない).

2 “‘This happened; it is all over and finished, but isn’t it too bad? Still, this world
is a transient place and this too is sad; what we feel today we forget tomorrow;
this is not as it perhaps should be, but it is as it is’. This awareness of evanescence
and the resulting lamentation has a term in Japanese: mono no aware. It indi-
cates a feeling for the transience of all earthly things; it involves a near-Buddhist
insistence upon recognition of the eternal flux of life upon this earth. This is the
authentic Japanese attitude toward death and disaster (once an interval has
passed), and the earliest films as well as the latest, in part at least, insist upon it.”
REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE 39

No entendimento de Richie, há outros tipos de filmes


mais políticos como os produzidos pelos comunistas que
defendiam uma posição antiamericana. Os diretores Fumio
Kamei (1908-1987) e Tadashi Imai (1912-1991) encontram-se
entre eles. Havia também os que abraçavam uma leitura
mais comum de Hiroshima enquanto símbolo ou alegoria,
utilizando a cidade em um consequente esforço de trabalhar
juntos pela paz mundial, ecoando o “nunca mais” represen-
tado especialmente por roteiros centrados em monstros,
do qual Godzilla é exemplo dos mais conhecidos.
Richie considera Anatomia do medo (Ikimono-no kiroku
生きものの記録),3 uma produção de Akira Kurosawa (1910-1998)
de 1955, como o melhor filme sobre a bomba justamente por
omitir a ênfase dada por outros filmes no sentimento de mono-
-no-aware, parafraseado por ele como it’s-too-bad-but (é-terrível-
-demais-mas...). É uma obra em que o famoso ator preferido
de Kurosawa, Toshiro Mifune (1920-1997), protagoniza um
velho aterrorizado por uma possível reincidência da bomba
atômica e quer convencer toda a família a se mudar (curiosa-
mente para o Brasil), o que os filhos refutam veementemente.
Mas Richie escolhe para exemplificar o excesso de
mono-no-aware, surpreendentemente, o filme do diretor
francês Alain Resnais (1922-2014), Hiroshima, meu amor
(Hiroshima mon amour),4 de 1959, com roteiro de Marguerite
Duras (1914-1996). Composto de muitos flashbacks e narra-
tiva não linear, o filme traz como protagonista uma atriz
francesa que está em Hiroshima para atuar por apenas um
dia, e aí desenvolve laços afetivos com um homem japonês
casado. A diegese insere diálogos entre o passado da prota-
gonista em Nevers, pequena cidade da França, e o momento

3 A versão do filme para o inglês A Record of a Living Being (Registro de


um ser vivente) é certamente mais próxima do original.
4 Em japonês a versão ficou Nijūyo jikan-no jōji 二十四時間の情事 (O caso
de amor de vinte e quatro horas); nesse caso a tradução para o português
está mais próxima do original.
40 Cordaro M. N. H. & Okano M.

presente em Hiroshima. Na cidade ocupada pelos alemães,


a atriz, ainda muito jovem, se envolvera amorosamente com
um oficial inimigo, que acabou morrendo. Após a libertação
da cidade, ela sofreu uma forte perseguição da comuni-
dade, tendo sido então enclausurada pela família no porão.
Em Hiroshima, a impossibilidade de dar continuidade ao
romance, agora com um arquiteto japonês, se repete. O filme
inicia com imagens documentais de evocação do horror —
pelo fato de o diretor Renais ter tido o propósito, inicialmente,
de realizar um documentário — e segue-se, então, segundo
Richie, o axioma do mono-no-aware: “Todos esquecem, isso é
muito terrível, mas todos se esquecem do sofrimento, assim
como do prazer; não se consegue suportar isso facilmente e
continuar vivendo” (RICHIE, 2009, p. 35, tradução nossa).5
Assim, o sofrimento da atriz de se apaixonar por um
estrangeiro é revivido em Hiroshima. Mas agora eles
esquecem o horror privado da pequena cidade francesa e o
horror público de Hiroshima travando um embate entre o
Ocidente e o Oriente — e o que lhes resta é reafirmar a expe-
riência de estarem juntos. Ela diz ao protagonista que logo
se esqueceria dele, como o que acontecera com o amante
alemão. “A vida é transitória, a vida é evanescente, a vida é
esquecimento: ‘e neste vale de lágrimas, não há significado’”
(RICHIE, 2009, p. 36, tradução nossa).6

REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE


Com base em uma interpretação assim assertiva quanto à
reação nipônica frente a grandes sofrimentos que foi tradu-
zida por Richie como mono-no-aware, propomo-nos a rastrear

5 “One forgets, it is too bad, but one forgets pain as one forgets pleasure, one
cannot hold this smooth and moving life.”
6 “Life is transient, life is evanescent, life is forgetting; ‘and in this valley of tears
there is no meaning’.”
REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE 41

a origem dessa expressão na história cultural do Japão e


verificar sua pertinência de análise.
Em primeiro lugar, observamos os significados mais
relevantes ao vocábulo mono-no-aware apresentados pelo
dicionário Nihongo daijiten (UMESAWA, 1989):
a) uma compreensão completa, com compaixão, do
sentimento do outro;
b) uma emoção profunda que surge em contato com
mono (as coisas, os fatos ou acontecimentos), recor-
dando o passado;
c) um sentimento calmo e profundo, gerado em contato
com mono ou com as estações do ano;
d) um kokoro (coração, mente, alma, espírito) que
consegue se emocionar profundamente com algo;
e) um estado de sofrimento provocado por sentimentos
de compaixão, dor e melancolia.
No dicionário Daijirin (MATSUMURA, 1988) o vocá-
bulo aparece como:
a) um conceito estético e literário ao se referir à litera-
tura do período Heian (794-1185);
b) um universo sentimental harmonioso na fusão de
mono como mundo externo e aware como senti-
mento humano;
c) uma expressão analisada por Motoori Norinaga
que considerou as Narrativas de Genji como seu
maior exemplo.
A partir desses significados apontados, sabemos que
o termo se refere a um sentimento, emoção ou estado da
alma ou sofrimento profundo acompanhados de dor, melan-
colia e compaixão (aware) que são correlacionados a objetos
concretos ou fatos evanescentes (mono), quer sejam relativos
a um evento pessoal, quer sejam a algum aspecto da natureza.
Assim, a experiência estética seria potencializada por uma
sensibilidade desenvolvida em relação à transformação da
natureza associada à capacidade de sentir beleza na percepção
da fragilidade e do fenecimento. Essa intuição estética dos
42 Cordaro M. N. H. & Okano M.

fenômenos da natureza, como as variações da sazonalidade,


foi associada, segundo o pesquisador japonês Yoshinori
Ōnishi (1888-1959) analisado por Marra (1999), a elementos
que se relacionam às tragédias da vida: experienciar mono-no-
-aware é uma vivência aprofundada por uma melancolia espe-
cial, que se encontra presente no lado externo que “a mente
recupera como uma espécie de ‘dor do mundo’ (Weltschmerz)”
(MARRA, 1999, p. 116, tradução nossa).7
Os pesquisadores da cultura japonesa, ao se referirem
a mono-no-aware, além de associar o termo às Narrativas de
Genji (Genji monogatari 源氏物語), também registram de modo
unânime o poema de Ono-no Komachi 小野小町 (825-900)
compilado na Antologia de poemas japoneses de ontem e de hoje
(Kokinwakashū 古今和歌集, c. 905), que exemplifica bem o senti-
mento de tristeza relacionada a um evento pessoal, no caso a
passagem dos anos e o envelhecimento de uma mulher.

Tabela 1. Tanka de Komachi.

花の色は hana no iro wa


うつりにけりな utsuri ni keri na
いたづらに itazura ni
わが身世にふる waga mi yo ni furu
ながめせしまに nagame seshima ni

Fonte: elaboração das autoras.

O poema tanka 短歌,8 composto de cinco metros,


se tornou a forma por excelência da literatura clássica.
O célebre exemplo de Komachi traz a flor (hana 花), que no
início se referia primeiramente à de ameixeira e, a partir

7 “[...] in the production of a ‘sorrow’ which is already present in the external


world (nature) and which the mind recovers as a sort of ‘world-weariness’
(Weltschmerz).”
8 Tanka 短歌 significa, literalmente, poema curto, em oposição ao poema
longo, chōka 長歌. É forma poética composta de 31 sílabas, distribuídas em
5 metros, obedecendo à sequência: 5-7-5-7-7 (WAKISAKA, 1992, p. 46).
REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE 43

do período Heian, à da cerejeira, como metáfora feminina,


compreendendo desde a juventude do botão, a plenitude de
cores e aromas até o despetalar e sua transformação involun-
tária. Como ocorre em todo o poema, a significação ambígua
ou ambivalente é dessa condensação que a tradução se torna
muito difícil. Registrem-se algumas tentativas:

Tabela 2. Traduções de tanka de Komaki.

The flowers’ blooms The blossom’s tint is washed away


are washed away: in vain By heavy showers of rain;
I spend my length of days My charms, which once I prized so much,
gazing on the endless rain. Are also on the wane,
Both bloomed, alas! in vain.
Trad. de Köy Deli
Trad. de William Porter

Flowers of love coloridas flores


can change so much the trick desvaneceram-se todas
as my body grows old e em vão o mundo
is just to watch the rain. chove sobre meu corpo em
longa chuva a contemplar.
Trad. de Jane Reichhold
Trad. das autoras

Fonte: elaboração das autoras.

No quarto metro, o vocábulo yo 世 tem dupla semân-


tica: a de mundo ou geração e a de relação entre homem e
mulher. Furu, escrito em escrita fonética kana ふる, pode ser
compreendido como o cair da chuva (降る) ou a passagem do
tempo (経る). E no último metro, temos nagame que, também
em kana ながめ, tem o significado de contemplar, pensar,
meditar (眺め) ou traz uma rescendência sonora de naga-ame,
chuva longa (長雨). Assim, dentre as interpretações possí-
veis, temos: “Enquanto o tempo (o mundo, a idade, o amor)
passava em vão, numa longa chuva (ou eu contemplativa),
a flor de cerejeira (ou eu, considerada bela; ou o nosso amor
em floração) mudou de cor (se desabrochou, murchou,
44 Cordaro M. N. H. & Okano M.

feneceu)”. Para uma poetisa considerada modelo de beleza


do período Heian ou para todas as pessoas, ainda hoje,
a questão do envelhecimento é fator de desapontamento e
melancolia, e essa é também uma leitura bastante comum
do poema. Ampliando-se a significação, a dor da indiferença
do amante, hoje traz a tristeza ao recordar a floração de
outrora. O mundo que passa em vão, como os amores e a
juventude, independentemente da nossa floração e queda, é
fonte de profunda nostalgia (aware).
Um dos primeiros estudos sobre mono-no-aware foi reali-
zado por Motoori Norinaga 本居宣長 (1730-1801), pensador,
filólogo, ensaísta e poeta do período Edo (1603-1868), ao
desenvolver a temática na sua relação com a poesia clássica
e os escritos em prosa das Narrativas de Genji pela dama da
corte Murasaki Shikibu 紫式部 (978-c. 1015-1026) no início do
século XI. Norinaga foi um dos mais importantes intelectuais
ligados aos Estudos Vernaculares (Kokugaku 国学)9 e criti-
cava o neoconfucionismo chinês em voga no momento por
sua disciplina de moralidades e normas rígidas, tendo intro-
duzido o conceito mono-no-aware em associação ao universo
do período Heian (794-1185), conhecido por sua “cultura esté-
tica” caracterizada por nobreza, refinamento e elegância.
Há de se notar que uma redescoberta dos escritos antigos se
processava em várias frentes, não só em relação a Narrativas
de Genji, mas também ao Livro do travesseiro (Makura-no sōshi
枕草子), de Sei Shōnagon 清少納言 (c. 966-1017); o Diário de Tosa
(Tosa nikki 土佐日記), de Ki-no Tsurayuki 紀貫之 (c. 868-945);
e as coletâneas poéticas. Vocábulos antigos, revividos em
uma nova tradição, são destacados e reorganizados em novos
sistemas de significação, como ocorreu com mono-no-aware.

9 Kokugaku, literalmente “estudo da (nossa) terra”, foi um movimento inte-


lectual centrado fortemente em filologia que se originou no período Edo
(1603-1868), voltado aos estudos dos clássicos japoneses em detrimento
dos textos chineses dominantes na época. Primeiramente traduzido por
Estudos Nacionais, o termo tem sido referido como Estudos Vernaculares,
tendo-se em vista o conceito de “nação” não ser ainda vigente.
REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE 45

Norinaga, de acordo com Tomiko Yoda (1999, p. 529,


tradução nossa), “associa a profundidade dos sentimentos
com tormento e pathos; na sua visão, a tristeza pelos desejos
proibidos e reprimidos é mais poderosa que a alegria e a feli-
cidade, mais adequadas para produzir poemas comoventes e
monogatari”,10 o que justifica a escolha da narrativa do perso-
nagem Genji, que busca o amor proibido, o da esposa oficial
de seu pai, para exemplificar o mono-no-aware.
Vários autores discorrem sobre os pensamentos imbu-
ídos no mono-no-aware, sendo a leitura de Norinaga a base
fundante para todos. De acordo com Yoshiyuki Yamazaki
(1910-?), pesquisador da literatura clássica japonesa, seguindo
de perto Norinaga, a origem de aware vem da conjunção
entre a interjeição “aa” e “hare”, que é uma partícula excla-
matória, expressão de sentimento de prazer ou admiração
(YAMAZAKI, 1986, p. 11, apud SILVA, 2016). E, pela substanti-
vação, expressa uma profunda emoção (fukai kandō 深い感動),
amor (aijō 愛情), afeição/atração profunda (shimijimi to shita
jōshuしみじみとした情趣), simpatia, compaixão (dōjō 同情), melan-
colia (hiai 悲哀) ou tristeza (kanashisa 悲しさ) (YAMAZAKI,
1986, p. 11 apud SILVA, 2016, p. 61). Notamos, portanto, desde
o início, uma polaridade de significados imanente ao termo.
O pesquisador de literatura Yoshie Okazaki (1892-1982), em
Formas e estilos da literatura japonesa (Nihon bungei-no yōshiki
日本文芸の様式), salienta também o fato de que, inicialmente,
aware teria sido uma partícula exclamativa e que, prova-
velmente, essa expressão existiria em todos os lugares,

10 “[...] Norinaga associates depth of feeling with torment and pathos; in his
view, sorrow over forbidden and repressed desires is more powerful than joy
and happiness, better suited for producing moving poems and monogatari.”
Monogatari refere a forma de escrita de ficção em prosa que se originou
no século X; várias traduções são possíveis de acordo com suas carac-
terísticas e correspondências com formas ocidentais: Genji monogatari
traduz-se por The Tale of Genji, Le Dit de Genji, Narrativas de Genji. Outras
versões incluem: Genji novel, La novela de Genji, Contos de Genji, Romance
de Genji. Aqui adota-se o termo “narrativas” por ser mais próximo de
sua acepção linguística (mono o kataru, contar coisas), bem como uma
posição mais afastada dos gêneros literários ocidentais.
46 Cordaro M. N. H. & Okano M.

na origem de todos os povos. No entanto, a especificidade do


Japão se encontraria no fato de a expressão ter se preservado
e se tornado um dos pilares de sua cultura.
Docente ainda célebre da Universidade de Tóquio,
Yoshinori Ōnishi (1888-1959) especializou-se em estética
ocidental, em particular em Immanuel Kant, e aplicou seus
conhecimentos para elucidar muitos conceitos da esté-
tica japonesa. Em Yūgen, aware, sabi 幽玄・あはれ・サビ (2012)
Ōnishi compara outros termos também muito conhecidos
como wabi-sabi 侘び寂び e yūgen, e conclui ter sido aware o
vocábulo mais antigo. Ademais, defende que, se wabi-sabi
é mais comumente conectado a haikai ou sadō (cerimônia
do chá) e yūgen ao teatro nô, a utilização de aware é de apli-
cação mais genérica, conquanto tenha sido muito utilizado
no tempo de Murasaki Shikibu e Sei Shōnagon. O autor nos
mostra a capacidade transformadora da vida dos vocábulos e,
portanto, as variadas semânticas adquiridas pela palavra
aware no decorrer da história: no período Nara (710-793),
era associada à graça (karen 可憐), ao amor e à intimidade
(shin’ai 親愛), ao interesse ou ao riso (omoshiroi 面白い); no
período Heian (794-1185), ocorre a adição de um sentimento
profundo (jōcho no kantoku 情緒の監得) e, posteriormente, no
período Kamakura (1185-1333), a semântica se subdivide,
uma aponta para a bravura relacionada com a coragem, e
outra, para a melancolia; no período Muromachi (1333-1573),
os dois significados são empregados de forma balanceada;
e, finalmente, no período Edo (1603-1868), volta-se à divisão
da bravura para com o vencedor (appare あつぱれ) com a
compaixão (aware あはれ ) para com o perdedor (ŌNISHI,
2012, p. 67-68).
No que se refere ao estudo de Norinaga, embora enal-
teça a sua perspicácia em observar principalmente as carac-
terísticas de aware nos sentimentos de melancolia, Ōnishi
(2012, p. 77) ainda critica a não constatação desse vocábulo
nos sentimentos profundos de alegria e de encantamento.
O autor sinaliza também um viés psicológico forte na
REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE 47

utilização do termo por Norinaga e considera que isso seja


apenas “o primeiro passo no processo da compreensão do
potencial objetivo do aware como resultado de uma experi-
ência estética” (MARRA, 1999, p. 115, tradução nossa).11
Para Ōnishi (2012, p. 77), é relevante apontar o “senti-
mento profundo”, independente do seu significado posi-
tivo ou negativo. Caso tenha valor negativo, o sentimento
resultante seria de repugnância, ódio, compaixão; e, quando
positivo, desejo, paixão, respeito, admiração. Dessa forma,
o autor acredita que o aware provocado por uma comoção de
um sujeito em relação ao mundo possa ser analisado tanto
em seus valores positivos quanto negativos se queremos
vê-lo na perspectiva estética.
Essa duplicidade pode também ser verificada na
semântica do termo no dicionário Daigenkai (Grande mar
de palavras 大言海),12 no qual encontram-se dois significados
distintos de aware: algo a ser elogiado, por sua superioridade
e excelência, representado pelo ideograma yū 優, bem como
algo que causa pena ou lamento, ai 哀 (ŌNISHI, 1999, p. 124).
Nota-se principalmente que o conceito de mono-no-
-aware apresentado por Ōnishi tem múltiplas perspectivas
em vários campos de conhecimento. Em primeiro lugar,
domina um significado especificamente psicológico que ele
chama de “conotação peculiarmente psicológica” (peculiarly
psychological connotation), na qual os sentimentos de tristeza,
lamento ou piedade são associados e ainda não são relacio-
nados com um sentido estético (ŌNISHI, 1999, p. 135).
Em segundo lugar, caminha-se para um “significado
inclusivo psicológico” (inclusively psychological meaning),
que entende aware como uma experiência emocional geral

11 “[...] only the first step in the process of grasping the objective potential of aware
as the result of an aesthetic experience.”
12 O dicionário, compilado de 1932 a 1937 pelo lexicólogo, linguista e
historiador Fumihiko Ōtsuki (1847-1928), foi registrado por Ōnishi,
aqui citado por Marra (1999).
48 Cordaro M. N. H. & Okano M.

que vai além das limitações especificadas no primeiro


nível. Nesse caso, aware se expande para semânticas
positivas, incluindo sentimentos de alegria e felicidade
(ŌNISHI, 1999).
Em terceiro lugar, há a inclusão de uma nova
percepção; a consciência estética é gerada com a adição
da intervenção intelectual e de uma visão clara na compre-
ensão do significado da realidade externa. Diferentemente
das duas anteriores, que se limitam à atitude contempla-
tiva do aware, quem vê ou lê é tomado pela consciência
de uma beleza que o liberta do puro sentido emocional
de tristeza. Ōnishi (1999) chama esse estágio de “signifi-
cado universalmente psicológico/estético” (universally
psychological/aesthetic meaning) e também localiza os
conceitos de Norinaga nesse “significado”.
Em quarto lugar, surge uma intelecção mais afastada
da situação de um sujeito diante de coisas e eventos da
experiência, com um “significado especificamente estético”
(specifically aesthetic meaning), mais aberto para o de visão do
entorno e universalizado, tornando-se uma visão metafísica
e mítica da dor do mundo (Weltschmerz), associada à “natu-
reza da existência e do ‘Ser’” (MARRA, 1999, p. 119, tradução
nossa).13 Nesse ponto, o mono-no-aware ultrapassa a semân-
tica limitada do pathos em seu significado psicológico e
restrito, adentrando-se no universo da experiência estética.
Segundo analisa o autor:

Quando consideramos [o mono-no-aware] do ponto de


vista da estrutura geral da “experiência estética”, podemos
dizer que o motivo principal e base desse tipo especial de
sentimento de pesar repousa no lado que chamamos de
momento estético natural [...]. Como a experiência especial,
por exemplo, do misticismo, isso é facilmente causado por
uma atitude contemplativa em relação a grande “natureza”

13 “[...] the nature of existence or ‘Being’.”


REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE 49

que se encontra no pano de fundo das atividades humanas


(ŌNISHI, 1999, p. 137, tradução nossa).14

E, por fim, conforme a análise de Marra (1956-2011)


acerca do pensamento de Ōnishi, poder-se-ia compreender
aware como uma “‘categoria estética’ do ‘Belo’, na qual um
‘conteúdo estético’ específico, feito pela união de todos os
tipos de ‘beleza’, origina a experiência estética específica de
aware”15 em conjunto com uma empatia na qual “a essência
das coisas é percebida intuitivamente por meio de asso-
ciações mentais”16 (MARRA, 1999, p. 119, tradução nossa).
Os exemplos trazidos por Ōnishi provêm de situações em
que se lida com a morte, a perda e o desaparecimento, consi-
deradas simbólicas do sentido da vida humana.
Observa-se, assim, a ocorrência do mono-no-aware em
um conjunto plural de situações em significações sutilmente
variadas. Ōnishi ainda salienta que a melancolia de aware
não pode ser explicada simplesmente pelo viés psicológico,
pois envolve experiências a serem compartilhadas. Por isso,
a palavra é conectada com mono (“coisas”, o mundo externo —
natureza, eventos temporais), que a mente resgata como uma
espécie de reação muito semelhante ao conceito alemão de
“dor do mundo” (Weltschmerz). E é por ser essa dor “como
uma profundidade escura e segregada que se encontra de
modo igual, conjunto e básico no mais íntimo do mono-no-
-aware que os fenômenos do mundo presente ocasionalmente
são lembrados em nossa memória” (ŌNISHI, 1999, p. 137,

14 “When we consider it from the general structure of ‘aesthetic experience’, we


can say that the main motive and ground of this special kind of sorrowful
feeling lies in the side of what we call a natural aesthetic moment. [...] Like
the special experience of, for example, mysticism, this is easily caused by a
contemplative attitude toward a great ‘nature’ that lies in the background
of human activities.”
15 “[...] the ‘aesthetic category’ of ‘the Beautiful’, in which a specific ‘aesthetic
content’, made of the union of all kinds of ‘beauty’, originates the specifically
aesthetic experience of aware.”
16 “[...] the essence of things is perceived intuitively through mental associations.”
50 Cordaro M. N. H. & Okano M.

tradução nossa).17 Dessa forma, não se pode entender o aware


apenas como “pathos das coisas”, mas o vocábulo sempre está
na sua correlação com o sujeito. Por consequência, “a comu-
nicação criada é do sujeito (ou ‘momento do sentimento
artístico’) e do objeto (ou ‘momento do sentimento natural’)
interconectados” (MARRA, 1999, p. 116, tradução nossa).18
Existe uma coexistência dos opostos, um certo prazer
na melancolia ou uma tristeza desenvolvida por meio da
alegria que resulta do entendimento de que os elementos
catastróficos da tragédia não estão fundamentados no desejo
pessoal e subjetivo. Encontra-se, antes, “oculto no abismo
(Abgrund) da nadidade de onde se origina a melancolia e o
prazer” (MARRA, 1999, p. 117, tradução nossa).19

MONO-NO-AWARE EQUIVALENTE A “IT’S-TOO-BAD-BUT”?


A temática da bomba atômica volta a ser um assunto emer-
gente devido ao atual conflito entre a Rússia e a Ucrânia,
cuja invasão teve início em 24 de fevereiro de 2022, após uma
longa história de confrontos entre os dois países, com uma
possibilidade a uma escalada ao uso de armas nucleares.
A tragédia das bombas atômicas sobre os cidadãos das
cidades de Hiroshima e Nagasaki, uma atrocidade praticada
contra a humanidade, que ocorreu respectivamente em 6 e
9 de agosto de 1945, resultou em mais de 220 mil mortes e
muitas outras posteriores, além das vítimas que sofreram
das consequências da radiação, fenômeno ainda mal
conhecido à época.

17 “It is like a dark and secluded depth that lies equally, togetherly and basically
in the innermost of mono no aware that the phenomena of the present world
occasionally recall to our memory.”
18 “[...] a communication is created in which the subject (or ‘moment of artistic
feeling’) and the object (or ‘moment of natural feeling’) come together.”
19 “[...] concealed in the ‘abyss’ (Abgrund) of ‘nothingness’ from which sorrow
and pleasure originate.”
REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE 51

O filme selecionado por Richie que, para além das


várias películas japonesas, mostraria em maior grau o mono-
-no-aware foi, curiosamente, o francês Hiroshima mon amour,
do diretor Alain Resnais. Isso demonstra que o sentimento
de mono-no-aware não seria apenas uma peculiaridade nipô-
nica, embora o próprio crítico o tenha assim considerado.
Hiroshima mon amour trata da memória e do esqueci-
mento, da memória coletiva da catástrofe de Hiroshima e da
individual do passado trágico da francesa que visita o Japão.
Como afirma a roteirista Marguerite Duras: “É impossível
falar sobre Hiroshima. Tudo que pode se fazer é falar sobre a
impossibilidade de se falar sobre Hiroshima” (MEMORY...,
2020), o mesmo ocorre para a protagonista, pois era impra-
ticável falar da sua vida em Nevers. Como lembrar de uma
tragédia histórica causada pela Segunda Guerra Mundial em
Hiroshima ou da morte de um amado por ser um soldado
inimigo? A vida privada sofre com os grandes desmandos
sociais, mesclam-se percepções, impossibilitando relações.
Quando a protagonista de Hiroshima mon amour
consegue deixar-se levar pela paixão com o arquiteto
japonês em Hiroshima, que se tornaria também outro rela-
cionamento impossível, a ferida se abre e a tentativa deses-
perada de esquecer o passado se transforma em sofrimento
do presente, fazendo-a (re)viver e seguir em frente. Mas no
caso da bomba atômica de Hiroshima, qual seria a solução
para poder seguir adiante?
Em relação à bomba atômica e aos documentários
sobre Hiroshima do período como Nagasaki da bomba
atômica (Genbaku-no Nagasaki) e Imagens da bomba atômica
(Genbaku-no zu), ambos de 1952,20 Richie (2009, p. 23,
tradução nossa) comenta: “Aconteceu; está tudo acabado,
mas foi tão terrível assim?”. Mas como não poderia ter sido
tão terrível? Complementa Richie: “O que sentimos hoje, nós
esqueceremos amanhã”, como se fosse tão fácil enterrar os

20 A citação inteira está na nota 2.


52 Cordaro M. N. H. & Okano M.

momentos trágicos de nossas vidas. E termina afirmando


que essa percepção da evanescência e da lamentação resul-
tante seria mono-no-aware.
O autor acrescenta que esse sentimento de efeme-
ridade e transitoriedade envolve “uma insistência quase
budista no reconhecimento do fluxo eterno da vida” e seria
uma “autêntica atitude japonesa perante mortes e desas-
tres (desde que tenha se passado um intervalo de tempo)”
(RICHIE, 2009, p. 23, tradução nossa).21 Questionamos o
fato de Richie associar o tom de “resignação frente a uma
tragédia” e a “facilidade do esquecimento” para exempli-
ficar o mono-no-aware.
Nossa reflexão principal indaga se o filme de Alain
Resnais transmitiria o sentimento mono-no-aware de modo
tão intenso como Donald Richie afirma. E questionamos
também se a associação do vocábulo com it’s-too-bad-but
(é-terrível-demais-mas...) com esse sentimento de “lamento
e resignação” seria salientado pelos estudiosos japoneses.
Observemos o trecho do artigo de Richie sobre o filme:

Como a maioria dos filmes japoneses sobre Hiroshima,


o filme começa com uma evocação do horror (dois corpos,
cinzas reduzidas a pó) e então segue para uma cerimônia
memorial oficial (desfile, crianças, cartazes). É então acom-
panhado de uma afirmação completa de um princípio básico
de mono-no-aware: todos esquecem, isso é tão terrível, mas
todos esquecem do sofrimento, assim como se esquecem
do prazer, não se pode suportar isso facilmente e continuar
vivendo (RICHIE, 2009, p. 35, tradução nossa).22

21 “[...] a near-Buddhistic insistence upon recognition of the eternal flux of life


upon this earth. This is the authentic Japanese attitude toward death and
disaster (once an interval has passed).”
22 “Like most Japanese Hiroshima films, it opens with an evocation of horror
(the two bodies, the sifting ash) and then goes into some official memoriam
(the parade, the children, the placards). This is followed by a full statement of
a basic mono no aware tenet: one forgets, it is too bad, but one forgets pain as
one forgets pleasure, one cannot hold this smooth and moving life.”
REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE 53

Os resultados desta análise mostram que mono-no-aware


não se associa diretamente ao esquecimento, à aceitação
pacífica e passiva de uma determinada situação, e se anali-
samos por meio dos estágios arrolados por Ōnishi, Richie
não parece ter vislumbrado o sentimento de dor do mundo e
a compulsão rumo a um universo estético.
Talvez dialogue, em parte, com a fala de Takahito
Momokawa (1948-) e de Ōnishi, sobre o fato de que existe
uma coalescência de sentimentos opostos, mas deve-se acres-
centar que a positividade vem como uma espécie de salvação:

Eu disse no início que mono-no-aware era um sentimento de


tristeza, mas, de fato, é uma tristeza que constantemente se
move em direção à alegria. Devo ser cuidadoso para notar
que essa alegria não era nada menos do que uma espécie
de salvação para os cidadãos urbanos no início do período
moderno, para quem o sentimento de perda de poder era
endêmico. Dessa forma, mono-no-aware se torna o princípio
básico de solidariedade e salvação nas cidades sem deuses
do início do período moderno do Japão (MOMOKAWA, 1987
apud MARRA, 1999, p. 122, tradução nossa).23

Acreditamos que as questões de esquecimento e resig-


nação abordadas por Richie e as de solidariedade e salvação,
concluídas por Momokawa, não estejam diretamente conec-
tadas com mono-no-aware a não ser de modo talvez indireto,
mas elas seriam posteriores a qualquer possibilidade de
esvanecimento na memória.
No momento da derrota do Japão na Segunda Guerra
Mundial, quando havia a necessidade de sobrevivência, o esque-
cimento e a resignação podem ter sido necessários para seguir
adiante, como também ocorreu com a Alemanha e a Itália,

23 “I have said at the outset that mono no aware was a sentiment of sadness, but in
fact it is a sadness that is constantly evolving toward gaiety. I should be careful
to note that his gaiety was nothing other than a sort of salvation for the urban
citizen of the early modern period for whom a feeling of powerlessness was
endemic. In this way, ‘mono no aware’ becomes the basic principle of solidarity
and of salvation in the godless cities of early modern Japan.”
54 Cordaro M. N. H. & Okano M.

e com todos os povos derrotados nas tantas batalhas de nossa


história. No entanto, o sentimento profundo de mono-no-aware
não parece se associar a esse tipo de contexto, principalmente
se lembrarmos de sua origem ligada à poética e à narrativa de
ficção. O esquecimento seria a única solução para Hiroshima,
especialmente hoje, na iminência de um conflito contempo-
râneo que pode vir a ser uma tão temida guerra nuclear?
É fundamental salientar que o sentimento de mono-no-
-aware emerge como resultado do fenecimento de coisas caras:
a flor, uma linda criança, o amor. Komachi lamenta sua juven-
tude, a admiração por sua bela figura e os amores a ela dedi-
cados em seu auge; Genji lamenta as amantes que não consegue
manter ou obter e suas faltas morais em relação ao pai, seu
superior em idade e posição, e a volta a si de mesma incorreção.
Podemos dizer que esse conceito se centraliza principalmente
nos sentimentos domésticos; daí a insistência dos teóricos no
âmbito psicológico. Na arena dos negócios públicos, após o
período Heian, quando as casas de guerreiros se digladiavam
para centralizar poderes, o sentimento de perda diante da
efemeridade de destinos e possessões passa a responder pelo
termo mujōkan 無常観 (visão sobre a inexistência da pereni-
dade), esse sim, budista e eivado de tons de resignação perante
incontáveis perdas inexoráveis, prementes e correntes, talvez,
um termo muito mais pertinente do que it’s-too-bad-but.

BIBLIOGRAFIA

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and The Nuclear Image in Japanese film. New York: Routledge, 2009.

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REFLEXÕES SOBRE MONO-NO-AWARE 55

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s. n.], 2020. 1 vídeo (17 min). Publicado pelo canal Homeland Cinema.
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Acesso em: 19 mar. 2022.

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56 Cordaro M. N. H. & Okano M.

FILMOGRAFIA
ANATOMIA do medo (Ikimono-no kiroku 生きものの記録). Direção: Akira
Kurosawa 黒澤明. Tokyo: Toho Company, 1955. 1 DVD (103 min), P&B,
mono.

FILHOS de Hiroshima (Hiroshima-no ko 広島の子). Direção: Kaneto


Shindō 新藤兼人. Hiroshima: Hiroshima City, 1952. 1 DVD (97 min),
P&B, mono.

HIROSHIMA mon amour. Direção: Alain Resnais. Nevers: Argos


Films, 1959. 1 DVD (92 min), P&B, mono.
Avancini A.

A ARTE DA PAZ:
O CORAÇÃO DE HIROSHIMA
ATENUA A BOMBA ATÔMICA
Atílio Avancini
Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO
Na temática “A arte da catástrofe e a cultura japonesa”,
o que visamos aqui é apresentar um relato crítico de expe-
riência pessoal no parque e no museu Memorial da Paz em
Hiroshima. Com o acontecimento desastroso de grandes
proporções causado pela explosão da bomba atômica em 6 de
agosto de 1945, busca-se encontrar na estética museográfica
do horror uma ressignificação. A proposta de compreender
“o coração de Hiroshima”, mobilizado pelo desejo de paz,
fomenta a conciliação da não violência e do silêncio, desen-
volvendo firme rejeição à tragédia e superação do trauma.
Na integração entre o tempo presente e o tempo passado,
a imaginação voa alto ao encontro das sensações do filme
Hiroshima mon amour (1959), de Alain Resnais. Parque e
museu podem ser um tempo-espaço de reflexão sobre um
fato catastrófico, mas totalmente dedicado à conscientização
da paz — hipótese central deste texto.
Palavras-chave: Arte contemporânea. Estética japonesa.
Tradição cultural. Arte da catástrofe. Museografia.
60 Avancini A.

SOMMAIRE
Dans le cadre du thème “L’Art de la catastrophe et la culture japo-
naise”, notre objectif ici est de présenter un compte rendu critique de
l’expérience personnelle vécue dans le parc et le musée du Mémorial
de la Paix à Hiroshima. Avec l’événement désastreux de grande
ampleur provoqué par l’explosion de la bombe atomique le 6 août
1945, on cherche à trouver dans l’esthétique muséographique de
l’horreur une resignification. La proposition de comprendre “le cœur
d’Hiroshima”, mobilisée par le désir de paix, favorise la concilia-
tion de la non-violence et du silence, en développant un rejet ferme
de la tragédie et dépassant le traumatisme. Dans l’intégration
entre le temps présent et le temps passé, l’imaginaire s’envole à la
rencontre des sensations du film Hiroshima mon amour (1959),
d’Alain Resnais. Le parc et le musée peuvent être un espace-temps
de réflexion sur un fait catastrophique, mais totalement dédié à la
sensibilisation à la paix — hipótese central deste texto.
Mots-clés: Art contemporain. Esthétique japonaise. Tradition
culturelle. Art catastrophique. Muséographie.

INTRODUÇÃO

Seis de agosto de 1945. A manhã de verão desse domingo,


às oito horas e quinze minutos, inesperadamente torna-se
noite. Hiroshima, no Japão, é alvejada pelos Estados Unidos,
deixando rastros em nuvens de cogumelo. O bombardeiro
B29 Enola Gay (nome da mãe do piloto Paul Tibbets) lança
sobre Hiroshima uma única bomba atômica apelidada de
Little Boy, a primeira da história a ser utilizada em uma
guerra. O primeiro teste nuclear dos Estados Unidos fora
realizado duas semanas antes, em 16 de julho de 1945, no
estado norte-americano do Novo México. Repete-se a ação
traumática de Hiroshima três dias depois em Nagasaki.
Não há feito heroico na guerra, tampouco motivo de orgulho.
A bomba atômica fere o coração do povo japonês.
A ARTE DA PAZ 61

As histórias condensam a dor, o horror e o desespero


provocado por um dos maiores crimes de guerra jamais
julgado. Estima-se mais de 200 mil mortos em Hiroshima e
Nagasaki, desintegrados, em minutos, nas chamas do cogu-
melo atômico (SERRA, 2022, p. A2).

Geograficamente toda cercada por montanhas, a cidade


de Hiroshima é um delta entremeado por sete rios em uma
planície. Sua gente semeia o “espírito de Hiroshima”, cidade
símbolo da paz mundial. Não por acaso, o código de ética
do Japão antigo está fundamentado nos Estudos Clássicos
de Hiroshima (século XVII), e a cidade continua a exercer
uma tradição educacional. Na Segunda Guerra Mundial,
ela fora um centro militar ligado ao porto e à base naval de
Kure, por isso foi a primeira cidade destruída pela bomba;
suas edificações também foram destruídas em segundos
por 12,5 toneladas de TNT.
Os objetivos da cidade de Hiroshima, no texto oficial
“O bombardeio atômico e as iniciativas de paz” (THE
CITY OF HIROSHIMA, 2022, tradução nossa), estão repli-
cados no parque Memorial da Paz e no museu Memorial
da Paz: transmitir a realidade da bomba atômica à posteri-
dade; apelar para a abolição das armas nucleares; realizar
um acordo mundial permanente e duradouro; e proteger,
difundir e transmitir o bombardeio atômico para que
possam compreender “o coração de Hiroshima” impelido
pelo desejo da concórdia.
No parque Memorial da Paz, há a abóbada em ruínas do
antigo prédio da prefeitura (Figura 1), que suportou o ataque
nuclear. O Domo da bomba atômica é o nome do prédio
tombado, cuja estrutura metálica com cobertura hemisfé-
rica está preservada. Esse prédio — projetado pelo arquiteto
tcheco Jan Letzel (1880-1925), em 1915 — permanece em pé,
demarcando uma simbólica resistência.
Hiroshima é elegante, moderna, altiva, repleta de
árvores frondosas e rodeada por mar e montanhas. O delta
sinuoso e limpo do Rio Ōta realça a sua beleza geográfica.
62 Avancini A.

A cidade completamente reconstruída lembra a cidade de


Santos: prédios modernos, porto marítimo, jardins floridos,
amplitude paisagística e atmosfera agradável.

Figura 1. Transeuntes passam ao lado do Domo, o coração pulsante e


resistente da cidade. Hiroshima, 2006. Fonte: Avancini (2008, p. 171).

Baseada na contradição conflito e concórdia, a letra da


canção “A paz”, de Gilberto Gil e João Donato, de 1986 e que
compõe o álbum Donatural, é decorrente da busca pelo acordo
na guerra: “Uma bomba sobre o Japão / Fez nascer o Japão da
paz” (A PAZ, 2009). Aí está a proposta do coração de Hiroshima:
sedimentar a não violência, a conciliação e o silêncio.
Dentro da temática “A arte da catástrofe e a cultura
japonesa”, visamos aqui apresentar um relato de experi-
ência pessoal, ocorrida em 6 de agosto de 2006, no parque
Memorial da Paz e museu Memorial da Paz em Hiroshima.1
A catástrofe tecnológica causada pela explosão da bomba

1 Este texto desenvolve e aprofunda a reflexão sobre a experiência


pessoal do autor em 6 de agosto de 2006, descrita no capítulo “Kane” do
livro Entre gueixas e samurais (2008).
A ARTE DA PAZ 63

atômica em 6 de agosto de 1945 é indescritível. Neste estudo


de caso, parque e museu podem ser um tempo-espaço de
reflexão sobre eventos traumáticos para a conscientização
da busca da paz — hipótese central deste texto.

A MEMÓRIA PÚBLICA ENTRE A ARTE E A CATÁSTROFE


O parque Memorial da Paz é uma área verde e um lugar
histórico, artístico e arquitetônico. Dentro desse parque
público, o museu Memorial da Paz acolhe registros docu-
mentais e cria uma reconstrução e uma releitura da catás-
trofe atômica na troca com a sociedade, privilegiando
a possibilidade de homenagear todos os atingidos pela
bomba atômica, direta ou indiretamente. A curadoria do
museu une atividades didático-pedagógicas e de pesquisa,
como estética do espaço físico, edição de imagens, ilumi-
nação, montagem, composição, sequencialidade, textos de
apresentação, legendas e reserva técnica. Ou seja, ela atua
diretamente com toda a organização informativa, plástica e
sensorial relacionada ao tema.
O espaço de reconstrução da memória, associado à
bomba, reflete o importante papel social das representações
da violência. A mostra possibilita aproximação ao tema,
mas também certo encantamento, que contorna o trauma.
O acervo fomenta a participação objetiva e subjetiva, que
promove a humanização, favorecido pelo pensamento e pelo
fator limite de “irrepresentatividade”. A leitura do espec-
tador, portanto, possibilita significações e ressignificações:

A associação entre arte e catástrofe propicia a tematização do


horror. Leva o visitante a perceber a dimensão da tragédia no
silêncio de cada peça sobrevivente. Roupas, sapatos, retratos ou
a bicicleta de uma criança resgatam os sonhos mortos no hori-
zonte. Lembranças que levam o visitante a questionar o futuro
do planeta. Guerra. Ou paz? 2

2 Depoimento de Leila Kiyomura a Atílio Avancini, em São Paulo,


28 fev. 2022. Projeto Museu Memorial da Paz.
64 Avancini A.

A Federação Internacional das Sociedades da Cruz


Vermelha (IFRC), fundada em 1919, coordena respostas
humanitárias às grandes catástrofes, elencando duas catás-
trofes: a natural e a tecnológica. A segunda é derivada do
funcionamento de uma estrutura tecnológica, como o rompi-
mento de uma barragem, o lançamento de uma bomba
atômica ou o vazamento em usina nuclear. A bomba atômica
demarca o funcionamento limite da tecnologia nuclear.

Figura 2. Janela do museu Memorial da Paz, que está planejado em linha com o
Cenotáfio e o Domo. Hiroshima, 2006. Fonte: Avancini (2008, p. 144).

Localizado no parque Memorial da Paz, o prédio


principal do museu Memorial da Paz (Hiroshima Peace
Memorial Museum), inaugurado em 24 de agosto de 1955,
possui um grande vão livre; sua área expositiva percorre dois
blocos, no primeiro andar e no térreo. O urbanista japonês
Kenzo Tange (1913-2005), vencedor do concurso público em
1949, planejou o museu, interligando-o em linha reta com o
Cenotáfio e o Domo (Figura 2). O Cenotáfio é um monumento
à memória das vítimas da bomba, com a chama acesa da paz.
O Domo torna-se o símbolo da resistência de Hiroshima.
A ARTE DA PAZ 65

A arquitetura moderna do prédio principal do museu


Memorial da Paz lembra o edifício icônico do Museu de
Arte de São Paulo (MASP), suspenso em vão livre de
setenta metros, projetado pela arquiteta ítalo-brasileira
Lina Bo Bardi (1914-1992). O concreto armado em fôrma
propõe ao museu japonês uma perspectiva de entrelugar
e universalidade. Pontuado por pilares, a horizontalidade
aberta e ventilada do vão livre sugere diálogo entre o
concreto e o abstrato.
Kenzo Tange inspirou seu projeto no trabalho do arqui-
teto e urbanista franco-suíço Le Corbusier (1887-1965), que
reconhecia os valores sociopolíticos da arquitetura clássica
grega, como a Acrópole de Atenas, expressos no contato
silencioso — e diário — entre as pessoas. O museu Memorial
da Paz (Figura 3) busca quebrar as hegemonias estruturais; e,
como produção de conhecimento artístico, o prédio público
em si já é uma firme rejeição à tragédia e ao trauma.
No edifício principal, a exposição é permanente, subdi-
vidida em quatro partes: “Devastação em 6 de agosto”;
“Danos da radiação”; “Gritos d’alma”; e “Viver”. Nesta última,
a arte do papel dobrado, origami,3 manifesta-se nos incontá-
veis tsuru apresentados — ave sagrada associada à oração e
proteção, que simboliza saúde, felicidade e longevidade.
No edifício leste, inaugurado em 2017, há três áreas de
exposição: “Introdução”; “Os perigos das armas nucleares”
(o desenvolvimento e lançamento da bomba atômica; as
ameaças da bomba atômica; a abolição das armas nucle-
ares); e “A história de Hiroshima” (Hiroshima antes e
durante a guerra; a recuperação de Hiroshima e os diversos
apoios; por um mundo de paz). O prédio ainda acolhe os
vídeos de testemunhas da bomba atômica, uma biblioteca e

3 Origami 折り紙 (ori significa “dobrar” e ekami, “papel”) como se conhece


hoje se estabeleceu no período Edo (1603-1868); consiste em dobrar um
papel quadrado para criar representações figuradas com as dobras
geométricas. Não há corte, tampouco uso de cola.
66 Avancini A.

a loja do museu. Já no edifício oeste, está localizado o Centro


Internacional de Conferência de Hiroshima.

Figura 3. O intervalo entre os pilares do prédio principal do museu Memorial


da Paz propõe uma atmosfera favorável aos ventos renovados. Hiroshima, 2006.
Fonte: Avancini (2008, p. 146).

A EXPERIÊNCIA PESSOAL DO CERIMONIAL DA PAZ EM


6 DE AGOSTO DE 2006

Dom, dom, dom, dom, dom. O sino de bronze, kane, reverbera


em solene explosão sonora. Cinco pancadas são desferidas
na superfície externa do cone invertido precisamente às 8h15
da manhã. Sentado em lugar reservado no parque Memorial
da Paz, assisto ao cerimonial. Durante a silenciosa oração, as
cigarras se permitem “vaiar” ruidosamente em forma de si,
si, si. Afinal, a cerimônia relembra a entrada do ser humano
na era nuclear 61 anos antes. É dia de domingo, céu azul,
calor de escaldar.
É como se o silêncio exacerbado rememorasse as pala-
vras de Takashi Morita (1924-) que, exercendo o ofício de
policial militar do exército imperial japonês, relata o 6 de
A ARTE DA PAZ 67

agosto de 1945 próximo à ponte de Yokogawa. Morita procu-


rava, naquele momento, um abrigo de possíveis ataques
norte-americanos.

Às 8h15, quando estávamos a caminho do abrigo, de súbito,


uma força que pareceu vir do além me arremessou cerca
de dez metros para a frente. Literalmente voei, tamanho
o impacto que me atingiu pelas costas. Nesse mesmo
instante, fui envolvido por uma intensa luz branca. Toda a
cidade foi envolvida por essa luz do terror. Quando fui atin-
gido, estava a uma distância de 1,3 quilômetros do epicentro
da bomba atômica. Não sei quanto tempo passou até conse-
guir me levantar e tomar uma atitude. Intuitivamente, senti
medo de olhar para a cidade, de saber o que tinha aconte-
cido. Como poderia, em plena manhã de verão, ficar tudo
escuro, como se fosse noite? Nunca havia presenciado algo
assim, poderia até imaginar que o mundo estava acabando
(MORITA, 2017, p. 55).

Assisto, em seguida, às declarações cronometradas


do Primeiro-Ministro, do secretário das Nações Unidas, do
prefeito e do governador de Hiroshima. À dedicação das
flores, uma multidão paciente deposita ramalhetes diante da
chama da paz às almas dos desaparecidos. Olho os familiares
das vítimas inocentes se curvarem e unirem suas mãos em
forma de prece: idosos, trabalhadores, estudantes e crianças.

O MUSEU MEMORIAL DA PAZ, ESPELHO TERAPÊUTICO


No piso térreo do edifício de concreto armado, por engano,
adentro o espaço museográfico pela porta da saída. O sentido
do fim para o começo poderia me organizar melhor? O Japão,
a todo instante, oferece essas oportunidades de inversões à
normalidade. Passo toda a tarde bem ocupado: maquetes,
infográficos, fotografias, vídeos, desenhos, instalações, arte-
fatos, objetos pessoais, relíquias, testemunhos e manuscritos.
Muita gente se debruça atônita diante do visível, tal qual um
espelho de memórias. Os passos são curtos e apertados,
o silêncio é incômodo, os corpos se contorcem no espaço
informativo. As obras apresentadas transcendem objetivos e
68 Avancini A.

forjam novas significações. Desde já, atesto dois paradoxos:


os textos em inglês estão escritos na língua dos bombarde-
adores, e o local amplo, limpo e confortável, como uma sala
de visitas, destoa das imagens de atrocidades humanas.
A história do fotógrafo Yoshito Matsushige (1913-2005)
emociona. Em 6 de agosto de 1945, quando ele se preparava
para ir ao jornal Chugoku Shimbun, o mundo ao seu redor de
repente estava branco e brilhante, como se alguém tivesse
disparado um flash no seu rosto. Há, em vídeo, as declara-
ções desse fotojornalista japonês a produzir cinco registros
do cenário urbano após a explosão da bomba, as únicas foto-
grafias conhecidas clicadas naquele dia por um transeunte
nas ruas de Hiroshima. Como teria reagido o fotojornalista
diante de algo tão desolador e repulsivo, ao presenciar a
morte de irmãos?

Eu tinha sofrido apenas ferimentos leves causados por esti-


lhaços de vidro. Após 40 minutos peguei minha câmera foto-
gráfica, vesti uma roupa que achei no meio de escombros e
saí para a rua. Foi como uma visão do inferno. Vi um bonde
queimando. Dentro estavam quinze ou dezesseis passa-
geiros, mortos uns sobre os outros, com as roupas arran-
cadas. Meus cabelos arrepiaram e as pernas tremeram.
Caminhei para tirar uma foto. Não consegui, meu coração
estava partido, não pude tirar fotos de corpos mortos. Havia
outros fotógrafos, mas nenhum deles conseguiu fotografar
(MUSEU MEMORIAL DA PAZ, 2006).

No centro da sala do edifício principal, repousa uma


chaminé fissurada de concreto e ferro — um dos poucos
objetos que sobraram no raio de dois quilômetros do hipo-
centro da bomba. O texto de parede informa: “Depois de meia
hora de detonação, a cidade inteira numa gigante conflagração
consumiu tudo o que era combustível” (MUSEU MEMORIAL
DA PAZ, 2006). A bomba explodiu em uma altitude aproxi-
mada de 580 metros e emitiu três formas de energia: calor,
ventos fortes e radiação. Muitas casas no Japão eram feitas de
madeira; Hiroshima logo se transformou em uma bola de fogo.
No raio de cinco quilômetros do hipocentro, as temperaturas
A ARTE DA PAZ 69

atingiram entre 3000°C e 4000°C; a rajada de vento soprou a


440 metros por segundo e criou uma energia física agente
de dezenove toneladas por metro quadrado. A radiação resi-
dual promovida pela fissão de cinquenta quilos de urânio
penetrou as células humanas — dia de verão, a maioria das
pessoas estava com roupas leves e a pele descoberta —,
e muitos morreram pelos efeitos da radiação.
As nuvens em forma de cogumelo carregaram muita
poeira, e o vapor de água do ar gerou uma chuva negra — intensa,
espessa e morna — de radioatividade. Instantaneamente,
a cidade estava devastada. Cenas do fim do mundo? O exato
número de baixas ainda permanece desconhecido, e muitas
das vítimas nunca foram identificadas. A cidade de Hiroshima
enviou às Nações Unidas um documento, conhecido como
Eliminação de armas nucleares e redução de forças armadas e
armamentos (1976), que estimava cerca de 140 mil óbitos decor-
rentes da explosão e de suas consequências até o final de 1945
(MUSEU MEMORIAL DA PAZ, 2006).
Há milhares de itens na coleção do Museu, incluindo
pertences das vítimas e objetos materiais. Essas peças
comunicam sem palavras, parecendo não haver uma lâmina
de vidro entre o espectador e as relíquias. Impressionam os
relógios de Kawagoe e Nikawa: ambos os ponteiros estão
encravados nas marcas do VIII e do III. A precisão do
horário, naquele domingo sinistro, às oito horas e quinze
minutos da manhã, remonta aos marcos do tempo crono-
metrado e do instante fugaz, surgidos com as tecnologias
da era moderna.

Um objeto, na verdade, se transformou em símbolo do


momento: um relógio, cujos ponteiros parados indicam a
hora em que “Hiroshima explodiu” sob o impacto da bomba
atômica. Este relógio repousa numa vitrine, ao lado de outros
objetos que, pode-se dizer, de alguma forma “resistiram”.
Seu proprietário era Kengo Nikawa, que, no momento da
explosão, andava de bicicleta em direção ao seu trabalho
no centro da cidade, a 1600 m do epicentro, no alto da ponte
Kan’on. Sofreu queimaduras na cabeça e nas costas, vindo a
70 Avancini A.

falecer 14 dias depois. O relógio — que estava sempre com ele


onde quer que ele fosse — parou exatamente às 8h15min39s.
A tragédia de Hiroshima ficou com hora marcada. Nesse
momento, a cidade parou (MAGALHÃES, 2005, p. 79).

É uma imagem assustadora o triciclo desfigurado e


contorcido do menino Tetsutani; a marmita transformada
em bronze, com o bentō (refeição acondicionada) petrificado
do estudante Orimen, também. Tudo desliza e ainda derrete
nas duas garrafas esverdeadas de vidro, nas estátuas reli-
giosas de metal, nas tigelas de cerâmica azulada ou nos aglo-
merados de moedas. Os retratos fotográficos de algumas
vítimas são testemunhos dos efeitos causados pela radiação
no ser humano: rostos, dentes, costas, cabelos, mãos, dedos,
unhas, pernas, pés e peles. Acredito em uma realidade que
posso conhecer a partir das representações fotográficas,
mas nesse espaço museográfico consigo processá-la de
modo bastante limitado.
O museu Memorial da Paz promove perguntas com
respostas. Por que os Estados Unidos desenvolveram a
bomba? Por que decidiram lançá-la no Japão? Por que
Hiroshima? Entretanto, há pouca discussão sobre os conflitos
japoneses, por exemplo, a longa guerra sino-japonesa que se
encerrou em 1945, deixando entre 10 e 25 milhões de civis
mortos ou feridos, além do ataque à base norte-americana
de Pearl Harbor, no Havaí, em 1941, o que fez os Estados
Unidos entrarem na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Também não há comentários sobre a Constituição do Japão
de 1946, que designou o imperador Hirohito4 (1901-1989)
como símbolo de estado e poder político-celestial expugnado.

4 O Imperador Shōwa foi o 124º do Japão. Durante seu reinado (1926-1989),


o mais longo dos imperadores, o Japão se tornou a nona economia
mundial. Seu império demarcou a derrota do Japão na Segunda Guerra
Mundial e, por imposição dos Aliados, negou o seu caráter divino e
efetivou a monarquia constitucional.
A ARTE DA PAZ 71

HIROSHIMA MON AMOUR, O CLÁSSICO DE ALAIN RESNAIS

Percebo, na parede do museu Memorial da Paz, um painel


em preto e branco de uma Hiroshima arrasada, cuja foto-
grafia foi produzida pela aeronáutica norte-americana em
6 de agosto de 1945. Contemplo a imagem, espalhando
o meu olhar pelas texturas acinzentadas. É a imagem
produzida por um dos aviões norte-americanos depois
da explosão da bomba. Fixadas na frente dos aviões, as
câmeras fotográficas traziam informações para auxi-
liarem nas estratégias e táticas de guerra. Essas imagens
ganharam tintas e sons, mas tudo ainda permanece indes-
critível, invisível e inaudível. De fato, o povo japonês foi
o primeiro que sofreu as atrocidades inimagináveis do
horror atômico.
Depois de algum tempo diante do painel fotográfico,
percebo à minha frente a presença estática de um jovem,
munido com aparelho de áudio, fixando o olhar na foto. O painel
ganha agora outro significado. Sem pensar, enquadro a cena
e a fotografo (Figura 4). A partir disso, o tempo presente inte-
gra-se ao tempo passado, e a imaginação voa alto ao encontro
das sensações do filme Hiroshima mon amour, (1959) de Alain
Resnais, a começar pelas várias cenas em que o casal do
romance conversa de costas um para o outro.
Intermediado pela necessidade da lembrança e do esque-
cimento, o filme evita a descrição do horror atômico. Ou seja,
algo interage no renascimento da vida pelas próprias cinzas,
nos corpos dos amantes cobertos de poeira e suor, na inte-
gração promovida pelo amor ou na força da natureza pela
sobrevivência. A crítica jornalística de Paulo Emílio Sales
Gomes (1916-1977) — jornal O Estado de S. Paulo, publicada
no Suplemento Literário de 7 de maio de 1960 — relata que
Hiroshima mon amour (1959) comunica algo “de essencial a
respeito da pele e da paz” (GOMES, 2015, p. 515). A pele, que
protege e capta estímulos, torna-se violentamente agredida
e exposta sem o conforto da paz.
72 Avancini A.

Figura 4. A relação do jovem com o painel ao fundo gera perplexidade.


Hiroshima, 2006. Fonte: Avancini (2008, p. 148-149).

O impulso criativo — e reativo — do audiovisual vem


da possibilidade de literalmente sobrevoar — e tocar —
o próprio horror. Na Hiroshima marcada pelo cataclismo
atômico, a roteirista do filme Marguerite Duras (1914-1996)
e o cineasta Alain Resnais (1922-2014) pontilham recorda-
ções pela nobre missão de discutir o amor incondicional.
A presença do jovem e o painel ao fundo sugerem algo trans-
formador, lembrando a imagem do “anjo da história” benja-
miniano5 em direção ao futuro, pois “representa um anjo que
parece se afastar de qualquer coisa em que ele fixa o seu
olhar” (BENJAMIN, 2018, p. 22, tradução nossa).6
“Em oposição ao materialismo histórico, a configuração
do passado funda um ‘agora’ com base nas forças ocultas
de espaços internos” (AVANCINI, 2012, p. 229). A fotografia

5 A figura do "anjo da história" de Walter Benjamin (1892-1940) foi


inspirada na aquarela expressionista do pintor Paul Klee (1879-1940),
Angelus Novus (1921), que olha fixamente para a catástrofe do passado.
6 “Il représente un ange qui semble être en train de s’éloigner de quelque
chose à laquelle son regard reste rivé.”
A ARTE DA PAZ 73

(Figura 4) busca compreender a atrocidade atômica em gesto


amoroso: não mais regressar ao passado, mas viver o presente
e encontrar um caminho efetivo. O monge zen-budista, paci-
fista e poeta Thich Nhat Hanh (1926-2022), conhecido como
Thay, que desenvolveu oposição à guerra Estados Unidos-
Vietnã (1955-1975), declarou no filme Peace Is Every Step (1997),
sobre “a arte de viver consciente”, que primeiramente deverí-
amos desativar “a guerra dentro de nós” (PEACE..., 1997).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O parque Memorial da Paz e o museu Memorial da Paz
evidenciam que a destruição atômica extrapolou fronteiras:
não há mais distância física entre Hiroshima e qualquer país
ou cidade do planeta, ou seja, somos mais iguais quando
vítimas da destrutividade e prepotência humana.
Não tivemos a experiência direta da bomba atômica e não
sabemos o que o evento trágico em si significa. “Você não viu
nada em Hiroshima... Você inventou tudo...” (HIROSHIMA...,
1959, tradução nossa).7 Essa afirmação promove algo novo,
que desestabiliza a memória do fato histórico. A concepção
da história é sempre insustentável, endossando a visão do
“anjo” benjaminiano de ser levado por uma tempestade “irre-
sistivelmente para o futuro” (BENJAMIN, 2000, p. 434).
De fato, essa proposta fílmica dialoga com a ideia da
tragédia, gênero teatral ou dramático encenado durante a
Grécia Antiga, que envolvia de forma solene os deuses e a
sociedade com final infeliz e trágico. Isso poderia promover
o exercício da catarse para purificar os sentimentos e fazer
o possível para que esses fatos não ocorressem novamente.
Teria sido esse o mote curatorial do museu Memorial da Paz?

A bomba atômica é muito difícil de aceitar, mataram muitos


civis e não consideraram os orientais como iguais. A burocracia

7 “Tu n’as rien vu à Hiroshima... Tu a tout inventé...”.


74 Avancini A.

militar fez o Japão tomar o caminho errado, um engano que não


deveríamos repetir. O museu Memorial da Paz registra parcial-
mente o que aconteceu e cada um depois vai pensar o que fazer.8

O parque e o museu trabalham com a materialidade do


horror e apresentam outros modos efetivos de olhar o mundo
e construir sensações e afetos sem fronteiras. Seria um passo
para a integração entre ciência e arte? Depois de 1945, quando a
pesquisa científica era associada ao conhecimento científico, a
ciência mundial foi descolando-se da guerra e assumindo não só
as causas da paz, mas também os fundamentos da democracia,
ética, meio ambiente, saúde, cultura, direitos humanos e arte.
Para evitar futuras atrocidades mundiais, o parque e o museu
de Hiroshima são oportunidades para romper normalidades e
hegemonias históricas. “Mas o efeito pode ser invertido, e uma
foto, um gigantesco cogumelo de fogo, pode inspirar a ânsia de
paz e justiça em escala mundial” (SEVCENKO, 1999, p. 3).
Na noite do cerimonial da paz, nos 61 anos da entrada
humana na era nuclear, a última atividade do parque
Memorial da Paz promoveu a igualdade de direitos: a prática
do louvor das lanternas coloridas — réquiem a flutuar lenta-
mente sobre o rio. A tênue luz alaranjada das chamas, a refletir
na superfície do espelho d’água, reforça a relação homem-
-natureza e o mundo dos fenômenos naturais. Uma imagem
perfeita da estética do sol nascente. Mas durante a silenciosa
cerimônia noturna, as cigarras continuam a “vaiar” teimosa-
mente em forma de si, si, si...

BIBLIOGRAFIA
A PAZ. Intérpretes: Gilberto Gil e João Donato. Compositores: João
Donato e Gilberto Gil. In: DONATURAL. Intérprete: João Donato. Rio de
Janeiro: Espaço Cultural Sérgio Porto, 2009. 1 CD, faixa 10 (3 min).

8 Depoimento de Shiro Iynaga a Atílio Avancini, em Quioto, 3 fev. 2022.


Projeto Museu Memorial da Paz.
A ARTE DA PAZ 75

AVANCINI, Atílio. Asas da história, anjos do desejo. Revista Significação,


São Paulo, v. 39, n. 38, 2012. p. 227-246.

AVANCINI, Atílio. Entre gueixas e samurais: fotografias e relatos de


viagem. São Paulo: Edusp, 2008.

BENJAMIN, Walter. Thèses sur le concept d’histoire. Trad. de Michael


Löwy. Paris: Bibliothèque Anarchiste, 1940. Disponível em: https://rybn.
org/human_computers/articles/walter-benjamin-theses-sur-le-concept-
d-histoire.a4.pdf. Acesso em: 1 fev. 2023.

GOMES, Paulo Emílio Sales. O cinema no século. São Paulo: Companhia


das Letras, 2015.

HIROSHIMA mon amour. Direção: Alain Resnais. [S. l.]: Argos Films;
Daiei Studios, 1959. 1 longa-metragem (92 minutos).

MAGALHÃES, Fernanda Torres. 6 de agosto de 1945: um clarão no céu


de Hiroshima. São Paulo: Nacional, 2005.

MORITA, Takashi. A última mensagem de Hiroshima: o que vi e como


sobrevivi à bomba atômica. São Paulo: Universo dos Livros, 2017.

MUSEU MEMORIAL DA PAZ. Textos da exposição permanente.


Hiroshima: Museu Memorial da Paz, 2006.

PEACE is every step. Direção: Gaetano Kazuo Maida. Paris: NTSC, 1997.
1 longa-metragem (52 min), color.

SERRA, Cristina. Todo sangue é vermelho 2. Folha de S.Paulo, São Paulo,


p. A2, 7 mar. 2022.

SEVCENKO, Nicolau. Eu queria roubar a natureza. Folha de S.Paulo, São


Paulo, 9 dez. 1999. p. 3.

THE CITY OF HIROSHIMA. The Atomic Bombing and Peace


Initiatives. Hiroshima, [2020]. Disponível em: https://www.
city.hiroshima.lg.jp/site/atomicbomb-peace/. Acesso em:
18 fev. 2022.
Okano M. & Endo P.

TEMPOS DE GUERRA:
A ARTE E A DEVASTAÇÃO NUCLEAR1
Michiko Okano
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Paulo Endo
Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO
O ensaio trata da repetição das guerras em um mundo ética e
moralmente degradado, que destitui valores, formas e huma-
nidade em troca de exposição de força bruta, do risco iminente
de uma devastação nuclear e da fascinação pelos artefatos
de guerra e destruição em massa. Será retomado o exemplo
japonês do bombardeio nuclear de Hiroshima e Nagasaki, que
inaugura um período de ameaças, sem termo, a toda a humani-
dade, levadas a cabo pelos Estados Unidos durante a Segunda
Guerra Mundial. Aqui será enfatizado o trabalho dos artistas Iri
e Toshi Maruki e do pensamento que se ergue na obra de arte
para apontar o intolerável diante da banalização e apoio em
massa da destruição sem fim de povos, nações e populações
inteiras, em um mundo em permanente beligerância.
Palavras-chave: Guerras. Hiroshima e Nagasaki. Bombas
nucleares. Iri e Toshi Maruki.

1 Este ensaio, escrito há alguns anos, nos surpreendeu por sua atua-
lidade, quando a destruição do planeta volta a lançar sua sombra a
partir da invasão da Rússia à Ucrânia no início de 2022. Milhões de
refugiados, milhares de mortos e desabrigados, famílias desfeitas e
o terror de uma guerra nuclear evidenciam que a brutalidade ainda
pauta, soberana, as relações humanas, entre países, e o pincel, o
formão e a caneta ainda circundam o perímetro que resgata homens e
mulheres entre bombas, fuselagens e fumaça.
78 Okano M. & Endo P.

ABSTRACT
This essay deals with the repetition of wars in a world that is
ethically and morally degraded and that deprives values, forms,
and humanity in exchange for the exposure of brute force, of the
imminent risk of nuclear devastation, and of the fascination for
war artifacts and mass destruction. We will return to the Japanese
example of the nuclear bombing of Hiroshima and Nagasaki,
which inaugurates a period of endless threats to all humanity,
carried out by the United States during the Second World War.
Here will be emphasize the work of the artists Iri and Toshi
Maruki and the thought that arises in the work of art to point out
the intolerable in the face of the trivialization and mass support of
the endless destruction of peoples, nations, and entire populations
in a world in permanent belligerence.
Keywords: War. Hiroshima and Nagasaki. Nuclear bombs.
Iri and Toshi Maruki.

Duas experiências concorrentes, oponentes e contraditórias


atravessam as ações, estratégias e debates sobre a memória
quando pensamos em Hiroshima e Nagasaki. Dezenas
de milhares de vítimas foram imediatamente fulminadas
após o ataque atômico dos Estados Unidos contra o Japão,
durante a Segunda Guerra Mundial, e incontáveis vítimas
sobreviveram após os ataques, mas permaneceram reféns
das consequências radioativas da bomba, além de sofrerem
os conceitos e preconceitos ativados no Pós-guerra, dentro
e fora do Japão, e as formas de discriminação social que
produziram uma segunda condenação às vítimas e aos
descendentes dos hibakusha. Os efeitos imediatos da bomba,
sua devastação flagrante e o extermínio da população de
uma cidade inteira parecem, por vezes, serem esquecidos
diante dos efeitos posteriores não apenas da radiação nas
pessoas afetadas, mas do preconceito subsequente que
sofreram e, depois, da negligência e indiferença do Japão e
TEMPOS DE GUERRA 79

outras nações dando seguimento a políticas de geração de


energia nuclear sem controle, como atestaram os acidentes
nucleares de Fukushima em 2011.
As guerras, os estados beligerantes, têm objetivos explí-
citos e inúmeros objetivos secretos. Matar o inimigo é o
mais explícito deles, enquanto marcar para sempre as gera-
ções sucessivas é um de seus objetivos implícitos, escusos
e inconfessados. Uma temporalidade estúpida é proposta e
opera como um dispositivo de sequestro do tempo, quando
se recortam as experiências entre antes e depois da guerra,
no pré e no Pós-guerra, atribuindo aos conflitos bélicos entre
nações as dicotomias que fundamentam massacres, torturas e
violações que não terminam com os conflitos armados. Pelo
contrário, se perpetuam como marcas de sua herança, que
inclui um modo de pensar, sentir, sonhar e desejar, muitas
vezes herdados perenemente pelas gerações sucessivas.
Walter Benjamin (1985a, p. 61) assinalou essa condição
da guerra de modo tão claro como contundente, quando
sintetiza um comentário de Léon Daudet sobre o salão do
automóvel: “L’automobile c’est la guerre!”; e complementa:

O que estava na raiz dessa surpreendente associação de


palavras era a ideia de uma aceleração dos instrumentos
técnicos, seus ritmos, suas fontes de energia etc., que não
encontram em nossa vida pessoal nenhuma utilização
completa e adequada e, no entanto, lutam para justificar-se.

Toda a frase de Benjamin merece atenção em pormenor.


Esta não apenas problematiza a indiferença do fascínio dos
sistemas que produzem, pensam e criam técnica em detri-
mento do que é “pessoal” e “humano”, mas radicaliza essa
indiferença conferindo à técnica uma teleologia própria que
“luta[m] para justificar-se.” Trata-se de uma mudança exor-
bitante nos modos de ser e estar que a técnica e seus dispo-
sitivos impõem, acompanhados do fascínio que eles geram.
De um lado, a imposição irrevogável que nos impele a aban-
donar tudo que é obsoleto e ultrapassado, de outro, a crença de
80 Okano M. & Endo P.

que a nova versão é inadiável e corresponde ao avanço natural


de todas as coisas. Diante das novidades tecnológicas, não se
enxergam mais as marcas do retrocesso, ofuscadas por seu
brilho, pelo seu barulho maquinal, por sua eficácia prometida e
pela convicção de que elas são imprescindíveis.
As maravilhas tecnológicas também são colocadas em
exposição para o amor e a cobiça dos consumidores que as
podem idolatrar, amar e possuir. Uma pequena porção do
milagre tecnológico é acessível pelo cidadão comum, mas
sua apoteose só poderá ser testemunhada no grandioso
espetáculo das guerras.
O fascínio das tecnologias, que cada vez mais intensa-
mente ultrapassam as reais necessidades das pessoas comuns
em suas vidas ordinárias, tem seu palco privilegiado nos
conflitos bélicos, nos quais força bruta e tecnologia andam de
mãos dadas, oferecendo ao homem comum, ao mesmo tempo,
o espetáculo de duas impossibilidades: a do assassinato em
massa e do uso de engenhocas extraordinárias que jamais
serão acessíveis aos homens e mulheres comuns — os civis —,
exceto por divertimento nas simulações dos jogos digitais.
Nesse cenário, desfilam armas magníficas que atingem
com precisão corpos a enormes distâncias, mísseis intercon-
tinentais indetectáveis por radares, drones com capacidade de
matar milhares, sem que o assassino esteja sequer presente
na cena do crime. O que se assiste é a autorização que liberta
o imaginário do ódio e da destruição, vendidos a preços
acessíveis em cada televisor de tela plana. Mas também na
ficção científica, nos filmes de guerra e combate, nos jogos
de computador e celular e na vida cotidiana que se empan-
turra de aparelhos, inconsciente de que a lógica dos botões é
a mesma daqueles outros que dizimam populações inteiras.
As populações são excessos a serem controlados. Forças
frágeis sem destino, e as massas e multidões virando pó e
fumaça ao vivo e em cores, constituem o objeto irrelevante
destruído que comprova o tudo da tecnologia contra o nada
do corpo quebradiço e humano (BENJAMIN, 1985c, p. 198).
TEMPOS DE GUERRA 81

Não é nada estranho ou mesmo constrangedor, portanto,


que o símbolo mais conhecido e amplamente divulgado do
ataque americano às cidades de Hiroshima e Nagasaki em
1945 seja o gigantesco e impressionante cogumelo nuclear,
elevando-se acima da terra e abrindo-se sobre as cidades
devastadas. O ataque nuclear é apresentado por seus
aspectos ufanistas, grandiosos e espetaculares que consa-
gram a vitória esmagadora da tecnologia bélica sobre seus
inimigos. A partir daí, os Estados Unidos consolidam seu
domínio inconteste no planeta. Força, medo e poder revelam
a eficácia dessa aliança.
Sob a copa do cogumelo atômico, centenas de milhares
de vidas incandesciam e outras seriam sucessivamente
destruídas, ao longo de gerações, marcadas definitivamente
pela guerra. Todas essas vidas são engolfadas pela revelação
estética da guerra em seu apogeu, imperiosidade e beleza.
Como observou Kenzaburō Ōe (1981, p. 67-68, tradução nossa),

Hiroshima e Nagasaki são claramente conhecidas em todo o


mundo porque o poder da bomba atômica foi demonstrado lá,
não pelo sofrimento das vítimas da bomba atômica.2

O que chamamos de alucinação negativa, denegação e


desmentido, mecanismos do negativo em psicanálise, encon-
tram aqui um exemplo elucidativo. Se no evento extremo de
uma bomba nuclear lançada contra civis é possível esquecer,
esconder e mesmo desaparecer com as consequências
humanas de um experimento tecnológico lançado sobre
populações e comunidades inteiras, o que dizer sobre os
rastros deixados para a posteridade? O que ocorrerá com as
lutas pela transmissão do ocorrido contra as versões oficiais
e hegemônicas que instruirão pessoas, aquelas que jamais
viveram próximas aos efeitos de um ataque nuclear? De que

2 “Hiroshima and Nagasaki are clearly known throughout the world


because the power of the atomic bomb was demonstrated there, not because
of the suffering of the A-bomb victims.”
82 Okano M. & Endo P.

modo se digladiam as lutas pelas evidências no campo dos


processos de memória?
Ou como pergunta Lavalée (2000, p. 16):

Existe um enigma maior que aquele que se esconde sob a


máscara da evidência? Existe evidência maior que a visão?

É possível sobrepor muitas evidências e escamotear outras


tantas. Visibilizar e fazer desaparecer revelam-se o mesmo
processo. O trabalho do negativo se expõe sobremaneira
também nas lutas pela memória. Nos desvãos, que definem o
lembrado e o esquecido, é possível reconhecer que o espetáculo,
as figurações, as transmissões em imagens, os trabalhos de
memórias e museus revelam também todas as suas omissões.
Devastar multidões, comunidades e cidades tornou-se
tão banal e aceitável quanto é inadmissível destruir indiví-
duos, pessoas e histórias singulares. Para esse trabalho de
dicotomizar pessoas, indivíduos e sujeitos, de um lado, e as
massas, conglomerados e multidões de outro, podem ser
encontrados bons exemplos no período do surgimento da
psicologia social no início do século XX. Esta, já atemorizada
com os eventos de massa após a Revolução Russa, definia
os indivíduos na massa como servis, tolos, loucos, sujos e
epidêmicos, enquanto o indivíduo racional, lógico, lúcido só
poderia ser encontrado fora dela.3

3 Num estudo intitulado A razão populista, Ernesto Laclau (2016) analisa


o período em que sociólogos e psicólogos sociais trabalhavam para
caracterizar o homem na e fora da multidão como oponentes. A bela
e a fera que opunha o indivíduo sóbrio, racional, lógico ao mesmo
indivíduo irracional, louco, incapaz de pensamento que seria absor-
vido pela turba e transformado em fera. Laclau situa a publicação do
texto de Freud, Psicologia das massas e análise do eu, em 1921, como uma
versão crítica a essas formas de pensar. Para Freud, diferentemente
de alguns desses autores, o exemplo de massa poderia ser encontrado
exemplarmente na Igreja e no Exército — massas organizadas, porém,
reveladoras do propósito primeiro de alienar o sujeito pela adoração
e pela obediência.
TEMPOS DE GUERRA 83

Os alvos das destruições são sempre as multidões,


grupos genéricos nos quais, para muitos que se absorvem
nessa lógica, os sujeitos e singularidades precisam existir
para, simplesmente, desaparecer ao seu toque de Midas que
calcina tudo o que toca.
O que se destrói nunca são vidas, histórias, pessoas, mas
inimigos, cidades, categorias e conglomerados. Do mesmo
modo, o que os produtores de tecnologias oferecem são
bens para a entidade genérica “consumidores”. São os
mesmos consumidores que se enfileiram para adquirir
a última versão de qualquer coisa, para descartar a ante-
rior que, imediatamente após a aquisição, se converte em
obsoleta. Eles aspiram a fugir da história para pautar suas
histórias, suas vidas e seu tempo segundo a cronologia
da última versão.
De um modo tão paradoxal como convincente, as guerras
demonstram a estratégia duplamente vitoriosa de que a
violência e a força bruta são recursos de retaguarda, funda-
mentais para dirimir conflitos. Ou seja, confirmam sucessi-
vamente a ideia de que um conflito deve ser eliminado com
a aniquilação do inimigo e quem pode executá-lo de modo
cabal é o exercício da força bruta.
A bomba atômica é a expressão da última capacidade
tecnológica que supera, finalmente, a própria vida, extin-
guindo-a brutal e instantaneamente. É o que revela o êxito
da violência sem comedimento. Ela se levanta sobre a
vida e a ultrapassa tornando plausível e possível o fim da
humanidade, que se encontra nas mãos dos que gozam com
a imagem do cogumelo atômico e sentem saudades. Esse
poder devastador teve seu laboratório de teste em Hiroshima
e Nagasaki, mas prossegue até hoje nas ameaças de conflito
iminente entre países que detêm o artefato atômico. Esse
poder avassalador, demonstrado para cada telespectador
em todo o planeta, ridicularizou todos os valores humanos
e tornou risível a humanidade do homem, transformada em
frágil, quebradiça, patética e ineficaz.
84 Okano M. & Endo P.

O que é o quebradiço corpo humano ante fuselagens


voadoras que lançam chamas e fogo? Ante projéteis que
devastam cidades em segundos? Ante o barulho dos raids
que nublam os céus anunciando o fim dos tempos? Ou como
lembra Benjamin citando o manifesto sobre a guerra colo-
nial de Filippo Tomaso Marinetti:

Há vinte e sete anos, nós futuristas contestamos a afir-


mação de que a guerra é antiestética... Por isso dizemos:
[...] a guerra é bela, porque graças às máscaras de gás, aos
megafones assustadores, aos lança-chamas e aos tanques,
funda a supremacia do homem sobre a máquina. A guerra
é bela porque inaugura a metalização onírica do corpo
humano. A guerra é bela porque conjuga uma sinfonia, os
tiros de fuzil, os canhoneios, as pausas entre duas batalhas,
os perfumes e os odores da decomposição. A guerra é bela,
porque cria novas arquiteturas, como a dos grandes tanques,
dos esquadrões aéreos em formação geométrica, das espi-
rais de fumaça pairando sobre aldeias incendiadas, e muitas
outras... (BENJAMIN, 1985b, p. 196).

A beleza da guerra, da qual Marinetti era um entusiasta,


revelou ainda aspirações estéticas completamente divor-
ciadas da ética e, para alguns, foi convincente a ponto de
conclamar seus aedos, poetas e artistas, que cantariam essa
nova era na qual a beleza da guerra se sobreporia a todas as
outras. E a “supremacia do homem sobre a máquina” indica
o aspecto militar da nova estética, conclamada pelo escritor
italiano fascinado pelos exuberantes conflitos armados.
A lição deixada pelos aliados é muito diferente daquela
transmitida pelos nazistas e pelo governo de Hitler.
Num caso teríamos a morte em massa. Súbita, eficaz e
incontornável, que consagra a devastação e o sucesso da
vitória incontestável. No outro, a morte lenta dos campos
de concentração que instila a pedagogia da crueldade,
no tempo longo em que se pretendia fazer procriar novos
algozes todos os dias e entre gerações de alemães, ensinan-
do-os como tratar, torturar e matar indesejáveis naquele
tempo e no futuro.
TEMPOS DE GUERRA 85

Amigos e inimigos aqui dão as mãos, deixando para


os sobreviventes a tarefa árdua de reerguer o mundo do
qual eles são apenas o resto que escapou da bem-sucedida
destruição total.

SOMBRA, DESTRUIÇÃO E OS CLAROS E ESCUROS NAS


OBRAS ARTÍSTICAS
Muitos artistas sobreviventes tiveram o papel de deixar as
narrativas de guerra para a posterioridade. Propuseram
modos por meio dos quais as pessoas estabeleceriam as
relações com o passado, uma vez que este “[...] é aberto a
todos, e não unicamente para os que vivenciaram o passado”
e as memórias podem existir “como realidades íntimas e
inerentes de seus contempladores” (IGARASHI, 2011, p. 23).
“Relembrar” uma guerra é uma ação, um esforço que,
muitas vezes, se mostra doloroso, penoso, angustiante. Não
raramente, isso ocorre mediante a leitura de imagens que,
ao mesmo tempo em que narram o desaparecimento de
seres humanos, apostam na permanência destes nos olhos e
mentes dos espectadores. Trata-se de um processo no qual o
leitor é posicionado em um espaço que não é passado, nem
presente, nem futuro, mas que está na relação “entre” os
tempos. Trata-se, ainda de acordo com Igarashi (2011, p. 30),
de problematizar e reivindicar a memória como parte inte-
gral da construção histórica, e não se limitar apenas às narra-
tivas construídas oficialmente pela sociedade hegemônica.
No que diz respeito ao Japão e à Segunda Guerra Mundial,
o “relembrar” traz também a ambivalência de aceitar, de um
lado, a derrota, a bomba atômica, o acolhimento de um país,
outrora inimigo, como aliado — por meio da construção de uma
narrativa de salvação cuidadosamente mascarada — e, do outro,
admitir as atrocidades praticadas pelos próprios japoneses, isto
é, reconhecer os próprios papéis de vítima e de algoz.
Nesse contexto, é possível identificar imagens da Segunda
Guerra que partem de dois olhares, concomitantemente
86 Okano M. & Endo P.

opostos e entrecruzados: o da perspectiva americana —


como as reproduções do grande espetáculo do cogumelo
atômico, símbolo do poderio bélico dos Estados Unidos, que
se associaria à representação por excesso, ou as fotografias
de soldados americanos distribuindo chicletes para crianças
japonesas, por sinal, mortas de fome, como transmissão de
uma metáfora da generosidade da ocupação — e o da pers-
pectiva nipônica, cujos desdobramentos são percebidos em
vários segmentos da sua arte.
Quase dez anos após o fim do conflito e apenas dois anos
depois da ocupação americana no Japão, em 1954, o diretor
Ichirō Honda representou a bomba atômica e a destruição
causada por ela na figura de uma criatura monstruosa.
Trata-se do filme Godzilla (Gojira ゴジラ, 1954), cujo perso-
nagem principal, o monstro, despertado por testes nucle-
ares realizados no Atol de Bikini, ataca Tóquio. A narrativa
faz referência à bomba de hidrogênio com força total de
15 megatons4 que foi lançada pelos Estados Unidos em 1954,
e abarcou uma área maior que a prevista e isolada, atingindo
o navio pesqueiro japonês, Daigo Fukuryumaru 第五福竜丸,
conhecido como Lucy Dragon V, o que causou a morte de
23 tripulantes expostos à radiação.
O monstro corporifica também as perdas do Japão
e mostra a extinção do centro de Tóquio, do qual restou
apenas o Palácio Imperial, como uma metáfora da estra-
tégia americana de poupar e conservar o imperador depois
da derrota, por ser necessária sua presença para facilitar a
aliança com o Japão. Godzilla retorna ao mar pela ação da
arma secreta inventada pelo Doutor Serizawa, o Oxigênio
Contratorpedeiro. No entanto, o cientista se mata no final do
filme para evitar a propagação do armamento por ele inven-
tado. Assim, a obra traz a mensagem do desejo de encerrar a

4 Para se ter uma comparação de intensidade de força explosiva, Little


Boy, a bomba atômica de urânio lançada sobre Hiroshima em 6 de
agosto de 1945, tinha um poder explosivo de 15 quilotons.
TEMPOS DE GUERRA 87

possibilidade de retorno do monstro ao Japão, de não repetir


a experiência da bomba atômica.
Na mesma época, além de documentários de alguns
diretores, podem-se encontrar filmes como o do famoso cine-
asta Akira Kurosawa, A anatomia do medo (Ikimono-no kiroku
生きものの記録, 1955), em preto e branco, cujo personagem
principal, dono de uma fundição brilhantemente interpre-
tado por Toshirō Mifune, se encontra obcecado e aterro-
rizado pela possibilidade de ocorrerem novas explosões
atômicas no Japão. Ele pretende emigrar, curiosamente,
ao Brasil, especificamente a São Paulo, e convencer toda a
família a acompanhá-lo.
A obra expõe o pavor doentio de um velho e a sua tentativa
de encontrar um lugar seguro para a sua família viver, a fim de
que possam fugir da ameaça nuclear. Traduz, provavelmente,
o sentimento oculto ou inconfessado de todos os japoneses da
época. O diretor, ainda, trata da temática da guerra em outros
filmes da década de 1990: Sonhos (Yume 夢, 1990) e Rapsódia em
agosto (Hachigatsu-no kyōshikyoku 八月の狂詩曲, 1991).
A partir da década de 1970, surgem mangás e filmes
de animação que mostram o horror do acontecimento de
modo sutil. O mangá Gen Pés Descalços (Hadashi-no Gen
はだしのゲン), de Keiji Nakazawa (1973-1985), foi publicado
em série na revista Shōnen Jump entre 1973 e 1985, e o anime
baseado nele foi lançado em 1983, pelo diretor Masaki Mori
(1941-).5 Encontra-se com a mesma temática o filme de Isao
Takahata (1935-2018), do Estúdio Gibli, Túmulo dos vagalumes
(Hotaru-no haka 火垂るの墓, 1988).
Os filmes de animação tratam da vida de garotos que
perdem os pais em Hiroshima e relatam a destruição
causada pela bomba atômica, o sofrimento e a luta pela
sobrevivência em meio à devastação, a miséria, a hostilidade
e a insensibilidade dos adultos, embora o efeito da guerra

5 Entre 2000 e 2001, a editora Conrad publicou quatro volumes de mangá


no Brasil, e, em 2011, uma nova coleção de dez volumes.
88 Okano M. & Endo P.

seja abrandado e suavizado pela utilização de desenhos que


criam uma distância maior do espectador em relação ao fato.
No campo da pintura, algumas obras foram realizadas
em razão de uma iniciativa governamental japonesa durante
a guerra, a qual tinha o objetivo de incentivar os soldados
durante a luta. É o caso de trabalhos como o do famoso
artista Tsuguharu Foujita (1886-1968),6 que estava, na época,
de volta da França ao Japão. Alguns japoneses retrataram
o grandioso espetáculo do cogumelo atômico deflagrado
pela tecnologia, que também foi registrado pelos ameri-
canos. Outros, ainda que escusos e com esforços individuais,
pela inconformidade da temática com o pensamento hege-
mônico, insistiram em relatar a memória do desapareci-
mento dos seres humanos — seja mostrando a presença da
ausência, seja representando as trágicas cenas apocalípticas
dessa desintegração. São pinturas que vão na contramão
do processo de mitigar a perda devastadora sofrida e de
promover o necessário “esquecimento”, para a construção
de um novo Japão desenvolvido e ocidentalizado.

AS OBRAS DE IRI E TOSHI MARUKI


Um casal de artistas, Iri (1901-1995) e Toshi Maruki (1912-
2000),7 construiu o Museu Maruki de Painéis da Bomba
Atômica: Um Olhar Caloroso Sobre a Vida (Genbaku-no zu
Maruki Bijutsukan: inochi-e-no atsuki shisen 原爆の図・丸木
美術館 命への熱き視線), cujo subtítulo, em japonês, dialoga

6 Tsuguharu Foujita foi um pintor modernista japonês que se natura-


lizou francês e viveu desde os 27 anos na França. Visitou o Rio de
Janeiro em 1931-1932, retornou ao Japão em 1933 e ficou lá até terminar
a guerra, voltando posteriormente a Paris.
7 Iri Maruki participou da Bienal Internacional de São Paulo em 1967 na
Representação Nacional do Japão. O casal recebeu o Grande Prêmio
na 5ª Trienal de Fascismo na Bulgária em 1985 e foi indicado para
o Prêmio Nobel em 1995 pelo reconhecimento dos seus incansáveis
esforços para combater a proliferação nuclear.
TEMPOS DE GUERRA 89

com a preocupação de Kenzaburō Ōe citada anteriormente,8


a qual espelha o desejo dos dois.9 Um olhar contemplativo,
dolorido, meditativo, crítico e provocante, mas, ao mesmo
tempo, de amor à vida.
Nas obras ali expostas, o casal Maruki optou pela
descrição onírica, estética utilizada para diminuir o peso da
existência, conforme Rancière (2012, p. 120). Esta se poten-
cializa pelo uso da tinta sumi e pela técnica tradicional japo-
nesa, em que a representação não é a cópia da imagem como
se apresenta aos olhos do artista. Eles registraram as catás-
trofes da bomba atômica desde 1948 até a morte de Iri em
1995: foram quase cinquenta anos de atividade.
Embora o casal não estivesse em Hiroshima no dia em
que a bomba Little Boy foi lançada, Iri deslocou-se para lá
três dias depois, na noite de 9 de agosto, para procurar a
sua família que lá habitava, e Toshi, alguns dias mais tarde.
Desse modo, vivenciaram a dramática cena da cidade após
ataque nuclear: perambularam com as vítimas da bomba,
no meio do odor dos defuntos, entre as moscas e larvas que
se alojavam nas carnes das pessoas vivas e junto a corpos
queimados como carvão, que tinham a carne derretida
(OKAMURA, 2015, p. 29).
A produção dos Painéis da bomba atômica levou cinco
anos após o término da guerra, e não sem conflitos. Era o
tempo necessário para a maturação não só da ideia, mas da
decisão de pintar sobre o tema. Fazer lembrar os horrores do
passado que os japoneses tentavam e desejavam esquecer?
Ou transmitir para as gerações posteriores a tragédia de
uma catástrofe causada por um espetáculo tecnológico,
reforçando os objetivos implícitos de um conflito bélico?

8 Hiroshima e Nagasaki são claramente conhecidas em todo o mundo


porque o poder da bomba atômica foi demonstrado lá, não pelo sofri-
mento das vítimas da bomba atômica (ŌE, 1981, p. 6768, tradução nossa).

9 O subtítulo não está traduzido para o inglês no site do museu.


Disponível em: http://www.aya.or.jp/~marukimsn/english/indexE.htm.
Acesso em: 4 set. 2018.
90 Okano M. & Endo P.

E relembrar as tragédias ocasionadas por uma atitude de


demonstração de poder, quando a derrota japonesa estava
claramente delineada para o país inimigo? Os artistas esco-
lheram as duas últimas opções.
Os painéis foram confeccionados num trabalho conjunto
entre Iri e Toshi. Iri dizia em relação ao casal: “nós somos
água e óleo”, referindo-se metaforicamente às características
pessoais, bem como aludindo, literalmente, ao processo de
elaboração das obras. Iri com suibokuga10 (pintura com tinta
monocromática à base de água) e Toshi com tinta a óleo.
O crítico de arte Yoshie Yoshida, que acompanhou a
produção do casal, escreve que parecia uma produção de
briga artística mútua:

Toshi desenhava com seu forte traço, Iri jogava sumi em


cima da linha; Toshi ficava perplexa, mas ao secar a tinta,
via aparecer um corpo humano, trazendo uma eficácia
ímpar; daí, novamente, Toshi desenhava a linha por cima
e Iri, por sua vez, jogava sumi por cima dela (OKAMURA,
2017, p. 27, tradução nossa).

Os painéis apresentam, na sua maioria, um emaranhado


de massas de corpos nus de manchas de tinta sumi com
ocasionais tintas vermelhas que ora representam sangue,
ora labaredas sobre o papel washi 11 feito de ganpi.
É importante lembrar que o museu, criado pelos próprios
artistas a partir de 1974, se encontra escondido na periferia
de Saitama,12 entre fábricas e campos de plantação, com
pouca visitação. Entretanto, isso não o faz menos importante,
muito pelo contrário, ele é essencial para que se transmita o

10 Suiboku (水墨) ou suibokuga (水墨画) são pinturas feitas com tinta sumi
(墨), que é produzida da fuligem da queima de óleo de canola ou de
raízes de pinheiro, solidificados com uma cola à base de peles e ossos
de animais ou peixes.
11 Washi é um papel artesanal tradicional japonês geralmente produzido
com fibras de plantas como ganpi, kōzo e mitsumata.
12 O museu foi construído inicialmente em 1974, e recebeu acréscimos
em 1983, 1986 e 1991.
TEMPOS DE GUERRA 91

que aconteceu nas explosões. A indicação dos artistas para o


Prêmio Nobel em 1995 testemunha a sua relevância.
O museu abriga catorze dos quinze painéis da série de
Painéis da bomba atômica (a última obra encontra-se no Museu
da Bomba Atômica de Nagasaki). Cada painel compreende um
par de biombos de quatro leques, com 1,80 metro de altura e
comprimento total de 7,20 metros. São eles: n. 1 “Fantasma”
(“Yūrei” 幽霊, 1950); n. 2 “Fogo” (“Hi” 火, 1950); n. 3 “Água”
(“Mizu” 水, 1950); n. 4 “Arco-íris” (“Niji” 虹,1952); n. 5 “Meninos e
meninas” (“Shōnen shōjo” 少年少女, 1951); n. 6 “Campo atômico”
(“Genshiya” 原子野, 1952); n. 7 “Bambuzal” (“Takeyabu” 竹やぶ,
1954); n. 8 “Salvamento” (“Kyūshutsu” 救出, 1955); n. 9 “Yaizu”
(“Yaizu” 焼津, 1955); n. 10 “Assinatura” (“Shomei” 署名, 1956);
n. 11 “Imagem de mãe e filho” (“Hahako zō” 母子像, 1959); n. 12
“Lanternas flutuantes” (“Tōrō nagashi” 灯籠流し, 1968); n. 13
“Morte dos prisioneiros americanos da Guerra” (“Beikoku
horyō-no shi” 米国捕虜の死, 1971); n. 14 “Corvos” (“Karasu”
からす, 1972); e n. 15 “Nagasaki” (“Nagasaki” 長崎, 1982).13
O painel n. 1, “Fantasmas”, foi exibido pela primeira
vez na exposição Independent, no Museu Metropolitano
de Tóquio, em Ueno, em 1950. O título da obra teve de ser
mudado na época para “Seis de agosto”, a fim de não chamar
a atenção do exército americano, que ocupava o território
japonês. Seguem trechos do poema que acompanha o painel:

Era uma procissão de fantasmas.


em um instante todas as vestimentas se queimaram e caíram
as mãos, as faces e os peitos se incharam.
As bolhas púrpuras das suas peles logo estouraram
deixando-as cair como pedaços de trapo.
[...]
No centro da explosão a temperatura atingiu seis mil degraus
uma sombra de figura humana ficou registrada nas escadarias
de pedra.
Teria o corpo desta pessoa, nesse instante, vaporizado?
Voado?

13 Esse painel encontra-se no Museu da Bomba Atômica de Nagasaki.


92 Okano M. & Endo P.

Ninguém pode nos dizer como era esse momento no centro


da explosão.
[...]
Um bebê sozinho,
com um rosto inocente e pele delicada dormia.
Teria ele sobrevivido no abraço do peito materno?
Ao menos que esta criança
levante-se e viva! (tradução nossa).14

O painel monocromático (Figura 1), de 1,8 m × 7,2 m,


registra, na parte inferior da extrema esquerda, a figura de
uma mulher grávida, que, de acordo com Okamura, curador
do Museu de Painéis de Hiroshima, foi por onde os artistas
começaram a pintura (OKAMURA, 2017, p. 26).

Figura 1. Iri Maruki; Toshi Maruki. “Fantasmas” (“Yūrei” 幽霊), 1950.

A mulher grávida simboliza as vidas presente e futura


apagadas do mundo pela tecnologia bélica. Com ela,
há muitas pessoas, a maioria nuas, testemunhando a exis-
tência do ser humano como zoé, a vida nua, subordinada,
matável (AGAMBEN, 2008), o corpo objeto. Ali, quase não
se podem identificar as pessoas pelas suas faces ou pelo
corpo inchado, cuja pele se solta. A multidão segue como
uma procissão, amontoada, do fundo do quadro para a
frente, vindo ao encontro do espectador, em três vertentes: à
esquerda, ao centro e à direita. Nessa parte central, sobres-
saem duas figuras que se localizam no último painel do par

14 Poesia encontrada na exposição, junto à obra, original em japonês.


Pode ser também verificada no site do museu: Disponível em: https://
marukigallery.jp/hiroshimapanels/. Acesso em: 2 fev. 2023.
TEMPOS DE GUERRA 93

da esquerda, as quais se entreolham, talvez uma reconhe-


cendo a outra. Seriam amigas, irmãs ou mãe e filha? A figura
da direita destaca-se de todo o conjunto pela brancura do seu
corpo, que perfaz um diálogo com o branco do papel na parte
inferior à esquerda, relação que torna a imagem da procissão
mais realista, pelo contraste apresentado.
Outro ponto focal é o bebê, também branco, na parte infe-
rior do segundo leque, da esquerda para a direita. Indiferente
a todo o cenário, incólume, talvez protegido pelos braços da
mãe, parece dormir com um rosto sereno — metáfora de
esperança da sobrevivência.
O biombo da direita, de quatro leques, pode ser subdi-
vidido em dois blocos: um deles registra a continuidade da
procissão, em que quase todos olham para frente. O outro
bloco traz um empilhamento de figuras, formado pelo jogo
dos corpos que se encontram em várias direções, alguns
com as pernas levantadas ou curvados, o que traz um certo
dinamismo à composição. O branco do papel, nesse par da
direita, fica na parte de cima, invertendo a posição com o
outro par de biombos.
As opiniões sobre essas obras eram diversas: alguns
diziam que as cenas pintadas eram exageradas e outros,
principalmente os que vivenciaram a catástrofe, comen-
tavam que estavam demasiadamente bonitas. Nota-se real-
mente que as figuras humanas desenhadas são dotadas
de um refinamento estético, apesar das cenas trágicas.
Talvez a técnica utilizada, a pintura sumi-e, colabore para
esse efeito.
No entanto, a questão fundamental se resume em
como registrar o irrepresentável, algo que mal poderia
constituir uma imagem. Rancière chamou de “impoder da
arte” essa inviabilidade de encontrar uma representação
sensível que esteja à altura do fato e aponta algumas alter-
nativas: representação pelo excesso da presença, pelo
seu status de irrealidade que tira o peso da existência, e
por um jogo entre o excesso e a falta que “entrega a coisa
94 Okano M. & Endo P.

representada a afetos de prazer, de jogo ou de distância


incompatíveis com a gravidade da experiência que ela
contém” (RANCIÈRE, 2012, p. 120).
O psicanalista Gérard Wajcman (2001 apud RANCIÈRE,
2010, p. 133) comenta sobre as fotografias que representam a
realidade da Shoah, o holocausto:

As câmaras de gás são um acontecimento que constitui em si


mesmo uma espécie de aporia, um real não suscetível de ser
desarticulado que trespassa e põe em questão o estatuto da
imagem e em perigo todo o pensamento acerca das imagens.

Basta trocamos as “câmaras de gás” por “destrui-


ções causadas pela bomba atômica”, para fazer uma equi-
valência sobre o intolerável do acontecimento e a sua
irrepresentabilidade.
Os Maruki optaram por mostrar as cenas recheadas de
encanto e de tragicidade, a ponto de a obra parecer atrair o
olhar do espectador mais como se fosse uma cena onírica.
Foi a estratégia adotada para mostrar o irrepresentável,
obter um certo “afastamento da realidade” para “tirar o peso
da existência”, conforme Rancière (2012, p. 120), corroborada
pelo uso da técnica tradicional da pintura suibokuga mistu-
rada com a ocidental.
A imagem não é nem mimese, nem espelho de um fato,
mas “é um jogo complexo de relações entre o visível e o
invisível, entre o visível e as palavras, entre o dito e o não
dito” (RANCIÈRE, 2010, p. 139) e, ainda mais, entre o que se
pode dizer e calar. As palavras que acompanham as pinturas
também oscilam entre a poesia e a narrativa da tragédia e,
talvez mais que pela imagem, façam com que o pavor, a
angústia e a inquietação tomem conta do observador.
O painel n. 2, “Fogo” (Figura 2), também de 1950, em
preto e vermelho, tem uma composição cheia. São pessoas
atormentadas pelo fogo, cujos semblantes se veem estam-
pados de sofrimento, agonia e aflição. Verifica-se, nesse
painel, a presença de Toshi nos corpos em sumi, volumosos
TEMPOS DE GUERRA 95

e tridimensionais, com tratamento de luz e sombra, junta-


mente com as labaredas de fogo vermelhas pintadas de
modo tradicional, por Iri, como nos famosos Rolos de pinturas
e textos do inferno (Jigoku-zōshi 地獄草子) da Era Kamakura
(1185-1333) — em que os corpos humanos se veem ora quei-
mados em labaredas, ora afogados em lagos repletos de
vermes, ora fragmentados e cozidos vivos —, o que, de certa
maneira, aparece nas pinturas do casal. O contraste entre o
preto e o vermelho e alguns toques de branco intensificam a
dramaticidade da obra.

Figura 2. Iri Maruki; Toshi Maruki. “Fogo” (“Hi” 火) (detalhe), 1950.

O crítico de arte Ichirō Hariu (2004 apud EUBANKS,


2009, p. 1615) afirma que as composições das obras dos
Maruki tendem a utilizar, “de maneira paratática, a técnica
da assincronia reminiscente das pinturas de rolo”, mas
também aponta a “estrutura polifônica e multicamada”,
96 Okano M. & Endo P.

muitas vezes trazendo cenas de tempos distintos no mesmo


espaço, que são características frequentes em pinturas tradi-
cionais japonesas.
Esse fato de estabelecer diálogo com a tradição e,
simultaneamente, conectar-se com as técnicas ocidentais,
faz com que as obras desses artistas abarquem diferentes
espaços e tempos.
As obras de n. 1 a 8 e 11 da série fazem referência a
Hiroshima, ao passo que as outras (9, 10 e 12 a 15) tratam de
temas correlacionados, mas com um enfoque diferenciado.
Dentro da série estudada, a pintura n. 9, “Yaizu”,
retrata o protesto das pessoas contra a bomba nuclear; a
n. 10, “Assinatura”, representa as pessoas que assinaram o
protesto contra as bombas atômica e de hidrogênio; a n. 12,
“Lanternas flutuantes”, ilustra o ritual de soltar as lanternas
acesas no rio em memória aos mortos pela guerra.
A obra n. 13 (Figura 3), “Morte dos prisioneiros
americanos da Guerra”, e a n. 14, “Corvos”, trazem à luz
o sofrimento de pessoas de outras etnias, na tentativa de
mostrar que a bomba atinge os seres humanos, indepen-
dentemente da nacionalidade. Entretanto, o enfoque crítico
das obras difere. No painel n. 13, ao mostrar o tormento
de americanos algemados atingidos pela mesma bomba
que levou os japoneses à drástica experiência, os Maruki
fogem de uma simplicidade classificatória dualística e
opositiva, borrando a fronteira entre o agressor e a vítima.
Salientam, também, o pensamento de que a bomba atômica
é um problema da humanidade e não apenas uma simples
resposta dos Estados Unidos ao bombardeio a Pearl Harbor
(OKAMURA, 2017, p. 39).
Na pintura “Corvos”, pássaros muito comuns no Japão,
as aves ajuntam-se sobre os corpos no painel e uma vesti-
menta tradicional coreana, hanbok, flutua no céu como metá-
fora das vítimas coreanas. Existe, assim, o registro de uma
discriminação social e étnica do próprio povo japonês em
relação aos coreanos, cujos esqueletos foram os últimos a
TEMPOS DE GUERRA 97

serem resgatados, quando os corpos já haviam sido carco-


midos pelos corvos (OKAMURA, 2017, p. 42). O texto que
acompanha o painel termina em gashō, o ato de juntar as
mãos para a reza.

Figura 3. Iri Maruki; Toshi Maruki. “Morte dos prisioneiros americanos


da Guerra” (“Beikoku horyō-no shi” 米国捕虜の死) (detalhe), 1971.

Essas obras comprovam que o pensamento dos Maruki


não se restringe às vítimas nipônicas, mas vai além, no
sentido de não apenas analisar e criticar a canalização do
fascínio tecnológico para o assassinato em massa dos japo-
neses, mas ampliar o escopo da reflexão para as crueldades
e atrocidades cometidas num espaço e tempo não cotidianos
como o da guerra, sejam os agentes americanos ou os
próprios japoneses.
Outras obras produzidas ao longo das suas vidas teste-
munham a extensão do olhar do casal de artistas sobre
as barbaridades cometidas pelos homens na história
mundial: Auschwitz; os testes nucleares americanos nas
Ilhas Marshall entre 1946 e 1958; e o desastre de Minamata,
que causou síndrome neurológica nas vítimas pelo derra-
mamento de mercúrio na costa ocidental de ilha Kyūshū,
em 1956. Trataram, inclusive, de assuntos que são tabus
98 Okano M. & Endo P.

para os próprios japoneses, como na pintura Massacre de


Nanquim (Nankin gyakusatsu-no zu 南京虐殺の図) de 1975
(Figura 4), que mede 4 m × 8 m, na qual retratam a atroci-
dade praticada pelos japoneses na cidade chinesa.

Figura 4. Iri Maruki; Toshi Maruki. Massacre de Nanquim


(Nankin gyakusatsu-no zu 南京虐殺の図), 1975.

A ideia de fazer esse painel teria vindo de uma estada


nos Estados Unidos, na ocasião da exposição Painéis da
bomba atômica neste país, quando um professor perguntou
o que eles fariam se um artista chinês fizesse uma expo-
sição sobre o Massacre de Nanquim. Iri disse ter aberto
os olhos com a pergunta do professor e realizou a pintura
(ASAHI SHINBUN, 197415 apud YOSHIDA 2006, p. 211).
O que reforçou a decisão do artista de produzir a obra foi
a descoberta de que o número de pessoas assassinadas em
Nanquim, em 1937, correspondia ao de vítimas da bomba de
Hiroshima. Além de pilhagem, incêndio e estupro, houve
matança cruel dos chineses.
Todavia, os Maruki receberam críticas do povo japonês,
condenando-os por atitude antipatriótica. Nesse momento,
Iri confessa ter se indagado se não teria havido outra forma
de pintar a obra, sem ser tão realista (MIDORIKAWA, 1988,

15 Jornal Asahi Shinbun, edição da tarde de 9 de novembro de 1974, p. 8.


TEMPOS DE GUERRA 99

p. 109-110). Compreende-se, por esse depoimento, o conflito


estabelecido no seu íntimo, ao tentar transgredir a barreira
étnica e denunciar as injustiças e as brutalidades cometidas
pelo ser humano.
Os Painéis da bomba atômica foram lembrados no
desastre do terremoto e tsunami de Fukushima, ocorrido em
11 de março de 2011, e do consequente vazamento radiativo,
que fez com que os homens pensassem a respeito da relação
de convivência entre o ser humano e as usinas nucleares.
As obras do casal Maruki passaram por uma releitura depois
do acidente nuclear em 2011 no Japão.
Embora eles não tenham presenciado a cena no dia em
que houve a explosão da bomba atômica, mas somente alguns
dias depois, o mural foi construído agregando “a memória
coletiva” por meio das experiências narradas e das fotogra-
fias que foram doadas para a produção dos painéis.
Dada a abrangência das pinturas, cabe ainda refletir
sobre a que tipo de espectadores elas são destinadas e que
tipo de olhar e de consideração essas imagens intoleráveis
engendram. Transformar o insuportável em imagem requer
um desejo de que ela semeie o pensamento e que deles brote
a ação para modificar a realidade.
Por fim, uma curiosa obra denominada Painel do inferno,
de 1985 (4 m × 8,5 m, dois pares de biombos de três leques
cada), traz o seguinte texto para a nossa reflexão:

Hiroshima. Minamata. Auschwitz. Nanquim. Okinawa.


Todos que deram a ordem para matar e massacrar pessoas,
e aqueles que a concretizaram fazendo as pessoas sofrerem,
vão para o inferno. Pintamos todos os heróis da guerra
envoltos em chamas. O fato de Hitler, Truman e o impe-
rador japonês irem para o inferno é óbvio desde o início.
Mas quanto a nós? Não há meios de ir ao céu ou ao paraíso.
Nós, também, vamos para o inferno. Tiram as roupas de
Iri e ele cai. Toshi também é pintada caindo.
Por quê? Nós não lançamos a bomba atômica. Nós não
matamos pessoas.
O motivo de irmos para o inferno é porque não fomos
capazes de prevenir a guerra.
100 Okano M. & Endo P.

Se todas as vidas da face da terra forem destruídas numa


guerra nuclear ou pela energia nuclear, ninguém se salvará.
E nós, o que estamos fazendo? (tradução nossa).16

Espera-se que obras como as de Maruki sejam cada vez


mais expostas, para que as imagens desenhem novas confi-
gurações além do visível, do dizível e do pensável, sendo a
ação “a única resposta face ao mal da imagem e à culpabili-
dade do espectador” (RANCIÈRE, 2010, p. 131).

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LAVALÉE, Guy. “Linternas mágicas” en la “envoltura visual” del Yo.


Psicoanálisis APdeBA, Buenos Aires, v. 22, n. 1, 2000. p. 13-55.

16 Poesia encontrada ao lado da obra, na exposição. Original em japonês.


TEMPOS DE GUERRA 101

MARUKI, Iri; MARUKI, Toshi 丸木位里•丸木俊. Genbaku-no zu: Kyōdō


sakuhin = Maruki Iri, Maruki Toshi 原爆の図•共同作品=丸木位里•丸木俊
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MIDORIKAWA, Tei 緑川亭 (ed.). Maruki Iri-ga zenshū: ruruhenreki


丸木位里画全集•流々遍歴 (Antologia de obras de Iri Maruki: itinerâncias
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ŌE, Kenzaburō. Hiroshima notes. Trad. de David Swain e Toshi


Yonezawa. New York: Mario Boyars, 1981.

OKAMURA, Yukinori 岡村幸宣. “Genbaku-no zu”: Zenkoku junkai:


senryōka, hyakumannin ga mita「原爆の図」 全国巡回。占領下、100万人が
観た!(“Painéis da bomba atômica”: itinerância nacional: um milhão de
pessoas apreciaram sob ocupação). Tokyo: Shinjuku shobō, 2015.

OKAMURA, Yukinori 岡村幸宣. Genbaku-no zu-no aru bijutsukan:


Maruki Iri, Maruki Toshi-no sekai o tsutaeru. 原爆の図のある美術館•
丸木位里、丸木俊の世界を伝える (Museu dos Painéis da bomba atômica:
transmissão do universo de Iri e Toshi Maruki). Tokyo: Iwanami
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RANCIÈRE, J. O destino das imagens. Trad. de Mônica Costa Netto.


Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. Trad. de José Miranda Justo.


Lisboa: Orfeu Negro, 2010.

YOSHIDA, T. The Making of the Rape of Nanking: History and Memory


in Japan, China, and the United States. New York: Oxford University
Press, 2006.

FILMOGRAFIA
A ANATOMIA do medo (Ikimono-no kiroku 生きものの記録). Produção:
Akira Kurosawa e Sōjirō Motoki. Burbank, CA: Warner Bros. Pictures;
Tokyo: Tōhō Co. Ltda,1955. 1 DVD (103 min).

GEN pés descalços (Hadashi-no Gen はだしのゲン). Direção: Mori


Masaki. Produção: Keiji Nakazawa, Takanori Yoshimoto e Yasuteru
Iwase. Tokyo: Madhouse, 1983. 1 DVD (83 min).

GODZILLA (Gojira ゴジラ). Produção: Ichirō Honda e Tomoyuki Tanaka.


Tokyo: Tōhō Co. Ltda, 1954. 1 DVD (96 min).
102 Okano M. & Endo P.

RAPSÓDIA em agosto (Hachigatsu-no kyōshikyoku 八月の狂詩曲).


Direção: Akira Kurosawa. Produção: Hisao Kurosawa. Tokyo:
Kurosawa Prodution, 1991. 1 DVD (98 min).

SONHOS (Yume 夢). Produção: Akira Kurosawa, Hisao Kurosawa e


Mike Y. Inoue. [S. l.]: Akira Kurosawa USA, 1990. 1 DVD (119 minutos).

TÚMULO dos vagalumes (Hotaru-no haka 火垂るの墓). Produção:


Isao Takahata. Tokyo: Studio Gibli, 1988. 1 DVD (89 min).

FONTES DAS FIGURAS


Figura 1
MARUKI, Iri; MARUKI, Toshi. “Fantasmas” (“Yūrei” 幽霊), 1950.
Pintura a base de água, carvão e tinta sumi, 1,8 m × 7,2 m. Fonte:
Maruki Gallery for the Hiroshima Panels.

Figura 2
MARUKI, Iri; MARUKI, Toshi. “Fogo” (“Hi” 火) (detalhe), 1950. Pintura a
base de água, carvão, tinta sumi e pigmento, 1,8 m × 7,2 m. Fonte: Maruki
Gallery for the Hiroshima Panels.

Figura 3
MARUKI, Iri; MARUKI, Toshi. “Morte dos prisioneiros americanos da
Guerra” (“Beikoku horyō-no shi” 米国捕虜の死) (detalhe), 1971. Pintura
sumi, 1,8 m × 7,2 m. Fonte: Maruki Gallery for the Hiroshima Panels.
Figura 4
MARUKI, Iri; MARUKI, Toshi. Massacre de Nanquim (Nankin gyaku-
satsu-no zu 南京虐殺の図), 1975. Pintura sumi, 4 m × 8 m. Fonte: Maruki
Gallery for the Hiroshima Panels.
IMAFUKU R.

DE NAGASAKI, PARA
ARQUIPÉLAGOS DO TEMPO:
A NAGASAKI DE SHŌMEI TŌMATSU

Ryūta Imafuku
Universidade de Tóquio para Estudos Estrangeiros (TUFS)

RESUMO
Fotografias de guerras e catástrofes não faltam na história,
especialmente em documentos objetivos e pragmáticos.
Todavia, a reflexão sobre os tempos congelados, represen-
tados por fotógrafos como Shōmei Tōmatsu (1930-2012),
resulta num resgate de atos e acontecimentos por meio de
personagens que sobreviveram ao bombardeio atômico em
Nagasaki. Conhecida como cidade cristã por excelência
desde a presença de missionários portugueses e espanhóis,
imagens sacras de igrejas católicas são reverenciadas por
seus crentes. Depois da Guerra, as ruínas tomam forma
épica num relógio que marca a exata hora da explosão da
bomba, num porão que oculta partes de estátuas cristãs,
numa cabeça de anjo dilapidada, numa lasca de vitral de
uma catedral, signos que sobrevivem nos registros visuais
resultantes de inúmeras visitas que o fotógrafo Tōmatsu fez
à cidade em diversas ocasiões. Assim, este ensaio se propõe
a analisar e interpretar os tempos oscilante, cauterizado,
descoberto, restituído, contatado, interceptado, permeado e,
finalmente, resgatado.
Palavras-chave: Fotografia e tempo. Bomba atômica. Nagasaki.
Shōmei Tōmatsu. Montagem fotográfica.
106 IMAFUKU R.

ABSTRACT
The history is full of photographs of wars and catastrophes, especially
in objective and pragmatic documents. However, the reflection
about the frozen times, represented by photographers such as Shōmei
Tōmatsu (1930-2012), results in a rescue of acts and happenings by
characters that survived the atomic bombing of Nagasaki. Known
as a Christian city by excellence since the presence of Portuguese and
Spanish missionaries, sacred images of Catholic churches are revered
by their devotees. After the War, the ruins take an epic form in a
clock that records the exact time of the bomb explosion, in a basement
that hides parts of Christian statues, in a dilapidated angel head,
in a splinter of stained glass from a cathedral, signs that survived in
the visual registers of the many visits of the photographer Tōmatsu
to the city in diverse occasions. Thus, this essay seeks to analyze and
interpret the oscillating, cauterized, uncovered, restituted, told,
intercepted, permeated, and, finally, recovered time.
Keywords: Photography and time. Atomic bomb. Nagasaki. Shōmei
Tōmatsu. Photo montage.

TEMPO: SUSPENSO

Aquele momento definidor é de fato o único pelo qual


devemos começar: o momento indicado pelos ponteiros de
um relógio de pulso, para sempre parado às onze e dois,
a hora em que a bomba atômica explodiu. A imagem desse
relógio está entre as fotografias tiradas por Shōmei Tōmatsu
(1930-2012) durante sua primeira visita a Nagasaki, em 1961
(TŌMATSU, 1961b). O relógio e outros bens pessoais emer-
giram dos destroços e cinzas do distrito de Ueno-machi,
localizado a cerca de setecentos metros do marco zero.
O pequeno e redondo mostrador dos segundos na parte
mais baixa do relógio está danificado; o ponteiro desapa-
receu. Milagrosamente, os ponteiros da hora e dos minutos
sobreviveram à explosão. Eles retiveram o instante decisivo
DE NAGASAKI, PARA ARQUIPÉLAGOS DO TEMPO 107

com uma rígida precisão mecânica, o que acabou por atrair


magneticamente o olhar do fotógrafo.
A foto do relógio tirada por Tōmatsu evoca o “tempo de
Nagasaki”, preso no instante da explosão nuclear. Ela expressa
concisamente o fato indelével, histórico, daquele instante. A foto
permite que continuemos contemplando a conflagração forjada
de um ponto único na história humana. Ela nos permite retornar
repetidamente àquele instante fatídico por meio da contem-
plação, chegar a um ponto final sobre a importância daquele
instante, ousar imaginar a tragédia indizível desencadeada
naquele átimo — uma carnificina de celeridade nunca vista do
ponto de vista da história humana, que extinguiu as batidas dos
corações de dezenas de milhares em um piscar de olhos.
A continuidade da vida e o inexorável curso da história
desmentem a cessação do tempo simbolizada pelo relógio na
foto de Tōmatsu. Ainda assim, a imagem capturada em filme
evoca de modo ainda mais poderoso as circunstâncias extraor-
dinárias de seu momento singular. Nós atribuímos uma singula-
ridade semelhante a outros momentos: ao evento 2.26 do Japão
(26 de fevereiro de 1936),1 quando soldados fanáticos do Exército
Imperial se rebelaram em nome do imperador; ao 4-3 da Coreia
(3 de abril de 1948), quando conflitos entre facções, que culmi-
nariam na perda de vinte mil vidas, eclodiram na ilha de Jeju;
e, mais recentemente, ao 9/11 dos Estados Unidos (11 de setembro
de 2001), quando terroristas suicidas sequestraram aviões comer-
ciais e os colidiram com o World Trade Center, em Nova York,
e no Pentágono, próximo a Washington, DC.
Diversos marcos históricos, como os exemplos citados,
receberam uma nomenclatura que os cataloga na memória
a partir do mês e do dia. Que o momento de Nagasaki tenha
demandado maior especificidade que apenas mês e dia,
que ele tenha comandado uma catalogação por hora e minuto
é testemunha da imensidão da violência nuclear perpetrada
naquele instante.

1 Nota dos tradutores.


108 IMAFUKU R.

O tempo suspenso indicado no relógio na foto de


Tōmatsu é duplamente emblemático. Ao mesmo tempo que
indica o momento de Nagasaki, também anuncia o começo
de sua viagem fotográfica pela cidade — uma viagem tempo-
rária para registrar Nagasaki, para criar a memória da cidade
a partir de fotografias. O encontro fatídico gerou uma docu-
mentação crítica do fotógrafo sobre a história japonesa do
Pós-Guerra. O evento levou Tōmatsu a uma busca pessoal,
antes mesmo que ele estivesse totalmente consciente acerca
de seu significado.
Tōmatsu alcançou clara consciência de sua missão
quando publicou seu primeiro livro de fotografias, que inti-
tulou 11:02 Nagasaki (1966). E esse momento trágico perma-
neceu central em suas fotografias de Nagasaki, assim como
em sua exposição Erosões do tempo (Fūkasuru toki 風化する時),
de 1990, e no livro de 1995, Nagasaki 11.02 August 9, 1945.
A exploração fotográfica de Nagasaki realizada por Tōmatsu
durante meio século se inicia pelo encontro com o relógio.
Como um abismo do tempo imensurável que retorna, a cada
vez, a um “tempo suspenso” que continuamente indicia
a ruptura obscura da percepção, a paixão ininterrupta de
Tōmatsu em relação a Nagasaki nos mostra raro acúmulo e o
efeito de uma rica e profunda reflexão imagética do “tempo”.

TEMPO: OSCILANTE
O relógio parado em onze e dois permeia silenciosamente o
passado e o presente — o de Nagasaki e o nosso —, como uma
evidência física de um trauma inextinguível. Na imobilidade de
seus ponteiros, existe um poderoso antídoto contra o desvane-
cimento e a perda da memória. Simultaneamente, a imagem
visual daquele pedaço de tempo mudo e imóvel é um forte
lembrete de que o tempo não cessa de passar para ninguém.
A imobilidade do relógio, como uma imagem de tempo silen-
ciado, contrariamente nos lembra que a contemporaneidade
da história, enquanto processo dinâmico, não é possível.
DE NAGASAKI, PARA ARQUIPÉLAGOS DO TEMPO 109

Ela também nos recorda que a catástrofe que começou com a


detonação da bomba, às onze e dois, não terminou ali.
Uma agonia persistente aparece no mostrador estacio-
nado do relógio, revelando uma angústia perpétua, fonte
de supressão e contradição. O fotógrafo se insere entre o
momento congelado e o avanço incessante da existência
diária de Nagasaki. Na desconexão entre a paralisia do
tempo, de um lado, e a passagem dos dias, de outro, Tōmatsu
revela, enquanto fotógrafo, o seu campo de batalha. No ensaio
Genkōkei 原光景 (Cena primal), publicado em 1999, ele escreve:

Nagasaki tem dois recortes de tempo: o tempo para sempre


parado há dezesseis anos às onze e dois da manhã em 9 de
agosto e o período subsequente, datado a partir daquele
momento, completo com todas as mudanças envolvidas.
As mortes das vítimas constituem uma conexão entre esses
dois recortes de tempo (TŌMATSU, 1999, p. 19).

Estendendo uma sombra ao “período subsequente” de


Nagasaki, estão as mortes, uma por uma, das vítimas sobre-
viventes. Cada óbito confirma novamente o horror desenca-
deado pela explosão das onze e dois e, ao unir os “dois recortes
de tempo” de Nagasaki, expõe a crueldade do momento.
As vítimas sucumbiram a um destino que era oscilante e inevi-
tável em um tempo suspenso, e elas retornam quietamente —
inexoravelmente — para aquele momento, às onze e dois da
manhã de 9 de agosto de 1945. Seu indulto estendido, isto é,
através do “período subsequente” de Nagasaki, serviu apenas
para que retornassem àquele ponto inicial — um paradoxo.
No entanto, o destino que lhes coube não pode ser consi-
derado, necessariamente, um retrocesso. De certo modo,
junto ao tempo suspenso, o relógio de pulso marcando onze
e dois transmitiu o desejo de impelir a vida de Nagasaki em
direção ao futuro. Ele demonstrou a existência de um poten-
cial de reter a dignidade da sobrevida depois de sofrerem
o momento trágico. A ação de Tōmatsu, nesse início de
carreira, assumiu um forte comprometimento em Nagasaki
110 IMAFUKU R.

para recordar e transmitir a dignidade da vida que se desen-


rolava lá diante de seus olhos (TŌMATSU, 1961c).
O momento denominado onze e dois deixou de ser
simplesmente uma tragédia congelada no tempo. Ele pode
ser visto como a origem de um novo tipo de tessitura de vidas
humanas. Ao transformar tudo em cinzas, o evento nuclear
engendrou, para além das ruínas, como era requerido, uma
nova ordem, uma nova sensibilidade, um novo sistema de
valor. As ruínas do tempo não apenas cobriram a cidade
em destroços, mas também o interior das existências que
tentavam, ali, novas conexões. Tōmatsu não deixou passar
as ruínas inerentes a cada ser humano. Aquelas ruínas
internas do corpo não eram tragédias fossilizadas, mas se
manifestaram como energia criativa proveniente da vida
pulsante de carne e ossos. O fotógrafo se lembra, no ensaio
Genkōkei, de ter se reconciliado com as ruínas: “Eu enxer-
gava as ruínas apenas como produto da deterioração de uma
cidade. O que eu aprendi [em Nagasaki] foi que as ruínas
também existem dentro das pessoas” (TŌMATSU, 1961c).
É possível detectar um elemento não necessariamente
negativo na lembrança de Tōmatsu. As vítimas e suas famí-
lias se encontraram por entre as ruínas da doença e do sofri-
mento, cercadas pela morte e pelo terror, e ele continuou a
documentar seus avanços nessa situação abissal. Há uma
beleza sugestiva de uma flor desconhecida que brilha em suas
fotografias. Em algum lugar entre as estações que mudam, a
flor começou a desabrochar na periferia das pesadas ruínas.
O tempo oscila, eliminando noções arcaicas das relações
humanas. Novos laços surgem das ruínas da vida cotidiana,
e vítimas e fotógrafo confirmam os aspectos comuns de uma
família estendida. Emana dessa atmosfera familiar um calor
reconfortante, no lugar em que poderíamos ter esperado
encontrar uma frieza vazia. Aquele espírito penetrante lacera
as vítimas e os artefatos nucleares continuamente visíveis.
Assim, eles são discerníveis até mesmo nas fotografias estilo
snapshot de Tōmatsu, nas quais eles não aparecem abertamente.
DE NAGASAKI, PARA ARQUIPÉLAGOS DO TEMPO 111

TEMPO: CAUTERIZADO

Na mecânica da fotografia, o tempo aparece como luz. Criar


uma imagem fotográfica é basicamente uma questão de
expor um filme de haletos de prata (elemento receptor de
luz, no caso da câmera digital) ou um dispositivo de carga
acoplada por alguns centésimos ou décimos de segundo,
denominado tempo de exposição. Surpreendentemente,
o mecanismo original e essencial da fotografia na obtenção
da imagem, ao transformar o tempo em luz, foi apresen-
tado como uma revelação por meio de alguns tipos de
artefatos nucleares de Nagasaki. Uma fotografia muito
conhecida como vestígio devastador da exposição à bomba
nuclear é a de Eiichi Matsumoto (1915-2004), tirada um mês
após o bombardeio.
A foto de Matsumoto retrata as silhuetas bem deline-
adas de uma escada e de um ser humano em uma parede
de madeira do quartel-general do exército em Nagasaki.
A explosão nuclear queimou o revestimento de alcatrão da
parede, exceto onde as formas do soldado e da escada a seu
lado se encontravam. A óptica macabra gravou as silhuetas
na parede como se fosse um negativo fotográfico.
A tragédia nuclear de Nagasaki rendeu numerosas
ruínas semelhantes, como as silhuetas na parede do quar-
tel-general do exército. Tōmatsu viu pela primeira vez
várias delas nos arquivos do Centro Cultural Internacional
de Nagasaki (atual Museu da Bomba Atômica de Nagasaki),
e não é difícil de imaginar que as fotos e os espécimes
físicos devem ter ocasionado a descoberta da alegoria que
reflete a essência do mecanismo da fotografia. A preocu-
pação de Tōmatsu com o tempo de Nagasaki e seu inte-
resse pela luz se tornaram as duas faces de uma mesma
moeda fotográfica.
Tōmatsu tirou sua memorável gravura fotográfica de
um bambu, intitulada “Folhas e galhos de bambu queimados
por ondas de calor”, de 1961, durante sua primeira visita a
112 IMAFUKU R.

Nagasaki. A foto mostra grossos troncos de bambu sobre os


quais a explosão havia gravado imagens foto-negativas de
caules e folhas que estavam ao redor. O sentimento profundo
do fotógrafo pelo tema é facilmente percebido nos ângulos
sutis dos troncos de bambu, nas silhuetas dos caules e das
folhas que parecem incrustações de ouro em um fundo
escuro da mais negra laca.
Tirar fotografias em close-up de relíquias em um museu
dezesseis anos após o fato é muito diferente de testemunhar
o bombardeio propriamente dito. Tampouco se trata mera-
mente de catalogar espécimes físicos. Na verdade, Tōmatsu
descobriu na fotografia a verdade absoluta da conversão do
tempo em luz. E, ao representar suas descobertas fotografi-
camente, ele parece alcançar a sua mirada até um aspecto
metafísico da produção de imagens.
O “tempo cauterizado” expresso pelos artefatos nucle-
ares exerceu uma influência duradoura no fotógrafo.
Enquanto Tōmatsu caminhava por Nagasaki e fotografava
cenas da vida cotidiana, o clarão da explosão esteve sempre
presente. Ele registrou algo daquele lampejo no instante
fugaz de cada clique, em cada piscar de olho, em cada fração
de segundo de exposição.
Nós encontramos ao longo de toda a Nagasaki de
Tōmatsu uma abordagem ricamente compassiva, cuidado-
samente modesta, de temas humanos e inanimados. Essa
abordagem parece refletir uma ética sensível, enraizada
em um senso inconsciente de responsabilidade fotográ-
fica. O autor aparentemente percebe alarmantes paralelos
entre a recorrente “violência” das imagens armazenadas
em sua câmera e a brutalidade transformacional da
explosão atômica. Por isso mesmo, o ato de fotografar
deve aceitar de modo sincero a sua própria violência e
envolver o desejo de convertê-la em outra coisa dentro
de algum meio expressivo. E ele demonstra essa preocu-
pação em cada fotografia que produz.
DE NAGASAKI, PARA ARQUIPÉLAGOS DO TEMPO 113

TEMPO: DESCOBERTO/TEMPO: RESTITUÍDO

Em julho de 2000, a morte de Moto Watanabe, moradora de


Nagasaki, aos 85 anos, ocasionou uma descoberta surpreen-
dente. Watanabe morava no distrito de Ueno-machi. Sua casa
se localizava perto da Catedral de Urakami, um símbolo
de Nagasaki, que foi quase completamente destruída na
explosão atômica, tendo sido reconstruída após a guerra.
Watanabe havia erigido sua casa dos destroços reunidos no
local da explosão.
O que surpreendeu os amigos e familiares que vieram
coletar os pertences de Watanabe foi o que encontraram
embaixo dos pisos da casa construída com os escom-
bros coletados da área afetada pela bomba atômica.
Inexplicavelmente, Watanabe havia construído um
simples recipiente de pedra para guardar batatas doces,
um alimento básico em Nagasaki. O que impressionou
foi o que ela secretamente guardou embaixo do mesmo
beiral onde havia sido construído o recipiente: um grande
pedaço de vitral e a cabeça de uma escultura de anjo, ambos
aparentemente recuperados das ruínas da catedral. Eu bem
me lembro de ter ouvido isso do próprio fotógrafo, relatado
com muita emoção. Certamente, várias temáticas que esti-
mulavam o pensamento do autor em relação ao “tempo”
estavam ali sinalizadas.
O fotógrafo ficou espantado com a descoberta total-
mente inusitada do tesouro secreto de sua amiga. Tudo
sobre o tesouro e sua descoberta impulsionaram Tōmatsu
em sua investigação pelas tramas do tempo.
A cabeça de anjo, redescoberta depois de mais de meio
século de desaparecimento, sugere paralelos interessantes
com o trabalho de Tōmatsu. Fotos de esculturas de anjos e
santos derrubadas pela explosão atômica são as imagens
mais conhecidas da documentação inicial de Nagasaki pelo
fotógrafo. Entre esses trabalhos, há imagens brutalmente
114 IMAFUKU R.

impactantes de esculturas de anjos e de Jesus cujas cabeças


tinham sido detonadas. A explosão que provocou uma
violência horrível em humanos causou um efeito similar em
objetos de devoção católica esculpidos em pedra. E as escul-
turas sem cabeça aludem a questões da carne arrancada do
ser corpóreo de Nagasaki (TŌMATSU, 1961a). As imagens
de Tōmatsu reverberam com o conhecimento da história
cristã de Nagasaki, que se inicia com a chegada dos missio-
nários no século XVI.
Descoberta abaixo do chão da antiga residência de Watanabe,
a cabeça de anjo significou a redescoberta e a inesperada
restituição do tempo. Tōmatsu, antes da estrutura da casa
ser demolida, pressionou o disparador como se estivesse
possuído. Para ele, sem dúvida, foi um acontecimento reve-
lador que complementava milagrosamente a “ausência” do
sofrimento nas suas próprias fotografias. As fotos produ-
zidas em 1961 de esculturas decapitadas renasceram em
2000 com o ato de fotografar a cabeça encontrada embaixo
da casa de Watanabe. Dois pontos no tempo transcenderam
um abismo de contradições e se uniram como um só.
Também podemos olhar para o evento como uma
evocação: uma conjunção de dois tempos distintos, o tempo
trazido do passado como testemunha. A fé de Watanabe e
a mediação fotográfica de Tōmatsu levantam a pergunta:
“o que aconteceu lá atrás?”. A questão, mais do que um mero
depoimento do passado, ressoa no presente e nos posiciona
em um espaço de vontade e intenção.
Watanabe nunca revelou a ninguém a causa de ter
guardado a cabeça de anjo debaixo de sua casa. Podemos
imaginar, contudo, o desespero que prevaleceu no período
imediatamente após o bombardeio. Podemos contemplar
como a fé religiosa depositada em uma figura de pedra
pode ter se conectado com o desejo de sobreviver. E
podemos ver como Watanabe, ao encontrar por acaso a
cabeça nos escombros, possivelmente optou por colocá-la
sob sua casa improvisada.
DE NAGASAKI, PARA ARQUIPÉLAGOS DO TEMPO 115

Os atos de fé de Watanabe e de outros preservaram, sem


perceber, as fragmentadas figuras sagradas da Catedral de
Urakami. É justamente a matéria crua solidificada nas vítimas
do Pós-Guerra que é representada no tempo ora convocado.
Tão notável fetiche quanto a cabeça resguardada por
Watanabe é o pedaço de vitral que ela escondeu, solidifi-
cado no momento de formação de bolhas, devido às ondas
de calor. Ao descobri-lo, Tōmatsu prontamente o fotografou
em cima de uma pedra na varanda em frente à casa de
Watanabe. Essa imagem, também, documentou um “tempo”
redescoberto mais uma vez. O vermelho e o azul do vitral,
mais que desespero, evocam uma promissora esperança.
Tōmatsu fotografou de novo diversos artefatos para sua
exposição, incluindo o vitral de Watanabe. Ele o fotografou
mais uma vez sob a luz filtrada pelos vitrais da catedral
reconstruída de Urakami. Tōmatsu faz uma tentativa provo-
cadora de conectar tempos díspares, entrecruzar a luz revi-
gorada e reafirmar o presente ao referenciar a equivalência
de luz e tempo. Tempos múltiplos se manifestam nos espec-
tros brilhantes das fotografias. O fotógrafo, guiado pelo farol
de Nagasaki, finalmente chegou às imagens de “arquipé-
lagos do tempo” que ele mesmo deveria atravessar.

TEMPO: CONTATADO/TEMPO: INTERCEPTADO


Múltiplos períodos de tempos coexistem em Nagasaki,
desdobrando-se em um padrão sugestivo de arquipélagos.
Tōmatsu sobrepõe esses tempos arquipelágicos uns sobre
os outros, em uma cintilante abordagem crítica. Essa abor-
dagem claramente tomou forma de modo consciente em
2000, em sua grande exposição, Mandala de Nagasaki
(Nagasaki-no mandara 長崎の曼荼羅).
A exposição incluía uma imagem perturbadora de
frascos contendo órgãos removidos das vítimas mortas
durante a explosão atômica, que foram preservados em
formol. Os frascos repousavam, de maneira organizada,
116 IMAFUKU R.

sobre folhas de jornal em língua inglesa estendidas pelo


chão, e Tōmatsu os fotografou de cima. Sua composição
poderia sugerir uma visão aérea de Nagasaki, como se foto-
grafada da aeronave que jogou a bomba atômica.
Tōmatsu transformou, em outras palavras, sua imagi-
nação crítica em uma encarnação presente do local da
explosão e uniu tempos de diferentes momentos da história.
Ele propaga uma interferência sutilmente delineada entre os
tempos, acompanhada de uma delicada oscilação. A postura
extremamente crítica e filosófica apresentada nessa foto é
representativa de seu trabalho nos últimos anos.
Para a exposição Mandala de Nagasaki, Tōmatsu se
voltou completamente à fotografia digital. Isso lhe permitiu
alcançar extremos maiores para combinar tempos distintos
em uma tentativa de interceptá-los, ao atravessar os arqui-
pélagos do tempo. Especialmente notável é sua nova versão
do bambu impresso com padrões de folhas causadas pelas
ondas de calor da explosão atômica. Tōmatsu aventurou-se
no bosque de bambus no distrito Nameshi, de Nagasaki,
onde os troncos em questão haviam crescido visivelmente.
Ele tirou uma foto do bosque atual e então lhe sobrepôs uma
imagem antiga do bambu chamuscado.
O novo trabalho de Tōmatsu sobre o bambu emergiu de
sua participação em um projeto para refotografar os artefatos
nucleares do Museu da Bomba Atômica de Nagasaki. O trabalho,
contudo, vai além da ideia convencional de simplesmente foto-
grafar de novo as mesmas coisas. Ele exala comentários críticos,
em consonância com a contínua análise do tempo por Tōmatsu.
Apenas Tōmatsu poderia ter criado ou ter tido a permissão
para realizar uma obra como essa imagem complexa do bambu.
Seu quase meio século participando na vida de Nagasaki o
qualificou de modo singular para emparelhar de modo tão
direto e instantâneo o momento de onze e dois da manhã, em
9 de agosto de 1945, com o progressivo momento presente.
Somente nas mãos desse autor poderíamos visualizar uma
declaração tão ousada, expressa de modo tão extremado.
DE NAGASAKI, PARA ARQUIPÉLAGOS DO TEMPO 117

Tōmatsu também combinou imagens múltiplas em sua


foto de uma árvore de bordo chamuscada pela explosão atômica
no distrito Shiroyama-machi, em Nagasaki. Sua preferência,
confessou-me Tōmatsu inadvertidamente, de ter querido erigir
o tronco morto há tempos no lugar em que ele havia crescido
e fotografar seu tempo arbóreo no espaço original pretendeu
entrelaçar tempos essenciais. Contudo, a permissão para
retirar o tronco do museu não lhe foi concedida, então ele o
posicionou digitalmente.
Ao ver esses trabalhos, abandonamos, desde o início,
qualquer preocupação de serem eles composições digitais
ou fotografias naturais. Qualquer noção de artificialidade
tecnológica se dissolve diante da realidade que esses traba-
lhos transmitem e das questões que levantam. Muito rara-
mente a composição digital na fotografia permite a incitação
de atos críticos como esses. Devemos ser receptivos a qual-
quer tecnologia que permita reunir momentos díspares de
maneira tão provocativa e sincera como a de Tōmatsu.
A combinação de imagens produz um efeito igualmente
sofisticado e altamente filosófico em outras obras da expo-
sição. Um bom exemplo é uma foto de Senji Yamaguchi
(1930-2013). Ele está diante de uma foto de seu pescoço horri-
velmente cicatrizado, tirada por Tōmatsu quase cinquenta
anos antes (TŌMATSU, 1962). Yamaguchi carrega uma
expressão simultaneamente alegre e triste, que transcende
as representações emocionais padronizadas.
Outro bom exemplo de composição transcendentalmente
efetiva é a sua representação de Sumie Hisamatsu (?-1945), que
morreu no bombardeio atômico. Ele fotografou um grampo
dela, recuperado das cinzas, e o sobrepôs em seu cabelo na
foto memorial usada em seu funeral. Seu rosto parece tenta-
doramente próximo de falar conosco aqui e agora.
As montagens de Tōmatsu de fotos e objetos físicos
são, como outras técnicas que ele refinou, uma maneira
de conectar pontos no tempo. Vórtices de ondas de inter-
ferência surgem no veículo de tempo e luz entre as eras
118 IMAFUKU R.

invocadas. O tempo de Nagasaki surge da diversidade de


ritmos e matizes e nos pressiona em toda a sua complexi-
dade — incrivelmente denso em textura e curiosamente
silencioso na ação.
O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard (1930-2022)
sondou os limites da montagem cinematográfica no projeto
de vídeo de quatro capítulos, filosófico em sua essência,
História(s) do cinema (Histoire(s) du cinéma, 1989-1998).
Curiosamente, Godard e Tōmatsu nasceram no mesmo ano,
1930. Godard discute sua abordagem da montagem em uma
extensa conversa com o célebre cinéfilo Youssef Ishaghpour
(1940-2021), publicada em 2000 como Arqueologia do cinema e
a memória do século (Archéologie du cinéma et mémoire du siècle):
Fundamental para tudo é sempre a existência contínua de
dois. Eu sempre começo mostrando duas imagens, não uma.
Isso é o que eu chamo de “imagem” (ISHAGHPOUR, 2000
apud ASADA; KARATANI, 1999).

Uma dualidade prevalece, Godard assim revela em cada


imagem que cria. Pode-se compreender, por meio dessa
hipótese ousada, que a verdade de uma imagem nunca se
fecha em um único contexto ou historicidade, como comu-
mente se acredita.
Imagens visuais raras como as do bombardeio atômico
ou as da herança do Holocausto transcendem qualquer era e
até mesmo qualquer caracterização, seja ela uma “tragédia”
ou outra recepção sentimental. O artista precisa inserir o
assunto no campo de interceptação mútua de duas imagens
e lançá-lo nesse contexto plural. Só então é possível resga-
tá-lo como uma imagem criativa.
O que está em questão aqui é algo diferente de uma assi-
milação ou fusão fácil de imagens como elemento compo-
sicional em um quadro visual — algo diferente, também, da
aniquilação do significado original. Na verdade, trata-se de
considerar as diferenças divisíveis e os entrelaçamentos unifi-
cadores que residem entre duas imagens, entre dois pontos no
DE NAGASAKI, PARA ARQUIPÉLAGOS DO TEMPO 119

tempo, entre duas instâncias de luz. Trata-se do modo como


essas complexidades nos oferecem questões e uma compre-
ensão que seria impossível com uma única imagem.
Godard, aliás, usa material visual de Nagasaki em sua
História(s) do cinema: a foto das silhuetas do soldado e da
escada na parede de madeira do quartel-general do exér-
cito. Ele combina essa foto com a do cadáver rígido de uma
menina judia estrangulada pelos alemães e pendurada no ar.
Cada imagem é fiel ao seu contexto original; ainda assim,
cada uma também se torna uma declaração sob o horizonte
das questões humanas mais profundas que concernem às
crueldades das guerras. As imagens emparelhadas, em sua
ressonância e em seu entrelaçamento, nos estimulam.
Tōmatsu nos lembra, com suas fotos, que imagens
criadas como arte apresentam múltiplas possibilidades.
Seus experimentos inéditos em fotografia carregam uma
aposta de desconhecida paixão, para que nós, como espec-
tadores, possamos confrontar a surpreendente justaposição
e a mútua interceptação dos tempos das imagens, prontos
para confiar nossa resposta à compreensão emergente e à
intuição desenfreada.

TEMPO: PERMEADO/TEMPO RESGATADO


Tōmatsu continua andando por Nagasaki, e seus dias de errân-
cias continuam sendo uma fonte de fotografia. Suas novas
produções de grandes dimensões da exposição apresentam
uma extensa seleção de resultados recentes dessas cami-
nhadas: representações de tempo e luz da Nagasaki contem-
porânea. Aqui se encontram obras que, quando nos envolvem,
me fazem imaginar “um tempo presente” de um cotidiano
esmagador permeado pela zona da explosão nuclear.
Essas fotografias exibem, é claro, uma metodologia
consciente, no que diz respeito à justaposição e a outros
elementos de composição. O que é mais contundente, porém,
é o contexto. Vemos a luz do tempo presente de Nagasaki
120 IMAFUKU R.

piscando aqui e ali em fotografias instantâneas dos dias


comuns. Contudo, permeando o que sentimos, por toda parte
está o flash apocalíptico de onze e dois, persistente e conti-
nuamente mutante.
As imagens sobrepostas — a estratificação da luz, ou
seja, do tempo — abrangem implicações que antecedem a
explosão. Nagasaki há muito exibia uma vigorosa mistura
de elementos culturais e uma perspectiva vigorosamente
refratada de tempo. Nagasaki e a vizinha, Hirado, foram os
únicos portos japoneses que permaneceram abertos durante
os mais de dois séculos de isolamento do país, de 1639 a 1854.
Nagasaki, assim, tornou-se uma encruzilhada cultural, uma
porta de entrada para inúmeras absorções estrangeiras, uma
avenida de agitação, de amálgama e separação alternados.
Tōmatsu passa pela mistura refratada de tempo de
Nagasaki e tenta nos oferecer o resgate. A modernidade e o revi-
sionismo oficial da “história” esmagaram nossa compreensão
de tempo em um fluxo monótono e indiferente e impuseram
um esquecimento amnésico das possibilidades engendradas
pela diversidade do tempo genuíno. Diante do resgate do arqui-
pélago de tempo abordado por Tōmatsu, nós nutrimos espe-
rança. E lembramos a razão descrita por ele em 11:02 Nagasaki
para focar a cidade e retornar a ela repetidamente:

[…] porque eu desejava vencer minhas próprias tendên-


cias amnésicas, ver a persistência dos danos engendrados
por uma bomba atômica, a derradeira arma que emergiu
no século XX, um século conhecido por suas guerras
(TŌMATSU; IMAFUKU, 1998, p. 143).

“Persistência” é, a meu ver, uma palavra propícia para


a decisão de Tōmatsu, que parece refletir um forte senso de
comprometimento. O fotógrafo testemunha a persistência
vital do tempo e da luz que permeiam de modo arquipelá-
gico a vida cotidiana em Nagasaki. Na persistência, o tempo
e a luz transcendem as evidências apresentadas acusatoria-
mente pelos danos.
DE NAGASAKI, PARA ARQUIPÉLAGOS DO TEMPO 121

A perseverança de Tōmatsu exerce uma contundência


suficiente para derrotar nossa propensão amnésica. O próprio
fotógrafo permeia o tempo arquipelágico, em que tentaria
“viver” junto aos outros e até o fim.
Um ar apocalíptico flutua através dos tons contrastantes
e vibrantes das inúmeras fotos instantâneas tiradas por
Tōmatsu enquanto vagava por Nagasaki. Essa atmosfera se
eleva muito além do arquipélago do tempo no qual Tōmatsu
fixou sua mirada: é o reino dos espíritos e o lugar para onde
todos retornam no devido tempo. E ouvimos o som suave
das ondas. Elas estão acariciando a costa de Nirai, um reino
em ilha mítica no mar.

Traduzido ao português por Lucas Gibson a partir da


tradução inglesa de Waku Miller.

Revisão, cotejo e retradução a partir do original em


japonês por Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro
e Michiko Okano.

BIBLIOGRAFIA
ASADA, Akira 浅田彰; KARATANI, Kōjin 柄谷行人. Hihyō kūkan 批評
空間 (Espaço crítico), 1999, v. 2, n. 24, p. 114-133.

TŌMATSU, Shōmei 東松照明. Genkōkei 原光景 (Cena primal). In:


MUSEU DE FOTOGRAFIA DE TÓQUIO. Nihon rettō kuronikuru:
Tōmatsu Shōmei-no gojūnen 日本列島クロニクル・東松照明の五十年
(Crônicas do arquipélago do Japão: cinquenta anos de Shōmei Tōmatsu),
1999, p. 17-19.

TŌMATSU, Shōmei 東松照明. Angel Shattered by the Atomic Bomb at


Urakami Cathedral. 1961a. 1 fotografia. Disponível em: https://www.artsy.
net/artwork/shomei-tomatsu-angel-shattered-by-the-atomic-bomb-at-
urakami-cathedral-nagasaki-from-nagasaki-11-02. Acesso em: 2 fev. 2023.

TŌMATSU, Shōmei 東松照明. Atomic Bomb Damage: Wristwatch


Stopped at 11:02, August 9, 1945. 1961b. 1 fotografia. Disponível em:
https://www.sfmoma.org/artwork/92.245/. Acesso em: 2 fev. 2023.
122 IMAFUKU R.

TŌMATSU, Shōmei 東松照明. Hibakusha Tsuyo Kataoka. 1961c. 1 foto-


grafia. Disponível em: https://www.sfmoma.org/artwork/2014.1347/.
Acesso em: 2 fev. 2023.

TŌMATSU, Shōmei 東松照明. Hibakusha Senji Yamaguchi. 1962.


1 fotografia. Disponível em: https://www.moma.org/collection/
works/56197. Acesso em: 2 fev. 2023.

TŌMATSU, Shōmei 東松照明; IMAFUKU, Ryūta 今福隆太. Toki-no


shimajima 時の島々 Islands of Time (Ilhas do tempo). Tokyo: Iwanami
Shoten, 1998.
de Souza R. S.

PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE:
CHIM↑POM E OS LIMITES E
AUSÊNCIAS DAS ZONAS DE
EXCLUSÃO NUCLEAR PÓS-2011

Ryanddre Sampaio de Souza


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

RESUMO
O presente ensaio reflete sobre o nexo arte-catástrofe no
contexto social japonês depois do chamado Triplo Desastre,
ocorrido em 11 de março de 2011. Depois do acidente na
Usina Nuclear de Fukushima Daiichi, foram criadas
zonas de exclusão em Fukushima, uma cartografia radio-
ativa que “produziu paisagens de renegociação de poder”,
conforme Pablo Figueroa, onde alguns artistas passaram a
atuar ativamente, entre eles o coletivo Chim↑Pom. Serão
analisados dois projetos desse coletivo produzidos sobre
o triplo desastre dentro das zonas de exclusão nuclear:
REAL TIMES (2011) e Don’t Follow the Wind (2015). Esta
análise tem por foco o conceito de presentificação a partir
da ideia de representação da ausência, de Ken’ichi Kondō,
refletindo assim sobre os limites e as ausências traba-
lhados pelos artistas. Sugerimos a ideia de presentificação
como uma forma de lidar com a catástrofe nesse campo de
tensões entre o que é oculto e o que é mostrado (ou, ainda,
o que pode ou não ser acessado), produzindo, segundo
Hisayasu Nakagawa, um jogo metonímico através do qual
126 de Souza R. S.

são valorizados os elementos que têm o poder de sugestão


e imaginação, em vez da representação objetiva.
Palavras-chave: Presentificação. Triplo Desastre. Fukushima.
Chim↑Pom. Exclusão Nuclear.

ABSTRACT
This paper reflects on the art-catastrophe nexus in the Japanese
social context after the so-called Triple Disaster that occurred on
March 11, 2011. After the accident at the Fukushima Daiichi
Nuclear Power Plant, exclusion zones were created in Fukushima,
a radioactive cartography that “produced landscapes of renego-
tiation of power,” as pointed out by Figueroa, where some artists
began to actively act, among them the collective Chim↑Pom. Two
projects by this collective produced on the triple disaster within the
nuclear exclusion zones will be analyzed: REAL TIMES (2011)
and Don’t follow the wind (2015). This analysis will focus on the
concept of presentification, based on the idea of representation
of absence, by Ken’ichi Kondō, thus reflecting on the limits and
absences that are reflected by these artists. I suggest the idea of
presentification as a way of dealing with catastrophe in this field
of tensions between what is hidden and what is shown (or even
what can or cannot be accessed) producing, according to Hisayasu
Nakagawa, a metonymic game by which the elements that have
the power of suggestion and imagination are valued, instead of
their objective representation.
Keywords: Presentification. Triple Disaster. Fukushima. Chim↑Pom.
Nuclear Exclusion.

O 11 de março de 2011 estará para sempre marcado na


história do Japão e, também, da humanidade. Um terremoto
de magnitude 9,1 na escala Richter atingiu a costa nordeste
do arquipélago japonês, próximo da região de Tōhoku, com
epicentro localizado a apenas 72 quilômetros da península de
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 127

Oshika, prefeitura de Miyagi. Por sua potência devastadora,


o terremoto foi sentido por quase todo o território japonês e,
segundo relatos, fez os arranha-céus de Tóquio balançarem
como bambus ao vento (ROBINSON, 2016). O sismo fez
disparar o alerta de tsunami nas cidades costeiras, porém
o alcance desse sinal foi prejudicado em virtude da falta de
energia elétrica nas regiões mais afetadas pelos tremores.
Rapidamente, em torno de trinta minutos após o terremoto,
ondas de até quarenta metros atingiram a costa e causaram
a devastação de inúmeras cidades litorâneas, especial-
mente nas prefeituras de Miyagi, Iwate e Fukushima, mais
próximas do epicentro do terremoto.
Para atingir a Usina Nuclear de Fukushima Daiichi, o
tsunami atravessou facilmente as barreiras de contenção de
dez metros e causou a falha no sistema de refrigeração dos
seus seis reatores nucleares: cinco deles vieram a fundir no
curso do desastre, liberando uma quantidade significativa de
radiação. O acidente nuclear da usina de Fukushima Daiichi
foi classificado no nível máximo da escala de eventos radio-
lógicos, o mesmo do acidente nuclear da usina de Chernobyl
(1986), e transformou parte da prefeitura de Fukushima em
zonas de exclusão ou zonas de difícil retorno. Passando a ser
internacionalmente conhecido pela problemática alcunha
de Desastre de Fukushima, ignorando o caráter global da
catástrofe e localizando-a apenas na província em questão,
o triplo desastre de 2011 causou um prejuízo financeiro esti-
mado em 199 bilhões de dólares, deixou cerca de 160 mil
pessoas desabrigadas, matou cerca de 15 mil e, até 2015,
haviam sido registrados mais de cem casos de câncer entre
crianças e jovens, números que ainda estão aumentando
(ROBINSON, 2016; YONEYAMA, 2017).
Este é o mais recente caso que deixa evidente a compli-
cada relação do Japão com a energia nuclear, bem como a
manutenção de uma vida estabelecida em torno do risco.
Este é um paradoxo próprio do tempo que chamamos de
Antropoceno, época geológica em que o agenciamento
128 de Souza R. S.

humano passou a causar alterações drásticas no clima


e na vida na Terra. Estudiosos das graves crises ligadas
ao Antropoceno (CHAKRABARTY, 2013; DANOWSKI;
VIVEIROS DE CASTRO, 2017; HARAWAY, 2016; LATOUR,
2014; STENGERS, 2015; YONEYAMA, 2013) questionam
sobre a nossa capacidade de lidar com os problemas sociais e
ecológicos gerados pelas práticas predatórias do capitalismo
tardio, evidenciando “o caráter intrinsecamente ‘insustentável’
desse desenvolvimento” e a necessidade de “tomar conheci-
mento das nossas obrigações diante do que está acontecendo”
(STENGERS, 2015, p. 9). O Antropoceno representaria, então,
além de uma época geológica, um sistema de governo, um
regime de exceção (FAUSTO, 2014) que produz e naturaliza
as catástrofes, criando complexos regimes discursivos cuja
máxima reside no convencimento de que os desastres são
uma contrapartida natural das inúmeras vantagens que o
desenvolvimento nos proporciona — um “pequeno preço” a
pagar pelo conforto e praticidade da vida moderna.1
Diversos autores consideram a catástrofe de 2011 como
um momento de virada para a arte contemporânea japonesa.
Muitos artistas, afetados diretamente ou não pelo desastre,
repensaram suas práticas artísticas à sombra da catástrofe
em curso e produziram ativamente — alguns nos momentos
imediatos ao evento, outros meses ou anos depois — mani-
festações artísticas sobre os novos questionamentos que a
vida estabelecida em torno do risco propunha a uma socie-
dade que via, novamente, sua ordem social ser desestabi-
lizada pelos novos regimes do Antropoceno e pela ordem

1 Um dos muitos exemplos desse tipo de discurso pós-Fukushima pode


ser encontrado no vídeo intitulado Onaka ga itaku natta genpatsukun
お腹が痛くなった原発くん, baseado no personagem criado pelo artista
Kazuhiko Hachiya após o desastre, que recebeu grande repercussão
por tentar explicar ao público infantil o acidente nuclear retratando
a usina como uma criança com dores de barriga prestes a sujar as
fraldas. Ao final do vídeo, o narrador afirma que rezar pelo povo de
Fukushima é o mínimo que o povo japonês pode fazer em retribuição
a tantos anos de uso da energia produzida pela usina nuclear.
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 129

nuclear. A arte produzida pós-2011 apresenta uma série de


proposições de ordens estética, ontológica e social para nos
fazer repensar nossas formas de habitar o mundo e lidar
com as consequências das catástrofes.
Nos termos da antropóloga Donna Haraway (2016),
as proposições da arte pós-2011 nos sugerem formas de
permanecer com o problema ou, ainda, pensando com Anna
Tsing (2019), nos apresentam formas criativas de viver
nas ruínas do Antropoceno. O Japão, com seus 33 reatores
nucleares atualmente ativos, permanece como uma ogiva
dormente aguardando que uma nova intrusão de Gaia2
desperte os gigantes brancos da produção energética capi-
talista de seus sonos atômicos para, possivelmente, trans-
formar novas cidades em ruínas.
Aqui serão analisadas duas ações do coletivo
Chim↑Pom, formado por jovens artistas da cena contem-
porânea da capital japonesa, que começou a refletir, ques-
tionar e produzir ativamente manifestações artísticas sobre
os eventos catastróficos de 2011 imediatamente após o
desastre. Sua relevância para o panorama artístico japonês
é inegável, tendo o grupo participado de diversas exposições
individuais e coletivas no Japão e no mundo. No momento de
produção deste texto, uma exposição intitulada Chim↑Pom:
Happy Spring 3 está sendo exibida no Museu de Arte Mori
(Mori Bijutsukan 森美術館) de Tóquio, que, sob a curadoria
de Ken’ichi Kondō, celebra o mais radical coletivo de artistas

2 A filósofa belga Isabelle Stengers nomeia, como intrusão de Gaia, um


agenciamento transcendente de forças completamente indiferente a nós.
Nomeá-la como quem faz a intrusão é justamente dizer que Gaia é cega
aos danos que provoca, “à maneira de tudo que é intrusivo” (STENGERS,
2015, p. 37) e, por isso, nossa resposta à catástrofe não deve ser uma
resposta a Gaia, mas ao que provocou sua intrusão e suas posteriores
consequências; como afirma a filósofa, o tempo das garantias acabou.
Esse agenciamento transcendente de Gaia é uma intrusão “que perturba
a ordem das temporalidades” (STENGERS, 2018, p. 37) e que nos obriga
aprender a ter cuidado para resistir ao tristemente previsível.
3 Chim↑Pom展:ハッピースプリング (Chim↑Pom-ten: happīsupuringu).
130 de Souza R. S.

japoneses em sua maior retrospectiva já realizada. Tive a


oportunidade de entrevistar o curador em 2019 durante meu
estudo de campo no Japão e parte das reflexões produzidas
a partir deste encontro também estarão presentes neste
ensaio, especialmente no que se refere à ideia de presentifi-
cação da catástrofe, que será analisada posteriormente.

CHIM↑POM: LES ENFANTS TERRIBLES DA CENA


CONTEMPORÂNEA JAPONESA
O coletivo Chim↑Pom é considerado um dos mais contro-
versos grupos artísticos da arte contemporânea japo-
nesa, ou “as crianças terríveis da cena artística japonesa”
(DE RIGUEUR, 2012, p. 9, tradução nossa).4 Formado em 2005
em Tóquio pelos membros Ryūta Ushiro, Yasutaka Hayashi,
Ellie, Masataka Okada, Motomu Inaoka e Toshinori Mizuno,
artistas considerados parte da chamada geração perdida japo-
nesa,5 o coletivo transmite através de sua arte inúmeros dos
questionamentos que produzem na sua prática, frutos de suas
muitas ideias originais. Uma das formas mais importantes de
atuação do coletivo é a intervenção de sua arte na sociedade,
de maneira direta, bruta e irônica, com posicionamentos que
se refletem nas suas relações com outros artistas.
Em sua arte, o Chim↑Pom aborda temáticas que
flutuam entre críticas ao capitalismo e ao consumo, os
bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, desastres
naturais, infecção, preconceito e discriminação, além de
críticas à produção midiática. Fugindo da aparente impar-
cialidade japonesa, ou ao menos da sutileza que acom-
panha grande parte da produção contemporânea no que

4 “[...] the Enfants Terribles of Japanese art scene.”


5 “Os membros do Chim↑Pom são produtos da exclusão social econô-
mica e estrutural — principalmente pobres, e apenas um membro com
curso superior — que se autodenominam kasu, termo vulgar que signi-
fica resíduo ou subproduto inútil, usado também para denotar status
subumano” (WAITE, 2019, p. 24, tradução nossa).
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 131

diz respeito à abordagem direta em críticas político-sociais,


suas obras têm um agenciamento poderoso de mudança e
transformação. Porém, foi após o triplo desastre de 2011 que
o coletivo ganhou maior notoriedade; à época, sua arte multi-
mídia — vídeos, instalações, performances, entre outros —
visou responder instintivamente ao que consideravam de
mais “real” no mundo contemporâneo (CHIM↑POM, 2012).
Na mesma entrevista dada para a revista De rigueur, ao serem
questionados sobre o desastre ocorrido em março daquele
ano, o grupo discorreu sobre a tomada de ação imediata no
próprio local do desastre.

Ouvimos muitos artistas dizendo que não poderiam criar


sem antes entender e digerir a realidade. No entanto, como
Chim↑Pom, muitas vezes agimos sem digerir (risos).
Somos um coletivo de seis pessoas, então não podemos
digerir o que está acontecendo como um grupo, coletiva-
mente. Dúvidas permanecem dúvidas, contradições perma-
necem contradições, mas achamos que seria bom manter
dúvidas e contradições como estão, porque essas dúvidas
e contradições não podem ser digeridas por um coletivo
de seis pessoas, elas permanecerão indigestas para outras
pessoas também. Se criarmos algo nessas circunstâncias,
acreditamos que a própria criação terá voz e atrairá seu
próprio público (DE RIGUEUR, 2012, posição 37-41).6

Porém, mesmo antes de 2011, seus trabalhos já


mostravam a forma única, muitas vezes radical, com que
lidavam com questões polêmicas de importância social,
lançando-os no panorama artístico da capital japonesa.

6 “We heard many artists saying that they could not create without under-
standing and digesting the reality first. However, as Chim↑Pom we
often act without digesting (laughs). We are a collective of six people, so
we can’t digest what’s happening as a group, collectively. Doubts remain
doubts, contradictions remain contradictions, but we think it might be
good to keep doubts and contradictions as they are, because those doubts
and contradictions cannot be digested by a collective of six people, they will
remain indigestible for other people, too. If we create something under those
circumstances, then we believe the creation itself will have a voice and will
attract its own audience.”
132 de Souza R. S.

Obras como Super-rato (Sūpāratto スーパーラット, 2006) —


termo usado pelos exterminadores desses roedores para se
referir a uma proliferação destes, resistentes ao veneno nas
áreas urbanas do Japão — consistia em capturar ratos nas
ruas de Tóquio e, em seguida, preservá-los por taxidermia
e pintá-los como o famoso monstro elétrico Pikachu, perso-
nagem da mundialmente famosa franquia Pokémon; para o
coletivo, os “super-ratos”, adaptados para conviver com os
humanos, eram símbolos da própria sociedade japonesa que
se adapta a viver em meio à contaminação.
Fazendo o céu de Hiroshima PIKA! (Hiroshima no sora o
pikatto saseru ヒロシマの空をピカッとさせる, 2009), performance
polêmica que visava associar o desaparecimento da
memória histórica da bomba atômica com a onomatopeia
pika ピカッ (brilho, explosão), escrita com a fumaça nos céus
de Hiroshima e acima do Memorial da Paz (conhecido como
Cúpula da Bomba Atômica), foi visível apenas por alguns
minutos, desaparecendo enquanto a fumaça se dissipava.
Essa intervenção, amplamente condenada pelos moradores
da cidade e por organizações de vítimas da bomba atômica,
expôs a ferida que nunca cicatrizou. Seguida de um pedido
público de desculpas, o coletivo transformou a crítica em
algo produtivo e publicou o livro intitulado Por que não
podemos fazer o céu de Hiroshima PIKA!? (Naze Hiroshima no
sora o pikatto sasete wa ikenai no ka なぜ広島の空をピカッとさせては
いけないのか, 2009), analisando os argumentos apresentados
contra a performance por meio de entrevistas com organiza-
ções, críticos e outros artistas. O livro também comparou a
forma como o coletivo e outros jovens lidam com a bomba
atômica e o contraste com as gerações anteriores, como a de
Murakami Takashi, por exemplo.
Mais recentemente, reafirmando seu lugar de impor-
tância no panorama da arte contemporânea japonesa,
a retrospectiva intitulada Happy Spring do Museu de Arte
Mori em Tóquio exibiu obras produzidas desde o início
da carreira do coletivo, há dezessete anos, até obras mais
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 133

recentes ou criadas especificamente para essa mostra.


Uma das sessões temáticas da exposição é dedicada ao
Grande Terremoto do Leste Japonês, que ocasionou o triplo
desastre de 2011, tamanha a relevância da catástrofe para a
produção artística do grupo e, de maneira geral, para a arte
contemporânea japonesa. Segundo a curadoria da expo-
sição, o título se refere à possibilidade de uma primavera
mais brilhante e promissora, considerando a pandemia de
covid-19 ainda em curso, servindo como fonte de esperança
e imaginação nestes tempos imprevisíveis:

[...] as obras poderosas e destruidoras de convenções deste


grupo de artistas duradouros, mas igualmente imprevisí-
veis, certamente estimularão a imaginação e servirão como
um guia à medida que nos unimos na contemplação de um
futuro melhor (MORI ART MUSEUM, 2022).7

De forma a nos aprofundarmos nas discussões propostas


no presente trabalho, analisaremos a seguir as duas inicia-
tivas do coletivo que consideramos fundamentais para essa
virada da arte japonesa contemporânea a fim de compre-
ender, através da arte, como o triplo desastre de 2011 mudou
os modos dos japoneses de questionar, de ser e de estar em
um mundo em crise: a exposição REAL TIMES (2011) e o
projeto Don’t Follow the Wind (2015).

REAL TIMES E DON’T FOLLOW THE WIND:


ARTE NAS ZONAS DE EXCLUSÃO NUCLEAR
A primeira exposição individual do Chim↑Pom após o Grande
Terremoto do Leste Japonês, REAL TIMES (2011), realizada
de forma independente em Tóquio, contou com obras criadas
dentro da zona de exclusão da prefeitura de Fukushima dias

7 “[...] the powerful, convention-busting works of this enduring, but equally-


-unpredictable group of artists are certain to excite the imagination, and
serve as a guide as we join in contemplating a better future.”
134 de Souza R. S.

após o acidente nuclear. A iniciativa buscou refletir sobre a


suposta incapacidade da arte de lidar com questões tão graves
como o triplo desastre, bem como o sentimento de impotência
que muitos artistas sentiram nos dias e meses seguintes à
catástrofe. Após os acontecimentos trágicos de março de
2011, muitas exposições e eventos culturais foram cance-
lados, salvo algumas iniciativas artísticas que visavam anga-
riar fundos para as vítimas. Nesse panorama de incertezas,
os artistas do Chim↑Pom viajaram para as regiões afetadas
para agir de forma direta sobre a catástrofe.
Lá o coletivo produziu o vídeo REAL TIMES, que dá
nome à exposição realizada posteriormente. Esta é uma das
obras mais importantes da carreira do grupo de artistas: um
vídeo filmado um mês após o desastre dentro das zonas de
exclusão nuclear mostra os integrantes do Chim↑Pom em
um mirante nas instalações da TEPCO (Tokyo Electric Power
Company), a aproximadamente setecentos metros da Usina
Nuclear Fukushima Daiichi,8 ainda envolta em fumaça.
Lá, com a fantasmagórica e perturbadora imagem da usina
ao fundo, os artistas pintaram um círculo vermelho em
uma bandeira branca para representar a bandeira japonesa,
que foi então sendo transformada no símbolo da radiação,
transmitindo a ideia do país como uma nação radioativa.
Outro vídeo presente na exposição, Cem repetições vigo-
rosas (Kiai 100 renpatsu 気合い100連発), mostra alguns dos
artistas do coletivo junto a moradores da cidade de Soma,
na província de Fukushima, afetada pelo terremoto e pela
radiação. Em alternância, os jovens moradores proferem
gritos de encorajamento e espírito de luta, repletos de ironia

8 Segundo o coletivo, a TEPCO relatou que à ocasião da intervenção


dos artistas o nível de radiação estimado no local era de 199μSv/rh,
tendo chegado a um pico de 400μSv/rh nos dias seguintes ao acidente.
Segundo dados da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN),
responsável pela regulamentação das atividades envolvendo mate-
riais radioativos no Brasil, o limite de dose anual de radiação para uma
pessoa normal é de 1μSv, podendo chegar a um máximo de 5μSv em
circunstâncias especiais.
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 135

em meio aos escombros: “numa mistura de sincera solida-


riedade e irreverência, aplaudiram a superação da calami-
dade e gritaram numa aparente celebração do desastre”
(CHIM↑POM, 2012, p. 13, tradução nossa).9 Apesar da
destruição causada pelo terremoto e pelo tsunami, bem como
de sua proximidade à usina nuclear de Fukushima, a cidade
de Soma não recebeu muita atenção da mídia nem muitos
voluntários para sua reconstrução; segundo os artistas, os
cem gritos foram reais, ainda que improvisados por jovens
moradores que, apesar de serem vítimas, continuaram a
prestar socorro e ajudar na reconstrução.
Algumas obras presentes nessa primeira iniciativa de
reflexão do Chim↑Pom sobre o triplo desastre de 2011 fazem
clara conexão entre o acidente nuclear na Usina de Fukushima
e os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, eviden-
ciando o paradoxo atômico japonês: o trauma da guerra e a
necessidade de produção de energia para a reconstrução e
rápido desenvolvimento econômico no pós-guerra. Nunca
desista (Never Give Up, 2011), obra composta por uma moldura
encontrada na zona de exclusão e, dentro dela, um fax escrito
“Never give up!” — enviado por Sunao Tsuboi, sobrevivente
do bombardeio de Hiroshima e ativista contra as armas
nucleares — faz uma conexão sombria, ainda que óbvia e rele-
vante, entre os dois eventos.
Já Level 7 feat. Myth of tomorrow (2011) foi uma intervenção
realizada pelo grupo no famoso mural de Tarō Okamoto,
O mito do amanhã (Asu no shinwa 明日の神話, 19681969), uma
pintura de aproximadamente trinta metros que representa
a visão do pintor sobre o trágico momento do bombardeio
atômico de Hiroshima. Exposta desde 2008 na estação de
Shibuya, em Tóquio, a obra de Okamoto ganhou uma adição
no canto inferior direito, feita pelo Chim↑Pom: nesse novo
segmento, os jovens artistas pintaram uma imagem da fumaça

9 “[...] in a mix of earnest solidarity and irreverence, they cheered to over-


come the calamity and shouted in seeming celebration of the disaster.”
136 de Souza R. S.

negra subindo da usina de Fukushima em chamas em forma


de crânio, no mesmo estilo do mural, de modo que parecesse
uma continuidade da obra original, completando esse cenário
apocalíptico do mito do futuro atômico japonês. Com a obra,
o grupo publicou a seguinte declaração:

O enorme mural O mito do amanhã de Tarō Okamoto na


estação de Shibuya é uma crônica da exposição nuclear
do Japão. Testemunhando o bombardeio atômico em
Hiroshima e Nagasaki e a exposição à bomba de hidrogênio
do Lucky Dragon 5, a radiação percorreu o século XX até os
dias atuais, ao longo dos séculos, da guerra à paz, junto com
o mito da segurança da usina nuclear. [...] Em 2011, a reali-
dade atualizou essa crônica. Chim↑Pom acrescentou a
figura da explosão na Usina Nuclear de Fukushima Daiichi
ao espaço em branco, como uma figura “não executada” pelo
próprio Tarō Okamoto e como a realidade de todo o povo
japonês que vive depois de Hiroshima. Level 7 feat. Myth
of tomorrow sempre estará junto com O mito do amanhã,
para sempre. Ver a obra através de sua ausência deve exigir
nossa imaginação em vez dos olhos, assim como conceber
a história ou a radiação. Acreditamos que a imaginação é
a própria possibilidade para o marco zero e o poder mais
fundamental para criar o futuro. E acreditamos que a arte
existe como tal (CHIM↑POM, 2012, p. 31, tradução nossa).10

Idealizado pelo coletivo anos mais tarde, o projeto Don’t


Follow the Wind (2015), montado em quatro locais dentro
da zona de exclusão de Fukushima, reúne obras de doze

10 “The huge mural Myth of Tomorrow by Okamoto Taro in Shibuya station is


a chronicle of the nuclear exposure of Japan. Witnessing the atomic bombing
in Hiroshima and Nagasaki and the hydrogen bomb exposure of the Lucky
Dragon 5, radiation has traveled through the 20th century and to the present
day over centuries, from war to peace, together with the safety myth of the
nuclear power plant. [...] In 2011, reality updated this chronicle. Chim↑Pom
added the figure of the explosion at the Fukushima Daiichi Nuclear Power
Station to the blank, as a figure ‘unexecuted’ by Okamoto Taro himself and
as the reality of all the Japanese people living after Hiroshima. Level 7 feat.
‘Myth of Tomorrow’ will always be together with Myth of Tomorrow forever.
To see the work through its absence must require our imagination instead of
eyes, just as to conceive of history or radiation. We believe imagination is the
very possibility for ground zero, and the most fundamental power to create
the future. And we believe art exists as such.”
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 137

artistas, entre japoneses e estrangeiros, dentre eles os seis


integrantes do coletivo, sob curadoria de Kenji Kubota, Eva
e Franco Mattes e Jason Waite.11 A exibição permanece
fechada ao público e sem data de encerramento até que a
região seja considerada segura para ser novamente habitada.
Como resposta à impossibilidade de vida humana nesses
lugares de exclusão, a exposição mostra de forma significa-
tiva o vazio causado pelo desastre — a impossibilidade de
acessá-la é também uma forma de reafirmar a interrupção
das relações sociais ali uma vez presentes.
Mais tarde, no mesmo ano, uma extensão da expo-
sição foi instalada no Watari Museum of Contemporary Art
(Watarium Bijutsukan ワタリウム美術館), em Tóquio. Chamada
Don’t Follow the Wind: non-visitor center, as suas peças,
mesmo que ainda visíveis ao público, foram mantidas atrás
de paredes de vidro, como uma reprodução em menor escala
da inacessibilidade da exposição original. Nas palavras
de Didi-Huberman, “o que vemos só vale — só vive — em
nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão
que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha”
(DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 29). Don’t Follow the Wind nos
coloca, então, diante da exclusão nuclear e vice-versa; não
sabemos, porém, quem captura e quem é capturado nessa
relação paradoxal.
Tome-ishi Boundary (2015), de Aiko Miyanaga, Time
Travelers (2015), de Kōta Takeuchi, e Home (2015), de Meirō
Koizumi, são alguns dos trabalhos de artistas japoneses que
colaboraram com o projeto. Exibidas na zona de exclusão de
Fukushima com contrapartidas no Watari-um, em Tóquio,
as obras citadas buscam, ao mesmo tempo, evidenciar as

11 Artistas japoneses participantes da exposição: Aiko Miyanaga, Nobuaki


Takekawa, Chim↑Pom, Grand Guignol Mirai, Kōta Takeuchi, Meirō
Koizumi. Artistas estrangeiros que participaram: Weiwei Ai (China),
Taryn Simon (Estados Unidos), Trevor Paglen (Estados Unidos),
Ahmet Öğüt (Turquia), Nikolaus Hirsch (Alemanha), Jorge Otero-
Pailos (Espanha), Eva e Franco Mattes (Itália).
138 de Souza R. S.

ausências e rupturas causadas pela catástrofe e restabelecer


as conexões perdidas pelo desastre nuclear. Esses três traba-
lhos e, de forma geral, toda a exposição, acessam a sensibili-
dade que podemos perceber no yūgen 幽玄12 através da tensão
que se estabelece entre o que é mostrado e o que é oculto,
explícito e implícito, luz e sombra, dicotomias que constituem
“uma constante típica da estética japonesa” (NAKAGAWA,
2008, p. 111). O yūgen pode ser percebido na análise da obra
de Keiichi Tahara feita por Félix Guattari através da ideia
de “sempre nunca visto” (always never seen) alcançado por
uma “subjetividade maquínica ou maquinada produzida por
esse dispositivo complexo” devido a sua falta de orientação
fixa “porque há o vagar como uma alma morta que os rituais
de luto ainda não aplacaram...” (GUATTARI, 2015, p. 67,
tradução nossa).13 A tensão entre esses lados dicotômicos é
o que o antropólogo Hisayasu Nakagawa classifica como um
“jogo metonímico”, atuando justamente para mostrar o que
não é mostrado por sua ausência, criando uma “harmonia
complementar de dois elementos, um visível, outro invi-
sível, de modo que o primeiro evoca ainda mais o segundo”
(NAKAGAWA, 2008, p. 126).
A compreensão de tal complementaridade entre o
visível e o invisível será fundamental para as reflexões
propostas aqui. Feitas de vidro radioativo, as esculturas de
Aiko Miyanaga, uma localizada em Fukushima e outra na
exposição no Watari-um, evidenciam a ruptura e as fron-
teiras imaginárias estabelecidas entre a zona de exclusão e
o resto do Japão. A obra de Miyanaga refere-se às “pedras de
parada” (tomeishi 止め石), também conhecidas como “pedras
de barreira” (sekimoriishi 関守石) típicas da filosofia Zen,

12 Conceito da estética japonesa relacionado às ideias de profun-


didade misteriosa, do que é sutil e profundo, do que está abaixo
da superfície.
13 “[...] machinic or machined subjectivity produced by this complex dispositif
[...] because there is the wandering like a dead soul that the mourning
rituals have not yet appeased...”
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 139

que são amarradas com um pedaço de corda e servem para


marcar limites ou interdições de acesso, sendo tradicional-
mente usadas nos jardins japoneses.
A ausência e a complementaridade entre o que se vê
e o que está oculto são também os temas da obra de Kōta
Takeuchi, na qual, ao invés de estabelecer limites, o artista
os desconstrói. Takeuchi fotografou a si mesmo vestindo
roupas abandonadas em algumas das casas visitadas na zona
de exclusão e colocou essas fotografias, em tamanho real, nos
lugares onde foram tiradas, passando a habitar esses com a
estranheza do vazio e do silêncio, sobrepondo figura e fundo,
artista e exclusão, nos locais em que as fotografias foram
tiradas. O artista buscou estabelecer laços com as memórias
dos moradores que, se algum dia virem as fotos, se conec-
tarão com lembranças de suas vidas antes do desastre, como
se este, de alguma forma, pudesse nunca ter acontecido.
Já a videoinstalação Home, de Meirō Koizumi, oferece ao
observador outro sinal da desconexão causada pelo desastre.
Na zona de exclusão, um vídeo de três minutos é repetido sem
parar, reproduzindo uma conversa de um casal, que simula
um dia normal do cotidiano de uma refeição em família.
Sua contrapartida, exposta posteriormente no Watari-um,
constitui-se da mesma filmagem, porém com uma diferença
fundamental: no museu em Tóquio o vídeo não tem som e,
desta forma, a conversa, assim como o restante das dinâ-
micas sociais e das relações familiares daquele casal, ficam
limitadas à zona de exclusão e só poderiam ser experimen-
tadas dentro de sua casa original, onde agora a vida humana
não é mais possível.
Percebemos como os projetos idealizados pelo coletivo
Chim↑Pom nas zonas de exclusão nuclear de Fukushima
nos colocam diante dos vazios do isolamento, cara a cara,
mesmo distantes das regiões evacuadas. Como uma resposta
à própria impossibilidade de continuação da vida nessas
regiões, as exposições refletem de forma significativa sobre
o vazio (humano) causado pelo desastre e as transformações
140 de Souza R. S.

que as paisagens sofrem pelo agenciamento da catástrofe,


propondo outras formas de entender esse mundo, que passa
a ser pensado na confluência de catástrofes; a arte torna
reflexiva a experiência da vida.
Vemos que a ideia de arte que o coletivo Chim↑Pom
defende, como as propostas em Fukushima, onde a “ação
imediata ocorreu desde os níveis de base” (CHIM↑POM,
2012, p. 13, tradução nossa),14 se assemelha à abordagem
de Alfred Gell, para quem a arte deveria ser pensada em
termos de agência, intenção, causalidade, resultado e trans-
formação, desempenhando um papel prático de mediação
nos processos sociais: “a arte como um sistema de ação
cujo propósito é mudar o mundo” (GELL, 2018, p. 31). Essa
noção também se assemelha à crença de Lévi-Strauss
de que o objeto de arte não imita a realidade, mas a cria;
a arte é entendida como uma reflexão sobre a sociedade,
não um reflexo dela. REAL TIMES e Don’t Follow the Wind
apontam diretamente para o cerne dos problemas ambien-
tais e sociais das consequências perversas da energia
nuclear e sugerem uma série de questões que habitam o
imaginário social japonês que emergiu após os atentados
de Hiroshima e Nagasaki. Ambas as exposições repre-
sentam diferentes formas de compreender este mundo,
que começa a ser visto pelas lentes de uma confluência
de desastres; a arte nos faz refletir sobre a experiência da
vida: “Revela uma capacidade, comum a todos os seres
humanos, de desvincular a consciência da corrente expe-
riência vivida, de modo a tratá-la como objeto de reflexão”
(INGOLD, 2000, p. 111, tradução nossa).15

14 “[...] immediate action has taken place from the grassroots.”


15 “It reveals a capacity, common to all human beings, to disengage conscious-
ness from the current of lived experience, so as to treat that experience as an
object of reflection.”
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 141

ARTE PÓS-2011: DA REPRESENTAÇÃO DA AUSÊNCIA À


PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE

Em seu texto publicado na coletânea Fukushima e as


artes: negociando o desastre nuclear (Fukushima and the Arts:
Negotiating Nuclear Disaster), Jeffrey Angles (2018) analisa a
crise da linguagem e da representação que os eventos do 3.11
causaram na poesia japonesa. Quase imediatamente após o
triplo desastre, aponta o autor, “o Japão se viu repensando
muitos aspectos de sua própria cultura [...] questionando
seu uso de energia e sua relação com o ambiente natural”
(ANGLES, 2018, p. 144, tradução nossa).16 Segundo Angles
(2018, p. 146, tradução nossa), o 3.11 também representou um
desastre para a arte e para a linguagem: “Fukushima forçou
os poetas a reconsiderar a relação entre arte, representação
e experiência vivida”.17 E, ainda que aqui a poesia não seja
o foco de análise, é fundamental apontar como o desastre
de 2011 afetou o campo das artes japonesas de maneiras
diversas e realizou muito profundamente questionamentos
e transformações estéticas e formais, sendo a crise da repre-
sentação uma das mais significativas.
Entre as iniciativas analisadas por Angles está o
trabalho do poeta Ryōichi Wagō. Nesse campo de possibi-
lidades aberto pela catástrofe, as reflexões de Wagō torna-
ram-se fundamentais. Seixos de poesia (Pebbles of Poetry, 2011),
obra que reuniu seu feed do Twitter nos dias seguintes ao
triplo desastre, foi o meio que achou para refletir poeti-
camente, em tempo real, sobre a ansiedade que ele e as
pessoas próximas viveram em relação aos eventos catastró-
ficos que iam se desdobrando, dia após dia. Através dos seus

16 “Japan found itself rethinking many aspects of its own culture [...]
questioning their usage of energy and their relationship to the natural
environment.”
17 “[...] Fukushima forced poets to reconsider the relationship between art,
representation, and lived experience.”
142 de Souza R. S.

tweets, aponta Angles, podemos sentir confusão, desespero,


raiva e dor, reunindo dezenas de milhares de pessoas que
retuitaram suas observações como uma forma de dar voz à
própria tristeza, confusão e raiva.

A radiação está caindo. É uma noite tranquila. Que signifi-


cado poderia haver em nos prejudicar dessa forma? O signi-
ficado de todas as coisas é provavelmente determinado após
o fato. Em caso afirmativo, então qual é o significado desse
período “após o fato”? Existe algum significado nele? O que
esse terremoto está tentando nos ensinar? Se não há nada
que está tentando nos ensinar, então o que nos sobrou para
acreditar? A radiação está caindo. É uma noite calma e tran-
quila (WAGŌ; ANGLES, 2011, p. 2, tradução nossa).18

Jeffrey Angles afirma que Wagō, através das repeti-


ções em sua poesia — marcas da experiência traumática,
e também da tomada de ação, da produção ativa como um
processo de cura que requer a retomada de um senso de
eficiência e poder — restaurou a habilidade expressiva da
poesia em face do desastre: para Wagō, a linguagem precisa
ser poderosa para lidar com a catástrofe. “Em outras pala-
vras” aponta Angles (2017, p. 150, tradução nossa), “ele foi
um dos primeiros poetas a sentir que o 3.11 havia provocado
uma ‘crise de representação’ e os poetas que reagiam aos
desastres em seu trabalho precisavam encontrar um novo
modo de representação cada vez mais direto”.19 Desta forma,
a poesia de Wagō possibilitou às pessoas que o acompa-
nhavam nas redes sociais um processo de ressignificação

18 “Radiation is falling. It is a quiet night. What meaning could there be


in harming us to this extent? The meaning of all things is probably deter-
mined after the fact. If so, then what is the meaning of that period ‘after
the fact’? Is there any meaning there at all? What could this earthquake be
trying to teach us? If it’s not trying to teach us anything, then what can we
possibly have left to believe? Radiation is falling. It is a quiet, quiet night.”
19 “In other words, he was one of the first poets to sense that 3.11 had brought
about a ‘crisis of representation’ and poets responding to the disasters in their
work needed to find a new, increasingly direct mode of representation.”
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 143

de suas vidas, de suas relações e de seu lugar na sociedade,


bem como das formas de ser e estar neste mundo em crise.
Nas artes plásticas, o cenário não foi diferente. Enquanto
estive no Japão em 2019 realizando campo para a minha tese de
doutorado, pude conversar por uma longa tarde com Ken’ichi
Kondō, que gentilmente me recebeu no Museu de Arte Mori,
em Tóquio, do qual é curador associado. A conversa foi moti-
vada pela exposição Catástrofe e o Poder da Arte (Catastorofu to
bijutsu no chikara カタストロフと美術の力), montada sob sua cura-
doria entre os anos de 2018 e 2019. Essa exposição foi central
para a definição e desenvolvimento da minha pesquisa, uma
vez que em 2018 eu me preparava para qualificar meu projeto
de pesquisa para, então, ir a campo. A primeira pessoa com
quem conversei quando cheguei a Tóquio foi o próprio Kondō,
com quem aprendi muito sobre a relação arte-catástrofe no
Japão e o papel central do triplo desastre no que era conside-
rado uma nova virada na arte contemporânea japonesa.
Em artigo publicado no catálogo da exposição, Kondō
apontou, ao analisar a obra do fotógrafo Naoya Hatakeyama,
o que considerou ser uma justaposição entre as memó-
rias do artista e a ausência em virtude da catástrofe, uma
“representação da ausência” como um processo de luto na
obra do artista. Essa reflexão surgiu nos seminários reali-
zados previamente à exposição, em particular nos diálogos
travados sobre os problemas associados à representação
do desastre através da arte: “imagens chocantes, estéticas,
o lugar daqueles afetados diretamente e a exploração”
(KONDŌ, 2018, p. 35, tradução nossa). Esses questiona-
mentos devem-se, também, ao grande fluxo imagético de
destruição presente na mídia, uma vez que o triplo desastre
foi transmitido pelas emissoras de televisão em tempo real.

As imagens da 3.11 mostradas nesta exposição, no entanto,


fazem uma tentativa deliberada de evitar assuntos chocantes,
por exemplo, os vídeos documentários menos dramáticos de
Chim↑Pom, as obras abstratas de Kota Hirakawa e Shimpei
Takeda ou as ficções alegóricas de Manabu Ikeda. Embora
144 de Souza R. S.

esta tenha sido uma decisão parcialmente tomada em consi-


deração às vítimas, originalmente se pensava que o poder
da arte tinha pouco a ver com seu valor de choque visual
(KONDŌ, 2018, p. 35, tradução nossa).20

A ideia de Kondō das representações da ausência


(representations of absence) foi se desenvolvendo para mim
nos nossos diálogos no Japão, durante minha inserção em
campo e ao longo de toda a pesquisa e escrita da minha
tese de doutorado acerca das transformações estéticas da
arte contemporânea japonesa pós-2011.21 Passei, então, a
compreender essa crise da representação e a urgência da
arte contemporânea em lidar com o desastre através do
que considero como “presentificação da catástrofe”. Trazer
as zonas de exclusão para Tóquio, como fez o coletivo
Chim↑Pom em 2011 e em 2015, é tornar presente aquilo que
está oculto e inacessível, sem necessariamente acessar as
imagens de destruição.
A ideia de presentificação é também abordada pelo
crítico de arte J. J. Charlesworth em artigo publicado
no catálogo da exposição Catástrofe e o Poder da Arte
(2018). Em seu texto, o autor analisa como a percepção
da catástrofe é moldada por nossa experiência cultural e
a impressão de que os desastres sempre acontecem aos
outros e nunca a nós mesmos, o que classifica como “alte-
ridade do evento catastrófico”: “Embora possamos nos
encontrar seguros em uma relativa paz em nosso próprio

20 “The images from 3.11 shown at this exhibition, however, make a deli-
berate attempt to avoid shocking subjects, for instance, Chim↑Pom’s less
dramatic documentary videos, Hirakawa Kota and Takeda Shimpei’s
abstract works, or Ikeda Manabu’s allegorical fictions. Although this was
a decision partly made out of consideration for the victims, the power of art
was originally thought to have little to do with its visual shock value.”
21 Doutoramento em curso no Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGSA-IFCS-UFRJ) sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Els Lagrou.
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 145

canto do globo, vemos que outros não são tão afortunados”


(CHARLESWORTH, 2018, p. 142).22
Porém, segundo o autor, quando a catástrofe cai sobre
nós e afeta nossa vida diretamente, temos pouca ou nenhuma
distância para compreendê-la. A partir da experiência vivida,
ela deixa de ser uma imagem descolada da nossa realidade,
que acessamos através de eventos que acontecem longe de
nós, com os outros, e torna-se um momento de vida ou morte
no qual lutamos para sobreviver, no presente. Conforme
aponta Charlesworth, nesse momento de crise, nosso mundo
torna-se pequeno, medido pelo andar do prédio em que nos
encontramos quando o chão treme ou pela distância que está-
vamos da costa quando a onda bateu. “Catástrofe e desastre
são, portanto, eventos que revelam ‘onde estamos’” — aponta
o crítico; a catástrofe, então, “define a natureza de nossa
‘perspectiva’, a posição relativa de nosso ponto de vista”
(CHARLESWORTH, 2018, p. 142, tradução nossa).23 Segundo
o autor, esse jogo de perspectivas, a oposição entre “aqui” e
“lá”, é fundante da ideia de representação, um tema caro tanto
para o campo das artes quanto para a antropologia.

O que encontramos em muitas formas de prática artística


contemporânea são métodos e técnicas que dissolvem as
fortes oposições entre “aqui” e “lá” das quais a represen-
tação depende. Artistas dos últimos anos desenvolveram
formas de arte que trazem o que é parte do mundo exterior
para a galeria — em vez de representar o mundo exterior,
eles o apresentam (CHARLESWORTH, 2018, p. 143, tradução
nossa, grifo nosso).24

22 “While we may find ourselves safe in a relative peace in our own particular
corner of the globe, we see that others are not so fortunate.”
23 “Catastrophe and disaster are therefore events that reveal ‘where we are
standing’ [...] define the nature of our ‘perspective’, the relative position of
our point of view.”
24 “What we find in many forms of contemporary artistic practice are
methods and techniques which dissolve the strong oppositions between ‘here’
and ‘there’ on which representation depends. Artists of recent years have
developed forms of art which bring what is part of the outside world into
the gallery — rather than represent the outside world, they present it.”
146 de Souza R. S.

A arte japonesa produzida sobre o 3.11, através do que


temos pensado como presentificação (presentificar, tornar
presente, apresentar) — conceito baseado tanto na ideia
do curador Ken’ichi Kondō (2018) sobre representação da
ausência quanto na reflexão de J. J. Charlesworth (2018) sobre
a alteridade da catástrofe — pode nos ajudar a refletir sobre
como traduzir a incomensurabilidade do desastre e a invisi-
bilidade da radiação, atrelados necessariamente aos debates
contemporâneos sobre a crise da representação. Alguns
artistas passaram a repensar sua arte em um complexo rear-
ranjo estético para lidar com a violência do desastre. Para
isso, recorrem à possibilidade da presentificação em contra-
posição à produção em massa de imagens da destruição
causada pelo terremoto e o tsunami, divulgadas nas redes
sociais e na grande mídia. “Uma onda negra, engolindo tudo,
cobrindo tudo completamente. Centenas, não, milhares de
vezes... Os clipes se repetiam várias vezes na tela”, nas pala-
vras do poeta Ryōichi Wagō (2011).25
Desta forma, a presentificação diria respeito a como
tornar o desastre acessível para o registro e a reflexão
estética sem que imagens da destruição sejam ativadas ou,
ainda, como retratar na arte o caráter invisível da contami-
nação radioativa que, servindo de ensejo à reflexão, traz à
tona sentimentos há muito conhecidos no Japão, eviden-
ciando suas antigas cicatrizes e traumas em relação à
energia nuclear.26 Vê-se, então, que presentificar é também
uma forma de justaposição de paisagens, memórias, afetos

25 “A black wave, swallowing everything, completely covering everything.


Hundreds, no, thousands of times... The clips repeated over and over on
the screen.”
26 Na conversa realizada no Mori Art Museum em 2019 em Tóquio, Kondō
ressaltou a importância de pensar o triplo desastre em suas três dife-
rentes faces, uma vez que cada uma delas produziu danos e traumas
diferentes; me parece correto afirmar que a ideia de presentificação
atravessa as formas através das quais a arte japonesa lidou tanto com o
terremoto quanto com o tsunami e o acidente nuclear, ainda que esteja
mais evidente neste último.
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 147

e experiências, evidenciando o que está oculto lado a lado


com o que está visível e presente; o que está oculto torna-se
visível na tensão com o que foi destruído. Presentificar seria,
então, relacionar a agência daquilo que está sendo presenti-
ficado, ou seja, a agência da própria catástrofe.
As artes produzidas no pós-2011, pensadas sob o prisma
da presentificação, podem ser pensadas como agenciamentos
criativos, conectivos e afetivos, que conseguem dar sentido
ao caos produzido pela catástrofe através da reorganização
das relações transformadas na duração sobre-humana do
desastre. As reflexões propostas nessa nova virada da arte
japonesa, que se vê impelida a metabolizar mais um dos muitos
traumas da história do Japão, são agenciamentos porque
são totalidades significantes, porque são “precisamente este
crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda
necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas
conexões” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 16).
Presentificar a catástrofe seria, então, evidenciar o que
está oculto: as desconexões da vida social causadas por ela.
Iniciativas como as do Chim↑Pom, analisadas brevemente
neste texto, possibilitam refletir sobre as crises do Antropoceno
e desestabilizar noções como arte e representação, sobretudo
compreendendo as sobreposições de histórias e agências
que estão presentes no suposto vazio radioativo ao conside-
rarmos que, segundo Tsing et al. (2017), toda paisagem devas-
tada é assombrada por modos de vida passados. As fronteiras,
os limites e as ausências criadas pelo regime nuclear são temas
caros para muitos outros artistas que produziram sobre o triplo
desastre de 2011, e não apenas para o coletivo Chim↑Pom.
Este debate poderia se estender para pensar, por exemplo,
o trabalho de artistas como Tomoko Yoneda, Tomoki Imai ou,
até mesmo, Naoya Hatakeyama, ao qual Ken’ichi Kondō se
refere ao falar sobre representação da ausência.
Tentamos demonstrar que as obras aqui analisadas se
estabelecem como formas de agenciar e direcionar o olhar
dos observadores, podendo ser compreendidas em um
148 de Souza R. S.

contexto amplo do acontecimento e da localização dessa


produção artística em face ao desastre. São conectivas e
afetivas porque propõem novas formas de ser e estar no
mundo devastado, formas estas que necessitam ressignificar
as relações enfraquecidas ou desfeitas pela instabilidade
das certezas provocada pela catástrofe. Percebe-se, desta
forma, que o tempo e o espaço ocupados por essa arte são
os próprios tempo e espaço arregimentados pelo desastre,
e sua duração, percepção e continuidade dizem mais
respeito a como vivemos as ruínas do que a como as perce-
bemos. A materialidade da destruição, ainda que palpável e
pulsante, é apenas um recurso metodológico que possibilita
as inúmeras reflexões sobre a presentificação da catástrofe
e a proposição, através da arte, de novas formas de pensar e
habitar o mundo em crise.

CONCLUSÕES
Considerado um dos piores desastres do Japão, acompa-
nhado de um dos piores acidentes nucleares da história,
o 3.11 trouxe novamente à tona ao mundo e, particularmente,
aos japoneses, a memória dolorosa da potência destrutiva
da radiação, evidenciando a gravidade de uma vida organi-
zada em torno do risco assumido pelo homem em busca do
desenvolvimento econômico através das dinâmicas predató-
rias do capitalismo. O desastre de Fukushima, “um desastre
composto, que é assombrado por memórias de devastação
após os bombardeios atômicos” (FIGUEROA, 2018, p. 59,
tradução nossa),27 não apenas transformou horizontes e
cidades inteiras em desertos nucleares, mas fez também
ruir todo um campo de possibilidades e de certezas acerca
do mundo, da arte, da natureza e da sociedade. Ao produzir
uma cartografia fantasmagórica cujos limites foram

27 “[...] a compound disaster, one that is haunted by memories of devastation


after the atomic bombings.”
PRESENTIFICAÇÃO DA CATÁSTROFE 149

estabelecidos pela invisibilidade da radiação, as paisagens


devastadas passam a ser assombradas por fantasmas que
sussurram aos ouvidos de quem está disposto a escutá-los,
contando sobre uma multiplicidade de relações que foram
interrompidas pela catástrofe. O triplo desastre foi mais um
evento importante para a história do planeta que nos possi-
bilitou rever nossas formas de pensar o mundo desligadas
da frágil separação entre natureza e cultura.
Assim, o conjunto de obras criadas e expostas na zona
de exclusão buscam, ao mesmo tempo, dialogar com esses
fantasmas, essas memórias, nos fazendo pensar os novos
lugares criados pelo regime da radioatividade, bem como eviden-
ciar as ausências e rupturas e restabelecer as conexões perdidas
em razão do desastre nuclear. A arte não pode desfazer o isola-
mento criado pela radiação, mas busca produzir passagens e
torções na nossa percepção para que surjam novas possibili-
dades de pensar e viver esse mundo que não pode mais ser habi-
tado, mas que também não deve ser esquecido. Daí a proposta
para pensarmos a ideia de presentificação: a devastação é inima-
ginável, logo, devemos imaginá-la, apesar de tudo.28
Na exclusão, a arte insiste em ocupar as paisagens devas-
tadas. As rupturas da catástrofe redefinem nossas perspectivas:
elas aparecem em múltiplas escalas, apagando as fronteiras
entre os mundos do visível e do invisível, do real e do imagi-
nário, da vida e da morte, criando paisagens complexas através
de diversos agenciamentos humanos e não humanos. Propus
através das iniciativas do coletivo Chim↑Pom que a represen-
tação na arte pós-Fukushima dá lugar a formas de presentificação
do desastre que se estabelecem justamente na desconstrução de
noções há muito estabilizadas, trazendo as paisagens devastadas
de fora para dentro dos museus e galerias de arte e, conforme
apontou Charlesworth (2018), ao invés de representar o mundo
exterior, o presentifica. A presentificação torna-se, desta forma,

28 Referência à reflexão de Didi-Huberman (2017) na obra Cascas, sobre


sua visita a Auschwitz-Birkenau.
150 de Souza R. S.

um meio interessante da arte, especialmente da produção artís-


tica japonesa, de lidar com o isolamento das zonas de exclusão,
com a ruptura das relações sociais estabelecidas pela economia
do desastre e, sobretudo, como forma de crítica política e trans-
formação do trauma em memória social.

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PINHO H. O.

RADIOATIVIDADE:
A INVISIBILIDADE DO MEDO

Heloisa Okamoto Pinho


Pesquisadora independente

RESUMO
Invisibilidade, mistério e imprevisibilidade envolvem a
exposição Não siga o vento (Don’t Follow the Wind) que se situa
dentro da zona de exclusão de Fukushima, após o terremoto
de 2011 e a catástrofe nuclear. Essas obras permanecem
inacessíveis ao público, e expostas à maresia, radioatividade
entre outros fatores, não garantem a sua conservação para
as próximas gerações. Este texto busca elucidar o debate
da memória coletiva de sobreviventes da tríplice catástrofe
de Fukushima, por meio das exposições com a curadoria e
participação do grupo Chim↑Pom. Apesar de a memória
coletiva ser um estudo amplo e permear diferentes áreas,
ela nos permite compreender a criação artística do grupo,
seus desafios, debates e abordagens.
Palavras-chave: Artes. Museologia. Memória coletiva. Catástrofe.
Fukushima.

ABSTRACT
Invisibility, mystery, and unpredictability involve the Don’t
Follow the Wind exhibition. It locates inside the Fukushima
exclusion zone after the earthquake of 2011 and its nuclear
catastrophe. The artworks there remain inaccessible to the public,
exposed to the sea mist, radioactivity and other factors that do not
156 PINHO H. O.

guarantee their conservation to the next generations. The present


article aims to elucidate the debate of collective memory through
the survivors of this triple catastrophe, using exhibitions curated
by and with the participation of the Chim↑Pom group as a study
case. Although collective memory is broad and transits through
different areas, it allows understanding of the group artistic crea-
tion, their challenges, debates, and approaches.
Keywords: Art. Museology. Collective memory. Catastrophe. Fukushima.

INTRODUÇÃO

Em 11 de março de 2011, um terremoto causou um tsunami


que atingiu a costa leste do Japão, na região de Fukushima,
e levou ao colapso de três dos quatro reatores na planta de
Fukushima Daiichi, provocando a maior catástrofe nuclear
desde Chernobyl. De fato, compreender algo que está oculto
aos olhos humanos é sempre um desafio, e expressar sobre
o medo de algo invisível se torna ainda mais complexo.
O tríplice desastre de Fukushima deixou cerca de 160 mil
deslocados e muitos efeitos colaterais causados pelo medo
invisível da radioatividade (RADIOACTIVE, 2015).
Nesse contexto, a arte nos permite expressar o inex-
pressável em momentos caóticos. Parafraseando Friedrich
Nietzsche,1 a arte existe para que a realidade não nos destrua.
Logo, a arte da catástrofe não poderia ser menos para-
doxal e complexa, a qual será analisada por meio do grupo
Chim↑Pom. Suas obras controversas buscam responder

1 Friedrich Wilhelm Nietzsche, nasceu em 15 de outubro de 1844 na


cidade de Röcken, antigo reino da Prússia. Estudioso, filósofo e compo-
sitor, tornou-se famoso por suas críticas a religiões, valores e morais
de sua época na Europa tradicional. A partir de uma filosofia existen-
cialista que buscava compreender o bem e o mal, Nietzsche afirmava
que o céu existia como um mundo “das ideias” e não um lugar de fato,
gerando questionamentos que perpetuam até hoje.
RADIOATIVIDADE 157

de forma reativa à “realidade” em seu entorno e procuram


intervir na sociedade contemporânea com mensagens refle-
xivas. Por meio de críticas sociais, políticas e econômicas no
Japão e no mundo, as obras muitas vezes causam divergên-
cias de opiniões entre os críticos e a sociedade como um todo.
O grupo de jovens artistas nascidos no século XX,
Chim↑Pom, foi criado em Tóquio (2005), composto pelos
membros: Ryōta Ushiro, Yasutaka Hayashi, Ellie, Masataka
Okada, Motomu Inaoka e Toshinori Mizuno. O grupo não
contém referências acadêmicas, com exceção de Ellie,
formada na Universidade de Arte Musashino. A inspiração
que os norteia veio do artista Makoto Aida, que lecionava na
Bigakkō, em Tóquio, uma escola de artes alternativa, esta-
belecida na antítese da academia convencional, permitindo-
-lhes explorar novas técnicas por meio da arte, subcultura e
da literatura (CHIM↑POM, [2019]; TEZUKA, 2017, p. 9).
Uma das primeiras experiências do grupo, ao trabalhar
com a arte da catástrofe, foi a obra Fazendo o céu de Hiroshima
PIKA ヒロシマの空をピカッとさせる (Figura 1). Trata-se de um
vídeo de aproximadamente cinco minutos, produzido pela
Mujinto Productions 無人, fotografado por Bond Nakao (ou
Cactus Nakao) e com participação da ANOMALY, em que
um escritor grafa a palavra Pika ピカ2 no céu e esta lenta-
mente se dissipa com o vento, logo acima do memorial na
Cúpula da Bomba Atômica:

As letras apareceram em estilo rudimentar, como se simu-


lassem um tom infantil. Gradualmente, apagada pelo vento,
a palavra parece reviver a destruição da cidade de Hiroshima
trazida pelos eventos denotados. De acordo com Chim↑Pom,
o desaparecimento gradual simbolizou “o sentido da paz”
presente atualmente em um Japão pacifista. Mas o projeto
também elucidou a agonizante efemeridade da memória

2 A palavra pika é uma onomatopeia para expressar um clarão momen-


tâneo, como um raio. De fato, o anime Pokémon explora essa cultura-
lidade linguística no personagem Pikachū, que emite raios e clarões
dependendo de sua intensidade. A bomba atômica era chamada na época
de seu lançamento de pika-don (pika para o clarão, don para o som surdo).
158 PINHO H. O.

histórica e o tratamento indiferente da paz do Pós-guerra pela


sociedade contemporânea. Assim como a cidade foi varrida
pela explosão, a memória foi um vislumbre de promoção da
paz, sem a devida reflexão na história da guerra (TEZUKA,
2017, p. 11, tradução nossa).3

Figura 1. Bond Nakao e Chim↑Pom, Making the Sky of Hiroshima PIKA!, 2009.

Essa obra causou imensa controvérsia, que foi noticiada


em diversos jornais, e a comunidade local que desconhecia o
trabalho entendeu o acontecimento como um desrespeito às
vítimas das bombas de Hiroshima e Nagasaki e como uma
incitação desnecessária, causando o cancelamento da expo-
sição do grupo no Hiroshima City Museum of Contemporary
Art. De fato, a trajetória do grupo lhes ensinou muito sobre

3 “He letters appeared rudimentary in style, as if to simulate a childish tone.


Gradually erased by the wind, the word seems to reenact the very destruc-
tion of the city of Hiroshima brought on by the event it denotes. According
to Chim↑Pom, its gradual disappearance was to symbolize ‘the sense of
peace’ prevalent in today’s pacifist Japan. But the project also elucidated
the agonizing ephemerality of historical memory and the nonchalant
handling of postwar peace by contemporary society. Just as the city was
wiped away by the blast, the memory was blown away by the promotion of
peace without enough reflection on wartime history.”
RADIOATIVIDADE 159

a necessidade do diálogo com a população local e da coleta


de informações relevantes para a construção de um pensa-
mento crítico a partir de suas histórias contadas, mas as
repercussões positivas desta obra mostram o seu real signi-
ficado. Como consequência, as vítimas das bombas atômicas
criaram rodas de conversa transgeracionais, que resultou no
trabalho Por que não podemos fazer o céu de Hiroshima “PIKA”?
(Why Can’t We Make the Sky of Hiroshima “PIKA!”?), indi-
cando que havia um ímpeto paradoxal de “desejar esquecer
e ao mesmo tempo relembrar”, dando aos artistas locais
meios para compreender como expressar os resquícios da
história (ABE, 2021; TEZUKA, 2017, p. 11-12).
E a exposição Não siga o vento4 (Don’t Follow the Wind) não
foi diferente. Esta exposição internacional de longo prazo locali-
zada dentro da zona de exclusão em Fukushima, iniciada como
projeto pelos seis membros do grupo Chim↑Pom, e com a
curadoria de Kenji Kubota, Eva e Franco Mattes, e Jason Waite.
Contou com a participação de mais doze artistas do Japão e do
mundo, para além do coletivo. As instalações permanecem
inacessíveis para o público em geral, e assim continuará até
que a radiação presente na região se dissipe e seja segura a
entrada. Dessa forma, para o curador Kubota, os artistas parti-
cipantes “poderiam operar entre a especulação e a memória,
e estimular o imaginário coletivo” (TEZUKA, 2017, p. 8).
O título, Don’t Follow the Wind, provém de um conheci-
mento popular de navegadores sobre a orientação dos ventos.
Um pescador local, ao fugir da radioatividade emitida pela
explosão da usina de energia nuclear de Daiichi, seguiu para
o norte e, ao parar o carro, percebeu que o vento soprava
para a mesma direção para a qual estavam fugindo. Isso
significava, segundo seus conhecimentos como pescador
amador, que a radioatividade também os seguiria na mesma

4 Seguindo a mesma linha de pensamento que a mostra, o site da expo-


sição é uma tela em branco, apresentando apenas duas datas, 2015 e
2020, que ao clicar se inicia um áudio explicativo sobre o projeto em
inglês e japonês (DON’T..., 2015).
160 PINHO H. O.

direção. Consequentemente, ele optou por redirecionar o


carro para o sentido oposto, expondo-se menos aos danos
causados pela radioatividade. Esse pequeno detalhe, quando
documentado e transmitido, transformou-se em empodera-
mento, e ao ser repassado pode auxiliar outros em situações
semelhantes futuramente (RADIOACTIVE, 2015).
A exposição foi oficialmente “aberta” em março de 2015,
com instalações que estão em quatro locais distintos: uma casa,
uma fazenda, um centro de recreação e um depósito, que foram
emprestados por seus respectivos donos. No entanto, a locali-
dade precisa ser mantida em sigilo, a fim de proteger a iden-
tidade dos proprietários, e parte disso se deve a duas razões
principais: a primeira faz parte dos esforços do governo local
de proteger a área que contabiliza constantes assaltos às casas
abandonadas; a segunda, os evacuados da região discordam em
inúmeros quesitos, sendo um deles em relação à abertura para
intervenções por parte de estrangeiros na região. Portanto,
a comunidade local condenaria os colaboradores caso viesse a
público a informação da localização da instalação.
Essa desavença, de acordo com o antropólogo Isao Hayashi,
membro do National Museum of Ethnology, é causada pelo
fato de que muitos sobreviventes não suportavam mais relem-
brar o desastre após cinco anos. No entanto, a mídia, institui-
ções e diversos outros meios constantemente o rememoravam
para fins educacionais, como lembretes, e para fins de análise
estrutural dos prédios, como prevenção de futuros terremotos
e como formas de turismo (HAYASHI, 2017, p. 337). Mas a
necessidade de preservar as tradições locais e aprender com
os erros e acertos da região fazem da memória coletiva dessa
catástrofe uma fonte rica de ensinamentos.
De acordo com alguns teóricos, o termo “memória
coletiva” surge em 1920, em um artigo publicado na época
pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-1945).
Baseado nas perspectivas de Émile Durkheim (1858-1917),
essa memória compreenderia uma resistência à metodo-
logia individualista, que, ao focar em discursos públicos,
RADIOATIVIDADE 161

narrativas e imagens do passado como um todo, torna-se


uma fala em nome das coletividades (OLICK, 1999, p. 336), já
para Lorenzo Zamponi (2013, p. 3, tradução nossa):

Memória coletiva não é resultado de um protesto automá-


tico, mas de um “trabalho da memória” específico, depen-
dendo de diferentes fatores: Armstrong e Crage identificam,
dentre esses fatores, a “celebração” de um evento, a “capa-
cidade mnemônica” de um movimento, a “ressonância” em
uma audiência produzida pela escolha de “forma comemo-
rativa” e o potencial de “institucionalização” desta forma,
providenciando as bases para um modelo analítico, que
busca explicar por que e como este evento específico tem
sucesso em ser socialmente relembrado.5

Outra exposição que nos permite refletir sobre as


memórias coletivas através dos sobreviventes e que possui
participação do grupo Chim↑Pom é Artistas e o desastre:
imaginando no décimo ano (Artists and the Disaster: Imagining
in the 10th Year). Exposta no Centro de Arte Contemporânea
no Art Tower Mito, de curadoria de Yuu Takehisa, ela nos
mostra as perspectivas da memória coletiva para os dez anos
Pós-Fukushima. De fato, como afirma a curadora Takehisa,
em entrevista à Deutsche Welle, muitos artistas não conse-
guiram se expressar artisticamente diante da catástrofe
por sentirem-se incapazes de transpor a dimensão de suas
emoções por meio da arte, como se a própria arte não conse-
guisse mais figurar a dor (FREYHOFF-KING; ELIOT, 2021).
Susan Sontag inicia sua obra Diante da dor dos outros anali-
sando a obra literária Thee Guineas, de Virginia Woolf. Sontag
indaga-se sobre a veiculação das imagens em massa de situ-
ações catastróficas, principalmente noticiadas em jornais,

5 “Collective memory is not an automatic outcome of protest, but the result of


a specific ‘memory work’, depending on different factors: Armstrong and
Crage identified, among these factors, the ‘commemorability’ of an event, the
‘mnemonic capacity’ of a movement, the ‘resonance’ in the audience produced
by the chosen ‘commemorative form’ and the potential for ‘institutional-
ization’ of this form, providing the bases for an analytical model aiming to
explain why and how a specific event has success in being socially remembered.”
162 PINHO H. O.

e seus reais efeitos na sociedade contemporânea. Imagens de


guerra exibidas em sua sala de estar realmente sensibilizam o
ser humano? Segundo a curadora Takehisa, diversos artistas
começaram trabalhando na região como voluntários e aos
poucos utilizaram a arte como forma de cura para os sobre-
viventes, outros realizaram apenas documentações fotográ-
ficas, escritas e audiovisuais que mais tarde seriam úteis para
produções futuras e, consequentemente, para a formação da
memória coletiva de maneira lúdica e imagética.
Invisibilidade, mistério e imprevisibilidade envolvem a
exposição Don’t Follow the Wind. As obras expostas à radiação,
à maresia e ao meio ambiente, entre outros fatores, estão
sendo constantemente afetadas e transformadas, o que põe em
dúvida sua conservação para as gerações futuras, mostrando
a crença do grupo na efemeridade da exposição. Até que seja
possível visitá-la presencialmente, é levantado o questiona-
mento se a narrativa da exposição conseguirá ser conservada
tanto no seu aspecto físico quanto na sua mensagem ao longo
do tempo, transpassando o sentimento para gerações futuras.
Dentro dessa perspectiva, o grupo Chim↑Pom expandiu
a exposição para além da zona de exclusão, trazendo-a de
forma acessível à população internacional, sem que retire do
contexto a concepção inicial, a invisibilidade.
Dentro desse conceito, surge como continuidade do
grupo curatorial a exposição intitulada Uma caminhada em
Fukushima (A Walk in Fukushima), realizada na 20ª Bienal
de Sydney, em 2016, em que se criou uma possibilidade
de democratização e acessibilidade da experiência de se
conhecer a realidade de uma zona de exclusão. O vídeo, reali-
zado com um headset e câmeras comuns, transporta-nos para
dentro de um caos sereno. Aprecia-se a instalação por meio
de óculos de realidade virtual em 360º, o que nos permite
navegar como se estivéssemos no local.
No entanto, diferentemente de ser uma exposição docu-
mental, linear dos fatos, ou de artigos publicados sobre a
tríplice catástrofe, as exposições aqui tratadas são sobre a
RADIOATIVIDADE 163

interpretação, a visão e o conceito de cada artista e a memória


que conseguiram coletar a partir de entrevistas com mora-
dores locais, visitas à própria zona de exclusão e percepções
coletadas ao longo dos últimos dez anos. Buscou-se, decorrido
esse tempo após o desastre, compreender, por meio da teoria
da memória coletiva, o escopo das superações, aprendizados
e suas consequências resultantes dos trabalhos do grupo
Chim↑Pom com a comunidade local que habitava a zona
de exclusão e seu processo de democratização e acesso para
além do não habitável.
A seguir, entenderemos a construção do estudo da
memória coletiva e sua inserção dentro da museologia, seus
desafios e benefícios para a sociedade e os desdobramentos,
os desafios e as consequências dessas exposições que traba-
lham com memórias em momentos de catástrofes.

MEMÓRIA COLETIVA: ARTE E HISTÓRIA


Um dos maiores desafios dentro do debate da memória cole-
tiva é que não pertence a apenas uma área, transitando pela
sociologia, antropologia e até mesmo pela museologia. Logo,
o termo “memória coletiva” nunca adquiriu uma definição
comum. Com a intensificação dos estudos sobre o tema nas
décadas de 1980 e 1990, os acadêmicos e críticos enfatizaram
aspectos completamente distintos, exatamente por permear
tantas áreas e utilizarem, muitas vezes, termos distintos
entre si, mas que, ao final, contêm significados semelhantes.

Alguns, como Mieke Bal, utilizam o termo “memória


cultural” para se referir à “memória que pode ser entendida
como um fenômeno, assim como, um indivíduo ou social”.
“Memória Social” tende a ser preferido pelos antropólogos,
“memória cultural” entre os estudos culturais, e “memória
coletiva” pelos historiadores.6

6 “Some, such as Mieke Bal, use the term ‘cultural memory’ to refer to
‘memory that can be understood as a cultural phenomenon as well as an
individual or social one’. ‘Social memory’ tends to be preferred among
164 PINHO H. O.

Os museus, ao longo da história, vêm desenvolvendo


diversas funções além da de coletar, preservar e expor,
desenvolvendo-se funções sociais com o papel de educar
(HEIN, 2011 p. 340). Dessa forma, museus e exposições
que abordam a questão da memória têm uma responsa-
bilidade civil ao retratar as experiências da catástrofe de
forma educativa para a sociedade, conservando-a para as
próximas gerações e, ao mesmo tempo, lidando com a dor
dos sobreviventes no presente, sem serem tendenciosos em
suas análises. Para Graham Black, as definições de cultura
salvaguardadas em museus buscam levar em conta experi-
ências humanas e suas atividades que incorporam múltiplos
fatores, como herança, aprendizado, ensino, pesquisa, inter-
pretação e prática. Suas manifestações externas incluem
práticas sociais e evidências físicas, transformando-as em
“material cultural”, especialmente, os materiais físicos inor-
gânicos, como prédios ou pequenos objetos, que de fato
refletem culturas passadas e continuam a representar os
elementos da sociedade moderna (BLACK, 2015, p. 417-418).
Essa forma de “material cultural” foi expressa pelo
artista Trevor Paglen (1974-), que investiga o invisível
através do visível. Com diferentes técnicas que expandem
desde imagens, esculturas, escritas e investigações jornalís-
ticas, ele se apropria, de maneira transdisciplinar, da enge-
nharia, da química e de diversas outras disciplinas em suas
obras. A obra de Paglen intitulada Cubo da trindade (Trinity
Cube), produzida em 2015, está em um dos locais dentro
da zona de exclusão em Fukushima. Ao longo dos anos,
o artista desenvolveu algumas cópias que estão expostas ou
foram vendidas para colecionadores (PACE, 2017).
Trinity Cube busca recuperar as memórias que abarcam
desde o processo da criação da bomba atômica, com o

anthropologists, ‘cultural memory’ within cultural studies, and ‘collective


memory’ by historians.”
RADIOATIVIDADE 165

Projeto Manhattan,7 até o desastre de Fukushima. A obra


minimalista, materializa essa forma de energia, e muta o
invisível em visível, tornando-se uma evidência física da
radioatividade, como um material histórico e cultural único.
A obra é feita a partir de vidros radioativos do Novo México
(de 1945) com vidros irradiados de dentro de Fukushima
Daichii. Em sua página do Instagram, Paglen (2015, tradução
nossa) fala um pouco sobre o processo: “O lado de fora da
peça é feito de vidro radioativo coletado dentro da zona de
exclusão. O centro da escultura é feito de trinitina, criado
em 1945, quando a primeira bomba veio à superfície no
deserto do Novo México, transformando-o em vidro verde”.8
A memória da criação da energia atômica expressa diversas
catástrofes que vieram como consequência da evolução
desta tecnologia, passando por Hiroshima e Nagasaki, até
Chernobyl e, mais recentemente, Fukushima. Isso nos leva
a evocar o passado no presente e compreender as consequ-
ências das relações políticas e de poder.
Paglen, em sua obra (Figura 2), nos mostra que, por
um lado, existe uma tentativa vã de fechar a radioativi-
dade e compactá-la em um cubo denso envidraçado, como
se tentasse conter os erros, as atrocidades e as repercus-
sões do passado no presente. Por outro lado, o cubo em

7 O escopo do Projeto Manhattan teve início com uma carta de Albert


Einstein, em 1939, com participação do físico Leo Szilard, para o então
presidente Franklin Roosevelt, em que expressava sua preocupação
do desenvolvimento da criação uma bomba nuclear pela Alemanha
nazista. Disso criou-se uma urgência que levou os Estados Unidos a
uma corrida armamentista nuclear para pesquisar e descobrir a tecno-
logia com antecedência. Einstein, que nunca integrou diretamente
no projeto devido a seu caráter pacifista e perspectivas comunistas,
declarou à Newsweek: “Se eu soubesse que a Alemanha não teria
sucesso no desenvolvimento de uma bomba atômica, eu nunca teria
feito nada”. Einstein, após a guerra, lutou veemente pelo fim da proli-
feração da bomba (THE MANHATTAN..., 2002).
8 “The outside of the piece is made out of irradiated glass collected from inside
the exclusion zone, the sculpture’s core is made out of trinitite, created in
1945 when the first nuclear bomb turned the surface of the New Mexico
desert into green glass.”
166 PINHO H. O.

si continua irradiando radioatividade para o seu meio.


Assim, ele também pode ser afetado por essa mesma
radiação, como um ciclo de vida contínuo. Esses elementos
levam-nos a questionar o quanto preservar o passado e
materializar a nossa memória é de fato útil, eficaz e cons-
trutivo, pois o passado parece retornar para o presente de
modo constante, e, consequentemente, não parece mudar
o futuro.
De acordo com a professora e especialista em estudos
da memória, Ann Rigney (2018, p. 371, tradução nossa):
“à primeira vista, memória e ativismo podem parecer polos
opostos, com a primeira voltada para o passado e o segundo
para o futuro. Em um segundo momento, no entanto, ambos
estão profundamente emaranhados”.9 Assim, apesar de
constantemente sermos bombardeados com as causas
e consequências da energia nuclear, ainda a utilizamos,
mesmo sabendo que é passível de causar catástrofes não
apenas para esta geração, como também para as próximas.
De acordo com James V. Wertsch e Henry L. Roediger III
(2008, p. 319, tradução nossa):

Nesta perspectiva, a memória coletiva é mais um espaço de


contestação do que um corpo de conhecimento — um espaço
no qual grupos locais se engajam em uma luta contínua
contra as elites e as autoridades do Estado em controlar o
entendimento do passado.10

Para Susan A. Crane, os lugares que evocam a cons-


ciência histórica por meio da memória transgridem o
espaço ou o tempo, e isso ocorre exatamente como os

9 “At first sight memory and activism may seem poles apart, with the former
oriented towards the past and the latter towards the future. At second sight,
however, they deeply entangled.”
10 “From this perspective, collective memory is more like a space of contesta-
tion than a body of knowledge — a space in which local groups engage
in an ongoing struggle against elites and state authorities to control the
understanding of the past.”
RADIOATIVIDADE 167

pensamentos privados de uma pessoa (CRANE, 1997,


p. 45-46). De acordo com o sociólogo Jeffrey K. Olick, da
Universidade da Virgínia, o estudo da memória coletiva
foi categorizado em duas abordagens distintas. A primeira
seria por intermédio da perspectiva psicológica, a qual
entende que a construção das memórias coletivas sociais
se dá a partir da soma de memórias individuais, recorrendo
a fatores cognitivos e neurológicos (OLICK, 1999, p. 333).

Figura 2. Trevor Paglen, Trinity Cube, 2015.

Nesta perspectiva psicológica, o artista Hikaru Fujii, em


entrevista à Deutsche Welle, explica sua obra exposta no Art
Tower Mito, que teve a participação do grupo. Segundo Fujii:
A discriminação é um tema muito delicado, por isso para mim
foi muito difícil abordar o assunto. Mas agora, com o coro-
navírus, estamos em uma sociedade em que todos discrimi-
namos, e somos discriminados. Achei que esta situação era
oportuna para criar uma obra de arte (FREYHOFF-KING;
ELIOT, 2021).
168 PINHO H. O.

Em sua obra, A sala de aula dividida por uma linha


vermelha (The Classroom Divided by a Red Line, 2020) é
mostrado um vídeo de uma sala de aula, e, ao longo dele,
a professora explica que a turma será dividida em dois
grupos. Ao apontar para um mapa com um círculo vermelho,
ela mostra que as pessoas que moram do lado de fora do
círculo serão chamadas de “estrangeiros”, e eles deveriam
se separar dos demais, construindo uma sociedade excluída
dentro da sala de aula.
Já na segunda perspectiva de Olick sobre memória
coletiva, baseia-se numa compreensão coletivista e indi-
vidualista da memória de acordo com a tradição socio-
lógica de Émile Durkheim, no qual enfatiza o coletivo
como um fenômeno natural e único (sui generis), e que
os padrões culturais e sociais são resultantes de uma
memória pessoal, que em algum momento passa a ser
pública (OLICK, 1999, p. 333). Transforma-se, assim, em
uma relação de poder de um grupo seleto com o espaço,
em que um controla e o outro é exilado. Faz-se necessário,
em consequência, o exercício lúdico pela professora, para
elucidar sobre tolerância e o respeito; e a atividade é fina-
lizada com a fala “quero que vocês sintam como é ser uma
pessoa desta região”. Para a construção dessa memória
coletiva, passa-se de uma experiência individual para um
nível de construção social pública. A característica dessa
obra (Figura 3) retrata o estigma criado em torno de indiví-
duos que eram da região de Fukushima, e ainda são discri-
minadas pela comunidade por serem “radioativos”, o que
cria uma temeridade em relação ao contato com os sobre-
viventes e os marginaliza dentro da sociedade contempo-
rânea (FREYHOFF-KING; ELIOT, 2021).
A esse respeito, a pandemia da covid-19 não foi diferente.
A crescente discriminação contra asiáticos tornou-se uma
problemática de relações de poder e marginalização dessas
populações, muitas vezes responsabilizadas pela propa-
gação do vírus, levando à publicação de inúmeras notas pela
RADIOATIVIDADE 169

Organização Mundial da Saúde (OMS) reforçando o combate


da discriminação e construção estereotipada desses grupos.
Para Jeffrey K. Olick e Levy Daniel (1997 apud. ZAMPONI,
2013, p. 2), a memória pode ajudar as ações coletivas dese-
nhando uma linha simbólica por meio de materiais do passado
e, ao mesmo tempo, contendo a mobilidade das pessoas,
ao impor proscrições (tabus e proibições) e prescrições
(deveres e requerimentos).

Figura 3. Hikaru Fujii, The Classroom Divided by a Red Line, 2021.

Abordar qualquer memória como coletiva é extrema-


mente complexo, tendo em vista que cada indivíduo, em
seu íntimo, aciona, sente, vive e compreende de forma
diferente a vivência do processo da vida. Torna-se ainda
mais difícil expressá-la quando se trata de catástrofes,
sejam elas naturais ou causais, porque as memórias
terão resultados completamente diversos entre si. Como
exemplificado na introdução, todas as vítimas da tríplice
catástrofe passaram coletivamente pela mesma situação:
perderam seus amigos e parentes, suas casas e locais de
trabalho e foram forçados a se deslocarem de seu coti-
diano. No entanto, cada um, individualmente, a assimilou
de forma distinta, e uma parcela acredita que, se houver
170 PINHO H. O.

artistas, mídia e repercussões a respeito da catástrofe será


benéfico para a sociedade como um todo. Para outros, não,
pois intervenções podem, constantemente, rememorar
dores, ou ingerências estrangeiras podem ser deturpadas
com relação à cultura local. Assim, nem toda a memória
construída no processo pessoal é unânime, e o coletivo
pode construir memórias no indivíduo (OLICK, 1999,
p. 335-336). Eis onde está a linha tênue do risco da inter-
pretação da memória coletiva, pois não pode ser tenden-
ciosa, por isso as subdivisões das memórias servem como
mecanismo para a compreensão presente no pluralismo
intrínseco da memória coletiva.
Para o artista Weiwei Ai, por meio do desastre, também
associa suas experiências pessoais de forma única e as
leva para um nível social por meio da criação de sua obra.
A perspectiva do deslocamento forçado revoga seu passado
e traz memórias pessoais de problemas reais, encurralados
em sua própria zona de exclusão que são refletidos em seu
trabalho como um todo (RADIOACTIVE, 2015).
A história familiar retratada em sua obra Mil anos de
alegrias e tristezas (Thousand Years of Joys and Sorrows, Figura 4)
conta sobre a trajetória de seu pai e poeta Qing Ai. Durante
a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung (1966), seu pai foi
considerado direitista e condenado a trabalhos forçados na
limpeza de banheiros públicos, e toda a família foi exilada
para a “Pequena Sibéria”. Anos mais tarde, Weiwei Ai conta a
dificuldade de abandonar sua família e partir para os Estados
Unidos, onde conhece o poeta americano Allen Ginsberg e
inspira-se em Andy Warhol para suas criações. Ao retornar
à China, Weiwei Ai passa de um artista desconhecido para
uma estrela dos direitos humanos e ativista, mostrando
suas criações que foram moldadas ao viver sob um regime
totalitário (AI, 2021).
RADIOATIVIDADE 171

Figura 4. Weiwei Ai, A Ray of Hope, 2015.

Em sua obra Um vislumbre de esperança (A Ray of Hope),


foram instalados painéis solares em uma casa da zona de
exclusão para gerar energia sustentável e luz, que é acesa
por um dispositivo à distância, iluminando o local durante
determinado período do dia. A percepção do artista sobre
catástrofe reflete o fato de a zona de exclusão ter se trans-
formado em uma cidade fantasma, portanto, esta obra busca
trazer vida, ou a continuidade dela, dando a ilusão de que
as pessoas ainda vivem naquele espaço (RADIOACTIVE,
2015). Com significado similar, outra obra de Weiwei Ai
foi Family Album (Álbum de família, 2015), na qual usou
diversas fotografias — de sua família e de outras pessoas —,
as quais são colocadas ao redor de uma habitação abando-
nada. Logo, a arte substitui os residentes e vive o espaço por
eles. Compreender a história do artista nos leva a entender
sua criação dentro da zona de exclusão. Apesar de serem
causas distintas, encontra-se certa similaridade: o artista,
assim como os deslocados, foi obrigado a abandonar sua
casa e a vida como conhecia, deixando os espaços inabitados
(RADIOACTIVE, 2015). Sua memória pública transforma
172 PINHO H. O.

o significado de suas obras e consequentemente podemos


associar sua empatia, por meio de sua memória individual,
com os deslocados.

Quando as pessoas usam os museus, elas trazem suas expe-


riências de vida consigo. Frequentemente, seus encontros
com os objetos dentro de museus trazem de volta algumas
lembranças vividas de alguns lugares e emoções, que de outra
forma teriam permanecido esquecidos. É um lugar comum
para que as memórias sejam discutidas entre grupos sociais
ou familiares durante uma visita. Dos encontros nas exibi-
ções, e das memórias trazidas e compartilhadas, novos signi-
ficados são criados. [...] Essas memórias e seus significados
são trazidos à tona não apenas como resultado do acesso
visual das coleções dos museus, mas também de outras
formas de acesso (BLACK, 2015, p. 418, tradução nossa).11

De acordo com Black, essas novas formas de acesso


podem ser trazidas por meio de experiências sensoriais,
como o tato ou o olfato, mas como essa vivência seria possível
em um caso em que a exposição se encontra completamente
inacessível à presença humana? E assim deve permanecer
por anos, até que a radioatividade termine por se dissipar da
região. Para os museólogos, a necessidade de interação do
público com as obras é um fator imprescindível para que a
arte seja entendida como arte.

Um museu é uma instituição cultural na qual interagem as


expectativas individuais e institucionais, intenções acadê-
micas, e o resultado está longe de ser via de uma mão. Uma
gama de memórias pessoais é produzida, não apenas limi-
tadas pelo assunto das exposições, assim como diversas
memórias coletivas são compartilhadas entre os visitantes do
museu. Visitações a museus, sejam eles históricos, artísticos,

11 “When people use museums, they bring their life experiences with them.
Often, their encounter with objects in the museum brings back vivid recol-
lections, half-remembered places and emotions which would otherwise
have remained forgotten. It is a commonplace for such memories to be
discussed amongst the social or family group taking part in the visit. From
the exhibits encountered, and the memories evoked and shared, new mean-
ings are made. [...] These memories and meanings arise not as a result of
only visual access to museum collections but also from other forms of access.”
RADIOATIVIDADE 173

etnográficos ou tecnológicos, são ordinárias, eventos coti-


dianos na sociedade ocidental moderna; a maioria destes
não se consideram profissionais responsáveis pelo conteúdo,
ou pela existência do museu, muito menos pela memória
histórica (CRANE, 1997, p. 46, tradução nossa).12

A obra, Uma caminhada em Fukushima (A Walk in


Fukushima, Figura 5) é apresentada por intermédio de um
vídeo em 360º, de sete minutos e 35 segundos na 20ª Bienal
de Sydney, em 2016. O vídeo, inicialmente, nos permite
compreender a realidade com o auxílio dos olhos de Bontarō
Dokuyama e seus pais, que realizaram as gravações de onde
viviam na cidade de Okuma, onde o índice de radioativi-
dade atualmente é relativamente “baixo”. Como se fosse um
“passeio guiado” macabro, Dokuyama mostra sua nova reali-
dade em torno de sua casa e como a radioatividade mudou
seu dia a dia em vários aspectos, desde as vestimentas, a sua
forma de interagir com o meio, até sua forma de respirar.
Podemos ver vários de seus objetos pessoais completamente
jogados pela casa, expondo-nos à brutalidade resultante de
um deslocamento forçado por uma catástrofe desse porte
(CHIM↑POM, [2016]).
Logo após, diz Chim↑Pom, passamos para a entrada
da cidade, onde aparece uma placa com os dizeres: “energia
nuclear para um futuro mais brilhante”. A ambivalência
das imagens fortes da brutal realidade vivida na região
nos mostra, ao longo do “passeio”, os pertences abando-
nados, carros e casas destruídas, uma verdadeira cidade
fantasma envolta em uma nuvem invisível de radioatividade

12 “A museum is a cultural institution where individual expectations and


institutional, academic intentions interact, and the result is far from a
one-way street. A range of personal memories is produced, not limited to the
subject matter of exhibits, as well as a range of collective memories shared
among museum visitors. Visits to museums whether of history, art, ethnog-
raphy, or technology are ordinary, everyday events in modern western soci-
eties; they place museums within the living memory of many people, the
majority of whom do not consider themselves professionally responsible for
the contents or existence of the museum, much less for historical memory.”
174 PINHO H. O.

(CHIM↑POM, [2016]). Essa obra também pode ser aces-


sada no canal do YouTube, onde o vídeo se torna interativo,
permitindo o expectador olhar para os lados e compreender
o seu entorno com o mouse, muito embora ela não seja
completamente imersiva como a experiência com os óculos
de realidade virtual, que nos permite ter uma noção da reali-
dade (DON’T..., 2016). Para a artista e pesquisadora Diana
Domingues (1997, p. 17-18),

os artistas ligados a centros avançados de pesquisa ou deles


isolados assumem a ruptura com a arte do passado num
cenário dominado pela arte da participação, da interação, da
comunicação planetária, colocando-se em novos circuitos
não mais limitados à arte como objeto ou valor de culto,
mas enfatizando, sobretudo, seu poder de comunicação. [...]
Numa passagem da cultura material para a cultura imate-
rial, própria da arte tecnológica [...], é o artista que assume
a curadoria de seu próprio trabalho. Comunidades virtuais
on-line reúnem indivíduos por afinidade, em que a arte
também afirma sua liberdade.

Figura 5. Don’t Follow the Wind, A Walk in Fukushima, 2016.


RADIOATIVIDADE 175

Desta forma, o grupo Chim↑Pom encontrou uma


variedade de formas que transcendem o espaço-tempo
de seu museu físico a céu aberto numa zona exclusão.
Ao transformá-la em exposições digitais e reinterpretações
de mostras temporárias em diversas galerias e museus no
Japão e no mundo, sem descaracterizar o seu intuito de
manter as obras invisíveis aos olhos do espectador, o grupo
conseguiu transmitir parte da mensagem e da memória dos
sobreviventes do tsunami.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As exposições aqui apresentadas conseguem abordar de
forma tangível o sentimento de exclusão, desenvolver
uma sinestesia com o espaço-tempo e transpor os senti-
mentos de uma comunidade que não mais pode habitar
alguns espaços devido à radioatividade. Esta mudou toda
e qualquer característica de um desastre que foi tripli-
cado e trouxe consequências para além do medo, da dor
e da perda, pois, inexiste a possibilidade de uma recons-
trução imediata no mesmo espaço-tempo, deve-se ressig-
nificar o local apenas por meio da memória. Movida por
uma dualidade em que há, de um lado, a efemeridade das
exposições, e, do outro, a busca de “perpetuar” a memória,
o maior desafio do curador e das instituições é expor esses
diálogos para que sejam passados às futuras gerações e
democratizar seu acesso, a partir da internacionalização
e digitalização via web.
Assim como o cuidado e a empatia devem reger cada
parte do processo de criação e exposição dessas memórias
para as pessoas que sobreviveram à tríplice catástrofe em
Fukushima, esse material criativo torna-se fruto de um
constante olhar para a dor e perda, mas também incentivo
para a superação e resiliência da comunidade e de outras,
que podem vir a passar por algo similar. Para um artista em
seu processo criativo, sua liberdade de expressão torna-se
176 PINHO H. O.

seu maior poder, mas quando estes trabalhos envolvem


emoções tão individuais e entram em conflito com uma
comunidade que experienciou a dor e não está em conso-
nância com determinado debate, é importante para sua
criação revisitar e compreender o que é de fato impor-
tante para ele ao desenvolver seu trabalho, sem que todos
sejam afetados de forma negativa. Agradar a todos e estar
em consenso com a necessidade de uma população é real-
mente impossível; contudo, construir o diálogo e o debate,
transpor as ideias antes de, simplesmente, transpassar
certas barreiras sociais e psíquicas foi uma das maiores
lições apresentadas pelo grupo.
De fato, a riqueza e o desafio de exposições desse tipo,
como a do grupo Chim↑Pom e de artistas que são sobre-
viventes das catástrofes mencionadas aqui, é conseguir
interpretar artisticamente as memórias e transfigurá-las
construtivamente para as gerações futuras de maneira
imagética e lúdica para fins socioeducativos, ao passo que
suas obras nos mostram que não precisamos ter o acesso
direto à exposição para compreendê-la.
Dessa forma, assim como essa pandemia paralisou
muitos artistas criativamente, a simples documentação do
nosso entendimento dos fatos nos reporta a um futuro que
compreende os erros político sociais, do mesmo modo que
nos ensina formas de superação do medo do invisível e
consegue comunicar esses feitos a partir de novos canais,
como exposições virtuais, sites e vídeos on-line entre
outros. Viver uma pandemia, assim como fugir da radioa-
tividade nos transportou aos ímpetos menos racionais da
capacidade humana de compreender o perigo invisível.
E a arte, ao materializar essas memórias, só poderá ser
de fato sentida uma vez que estejamos fora dessa “zona de
exclusão” e retornemos para a realidade “normal” do coti-
diano em sociedade.
RADIOATIVIDADE 177

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(6 min 26). Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/10-anos-de-


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Acesso em: 15 jun. 2021.

RADIOACTIVE art in Fukushima: Don’t Follow the Wind. Direção/


Produção: Sebastian Ischer. Intérprete: Kiwa Kawabashi, Kentaro
Ikegami e Emi Kariya. Gravação: Eiji Iwakawa. New York: The
Creators Project/Vice Media LCC, 2015. 1 vídeo (22 min 23).
Disponível em: https://video.vice.com/en_us/video/radioactive-
art-in-fukushima-dont-follow-the-wind/5602b7be01fdd3af33a24b13.
Acesso em: 13 out. 2021.

FONTES DAS FIGURAS


Figura 1
NAKAO, Bond; CHIM↑POM. Making the Sky of Hiroshima “PIKA!”.
2009. Impressão lamda, 66,7 × 100 cm. Fonte: Cortesia do artista,
ANOMALY, e MUJIN-TO Production.

Figura 2
PAGLEN, Trevor. Trinity Cube. Fukushima (zona de exclusão), 2015.
Em andamento. Vidro radioativo, 20 × 20 × 20 cm. Foto; Trevor Paglen
e Don’t Follow the Wind. Fonte: cortesia do artista e Don’t Follow the
Wind.
Figura 3
FUJII, Hikaru. The Classroom Divided by a Red Line. 2021. 1 vídeo. Art
Tower Mito. Foto: Hikaru Fujii. Fonte: cortesia do artista Hikaru Fujii.

Figura 4
AI, Weiwei. A Ray of Hope. Fukushima (zona de exclusão), 2015.
Instalação de painéis solares, luzes LED e timer, dimensões variadas.
Foto: Kenji Morita. Fonte: cortesia do artista e Don’t Follow the Wind.

Figura 5
DON’T FOLLOW THE WIND. A Walk in Fukushima. Fukushima
(zona de exclusão), 2016. 20º Bienal de Sydney. 1 vídeo de 360º, fones
de ouvido e mobiliário de um café de Fukushima. Foto: cortesia do
Don’t Follow the Wind.
Akstein J.

O DESASTRE TRIPLO NA FOTOGRAFIA


JAPONESA CONTEMPORÂNEA:
TAKASHI ARAI E SHIMPEI TAKEDA

Juliana Akstein
Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO
O presente ensaio busca estudar a fotografia japonesa reali-
zada logo após o desastre triplo que atingiu o Japão, em
março de 2011. Posteriormente à catástrofe, houve uma
grande circulação de imagens ao redor de todo o mundo
que expunham a tragédia vivenciada pela população nipô-
nica. Eram principalmente fotografias jornalísticas, que, em
sua maior parte, retratavam destroços de edifícios e o sofri-
mento experienciado pelos moradores das regiões atingidas.
Entretanto, por meio do estudo das obras dos fotógrafos
Takashi Arai e Shimpei Takeda, analisar-se-á como houve
também respostas diversas e com propostas diferentes
dessas imagens jornalísticas. Como se examinará nesse
estudo, ambos os artistas se empenharam, sobretudo, em
apresentar consequências invisíveis da calamidade, como a
contaminação radioativa que se espalhou rapidamente após
o acidente nuclear na Usina de Fukushima.
Palavras-chave: Fotografia japonesa contemporânea. Desastre
triplo. Fukushima. Takashi Arai. Shimpei Takeda.
182 Akstein J.

ABSTRACT
This essay aims at studying the Japanese photography taken shortly
after the triple disaster that hit Japan in March 2011. After the
catastrophe, there was a wide circulation of images throughout
the world showing the tragedy experienced by the Japanese popu-
lation. They were mainly journalistic photographs, most of them
portraying the wreckage of buildings and the grief experienced by
the residents of the affected regions. However, upon studying the
works of photographers Takashi Arai and Shimpei Takeda, it is
noted that there were different responses and different proposals
to these journalistic images. As seen in this study, both artists were
committed to presenting invisible consequences of the disaster, such
as the radioactive contamination that rapidly spread after the
nuclear accident at the Fukushima Power Plant.
Keywords: Contemporary Japanese photography. Triple disaster.
Fukushima. Takashi Arai. Shimpei Takeda.

Em 11 de março de 2011, o Japão testemunharia uma das


maiores tragédias da sua história, que se tornou mundial-
mente conhecida como o “desastre triplo”. A catástrofe se
iniciou com um forte terremoto de nove graus na escala
Richter, o que levou à formação de um tsunami cujas ondas
alcançaram quinze metros de altura, devastando cerca de
seiscentos quilômetros da zona costeira do país. A violência
do mar, por sua vez, provocou um acidente nuclear na Usina
de Fukushima Daiichi, localizada a 260 quilômetros ao norte
de Tóquio. Ao todo, o tsunami causou a morte de cerca de
25 mil pessoas e a calamidade em Fukushima forçou a evacu-
ação de cerca de 160 mil habitantes de suas imediações.
Imediatamente após essa data, uma quantidade desco-
munal de imagens foi produzida em resposta à tragédia, que,
por consequência, tornou-se uma das mais fotografadas de toda
a história. A princípio, grande parte da mídia japonesa veiculou
um número significativo de fotografias jornalísticas que
O DESASTRE TRIPLO NA FOTOGRAFIA JAPONESA CONTEMPORÂNEA 183

expuseram e intensificaram o estado de calamidade vivenciado


pela população local. Eram, sobretudo, cenas dos destroços
pós-tsunami, como cidades e estradas devastadas, sobrevi-
ventes sendo retirados de suas casas, operações de limpeza ou,
ainda, pessoas circulando com roupas antirradiação.
Entretanto, com o passar do tempo, outras respostas
fotográficas ao 11 de março começaram a surgir, com inter-
pretações mais subjetivas e menos diretas à tragédia, como é
o caso dos trabalhos dos fotógrafos Takashi Arai e Shimpei
Takeda. Esses artistas se posicionaram especialmente
contra a cobertura midiática do desastre triplo, que havia
focado em dar visibilidade às consequências do terremoto
e do tsunami, negligenciando, em certa medida, o acidente
nuclear e seus desdobramentos. Arai e Takeda optaram,
assim, por evidenciar o desastre em Fukushima, em uma
clara crítica à atitude do governo e da mídia japoneses,
que, de alguma forma, minimizaram os efeitos danosos da
radiação para a população local. Desse modo, o trabalho
fotográfico produzido por ambos está também inserido em
um contexto sociopolítico, indo além de um propósito estri-
tamente artístico. Como aponta a pesquisadora Anna Vieira
(VIEIRA, 2013, p. 7, tradução nossa):

[...] é importante ressaltar que estamos testemunhando uma


insurreição política inédita no Japão, e que essa forma de
ativismo contribuiu, logo após o desastre, para o desenvolvi-
mento de uma atividade artística altamente engajada. O dia
11 de março de 2011 mudou a relação de muitos artistas japo-
neses com o mundo, a natureza, a arte e a política.1

Dessa maneira, os artistas destacaram, em particular,


como o desastre nuclear afetou inteiramente a vida da popu-
lação que vivia próximo à Usina Nuclear de Fukushima

1 “[...] il est important de souligner que nous assistons à une insurrection


politique inédite au Japon, et que cette forme d’activisme a contribué, suite
à la catastrophe, au développement d’une activité artistique fortement
engagée. Pour de nombreux artistes japonais, la journée du 11 mars 2011
a changé leur relation au monde, à la nature, à l’art et à la politique.”
184 Akstein J.

Daiichi, que, além da contaminação radioativa, sofreu


inúmeros outros danos. Como relata Pablo Figueroa (2016,
p. 59, tradução nossa), após a catástrofe,

[...] quase metade das famílias que foram obrigadas a


se retirar [...] estão divididas. Muitas vezes, isso se deve
ao medo da contaminação radioativa, bem como à loca-
lização das escolas e dos trabalhos. Somando-se a essa
perturbação, o estresse contínuo afeta os moradores de
Fukushima. Uma pesquisa em larga escala feita recente-
mente pelo governo do distrito mostra que 1.656 pessoas
morreram de doenças relacionadas ao estresse, superando
as 1.607 pessoas que morreram por ferimentos relacionados
aos desastres. Mais de mil moradores foram igualmente
afetados nos municípios de Iwate e Miyagi [...]. Idogawa
Katsutaka, ex-prefeito da cidade de Futaba, que recebeu a
usina de Fukushima juntamente com a cidade de Okuma,
pensa que, apesar do que o governo diz, não é seguro
retornar a Fukushima. Segundo Idogawa, os mapas de
radiação mostram que os níveis de contaminação em certas
áreas são tão altos e generalizados, que se torna impossível
evitar a exposição vivendo lá. Idogawa sente que o governo
negligenciou os moradores que se retiraram de áreas nucle-
ares de Futaba, uma questão reforçada pela falta de moradia
adequada e de apoio psicológico.2

Arai e Takeda elegeram o daguerreótipo ou técnicas


sem câmera como meios para representar a calamidade
em Fukushima e, sobretudo, revelar as consequências da

2 “[...]nearly half of the households that were forced to evacuate [...] are
split up. Often, this is due to fears over radioactive contamination as well
as locations of schools and workplaces. Adding to this disruption, ongoing
stress affects Fukushima residents. A recent large-scale survey conducted
by the prefectural government shows that 1,656 people in Fukushima
Prefecture died from stress-related illnesses, surpassing the 1,607 people
who died from injuries related to the disasters. More than a thousand
residents were similarly affected in the Iwate and Miyagi Prefectures [...]
Idogawa Katsutaka, the former mayor of Futaba Town which co-hosted the
Fukushima plant along with Okuma Town, thinks that despite what the
government says, it is by no means safe to return to Fukushima. According
to Idogawa, radiation maps reveal that the levels of contamination in
certain areas are so high and widespread that it is impossible to avoid
exposure if one lives there. Idogawa feels that the government has neglected
Futaba’s nuclear evacuees, an issue enhanced by the perceived lack of proper
housing and psychological support.”
O DESASTRE TRIPLO NA FOTOGRAFIA JAPONESA CONTEMPORÂNEA 185

radiação nuclear, algo que, apesar de sua invisibilidade,


modificou completamente o cenário socioambiental da
região, como ressaltado por Figueroa. Ao retratar no suporte
fotográfico a radioatividade e seus efeitos, ambos os artistas
forneceram ao espectador novos dados sobre o perigo da
energia nuclear, que não haviam sido amplamente compar-
tilhados pela mídia e governo japoneses.
O principal intuito deste estudo é, em especial, compre-
ender quais papéis um trabalho fotográfico pode exercer
ao registrar catástrofes como a de Fukushima e como, em
certa medida, ele pode também sensibilizar e informar sobre
o assunto abordado. Ao materializar os efeitos da radiação,
essas fotografias desempenham uma função também socio-
política, na medida em que oferecem dados importantes
sobre a energia nuclear e suas diversas particularidades,
tanto para a população local quanto para as de outros países.
Como relatou Susan Sontag (2003, p. 10),

De fato, há muitos usos para as inúmeras oportunidades


oferecidas pela vida moderna de ver — à distância, por meio
da fotografia — a dor de outras pessoas. Fotos de uma atroci-
dade podem suscitar reações opostas. Um apelo em favor da
paz. Um clamor de vingança. Ou apenas a atordoada consci-
ência, continuamente reabastecida por informações fotográ-
ficas, de que coisas terríveis acontecem.

Desse modo, a importância da fotografia nesse contexto


se estende além de sua finalidade estética, pois ela também
auxilia e contribui para a construção de uma memória visual
coletiva, exercendo, assim, um papel sobretudo comunitário.

TAKASHI ARAI
Takashi Arai (Kawasaki, 1978-) é um artista visual e cine-
asta que trabalha atualmente entre as cidades de Kawasaki,
Tōno e Berlim. Ele se formou em biologia na International
Christian University de Tóquio, em 2001. Paralelamente
aos seus estudos na ICU, Arai desenvolveu um interesse
186 Akstein J.

pela fotografia, o que o levou a estudar na Tokyo College of


Photography (TCP), entre 2002 e 2004. Durante esse período,
o artista conheceu a técnica do daguerreótipo, obtendo
o manual de Louis Jacques Mandé Daguerre, História e
descrição dos processos de daguerreótipo e diorama (Historique et
description des procédés du daguerréotype et du diorama), de 1839.
Depois de realizar inúmeros testes de produção de daguerre-
ótipos, Arai dominou o procedimento, que se tornou a prin-
cipal técnica em sua prática artística (DAVRE, 2020).
Logo após a tragédia nuclear, Arai decidiu viajar até
a região de Fukushima para ajudar a comunidade local.
O artista iniciou, então, um extenso trabalho fotográfico,
retratando principalmente como a vida dos moradores da
área foi drasticamente alterada depois de 11 de março, o que
resultou na série de cerca de trinta daguerreótipos, intitu-
lada Aqui e lá: ilhas do amanhã (Here and There: Tomorrow’s
Islands). Em uma entrevista, o artista comentou como surgiu
o seu interesse pelo assunto:

Logo, fiquei mais interessado em Fukushima porque tudo


estava confuso, incerto e invisível. Não gostei das imagens
passadas pela TV ou revistas, porque, se você for até lá,
você vê tantas situações controversas, e as pessoas parecem
estranhamente normais. Mas a fotografia em estilo docu-
mental está sempre focada em casas destruídas, pessoas
evacuadas e zonas de exclusão. Eu não estava particular-
mente interessado nelas porque a situação era muito mais
complicada. Eu queria focar em como as paisagens, as vidas
de pessoas, animais e plantas foram alteradas. Para retratar
tais assuntos, a fotografia convencional não funciona, em
minha opinião (ARAI apud GASSIAT, 2019, tradução nossa).3

3 “Soon I became more interested in Fukushima because everything was


confusing, uncertain, and invisible. I didn’t like the image given by TV or
magazines, because if you go there you see so many controversial situations,
and people look strangely normal. But documentary-style photography is
always focused on destroyed houses, evacuated people, and exclusion zones.
I was not particularly interested in them because the situation was much
more complicated. I wanted to focus on how landscapes, lives of people,
animals, and plants have been altered. To depict those subjects, conven-
tional photography doesn’t work for me.”
O DESASTRE TRIPLO NA FOTOGRAFIA JAPONESA CONTEMPORÂNEA 187

Em seus daguerreótipos, vemos cenas de pessoas em


alojamentos temporários, fazendas sendo descontaminadas
por habitantes da região e paisagens totalmente isoladas
pelo perigo da radiação. Arai decidiu realizar um trabalho
documental fotográfico sobre o desastre nuclear, que, em
grande parte, estava sendo ignorado pela mídia japonesa.
No trecho a seguir, o fotógrafo comenta como foi o início do
seu trabalho nas regiões atingidas:

A primeira vez que visitei as áreas devastadas, não consegui


tirar mais do que três ou quatro fotos digitais sem foco
porque me senti inútil. Minha câmera digital não pôde
capturar nada desses lugares gigantescos e traumáticos.
Algumas semanas depois, comecei a usar o daguerreó-
tipo para retratar pessoas e paisagens, e, aos poucos, me
convenci de que esse processo em particular tem o poten-
cial de conectar pessoas com experiências muito diferentes
(ARAI, 2019, tradução nossa).4

Essa conexão mencionada por Arai se deve especial-


mente pela demora do processo:5 o tempo de exposição de
um daguerreótipo dura em média de 15 a 25 minutos, o que
permitiu ao artista manter um contato mais prolongado com
cada pessoa fotografada, descobrindo suas histórias e expe-
riências vivenciadas logo após a tragédia.

4 “The first time I visited devastated areas, I couldn’t take more than three or
four out-of-focused digital photos because I felt useless. My digital camera
cannot capture anything from such gigantic and traumatic sights. A few
weeks later, I started using daguerreotype to portray people and landscapes,
and gradually, I became convinced that this particular process has the
potential to connect people with far different experiences.”
5 O daguerreótipo foi o primeiro método fotográfico a ser comerciali-
zado em grande escala. Seu processo é realizado através das seguintes
etapas: uma placa de prata é polida e sensibilizada com vapor de iodo.
Em seguida, a placa é transferida para uma câmera escura e, então,
exposta à luz por cerca de 15 a 25 minutos. Após a exposição, a imagem
da placa é revelada com o uso de vapor de mercúrio. Depois, para fixar
a imagem na placa, utiliza-se hipossulfito de sódio. Trata-se, assim,
de um processo direto, que cria imagens únicas, fixadas diretamente
sobre a placa final, sem o uso de um filme negativo.
188 Akstein J.

Além disso, como ressalta a pesquisadora Amandine


Davre, embora não haja indícios materiais dessa contami-
nação no resultado final de cada imagem, “[...] a irradiação
[...] é sugerida pelo tema fotografado (áreas de descontami-
nação e armazenamento de resíduos radioativos), pelo título
dos trabalhos e pelas imperfeições da placa” (DAVRE, 2020,
p. 160, tradução nossa).6 Na realidade, essas irregularidades
encontradas nos daguerreótipos, como manchas azuis ou
pontos pretos, são, como descreve Arai no trecho a seguir,
consequências de suas próprias ações e não efetivamente
um resultado do contato direto com a radiação nuclear:

Alguns erros ou imperfeições nos meus daguerreótipos


acontecem inesperadamente, por conta da minha falta
de habilidade. Quando eu exibi a série Aqui e lá: ilhas do
amanhã (Here and There: Tomorrow’s Islands) no Museu da
Cidade de Kawasaki, em 2011, alguns espectadores me ques-
tionaram se as manchas pretas eram resultado da radioativi-
dade. Suponho que não, mas descobri que os daguerreótipos
às vezes estimulam a percepção e/ou emoções dos especta-
dores. [...] gosto do fato de que esse processo pode impul-
sionar a imaginação das pessoas e fazê-las se sentirem
pessoalmente conectadas (ARAI apud DAVRE, 2022,
tradução nossa).7

Neste primeiro daguerreótipo (Figura 1), vemos Toru


Azai, que morava em uma habitação provisória nos arredores
da Usina Nuclear de Fukushima, um ano após o desastre triplo.
Esses alojamentos temporários abrigaram milhares de famílias
japonesas, que precisaram desocupar seus lares localizados

6 “[...] l’irradiation [...] est suggérée par le sujet photographié (zones de


décontaminations et entreposage de déchets radioactifs), par le titre des
œuvres et par les imperfections de la plaque.”
7 “Some errors, or imperfections, on my daguerreotypes happen unexpectedly,
because of my lack of skills. When I exhibited the series Here and There —
Tomorrow’s Islands in Kawasaki City Museum, in 2011, some viewers
asked me if the black spots were the result of radioactivity. I suppose they
are not, but I found that the daguerreotype sometimes triggers viewers’
perception and/or emotions. [...] I like that this process can boost viewers’
imagination and make them feel personally connected.”
O DESASTRE TRIPLO NA FOTOGRAFIA JAPONESA CONTEMPORÂNEA 189

nas imediações da usina, já que os níveis de radiação nuclear na


área eram muito elevados. Desse modo, essa imagem retrata
principalmente o drama de cerca de 160 mil pessoas que foram
obrigadas a sair de suas casas, de suas rotinas, abandonando
grande parte de sua história para viver em centros comunitá-
rios em outras regiões do país.

Figura 1. Takashi Arai. Toru Azai em sua habitação temporária, Date,


Fukushima (Toru Azai at His Temporary Housing, Date, Fukushima), 2012.

Embora, em um primeiro momento, esse daguerreó-


tipo não faça uma associação direta ao desastre nuclear em
Fukushima, o seu tema é principalmente sociopolítico, na
medida em que apresenta o impacto do dia 11 de março na
vida de inúmeras famílias. Além de se preocuparem com a
radiação, essas pessoas também viviam com a insegurança
de não saber se poderiam ou não retornar para os seus lares
e para os seus trabalhos anteriores. Ao terem deixado suas
casas, perderam suas privacidades e identidades e, mesmo
que voltassem para suas antigas residências, viveriam com o
190 Akstein J.

medo de não saber o nível exato de radiação nuclear da área.


Na passagem a seguir, podemos observar melhor a dimensão
da tragédia pelo relato de Hiroko Watabe, que morou em um
dos alojamentos temporários logo após o acidente:

Todo mês, Hiroko Watabe, de 74 anos, volta por poucas


horas a sua casa abandonada, perto da usina nuclear de
Fukushima, para realizar seu pequeno ato de rebeldia frente
ao destino. Ela coloca uma máscara cirúrgica, pendura dois
aparelhos de medição de radiação no pescoço e se agacha
para arrancar ervas daninhas. Ela está desesperada para
manter seu pequeno jardim limpo, a fim de provar que
não desistiu da própria casa, que teve de abandonar com a
família há dois anos [...].

“No fundo, sei que nós nunca mais teremos como morar
aqui. Mas fazer isto nos dá um propósito. Estamos dizendo
que esta casa ainda é nossa” — disse Hiroko, que deixou
a cidade de Koriyama, onde agora vive com seu marido
(EX-MORADORES..., 2013).

Desse modo, Arai, através do retrato de Toru Azai, sinte-


tizou as dificuldades e privações que milhares de famílias
e comunidades japonesas enfrentaram logo após o desastre
triplo, ao serem retiradas de seus lares e convivendo com a
incerteza de não saber se algum dia iriam retornar à “norma-
lidade” vivenciada antes do desastre triplo.
Nesse outro daguerreótipo (Figura 2), temos o retrato de
cerca de 20 agricultores em uma fazenda em Minamisoma,
localizada a 25 quilômetros de distância da Usina de
Fukushima. A cidade foi fortemente atingida pela catástrofe,
pois, além de ter sido contaminada com a radiação nuclear,
perdeu também cerca de 1,5 mil de seus habitantes com a
força do tsunami.
Nesta imagem, podemos observar os agricultores com
máscaras e roupas a fim de se protegerem contra a exposição
à radiação nuclear, em um trabalho de descontaminação do
solo em uma das fazendas de Fukushima, que era conside-
rada uma das principais regiões agrícolas do Japão (DAVRE,
2020, p. 157). Entretanto, após o desastre triplo, grande parte
O DESASTRE TRIPLO NA FOTOGRAFIA JAPONESA CONTEMPORÂNEA 191

das terras da província foi contaminada pela radioatividade,


afetando a economia e o trabalho das comunidades locais.8

Figura 2. Takashi Arai. Agricultores no trabalho, Minamisoma,


Fukushima (Farmers at Work, Minamisoma, Fukushima), 2012.

Embora o governo japonês tenha destinado uma grande


quantidade de investimento financeiro para descontaminar
e substituir o solo, podemos observar neste daguerreótipo
que muitos agricultores, antigos habitantes da região, utili-
zaram de seu próprio esforço para realizar o trabalho de
descontaminação, em uma tentativa conjunta de acelerar
o processo para conseguir retomar as atividades agrícolas
em suas fazendas, as quais se encontravam completamente
suspensas naquele momento. Arai, assim, evidenciou
como a tragédia nuclear afetou todas as esferas da vida dos

8 Até hoje, onze anos após o desastre, ainda existem aproximada-


mente 340 quilômetros quadrados de solo radioativo encontrados nas
regiões próximas à Usina Nuclear de Fukushima e cerca de 37 mil
ex-residentes continuam deslocados.
192 Akstein J.

moradores que habitavam nos arredores da usina, os quais,


em muitos casos, expuseram-se à radiação a fim de conse-
guir retornar as suas produções agrárias.
Com a sua série Aqui e lá: ilhas do amanhã, Arai apre-
sentou um material fotográfico documental relevante sobre
as consequências socioambientais da catástrofe na Usina de
Fukushima Daiichi, conscientizando e informando especial-
mente sobre as diversas especificidades da utilização exten-
siva da energia nuclear.

SHIMPEI TAKEDA
Shimpei Takeda é um artista visual e cineasta que nasceu
em 1982 em Fukushima, e cresceu em Chiba, nos arre-
dores de Tóquio. Durante sua infância, o artista costu-
mava visitar anualmente seus avós em Sukagawa, cidade
localizada a 64 quilômetros da Usina Nuclear Fukushima
Daiichi. Quando completou vinte anos, Takeda se mudou
para Nova York, onde começou a colaborar com diversos
compositores e artistas sonoros na produção de vídeos.
Após alguns anos de trabalho na cidade, Takeda se voltou
definitivamente para a fotografia conceitual, baseada em
uma estética abstrata.
Em 11 de março de 2011, quando estava nos Estados
Unidos, Takeda soube do acidente nuclear de Fukushima
pela mídia, reconhecendo de imediato os nomes das cidades
e o dialeto falado por seus avós (O’MALLEY, 2013). Embora
sua família estivesse em Sukagawa, cidade localizada fora
da zona de evacuação, toda a região foi afetada pela radiação
nuclear de alguma forma, seja econômica ou socialmente.
O artista decide, então, retornar ao Japão e desenvolver
um trabalho de fotografia que documentasse materialmente
o desastre nuclear. Em especial, seu intuito era fazer uma
contraposição à mídia japonesa que, segundo ele, estava
ocupada cobrindo as consequências econômicas do desastre,
enquanto a precipitação radioativa física e o potencial para
O DESASTRE TRIPLO NA FOTOGRAFIA JAPONESA CONTEMPORÂNEA 193

mais desastres continuavam (TAKEDA, 2012). Em maio de


2011, Shimpei Takeda iniciou o seu projeto fotográfico Traço
(Trace), realizado por meio de um financiamento coletivo, no
qual cerca de seis mil dólares foram arrecadados.
Após realizar inúmeros testes para esse trabalho, o fotó-
grafo observou que o haleto de prata escurece quando exposto
à radiação eletromagnética, como a luz visível e a radiação
nuclear. Com isso em mente, Takeda produziu as imagens
dessa série depositando amostras de solos contaminados
sobre filmes fotossensíveis, expondo-os, assim, diretamente
à radioatividade. O artista tinha interesse, sobretudo, em
materializar a contaminação radioativa na fotografia, como
pontuou em uma entrevista no trecho a seguir:

Ao mesmo tempo, eu queria, de alguma forma, visualizar o


desastre invisível. Ver os dados sobre a radiação no ar, solo
e oceano não parecia real. Eu precisava ver um registro fisi-
camente sólido do desastre. Então, eu comecei a perceber
que a radiação, como raios gama e a luz visível, funcionam
basicamente da mesma forma em materiais fotográficos. Na
superfície de materiais sensíveis à luz, o haleto de prata escu-
rece quando exposto à radiação eletromagnética (TAKEDA,
2012, tradução nossa).9

Para Traço, Takeda coletou, em janeiro de 2012, dezes-


seis amostras de solo de doze locais diferentes, situados
todos fora da zona de exclusão, mas próximos à Usina
Nuclear de Fukushima Daiichi. Os locais foram escolhidos
especificamente pelo artista por terem “[...] uma forte
memória de vida e morte, como templos, santuários, locais
de guerra e ruínas de castelos” (TAKEDA apud O’MALLEY,

9 “At the same time, I wanted to visualize the invisible disaster in some
way. Seeing data visualizations of radiation in the air, soil and ocean
didn’t feel real. I needed to see a physically solid record of the disaster.
Then I started to realize that radiation, such as gamma rays and visible
light, basically work the same way on photographic materials. On the
surface of light-sensitive materials, silver halide darkens when exposed
to electromagnetic radiation.”
194 Akstein J.

2013, tradução nossa).10 Além disso, cada amostra de solo


tinha sua própria especificidade, o que afetava diretamente
na quantidade de radiação nuclear encontrada, como o
artista explanou a seguir:

Eu queria ver como diferentes texturas do solo poderiam


afetar a criação das imagens. No final, realmente não
afetaram os resultados esteticamente, mas algumas texturas
do solo, como musgo, contêm mais substâncias radioativas
do que outras. Isso é algo que eu percebi após a primeira
tentativa. Certamente, quanto mais contaminado é o solo,
mais os materiais fotográficos são expostos. Eu medi o nível
de radiação no ar e na superfície do solo em cada um dos
locais (TAKEDA apud O’MALLEY, 2013, tradução nossa).11

Cerca de metade das imagens resultantes desse experi-


mento se revelaram quase totalmente pretas, mas algumas,
como observaremos a seguir, apresentaram manchas
esbranquiçadas em sua superfície, por terem sido expostas
a uma maior quantidade de radioatividade. Em um primeiro
momento, as imagens de Traço fazem alusão a um céu noturno
estrelado, e, assim como nos daguerreótipos de Takashi Arai,
não remetem diretamente ao desastre de Fukushima.
Nesse primeiro fotograma12 da série, “Traço #1, Cataratas
de Kegon” (“Trace #1, Kegon Falls”, Figura 3), tem-se o
resultado da coleta de solo retirada desse local que, com

10 “[...] strong memory of life and death, such as temples, shrines, war sites,
ruins of castles.”
11 “I wanted to see how different soil textures could affect the image making.
At the end, it didn’t really affect the results aesthetically, but some soil
textures such as moss contain more radioactive substances than others. That is
something that I realized after the first attempt. Certainly, the more contam-
inated the soil is, the more the photographic materials are exposed. For each
location I measured the radiation level in the air and ground’s surface.”
12 Fotograma é uma imagem fotográfica obtida sem o auxílio de uma
câmera. Nessa técnica, objetos são posicionados sobre um papel fotos-
sensível e, em seguida, expostos à luz, como Takeda fez ao submeter
o papel fotográfico à radiação nuclear, por meio do contato direto com
as amostras de solo coletadas.
O DESASTRE TRIPLO NA FOTOGRAFIA JAPONESA CONTEMPORÂNEA 195

97 metros de altura, é uma das três maiores cachoeiras do


Japão. Localizada em Nikkô, Prefeitura de Tochigi, a cerca
de duzentos quilômetros da Usina de Fukushima Daiichi,
a cachoeira é frequentemente associada a um lugar de morte
pelos moradores da região, já que cerca de duzentas pessoas
tentaram cometer suicídio ali desde o início do século passado.
Inicialmente, notam-se apenas alguns pontos brancos
na superfície do fotograma, que contrastam com seu fundo
preto. Essas pequenas áreas em branco representam, de fato,
as partículas radioativas que foram impressas na superfície
do papel fotográfico, o que aponta, pela sua pouca quanti-
dade, que a taxa de radioatividade na região não era extre-
mamente elevada. Com efeito, a amostra de solo coletada
naquela área por Arai indicou uma taxa de contaminação de
0,249 microsieverts por hora no ar e 0,446 no solo.

Figura 3. Shimpei Takeda. “Traço #1, Cataratas de Kegon”


(“Trace #1, Kegon Falls”), 2012.

Já na segunda imagem (Figura 4), intitulada “Traço #16,


Lago Hayama” (“Trace #16, Lake Hayama”), observamos o
resultado da coleta de solo da região próxima ao lago Hayama,
localizado na cidade de Iitate, a somente quarenta km de
196 Akstein J.

distância da Usina de Fukushima Daiichi. Diferentemente


da primeira imagem, esse fotograma apresenta uma enorme
quantidade de manchas brancas e variadas que ocupam quase
inteiramente a área do papel fotográfico, o que indica uma alta
concentração de radioatividade presente naquela amostra de
solo. De acordo com os dados colhidos por Takeda, na hora da
coleta do solo, foi registrada uma taxa de 1,848 microsieverts
por hora no ar e 6,438 no solo.13
Ao analisarem-se os dados coletados pelo fotógrafo,
observa-se que este radiograma é um dos que foram mais
contaminados de toda a série Traço. Na realidade, o nível
de radioatividade é sete vezes maior no ar e quatorze vezes
maior no solo do lago Hayama do que nas cataratas Kegon.
Desse modo, conclui-se que a quantidade de radioatividade
presente no solo coletado alterou significativamente o resul-
tado estético final de cada um dos fotogramas.

Figura 4. Shimpei Takeda. “Traço #16, Lago Hayama”


(“Trace #16, Lake Hayama”), 2012.

13 A diferença do nível de radioatividade encontrada por Takeda entre


as Cataratas de Kegon e o Lago Hayama associa-se especialmente
as suas distâncias da Usina de Fukushima Daiichi, respectivamente,
duzentos e quarenta quilômetros.
O DESASTRE TRIPLO NA FOTOGRAFIA JAPONESA CONTEMPORÂNEA 197

Por meio de Traço, Shimpei Takeda apresentou material-


mente a presença de partículas radioativas em solo japonês,
documentando o alcance dos efeitos do desastre nuclear, que
não estavam sendo amplamente difundidos pela mídia japonesa.
Embora os locais de coleta dos solos estivessem localizados fora
da zona de exclusão, o fotógrafo comprovou que a radioativi-
dade se estendeu além dos limites geográficos delimitados pelo
governo nipônico, afetando em diversos níveis as populações
que viviam nas imediações do local do acidente nuclear. Em uma
entrevista, Takeda comentou sobre a importância da série:

Traço (Trace) é uma documentação física direta que nos


ajuda a entender, ajuda-me a entender esses números. Acho
que fazer isso como uma obra de arte conceitual é uma
maneira melhor de mostrar às pessoas que vêm depois de
nós. Como obra de arte, acho que tem uma melhor chance
de mostrar isso às gerações futuras do que outros formatos
(TAKEDA, 2012, tradução nossa).14

Dessa maneira, ao materializar a radiação nuclear em seus


fotogramas, algo até então invisível, o fotógrafo viabilizou um
material informativo importante para o estudo dos efeitos da
radioatividade no espaço socioambiental, trazendo uma nova
perspectiva sobre o tema para toda a população japonesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O principal objetivo desse ensaio foi compreender qual papel
a fotografia pode desempenhar na documentação de catás-
trofes, como o desastre triplo que atingiu o Japão, em 11 de
março de 2011.
Através dos trabalhos dos fotógrafos Takashi Arai
e Shimpei Takeda, observou-se que diferentes técnicas,
como o daguerreótipo e o fotograma, foram fundamentais

14 “Trace is a direct physical documentation that helps us to understand — helps


me to understand these numbers. I think doing this as a conceptual art piece
serves as a better way to show people who come after us. As an artwork, I think
it has a better chance of showing future generations than other formats.”
198 Akstein J.

na estruturação de um corpo imagético de estudos sobre a


radioatividade, mesmo sem mencioná-la diretamente, como
fizeram fotojornalistas com o tsunami e o terremoto. Arai e
Takeda disponibilizaram um importante material informa-
tivo sobre as consequências da tragédia nuclear, tanto para
a população local quanto para a de outros países.

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VIEIRA, Anna. Photographier l’invisible: sur les traces de la radioacti-


vité à Fukushima. 2013. Mémoire (Master em Photographie) – École
Nationale Supérieure Louis-Lumière, Paris. 2013.

FONTES DAS FIGURAS


Figura 1
ARAI, Takashi. Toru Azai em sua habitação temporária, Date,
Fukushima (Toru Azai at his Temporary Housing, Date, Fukushima),
2012. Daguerreótipo, 25,2 × 19,3 cm. Musée D’Élysée. Disponível em:
https://takashiarai.com/here-and-there-tomorrows-islands/#ms-370.
Acesso em: 30 mar. 2022.

Figura 2
ARAI, Takashi. Agricultores no trabalho, Minamisoma, Fukushima
(Farmers at Work, Minamisoma, Fukushima), 2012. Daguerreótipo,
25,2 × 19,3 cm. Acervo do artista. Disponível em: https://takashiarai.com/
here-and-there-tomorrows-islands/#ms-368. Acesso em: 30 mar. 2022.

Figura 3
TAKEDA, Shimpei. “Traço #1, Cataratas de Kegon” (“Trace #1, Kegon
Falls”), 2012. Impressão em gelatina de prata, 40 × 50,5 cm. Acervo do
artista. Disponível em: https://www.icp.org/browse/archive/objects/
trace-1-kegon-falls. Acesso em: 30 mar. 2022.

Figura 4
TAKEDA, Shimpei. “Traço #16, Lago Hayama” (“Trace #16, Lake
Hayama”), 2012. Impressão em gelatina de prata, 40 × 50,5 cm. Acervo
do artista. Disponível em: https://www.icp.org/browse/archive/
objects/trace-16-lake-hayama-mano-dam. Acesso em: 30 mar. 2022.
CINEMA JAPONÊS:
EXPERIMENTAÇÕES FRENTE
À ERA ATÔMICA

Alice Andrade Drummond


Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO
A tripla catástrofe que assolou o Japão em 11 de março de
2011 foi um dos recentes e mais marcantes acontecimentos
registrados por inúmeras câmeras e assistido por milhões
de pessoas pela televisão e internet, nesse regime de inces-
sante produção e disseminação de imagens que tem caracte-
rizado o nosso tempo. A destruição causada pelo tsunami na
região de Fukushima foi vista pelos mais diversos ângulos e
pontos de vista, por meio de milhares de vídeos profissionais
e amadores. Apesar de ter obtido uma suposta visibilidade
total, há uma dimensão invisível dessa catástrofe que não pôde
ser flagrada pelas câmeras: os efeitos da radiação causados
pela destruição da usina nuclear de Fukushima Daiichi. Este
texto busca investigar três obras audiovisuais experimentais
realizadas por artistas japoneses que procuraram dar forma e
responder aos dilemas da camada mais obscura da catástrofe
nuclear: 1945-1998 (de Isao Hashimoto, 2003); Sound of a Million
Insects, Light of a Thousand Stars (de Tomonari Nishikawa, 2014);
e Generator (de Takashi Makino, 2011).
Palavras-chave: Cinema experimental japonês. Catástrofe
de Fukushima. Isao Hashimoto. Tomonari Nishikawa.
Takashi Makino.
202 Drummond A. A.

ABSTRACT
The triple catastrophe that struck Japan on March 11, 2011,
was one of the recent and major events recorded by numerous
cameras and watched by millions of people on television and on
the Internet, in this system of unceasing production and dissemi-
nation of images that has characterized our time. The destruction
caused by the tsunami in the Fukushima region has been seen from
many different angles and points of view by means of thousands of
videos, both professional and amateur. Despite this supposed total
visibility, there is an invisible dimension of this catastrophe that
cannot be detected by the cameras: the effects of radiation caused
by the destruction of the Fukushima Daiichi Nuclear Power
Plant. This essay seeks to investigate three experimental audiovi-
sual works of Japanese artists who sought to shape and respond to
the dilemmas of this darker layer of the nuclear catastrophe: 1945-
1998 (of Isao Hashimoto, 2003); Sound of a Million Insects,
Light of a Thousand Stars (of Tomonari Nishikawa, 2014);
and Generator (of Takashi Makino, 2011).
Keywords: Japanese experimental cinema. Fukushima’s catastrophe.
Isao Hashimoto. Tomonari Nishikawa. Takashi Makino.

INTRODUÇÃO

Em 11 de março de 2011, o mundo assistiu, por meio de


inúmeras imagens repercutidas em tempo real, à tripla
catástrofe de Fukushima, que assolou o Japão. Um fortís-
simo terremoto de 9,1 graus na escala Richter, originado no
oceano Pacífico, deu sequência a um violento tsunami que
se abateu sobre a costa nordeste do país, destruindo cidades
inteiras e atingindo a usina nuclear de Fukushima Daiichi.
Este fato, por sua vez, culminou em um vazamento de mate-
rial radioativo com consequências ainda hoje desconhecidas.
Nomeada como 3.11, a catástrofe de Fukushima implicou a
perda instantânea de milhares de vidas, gerou um cenário de
CINEMA JAPONÊS 203

destruição total na região e ressuscitou o temor frente à heca-


tombe nuclear que por muito tempo assombrou aqueles que
enfrentaram o trauma das bombas atômicas lançadas sobre
Hiroshima e Nagasaki ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Às diversas imagens do tsunami veiculadas pelas
grandes redes de televisão somaram-se vídeos gravados
por cinegrafistas amadores, empunhando câmeras através
de suas janelas para registrar o desastre em curso. Vimos,
veiculadas pela primeira vez em escala mundial por
inúmeros canais de vídeo na internet, cenas agoniantes que
foram gravadas pelas câmeras trêmulas de muitos atingidos
enquanto fugiam para salvar suas vidas.
Ao lado das imagens amadoras feitas em solo, acompa-
nhamos a tragédia ainda por pontos de vista inacessíveis ao
olho humano. Para além das tomadas feitas a partir de heli-
cópteros que sobrevoavam os destroços, pudemos assistir a
imagens captadas por câmeras alocadas em satélites espa-
ciais que flagraram o momento exato do impacto do tsunami
na usina de Fukushima Daiichi. E, passados alguns pares
de anos, na esteira do avanço tecnológico, logo surgiram
novos dispositivos audiovisuais que recriaram e reatuali-
zaram os momentos marcantes desta catástrofe: ao clique
de um mouse, uma videorreportagem disseca as ruínas de
Fukushima em 360 graus, com imagens captadas em reali-
dade virtual — cenas que podem ser vistas com ainda mais
intensidade por meio do uso de óculos 3D.1 Fomos inter-
pelados, assim, por uma miríade de imagens de diferentes
autorias, com intervenções gráficas, métodos, discursos,
texturas, resoluções e formatos distintos, que mostravam
a catástrofe em detalhes sob os mais diversos ângulos e
pontos de vista.2

1 Fukushima: vidas contaminadas (VERDÚ, 2016).


2 Vídeos disponíveis em Jishin-no hassei kara tsunami-no tōtatsu made
地震の発生から津波の到達まで (2015), Potencial Nuclear Meltdown (2011),
204 Drummond A. A.

Diante desses quadros de dor, fica a questão: o que restaria


aos cineastas e artistas engajados politicamente, que buscam
formas audiovisuais para representar essa catástrofe, se tudo
já parece ter sido mostrado, até mesmo o que não gostarí-
amos de ver? Essa pergunta torna-se cada vez mais pungente
com o passar dos anos, à medida que vivenciamos uma esca-
lada exponencial desse regime de suposta visibilidade total,
marcado pela veiculação de imagens de tudo e o tempo todo,
sobretudo aquelas de eventos catastróficos. Por outro lado,
já tem se tornado corrente o diagnóstico de que esse excesso
informacional característico dos nossos tempos não garante
necessariamente um melhor conhecimento sobre o aconte-
cimento. Pelo contrário: mais do que trazer uma maior legi-
bilidade a determinado evento, essa enxurrada de imagens,
muitas vezes, acaba por obstruí-lo, embaçá-lo, deixando-
-nos numa espécie de vertigem visual que pode obscurecer
algumas de suas camadas mais importantes.
Adotando essa perspectiva, numa analogia com a
noção de big data, o escritor Kiyoshi Shigematsu, em entre-
vista sobre a catástrofe do 3.11, afirmou que “se esque-
cermos que ‘big’ resulta de uma acumulação de inúmeros
pequenos, é bem provável que algo importante se perca em
meio à nossa análise” (SHIGEMATSU apud GEILHORN;
IWATA-WEICKGENANNT, 2017, p. 9, tradução nossa),3
visto que a grande quantidade de dados não auxilia neces-
sariamente a compreensão da dimensão sociocultural da
catástrofe (SHIGEMATSU apud GEILHORN; IWATA-
WEICKGENANNT, 2017). Atento a este impasse, Shigematsu
ainda propõe a seguinte provocação: “O ‘big data’ não nos
ajuda quando se trata de traçar a memória de nossos mortos.
Ele não pode gravar as vozes dos falecidos. Mas não é para

Tsunami no Japão (2013), Tsunami in Iwaki City (2013) e Watch a


Massive Tsunami Engulf entire Towns in Japan (2011).
3 “If one forgets that ‘big’ results from the accumulation of ‘innumerous smalls’,
it can easily happen that something important is missed in the analysis.”
CINEMA JAPONÊS 205

isso que nos serve a imaginação humana?” (SHIGEMATSU


apud GEILHORN; IWATA-WEICKGENANNT, 2017, p. 9,
tradução nossa).4
Como alerta a professora e pesquisadora Sylvie Rollet
(2011) em Uma ética do olhar: o cinema face à catástrofe, de
Alain Resnais à Rithy Pahn (Une Éthique du regard: le cinéma
face à la Catástrofe, d’Alain Resnais à Rithy Panh), há, na ocor-
rência de eventos catastróficos, uma opacidade constitutiva
nas formas de narrá-los no meio audiovisual. Ela surge seja
em consequência das barreiras físicas que se impõem frente
às câmeras — a exemplo dos destroços que entrincheiram a
visão —, seja pelos limites éticos que nos impedem de image-
tizar a dor e o trauma indizíveis e inimagináveis. No caso
do 3.11 — e de outras tragédias relacionadas à energia
nuclear —, prevalece ainda um outro obstáculo bem especí-
fico, que intensifica a nossa incompreensão da catástrofe e
que está diretamente ligado àquilo que não se vê a olho nu:
a radiação. Ora, enquanto uma parte da destruição causada
pelo tsunami é concreta, e a grande quantidade de imagens
comprova-nos isso, as consequências invisíveis e ainda não
mensuráveis do estrago nuclear e dos efeitos da radiação se
desdobram abstrata e misteriosamente ao longo do tempo.
De acordo com Barbara Geilhorn e Kristina Iwata-
Weickgenannt (2015) na introdução do livro Fukushima e as
artes: negociando desastres nucleares (Fukushima and the Arts:
Negotiating Nuclear Disaster):
Como visto pela variedade de imagens que circularam ampla-
mente de vilarejos com suas paisagens intocadas ao lado da
destruição total, se uma área havia ou não sido totalmente
arruinada, não era uma questão de ponto de vista, por ser
algo óbvio até mesmo para um olho destreinado. Por outro
lado, o impacto visual de uma catástrofe nuclear foi, na
melhor das hipóteses, limitado ao máximo. A invisibilidade
da radiação e a ausência de mortes imediatas evidenciaram

4 “‘Big data’ is of no help when it comes to tracing the memories of the dead.
It cannot record the voices of the deceased. But isn’t that what humans have
their imagination for?”
206 Drummond A. A.

que muito do terror de Fukushima — a síntese global para


a mais recente catástrofe nuclear — originou-se no reino da
imaginação (GEILHORN; IWATA-WEICKGENANNT, 2015,
p. 3, tradução nossa).5

Diante do paradoxo em que, de um lado, há algo deter-


minante que não é perceptível aos olhos e, de outro, somos
acometidos pela onipresença de imagens que sugerem
evidenciar tudo o que aparentemente há para ver, neste
texto foram analisadas três obras audiovisuais de artistas
japoneses que procuraram dar corpo a essa dimensão
invisível da catástrofe nuclear. Adotando distintas aborda-
gens e linguagens, as obras 1945-1998 (Isao Hashimoto,
2003); Sound of a Million Insects, Light of a Thousand Stars
(Tomonari Nishikawa, 2014); e Generator (Takashi Makino,
2011) propõem formas e estéticas experimentais na tentativa
de trazer à tona algumas camadas fundamentais que não são
evidenciadas pela suposta visibilidade total.

A ERA ATÔMICA
Para nos aproximarmos dessas três obras que se debruçam
sobre a catástrofe atômica, cumpre antes estabelecer um
diálogo com alguns autores que auxiliarão a leitura desses
materiais. Em 1959, o filósofo alemão Günther Anders minis-
trou um seminário na Universidade Livre de Berlim sobre
as implicações morais do que ele chamou de Era Atômica,
e, a partir dessa experiência, publicou um ensaio constituído
por 22 aforismos, nomeado Teses para a Era Atômica (Thesen
zum Atomzeithalter). Essas teses procuram demonstrar que,

5 “As seen in the multitude of widely circulated images of untouched


villagescapes next to total destruction, whether or not an area had been
affected was not a matter of debate, but is obvious even to the untrained
eye. On the other hand, the visual impact of the nuclear catastrophe was
limited at best. The invisibility of radiation and the absence of immediate
casualties meant that much of the terror of ‘Fukushima’” — the global
shorthand for the latest major nuclear catastrophe — originated in the
realm of imagination.”
CINEMA JAPONÊS 207

a partir dos ataques nucleares contra o Japão, estaríamos


inaugurando uma nova era em que, “a qualquer momento,
temos o poder de transformar qualquer lugar do nosso
planeta, e até o nosso próprio planeta, em uma Hiroshima”
(ANDERS, 2013).6
Para o filósofo, a partir dali o fim se mostrava como
certo, pois, uma vez que a humanidade fora capaz de criar
armas tão potentes ao ponto de aniquilar-se a si própria,
instaurava-se o tempo do fim (ANDERS, 2013). Ele caracte-
riza esse tempo a partir de uma suspensão dos tempos, mais
precisamente pela constante espera de um fim do que exata-
mente pelo fim do mundo em si.
Um de seus principais argumentos é o de que a huma-
nidade demonstrou que não mais controla e nem mesmo
pode compreender as consequências daquilo que ela mesma
produz. Portanto, Hiroshima deveria ser vista como uma
“condição mundial” para que ela jamais se repita e para que
estejamos atentos, de modo a garantir que nada semelhante
ocorra pelas mãos e mentes dos homens. Em dado momento
do texto, Anders enfatiza que parte do perigo reside justamente
em não imaginarmos os efeitos de nossa produção, de forma
que resgatar o poder da imaginação se tornaria, mais do que
nunca, imprescindível. Na nona tese, o autor propõe:

Somos menores do que nós mesmos, incapazes de realizar


mentalmente as realidades que nós mesmos produzimos.
Portanto, podemos chamar a nós mesmos de “utopistas
invertidos”: enquanto os utopistas comuns são incapazes de
produzir de fato o que são capazes de imaginar, nós somos
incapazes de imaginar o que estamos de fato produzindo
(ANDERS, 2013).

O artista Eric Baudelaire (2018), em seu ensaio


“Potências do falso”, chama atenção para uma entrevista

6 No texto, Günther Anders refere-se sempre à catástrofe de Hiroshima


como metonímia para os dois ataques nucleares realizados contra as
cidades de Hiroshima e Nagasaki. Ao discutir as passagens do texto,
optei por manter a expressão usada pelo autor.
208 Drummond A. A.

concedida em 1965 pelo físico J. Robert Oppenheimer


— desenvolvedor do Projeto Manhattan —, na qual afir-
mava que a única clareza que tinha naquele projeto era a
de não ter claro para si em que a sua invenção resultaria.
Baudelaire (2018, p. 245) destaca que houve um encanta-
mento com a pesquisa nuclear que levou os criadores do
projeto “a ir além da capacidade humana imediata do resul-
tado de seus trabalhos”. Ele cita e comenta um trecho da
entrevista no qual Oppenheimer, como Anders, evidencia
a sua percepção de que ali se inaugurava um novo tempo,
marcado pela iminência do fim:

[...] o dr. Oppenheimer evocava o primeiro teste nuclear


no deserto de Alamogordo assim: “Sabíamos que o mundo
não mais seria o mesmo. Algumas pessoas riram, algumas
pessoas choraram, a maioria ficou em silêncio. Recordei-me
de uma passagem das escrituras hindus, o Bhagavad-Gita.
Vishnu está a tentar persuadir o Príncipe de que deve fazer
o seu dever, e para o impressionar assume a sua forma de
quatro braços e diz, ‘Eu tornei-me a Morte, o destruidor de
mundos’. Suponho que todos nós pensamos isso, de uma
maneira ou de outra” (BAUDELAIRE, 2018, p. 245).

Enquanto Anders se empenhava em resgatar a imagi-


nação e pensar nas consequências de nossas criações a partir
das bombas, Jean-Luc Nancy (2015) propõe uma reflexão
tendo por base a tripla catástrofe de 2011, apontando para a
equivalência das catástrofes a partir de ou após Fukushima.
Para o autor, o 3.11 seria um marco para a nossa sociedade
contemporânea, visto que a natureza tríplice da catástrofe
acabava por afrouxar as fronteiras entre desastres natu-
rais, nucleares, sociais, econômicos, ambientais etc. Numa
espécie de espelhamento da própria condição globalizada
de organização do mundo, onde todos os elementos estão
imbricados e se afetam mutuamente, para Nancy, o 3.11
dava o tom do que ocorreria após Fukushima: uma catástrofe
generalizada (NANCY, 2015, p. 7, tradução nossa).7

7 “Generalized catastrophe”.
CINEMA JAPONÊS 209

Mas o “após” de que estamos falando aqui decorre não de


uma sucessão, mas, pelo contrário, de uma ruptura, e menos
ainda de uma antecipação do que de um suspense, de um
estupor. É um “após” que significa: teria algum depois? Teria
algo que se siga a isto? Estamos ainda indo a algum lugar?
(NANCY, 2015, p. 15, tradução nossa).8

Esse estupor mencionado pelo autor estaria diretamente


ligado a essa espécie particular de alienação já sugerida por
Anders e Oppenheimer. Nancy (2015) reitera que a nossa
civilização já vem sendo concebida ao longo de séculos sem
decisões conscientes e sem deliberações, não somente por
uma indiferença generalizada, mas também pelo fato de
termos perdido a compreensão e o controle do que produ-
zimos e, consequentemente, do destino da humanidade.
Em contrapartida, o autor ressalta que, paradoxalmente,
por sua própria fatalidade, essa condição se torna previsível.
Ou seja, é possível que percebamos a iminência da catástrofe
a partir da sua dimensão de tragédia anunciada:

Nós devíamos saber, no entanto, que antecipação visionária


ou profética não existe. O que aparenta ser uma profecia
depois que o fato ocorre poderia, na verdade, ter sido visto
claramente no tempo em que o fato ocorreu. Não é uma
questão de pessimismo, mas de uma visão clara (NANCY,
2015, p. 19, tradução nossa).9

E se é a partir do conhecimento e da reflexão sobre o


passado e o presente que nos tornamos mais capazes de
conjecturar futuros, apropriando-nos dos ensinamentos dos
tempos, o prever seria, então, um empenho mais ligado a uma

8 “But the ‘after’ we are speaking of here stems on the contrary not from succes-
sion but from rupture, and less from anticipation than from suspense, even
stupor. It is an ‘after’ that means: Is there an after? Is there anything that
follows? Are we still headed somewhere? ”
9 “We should know, though, that visionary or prophetic anticipation does not
exist. What after the fact seems prophetic was in fact seen clearly at the
time. It is not a question of pessimism but of clear vision.”
210 Drummond A. A.

análise do antes e do agora do que a uma ideia de profecia


futurista, mesmo que à primeira vista isso não seja evidente.
Sem propor uma comparação entre as catástrofes, Nancy
pontua que, para além de Hiroshima, Nagasaki e Fukushima
serem cidades japonesas arrasadas pela tecnologia nuclear,
elas todas carregam em sua história episódios que revelam
ensinamentos que devemos urgentemente retomar. Ou seja,
olhando para o 3.11, pode-se pensar que há um traço da catás-
trofe que é de ordem histórica, construído ao longo do tempo e
que já poderia ser imaginado — e evitado — há tempos. Diante
disso, segundo o autor, deveríamos fazer outros amanhãs
possíveis e, para isso, imaginá-los a partir deste presente
que parece nos estar “escapando a caminho de um futuro
que desejamos e que, ao mesmo tempo, queremos ignorar”
(NANCY, 2015, p. 38, tradução nossa).10

RESGATE HISTÓRICO E PEDAGOGIA PELAS IMAGENS


Isao Hashimoto (1959-), artista audiovisual e curador, tomado
pelo temor após acompanhar pela televisão o atentado de
11 de setembro de 2001 às Torres Gêmeas, em Nova York,
e ao Pentágono, em Washington, DC — talvez o primeiro
acontecimento tão diversamente imagetizado que nos trouxe
essa ideia de visibilidade total —, decidiu criar uma série
composta por três trabalhos audiovisuais capazes de apro-
fundar o entendimento sobre testes nucleares perpetrados
ao redor do mundo. Para Hashimoto (2015), esse marco
que inaugura o século XXI trouxe de imediato a memória
da corrida armamentista nuclear que permeou a segunda
metade do século XX.
No artigo “Obra de arte como uma interface entre pessoas
e problemas” (“Artwork as the Interface between People and
Problems”), o artista declara ter percebido, à época do ataque

10 “[This present is one in which we are] escaping toward a future that we


desire and that we want to ignore at the same time.”
CINEMA JAPONÊS 211

aos Estados Unidos, a necessidade de trazer às gerações


mais novas a compreensão histórica de uma lógica global
que, segundo ele, frequentemente leva ao morticínio em
massa (HASHIMOTO, 2015). A repercussão imagética desse
atentado evidenciou o quão imprescindível é rever e discutir
temas que, à primeira vista, poderiam parecer menos perti-
nentes a sua época, mas que ainda influenciam as estraté-
gias de poderio e dominação do mundo atual. Essas ideias
caminham em total acordo com o que Anders (2013) propõe
sobre a importância da apropriação do conhecimento acerca
do que de fato estamos produzindo.
O primeiro trabalho desse tríptico, intitulado 1945-1998
(2003), demonstra um olhar aguçado sobre o desenrolar dos
testes atômicos ao redor do mundo e chama especial atenção
pela potência sintética, tanto audiovisual quanto histórica,
que abarca. Sobre um mapa-múndi, Hashimoto propõe uma
espécie de timelapse dos testes nucleares, ao inserir pontos
de luz coloridos e piscantes que, acompanhados de bipes
sonoros, simbolizam cada uma das explosões atômicas
realizadas por cada país ao longo de 43 anos, como indicado
pelo título da obra.
O vídeo se inicia com uma imagem em 2D do mapa dos
Estados Unidos e duas linhas perpendiculares que, como
coordenadas geográficas, se aproximam por meio de um
zoom-in digital da região do Novo México. Uma luz azul que
pisca sobre o local focado pela união das linhas — lembrando
uma mira típica dos videogames de guerra —, aliada a um
som grave e estrondoso que remete a uma explosão, marca
que ali ocorria a Experiência Trinity, o primeiro teste
nuclear realizado pelos próprios Estados Unidos em julho
de 1945. Dali, a mira segue para o território japonês, quando
a contagem do tempo mostra estarmos no mês oito de 1945,
e dois novos pontos azuis piscam, marcando, desta vez, não
apenas testes nucleares, mas as bombas atômicas lançadas
sobre a cidades de Hiroshima e Nagasaki em 6 e 9 de agosto,
respectivamente. Como num prólogo que chega ao fim,
212 Drummond A. A.

o plano do mapa se abre e vemos todo o território global.


A partir daí, o filme sistematiza todas as explosões atômicas
realizadas no período após Hiroshima e Nagasaki (Figura 1).

Figura 1. Isao Hashimoto, 1945-1998, 2003.

No canto superior direito da Figura 1, há dois números


arábicos que, ao longo do vídeo, correm como um cronô-
metro. O menor corresponde ao mês e o maior, ao ano.
Hashimoto estipulou a escala de um mês para cada segundo
de vídeo e, assim, a progressão dos testes é contada pela
edição em doze minutos e dois segundos.
No canto inferior direito, os numerais crescem, acumu-
lando a quantidade total de testes nucleares realizados ao
longo das quase cinco décadas, até atingir o número de 2053.
Espalhadas horizontalmente pelas bordas superior e infe-
rior, encontram-se as bandeiras dos países que efetuaram
as explosões. Junto às imagens, continuamos a ouvir bipes
sonoros ritmados a cada teste realizado, que lembram uma
bomba-relógio prestes a explodir. Quando um novo país
CINEMA JAPONÊS 213

entra na corrida nuclear, um bipe mais grave e duradouro


anuncia sua chegada.
Por alguns segundos, parece que alguma lição fora
aprendida após o bombardeamento em Nagasaki, já que
onze meses se passaram e nenhum teste nuclear ocorreu.
Mas logo eles retornam e — em escalada a partir de meados
da década de 1950 — atingem o ápice em 1962, época da Crise
dos Mísseis, um impasse entre Estados Unidos e União
Soviética sobre o armazenamento de mísseis balísticos
ocorrido em solo cubano e considerado um dos momentos
mais preocupantes da Guerra Fria. Dali em diante, apenas à
época da Queda do Muro de Berlim em 1989 e da dissolução
da União Soviética dois anos depois é que voltamos a ver
um arrefecimento significativo na frequência dos testes.
Resta aos dois minutos finais do vídeo uma espécie
de resumo da obra, condensando onde e quando cada país
realizou seus testes nucleares. Azul para os Estados Unidos,
vermelho para a União Soviética, rosa para a Inglaterra,
verde para a França, e assim por diante, com cada nação
sendo simbolizada por uma cor vibrante que pulsa a cada
explosão. É nesse resumo final que assimilamos com
precisa acuidade a quantidade agoniante de luzes piscantes
ao longo do tempo. Ao fim, todas essas nações aparecem em
um formato que simula o dos créditos de um filme comer-
cial, indicando que pertence a elas a autoria daquela “obra”.
A opção do artista por traçar num só vídeo todos esses
testes nucleares é o que nos traz a noção histórica de que
fala Nancy, e impele o espectador à reflexão do porquê de
tantos testes continuarem acontecendo, mesmo depois do
estrago incomensurável das bombas atômicas lançadas no
Japão. Hashimoto pondera:

Meus trabalhos artísticos podem não ser uma solução perfeita


para convencer o público da seriedade dos problemas nucle-
ares, mas eu sinceramente espero que eles sirvam como
orientação de alguma forma. Como artista, eu continuarei
criando obras que constroem uma interface entre pessoas
214 Drummond A. A.

desinformadas e as questões extremamente graves e atuais


do mundo (HASHIMOTO, 2015, p. 16, tradução nossa).11

Analisando geograficamente, a maioria dos testes foi reali-


zada pelos Estados Unidos, em um total de 1032, como mostra
a Figura 1. No trabalho de Hashimoto, o último teste represen-
tado foi realizado pelo Paquistão, em maio de 1998. Poucos anos
depois, veríamos, próximo à região, o início das guerras do
Afeganistão e do Iraque, intimamente ligadas ao atentado que
motivou esse vídeo. Portanto, para além da história dos testes
nucleares, a forma escolhida pelo artista para representar a
quantidade, a frequência e a autoria das explosões muito revelam
sobre os maiores conflitos políticos e bélicos recentes, com um
olhar aguçado lançado ao passado para melhor mirar o futuro.
Ao escolher ilustrar a História a partir de um mapa, por
meio de uma tela eletrônica e apostando na ausência de uma
língua falada ou escrita, Hashimoto se apropria de elementos
didáticos que garantem a acessibilidade por pessoas de várias
idades e países. Se seu ímpeto foi o de desvelar camadas
históricas da iminência da catástrofe nuclear, por vezes igno-
radas por uma geração que felizmente não precisou conviver
com o trauma das bombas, a linguagem escolhida corrobora
a intenção. Como o próprio artista relata:

Em 1945-1998 eu não usei nenhum som de explosão para


cada teste, mas usei bipes eletrônicos. Tentei ser o mais
“legal” e “neutro” possível para endereçar a gravidade do
problema, especialmente para as pessoas de gerações mais
jovens que estão bastante acostumadas com as cenas emocio-
nantes criadas pela computação gráfica (HASHIMOTO,
2015, p. 16, tradução nossa).12

11 “My artworks may not be the perfect solution to convey to audiences the
seriousness of nuclear problems, but I sincerely hope they are of some
guidance in some way. As an artist, I will continue to create artwork that
builds an interface between uninformed people and the extremely grave
and current issues of the world.”
12 “In 1945-1998 I did not use any blasting sound for the explosions of each
test, but instead used electronic beeps. I tried to be as ‘cool’ and ‘neutral’
CINEMA JAPONÊS 215

Ainda que sua trilogia tenha sido produzida antes da


catástrofe de 3.11, o artista se manteve vigilante sobre a
importância de abordar a questão nuclear. Pois como Nancy
(2015) alerta, ater-se às ameaças deste mundo não diz respeito
a possuir uma previsão visionária, mas sim a ter uma visão
clara sobre os acontecimentos enquanto eles se desenrolam
no curso da história. Ainda em seu artigo, Hashimoto conta
a respeito da importância que sua obra teve para o debate
público no pós-Fukushima:

Eles [os vídeos] foram introduzidos e exibidos em muitos


lugares ao redor do mundo e foram particularmente
influentes na Alemanha, onde o governo anunciou o fecha-
mento de todas as suas usinas nucleares até o ano de 2022
(HASHIMOTO, 2015, p. 14, tradução nossa).13

Está claro que, diferentemente do montante imagé-


tico que se arrolou sobre a catástrofe do 3.11, nem todos os
testes atômicos tiveram suas imagens divulgadas. Quando
pensamos em ataques nucleares, surgem à mente cenas
devastadoras, ainda que icônicas, como a do cogumelo de
fumaça, as séries de fotografias que evidenciam a destruição
extrema das cidades de Hiroshima e Nagasaki, ou, ainda,
aquelas agoniantes que registraram pessoas gravemente
feridas, deformadas e amputadas pelas consequências das
bombas e da radiação. São muitas as imagens que podem
ser vistas no museu de Hiroshima, em reportagens fotográ-
ficas, documentários e até mesmo em filmes de ficção, como
o notável Hiroshima, meu amor (Alain Resnais, 1959) — ainda
que quase nada se veja sobre os demais testes, mesmo que
os próprios executores os tenham filmado.

as possible to deliver the severity of the problem, especially to the people of


the younger generation who are so used to the exciting scenes created by
computer graphics.”
13 “[...] they were introduced and exhibited in many places around the world,
they were particularly influential in Germany, where the government
announced the shutdown of all its nuclear power plants by the year 2022.”
216 Drummond A. A.

Portanto, é valendo-se de uma organização temporal


que Hashimoto amarra e condensa parte de nossa História
recente, trazendo à luz um pouco do que paira quase inaudível
e invisível. De forma inventiva, o artista coloca sua pesquisa
e arte videográficas como instrumentos de formação imagé-
tica e política, pedagogicamente.

A RADIAÇÃO MATERIALIZADA NA PELÍCULA


Em 2014, três anos após a catástrofe de 3.11, Tomonari
Nishikawa (1969-), artista, curador e professor no departa-
mento de cinema da Universidade de Binghamton, decidiu
se deslocar até Fukushima, na época já parcialmente reabi-
tada, na intenção de buscar algum indício que comprovasse
a mensagem transmitida pelo governo e mídia japoneses de
que a região estava novamente segura para que a população
retornasse as suas moradias. Como apontado na introdução
do livro Fukushima e as artes: negociando desastres nucleares,

Enquanto, por várias semanas após o 3.11, os meios de comu-


nicação de massa suspendiam o jornalismo investigativo no
local, por exemplo dentro da zona de 50 km, não obstante,
eles promoviam o discurso do governo de que o risco da
radiação escapar dos reatores e, assim, o risco da irradiação
atingir a população de Fukushima e as áreas de Tōhoku e
Kantō eram “mínimos” (LISCUTIN, 2011, apud GEILHORN;
IWATA-WEICKGENANNT, 2015, p. 7, tradução nossa).14

Assim, a empreitada de Nishikawa ganhava uma


dimensão política. Ao enterrar aproximadamente 30 metros
de sobras de filme 35 mm, ele propôs um experimento artís-
tico e científico com as propriedades químicas da película.
O material virgem e em cores foi enterrado às margens de

14 “While for several weeks after 3.11, the mass media suspended investiga-
tive journalism on site, i.e. within the 50-km zone, they nonetheless promul-
gated the government’s line that the risk of radiation escaping from the
reactors and thus the risk of irradiation to the population of Fukushima
and the Tōhoku and Kantō areas were ‘minimal’.”
CINEMA JAPONÊS 217

uma estrada rural, a cerca de 25 km da usina nuclear de


Fukushima Daiichi, e deixado ali por aproximadamente seis
horas, da noite de 24 de junho de 2014 até o nascer do sol
do dia seguinte. Depois de revelado, o resultado estético da
longa exposição da película mostrou marcas de uma radioa-
tividade antes aparentemente invisível (Figura 2).

Figura 2.Tomonari Nishikawa, Sound of a Million Insects, Light of a Thousand Stars, 2014.

O resultado desse experimento é a obra Sound of a


Million Insects, Light of a Thousand Stars (2014). Nela,
os traços, manchas e arranhões que se movem frenetica-
mente no avançar dos fotogramas evidenciam as marcas da
ação do tempo no terreno contaminado pela radioatividade,
agora impregnada no material usado. A radiação sensibi-
lizou os grãos de nitrato de prata da película, composto que
quando ativado pela luz faz surgir em negativo as imagens
que vemos tanto em um filme fotográfico, quanto em um
filme cinematográfico.
Ali, mesmo com o material enterrado, na ausência de raios
luminosos no escuro de debaixo da terra, a radiação se apre-
sentou como em um raio X. O azul predominante no fundo da
imagem vem de uma propriedade química da emulsão de tungs-
tênio. No curtíssimo filme, com não mais que dois minutos de
218 Drummond A. A.

duração, o artista consegue demonstrar materialmente, por


meio de sua obra abstrata, a situação do solo da região.
Como o próprio Nishikawa (2012) declarou antes
mesmo da realização dessa obra, seu maior interesse estava
justamente em representações abstratas da imagem, espe-
cialmente de métodos que desvelassem a feitura da obra
com a edição feita na própria câmera, no momento da
filmagem, e revelassem algo sobre o estado do mundo. Para
ele, esse modo de trabalhar se assemelha ao ofício de um
pintor abstracionista que observa a vida. Nishikawa procura,
portanto, produzir um tempo e um espaço abstratos a partir
de um tempo e um espaço reais.
E se, como apontam Geilhorn e Iwata-Weickgenannt
(2015), de um lado os danos e destroços causados pelo
tsunami se mostraram de imediato extremamente reais,
mas, de outro, as consequências opacas e ainda impercep-
tíveis da radiação não cessam de se desenrolar, é aí que a
obra de Nishikawa nos instiga ainda mais. Isso porque nada
é tão intrigante quanto lidar com a abstração da radioativi-
dade invisível a partir da concretude capaz de revelar quimi-
camente os traços da radiação.
Pensando com Anders, é questionando se, enquanto
sociedade, temos de fato o conhecimento sobre os efeitos
daquilo que produzimos que olhamos para o trabalho de
Nishikawa. O experimento artístico-científico, ao eviden-
ciar o que até então parecia invisível, pode também comu-
nicar à população japonesa acerca dos riscos que ela mesma
corre. É justamente a partir dessa investigação obstinada
que a obra se mostra capaz de transpor as barreiras visuais
da catástrofe, aquelas que, como alerta Rollet (2011) —
à primeira vista —, entrincheiram a visão. Se o interesse
de Nishikawa é fazer com que o espectador se atente para
a percepção visual humana e para o aparato cinematográ-
fico, sua obra abstrata, ao fazer testes com as propriedades
físicas da matéria, enseja a consciência e a discussão dos
limites éticos de uma situação bastante real.
CINEMA JAPONÊS 219

Lucas Murari (2019), pesquisador e curador brasileiro


que tem se voltado a investigar a experimentação em vídeo
e cinematográfica, escreveu sobre essa obra em sua tese de
doutorado. Para o pesquisador:

O filme [...] pode ser entendido como manifesto antinuclear.


A estética abstracionista obtida pelo experimento enfatiza a
dimensão radioativa do desastre. Fukushima se tornou um
problema permanente (MURARI, 2019, p. 186).

As obras de Nishikawa, comissionadas para algumas


mostras de arte ao redor do mundo, já participaram de exposi-
ções em instituições renomadas como o MoMA e são frequente-
mente exibidas em diversos festivais de cinema como Berlinale,
Hong Kong International Film Festival, International Film
Festival Rotterdam, London Film Festival, New York Film
Festival, dentre tantos outros. Toda essa circulação de seu
trabalho de cunho experimental o incentivou a fundar o KLEX:
Kuala Lumpur Experimental Film, Video & Music Festival, um
importante festival dedicado à experimentação audiovisual.
Em Sound of a Million Insects, Light of a Thousand Stars,
Nishikawa demonstra, material e visualmente, aspectos
e possíveis consequências de uma catástrofe que sempre
pareceu invisível. Apesar do título da obra, a banda sonora, que
remete a um zumbido de insetos em sinfonia com o arranhar
de uma agulha num disco de vinil, não foi gravada na película,
mas inserida posteriormente a partir da memória que o artista
teve daquela noite em que aguardava as marcas da radiação se
fixarem na película enterrada. De acordo com sinopse do filme:

A noite estava linda com um céu estrelado, e numerosos


insetos de verão cantavam alto. A área já foi uma zona de
evacuação, mas agora as pessoas vivem lá após a remoção
do solo contaminado. Este filme foi exposto ao possível
remanescente dos materiais radioativos (NISHIKAWA,
2014, tradução nossa).15

15 “The night was beautiful with a starry sky, and numerous summer insects
were singing loud. The area was once an evacuation zone, but now people
220 Drummond A. A.

POR UM CINEMA DE UM MILHÃO DE CAMADAS

Takashi Makino (1978-) é um outro expoente artista em


plena produção no Japão que desenvolve sua obra inves-
tigando as imagens em movimento. Também a partir da
experimentação abstrata, visual e sonora, Makino propõe
pensar as relações entre vida e morte intimamente ligadas
às logicas neoliberais contemporâneas, abordando desde o
terrorismo até as catástrofes ambientais que poderiam ser
evitadas pelo homem.
No mesmo ano da catástrofe de 3.11, o artista estreou nos
festivais de cinema ao redor do mundo seu curta-metragem
Generator (2011). Com pouco mais de vinte minutos, o filme
é composto por inúmeras imagens filmadas em Tóquio e
arredores, região onde o artista residia à época. A obra, que
conta com extensa experimentação na captação, edição e
colorização de imagens audiovisuais, procurou conectar a
memória e a dor da perda das vidas pela tripla catástrofe,
oferecendo ao público propostas sensoriais como meios
para pensar o 3.11.
Generator se inicia com uma tela preta que, aos poucos,
dá lugar a um vermelho profundo, para então vagarosa-
mente retornar ao negro e assim seguir pelos primeiros
dois minutos de filme. O som construído em parceria com
o músico norte-americano radicado no Japão Jim O’Rourke
intensifica a sensação de estarmos dentro de uma artéria
pulsante. As cores que se alternam por meio de fades in e out e
a notável textura da imagem, provavelmente constituída pela
agitação dos grãos da película e ruídos digitais, remetem-nos
à vida inquieta de glóbulos vermelhos em movimento.
A imagem é subitamente acometida por uma brancura
que logo compreendemos ser um trecho de película velada,
que é o que ocorre quando uma luminosidade em excesso

live there after the removal of the contaminated soil. This film was exposed
to the possible remaining of the radioactive materials.”
CINEMA JAPONÊS 221

entra em contato com químicos sensíveis do filme e queima


a imagem. Dali se seguem alguns minutos de planos aéreos
registrados em áreas urbanas que são colocados em pers-
pectiva, como se estivessem no fundo da imagem. Em tons
acinzentados, pode-se perceber que a camada frontal da
imagem é formada por partículas mais claras do que as
do fundo. Essas partículas em movimento remetem a uma
chuva de cinzas que cai sobre a cidade (Figura 3).

Figura 3. Frame do filme Generator, 2011.

O que vemos mais uma vez se transforma, e a nova


imagem que surge tem um tom predominante marrom-
-avermelhado. Na camada mais nítida da imagem, assis-
timos por um tempo à espuma do mar quebrando-se
violentamente sobre uma pedra ou uma costa, que por
vezes também se assemelha à fumaça densa de explosões.
Não há como não pensar no tsunami atingindo a usina
nuclear de Fukushima Daiichi.
Na sequência de Generator, o artista ainda fez mais dois
filmes fortemente motivados pela vontade de continuar
pensando na catástrofe. Passado um ano do 3.11, mesmo
com a imensa quantidade de imagens que continuavam
222 Drummond A. A.

circulando, Makino notava que muitas pessoas ainda escon-


diam o que pensavam sobre a radiação (MAKINO, 2012,
apud SHANEEN, 2014). Além disso, o temor frente à forte
guinada à direita dada pelo governo japonês à época foi um
outro fator que impulsionou o artista a insistir no assunto e
criar 2012 (2012) e Memento stella (2018). Para ele:

A mídia no Japão é forçada a encobrir as consequências


do desastre de Fukushima, a poluição que aconteceu desde
então. O Japão está longe de ser uma democracia em pleno
funcionamento. A mídia japonesa é muito ruim, incluindo
sua TV (MEMENTO..., 2018, tradução nossa).16

Como numa colagem repleta de sobreposições de


imagens, de texturas e de cores, Generator gera uma esté-
tica complexa, marcada por uma miríade de sensações.
São percepções de alternância de grandeza e escala das
imagens que, por vezes, promovem um total desnortea-
mento, já que parecemos estar em queda livre ou entrando
em um túnel infinito apenas com o pulsar das várias camadas
sobrepostas pelo artista.
Em sua profissão anterior, como colorista de filmes
comerciais, sentado à ilha de pós-produção, Makino já havia
experimentado a manipulação de imagens. Mas é quando
ele começa a realizar seus projetos autorais que a sinfonia
cromática (MURARI, 2019, p. 44) de fato se intensifica.
Ele não só interfere na imagem já feita como a registra de
variadas formas, com a intenção de uni-las futuramente, e
ver com seus próprios olhos o que a nova proposição formal
é capaz de transmitir.
Makino capta suas imagens a partir de toda uma sorte
de suportes. São películas Super8, 16 mm e 35 mm, mistu-
radas a imagens em vídeo de diferentes resoluções. Ele faz

16 “Media in Japan are forced to cover up the aftermath of the Fukushima


disaster, the pollution that has happened since then. Japan is far from being a
fully functioning democracy. Japanese media is very bad, including its TV.”
CINEMA JAPONÊS 223

experimentos com variadas lentes e suas relações de


contraste e nitidez, além de apropriar-se dos grãos de prata
do filme e dos ruídos digitais das imagens dos vídeos para
trabalhá-los na pós-produção. São cenas muito concretas, de
cidades, da natureza e de pessoas filmadas no solo ou até por
helicópteros e drones.
Pesquisador das imagens, Makino busca encontrar
outros sentidos na múltipla exposição e em técnicas que
nos levam a transcender o material. Em seus trabalhos,
ele investiga a transparência imagética de nossos tempos
para melhor discutir o inimaginável. É a abstração ofere-
cendo espaço para a imaginação, ou, como o artista relata,
ele queria fazer filmes que tivessem várias direções e
mais de uma resposta, de modo que cada pessoa pudesse
ver vários filmes diferentes numa única tela (MAKINO,
2019). Por se incomodar com significados únicos e estan-
ques gerados pela maioria das imagens, tanto no cinema
comercial quanto nas imagens divulgadas pela mídia,
Makino complementa:

Como noticiários do Japão em tempos de guerra, filmes


com histórias ou uma estrutura definida lançam para uma
audiência, imagens com seus significados já intactos.
Ao invés de fazer filmes com minha própria estrutura
imposta, meu método é abandonar completamente a estru-
tura ou, em outras palavras, sobrepor imagens que antes
continham um significado até tornarem-se ininteligíveis.
Meu objetivo é que a imagem resultante seja como um
ser animado sem nome, com uma capacidade ilimitada de
significados, para que meus filmes se tornem gatilhos para
que o público se aventure em sua própria imaginação. Esse
desejo está incorporado no título de meu filme Generator,
de 2011 (MAKINO, 2020).

Makino (2018) relembra que, somente após ver um


documentário japonês sobre os jardins de musgos de Quioto
(conhecidos como Kyoto Moss) — onde um monge diz que as
pessoas têm habilidades para entender a beleza sem forma,
ou a beleza disforme —, ele compreendeu que “talvez o ‘nada’
224 Drummond A. A.

seja uma categoria importante no pensamento japonês. [...]


Pensei na relação entre meu trabalho e a cultura japonesa e
o budismo” (MAKINO, 2018, tradução nossa).17
Escrevendo sobre seu processo criativo, Makino afirma
que “esse estilo de trabalho é quase similar a um tricotar de
milhares de imagens elétricas” (MAKINO, 2019, tradução
nossa).18 Para a sua investigação, a memória é uma questão
crucial. Seguindo a ideia de que as imagens na nossa memória
não são tão nítidas e se fazem em camadas, por cenas que
se interpelam umas às outras, ele ensaia em seus filmes
um recurso à memória e à imaginação enquanto potência.
Trata-se do que ele mesmo denomina como “um cinema de
mil camadas” (MAKINO, 2019, tradução nossa).19

Estou pensando na imaginação em nosso cérebro: dizemos


que temos memória e imagens, mas não acredito que as
imagens que temos em nossa imaginação e em nosso
cérebro sejam tão claras, é algo muito, muito complicado.
[...] Eu faço muitas camadas, mas cada camada ainda sobre-
vive como uma memória, e quando assistimos à imagem
podemos selecionar como assisti-la de acordo com nossa
própria imaginação, nosso próprio relacionamento entre o
filme e nosso cérebro. É por isso que uso a técnica de sobre-
posição e imagens abstratas (MAKINO, 2020).

Se a imaginação parece estar ameaçada pelo excesso de


estímulos, Makino ao menos tenta voltar-se para o nada, lugar
propício à imaginação. Escolher lidar com esses estímulos a
partir da união, justaposição e imbricamento deles é promover,
por meio da arte, sensações mais complexas e menos
imediatas. Os trabalhos de Makino exigem tempo, requerem
a pausa por onde cada espectador torna-se apto a traçar o seu
próprio caminho no fluxo de suas memórias e pensamentos.

17 “Perhaps nothingness is kind of an important category in Japanese


thinking. [...] I thought about the relationship between my work and
Japanese culture, and Buddhism.”
18 “That work style was almost similar with knitting thousands of electric images.”
19 “One thousand layer cinema.”
CINEMA JAPONÊS 225

Quando a saturação de informações parece obscurecer


o nosso conhecimento acerca do fato, ao mesmo tempo que
grande parte do terror de 3.11 se originou no reino da imagi-
nação (GEILHORN; IWATA-WEICKGENANNT, 2013),
Makino se apropria desse paradoxo e o intensifica em seu
modo de trabalhar, jogando ainda mais luz sobre a catás-
trofe. Enquanto Hashimoto parte para um resgate histó-
rico, sistematizando pedagogicamente os testes nucleares
em sua obra na intenção de dar visibilidade à situação atual
da questão atômica, Nishikawa busca, por meio de seu
método laboratorial, transpor as barreiras físicas, óticas, que
impedem que a catástrofe seja completamente visível, mate-
rializando os vestígios ocultos de 3.11. Makino, por sua vez,
opta por adicionar ainda novos elementos que tornam mais
complexa a “opacidade constitutiva da catástrofe” (ROLLET,
2011), estimulando o sensível como método para instigar a
reflexão. Aqui, a imaginação é potência que pode, de fato,
sugerir perspectivas capazes de adiar o tempo do fim.

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CINEMA JAPONÊS 227

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TSUNAMI NO JAPÃO – Miyako City Hall [Nihon ni okeru tsunami


日本における津波]. [S. l.: s. n.], 24 out. 2013. 1 vídeo (14 min). Publicado pelo
canal Christian Sonic ♪. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=41VgOZb-9aY. Acesso em: 2 mar. 2023.

VERDÚ, Daniel. “Fukushima: vidas contaminadas”, uma reportagem


em realidade virtual. El País Brasil, São Paulo, 30 abr. 2016. El País
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WATCH a Massive Tsunami Engulf Entire Towns in Japan (2011). [S. l.:
s. n.], 11 mar. 2011. 1 vídeo (18 min). Publicado pelo canal CNN. Disponível
em: http:// https://www.youtube.com/watch?v=zxm050h0k2I

FILMOGRAFIA
1945-1998. Direção: Isao Hashimoto. Japão: [s. n.], 2003. (14 min).
SOUND of a Million Insects, Light of a Thousand Stars. Direção:
Tomonari Nishikawa. Japão: [s. n.], 2003. (2 min).

GENERATOR. Direção: Takashi Makino. Japão: [s. n.], 2003. (21 min).
228 Drummond A. A.

FONTES DAS FIGURAS


Figura 1
HASHIMOTO. Isao. 1945-1998. 2003. Fonte: HASHIMOTO, Isao.
Artwork as the Interface between People and Problems: The Future
of Nuclear Energy. Harvard College Review of Environment and
Society, Cambridge, MA, n. 2, 2015. p. 14-16. Disponível em: https://rael.
berkeley.edu/wp-content/uploads/2015/05/Harvard-College-Review-of-
Environment-and-Society_Spring_15_Final.pdf. Acesso em: 16 fev. 2022.

Figura 2
NISHIKAWA, Tomonari. Sound of a Million Insects, Light of a Thousand
Stars. 2014. Fonte: NISHIKAWA, Tomonari. (Postado por Jessica
Bardsley). An Interview with Tomonari Nishikawa by Tom McCormack.
[Entrevista cedida a] Tom McCormack. Conversation at the Edge:
Experimental Media Series, Chicago, 12 abr. 2012. Disponível em: https://
sites.saic.edu/cate/2012/05/11/an-interview-with-tomonari-nishikawa-
by-tom-mccormack/. Acesso em: 14 mar. 2022.

Figura 3
MAKINO, Takashi. Generator. Japão, 2011. DCP (19 min). Fonte:
Fotograma extraído do filme.
Tsuda C. E.

MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA


CONFIANÇA: REFLEXÕES ACERCA DO
DEVIR AMBIENTE_DEVIR PÓS-ANÍMICO
EM CRIAÇÕES ARTÍSTICAS

Dudu Tsuda (Carlos Eduardo Tsuda)


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp)

RESUMO
Neste ensaio, abordo as relações sócio-político-ambientais
relacionadas ao acidente nuclear de Fukushima, discutidas
nas performances Jantar e ILHA, integrantes da plata-
forma artística Medo e Confiança e da série A vida é uma
utopia. Busco elucidar as questões levantadas em ambas as
pesquisas artísticas, partindo de uma crítica à modernidade
concernente à tecnificação e objetificação sistemática da
vida. Apresento os conceitos de devir ambiente e devir pós-aní-
mico, transversais que atuam como formas de agenciamentos
poéticos e estéticos da vida pública e suas inúmeras implica-
ções sócio-político-ambientais na relação entre o homem e a
natureza, a sociedade e a espiritualidade, o corpo e a alma, e
a comunidade, a espiritualidade e a natureza. A partir dessa
base epistemológica, traço longitudinais entre o conceito —
ou filosofia — de pós-animismo ou animismo pós-moderno,
apontado pela socióloga japonesa Shoko Yoneyama; a noção
de animismo e as cosmologias indígenas praticadas por
autores como Ailton Krenak e Davi Kopenawa; as práticas
232 Tsuda C. E.

artísticas de Jaider Esbell e Denilson Baniwa; e o perspec-


tivismo cosmológico ameríndio identificado por Eduardo
Viveiros de Castro.
Palavras-chave: Pós-animismo. Performance. Performance
para espaço público. Devir ambiente. Devir pós-anímico.

ABSTRACT
In this essay, I approach the socio-political-environmental relations
about the Fukushima nuclear accident, discussed in the performances
Dinner and ISLAND, part of the artistic platform Medo e Confiança
and the series Life is an Utopia. I seek to elucidate the questions raised
in both artistic researches, starting from a critique of modernity
concerning the systematic technification and objectification of life.
I present the concepts of becoming environment and becoming
post-animic, transversals that act as forms of poetic and aesthetic
assemblages of the public life and their countless socio-political-envi-
ronmental implications in the relationship between man and nature,
society and spirituality, body and soul, and community, spirituality
and nature. From this epistemological basis, I trace longitudinal lines
between the concept — or philosophy — of post-animism or post-modern
animism, pointed out by the Japanese sociologist Shoko Yoneyama; the
notion of animism and the indigenous cosmologies practiced by authors
such as Ailton Krenak and Davi Kopenawa; the artistic practices of
Jaider Esbell and Denilson Baniwa; and the Amerindian cosmological
perspectivism identified by Eduardo Viveiros de Castro.
Keywords: Post-animism. Performance. Performance for public space.
Becoming environment. Becoming post-animic.

DO PENSAR

Examino aqui as relações sócio-político-culturais-ambientais


acerca do acidente nuclear de Fukushima discutidas nas
performances Jantar e ILHA, integrantes da plataforma
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 233

artística Medo e Confiança e da série A vida é uma utopia. Busco


elucidar as questões levantadas em ambas as pesquisas artís-
ticas, partindo de uma crítica à modernidade concernente à
tecnificação e objetificação sistemática da vida — processos
sócio-político-culturais que a tornam mero recurso a ser explo-
rado pelo capital.
Ensaio, assim, o conceito de devir ambiente, pers-
pectiva analítica que tem auxiliado na identificação de
aspectos comuns e transversais em meus trabalhos, e,
assim, na criação de uma leitura rizomática e descen-
tralizada dos diferentes tipos de processos criativos e
motivações artísticas. Centro minha argumentação em
torno de uma transversal muito presente em minhas
recentes criações e nas performances em questão, o devir
pós-anímico, um bloco de devires que avizinha tensiona-
mentos em relação ao entorno sócio-político-ambiental,
praticados poeticamente.
Traço, portanto, linhas longitudinais entre o conceito —
ou filosofia — de pós-animismo ou animismo pós-mo-
derno, apontado pela socióloga japonesa Shoko Yoneyama;
a noção de animismo e as cosmologias indígenas prati-
cadas por autores como Ailton Krenak e Davi Kopenawa;
as práticas artísticas de Jaider Esbell e Denilson Baniwa; e
o perspectivismo cosmológico ameríndio identificado por
Eduardo Viveiros de Castro. Pretendo identificar nessas
aproximações teóricas uma linha de fuga essencialmente
contracolonial e profundamente potente em sua capaci-
dade de transformar o modo como o mundo moderno lida
com o planeta. Realizo, portanto, uma análise comparada
dessas perspectivas, buscando singularidades nas formas
de pensar e entender o mundo que compõem — ou pode-
riam compor — essa longitudinal. Arrisco aproximações e
avizinhamentos no intuito de promover o encontro entre a
diferença e diferentes e, assim, produzir diferenciação.
234 Tsuda C. E.

DEVIR AMBIENTE_DEVIR PÓS-ANÍMICO

A formulação teórica do devir ambiente deriva do conceito


de devir em Deleuze e Guattari, um movimento de dessub-
jetivação, em que algo ou alguém deixa sua existência
estratificada e subjetivada, marcada por um tempo crono-
lógico, suas memórias pessoais e sua história, em relações
gestálticas bem definidas, para alcançar, assim, uma exis-
tência múltipla, indiscernível, de uma temporalidade outra,
não mensurável e espacializada, uma duração.1 Uma linha
que não tem ponto de origem e nem de chegada, apenas
uma transversal que os avizinha,2 não importando sua
distância. Nas palavras dos autores:

1 A noção de duração em Bergson nos ajuda a tangibilizar e a realizar


nossas primeiras aproximações aos conceitos de devir e devir ambiente.
Segundo o filósofo Peter Pel Palbert, em contraponto ao tempo espaciali-
zado, métrico, que pode ser entendido a partir de abstrações e pontos que
se sucedem numa linha, Bergson propõe uma forma de compreensão
do tempo não espacial, partindo da observação da maneira como se dá a
sucessão de pensamentos, emoções e sensações em nossa consciência.
Palbert ainda complementa que, se nos concentrarmos no nosso próprio
fluxo de consciência, vamos perceber que não experienciamos um pensa-
mento após o outro, ou após uma sensação ou uma emoção: experiencia-
mo-nos como um só fluxo contínuo, em que uma coisa está interpenetrada
pela outra, e, ao invés de se sucederem e substituírem sucessivamente,
cada novo pensamento, emoção ou sensação se agrega aos demais que
os antecederam. Em aula ministrada no Atelier Paulista sobre o conceito
de duração de Bergson, Palbert afirma ainda que “nessa continuidade
interna que eu sinto, as coisas que vem à mente, as sensações, esse fluxo,
há, ao mesmo tempo, uma variação de elementos, e uma continuidade”.
Um processo de adensamento do fluxo em curso, um escoamento, em que
temos, portanto, continuidade e variação. Duração, continua Palbert,
“é essa espessura, essa densidade, essa variação, essa multiplicidade,
esse fluxo, esse escoamento, mas também essa agregação”.
2 Em referência à noção de vizinhança desenvolvida por Deleuze e Guattari
em Mil platôs (2012b). Nas palavras dos autores: “A vizinhança é uma
noção ao mesmo tempo topológica e quântica, que marca a pertença a
uma mesma molécula, independentemente dos sujeitos considerados e
das formas determinadas.” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 6768).
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 235

Se o devir é um bloco (bloco-linha), é porque ele cons-


titui uma zona de vizinhança e de indiscernibilidade, um
no man’s land, uma relação não localizável arrastando
os dois pontos distantes ou contíguos, levando um para a
vizinhança do outro, — e a vizinhança-fronteira é tão indi-
ferente à contiguidade quanto à distância. O devir é um
movimento pelo qual a linha libera-se do ponto, e torna os
pontos indiscerníveis: rizoma, o oposto da arborescência,
livrar-se da arborescência. O devir é uma antimemória
(DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 96).

Operacionalmente, as transversais estabelecidas pelo


bloco-linha do devir ambiente aproximam sensações e intensi-
dades de elementos constitutivos da obra e das características
físicas e sensoriais aos aspectos sócio-político-culturais-am-
bientais do entorno. Ao mesmo tempo, se avizinham aos agen-
ciamentos que produziram essas desterritorializações,3 e a
outros agenciamentos no espaço através de reverberações.
Ao reverberar agenciamentos e intensidades evocadas, fazem
vizinhança também com sensações experienciadas pelos
espectadores, fazendo-os entrar em devir em relação ao seu
próprio entorno. Dissolvem, assim, o contorno dos indivíduos,
dos conceitos e das coisas, dessubjetivando-os em moléculas
disponíveis para formar outros corpos nômades, transitórios e
em constante movimento.

3 Em referência ao conceito de desterritorialização desenvolvido por


Deleuze e Guattari em Mil platôs (2012a, 2012b). Uma desterritoriali-
zação ocorre quando uma coisa ou alguém deixa de exercer sua enti-
dade molar e passa a existir enquanto multiplicidade molecular, para
se conectar com intensidades de outros pontos que se avizinham.
É preciso desterritorializar-se para entrar em devir. Nas palavras dos
autores: “As puras relações de velocidade e lentidão entre partículas,
tais como aparecem no plano de consistência, implicam movimentos
de desterritorialização, como os puros afectos implicam em empreen-
dimento de dessubjetivação. Mais ainda, o plano de consistência não
preexiste aos movimentos de desterritorialização que o desenvolvem,
às linhas de fuga que o traçam e o fazem subir à superfície, aos devires
que o compõem.” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 63) São operações
bastante complexas, que chegam a compor teoremas, de modo que
recomendamos a leitura dos dois volumes referenciados.
236 Tsuda C. E.

A especificidade de sua variante, o devir pós-anímico,


reside no exercício de alcançar outras formas de compre-
ensão do mundo a partir de outras cosmovisões, formas
de encantamento e perspectivas de relação com a natu-
reza. Opera no sentido de aproximar realidades diferentes
a partir de características que são comuns e recorrentes
entre elas. Neste sentido, trata-se de uma pesquisa viva,
que une prática artística e reflexão bibliográfica, e em
profunda sinergia com os movimentos de resistência dos
povos originários ameríndios e às críticas ao processo de
desencantamento do mundo weberiano4 (YONEYAMA,
2019), tendo como ponto de partida os processos de revisão
histórica contracoloniais.
Estabeleço um plano de composição que não faz corpo
com as políticas ambientalistas de desenvolvimento susten-
tável à medida que entendo que toda e qualquer forma de racio-
nalização da vida está mais próxima da noção de necropolítica
explicitada em Achille Mbembe (2018), do que da perspectiva
de “adiar o fim do mundo” de Krenak (2019). Parto do entendi-
mento de que a preservação da vida não deve ser fruto de um
desejo de exploração gradual dos seres vivos com o objetivo
de manutenção dessa exploração. Sobre esta questão, Krenak
(2019, p. 21) nos agracia com a seguinte passagem:

O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso


avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os econo-
mistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar;
é uma parte da nossa construção como coletivo que habita
um lugar específico, onde fomos gradualmente confinados
pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas
formas de organização (com toda essa pressão externa).

4 Para o sociólogo alemão Max Weber (1997), o gradativo processo de


racionalização da relação da humanidade com o mundo, ilustrado pelo
movimento de “eliminação da magia” do mundo (ou desencanto do
mundo: Entzauberung der Welt, ou secularização), é um dos aspectos
mais importantes para a consolidação da modernidade.
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 237

PÓS-MODERNIDADE E ESPIRITUALIDADE

Nessa direção, a socióloga japonesa Shoko Yoneyama, em seu


livro Animismo no Japão contemporâneo: vozes para o Antropoceno do
Japão pós-Fukushima (Animism in Contemporary Japan: Voices for
the Anthropocene from Post-Fukushima Japan), de 2019, tece uma
crítica profunda à modernidade a partir do viés da espirituali-
dade e da sua mediação cultural na relação entre humanidade e
natureza, identificando, nessa aproximação, uma importantís-
sima chave para a compreensão de aspectos específicos no que
se refere à capacidade do Japão de lidar com desastres contem-
porâneos. Ela defende, nesse sentido, que a existência de uma
relação mais profunda com a espiritualidade e com a natureza,
em pequenas comunidades rurais e pesqueiras atingidas pelo
tsunami causado pelo Grande Terremoto do Leste do Japão,
em 2011 — e pela consequente contaminação causada pelo inci-
dente na usina nuclear Daiichi, em Fukushima —, foi central
no processo de reconstrução e retomada desses locais.
Neste contexto, Yoneyama (2019) identifica nessas popu-
lações um sentimento de pertencimento a sua terra natal
e um senso comunitário muito profundos, partindo dessa
constatação para compreender melhor a forma como essa
noção de comum se constitui e como influencia o processo de
reconstrução. Assim, ela esmiúça a intrínseca relação entre
espiritualidade, respeito à natureza e senso comunitário iden-
tificada nesses agrupamentos sociais e nos aponta para uma
perspectiva ainda mais profunda advinda dessa tríade.
Por exemplo, uma relação que a autora diferencia de
algumas falsas impressões e simulacros concernentes à
cultura japonesa é a ideia da essência animista e, em contra-
ponto a esta constatação ilusória, apresenta-nos um tipo de
relação espiritual com a natureza, mediada por uma prática
religiosa comunitária presente nas pequenas aldeias, o que
ela denomina de folk shintoism (YONEYAMA, 2019).
Em contraponto ao xintoísmo praticado pelo governo
japonês, que ostenta santuários suntuosos nas principais
238 Tsuda C. E.

cidades do país, sua versão folk conta com pequenas cons-


truções com apenas uma imagem de animal, em geral uma
raposa. Segundo Yoneyama (2019), esses pequenos santuá-
rios, presentes nas regiões rurais do país, concentram em
torno de si outra forma de religiosidade, muito mais próxima
e presente no cotidiano das pessoas, sendo responsável por
um senso de comunidade e coletividade espiritual.
Essa mediação espiritual da vida comunitária e da
relação entre humanidade e natureza, portanto, corresponde
ao tecido social capaz de traçar os vetores de reconstrução da
comunidade e de manutenção dos elos afetivos interpessoais
e sociais ali praticados. A compreensão de que esse aspecto
anímico é um importante componente de cura e sobrevi-
vência da vida planetária é entendida por Yoneyama como
animismo pós-moderno ou pós-animismo, um conjunto de
experiências e sensações em torno dessa espiritualidade
comunitária, edificada a partir da consciência de todas as
mazelas do capitalismo moderno: pós-moderna, à medida
que “a experiência da modernidade é uma pré-condição para
sua existência” (YONEYAMA, 2019, p. 210, tradução nossa).5
Em outras palavras, o entendimento de que as pequenas
formas de vida, a simplicidade da vida rural, a valorização
dos pequenos momentos e encontros em comunidade, os
elos afetivos entre as pessoas e entre elas e seu ambiente
natural são formas de resistência, renovação e revalori-
zação da vida, e essa perspectiva tem em seu cerne uma
crítica contundente à secularização moderna. O animismo
contemporâneo, ou pós-animismo, surge, então, como um
contradiscurso ao projeto moderno arquitetado pelo Estado
japonês, numa “resposta a essas dimensões negativas da
modernidade” (YONEYAMA, 2019, p. 209, tradução nossa).6

5 “The experience of modernity is a precondition for its existence.”


6 “As a response to these negative dimensions of modernity.”
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 239

GUERRILHAS PÓS-ANÍMICAS

A noção de pós-animismo enquanto um conceito que permite


translocalidades — linhas de fuga dentre diferentes realidades
locais — posiciona-se como um contradiscurso à moderni-
dade ocidental a partir de uma proposição de reencantamento
do mundo, na tentativa de um resgate das relações não utilitá-
rias e objetivas da humanidade com a natureza.
Isso estabelece devires entre paradigmas ambientalistas e
formas de animismo em diferentes temporalidades e geogra-
fias, conduzindo uma transversal que avizinha pontos como o
não antropocentrismo, o paradigma da justiça ambiental, a deep
ecology (ecologia profunda) e o animismo e os paradigmas das
populações indígenas, ao mesmo tempo em que os desterri-
torializa. Dado esse quadro, é permitido o avizinhamento das
reflexões de pensadores como Krenak, Kopenawa, Baniwa e
Esbell, e a multiplicidade de realidades ameríndias em toda a
América Latina às comunidades locais no Japão. Essa trans-
versal aproxima e une, por exemplo, a luta dos Krenak pela
recuperação e revitalização do rio Verde (Watu) — profunda-
mente atingido pela lama poluente do desastre da barragem de
Mariana — à resistência e resiliência das populações pesqueiras
e dos pequenos agricultores da região de Fukushima, no Japão.
Inúmeras são as guerrilhas pós-anímicas de vida e
espírito em todo o planeta que lutam pelo simples direito de
existência. Estamos testemunhando um processo perverso
e veloz de apagamento das culturas originárias da América
Latina e presenciando a união dos povos originários brasi-
leiros em torno da não-aprovação do marco temporal.
Os artistas Baniwa7 (2021) e Esbell8 (2020) denunciam em
suas obras o processo de colonização em franca expansão

7 Em carta pública, o artista indígena Denilson Baniwa (2021) comenta


a trágica morte do artista indígena Jaider Esbell, relacionando-a com o
processo de colonização.
8 Em texto publicado em seu blog, o artista indígena Jaider Esbell (2020)
comenta sua pesquisa sobre autodecolonização.
240 Tsuda C. E.

nas reservas indígenas, apontando para o desequilíbrio


espiritual profundo causado por essa violência. Kopenawa
e Albert (2021) nos alertam sobre a iminência da queda do
céu, situação em que o planeta passará por uma profunda
transformação, comprometendo a existência das formas
de vida que conhecemos. Essa luta é hoje, é sempre; são
máquinas de guerra combatendo as formas moleculares
de opressão de Estado. Para citar Krenak (2020), “a coloni-
zação nunca acabou”.

Figura 1. Jaider Esbell. Era uma vez Amazônia. Cada um de nós destrói a Natureza,
o Futuro, na medida da construção de nosso Presente, na nossa
fardofelicidade pseudomerecida..., 2016.

COLONIALIDADE: DIFERENÇA COMO PONTO DE PARTIDA


A discussão em torno da noção de colonialidade em Ailton
Krenak (2020) aponta para uma direção confluente à argu-
mentação de Yoneyama, apesar da imensa distância entre
as realidades apresentadas. Comecemos, assim, por estabe-
lecer as diferenças.
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 241

A análise crítica de Yoneyama (2019) parte do pressu-


posto de que a sociedade japonesa é moderna, que passou
pelas etapas de industrialização e pela consolidação de
estruturas sócio-político-econômico-culturais, atingindo
altos índices de desenvolvimento humano e independência
e autonomia de seu sistema financeiro e produtivo. Assim,
ela resgata o tema da espiritualidade para o entendimento
de algumas questões não somente incompreensíveis pelas
lentes da modernidade, mas contraditórias à noção de um
Japão moderno. Krenak fala a partir das vivências e experi-
ências comunitárias de seu povo e de como essas formas de
ver o mundo podem, e poderiam, traçar outros devires para
o planeta, tendo como pano de fundo um Brasil ainda sócio-
-econômico-político-culturalmente dependente das potên-
cias europeias e dos Estados Unidos, e profundamente cego
a respeito de suas riquezas culturais e de toda a potencia-
lidade praticada cotidianamente por suas populações origi-
nárias. Krenak (2020) entende que não estamos vivendo um
período pós-colonial, uma vez que o processo de colonização
nunca deixou de existir, mas que o experienciamos todos os
dias, molecularmente, em diferentes níveis de intensidade.
Em suas palavras:

Nós costumávamos debater a colonização numa perspectiva


pós-colonial. A colonização é, é aqui e agora. Pensar que nós
estamos discutindo as práticas coloniais como alguma coisa
pretérita, que já foi e agora nós só estamos limpando, é uma
brincadeira. A colonização, assim como dizia nosso querido
mestre sobre o racismo, o professor Kabenguele Munanga:
que o racismo se oculta na epiderme, está debaixo da pele
aparente. A colonialidade se despista de uma maneira tão
incrível que parece que ela já se foi. Assim como o racismo,
a reprodução da prática colonial do vírus colonialista é resis-
tente e está presente em tudo, no nosso cotidiano, na sala de
aula, em qualquer relação (KRENAK, 2020).

Nesse ponto, é possível estabelecer algum tipo de apro-


ximação entre o pós-animismo identificado por Yoneyama
e as perspectivas anímicas apontadas por Krenak, visto
242 Tsuda C. E.

que partem de lugares tão distantes e antagônicos, como a


relação entre colonizador e colonizado. Arrisco uma trans-
versal que considera, antes de tudo, a diferença como ponto
de partida para qualquer forma de avizinhamento: aponta
para a existência de formas distintas de organização sócio-
-político-culturais e espirituais, que superam as contradições
da modernidade, atuando nas extremidades do capitalismo e
do Estado e, portanto, estabelecendo linhas de fuga que atra-
vessam a realidade estratificante estatal, e a opressão mole-
cular identificada por Krenak a partir da noção de colonialidade.
Podem-se compreender, assim, aspectos longitudinais
entre as formas de opressão do capitalismo e do Estado, personi-
ficadas no acidente nuclear da usina Daiichi em Fukushima —
e suas consequências extremas às comunidades locais e a
toda a atividade pesqueira do leste do Japão —, discutido por
Yoneyama (2019); e a catástrofe da barragem de Mariana — e a
consequente poluição por dejetos metálicos de toda a extensão
do rio Verde, ameaçando a diversidade da vida e das formas de
viver em torno de suas águas —, denunciada veementemente
pelos Krenak. Não obstante, quando Ailton Krenak (2019, p. 21)
diz “onde fomos gradualmente confinados pelo governo para
podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização”
com relação ao processo de criação das reservas indígenas,
fica evidente essa sensação de se sentir capturado, abduzido
por uma força maior, que pode simplesmente lhe transformar
num outro não-gente, o poder abdutor do Jaguar-Estado9 de que

9 Viveiros de Castro (2012, p. 904) afirma que “o verdadeiro equiva-


lente da ‘categoria indígena do sobrenatural’ não são nossas expe-
riências extraordinárias ou paranormais (abduções por alienígenas,
percepção extrassensorial, mediunidade, premonição), mas sim a
experiência quotidiana, totalmente aterrorizante em sua normali-
dade, de existir sob um Estado”. Equivale, portanto, o poder abdutor
dos espíritos malignos da floresta à máquina abstrata estatal, que
pode ser exemplificada pelo “famoso poster do Tio Sam apontando o
dedo para fora do cartaz, com os olhos cravados em quem quer que
deixe seu olhar ser capturado pelo dele, parece-me o perfeito ícone
do Estado: ‘Quero você!’” (CASTRO, 2012, p. 904). E ele continua:
“um índio da Amazônia saberia imediatamente do que esse espírito
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 243

nos fala Viveiros de Castro (2012) — não que o estabelecimento


e a preservação das reservas indígenas seja algo negativo
em si, muito pelo contrário. Dada a profundidade da cicatriz
colonial no Brasil — que ainda segue sangrando, por sinal —,
não temos como garantir a existência dos povos originários
sem a manutenção dessas reservas. Estou atentando para o fato
de que essa situação de se ver confinado num lugar específico,
pré-determinado por um ser mais forte — o Estado brasileiro,
no caso —, pode ser entendida como uma espécie de medida
compensatória pela perda de um território muito maior,
e não só no que se refere à espacialidade geográfica: como já
discutido anteriormente, qualquer fatia de território subtraída
representa a perda de entes, seres místicos e lugares sagrados
insubstituíveis. Pior ainda, delimita-se uma área para o exer-
cício de uma cultura, que sequer está totalmente protegida para
a prática de uma cosmologia que entende a natureza de uma
maneira muito mais profunda. O caso do rio Verde, representa
algo severamente mais grave que simplesmente a privação da
pesca e do uso de suas águas; o Estado abduziu Watu e todos
os devires animais e xamânicos em torno de sua pessoalidade.
Há, portanto, uma certa tendência em se buscar um
denominador comum entre as partes conflitantes, o que
é sempre estabelecido pela parte mais forte, o capital.
Essa relação extremamente desigual é sempre mediada
pelo Estado, que age como seu legitimador e raptor do eu
das populações afetadas. A responsabilização pelas vidas
perdidas e pelos imaginários destruídos nunca é de fato
consumada, pois a negociação entre afetados e opressores
não ultrapassa a dimensão de commodity. A vida é uma
mera commodity, um custo, um recurso, um problema.
Talvez essa faceta do devir pós-anímico seja a mais contun-
dente em relação à modernidade: não há instância pacífica
na relação entre capitalismo e natureza.

maligno está falando; e fingindo não escutar, olharia para o outro


lado” (CASTRO, 2012, p. 904).
244 Tsuda C. E.

DO PROCESSO CRIATIVO

Os estudos em torno desse bloco de devires coincidem com


o nascimento da série A vida é uma utopia,10 que também tem
em seu cerne o questionamento das práticas neoliberais de
desvalorização e desrespeito à vida em favor de um enalte-
cimento fundamentalista e doentio do mercado. Eles advêm
das pesquisas artísticas concernentes às relações de medo
e confiança em torno da contaminação radioativa das águas
costeiras e de alimentos no Japão, desenvolvidas na plata-
forma artística Medo e Confiança.11 Avizinha-se, portanto,
uma diversidade de práticas e experimentações artísticas
entre a performance, a arte sonora, a música experimental
e a instalação, com ou sem participação pública, no espaço
público ou não, que tangenciam questões sócio-político-am-
bientais em suas operações poéticas e buscam despertar um
olhar crítico com relação aos temas tratados a partir da expe-
riência sensível.
Ao longo do desenvolvimento dos trabalhos da série,
ficou mais evidente a continuidade e a contiguidade dos
processos criativos desenvolvidos em relação às pesquisas
artísticas da plataforma Medo e Confiança. Pude compre-
ender aspectos comuns entre as questões sócio-político-am-
bientais do Brasil discutidas pelos trabalhos da série, com o

10 Série de trabalhos que problematiza a crescente desvalorização da vida


frente ao mercado financeiro, manifestada nas recentes catástrofes
ambientais e no desmonte sistemático dos direitos sociais e humanos
no país. A partir de proposições de contraposição entre o contundente
e o contemplativo na série, o artista explora o termo cultural japonês
ma enquanto uma abertura ao ambiente, a tudo que nos entorna e não
controlamos, propondo um olhar crítico ao sistema a partir de seu
vislumbramento resiliente.
11 Pesquisa artística participativa que propõe uma reflexão sobre as rela-
ções dicotômicas de medo e confiança em torno de questões sócio-
-político-culturais-ambientais. Ela foi desenvolvida em programas
de residência artística realizados entre 2014 e 2016 (Tokyo Wonder
Site, em 2014; Paço das Artes, em São Paulo, em 2015; e Universidade
Nacional da Colombia, em Bogotá, em 2016).
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 245

tema da contaminação radioativa no Japão pós-Fukushima


debatida na plataforma. Essa convergência resultou na
elaboração da performance para espaço público ILHA em
2021, que problematiza a questão da contaminação radioa-
tiva das águas costeiras do Japão em decorrência do acidente
nuclear da usina Daiichi em Fukushima, na ocasião do
Grande Terremoto do Leste do Japão, em 2011. Na ação, oito
pessoas portando mochilas de couro infanto-juvenis japo-
nesas formavam um círculo em um local pré-determinado
e, juntas, circundavam o espaço, ressoando o som do mar.
O som do mar usado nesse projeto foi gravado nas proxi-
midades da cidade de Nagoya, local da maior concentração
de usinas nucleares no país. Neste sentido, a contradição
existente na relação dos japoneses com suas águas marí-
timas é tensionada, e isso nos traz uma importante reflexão
sobre os recentes desastres ambientais no Brasil, sobretudo
as manchas de óleo que atingiram o litoral nordestino e os
rompimentos das barragens de Mariana e Brumadinho.
Antes de ILHA, identifiquei na performance Jantar a
convergência de pesquisas artísticas. Esta foi originalmente
concebida dentro da plataforma de ações artísticas Medo e
Confiança; passados alguns anos, entendi que se tratava de
um trabalho entre duas pesquisas distintas, porém contí-
guas — uma em continuação à outra. Baseada na conflituosa
relação entre medo e confiança no tema da contaminação
radioativa de alimentos agrícolas na região de Fukushima,
Jantar confronta nossos medos e preconceitos num lugar
pouco visitado por essas apreensões, na intimidade de uma
refeição. Sua relação direta com o tema da contaminação
levantou outras questões relativas à vida e às comunidades
locais atingidas, que transbordavam os temas tratados
na plataforma. Na realidade, a performance apontava para
outra pesquisa mais centrada na complexidade em torno da
relação entre a humanidade e a natureza, e de como essa
relação se dá do ponto vista da coletividade, da comunidade
e da espiritualidade.
246 Tsuda C. E.

A aproximação entre vida e arte se daria por outro


viés, de modo que a própria performance passa a ter outras
camadas de leituras críticas em relação ao tema, como as
questões acerca da destruição sistêmica dos biomas plane-
tários e da diversidade cultural. Não obstante, a performance
começa a incorporar outros elementos em tensionamento
com a realidade à medida que os anos avançaram desde sua
concepção em 2014.
A existência de ambos os trabalhos é central nesta
pesquisa, pois suas abordagens poéticas e suas motiva-
ções artísticas evidenciaram a transversal que aproxima
realidades distantes, como a dos povos ameríndios brasi-
leiros e a das comunidades das regiões afetadas pelas
ondas de contaminação causadas pelo acidente nuclear
de Fukushima, no Japão. Avizinham-se, assim, práticas de
espiritualidade comunitária e em relação harmoniosa com
a natureza de populações de regiões agrícolas e pesqueiras
no Japão e dos povos originários brasileiros. Apresentarei
agora um recorrido histórico e afetivo acerca das moti-
vações artísticas e pessoais que me levaram a conceber
esses trabalhos, eixo central na discussão em torno do
tema desta publicação.

YUJI, O FAZENDEIRO
Conheci Yuji em 2013, quando estive em Tóquio na resi-
dência artística Tokyo Wonder Site, atual Tokyo Arts and
Space (TOKAS). Ele tinha uma tenda de arroz na feirinha
de orgânicos que acontecia aos sábados na praça em frente
ao edifício da residência. Nosso primeiro encontro foi
marcado por uma profunda e complexa relação entre medo e
confiança, tão interessante por sua complexidade e profundi-
dade, que daria origem a uma plataforma de ações artísticas
meses depois. Fui atraído a sua tenda por seus pacotes de
arroz orgânico e, desse interesse banal, surgiu uma conversa
muito especial sobre a forma como ele vivia em sua fazenda
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 247

e cultivava alimentos. Vi-me de alguma forma em seu coti-


diano através da vida dos meus avós maternos, que viviam
em um sítio de produção de caqui, broto de bambu gigante e
ameixa vermelha.
Ele me mostrou fotografias, e aquilo foi se adensando —
construímos um mundo ali. Passados uns trinta minutos,
tínhamos a nítida sensação de que nos conhecíamos de
outros carnavais e de que, na realidade, estávamos nos reen-
contrando. Cada imagem que ele me mostrava despertava
alguma cena da minha infância no sítio dos meus avós, afeta-
va-me num lugar muito familiar, muito próximo. Um exer-
cício sensorial aiônico, que nos levou para uma maravilhosa
viagem para dentro de nós mesmos.

Figura 2. Dudu Tsuda. Yuji Ishizuka em sua barraca de produtos orgânicos na


feira de orgânicos em Tóquio, em frente ao prédio da ONU e da residência
artística Tokyo Wonder Site, 2013.
248 Tsuda C. E.

Não fosse minha última pergunta antes de me dirigir


ao pagamento, essa experiência de confiança se teria conso-
lidado. No momento em que fui pagar, perguntei onde era
sua fazenda. Fiquei muito surpreso quando ele mencionou
a palavra Fukushima. Muito sem jeito e sem conseguir
esconder o medo e o constrangimento, inventei uma
desculpa esfarrapada, não comprei o arroz e voltei para casa
com uma sensação terrível, sentindo-me a pior das pessoas.
Aquela mistura de vergonha e culpa me fez buscar mais
informações acerca da contaminação radioativa na região
e seus reais efeitos sobre os seres vivos. Um colega de resi-
dência, o fotógrafo japonês Yoi Kawakubo, estava realizando
um trabalho que consistia em deixar amostras de papel foto-
gráfico enterradas na areia da praia de Okuma, em Fukushima,
epicentro do vazamento radioativo da usina nuclear Daiichi.
Ele fazia amostragens de tempo diferentes (uma semana,
três semanas, um mês, três meses) para entender os efeitos
da radiação no processo químico fotográfico (esse interesse
resultou na série fotográfica If the Radiance of a Thousand Suns
Were to Burst into the Skies at Once, em 2014). Dado meu inte-
resse, Kawakubo convidou-me para participar de uma de suas
visitas à região e orientou-me a assistir a uma palestra sobre
riscos de contaminação e normas de segurança que ele minis-
traria naquela semana.

FUKUSHIMA
Naquela interessantíssima apresentação, aprendi que, quando
você passa doze horas num avião — tempo médio de voo entre
o Brasil e alguns países da Europa, por exemplo —, você recebe
radiação espacial equivalente a um período de quatro horas na
área onde ocorreu o acidente nuclear. O problema da contami-
nação não possui muita ligação com a exposição à radiação
emitida, mas com a ingestão, inalação e/ou contato de alguma
mucosa com partículas alfa e beta, fragmentos de material
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 249

radioativo que facilmente se acoplam a partículas suspensas no


ar e/ou na água. Uma vez ingeridas, inaladas ou em contato com
mucosas, elas podem ficar alojadas no corpo irradiando raios
gama, a radiação propriamente dita. Ou seja, para que a experi-
ência na área contaminada seja segura, deve-se ficar menos de
quatro horas no local, sempre protegido por máscaras e roupas
adequadas que evitem contato do ar e da água com olhos, boca,
nariz e pele. No momento em que Kawakubo mostrou os equi-
pamentos de proteção individual (EPIs), todos na sala que não
eram japoneses deram risadas nervosas: tratava-se de roupas
de bidim, máscaras e luvas de látex como as que se usam em
salas cirúrgicas, galochas de borracha e óculos de natação; e um
contador Geigger, partilhado entre cada dois excursionistas.

Figura 3. Yoi Kuwakubo. If the Radiance of a


Thousand Suns Were to Burst into the Skies at Once, 2014.

Alguns aspirantes europeus a participantes da excursão


ficaram mais tranquilos após o primeiro momento de euforia
tensa. Nós, um grupo de quatro latino-americanos, ficamos
visivelmente mais afetados pelo medo da radiação e seguimos
assim naquela semana. Esse medo e essas diferenças de
250 Tsuda C. E.

reação aos riscos de contaminação por radiação fizeram-me


questionar algo de que já suspeitava, mas que ainda não
havia percebido e muito menos formulado algum raciocínio
a respeito: de que existem perigos que são intrinsecamente
vinculados a um território, de modo que seus habitantes são
obrigados a negociar com seu medo.
Os japoneses sofreram os dois únicos ataques nucleares
do planeta e, portanto, foram os únicos que conheceram de
perto os horrores da contaminação radioativa e seus efeitos
maléficos a curto, médio e longo prazo. Adotaram o uso de
energia nuclear nos anos 1960 como uma forma de conquistar
maior independência energética e, desde então, foram aumen-
tando gradativamente a quantidade de reatores. Apesar de seu
território estar localizado sobre fissuras de placas tectônicas
que compõem o Círculo de Fogo do Pacífico, mantiveram
investimentos constantes em usinas até o acidente na usina
Daiichi em Fukushima; ou seja, conviveram e convivem com
essa realidade que envolve traumas e cicatrizes profundas,
inúmeros riscos de terremotos e maremotos e, consequen-
temente, acidentes nucleares em decorrência desses fenô-
menos. Viver no Japão implica, certamente, a aceitação de
todos esses riscos e a conformação de que esses perigos fazem
parte da vida. As noções de pertencimento e comunidade são
muito fortes entre os japoneses, o que explica os motivos de o
governo e as populações locais serem tão enérgicos e solidá-
rios na reconstrução após a catástrofe.

MAPA E TERRITÓRIO
A situação dicotômica entre medo e confiança atraiu-me cada
vez mais para o forte componente cultural na forma como
as pessoas lidam com seus medos, sobretudo com relação
às questões vinculadas ao território. Isso direcionou meu
olhar para outras facetas do problema: a reação das pessoas
aos produtos advindos da região e a relação intrínseca entre
medo e informação.
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 251

O que me deixou bastante perplexo na época foi o fato de


que ninguém conseguia precisar a real extensão geográfica da
contaminação radioativa. A apreensão e o medo das pessoas
estavam muito mais associados ao nome Fukushima do que
às informações cientificamente comprovadas, o que acarre-
tava outro problema: o preconceito e a discriminação sobre os
produtores agrícolas da região e a alguns tipos de pescados.
A dicotomia entre mapa, enquanto representação
do espaço, e território, enquanto espaço experienciado,
ficou ainda mais evidente na forma como a imprensa e os
próprios japoneses lidavam com a situação. O assunto se
tornou uma espécie de tabu, e conversar sobre ou lidar com
algumas questões técnicas concernentes à contaminação
de alimentos em público passou a ser visto como um ato
ofensivo e discriminatório, a ponto de muitos produtos não
conterem mais informações de procedência. O medo das
informações que aferíamos no mapa falava mais alto do que
a experiência e a vivência no território.
Mapa enquanto plano de organização, a realidade a
partir de distâncias e obstáculos, é espacializado cartesia-
namente sob um tempo cronológico. Estado. Poder central.
Território enquanto plano de composição, múltiplas reali-
dades, devir, temporalidade duracional, que entrecruza
memórias, sensações, sentimentos e encontros num mesmo
fluxo. Comunidade. Local.

MAPA DO MEDO
Essas constatações aguçaram minha percepção para um
tipo de leitura do espaço que passou a considerar a comple-
xidade dessas relações, deixando-me intrigando a traduzir
essas contraposições entre medo e confiança e mapa e terri-
tório na nossa realidade brasileira. Dessa cisma, nasceu a
plataforma de ações artísticas Medo e Confiança, desenvol-
vida durante o período de residência artística no Paço das
Artes de São Paulo, entre dezembro de 2014 e março de 2015.
252 Tsuda C. E.

Ao trazer a plataforma para São Paulo, entendi que o


perigo que gera esse tipo de fricção entre a representação
do espaço e os sentimentos que essa representação suscita,
no Brasil, está relacionado à violência urbana. Enfrentamos
e negociamos com essa ameaça cotidiana para podermos
viver nas capitais brasileiras, mesmo sabendo dos altís-
simos índices de ocorrências. Nesse sentido, também
criamos zonas do medo, em que a informação do mapa —
da mesma maneira como em Fukushima — prevalece sobre
a experiência do território, como, por exemplo, a região da
Cracolância, nome que denota pejorativamente a vocação
social atribuída a esse espaço. É exatamente nessa fissura
que edifico as operações poéticas das performances Jantar
e ILHA, ou seja, nas áreas de intersecção dicotômicas —
porém interpenetradas — das realidades construídas em
mapas, em contraposição e justaposição às experiências
dessas realidades no território.

TERRITÓRIOS DO AFETO
Em Jantar, exercito o território do afeto ao propor um encontro
informal com convidados para discutir relações de medo e
confiança acerca da questão da contaminação de alimentos.
Ao servir pratos japoneses com pescados do litoral nordes-
tino, legumes e verduras não orgânicos e arroz proveniente
na região de Fukushima, busco provocar discussões e refle-
xões sócio-político-ambientais em relação ao tema da conta-
minação dos alimentos e confrontar os participantes com
seus próprios medos, preconceitos e atos discriminatórios.
Nesse sentido, a ação questiona discursos e mecanismos de
construção de verdades, ao mesmo tempo em que estabelece
elos de confiança na comunhão em torno do alimento.
Para sua realização, produzo um jantar com pratos
típicos japoneses, utilizando verduras, legumes, peixes
frescos e arroz cateto branco especial para culinária japo-
nesa. Organizo a refeição de modo a guardar o arroz para
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 253

o prato principal. Início o serviço servindo sashimi fresco


cortado na hora e algumas conservas. Ofereço vinho branco,
saquê, água e chá; na sequência, sirvo verduras e legumes
salteados em chapa elétrica. Enquanto isso, compartilho
informalmente minhas experiências no Japão, contando
sobre minha relação de amizade com Yuji e introduzindo o
tema da contaminação radioativa.

Figura 4. Helena Yoshioka. Jantar: A vida é uma utopia, 2015.

Faço com que o assunto não se revele de imediato. Cativo


a curiosidade dos convidados em relação ao Yuji e sua fazenda
num primeiro momento, para depois problematizar o estigma
da contaminação radioativa sofrido pelos produtores da região
de Fukushima. Mais à frente, conto sobre como me senti
culpado pelo episódio de desconfiança e medo e compartilho
minhas experiências e conclusões posteriores concernentes
à radiação. Em linhas gerais, conto como a minha história de
amizade com Yuji mudou a forma como eu me relacionava com
meu medo da contaminação radioativa, acentuando algumas
curvas narrativas à medida que a conversa vai seguindo.
254 Tsuda C. E.

No momento de servir o arroz, eu aponto para um pacote


de arroz branco que Yuji me deu de presente, e que tenho
guardado até hoje. Conto que fui presenteado com esse pacote
e com um punhado de legumes e verduras cultivados em sua
horta; que nesse dia decidi que deveria comer as oferendas por
respeito, por confiança, por amor.12 Nesse instante, ofereço o
kare raisu (prato típico japonês feito de legumes, verduras e
carnes cozidos em molho de curry, servido com arroz branco),
perguntando quem toparia comer o arroz do Yuji. Recebo as
mais distintas reações, em geral risadas para aliviar a tensão,
seguidas de uma discussão acalorada. Os convidados tendem
a aceitar a refeição; em seis realizações, apenas duas pessoas
se recusaram a comer. O território da confiança, dos olhos
nos olhos, do abraço, do acolhimento, tem prevalecido nas
performances; e o debate em torno do mapa do medo tem se
tornado cada vez mais complexo.

CIRCULARIDADES
Em ILHA, apresento uma performance para espaço público
que tensiona a contradição entre mapa e território a partir da
proposição de uma experiência coletiva concernente a nossa
espiritualidade e nossa relação com a natureza. Na ação, oito
participantes portando mochilas infanto-juvenis japonesas13
equipadas com caixas de som formam um círculo em um
local pré-determinado e, juntos, circundam o espaço resso-
ando o som do mar. Em roda, os performers ficam imóveis,
experienciando a sensação meditativa proporcionada
pelo som das ondas e pela espacialização circular do som.

12 Retomando a discussão acerca do mapa e do território levantada ante-


riormente, pouco importa que o arroz servido seja ou não produzido na
fazenda do Yuji: estabelecemos relações de medo e confiança o tempo
todo, e é sobre isso a provocação dessa performance.
13 Originalmente doadas para os sobreviventes do Grande Terremoto do
Leste do Japão da cidade de Miyagi e concedidas pela curadoria da
mostra Field Trip Project/Field Trip Project Asia.
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 255

Em disposição concêntrica, os sons circulam em sentido


horário pelas mochilas, trazendo uma sensação espacial de
estar circundado pelo mar e por uma roda de pessoas.

Figura 5. Cassandra Mello. ILHA: A vida é uma utopia, 2021.

Os espectadores são convidados a adentrar esse espaço


de confluência e concentração de energia e a experienciar o
silêncio evocado pelos corpos dos performers e pelo som do
mar. Eles vivenciam um território ritualístico de celebração
da vida e da coletividade, consagrando, na ação, um espaço
comunitário de cura e afeto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É saliente a transversal crítica relacionada à mercantili-
zação e à objetificação da natureza praticadas pelo capita-
lismo moderno, e de como esse processo nos distanciou,
e nos distancia, da nossa verdadeira essência. Irrompe com
a nossa conexão ontológica enquanto seres vivos, criando
fronteiras imaginárias que perpetuam a mentalidade de que
a existência humana depende de um certo exaurimento das
formas de vida na Terra para o seu desenvolvimento pleno.
256 Tsuda C. E.

BIBLIOGRAFIA
BANIWA, Denilson. Carta, por Denilson Baniwa. In: DEMARCHI,
André et al. Tucum. [S. l.], 6 nov. 2021. Disponível em: https://site.
tucumbrasil.com/carta-por-denilson-baniwa/. Acesso em: 10 nov. 2021.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. O medo dos outros. Revista de


Antropologia, São Paulo, v. 54, n. 2, 2012. p. 885-917.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizo-
frenia. Trad. de Aurélio Guerra Neto et al. v. 3 . São Paulo: Editora 34, 2012a.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esqui-


zofrenia. Trad. de Suely Rolnik. v. 4. São Paulo: Editora 34, 2012b.

EISBELL, Jaider. Autodecolonização: uma pesquisa pessoal além do cole-


tivo. In: ESBELL, Jaider. Galeria Jaider Esbell, [S. l.], 9 ago. 2020. Disponível
em: http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/08/09/auto-decolonizacao-
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KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um


xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2019.

KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia


das Letras, 2020.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n−1 edições, 2018.

PALBERT, Peter Pel. Fala no curso Tempo Que Somos. São Paulo:
Atelier Paulista, 16 ago. 2021.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. de


José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Pioneira, 1997.

YONEYAMA, Shoko. Animism in Contemporary Japan: Voices for the


Anthropocene from Post-Fukushima Japan. Abingdon: Routledge, 2019.

FONTES DAS FIGURAS


Figura 1
ESBELL, Jaider. Era uma vez Amazônia. Cada um de nós destrói
a Natureza, o Futuro, na medida da construção de nosso Presente,
na nossa fardofelicidade pseudomerecida... 2016. Fotografia. Disponível
MAPA DO MEDO, TERRITÓRIO DA CONFIANÇA 257

em: http://www.jaideresbell.com.br/site/2016/07/01/it-was-amazon/.
Acesso em: 29 mar. 2022.

Figura 2
TSUDA, Dudu. Yuji Ishizuka em sua barraca de produtos orgânicos na
feira de orgânicos em Tóquio, em frente ao prédio da ONU e da resi-
dência artística Tokyo Wonder Site, 2013. Fotografia. Acervo do artista.

Figura 3
KAWAKUBO, Yoi. If the Radiance of a Thousand Suns Were to Burst
into the Skies at Once, 2014. Película fotográfica, a cores, não exposta,
enterrada sob o solo e em local radioativo. Disponível em: https://www.
yoikawakubo.com/thousand-suns. Acesso em: 29 mar. 2022.

Figura 4
YOSHIOKA, Helena. Jantar:: A vida é uma utopia, 2015. Fotografia.
Acervo pessoal.

Figura 5
MELLO, Cassandra. ILHA:: A vida é uma utopia, 2021. Fotografia.
Acervo pessoal.
WOLKOFF G. G., GAZOLA M. B. & DA SILVA R. T.

RESPOSTAS POÉTICAS AO
TRAUMA DE HIROSHIMA

Gisele Giandoni Wolkoff


Universidade Federal Fluminense (UFF)

Marina Bertani Gazola


Universidade Federal do Paraná (UFPR);
Universidade Federal Fluminense (UFF)

Rafael Teles da Silva


Universidade Federal Fluminense (UFF)

RESUMO
Os estudos transculturais são observados nas obras de escri-
tores irlandeses que se dedicam à escrita sobre o trauma
da bomba atômica em Hiroshima, reforçando uma relação
com o Japão, a partir da qual, buscou-se observar como os
poetas irlandeses responderam aos ataques sofridos pelo
país. Para isso, foram selecionados dois poetas que respon-
deram ao trauma da bomba atômica por meio de seus
versos. O primeiro, Thomas Kinsella, em “Old Harry”, fez
uma menção ao presidente dos Estados Unidos à época do
ataque em Hiroshima. O segundo poeta, Anthony Glavin,
escreveu poemas para o livro Living in Hiroshima, como
uma resposta sentimental sobre a bomba que ficou conhe-
cida como The Little Boy. Visto que se estuda a Irlanda a
partir do Brasil, foram propostas as traduções ao português
dos poemas de Glavin e Kinsella, além de um poema inédito
escrito pela poeta brasileira G.G. Wolkoff sobre o tema.
Palavras-chave: Hiroshima. Poesia. Irlanda. Brasil.
Transculturalidade.
260 Wolkoff G. G., GAZOLA M. B. & da Silva r. t.

ABSTRACT
Transcultural studies are observed in the works of Irish writers
who have dedicated themselves to writing about trauma regar-
ding Hiroshima and the atomic bomb, reinforcing the rela-
tionship with Japan, from which we have examined how Irish
poets responded to the attacks suffered by Japan. Therefore, two
poets have been selected. The first one, Thomas Kinsella, who, in
his poem “Old Harry”, mentions the president of the United States
of America at the time of the attack in Hiroshima; and the second
poet, Anthony Glavin, who has written poems for the book Living
in Hiroshima as a sentimental reply about the bomb, known as
The Little Boy. Since we have studied Ireland from Brazil, we have
proposed translations to the Portuguese language of Glavin’s and
Kinsella’s poems, as well as a new poem written by the Brazilian
poet G.G. Wolkoff on the theme.
Keywords: Hiroshima. Poetry. Ireland. Brazil. Transculturality.

A Irlanda é campo prolífico de escritores que se dedicaram ou


têm se dedicado ao Japão e, especificamente, escrito sobre o
trauma da bomba atômica e da guerra. Os diálogos vão além
das formas japonesas, como o haiku, as quais se transcul-
turam pelas obras de seus escritores. O vínculo com o Japão
está, também, nas temáticas como a transposição do contexto
pós-guerra, a tradução da dor do trauma advindo do caos da
guerra, dos conflitos internos no próprio país e nas subjetivi-
dades individuais, dentre outros. Assim, vários poetas irlan-
deses estabelecem a ponte Irlanda-Japão na transculturalidade
das formas e dos temas japoneses. Como um desses temas é
o caos advindo da bomba atômica em Hiroshima, trazemos
aqui duas (de muitas) respostas poéticas da Irlanda e, porque
estudamos a Irlanda a partir do Brasil, propomos uma última
resposta brasileira, depois do olhar sobre os poetas irlandeses.
O primeiro autor a que nos referimos é Thomas Kinsella,
que nasceu em 1928 em Dublin, Irlanda e faleceu em dezembro
RESPOSTAS POÉTICAS AO TRAUMA DE HIROSHIMA 261

de 2021. Estudou Ciências e se formou em Administração


Pública pela University College em Dublin. Entrou para
o serviço civil irlandês em 1946, mas, incentivado por sua
esposa, passou a atuar na área de formação, onde conheceu
Liam Miller, fundador da Dolmen Press, que, anos mais tarde,
publicou várias obras do autor. Na época, Kinsella tornou-se
amigo do músico Sean O’Riada, considerado um dos mais
distintos compositores modernos da Irlanda e alguém que
influenciou fortemente a profícua vida intelectual do poeta.
Em 1960, mudou-se para os Estados Unidos, onde se tornou
professor universitário na área de língua inglesa e poesia.
Kinsella explorou temas como o amor, a morte,
as pessoas e seus relacionamentos, lugares e objetos, a vida,
o crescimento, o amadurecimento e o fim, e a crítica literária
com frequência aponta o aprofundamento filosófico na sua
voz lírica. Com o tempo, tornou-se cada vez mais preocupado
com questões sobre o valor e a ordem das dinâmicas sociais
e começou a escrever poemas mais longos.
A coleção Downstream de Kinsella foi lançada em 1962
e referenciada por Irene De Angelis em The Japanese Effect in
Contemporary Irish Poetry (2012) como uma das respostas ao
bombardeio de agosto de 1945 em Hiroshima. Nessa coleção,
o poema “O Velho Harry” (“Old Harry”) é uma menção ao
presidente dos Estados Unidos à época; possui três partes,
sendo a primeira “A Provação” (“The Ordeal”), a mais longa
“O Crepúsculo do Velho Harry” (“The Twilight of Old Harry”),
que consiste em cinco partes numeradas; e, finalmente, “Vale”
(“Vale”). O poema completo foi publicado no periódico Studies
(KINSELLA, 1961) acompanhado de uma nota acerca de sua
essência enquanto conto moral de culpa e de sua contrapartida,
referindo-se ao grande pecado da carne e do espírito humanos
obrigados a passar pela provação de uma existência culposa.
O texto trata de um homem idoso a carregar o peso de suas
escolhas, que fizeram tantas vítimas, o meio despertar e o
castigo. Enfim, um olhar do lado subjetivo do culpado. A seguir,
apresentamos uma parte do icônico poema supracitado.
262 Wolkoff G. G., GAZOLA M. B. & da Silva r. t.

OLD HARRY O VELHO HARRY

The Ordeal A provação

‘Master Love’, my grim instructor — Grande amor, o meu sombrio


assured me instrutor me assegurou
‘Moved already in the — Já se foi à escuridão criminal
criminal darkness Antes que fosse nossa a carne
Before our dust was chosen escolhida ou mesmo que a
or choice began, escolha se iniciasse.
Devising, for spirits that would Conceber para espíritos que
not crumple não se dobrariam
At a touch, a flesh of thirst Com um toque, um punhado
and pain, a blood de sede e dor, sangue
Sped by onward self-torment Movido pelo autotormento
and by desire.’ e por desejo.
He raised his hooded sockets. Ele levantou suas pestanas
‘Dissolution embaralhadas. — Dissolução
He thrust with liquid arm, Com arma química, em um
in an act of love, ato de amor, atirou
Under time’s streaming Sob os arcos do tempo que
arches into the world.’ correm ao mundo.”
I turned toward that dark arcade Virei-me à arcada escura e
and beheld contemplei
Body and spirit together, open-eyed, Corpo e espírito juntos,
Drink up their sour ordeal, heaped olhos abertos,
with curses. Experimente da amarga provação,
The body rocked, enduring this cheia de maldições.
bitterness O corpo colapsou, sofrendo a
— A figure fathoming its amargura
own misery — — Um ser a penetrar a sua
Straightened and resumed its própria miséria —
accurate pursuit. Endireitou-se e retomou a sua
‘What of innocent spirit,’ certeira perseguição.
I inquired, — E o espírito inocente, perguntei,
‘In accurate pursuit of the ideal?’ — Na busca precisa do ideal?
‘The flesh proceeds to its — A carne prossegue até o seu fim
harmonious end.’ harmonioso.
‘What of the guilty?’ — E os culpados? O espírito
The spirit that invites que convida
The criminal darkness to the A escuridão criminosa para
human womb o útero humano
Repays with the living flesh, Retribui com a carne viva,
and thigh shall rot. e as canelas apodrecerão.
RESPOSTAS POÉTICAS AO TRAUMA DE HIROSHIMA 263

The Twilight of Old Harry O crepúsculo do velho Harry


1 1
Pink eyelids dipped in terror; softly, Pálpebras avermelhadas, mergulhadas
possessed, em terror; suavemente, possuídas,
Voles flew like shuttles through the As ratazanas voavam como carroças
brush. A buzzard pelo mato. Um bútio
Completed its loop of threat above Completou seu ciclo de ameaça por
the trees. cima das árvores.
Stroking with dangled key-chain Acariciando a urtiga e a samambaia
nettle and fern com a corrente do chaveiro
He marched with feeble vigour, Ele bordejou com vigor débil,
shaggy, gasping, desgrenhado, ofegante,
A crumpled lion, through the woods Um leão enrugado, pela clareira
green oven. verde da mata.
Down dappled levels of oak, alleys Lá abaixo, níveis manchados de
of beech, carvalho, becos de faia,
Light-beams burst, noiseless, Raios de luz explodiram, sem ruído,
on his loose hide of tweed. em sua pele solta de tuíde.
His glasses flared suddenly, Seus óculos brilharam de repente,
two sightless coins. duas moedas cegas.
Warmth of rot and loam, round a Calor de podridão e barro,
turn of the path, em torno de um caminho,
The scent of frail bells glistening O cheiro de frágeis condões
with fat bees, brilhando gordas abelhas,
Held a clearing—silted in moss— Acendeu-se uma clareira —
in amber. assoreada em musgo — em âmbar.
He pocketed his soft gold Colocou no bolso a simples
chain and halted. correntinha de ouro e parou.
A jay’s hysterical laugh Uma risada histérica de um gaio
spurted and stopped. explodiu e parou.
He laid on a rich red tree his Eis que ele colocou numa frondosa
mottled hand. árvore vermelha a sua mão manchada.
2 2
Who time and time again slapped Quem de uma e outra vez deu um
it down sharply brusco tapa
To put a stop, when he had cause, Para pôr fim, quando tinha motivo,
to anger, à ira,
The dangers of narrow thought, or Os perigos do pensamento estreito, ou
mere habit, o mero hábito,
264 Wolkoff G. G., GAZOLA M. B. & da Silva r. t.

How many golden years ago! Há quantos anos dourados!


Assembled Montado
About his gleaming table Sobre sua mesa reluzente como
like steel children crianças de aço
All the war organisms of a Todos os órgãos de guerra de um
continent! continente!
Senior and neat, they advised and Velhos e arranjados, imergiram e
were absorbed foram absortos
As with bluff final words he Com palavras, os blefes finais, ele
imposed reason impôs a razão
— A curb to the rash, a pupil — Um freio para a erupção, um
to the wise. pupilo aos sábios.
And O those fearful days when the Ah, e que dias temerosos quando o
world spun round mundo girou
To gusts of pain, and he waved his Em rajadas de dor, e ele acenou para
leaders out os seus líderes
And trod paths of fury down the E trilharam caminhos de fúria pela
paneled room. sala apainelada.
To and fro, suffering from the drain Para lá e para cá, sofrendo com a
of deaths, enxurrada das mortes,
Between bristling wall-maps where Entre mapas na parede estendidos
the earth travailed onde a terra se abalou
And a high window recess with its E do abismo de uma enorme janela,
smooth globe, com o globo liso,
He raved softly and Struggled for Ele delirou tranquilamente,
righteousness, julgando ser por justiça,
Then shoes in loneliness near the Daí, só os sapatos, próximos à cortina
blurred curtain manchada
The greater terror for the lesser number. O maior terror para o menor número.
Jaw jutting with power for good, Enquanto os beiços balançavam bem
he inclined que justificasse o poder, ele se inclinou
Rounded cheeks, eyes like coins, E as bochechas arredondadas, olhos
to the toy Arctic como moedas, para o brinquedo Ártico
And Boreas blew his dreadful E o Bóreas irrompeu sua terrível
moral blast explosão moral
3 3
Then the notorious cities of the plain, Depois, as cidades famosas da planície,
Groves of the temporal, lost their Os bosques do temporal viram perder
flesh and blood, carne e sangue,
Tiles, leaves, wild cries, stripped Telhas, folhas, gritos vorazes,
away by gales of light. arrancados por vendavais de luz.
RESPOSTAS POÉTICAS AO TRAUMA DE HIROSHIMA 265

Lascivious streets before they Ruas lascivas antes


shriveled up de murcharem
Heightened their rouge and Aumentaram a sua vermelhidão e
welcomed baths of pure flames; abraçaram banhos de puras chamas;
In broad daylight delicate Em plena luz do dia delicadas
creatures of love criaturas de amor
Swayed in a rose illumination Balançavam iluminadas e
of thighs, escarlates,as canelas,
Their breasts melted shyly and E os seus seios derretiam timidamente
bared the white bone; e desnudavam os ossos brancos;
At that sight men blushed fiercely A essa visão os homens coraram
and became shades. ferozmente e tornaram-se sombras.
The air in a passion inhaled, and Inalou-se o ar em paixão, e tudo se
all dissolved dissolveu
Or collapsed shimmering on black Ou desmoronou brilhando em
recesses, recessos negros,
A silken scenery of Heaven and Hell; Um cenário de seda do Céu e do Inferno
Exhaled, and the tympanum of Exalou, e o tímpano da terra
earth shuddered, estremeceu,
Day cracked like a lantern and its O dia raiou como uma lanterna e os
blazing oils seus óleos ardentes
Soared up in turmoil in thick Elevaram-se em turbulência em
vessels of dust; vasos fartos de pó;
Anthropophagi moaned in the Antropófagos gemiam na nuvem
buckling cloud, que cedia
Amazons and chimaerae, leaving Amazonas e quimeras,
the world. deixando o mundo.
Where once the cities of wickedness Onde uma vez as cidades da
had stood maldade persistiam
An eye socket with nerves and ducts Uma órbita ocular com nervos e
smouldering, dutos fumegantes,
A mouth with torn uvula and Uma boca com úvula rasgada e
no tongue, sem língua,
Moistened like two wells the plain’s Umedeceu como dois poços a face
enameled face. esmaltada da planície.
4 4
Odours of darkness prevail in the Os odores da escuridão prevalecem
half light, na meia luz,
Tunnel sounds of the shallow earth Os sons abafados da terra devastada
encompass fixam-se
A nest of twittering, naked animals. Um ninho de animais nus e barulhentos.
266 Wolkoff G. G., GAZOLA M. B. & da Silva r. t.

Eye clenched, griming together in Olhos cerrados, juntos


blind terror, em terror cego,
They tremble snout to snout, Eles tremem focinho a focinho,
appearing to kiss; parecendo se beijar;
A paw strokes a soft flank as though Uma pata acaricia um flanco macio
to comfort como que para se confortar
... Slight, razor-sharp, flesh-severing ... Abraços afiados, cortantes,
embraces. rastejantes.
At each light touch a little blood A cada leve toque um pouco de
enriches sangue enriquece
The threads linking heart to heart Os fios que ligam um coração
and lip to lip. a outro, um lábio a outro.
5 5
A scrap of winter silence Um pouco do silêncio do
came fluttering inverno veio esvoaçando
Down like an icy feather Caindo como uma pena
among the trees gelada entre as árvores
To touch his wrist with its Tocar seu pulso com o seu
invisible lace. invisível laço.
He shivered in golden light. Ele estremeceu na luz dourada.
The scabby trunk O tronco sarnento
Broke the polished surface of his Partiu a superfície polida
dream. He scratched In vacant de seu sonho. Arranhou na
memory of mucous pleasure. memória vaga do prazer mucoso.
Over the drowsy meadow his Sobre o prado sonolento a sua
favourite predileta
Martial music struggled with the Música marcial em duelo com a
tea-time breeze; brisa na hora do chá;
Then, whistling a soundless note, he E então, assobiando uma nota
turned for home. silenciosa, voltou-se para casa.

O segundo autor que trazemos é Anthony Glavin,


nascido em Dublin em agosto de 1945. Foi poeta e professor
de piano, morreu em novembro de 2006 após anos lutando
contra um enfisema. Publicou em jornais e periódicos desde
a University College, Dublin. Vencedor do prêmio Patrick
Kavanagh em 1987, publicou o The Wrong Side of the Alps
pela Gallery Press em 1989.
Mark Granier (2007) publicou uma resenha sobre o
livro inacabado de Glavin, Living in Hiroshima. Esse seria
RESPOSTAS POÉTICAS AO TRAUMA DE HIROSHIMA 267

o seu segundo livro de poemas que, de acordo com Granier,


seria composto por poemas de quatro linhas. A sequência
completa teria 250 “hironismos”, ou seja, mil versos no total.
O poeta provavelmente se inspirou na tradição dos mil
origamis de grous para obtenção da salvação.
A data de seu aniversário, um feriado nacional (bancário)
na Irlanda, ter sido um dia após o “Menininho” (“Little boy”,
como ficou conhecida a bomba atômica no mundo anglófono)
assombrava-lhe. Uma data que marcou a humanidade e o curso
da história e que causou desolação a milhares de pessoas.
Além de abordar o tema central que o atormentou por
toda a vida, a coletânea Living in Hiroshima contém poemas
sobre a vida pessoal de Glavin, sua busca pela liberdade, sua
vida amorosa, suas viagens, entre outros.
Infelizmente, Glavin morreu antes de finalizar os
poemas. Porém, conseguiu publicar vinte deles no número
87 do Poetry Ireland Review (GLAVIN, 2006) e Granier
publicou outros onze no número 89 do periódico (GRANIER,
2007). Dos vinte poemas publicados por Glavin, trazemos
aqui quatro deles.

To Thine Own Self Para o seu próprio eu


Ripeness? Read Freud. Read Jung. Maturidade? Leia Freud. Leia
Remember Plato. Jung. Lembre-se de Platão.
’The psyche cannot leap A psique não pode ir além de si
beyond itself mesma.
’the atom’s not substantive o átomo não é substantivo
as an apple como uma maçã
Such innocence! Such a dose of the Quanta inocência! Que dose de
need to know! conhecimento!

8 : 16 : 42 8 : 16 : 42
A fleeing Nazi skis down an Alpine Um nazista fugitivo esquia uma
glacier; Pius XII bows low to intone geleira alpina; Pio XII inclina-se
the Agnus Dei; para entoar o Agnus Dei;
Heartbeats; lifetimes; seconds Batidas de corações; vidas; segundos
ticking away; The sky blurts open passando; O céu se abre como uma
like a Morning Glory. Manhã de Glória.
268 Wolkoff G. G., GAZOLA M. B. & da Silva r. t.

Now You See It Agora você vê

An eyeball of light suddenly Um globo ocular de luz, de repente


a blazing stadium um estádio em chamas. Duas
Two miles wide and milhas de largura e, talvez, meia
maybe half a mile high — milha de altura —
Blinding whiteness annihilating O branco ofuscante aniquilando
space and time espaço e tempo
In an instant, in silence, in the Num instante, em silêncio, num
twinkling of an eye. piscar de olhos.

Lovers Enamorados

They crawl through scorched Eles se rastejam pelas chamas do


bamboo to the river’s edge. bambu à beira do rio. A água está
The water is hot to touch, quente ao toque, mas eles escorregam
but they slither in para dentro
And stroke and hold. E se agarram e se seguram.
At each caress, the skin A cada carícia, a pele
Dries instantly, then glows, then Seca instantaneamente, depois
splits like porcelain. brilha e, então, parte como porcelana.

A terceira resposta que aqui trazemos é a partir do


Brasil, um país com tão forte influência japonesa pela sua
imigração, mas em constante reconstrução (pesquisa e
divulgação) da história dessa imigração. Gisele Giandoni
Wolkoff nasceu em 1973 em São Paulo e é autora de
Ar (2016), Rumo ao sol (2014) e Partidas (2012). Vencedora
do Prêmio Machado de Assis pela Academia Paulista de
Letras, tem se dedicado mais recentemente, desde 2018,
a escrever sobre o Japão, país sobre o qual sempre ouviu
como referência de povo exemplar desde a escola, e os
colegas que sempre viu com aura de “mistério” e desconhe-
cimento que rondavam alguns bairros de sua cidade natal.
O poema a seguir responde ao caos da bomba, à dizimação,
e propõe repensar os desdobramentos dos acontecimentos
traumáticos mundo afora.
RESPOSTAS POÉTICAS AO TRAUMA DE HIROSHIMA 269

Longe do mar, amor, Hiroshima s-em fim

Infinita dor
Já não vamos à Hiroshima
sem amor
porque de tanta dor
houve mais (que) pavor
Nunca mais iríamos à Hiroshima.
Ouvimos angustiados o decreto:
Não mais Hiroshima:
deixamo-la ao relento desatento
perdemo-la ao som do deserto intento.
Já não iríamos mais à Hiroshima.
Mas depois já não a deixaríamos
Já não deixaríamos de ir à Hiroshima
Já não deixaríamos nunca mais de ir à Hiroshima,
onde mais o amor do perdão
É que ao longe quase não se sabe
do dom das cruzes & do som dos sinos
porque de tão longe
não se dobra sem ser de joelhos.
E, então, já não deixamos mais de ir à Hiroshima
onde só se vai se for por amor
onde só se vai quem flor
onde só &
onde não só
andam as ondas do pavor
& há pólvoras da dor
evaporando o terror
truculento como são tudo o que foi nuvem
densa em que se perde o menininho de vista
virou dissipação e veio, voltando Hiroshima
amor, só para reiniciantes
no Ocidente em que se lamente
270 Wolkoff G. G., GAZOLA M. B. & da Silva r. t.

a falta do amor
em que se preze
mais mar
onde só pode haver
tempo (de)
mor
te
mar
de morrer de amor
Hiroshima, longe do mar,
só lá vou com o teu pavor
em amor que é para só regressar

da (quase infinita) dor


Amor

BIBLIOGRAFIA
ANGELIS, Irene de. The Japanese Effect in Contemporary Irish Poetry.
Basingstoke: Palgrave MacMillan, 2012.

GLAVIN, Anthony. “Living in Hiroshima”. Poetry Ireland Review,


Dublin, n. 87, 2006. p. 12-16. Disponível em: https://www.jstor.org/
stable/25625462. Acesso em: 14 ago. 2022.

GRANIER, Mark. Anthony Glavin. “Living in Hiroshima”. Poetry Ireland


Review, Dublin, n. 89, 2007. p. 30-31. Disponível em: http://www.jstor.org/
stable/25625524. Acesso em: 14 ago. 2022.

KINSELLA, Thomas. Two Poems. Studies: An Irish Quarterly Review,


Dublin, v. 50, n. 198, 1961. p. 184-189. Disponível em: http://www.jstor.
org/stable/30099182. Acesso em: 15 ago. 2022.
PARTE 2
ECOS OUTROS
PINTO F. M.

O LAMENTO UIVANTE DO
VENTO PELOS PINHEIROS:
MUGEN-NŌ, MORTE E LUTO NA
PEÇA DE NŌ MATSUKAZE

Felipe Mendes Pinto


Universidade de Osaka

RESUMO
Uma das características mais distintas do teatro nō japonês
é sua relação próxima com a morte — ou com a figura dos
mortos. Em geral, deparamo-nos com histórias que narram
eventos envolvendo protagonistas já falecidos, a exemplo
das muitas narrativas do chamado mugen-nō 夢幻能. Nessa
categoria de peças, o enredo apresentado é fruto de um
sonho ou uma ilusão vivida pelo coadjuvante, para o qual o
protagonista — um fantasma ou ser divino — conta sua vida
passada. A peça Matsukaze, de autoria atribuída a Kiyotsugu
Kan’ami, cuja origem data do século XIV, é um dos exem-
plos mais famosos desse tipo de nō. O ensaio examina
alguns aspectos dessa categoria por meio de uma análise
sobre a centralidade da morte para a construção da narra-
tiva apresentada, comentando aspectos relacionados ao luto
e à impossibilidade do reencontro com uma pessoa amada.
A partir disso, refletimos acerca da catástrofe individual:
a perda e a dor da concretização do nunca mais.
Palavras-chave: Teatro nō. Mugen-nō. Matsukaze. Morte. Catástrofe.
280 PINTO F. M.

ABSTRACT
One of the most distinctive features of Japanese nō theater is its close
relationship with death — or the figure of the dead. In general, we
come across stories that narrate events involving deceased protago-
nists, as in the many narratives of the so called mugen-nō 夢幻能.
In this category of plays, the plot presented is usually the result of
a dream or an illusion experienced by the supporting character,
to which the protagonist — a ghost or divine being — tells his past
life. The play Matsukaze, by Kiyotsugu Kan’ami, whose origins
date back to the 14th century, is one of the most famous examples
of this type of nō. This essay examines some aspects of this cate-
gory with an analysis of the centrality of death for the construc-
tion of the narrative presented, commenting on aspects related to
mourning and the impossibility of meeting a loved one. From this,
we reflect on the catastrophe at the individual level: the loss and
pain of the realization of the never again.
Keywords: Nō theatre. Mugen-nō. Matsukaze. Death. Catastrophe.

INTRODUÇÃO

Desde a aurora do país de Yamato,1 o povo que habitava o


que hoje chamamos de arquipélago japonês convive com
as catástrofes, habitando uma terra que se localiza sobre a
junção de três placas tectônicas, no chamado Círculo de Fogo
do Pacífico — uma das regiões mais ativas sismicamente do
mundo —, sujeita a intensos terremotos, tsunamis e, dada a
localização climática, tufões. O temor da destruição ronda
o imaginário coletivo de diversas formas, inclusive na arte.
No entanto, aqui, não nos voltaremos à tragédia da catás-
trofe cataclísmica, mas às internas e sutis manifestações do

1 Nome pelo qual era conhecido o Japão antes do termo Nihon 日本,
utilizado atualmente. A língua japonesa antiga é chamada Yamato
kotoba 大和言葉 ou wago 和語.
O LAMENTO UIVANTE DO VENTO PELOS PINHEIROS 281

catastrófico. O que propomos é olhar para a dor da perda


presente no luto, uma catástrofe individual.
De que modo é vivido esse luto? Como podemos iden-
tificar suas representações nas artes do Japão? O teatro
nō 能 é uma linguagem pertinente para desenvolvermos
nossa linha argumentativa devido às sólidas pontes que
essa arte performática estabelece com a figura daqueles
que já partiram deste mundo material, especialmente
na segmentação de peças chamadas mugen-nō. Todavia,
antes disso, passemos por uma breve contextualização
dessa forma teatral.

ORIGENS E ASPECTOS DO TEATRO NŌ


Assim como muito daquilo que estabeleceu os pilares da
cultura japonesa ao longo dos séculos, o nō tem suas raízes
no território que atualmente chamamos de China. Contudo,
hoje ele é muito diferente de suas primeiras manifestações.
Em solo japonês, essa arte foi modificada e adquiriu caracte-
rísticas próprias, de modo que podemos pensá-la como uma
forma artística de fato do Japão.
Por volta do século VIII, período Nara, uma espécie de
circo popular chinês, chamado sangaku 散楽, foi introduzido
no gosto popular dos japoneses. De acordo com a especia-
lista nipo-brasileira Sakae Murakami-Giroux (1991, p. 5),
da Universidade de Strasbourg, “o sangaku era uma arte
aberta a todas as transformações, pronta para coexistir com
outras artes e para se desenvolver livremente”.
Com o tempo, e as evidentes modificações sociotem-
porais, esse entretenimento passou a ser chamado sarugaku
猿楽, reunindo diversas linguagens da arte, como a dança,
a mímica e o canto, acompanhados de um arranjo musical
(GIROUX, 1991; PINNINGTON, 2019). Havia — e ainda há —
diversas linhas distintas de estilo performático, a depender
da região, que eram e ainda são passadas a cada geração,
tornando o nō, assim como muitas outras artes japonesas,
282 PINTO F. M.

uma tradição familiar ou de escolas.2 As apresentações eram


realizadas em espaços públicos, próximo a rios, bosques ou
florestas, e, portanto, em contato com a natureza.
É entre os séculos XIV e XV, período Muromachi, que
o sarugaku recebe patrocínio ativo do xogunato — a classe
de guerreiros à frente nas funções administrativas do terri-
tório — e passa a ser conhecido pelo nome que é utilizado
atualmente: nōgaku 能楽, ou simplesmente nō 能. Foi a partir
do interesse do xógum Yoshimitsu Ashikaga 足利義満
(1358-1408) pelo trabalho de Kan’ami 観阿弥 (1333-1384) e
de seu filho, o qual adotaria o nome artístico Zeami 世阿弥
(1363-1443), que a aura das apresentações de sarugaku passou
por um refinamento estético junto à elite da época (GIROUX,
1991; KUSANO, 1984).
Essas modificações incluíram, no trabalho do ator, uma
busca ativa pela aproximação à estética yūgen 幽玄, historica-
mente associada àquela tradição teatral, evocando no público
uma aura de beleza sutil e profunda, um mistério enevoado ou
uma flor que guarda um segredo, em diálogo com a concepção
da flor (hana 花)3 trabalhada por Zeami em seus muitos
tratados, com destaque para o Fūshikaden 風姿花伝, traduzido
por Giroux (1991) como Da transmissão da flor de interpretação
(INAGA, 2015; MIYAZAKI, 2005; TAKAHASHI, 2018).
O primeiro ideograma de yūgen, 幽, evoca ideias relacio-
nadas à profundidade e à reclusão. Ele também é utilizado
para escrever a palavra yūrei 幽霊, que pode ser traduzida
como “fantasma”, embora carregue aspectos culturais
próprios do Japão, a exemplo de algumas características
estéticas dessa figura espectral. Essas aproximações nos

2 Algumas das mais importantes são: Kanze 観世, Hōshō 宝生, Konparu
金春, Kongō 金剛 e Kita 喜多.
3 A ideia da flor (花) é central no pensamento de Zeami, e diríamos, de
modo um tanto reducionista, que representa a ideia do Belo, buscada
pelo ator em seu trabalho de interpretação.
O LAMENTO UIVANTE DO VENTO PELOS PINHEIROS 283

parecem profícuas tão logo percebamos a proximidade entre


as temáticas das peças de nō e a morte.
São muitas as categorias dessas peças, definidas a partir
do tipo de personagem encenado pelo shite, aquele que inter-
preta o papel principal no espetáculo. Entre essas segmen-
tações temos, por exemplo, as de kami,4 guerreiro, mulher,
demônio. Outra figura importante é a do waki, um coadju-
vante que, por meio de interações com o shite, permite uma
revelação de sua forma ou de sua história.
No entanto, essas categorizações não são as únicas,
e uma divisão em dois grandes grupos também pode ser
realizada levando em consideração a natureza do protago-
nista. Aquelas que apresentam fantasmas ou espíritos são
chamadas mugen-nō 夢幻能 — que consistem na maior parte
das peças. Por sua vez, as conhecidas como genzai-nō 現在能
são focadas em personagens vivos, apresentando uma quan-
tidade menor delas em meio ao vasto repertório, composto
por mais de 250 textos (INGHAM; NAKAO, 2018). Vejamos a
seguir algumas características do primeiro grupo.

CARACTERÍSTICAS DO MUGEN-NŌ
O termo é grafado 夢幻能. O primeiro ideograma, 夢 (mu) —
que sozinho pode ser lido yume —, remete à ideia de sonho,
ilusão ou visão. O segundo, 幻 (gen), carrega essas mesmas
noções, mas adiciona as de fantasma ou aparição (GEN,
[202-]). Podemos perceber como os kanji apresentam ideias
convergentes, apesar de, cada um ao seu modo, agregarem
ao termo significados próprios. O terceiro ideograma

4 Optamos por não traduzir a palavra kami 神, tendo em vista as comple-


xidades de transposição cultural dessa ideia, que não corresponde
exatamente à noção de divindade que se pode ter usualmente numa
realidade alheia ao xintoísmo, o qual não constitui uma religião em si
e mais se aproxima de um conjunto de crenças na presença de vida em
diversos espaços relacionados à natureza.
284 PINTO F. M.

é 能 (nō), utilizado para fazer referência à forma teatral a


partir das mudanças realizadas por Zeami no sarugaku.
A relação com a figura dos mortos é um aspecto fami-
liar do nō a qualquer pessoa que tenha algum conhecimento,
mesmo que básico, acerca de suas narrativas. Uma das carac-
terísticas mais marcantes desse teatro é a interação deste
mundo (kono-yo この世) com aquele mundo (ano-yo あの世).
Fantasmas, espíritos, demônios, kami... Muitas são as formas
que o personagem de ano-yo pode assumir, presentifican-
do-se em diálogos com os vivos, que podem ser, por exemplo,
viajantes e monges.
Dentre os múltiplos trabalhos teóricos de Zeami,
o tratado Três caminhos (Sandō 三道) oferece instruções para a
composição de um mugen-nō. É o que sugere a pesquisadora
estadunidense Shelley Quinn (1993, p. 66, tradução nossa),
da Universidade do Estado de Ohio, que argumenta sobre a
importância da ambientação para um espetáculo desse tipo:

No mugen-nō, o cenário é mais do que uma moldura para


a ação, é o catalisador. Shite A é um fantasma cuja história
está ligada ao Lugar A, que o waki visita; se o waki tivesse
escolhido o Lugar B, então ele teria possivelmente encon-
trado o Shite B, e o Shite A não teria motivos para aparecer.5

Portanto, esse cruzamento de caminhos de dois perso-


nagens centrais para a história — que acontece em um
espaço determinado e não escolhido ao acaso — é o ponto
de partida da história contada ao público por meio de uma
performance que envolve dança, canto e música.
Especialistas em nō, o britânico Mike Ingham, da
Universidade Lingnan, Hong Kong, e a japonesa Kaoru Nakao,
da Universidade de Osaka, elucidam que a cena conven-
cional de abertura em um espetáculo de mugen-nō consiste no

5 “In mugen noh, the setting is more than a frame for the action; it is the
catalyst. Shite A is a ghost whose story is linked with Site A, which the waki
happens to visit; if the waki had chosen Site B, then he would have encoun-
tered Shite B perhaps, and Shite A would have had no reason to appear.”
O LAMENTO UIVANTE DO VENTO PELOS PINHEIROS 285

encontro do coadjuvante (waki) humano com a figura do prota-


gonista (shite), o qual se revelará ser um fantasma.

Na peça mugen (a maior parte do repertório [do nō]), o shite,


ou papel principal, não é um humano, mas, por exemplo,
um fantasma, divindade ou espírito. Uma classificação mais
matizada foi introduzida no século XVII (era Edo), na qual
o tipo de personagem interpretado pelo shite era o fator
determinante: a primeira categoria é a de peças de divin-
dade, e essas peças podem elogiar o reinado pacífico do
imperador; a segunda categoria envolve o fantasma de um
guerreiro masculino em lembrança do passado; a terceira
categoria diz respeito a uma protagonista feminina refinada
que pode ser uma mulher viva ou uma mulher-fantasma; a
quarta categoria contém peças diversas, com personagens
e paixões humanas; e a peça da quinta categoria envolve
o shite retratando um demônio (INGHAM; NAKAO, 2018,
p. 114, tradução nossa).6

Percebemos quão plurais são as formas que o protago-


nista pode assumir, e como cada segmento tem suas próprias
características, mesmo dentro da arquitetura narrativa estru-
turante: a aparição de um ser de um mundo imaterial que
adentra, por motivos diversos, a realidade vivida pelo waki,
o coadjuvante. Assim, para propor aqui um estabelecimento
de pontes com a ideia de catástrofe, voltamo-nos ao drama
Matsukaze 松風, um mugen-nō de categoria três — portanto,
que tem como shite o espírito (ou o yūrei) de uma mulher —
que conta a triste história de um amor perdido para sempre.

6 “In the mugen play (the bulk of the repertoire) the shite or main role is
not a human, but, for example, a ghost, deity, or spirit. A more nuanced
classification was introduced in the seventeenth century (Edo era) in which
the type of character played by the shite was the determining factor: the
first category is a deity play, and such pieces may eulogize the emperor’s
peaceful reign; the second category involves a male warrior’s ghost in recol-
lection of the past; the third category concerns a refined female protago-
nist who may be a living woman or a ghost-woman; the fourth category
contains miscellaneous plays, featuring human characters and passions;
and the fifth category play involves the shite portraying a demon.”
286 PINTO F. M.

MATSUKAZE, VENTO PELOS PINHEIROS,


OU VENTO QUE ESPERA

Determinar com precisão a autoria de peças de nō repre-


senta uma tarefa nebulosa. Em parte porque muitos anos
nos separam de sua escrita — a maioria delas têm mais de
seis séculos —, além das especificidades da noção de autoria
e cópia na sociedade japonesa pré-Meiji.7 Em muitas lingua-
gens artísticas, a exemplo de expressões poéticas, como a do
haiku, da tradição das pinturas sumi-e, e até de performances
teatrais, como do nō e do kabuki, o caminho para o aprendi-
zado é claro: repetição exata à exaustão dos passos do mestre.
Só depois de anos de prática dessas instruções é que o
aprendiz pode pensar em imprimir sobre a arte algum traço
de individualidade. Desse modo, a demarcação exata da
autoria, como em tradições europeias e estadunidenses —
leia-se ocidentalizadas —, não parece ser central para a apre-
ciação de uma obra.
No caso da peça Matsukaze, as informações mais aceitas
são de que ela teria sido escrita por Kan’ami, e, depois, revista
por seu filho Zeami. Diríamos que seu tema principal é a dor
insuportável do luto por alguém que se ama. Esse espetá-
culo é bastante citado por Zeami em seus tratados sobre nō, e
é possível conferi-lo em apresentações contemporâneas em
teatros de grandes centros urbanos japoneses.
O título da peça é o mesmo atribuído a um dos capí-
tulos da narrativa de Genji monogatari 源氏物語 (século XI,
período Heian). É possível que tenha havido inspiração de
Kan’ami na obra clássica de Murasaki Shikibu 紫式部, pois
as Narrativas de Genji inda é considerado uma grande refe-
rência para textos artísticos no Japão.

7 Anterior a 1868, ano a partir do qual o país passou por um processo


de ocidentalização com a reabertura de seus portos. Antes disso, sob o
xogunato Tokugawa, ou Edo (1603-1868), o Japão atravessou mais de
dois séculos e meio de isolamento político, social e cultural.
O LAMENTO UIVANTE DO VENTO PELOS PINHEIROS 287

Outro aspecto destacável no título é sua homofonia, que


apresenta um significado passível de expandir a compreensão
da narrativa. A palavra Matsukaze, nos materiais escritos, está
grafada em kanji da seguinte forma: 松風, na qual o primeiro
ideograma corresponde a pinheiro(s) e, o segundo, vento(s).
No entanto, também podemos representar esse som fazendo
uso de outros ideogramas: 待つ風. Nesse segundo caso, os
dois primeiros ideogramas correspondem ao verbo esperar, o
que nos leva à ideia: vento que espera. Para compreendermos
melhor, vejamos o que ocorre no enredo.

Figura 1. Kōgyo Tsukioka. Representação de cena da


peça de nō Matsukaze, década de 1910.

A narrativa trágica conta a história de duas irmãs,


Matsukaze (vento pelos pinheiros, ou vento que espera?) e
Murasame (chuva da vila 村雨), que eram mergulhadoras
(ama 海女) na baía de Suma — hoje um dos distritos da
cidade de Kōbe. Ambas se apaixonam por Yukihira Ariwara
(818-893), um cortesão e burocrata do período Heian que
ocupou vários cargos ao longo da vida, mas teve desavenças
288 PINTO F. M.

com o clã Fujiwara — no poder à época — e foi mandado ao


exílio em Suma. Depois de três anos juntos, Yukihira deixa a
vila para retornar a sua casa. Pouco tempo depois disso, chega
às irmãs a notícia da sua morte. Então, tamanha a tristeza que
sentiram, Matsukaze e Murasame falecem.
A peça inicia com um monge budista, no papel do waki,
chegando de viagem à vila na baía de Suma. O religioso
vê um pinheiro, e um homem da vila explica-lhe que é um
tipo de memorial às duas jovens irmãs falecidas. Durante
a noite, o coadjuvante sonha que pede abrigo na casa das
duas. Ao tomarem conhecimento de que ele é um monge,
deixam-no entrar e contam-lhe sua triste história de amor,
revelando que são fantasmas.
Matsukaze ainda tem as roupas de Yukihira, um
quimono e um ebōshi,8 os quais veste para se lembrar do amor
perdido. Tomada pela dor ainda insuportável do luto, a prota-
gonista se desespera. Numa angústia crescente, ela acaba
confundindo um pinheiro com Yukihira. Murasame se junta
à irmã mais velha na dor, e juntas abraçam a árvore. Quando
chega a manhã, a mais nova consegue retomar os sentidos,
mas Matsukaze permanece em sua dor ensandecida. Com o
alvorecer, tudo que resta é o vento soprando pelos pinheiros,
esperando para sempre o que nunca será realizado: o reen-
contro com o amado.
São camadas de pesar que, sobrepostas, levam ao enlou-
quecimento da personagem. Essa espera eterna nos revela
que, mesmo em ano-yo, Matsukaze é privada de estar com
Yukihira, o que faz com que seu espírito jamais descanse
e siga retornando ao lamento noturno, confundindo-se, ao
amanhecer, com o barulho do vento entre os pinheiros.
Diante dessa realidade terrível, somos colocados face à
dor pungente pela perda daquele que se foi precocemente.
Qual é o ponto máximo da catástrofe senão a morte?

8 Tipo de chapéu tradicional.


O LAMENTO UIVANTE DO VENTO PELOS PINHEIROS 289

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao apresentar-nos duas personagens que vivem um luto


devastador, que as levou à morte, a peça propõe a reflexão
sobre a maneira como lidamos com as catástrofes indivi-
duais, íntimas, internas.
É possível pensar em eventos catastróficos, como
aqueles em grande escala, como os fortes terremotos que
abalam o arquipélago japonês de tempos em tempos, as
terríveis bombas atômicas e incendiárias lançadas pelos
Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial e o
desastre de Minamata, que, nos anos 1950, arrasou comu-
nidades costeiras com o envenenamento por mercúrio. Ou,
mais próximo da realidade brasileira, observamos o catas-
trófico deslizamento de encostas que soterram casas em
épocas chuvosas, no rompimento de barragens, como as
de Mariana e Brumadinho, na ação criminosa de supostos
agentes da lei, como as chacinas em comunidades peri-
féricas. Existem as catástrofes naturais, mas também há
aquelas decorrentes da ação humana, sejam estas premedi-
tadas ou não. Crimes ou acidentes.
Esses eventos podem vir de imediato a nossa mente
quando pensamos em que consiste uma catástrofe, visto
seu amplo impacto social. As catástrofes destroem comu-
nidades, arrasam paisagens e matam dezenas ou centenas,
quando não milhares, de pessoas. Muitas famílias são
afetadas. A história desses acontecimentos recebe cober-
tura midiática, comoção pública. Permanece no imagi-
nário coletivo.
Mas há horror também naquilo que não chega às
manchetes dos jornais, que pode trazer pesadelos aos envol-
vidos, mesmo anos depois do ocorrido. Uma ferida que
nunca se cura, nunca se fecha, que não se permite cicatri-
zação. Esses casos podem afetar poucas pessoas em torno
do evento catastrófico, mas não deixam de ser, inevitavel-
mente, catástrofes.
290 PINTO F. M.

O vento que espera para sempre o que nunca será


realizado é a materialização do nunca mais. Matsukaze e
Murasame, em um lamento uivante do vento pelos pinheiros,
mostram o insuportável sentimento da impossibilidade de
fazer o tempo retroceder e trazer de volta aquele ou aquilo
que perdemos para sempre.

BIBLIOGRAFIA
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O LAMENTO UIVANTE DO VENTO PELOS PINHEIROS 291

日本の美的概念に関する時代推移とその構成モデ ル 美的空間創造のための
基礎的研究 (As mudanças temporais do conceito estético japonês e o
seu modelo composicional: pesquisa estrutural para a criação de um
espaço estético). Geijutsu kōgakkaishi 芸術工学会誌 (Revista de Artes e
Engenharia), Kōbe, n. 77, out. 2018, p. 158-165

FONTE DA FIGURA
Kōgyo Tsukioka (1869-1924). Representação de cena da peça
de nō Matsukaze, década de 1910. Xilogravura, 36,8 × 50,8 cm.
The Metropolitan Museum of Art.
Barretto L. M. Y.

ARTE COMO CONSOLO:


OS QUINHENTOS ARHATS
DE KAZUNOBU E MURAKAMI

Lizia Maria Ymanaka Barretto


Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO
Em 2012, a exposição individual Murakami-Ego, do artista
contemporâneo Takashi Murakami (1962-) apresentou a
obra Os quinhentos arhats (The Five Hundred Arhats, 2012),
produzida como uma reação ao grande terremoto e conse-
quente tsunami que atingiram o Japão em 2011. Os perso-
nagens tema da obra são discípulos de Buda, figuras
iluminadas que poderiam, segundo o artista, trazer alento
à sociedade, profundamente ferida por aqueles eventos.
A inspiração para a pintura vem da obra Os quinhentos rakan
(Gohyaku rakan 五百羅漢, 1854-1863) de Kazunobu Kanō
(1813-1863) — um trabalho encomendado em 1854 pelo
templo budista Zōjō-ji, mas que se tornou urgente quando,
no ano seguinte, um grande terremoto devastou a cidade de
Edo (atual Tóquio). Pretende-se aqui apresentar a reação
desses dois artistas perante a destruição deixada por uma
catástrofe natural.
Palavras-chave: Takashi Murakami. Kazunobu Kanō. Arhats.
Artes visuais. Catástrofe.
294 Barretto L. M. Y.

ABSTRACT
In 2012, the solo exhibit Murakami-Ego, of the contemporary
artist Takashi Murakami (1962-) presented the work The Five
Hundred Arhats (2012), which was produced as a reaction to
the great earthquake and consequent tsunami that hit Japan in
2011. The piece’s title-characters are disciples of Buddha, enligh-
tened figures that could, according to the artist, bring comfort to
the society, deeply wounded by those events. The inspiration for
the painting came from the work The Five Hundred Rakan
(Gohyaku rakan 五百羅漢, 1854-1863) by Kazunobu Kanō
(1813-1863) — a work commissioned in 1854 by the Buddhist
temple Zōjō-ji, but that had become urgent when, in the following
year, a massive earthquake devastated the city of Edo (current
Tokyo). Here, it is intended to present the reaction of those two
artists to the destruction caused by a natural disaster.
Keywords: Takashi Murakami. Kazunobu Kanō. Arhats. Visual arts.
Catastrophe.

Murakami-Ego (2012) foi a primeira exposição individual


do artista contemporâneo Takashi Murakami (1962-) no
Oriente Médio. Apresentada no Centro Expositivo Al Riwaq,
na cidade de Doha, Qatar, a mostra reunia obras recentes
do artista em diferentes linguagens, incluindo pinturas,
esculturas e ambientes que, com sua cenografia, se transfor-
mavam em experiências imersivas na poética de Murakami.
Dentre as peças, a inédita Os quinhentos arhats (The Five
Hundred Arhats) se destacava tanto por sua dimensão quanto
por seu significado. Com cem metros de extensão — o que
a torna, até hoje, sua maior obra assinada —, a produção
da tela envolveu mais de duzentas pessoas para trazer à
vida a versão do artista contemporâneo de um tema tradi-
cional da arte budista: os arhats são discípulos de Buda que
divulgam seus ensinamentos no plano terreno e, tendo
alcançado a iluminação, protegem e guiam os mortais. Suas
ARTE COMO CONSOLO 295

representações em pintura ou escultura frequentemente


adornam templos, tanto auxiliando no ensino de máximas
do budismo quanto trazendo alento aos visitantes.
O tema surge como uma reação do artista às consequên-
cias devastadoras deixadas pelo Grande Terremoto do Leste
do Japão, em 2011, e traz como referência principal a resposta
de outro artista japonês a uma catástrofe semelhante. Em 1855,
um terremoto de magnitude 6,9 atingiu Edo (atual Tóquio)
e provocou a morte de mais de 4,3 mil pessoas, deixando
outras 10 mil sem moradia. Na época, Kazunobu Kanō1 (1816-
1863) trabalhava em uma série de rolos de pintura intitulada
Os quinhentos rakan2 (Gohyaku rakan 五百羅漢, c. 1854-1863),
que lhe fora encomendada, no ano anterior à tragédia, pelo
templo budista Zōjō-ji. Para Kazunobu, a obra ganhou impor-
tância e urgência no novo contexto, considerando que os
rakan, como figuras que cuidam e orientam os mortais, servi-
riam para trazer alento à sociedade japonesa.
Apropriando-se de elementos da obra de Kazunobu,
Murakami constrói uma reflexão particular sobre os aconteci-
mentos de 2011 em seu país e nos oferece uma oportunidade de
estudar, por meio de uma leitura em paralelo, a interpretação
de ambos os artistas sobre um triste contexto em comum.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Uma fonte para a nossa compreensão do tema desenvol-
vido por ambos os artistas se deu pelo livro Simbolismo e
motivos da arte chinesa: um extenso manual sobre o simbolismo
na arte chinesa através do tempo (Chinese Symbolism and Art
Motifs: A Comprehensive Handbook on Symbolism in Chinese

1 Kazunobu recebeu esse nome por volta de 1840 em decorrência da sua


afiliação à escola Kanō. Para evitar confundir citações sobre o artista e
sobre a escola, é praxe mencioná-lo diretamente pelo nome Kazunobu.
2 De modo semelhante a nossa decisão de citar Kazunobu pelo seu
primeiro nome, usaremos o termo rakan (arhat em japonês) para
distinguir a sua obra da de Murakami.
296 Barretto L. M. Y.

Art Through the Ages) (2006), de C.A.S. Williams (1884?).


Originariamente publicada em 1941, a obra do autor esta-
dunidense, um pioneiro nos estudos chineses no Ocidente,
oferece uma ampla visão sobre elementos que compõem
obras de arte produzidas na China, apresentando temas
(como a agricultura e a pesca), ícones (desde animais reais,
como o tigre, até os inventados, como figuras mitológicas) e
diversos elementos (em particular, a escrita) que podem ser
encontrados nelas.
Dentre os assuntos apresentados por Williams estão
os dezoito arhats (Eighteen Lohan, em chinês Shih-pa
Lo-han 十八羅漢, discípulos do próprio Buda, patronos e
guardiões do seu sistema religioso, chamados por vezes
de arhat, arahat, arhan, arahan, arhant, arahant (em sâns-
crito: अर्हत्; em japonês: rakan 阿羅漢. Assim como existem
variações de seu nome, seu número também é diverso —
segundo Williams (2006), originariamente havia apenas
dezesseis, tendo o budismo na China posteriormente
acrescentado mais dois. Porém, eles também podem
aparecer em grupos de seis, oito, dezesseis, dezoito,
cem ou quinhentos.
O autor estadunidense se detém sobre o grupo de
dezoito arhats, esclarecendo ser possível identificar cada um
por suas poses e elementos característicos, além de serem
comumente representados em ordem determinada.
A análise da obra de Kazunobu é fundamentada por duas
fontes principais. No texto de James Ulak (2012), encontramos
uma leitura sobre os rolos de pintura do artista japonês por
ocasião da exposição Mestres da Misericórdia: os Fantásticos
Discípulos de Buda (Masters of Mercy: Buddha’s Amazing Disciples).
Realizada na galeria Arthur M. Sackler, em Washington, DC,
entre março e julho de 2012, a mostra marcou a primeira apre-
sentação do conjunto completo fora do Japão.
Em “The Ascetic as Savior, Shakyamuni Undergoing
Austerities by Kano Kazunobu” (“O asceta como salvador,
Shakyamuni passando por austeridades de Kanō
ARTE COMO CONSOLO 297

Kazunobu”),3 de 2010, a pesquisadora Patricia J. Graham se


propõe a estudar a obra mencionada no título; porém, para
fazê-lo, apresenta um histórico considerável do artista do
século XIX. Abordando a formação de Kazunobu e citando
diversas de suas obras, o ensaio também reivindica a dimi-
nuta atenção que o artista recebia na contemporaneidade,
embora tenha tido muito sucesso em seu tempo.
As fontes para a condução da leitura sobre Murakami
provêm sobretudo de textos críticos e entrevistas realizados
por ocasião de exposições que traziam Os quinhentos arhats
em destaque.
No contexto da exposição Murakami-Ego, o curador
Gary Carrion-Murayari produziu o texto “Takashi Murakami:
os quinhentos arhats”, analisando a obra do artista contempo-
râneo, o significado dos personagens do título, a referência
presente no trabalho de Kazunobu Kanō e o impacto da
tragédia de 2011 no Japão.
Akiko Miki (2015) assina o texto “Takashi Murakami’s The
Five Hundred Arhats: Return and Rebirth” (“Os quinhentos
arhats de Takashi Murakami: retorno e renascimento”), que
abre o catálogo da exposição, depois realizada pelo artista
no museu Mori, em Tóquio. Complementar à mostra, que
marca a primeira individual em catorze anos do artista em
seu próprio país, Miki oferece uma retrospectiva de sua traje-
tória para então se deter sobre as obras às quais o visitante
teria acesso. A análise contempla ainda o processo criativo
do artista, incluindo as referências citadas em seu trabalho.
Em “Os quinhentos arhats: o retorno de Murakami
Takashi e a transformação da arte japonesa” (2017), um
dos únicos escritos e publicados no Brasil sobre o assunto,
a pesquisadora Donatella Natili Farani apresenta um pano-
rama de sua carreira, abordando desde o conceito super flat

3 Note-se a ordem inversa, consoante à japonesa, do nome Kazunobu


Kanō aqui utilizada.
298 Barretto L. M. Y.

até a obra do título, e cita a referência de Kazunobu, bem


como a exposição no museu Mori.
Uma ponte mais direta entre a obra de Kazunobu e
Murakami é construída por este artista, em parceria com o
historiador de arte Nobuo Tsuji (1932-), no projeto Comparação
de pintura japonesa (Nippon e-awase). Esse tipo de “concurso”
foi inspirado por uma tradição aristocrática do período
Heian (794-1185), na qual dois times competiam apresen-
tando pinturas, comparando-as e argumentando sobre seus
méritos, até se decidirem por um vencedor da ocasião.
A proposta de Murakami e Tsuji partia de um texto
escrito pelo historiador sobre uma obra japonesa antiga, que
era então confrontada por uma proposta visual inédita do
artista, e o embate ocorreu por vários encontros, que foram
apresentados nas edições mensais da revista Geijutsu shincho
entre outubro de 2009 e dezembro de 2011. Em 2015, os textos
e suas respostas visuais foram compilados no livro Nobuo
Tsuji vs. Takashi Murakami: Battle Royale!: Japanese Art History,
no qual se incluiu a obra Os quinhentos rakan, de Kazunobu.
O ensaio do historiador perpassa vários dos rolos de pintura,
com uma visão geral do conjunto. Tsuji também contribui
com informações sobre o artista e a prática de produção de
imagens de rakan/arhats, tanto em pinturas quanto em escul-
turas chinesas e japonesas, afirmando a raridade do trabalho
monumental de criar os cem rolos de pintura.

DISCUSSÃO
Sendo a obra de Kazunobu Kanō antecedente e uma refe-
rência ao trabalho de Murakami, nossa análise começa
por ela. Segundo Graham (2010), o artista, nascido em Edo
e filho de antiquário, ainda jovem já demonstrava talento
para a pintura, tendo estudado com Tsutsumi Tōrin III
(1789-1830), cujo estilo combinava os das escolas Tosa
(caracterizada pelo uso de cores claras, em pinturas deli-
cadas que representam histórias do Japão antigo) e Shijō
ARTE COMO CONSOLO 299

(distinta pela aplicação de cores claras em composições


poéticas, líricas, de pássaros e flores, paisagens e composi-
ções baseadas em desenhos do dia a dia).
Mais tarde, aprofundou seu aprendizado com o mestre
Akinobu Kanō (1765-1826), passando a integrar a escola
Kanō, a maior e mais bem-sucedida academia de pintura
profissional japonesa no período. Nela, o artista estudou de
perto as obras dos grandes mestres, passando a ter clientes
institucionais e particulares. Com o tempo, seu trabalho
alcançou reconhecimento e popularidade, o que resultou em
uma grande encomenda4 feita em 1854 pelo templo Zōjō-ji,
localizado em Quioto: cem rolos de pintura retratando os
quinhentos rakan.
Para a realização do projeto de imagens de caráter
educativo acerca dos ensinamentos budistas, Kazunobu
fez uma série de viagens pelo Japão, estudando as escul-
turas e pinturas já feitas sobre o tema. A importância finan-
ceira da encomenda foi elevada no ano seguinte, quando
o país sofreu com a destruição provocada por um grande
terremoto. Diante da tragédia, o artista intensificou seus
esforços para produzir a obra, que levaria quase dez anos
para ficar pronta.
Infelizmente, apenas um artigo não seria suficiente
para analisarmos os cem rolos de pintura, sendo necessário
selecionar alguns exemplos que, espera-se, possam oferecer
uma visão geral sobre como Kazunobu desenvolveu o tema,
bem como incentivar estudos futuros.
Divididas em oito grupos — “Monaquismo fantástico”;
“Navegando os seis reinos”; “Prática das doze disciplinas”;
“Poderes sobrenaturais”; “Pássaros e bestas”; “Visitando
o palácio do dragão”; “Os sete infortúnios”; e “Visitando os

4 Além do volume de imagens, o valor investido pelo templo foi bastante


significativo, sendo, segundo Edan Corkill (2011), equivalente a cem
milhões de ienes, em 2022, correspondendo a quase 4 milhões de reais.
300 Barretto L. M. Y.

quatro continentes”5 — e sempre em pares, em cenas que


conversam entre si e partilham do mesmo cenário, ainda que
não tenham encaixes perfeitos, como seria se uma imagem
fosse cortada na metade —, as pinturas oferecem diferentes
contextos vividos pelos rakan.

Figura 1. Kazunobu Kanō. Os quinhentos rakan: vida cotidiana, rolo 1, c. 1854-1863.

5 A tradução das sessões foi feita a partir das informações fornecidas, em


inglês, pela exposição Masters of Mercy: Buddha’s Amazing Disciples (2012).
Os títulos originais em inglês são: “Fantastic Monasticism”; “Navigating
the Six Realms”; “The Twelvefold Dhuta Practive”; “Supernatural
Powers”; “Birds and Beasts”; “Visiting the Dragon Palace”; “The Seven
Misfortunes”; e “Visiting the Four Continents”.
ARTE COMO CONSOLO 301

,
Figura 2. Kazunobu Kanō. Os quinhentos rakan: vida cotidiana rolo 2, c. 1854-1863.

O primeiro grupo, “Monaquismo fantástico”, traz cenas


de atividades rotineiras dos seres iluminados. Em alguns,
como nos rolos 1 e 2 (respectivamente Figuras 1 e 2), por
exemplo, que partilham o subtítulo “Vida cotidiana”, vemos
suas funções enquanto guardiões do budismo. Os rakan
estão em um plano terrestre, porém extremamente elevado,
visto que no plano de fundo temos o céu, picos de montanha
e muitas nuvens. Nesse espaço de encontro entre o divino e
o terreno, dois rakan (Figura 1) acompanham com atenção
a leitura dos sutras budistas realizada por um terceiro.
Próximo a eles, um iluminado de vestes marrons entrega
uma veste branca para um homem extremamente magro,
302 Barretto L. M. Y.

representando sua responsabilidade de cuidar e proteger


os mortais. Enquanto isso, um rakan sentado em posição de
lótus (Figura 2) parece supervisionar a produção de incenso,
um item essencial nas cerimônias budistas. Ao fundo, flutua
nas nuvens uma casa onde é possível ver alguns dos seres
iluminados convivendo.
As cores fortes dos tons vibrantes de vermelho, azul e
azul índigo que tingem as vestes nessa primeira imagem
estão presentes em todo o conjunto. Segundo James
Ulak (2012), essa escolha cromática é uma particularidade
da obra de Kazunobu que a diferencia da iconografia budista
japonesa tradicional, frequentemente associada a cores mais
serenas e contemplativas.
O cotidiano dos rakan também envolve atividades
mais mundanas, como o ato de se banhar. Nos rolos de
pintura 9 e 10, intitulados “O banho”, alguns dos discípulos
de Buda já estão alojados numa casa de banho ao fundo,
enquanto outros aguardam do lado de fora, em fila, respon-
dendo ao chamado dos tambores tocados por um assis-
tente. Outras atividades ligadas à higiene pessoal também
pertencem à cena, com os rakan aparando as unhas ou
fazendo a barba. De certo modo, essa imagem humaniza os
seres iluminados, fazendo com que o caminho que incen-
tivam sirva de exemplo aos demais os mortais.
Ainda nessa seção, nos rolos de pintura 17 e 18, vemos
um momento que conecta rakan e humanos. Intitulado
“Tonsura”, um casal de pais orgulhosos testemunha dois
jovens, curvados perante os rakan, anunciarem o caminho
no qual seguirão. Complementarmente, Kazunobu ilustra
o ritual da tonsura, em que o cabelo é raspado, indicando
a iniciação como monge budista. Essa imagem não apenas
retrata diferentes tempos do caminho percorrido pelos
rakan, mas também seu papel em compartilhar os ensina-
mentos com gerações mais jovens.
ARTE COMO CONSOLO 303

“Navegando os seis reinos”,6 a seção seguinte, que


engloba os rolos 21 a 40, é descrita por Tsuji (2017) como um
momento em que a paixão do artista atinge níveis extraor-
dinários. O historiador destaca em particular os rostos das
almas dos mortos nos rolos 21 e 22, “Inferno”, que são tortu-
rados por demônios. Os rakan adentram a cena em cima de
uma nuvem: um deles agita seu leque, produzindo um vento
que apaga as chamas de um demônio, enquanto outro usa
seu cajado para resgatar almas de dentro de um caldeirão.
Os rostos dos seres malignos indicam o espanto e a incom-
preensão de como aquelas pessoas são salvas.
A situação alarmante dos rolos 31 e 32, no entanto, não
é interferida pelos rakan. Intitulada “Espíritos em guerra”,
a imagem é dividida horizontalmente ao meio por uma faixa
de nuvem. Acima dela, os rakan observam uma multidão —
asuras, provavelmente — em conflito, armada com lanças e
flechas, prestes a se digladiar. Os rostos dos guerreiros são
extremamente expressivos, e têm as feições deformadas
pela ira — um resultado semelhante à ilustração do medo
nas almas no inferno. Os rakan também têm suas feições
alteradas, demonstrando decepção, de modo muito diferente
das dos primeiros rolos, em que estavam calmas e serenas.
Uma das cenas da próxima seção, intitulada “Prática das
doze disciplinas”7, é destacada no texto de Tsuji (2017) por
sua inovação estética. Na série que mostra o treinamento
budista seguido pelos jovens monges, o historiador destaca
os rolos 49 e 50, intitulados respectivamente “Vivendo sob as

6 O texto de Tsuji (2017) traduzido para o inglês intitula essa seção como
“The Six Realms of Existence” (“Os seis reinos da existência”), em vez
de “Navigating the Six Realms” (“Navegando os seis reinos”), que, como
explicado em nota anterior, decidiu-se adotar neste artigo. Porém, na
ausência dos títulos originais em japonês, considerou-se pertinente,
quando possível, oferecer os diferentes títulos encontrados.
7 Traduzida em Tsuji (2017) como “Sutra on the Twelve Disciplines”
(“Sutra sobre as doze disciplinas”).
304 Barretto L. M. Y.

árvores” e “Meditação no solo”, que mostram os rakan medi-


tando sob a lua. O resultado fantástico do efeito de ilumi-
nação do pálido luar, analisa o historiador, foi uma inovação
notável na pintura japonesa.
Na série “Poderes sobrenaturais”,8 os rakan demonstram
outros poderes além dos usados no resgate das almas em
“Inferno”. Nos rolos 51 e 52, eles enchem uma vez mais de
água um rio que havia secado, e o fazem juntos, mas cada qual
de uma maneira: um deles despeja uma quantidade infinita de
um jarro; outro usa uma bengala para tirar água de pedra; um
terceiro simplesmente a verte de sua própria cabeça.
Kazunobu expande o universo dos iluminados ao incluir
animais: de acordo com o budismo, animais são seres cons-
cientes, capazes de sofrer e de atingir a iluminação. Alguns
deles interagem com os rakan nos rolos 61 e 62, em uma exis-
tência harmoniosa. Raposas levam os discípulos de Buda
para voar pelos céus, um leopardo encontra um ombro para
repousar e um unicórnio tem suas orelhas limpas por rakan.
Em “Visitando o palácio do dragão”, seguimos os rakan
por cenários mitológicos, cuja maravilha oferece alento e
esperança além da vida aos que alcançarem a iluminação.
Nos rolos 71 e 72, o palácio do dragão, famoso pela lenda
de Tarō Urashima, é buscado pelos rakan. Todavia, eles não
usam tartarugas para encontrá-lo, montando ao em vez disso
um polvo, um camarão, um cavalo e um tigre, entre outros.
Na seção “Os sete infortúnios”, encontraremos outra vez
a expressividade de rostos transformados por dor e deses-
pero, aqui extremamente próximos do contexto social em
que Kazunobu desenvolvia esse trabalho. Os rolos 81 e 82,
intitulados Terremoto, em particular, estão diretamente rela-
cionados ao desastre de 1855. Neles também há uma divisão
horizontal, que separa os seres iluminados do caos. Ambos
os rolos têm a parte inferior preenchida por cenas da tragédia
provocada pelo terremoto, com casas despedaçadas e seus

8 Traduzida em Tsuji (2017) como “Divinity” (“Divindade”).


ARTE COMO CONSOLO 305

tetos devorados por chamas. As pessoas tentam escapar,


mas algumas delas são pegas por demônios que tentam levá-
-las diretamente ao inferno. Porém, a metade superior das
pinturas surge como um alento. No céu preto, uma nuvem
dourada traz inúmeros rakan buscando remediar a situação
catastrófica. Alguns rezam e outros despejam água sobre os
focos de incêndio, enquanto cordas são usadas para resgatar
os mortais. Suas ações são supervisionadas por Kannon, a
bodhisattva da misericórdia, que aparece ao fundo.
Conforme Kazunobu chega aos últimos rolos de pintura,
que pertencem à seção “Visitando os quatro continentes”, ele
retoma um tom mais sereno. Em “Oeste”, rolos 97 e 98, vemos
uma cena em um lugar elevado, onde apenas os cumes das
montanhas que o cercam são aparentes. Nuvens douradas
formam um caminho descendente para que os rakan possam
se encontrar com os mortais, que os recebem com as mãos
em oração. A imagem idílica é composta principalmente de
mulheres e crianças convivendo com animais. De acordo com
o mito, existiria um continente em cada ponto cardeal. Aquele
localizado no Oeste teria contornos arredondados (talvez por
isso haja uma suavização nos telhados) e seria uma terra de
pessoas sorridentes, criadoras de vacas e ovelhas.
Ao fundo da cena, no lugar do céu azul presente nos
primeiros rolos do conjunto, aparece uma gradação de
laranja e vermelho que, segundo Ulak (2012), sugere o pôr
do sol, anunciando também o fim desse conjunto (estes são,
afinal, os rolos 97 e 98).
A conclusão de Os quinhentos rakan em 1863 repre-
sentou não apenas a realização da maior obra de Kazunobu,
mas também a última. O artista infelizmente faleceu pouco
antes da obra ser concluída, embora ele já tivesse estrutu-
rado sua conclusão9. Na época em que recebeu a encomenda,

9 Segundo Tsuji (2017, p. 269, tradução nossa), especula-se que o último


rolo pintado pelo próprio Kazunobu teria sido o 96, embora o histo-
riador acredite que, na verdade, perto do rolo 70 que teria havido uma
considerável mudança estética: “É por volta desse ponto que as cores
306 Barretto L. M. Y.

Kazunobu já tinha seus discípulos, e pelo menos dois


deles — dos quais apenas o nome Kazuyoshi é conhecido —
trabalharam nesse projeto, além de sua esposa, Yasu (?-1897).
Mas, ao que parece, ele já teria terminado de fazer os dese-
nhos (faltando apenas pintar), ou havia pelo menos deixado
instruções ou rascunhos que possibilitaram o término dela
na sua ausência.
Embora os rakan possam ser figuras piedosas, o destino
não foi tão gentil com essa obra. A sua primeira expo-
sição foi realizada em janeiro de 1864, no salão do templo
Zōjō-ji. Depois disso, ela passou a ser exposta duas vezes
ao ano, nos equinócios da primavera e do outono, até 1872.
No ano seguinte, ocorreu um incêndio no salão principal do
templo, e, embora as obras não tenham sofrido danos por
não estarem em exposição, elas ficaram quase quinze anos
sem espaço determinado para serem expostas. Em 1878, a
viúva de Kazunobu patrocinou a reconstrução de um novo
salão, e os rolos voltaram a ser expostos. Em 1945, uma nova
tragédia atingiu o templo, embora novamente as pinturas
tenham sido poupadas, quando o prédio foi destruído por
bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial.
Depois desse episódio, o conjunto ficou guardado por
quase setenta anos, quando o museu Edo-Tóquio decidiu
apresentá-los na exposição Os Quinhentos Rakan: Pinturas
Budistas por Kazunobu Kanō, em 2011. A abertura da mostra
se deu poucos dias depois do Grande Terremoto do Leste do
Japão, em 15 de março, ficando em cartaz até 29 de maio.
O contato de Murakami com a obra de Kazunobu Kanō
pode ter se dado nesse momento, quando o tema dos rolos de
pintura se tornou extremamente relevante e uma grande fonte
de alento ao povo japonês, de maneira semelhante ao ocor-
rido quando do momento de sua produção. Porém, o artista

se tornam gradualmente mais extravagantes” [“It is around this point


that the colors become increasingly garish...].
ARTE COMO CONSOLO 307

contemporâneo certamente teve uma aproximação com a obra


no projeto Nippon e-awase, realizado com Tsuji.
Dentre as obras propostas por Tsuji, os arhats já
haviam aparecido com Os quinhentos arhats de 1788, de
Rosetsu Nagasawa (1754-1799), uma pintura extremamente
pequena e delicada, para a qual Murakami respondeu com
as mesmas proporções, intitulando-a Estudo de os quinhentos
arhats de Rosetsu Nagasawa, realizada em 2011. É interessante
notar que, embora seja referida como “estudo”, a obra de
Murakami, quando colocada lado a lado com a de Nagasawa,
parece mais concluída, com figuras de contornos mais defi-
nidos e com uso maior de cores.
Essa conexão de Murakami com os arhats acaba
evoluindo de forma quase natural com as semelhanças
entre os eventos de 2011 e o contexto de produção da obra de
Kazunobu. Segundo o artista contemporâneo,

Os [quinhentos] arhats foram concebidos depois de 3/11 —


o terremoto japonês de 2011. Nos tempos antigos, quando
havia um desastre, os monges encomendavam pinturas para
promover a religião para pessoas que estavam sofrendo.
Eu considero Os [quinhentos] arhats um equivalente desses
trabalhos históricos. É uma pintura de consolo — é a minha
Guernica, talvez10 (MURAKAMI, 2012, p. 150, tradução nossa).

Os quinhentos arhats hoje é uma obra dividida em quatro


partes, embora fosse inicialmente reunida em uma única
obra, de cem metros de comprimento. Apesar de ser dirigida
ao povo japonês, sua apresentação inicial no Qatar foi feita
em agradecimento ao país por ter sido um dos primeiros a
ajudar o Japão em 2011.

10 “The [Five Hundred] Arhats was conceived after 3/11 — the Japanese
earthquake in 2011. In the old days, when there was a disaster, the monks
had paintings made that they used to promote religion among the people
who were suffering. I consider The [Five Hundred] Arhats to be an
equivalent of those historical works. It’s a consolatory painting — it’s my
Guernica, perhaps.”
308 Barretto L. M. Y.

Cada seção foi intitulada de acordo com as divindades


que, na mitologia chinesa, protegem cada um dos pontos
cardeais: o dragão azul é o guardião do Leste, o tigre branco
guarda o Oeste, o pássaro vermelho é o guardião do Sul
e, finalmente, a tartaruga preta é a guardiã do Norte —
a mesma divisão dos quatro continentes que intitula a última
seção da obra de Kazunobu.
Assim como foi preciso fazer uma pequena seleção
sobre os cem rolos de pintura, aqui nos deteremos sobre
alguns recortes das extensas telas de Murakami para uma
leitura mais detalhada.

Figura 3. Takashi Murakami. Os quinhentos arhats (Tigre branco), detalhe, 2012.

A organização em painéis estabelece algumas particu-


laridades para cada seção. Na obra que traz o tigre branco
(Figura 3), são representados 220 arhats, a maior parte de
pé e de frente para o espectador. Essa postura é um detalhe
importante no trabalho de Murakami, que com frequência faz
uso desse olhar direto dos elementos do quadro como uma
forma de interação com o observador, orientando a contem-
plação da imagem. Assim, parece que somos guiados por um
fluxo de traços verticais. Atraídos pelos olhos, percorremos
os corpos envoltos em coloridas vestes em direção à margem
inferior do quadro, onde pequeninas figuras nos conduzem
em pequenos ziguezagues, também verticais, antes de nos
expandirmos em direção a outro dos grandes arhats.
ARTE COMO CONSOLO 309

Alguns elementos da obra impedem que esse movi-


mento de sobe e desce seja contínuo por toda a sua extensão.
A presença do corpulento tigre branco e do Baku — uma
figura mitológica capaz de devorar pesadelos e cujo corpo
é uma combinação de diversos animais, incluindo urso,
elefante, rinoceronte, tigre e vaca — forma momentos de
respiro, em que o padrão de contemplação é quebrado.
A quantidade de detalhes também dispersa o fluxo inten-
cionado por Murakami, nos detendo em cada um deles com
a complexa combinação de cores nos traços e nas estampas
das vestes. As feições dos elementos retratados também são
evasivas — como caricaturas, os arhats têm feições exage-
radas e distorcidas, beirando o grotesco, uma abordagem
bastante particular dos seres iluminados.

Figura 4. Takashi Murakami. Os quinhentos arhats (Pássaro vermelho), detalhe, 2012.

Nos deslocando para o painel do Pássaro vermelho


(Figura 4), vemos uma organização espacial consideravel-
mente diferente. O personagem do título é o único animal
mitológico presente e, com suas dimensões e posição
central, protagoniza a imagem. Apesar de seu nome —
Pássaro vermelho —, seu retrato é construído com uma
certa liberdade: múltiplas cores compõem sua penugem,
limitando os tons rubros à crista e a uma única seção de
penas, que é cortada pelo topo da tela. Mas se, por um lado,
estabelecemos que a estética de Murakami não tem uma
preocupação de ser fiel com a imagética esperada, também
310 Barretto L. M. Y.

é preciso reconhecer como ele mantém o significado dos


elementos representados. A forma caricata dos arhats, por
exemplo, poderia destituí-los de sua importância como seres
iluminados, rebaixando-os à condição de homens, mesmo
que percebidos como monges por suas vestes. Mas ao colo-
cá-los em posição meditativa, em lótus, flutuando sobre
a superfície da água, Murakami parece lhes devolver a
condição de seres sobrenaturais. Também o plano de fundo
da imagem — uma representação do cósmico, com nebu-
losas e um sistema solar — contribui para elevar o status
dos personagens retratados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Além do título em comum, a comparação das obras de
Kazunobu e Murakami pode trazer uma série de aproxi-
mações — e distanciamentos. A monumentalidade, por
exemplo, é uma característica compartilhada por ambos
os projetos. Mesmo que consideremos que, no caso de
Kazunobu, o formato foi ditado pelo templo que fez a enco-
menda, seria impossível não reconhecer o esforço tanto de
sua pesquisa quanto da execução exigidas para conclusão
da obra. De maneira semelhante, mesmo sem intenção,
Murakami equiparou a dificuldade de executar sua visão,
mesmo contando com centenas de assistentes, ao criar uma
pintura extremamente complexa. A construção dos seus
arhats envolveu o uso de mais de quatro mil telas serigrá-
ficas para obter traços precisos, aplicando uma extensa
paleta cromática.
Na verdade, o intrincado trabalho com cores não é
inédito na obra de Murakami, embora aqui tenha atingido
um novo patamar. Mas se Kazunobu ainda operava dentro
da estética Kanō, divergindo dela com certa timidez —
como apontado por Ulak (2012) —, o artista contemporâneo
está totalmente desprendido de influências externas,
expandindo continuamente a estética que ele desenvolve
ARTE COMO CONSOLO 311

desde o final dos anos 1990, quando começa a formular o


conceito de super flat11.
A liberdade de Kazunobu em certos momentos, com
a expressividade dos rostos, também é exponencialmente
manifestada nas faces dos arhats de Murakami. Embora o
interesse do artista contemporâneo por retratos grotescos
anteceda esse projeto, talvez seja plausível especular que
ele siga uma possibilidade aberta pelo artista Kanō. Em
outras palavras, se a obra do século XIX foi encomendada
para ser produzida dentro de uma tradição e, ainda assim,
pode transparecer emoções humanas mesmo na represen-
tação de seres iluminados, por que não poderia ele próprio,
no século XXI, extrapolar essa ideia?
Independentemente dessa hipótese ser verdadeira,
é importante observarmos que o processo de apropriação
e transformação desses personagens na obra de Murakami
não está relacionado com uma desconstrução de significado
no sentido de depreciar os arhats. Pelo contrário, ao resgatar
essa temática e imprimi-la sob sua estética, o artista reco-
nhece sua importância e potencialmente expande o público
que o antecede. Se, por um lado, Os quinhentos rakan desen-
volvidos para o templo Zōjō-ji tinham, inicialmente, um
espaço fixo, que exigiria que as pessoas o visitassem para
conhecer a obra de Kazunobu, por outro, Murakami nunca
teve essa rigidez — apesar das dimensões grandiosas,
quando dividida em quatro partes, a peça se aproxima de
outras do artista que já viajaram pelo mundo. Além disso,
sua permanência em solo japonês durante a exposição reali-
zada no museu Mori também resgata o significado que a obra
de Kazunobu tinha dentro do contexto em que foi feita. Em

11 Na exposição Super Flat (2000), Murakami explana o conceito em


imagens e textos (presentes no catálogo da mostra), afirmando que se
trata de uma sensibilidade japonesa capaz de fundir diferentes tempos
e culturas. No caso de seu próprio trabalho, isso se manifesta, por
exemplo, nos variados artistas que ele tem como referência e influen-
ciam suas obras.
312 Barretto L. M. Y.

outras palavras, assim como os cem rolos de pintura pode-


riam trazer alento aos frequentadores do templo em Quioto
depois da tragédia de 1855, a oportunidade de contemplação
da obra de Murakami também poderia despertar um senti-
mento semelhante nos visitantes da exposição.
Mesmo para aqueles que não são budistas, parece-nos
que a experiência de ficar frente aos arhats de Murakami
torna a comparação com a Guernica, de Picasso, extre-
mamente válida, sendo a dor da catástrofe impressa nos
rostos dos arhats semelhante à expressão dos corpos frag-
mentados da obra cubista. O desconhecimento anterior ao
tema da obra, que impele à pesquisa e permite o descobri-
mento de Kazunobu e Nagasawa, também não impede o
estabelecimento de empatia diante do sofrimento daqueles
que sobrevivem. Pelo contrário: os artistas ficam dispostos
para aqueles que, tendo conhecido ou vivido contextos que
se aproximem da catástrofe que motivou a obra, possam se
reconhecer e buscar sua própria forma de recuperação.

BIBLIOGRAFIA
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In: MASSIMILIANO, Gioni; MURAKAMI, Takashi. Murakami-Ego.
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FARANI, Donatella Natili. Os 500 arhats: o retorno de Murakami


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ARTE COMO CONSOLO 313

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TSUJI, Nobuo. Nobuo Tsuji vs. Takashi Murakami: Battle Royale!:


Japanese Art History. Trad. de Christopher Stephens, Yuko Sakata.
Tokyo: Kaikai Kiki, 2017.

ULAK, James. Masters of Mercy: Kano Kazunobu and the Buddha’s


Amazing Disciples Resurrecting and Understanding a Major Buddhist
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2012, p. 108-116.

WILLIAMS, C.A.S. Chinese Symbolism and Art Motifs: A Comprehensive


Handbook on Symbolism in Chinese Art Through the Ages. North
Clarendon, VT: Tuttle, 2006.

FONTES DAS FIGURAS


Figura 1
KANŌ, Kazunobu (18161863). Os quinhentos rakan: vida cotidiana, rolo 2
(The Five Hundred Rakan: Daily Life, scroll 2), c. 18541863. Rolo de
pintura, seda, tinta sumi e pigmento sobre seda, 172,3 × 85,3 cm. Coleção
do templo Zōjōji, Tokyo. Disponível em: https://archive.asia.si.edu/
exhibitions/online/masters-of-mercy/detail.asp?theme=fm&set=01-02.
Acesso em: 13 ago. 2020.

Figura 2
KANŌ, Kazunobu (18161863). Os quinhentos rakan: vida cotidiana,
rolo 1 (The Five Hundred Rakan: Daily Life, scroll 1), c. 18541863. Rolo
de pintura, seda, tinta sumi e pigmento sobre seda, 172,3 × 85,3 cm.
Coleção do templo Zōjō-ji, Tokyo. Disponível em: https://archive.
asia.si.edu/exhibitions/online/masters-of-mercy/detail.asp?theme=-
fm&set=01-02. Acesso em: 13 ago. 2020.
314 Barretto L. M. Y.

Figura 3
MURAKAMI, Takashi (1962-). Os quinhentos arhats (Tigre branco)
(The Five Hundred Arhats [White Tiger]), detalhe, 2012. Tinta acrílica
sobre tela montada em madeira, 302 × 2500 cm. Galerie Perrotin, Paris.
Disponível em: TSUJI, Nobuo. Nobuo Tsuji vs. Takashi Murakami:
Battle Royale!: Japanese Art History. Trad. de Christopher Stephens,
Yuko Sakata. Tokyo: Kaikai Kiki, 2017.

Figura 4
MURAKAMI, Takashi (1962-). Os quinhentos arhats (Pássaro vermelho)
(The Five Hundred Arhats [Vermilion Bird]), detalhe, 2012. Tinta acrí-
lica sobre tela montada em madeira, 302 × 2500 cm, Galerie Perrotin,
Paris. Disponível em: TSUJI, Nobuo. Nobuo Tsuji vs. Takashi Murakami:
Battle Royale!: Japanese Art History. Trad. de Christopher Stephens,
Yuko Sakata. Tokyo: Kaikai Kiki, 2017.
Shimizu P. Y.

O GRANDE TERREMOTO DE KANTŌ


DE 1923 EM ESTAMPAS JAPONESAS

Priscila Yanagihara Shimizu


Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO
Em 1º de setembro de 1923 houve um grande terremoto na
região de Kantō, no Japão, e subsequentes tsunamis e incên-
dios, os quais resultaram em morte e destruição. Tamanha fora
a catástrofe que, a partir de 1960, esse dia foi eleito como o Dia
de Prevenção de Desastres (Bōsai-no hi 防災の日). Depois do
terremoto, o Japão teve que se reconstruir mais uma vez. Neste
ensaio, foram analisadas duas estampas feitas por Sengai
Igawa (1876-1961), artista japonês que desenvolveu gravuras a
partir de suas experiências em guerras e desastres. Elas fazem
parte da série Imagens do terremoto de Taishō (Taishō shinsai gashū
大正震災画集), da qual nove artistas participaram. A partir do
estudo dessas estampas, procura-se refletir de que forma os
japoneses lidam com as catástrofes naturais, com suas causas
e consequências, e quais os motivos que levam as pessoas a
consumir narrativas e imagens de dor e sofrimento.
Palavras-chave: Terremoto de Kantō. Xilogravura japonesa.
Catástrofe. Sengai Igawa.

ABSTRACT
In September 1st, 1923, there was a great earthquake in the Kantō
region, in Japan, and subsequent tsunamis and fires followed,
which resulted in death and destruction. Such was the catastrophe
318 Shimizu P. Y.

that, from 1960 onwards, such day was elected as the Disaster
Prevention Day (Bōsai-no hi 防災の日). After the earthquake,
Japan had to rebuild itself once more. In this text, we analyzed two
woodcut prints made by Sengai Igawa (1876-1961), a Japanese
artist who developed prints from his war and disaster expe-
riences. They are part of a series entitled Images of the Taishō
Earthquake (Taishō shinsai gashū 大正震災画集), in which
nine artists participated. From the study of these prints, we aim
to reflect upon questions such as the way Japanese people deal with
natural disasters, their causes and consequences and the reasons
why people consume narratives and images of pain and suffering.
Keywords: Kantō earthquake. Japanese woodblock print. Catastrophe.
Sengai Igawa.

Por ser um arquipélago e estar sob placas tectônicas irregu-


lares, as quais, ao se movimentarem, causam terremotos e
tsunamis, o Japão é um país que sofre catástrofes naturais
constantemente. No entanto, ao longo de sua história, se
discute, tanto na academia quanto na sociedade, a existência
de outros motivos que levam o país a ser palco de tantos
desastres naturais. Percebe-se isso não apenas em relatos
escritos, mas também através das narrativas de imagens
desenvolvidas depois e sobre cada evento.
O tema principal deste ensaio é o terremoto ocorrido
em Kantō em 1923. A região abarca as cidades de Kanagawa,
Tóquio, Saitama, Gunma, Tochigi, Ibaraki e Chiba, locali-
zadas na ilha de Honshū, a maior do Japão. Naquele ano,
o Japão já completara algumas décadas desde sua abertura
oficial no período Meiji (1868-1912) e do início do processo de
ocidentalização. Parte daquela sociedade já se questionava
se aquelas mudanças estavam, de fato, trazendo benefícios e
avanços consideráveis ao país.
Segundo Schencking (2008, p. 304) e Weisenfeld (2015,
p. 2), ainda que o grande terremoto tenha sido um desastre
O GRANDE TERREMOTO DE KANTŌ DE 1923 319

natural, ele foi utilizado por alguns como metáfora da


destruição do tradicional pelo “moderno” ocidental. Porém,
pode-se dizer que essa análise não é apenas uma metáfora,
mas também um fato, uma vez que o terremoto gerou devas-
tação nas cidades e destruiu boa parte do Japão antigo — além
disso, eliminou grandes centros comerciais que incentivavam
o consumismo. Ou seja, se por um lado existia uma crítica
acerca da destruição ou diminuição do aspecto tradicional na
cultura japonesa, por outro, também havia o entendimento de
que os prédios ocidentalizados não resistiam às catástrofes.
Assim como em 1923 foram feitos questionamentos sobre
os motivos daquela catástrofe, as pessoas também buscaram
explicações para o grande terremoto que aconteceu na era
Ansei (1854-1860), entre 1854 e 1855. Depois do tremor, um
tsunami subsequente matou mais de dez mil pessoas. Esse
evento resultou na popularização de imagens chamadas
namazu-e, “pinturas-de-bagre-gigante” (Figura 1), nas quais o
peixe serve como alerta para possíveis desastres. Presente nas
estampas japonesas desde o século XV, as namazu-e passam a
ser associadas a desastres naturais somente no século XVIII,
período no qual os bagres eram considerados divindades rela-
cionadas a enchentes ou fortes chuvas. O peixe era uma criatura
mitológica de tamanho colossal, habitante das ilhas japonesas
e protegido por Takemikazuchi ou Kashima, deus do trovão e
da espada. Existe uma lenda que diz que os terremotos eram
causados pelo movimento desse grande bagre, que carregava
o arquipélago em suas costas. Segundo ela, aquele monstro
marítimo pode trazer boa ou má sorte (CLANCEY, 2006, p. 934).
Observa-se na Figura 1 a representação de diversos
setores da sociedade, com suas vestimentas e instrumentos de
trabalho. Todos estão tentando derrotar o grande bagre que os
ameaça e traz destruição, apesar de sua expressão ser mais de
susto que de agressão. Essa estampa foi desenvolvida depois
do grande terremoto de Ansei, e mostra em detalhes como a
população lutou para sobreviver ao desastre, evocando a força
da reconstrução e a resiliência do povo japonês. Além disso,
320 Shimizu P. Y.

em termos estruturais, pode-se notar que, pela dobra evidente


no meio do papel, a estampa foi publicada em um álbum de
imagens, uma forma comum de publicação no período.

Figura 1. Artista desconhecido. A causa do grande bagre em Shin Yoshiwara


(Shin Yoshiwara ōnamazu yurai), 1855.

As interpretações do terremoto que tratam de questões


outras que as físicas e geológicas sempre existiram. A partir
da associação do bagre com as catástrofes, pode-se perceber
uma compreensão que relaciona desastres naturais a um
castigo divino provocado por ações humanas. Ainda sob
essa perspectiva, e diante do avanço da ocidentalização
no Japão, pairaram no imaginário comum do período os
motivos daquele terremoto em Kantō. Um símbolo dessa
ideia de punição foi a destruição da loja de departamento
Mitsukoshi, que representava o consumismo exacerbado
das classes sociais mais altas (SCHENCKING, 2013). Assim,
compreende-se que as mudanças trazidas pela ocidentali-
zação do Japão, fizeram com que a sociedade se tornasse
mais consumista — a devastação causada em 1923 foi,
O GRANDE TERREMOTO DE KANTŌ DE 1923 321

portanto, interpretada pelos críticos do processo de ociden-


talização como uma lição aos japoneses.
Ainda que essas explicações sejam plausíveis para parte
daqueles que buscam um motivo que justifique as catástrofes,
esses pretextos podem se tornar injustos ou infundados para
outros. O que queremos mostrar é que, há muitos séculos,
existe uma busca por explicações que, por vezes, passam
pelo crivo das crenças em divindades e seus castigos.
O grande terremoto de Kantō, ocorrido em 1º de setembro
de 1923, às onze horas e 58 minutos da manhã, teve classifi-
cação de 7,9 na escala Richter. Note-se que essa escala para
quantificar a dimensão de sismos foi desenvolvida somente
em 1935, ou seja, posteriormente ao evento, mas entende-se
a importância de trazer esse dado para que se tenha uma
ideia do desastre. Os cálculos posteriores foram feitos com
base nos dados da época. Tamanho foi o terremoto, que
chegou a derrubar a grande estátua de Buda, de 121 toneladas,
em Kamakura, a sessenta quilômetros do epicentro.
Além da destruição causada pelo evento, houve um
tsunami com ondas com cerca de doze metros, que mataram
algumas pessoas. No entanto, mais terrível ainda foram os
focos de incêndio iniciados pelos carvões que estavam sendo
utilizados em muitas casas pelas famílias que preparavam
seus almoços. Sabe-se que, naquela época, grande parte das
pessoas utilizavam carvão para cozinhar. Esses pequenos
focos de incêndio foram se agravando de tal maneira que
alguns se transformaram em tornados de fogo, fazendo com
que seu avanço fosse ainda mais rápido. Estima-se que mais
de cem mil pessoas perderam suas vidas em decorrência
dessas catástrofes.
Assim, parte da população acreditava que o grande
terremoto era um castigo; porém, os políticos e burocratas
interpretaram esse evento como uma oportunidade para
o Japão avançar ainda mais na construção de prédios de
estilo ocidental (SCHENCKING, 2008, p. 297). Apesar
dessas visões serem opostas, cada camada da sociedade
322 Shimizu P. Y.

enxergou a situação do país de um jeito diferente, o que


levou a ações específicas no momento da reconstrução.
Além disso, as escolhas na forma de representar esse acon-
tecimento também eram influenciadas pela mensagem que
se desejava transmitir.
Segundo Clancey (2006, p. 920), algumas imagens eram
mais alegóricas, como as que mostravam tijolos de alve-
naria voando na direção das pessoas, atacando-as. Esse era
um símbolo das mudanças no Japão, por contaminação do
Ocidente. Era como se alguns artistas estivessem mostrando
que, com essas construções de concreto e alvenaria,
era impossível salvar a vida dos japoneses em situações de
terremotos, pois elas eram destruídas de forma diferente das
estruturas tradicionais. Feitas em madeira, elas até podiam
quebrar e desmoronar, mas, se caíssem sobre as pessoas,
o resultado não seria tão grave.
Em uma primeira análise de imagens, foram escolhidas
estampas cuja temática gira em torno dos horrores e conse-
quências desse evento. É provável que a predileção em
produzir gravuras para representar o terremoto e os incên-
dios tenha decorrido de sua alta capacidade de reprodutibi-
lidade. O artista aqui apresentado, Sengai Igawa (1876-1961),
natural de Gifu, foi batizado com o nome de Jōzaburō Igawa;
Sengai era seu nome artístico. Ele foi pintor, ilustrador
e gravurista, estudou nihonga (pintura no estilo japonês)
com Eisen Tomioka (1868-1912) e gravura com Toshitsune
Inano (1858-1907).
Igawa serviu na Guerra Russo-japonesa (1904-1905) e,
depois, se se tornou ilustrador na equipe da revista Miyako
Shinbun 都新聞 (Jornal da Capital). Também contribuiu
com outras publicações como Kingu キング(Rei), Fujin Gahō
婦人画報 (Revista Ilustrada para Mulheres), Kōdan Kurabu講談倶
楽部 (Clube de Narrativas Orais), para as quais produziu ilustra-
ções em diferentes gêneros de escrita. Além disso, suas expe-
riências na Guerra fizeram com que ele retratasse em suas
estampas a dor e o sofrimento de uma multidão de pessoas.
O GRANDE TERREMOTO DE KANTŌ DE 1923 323

Como gravurista, Igawa produziu, junto a outros nove


artistas, uma série chamada Imagens do terremoto de Taishō
(Taishō shinsai gashū 大正震災画集), publicada por Zue
Kenkyūka, além de propaganda sobre a guerra na China.
Porém, o artista ficou mais conhecido por sua Nova seleção
de belas figuras do mundo flutuante (Shin ukiyo-e bijin awase
新浮世絵美人合わせ). Outras séries de estampas também
foram produzidas a partir do terremoto, como Paisagens de
Tóquio depois do terremoto (Tōkyō shinsai ato fūkei 東京震災
後風景), de 1923-1927 (RIMER, 2012, p. 377).
A primeira imagem de Igawa sobre as consequências do
grande terremoto que será mostrada aqui faz parte de uma
série. Na Figura 2 aparecem gueixas que enfrentam dois dos
efeitos do terremoto: as ondas e, depois, o fogo. Apesar de serem
elementos opostos, e muitas vezes a água servir para apagar
o fogo, essa gravura mostra o desespero de não se ter aonde
fugir, uma vez que ambos os elementos estão dominando toda
a região da Terceira Avenida de Yanagibashi, em Tóquio.

Figura 2. Sengai Igawa. “Cena de miséria na área das gueixas em Sanjō


Yanagibashi” (“Karyūkai-no Sanjō Yanagibashi shoken”), da série
Imagens do terremoto de Taishō (Taishō shinsai gashū), 1926.
324 Shimizu P. Y.

Ademais, percebe-se o desespero no único rosto que


aparece de frente, de uma mulher que está se afogando em
meio a chamas e ondas, com os braços e pernas para cima,
como quem pede socorro. Já as outras duas mulheres estão de
costas: uma já está afogada; a outra corre com uma das mãos
estendidas para pegar algum objeto ou para socorrer alguém,
deixando ver os detalhes das estampas de suas roupas.
Pode-se dizer que tudo nessa imagem desvela o deses-
pero pela vida e pelas conquistas materiais que são levadas
pela água. Esses objetos parecem ser de uso cotidiano, ou
parecem ser aquilo que as gueixas conseguiram pegar para
fugir e encontrar um lugar seguro. Ainda que não tenha sido
muito, apenas o que fosse viável de carregar em seus braços,
elas foram surpreendidas pela velocidade da água e do fogo.
É provável que, ao deixar as estampas das roupas evidentes,
o artista tivesse interesse em comunicar quem eram essas
pessoas naquela sociedade: a veste de baixo do mais intenso
vermelho ou rubro-e-branco em estampa miúda e o padrão
de folhas esvoaçantes no quimono externo atestando o
“mundo do salgueiro-chorão” (karyūkai), eufemismo das
áreas de prazeres localizadas em Yanagibashi.
Do mesmo modo que há riqueza de detalhes nas figuras
representadas, o artista também dá relevância à representação
das labaredas de fogo. Elas têm formatos variados e linhas que
evidenciam seu movimento e fugacidade, uma vez que estão se
alastrando rapidamente pelas cidades. Também apresentam
transparência e um dégradé de vermelho que vai das pontas
mais escuras para um tom mais claro, e o vento é mostrado
pelas linhas fortes que envolvem as pessoas em uma grande
espiral. Nessa imagem, o fogo é mais potente do que a água.
Segundo relatos, essa representação foi feita dessa maneira
porque a maior destruição decorreu mais do fogo do que do
terremoto. Assim, é possível afirmar que Igawa se atentou em
mostrar o que ocorreu de mais desesperador naquele momento.
Ainda na mesma série, o artista fez uma gravura de
refugiados que sobreviveram ao terremoto, mas cujos lares
O GRANDE TERREMOTO DE KANTŌ DE 1923 325

foram destruídos. Essas pessoas tiveram de buscar abrigo


nos trilhos de trem, em templos que não haviam desmoro-
nado ou em parques abertos. No lugar do desespero apre-
sentado na Figura 2, na Figura 3 vê-se uma cena mais calma;
todavia, o sofrimento continua sendo a tônica da imagem.

Figura 3. Sengai Igawa. “Refúgio atrás de Asakusa Kannon” (“Asakusa Kannon


ura no hinan”), da série Imagens do terremoto de Taishō (Taishō shinsai gashū), 1926.

Observa-se, ao centro, uma mulher que chora, cansada


diante de tudo o que vivera até aquele momento, tendo seus
objetos amontoados dentro de uma barraca improvisada de
bambus e restos de telhas de metal. Os olhos do observador
se voltam primeiramente para ela, com seu lenço, quimono
e cobertor vermelhos, e depois para as outras pessoas ao
redor, que estão conversando cabisbaixas, ou organizando o
que conseguiram levar de suas casas.
O título da obra, que aparece no canto superior direito, fora
da imagem, indica a localização da cena: o templo Asakusa
Kannon, também conhecido como Sensōji, em Tóquio.
Pode-se ver uma parte do templo, em tom avermelhado,
326 Shimizu P. Y.

no fundo da imagem, como também várias folhas de papel


penduradas em árvores e outros lugares, talvez contendo
nomes de pessoas desaparecidas. Além disso, destaca-se
uma árvore representada do lado direito da estampa, que
corta levemente a imagem na diagonal e transmite certa
segurança e sensação de firmeza depois de tantos abalos
sísmicos. Nela, também há um tratamento mais refinado
com relação às sombras em seu tronco e na copa, bem como
na camisa branca do homem à direita e em parte da cons-
trução do templo. De certo modo, a tristeza dessa mulher —
note que ela parece enxugar lágrimas — encontra alento
embaixo da grande árvore que permanece estável e lhe
proporciona guarida.
A Figura 3 também remete a um momento pós-devas-
tação, com elementos que se mantiveram relativamente
firmes, ou que, ao menos, sobreviveram à sequência de
desastres ocorridos. Por esse motivo, o artista decide mostrar
a árvore e o templo, elementos longínquos e tradicionais,
sobretudo o local que serviu de abrigo para muitas famílias.
Diferentemente da Figura 2, que evidencia o ápice do sofri-
mento e até mesmo um processo de morte, nessa figura do
templo de Asakusa Kannon (Bodhisatva da misericórdia do
distrito de Asakusa) há vida e, certamente, esperança.
Durante a pesquisa dessas e de outras imagens, surgiu
um questionamento sobre o motivo que levaria as pessoas
a consumirem imagens de dor, sofrimento e tragédia. Seria
esse um interesse da maior parte da população que, não
bastando saber da notícia, também necessita ver as imagens
da destruição? Isso é recorrente em diferentes culturas, desde
tempos remotos — desde a época dos gladiadores em Roma,
quando o espetáculo era ver pessoas se matarem, passando
por enforcamentos em praças públicas na Idade Média, publi-
cações de guerras em jornais em diversos momentos, postais
de guerra, fotografias com superexposição de corpos, até hoje,
por meio de vídeos que podem ser assistidos em aplicativos
de streaming e em redes sociais em celulares.
O GRANDE TERREMOTO DE KANTŌ DE 1923 327

Ainda que sempre tenha existido, o questionamento


dos motivos pelos quais esse tipo de representação continua
sendo forte permeou esta pesquisa. No livro Diante da dor
dos outros, Susan Sontag (2003, p. 25) afirma que o ser humano
sempre teve vontade de ver o sofrimento representado.

Parece que a fome de imagens que mostram corpos em sofri-


mento é quase tão sôfrega quanto o desejo de imagens que
mostram corpos nus. Durante muitos séculos, na arte cristã,
imagens do inferno proporcionavam essa dupla satisfação
elementar [...]. Havia também o repertório de crueldades
difíceis de olhar de frente, oriundas da antiguidade clás-
sica; os mitos pagãos, mais ainda do que as histórias cristãs,
oferecem pratos para todos os gostos. Não há nenhuma
acusação moral que recaia sobre a representação dessas
crueldades. Apenas uma provocação: você é capaz de olhar
para isso? Existe a satisfação de ser capaz de olhar para a
imagem sem titubear. Existe o prazer de titubear.

De fato, nas representações artísticas, sempre houve a dor


e o sofrimento, porque elas estão presentes no cotidiano e na
vida das pessoas. Ora essas imagens são frutos de invenção
e ora servem como uma documentação histórica, e é nesse
momento que surge o questionamento dos motivos que levam
as pessoas a apreciarem e consumirem essas iconografias.
Existe um fascínio pela representação da dor, assim como
uma busca por informações de fatos do passado e pela compro-
vação visual da gravidade de determinado evento. Assim como
citado pela autora, ocorre uma satisfação por parte das pessoas
de ser capaz de olhar uma imagem chocante e perceber inter-
namente como seu corpo e mente reagem àquilo.
Portanto, no terremoto de 1923, também houve uma
escolha tanto no que seria representado quanto no modo pelo
qual seria comunicado. Junto às estampas que foram desen-
volvidas e vendidas depois da tragédia, alguns postais com
fotografias também foram veiculados no Japão (Figura 4).
Estes foram importantes e muito populares no país, tornan-
do-se espécies de souvenirs ou notícias para as pessoas. Além
disso, os fotógrafos, autores dessas imagens, se tornaram
328 Shimizu P. Y.

heróis por se colocarem em perigo e “se sacrificarem” para


ajudar o mundo a compreender o evento (WEISENFELD,
2015, p. 3). Introduzidos no país em 1876, cartões postais com
imagens de grandes desastres se tornaram muito populares.
Todas essas imagens contribuíram para a construção do
imaginário do que havia sido a tragédia (STEELE, 2018, p. 3).

Figura 4. Fotógrafo desconhecido. Distrito de Asakusa antes e


depois do terremoto, coleção M. William Steele [1923].

No postal (Figura 4), há duas imagens comparativas de


como era a área de entretenimento de Asakusa antes e como
ficou logo depois do terremoto. Na parte de cima estão mulheres
O GRANDE TERREMOTO DE KANTŌ DE 1923 329

com quimonos e guarda-chuvas, homens e crianças cami-


nhando em meio ao comércio e, embaixo, aparecem diversas
pessoas com suas roupas sujas e desgastadas, a maior parte de
costas, andando na direção oposta de onde estava o fotógrafo.
O contraste entre as imagens é evidente e era esse efeito que
o autor queria mostrar: o mesmo lugar depois da catástrofe,
onde quase tudo tinha virado pó. Entretanto, ainda que seja um
registro de destruição, há pessoas vivas, caminhando.
A partir do estudo dessas imagens, sobretudo das
gravuras feitas depois do terremoto de 1923, ampliou-se a
visão sobre como os japoneses enxergam e enfrentam as
catástrofes, que a princípio podem ser tidas como naturais,
mas que por vezes são encaradas como castigos divinos por
diversos motivos. Especificamente na tragédia estudada
neste ensaio, o terremoto como metáfora da destruição do
estrangeiro, do Ocidente, foi a causa mais argumentada pelos
japoneses e por aqueles que se debruçaram e escreveram
sobre o assunto. Porém, ainda que essa tenha sido a visão
predominante, o país continuou se ocidentalizando por conta
de interesses econômicos de grupos específicos da sociedade.
Além da busca pelos motivos das tragédias, foi apre-
sentada a escolha na maneira de representá-las, e qual a
mensagem que se desejava transmitir. Em geral, perce-
bem-se figuras de resistência, força e esperança ao se
mostrarem sobreviventes lutando contra a água e o fogo,
além do interesse em evidenciar a dor e o sofrimento.
Dessa forma, talvez se possa afirmar que, em momentos
de tragédia, poderia haver um recorte da visão que se deseja
transmitir por meio de narrativas e de iconografias como as
aqui apresentadas. O ponto de vista é de quem está contando,
que pode ter vivenciado ou não o evento, mas cuja inter-
pretação fica a cargo de seu leitor ou ouvinte. Certamente,
desastres, naturais ou provocados, tocam os seres humanos
e seus universos imaginários, como ocorre em muitas socie-
dades que sofreram e sobreviveram — eles deixam marcas,
mas também permitem produções artísticas relevantes.
330 Shimizu P. Y.

BIBLIOGRAFIA
CLANCEY, Gregory. The Meiji Earthquake: Nature, Nation, and the
Ambiguities of Catastrophe. Modern Asian Studies, New York, v. 40,
n. 4, 2006. p. 909-951.

RIMER, J. Thomas. Since Meiji: Perspectives on the Japanese Visual Art


1868-2000. Honolulu: University of Hawaii Press, 2012.

SCHENCKING, J. Charles. The Great Kantō Earthquake and the


Chimera of National Reconstruction in Japan. New York: Columbia
University Press, 2013.

SCHENCKING, J. Charles. The Great Kantō Earthquake and the


Culture of Catastrophe and Reconstruction in 1920s Japan. The Journal
of Japanese Studies, Washington, DC, v. 34, n. 2, 2008. p. 295-331.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. de Rubens Figueiredo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

STEELE, M. William. Postcards from Hell: Glimpses of the Great


Kantō Earthquake. Asian Cultural Studies, Tokyo, v. 41, 2018. p. 115.

WEISENFELD, Gennifer. Imaging Disaster: Tokyo and the Visual


Culture of Japan’s Great Earthquake of 1923. The Asian-Pacific Journal,
Tokyo, v. 13, n. 4, 2015. p. 113.

FONTES DAS FIGURAS


Figura 1
ARTISTA DESCONHECIDO. A causa do grande bagre em Shin
Yoshiwara (Shin Yoshiwara ōnamazu yurai), 1855. Xilogravura. Biblioteca
da Universidade de Tóquio. Disponível em: https://illustrationchro-
nicles.com/when-giant-catfish-shook-the-earth-the-namazu-e-prints.
Acesso em: 2 mar. 2021.

Figura 2
IGAWA, Sengai. “Cena de miséria na área das gueixas em Yanagibashi”
(“Karyūkai-no Sanjō Yanagibashi shoken”), da série Imagens do terremoto
de Taishō (Taishō shinsai gashū), 1926. Xilogravura, 21,9 × 28,9 cm. Coleção
da Biblioteca Wolfsonian FIU. Disponível em: https://digital.wolfsonian.
org/WOLF054675/00001/thumbs?nt=-1. Acesso em: 15 fev. 2021.
O GRANDE TERREMOTO DE KANTŌ DE 1923 331

Figura 3
IGAWA, Sengai. “Refúgio atrás de Asakusa Kannon” (“Asakusa
Kannon ura-no hinan”), da série Imagens do Terremoto de Taishō (Taishō
shinsai gashū), 1926. Xilogravura, 21,9 × 28,9 cm. Coleção Biblioteca
Wolfsonian FIU. Disponível em: https://digital.wolfsonian.org/
WOLF054675/00001/thumbs?nt=-1. Acesso em: 15 fev. 2021.

Figura 4
FOTÓGRAFO DESCONHECIDO. Distrito de Asakusa antes e depois
do terremoto, [1923]. Coleção M. William Steele. Disponível em:
STEELE, M. William. Postcards from Hell: Glimpses of the Great Kantō
Earthquake. Asian Cultural Studies, Tokyo, v. 41, 2018, p. 115.
Kurohiji J.

HABITAR COM A PEDRA,


HABITAR OUTROS FUTUROS

João Kurohiji
Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO
A partir da imaginação de possibilidades de vínculo huma-
no-mineral no desastre da ficção científica Mizu-no naka-no
hachigatsu (1995), chegamos à atualidade da pandemia de
covid19 sob perspectiva do ensaio escrito pelo artista e filó-
sofo Lee Ufan. Segundo Lee, a existência agora catastró-
fica do vírus pode nos mover a aprender e a restaurar, por
exemplo, o entrelaçamento do orgânico com o inorgânico.
Assim, busca-se na sua obra artística um lugar de afeto e de
encontro com o outro no qual a pedra é significante — relação
com o inorgânico resgatada do que o artista entende por
antigo e/ou primitivo ao presente da sociedade industrial.
Consequentemente, propõe-se, neste ensaio, a ideia de que
habitar com a pedra é como reabitarmos modos de existência
humano-mineral em nosso momento corrente de catástrofes,
uma experiência sensível e imaginativa capaz de colaborar
com os esforços coletivos para habitarmos outros futuros.
Palavras-chave: Pedra. Modos de existência humano-mineral.
Lee Ufan. Mizu-no naka-no hachigatsu.

ABSTRACT
From the imagination of possibilities of the human-mineral bond
in the disaster of the science fiction Mizu no naka no hachigatsu
(1995), we reach the present day of the covid19 pandemic from
334 Kurohiji J.

the perspective of the essay written by the artist and philosopher


Lee Ufan. According to Lee, the now catastrophic existence of the
virus can move us to learn and restore, for example, the intertwi-
ning of the organic and the inorganic. Thus, it is sought in his
artwork a place of affection and encounter with the other in which
the stone is significant — a relationship with the inorganic reco-
vered from what the artist understands as ancient and/or primi-
tive to the present of industrial society. Consequently, this essay
proposes that to inhabit with stone is to re-inhabit human-mineral
modes of existence in our current moment of catastrophes, a sensi-
tive and imaginative experience capable of collaborating with
collective efforts to inhabit other futures.
Keywords: Stone. Human-mineral modes of existence. Lee Ufan.
Mizu no naka no hachigatsu.

O filme de ficção científica Mizu-no naka-no hachigatsu


水の中の八月,1 realizado por Gakuryū Ishii (1957-) (também
conhecido como Sōgo Ishii) e lançado no Japão em 1995,
inicia-se com a apresentação do impacto de dois corpos
minerais de origem cósmica. Isso em decorrência de um
buraco negro gerado através de uma explosão de super-
nova. Um desses meteoritos é encontrado no monte Miko,
o que ocasiona a descoberta no local de um sítio arqueoló-
gico, posteriormente denominado Círculo de Pedra Hazuki,
que apresenta um petróglifo importante à narrativa à medida
que parece narrar o que está para acontecer.
O acontecimento inusual provoca uma alteração no
alinhamento dos planetas, o que causa uma dissonância
no campo magnético e na energia cósmica. Com efeito,
desencadeiam-se, em pleno verão, uma seca e um crescente
surto da doença da petrificação (sekikabyō). Ao contrário de

1 O título pode ser traduzido ao português como Agosto na água.


Na língua inglesa, o filme é nomeado como August in the Water.
HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 335

transformar externamente humanos em pedra, é contado no


filme que a doença age por meio da petrificação dos órgãos
internos. Essa sucessão de acontecimentos ocorre em época
de um festival semelhante ao Hakata Gion Yamakasa,
que tem como origem, de acordo com o filme, uma espécie
de ritual exorcista com água realizado por um monge a fim
de evitar uma epidemia. A falta de água, assim, provoca uma
preocupação em relação à possibilidade de execução do
festival, que acaba sendo realizado.
Em meio a essa conjuntura, a colegial e atleta de salto
ornamental recém-chegada na cidade, Hazuki Izumi, sofre
um acidente durante uma de suas competições. Até então
com a sensação de que seu corpo havia sido afetado pelo
novo ambiente, Izumi tem a estranha percepção de que
a água está dura, dureza essa em que tem que saltar e que
provoca o acidente. O fenômeno pode nos sugerir uma subja-
cente desarmonia no fluxo de energia vital pelo cosmos.
Em demonstração visual dessa desarmonia, a cena
emblemática do incidente nos mostra uma montagem, reali-
zada durante o salto de Izumi, que revela por poucos segundos
a água da piscina enquanto superfície rochosa. De acordo com
a antropóloga Monica Janowski (2020, p. 111), em texto no
qual estuda relações humano-pedra em ontologias animistas
do Sudeste Asiático, a pedra e a água têm uma significância
cosmológica uma vez que residem, respectivamente, nos
extremos seco/duro e macio/molhado desse fluxo energé-
tico vital ao longo do cosmos. Dessa forma, ainda segundo
a autora, na pedra, a força vital encontra-se em acúmulo e
atribui a seu corpo mineral evocações do longevo, e pela água
flui rapidamente, o que lhe confere jovialidade.
O acidente sofrido é também significativo no que se
refere à reavivação sentimental de algo antigo em Izumi,
como ela mesma se exprime. Após sua recuperação, junta-
mente com uma capacidade telepática, a protagonista toma
consciência de uma interligação infinita em dimensões
ínfimas entre todas as coisas, e uma consequente afinidade
336 Kurohiji J.

com pedras. Posteriormente (em linhas gerais incapazes de


sintetizar a profusão narrativa e temática dirigida por Ishii),
decorre da realização de Izumi, em conjunto com o sonho
relatado por sua irmã, uma possível elucidação à catástrofe
da seca e do surto da doença da petrificação.
A pedra tem um destaque enquanto fonte de afeição por
parte de Izumi e forma originária dos humanos e não humanos,
e, ainda, enquanto ambiguidade devido a essa mesma herança
cosmológica antiga — se a pedra é um primórdio, é também
o futuro catastrófico que se conduz em uma dinâmica, caso
concretizada, próxima a um retorno desastroso.
Como conta Izumi, os seres de pedra, possíveis extra-
terrestres que regulam a energia atômica e conseguem
assumir a forma de uma pessoa humana, estariam a realizar
a tarefa do retorno de todas as coisas terrenas ao seu estado
mineral. De acordo com o sonho experienciado por sua irmã,
a água seria então algo que nos faz correspondentes à Terra.
Como desfecho da situação, sob uma noite de luar, Izumi
desaparece na água — traz, assim, a chuva e põe um fim
ao desastre. Uma solução consonante com um antigo ritual
mencionado no filme para se recuperar das consequências
(também similares aos eventos catastróficos que ocorrem)
da desconsideração da existência do deus da água.
O filme de Ishii se encerra em um considerável avanço
temporal, com Mao, companheiro de Izumi ao logo da narra-
tiva, deitado sobre a significativa Pedra do Círculo Hazuki,
incerto dos ecos que os eventos naquele verão, agora distante,
fizeram em sua vida (uma incerteza que se torna cúmplice da
experiência audiovisual onírica tida pelo espectador). Eis um
momento próximo em relação com o inorgânico, se rememo-
rarmos a imagem do casal debruçado sobre a mesma pedra
em uma tentativa conjunta de ouvir seu corpo mineral; ou,
ainda, próximo à imagem de Mao deitado em cima da pedra
sob a chuva trazida por Izumi, em sentimento por sua perda.
Nesse ínterim audiovisual, a pedra amalgama-se em
discussões tecnológicas e ecológicas que são apresentadas
HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 337

ao longo do filme. Assistimos a menções da semelhança


de uma pedra (provavelmente a que tem um petróglifo) a
um computador antigo e a uma matéria televisiva sobre
microchips atuarem como cérebros humanos em uma
discussão sobre exploração espacial e sobre capacidades
mentais humanas ainda pouco conhecidas. Essa matéria,
por sua vez, reverbera no sonho da irmã de Izumi no qual os
humanos teriam como mente um microchip de pedra, conec-
tado universalmente a um computador; e, seguindo, há um
conselho de Izumi de que a proximidade aos computadores
facilitaria a petrificação dos humanos.
Associadamente, em uma aula, um professor discorre
sobre a existência parasita dos humanos em relação aos
recursos da Terra e propõe a desocupação humana do planeta
como solução ecológica — uma exposição recebida com certa
indiferença pelos alunos, enquanto Izumi se encontra absorta
pela vista do monte Miko através da janela. À fala do professor,
caso seja entendida como próxima de uma perspectiva de
erradicação de parte da população humana, a filósofa Isabelle
Stengers (2015, p. 54) poderia responder que não passa de um
“[...] delírio de uma abstração assassina e obscena”.
Assim como Izumi nos conta que perde o medo dos
limites após seu acidente, Mizu-no naka-no hachigatsu (1995)
apresenta ao espectador uma indelimitação de diversos
temas, mas de etérea coesão imaginativa. É interessante
notar que essa imaginação do desastre (SONTAG, 2009) distin-
gue-se na falta de grande estranhamento em relação à doença
incomum, bem como na ausência de um estado de pânico em
relação à catástrofe que se faz cada vez mais presente.
Embora a ficção científica dirigida por Ishii não se acomode
completamente nos moldes narrativos do gênero discutidos
por Sontag, podemos estabelecer relações entre Mizu-no
naka-no hachigatsu e certos pontos levantados pela autora na
década de 1960 sobre a categoria audiovisual. Dentre eles, o
filme se vale de um gênero fantasioso que dialoga com ansie-
dades contemporâneas (SONTAG, 2009) — como podemos
338 Kurohiji J.

inferir da presença conjunta da seca e do surto da doença da


petrificação, de discussões sobre tecnologia e impacto humano
no meio ambiente, e da realização de pertencimento na teia de
relações entre todas as coisas por Izumi.
Ainda, uma ansiedade nem sempre consciente, trazida
por Sontag acerca do cotidiano no ambiente urbano moderno
que pode nos despersonalizar (SONTAG, 2009), pode estar
presente, em parte, na alegoria do surto da doença que petrifica
os órgaos e aparentemente afeta de forma aleatória os habi-
tantes da cidade em suas rotinas — contágio que é facilitado
pela tecnologia do computador. Como discute Sontag, o fenô-
meno da despersonalização está conectado à irracionalidade,
associação que pode ser interpretada como uma atribuição à
capacidade racional lúcida, por parte do gênero fantasioso, de
condição mínima humana ou de um tipo de existência.
Se sintetizarmos a discussão científica transmitida pela
mídia sobre um microchip análogo ao cérebro humano —
que ecoa na nova e perigosa suscetibilidade humana de ser
transformada em máquina descrita por Sontag (2009) — com
a elucidação de Izumi sobre a catástrofe iminente e o sonho
de sua irmã discutidos anteriormente, somos apresentados
a uma perspectiva que entrelaça em afinidade (e até mesmo
em afetividade) o humano e o inorgânico.
Essa perspectiva imagina, ao mesmo tempo, uma
despersonalização ao mineral, uma existência de seres de
pedra que podem assumir forma humana, e uma não deli-
mitação entre o humano e o inorgânico. Entretanto, uma
vez que a pedra é nossa origem cósmica e, portanto, integra
nossa humanidade, a despersonalização pode ser entendida
menos como perda da razão que nos torna humanos do que
um reviver de um modo antigo (que, no geral, não deixa
de ser ameaçador no contexto urbano cotidiano da narra-
tiva), que nos distancia da condição terráquea. Um retorno
cuja finalidade é deixada implícita ao espectador. Elas são
finalidades possíveis que oscilam desde a consequência de
uma maldição divina, o restabelecimento de uma ordem
HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 339

magnética e energética, até uma solução à crise ecológica


gerada por ações humanas.
Segundo Sontag (2009), a ausência de uma crítica social
aliada ao reconhecimento da ciência enquanto um fazer
perpassado pelo social e o político, bem como o efeito seda-
tivo normalizante, está presente na articulação das ansie-
dades com que o gênero do desastre se faz. Entretanto, no
caso do filme de Ishii, embora haja a possibilidade de nos
aproximarmos de uma leitura de normalização devido ao
final feliz dado à catástrofe, o desfecho não eclipsa a crítica
de cunho ecológico que pode ser identificada a circular entre
o enredo (mesmo que sem o determinado reconhecimento
direto de sua atividade, comentado por Sontag).
Isso porque o intrincado entrelaçamento de diversos
temas ao longo da obra nos abre caminho para interpre-
tações acerca da insuficiência da medicina moderna e da
ciência e tecnologia em si mesmas — uma vez que a catás-
trofe, suas causas e a solução final por parte de Izumi encon-
tram-se perpassadas por questões às quais recorrem, como
a astrologia, o pertencimento em afinidade com todas as
coisas em contraponto à consciência centrada no eu e, ainda,
modos outros e localizados de saberes e de se relacionar
com o mundo. Essas discussões desaguam numa resolução
misteriosa, que ignora uma qualidade científica simples e
redentora com a dissolução de Izumi no cosmos, envolta em
água sob a luz do luar.
Portanto, é possível afirmar que, ao trazer uma narra-
tiva de certa forma crítica, sobretudo ecológica, aliada a uma
perspectiva cosmológica particular e plural, o filme atua
ao longo de um ponto de vista paradoxal em sua qualidade
onírica, mas com potencial efeito inquietante frente às ansie-
dades de seu tempo.
É quando consideramos a presença da pedra e da
afinidade entre humano e inorgânico no decorrer do entre-
laçamento entre o reviver do antigo e do negligenciado,
pestilência e crise ecológica, e possibilidades fantasiadas de
340 Kurohiji J.

passado e futuro em Mizu-no naka-no hachigatsu (1995), que


adentramos na obra do artista e filósofo Lee Ufan2 (1936-).
Nascido na atual Coreia do Sul, mudou-se para o Japão em
1956 e, no início da década de 1960, formou-se em filosofia na
Universidade Nihon, Tóquio. O artista é internacionalmente
conhecido devido a sua contribuição para a arte contempo-
rânea e seu envolvimento nas cenas artísticas japonesa e
sul-coreana. Embora trabalhe com diversos meios e mate-
riais, ele é reconhecido por ser figura teórica e artística
central do movimento denominado Mono-ha もの派,3 ativo
entre o final dos anos de 1960 e meados da década de 1970.
De modo mais específico, nos concentraremos, em parte,
no seu conjunto teórico e artístico a partir do seu recente
ensaio sobre a pandemia de covid19, escrito em 22 de abril
de 2020 e disponibilizado no site da Pace Gallery, em 18 de
maio do mesmo ano. Da discussão realizada ao longo do
ensaio por Lee (2020), escrito a partir de um contexto espa-
ço-temporal específico — elaborado no início da pandemia
em Kamakura, Japão — interessam-nos aqui as maneiras
como o vírus causador do evento de dimensão catastrófica
ao redor do globo nos afeta e pode nos mobilizar a imaginar
outros futuros enquanto humanidade-natureza.
Posto isso, ao entrever que a experiência incerta de viver
no atual cenário catastrófico gerará profundas mudanças em
nossa consciência de seres humanos, Lee (2020) nos chama
a atenção para refletirmos como os desastres da pandemia
são capazes de nos estimular em nossa atual necessidade de

2 Por ser amplamente conhecido como Lee Ufan, o nome do artista é


aqui apresentado segundo a convenção do Leste Asiático, na qual o
sobrenome precede o prenome.
3 O termo pode ser traduzido para o português como “escola das coisas”.
Em linhas gerais, em contraposição à criação artística individual
moderna, as obras associadas ao movimento são constituídas de
arranjos mediados no espaço de coisas em sua crueza de estado ou
de intervenção artística mínima, comumente industriais e/ou naturais.
São trabalhos que exploram a percepção e os modos como as coisas
estão nos espaços.
HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 341

repensar a direção tomada pela civilização moderna em relação


à natureza. Essa é uma urgência, como demonstrada a partir
desse ser não humano, que se faz cada vez mais incontornável:

Os seres humanos modernos, em certo sentido, construíram


sua existência sobre a divisão desde o início. A condição de
uma civilização fundada na discriminação contra a natu-
reza narrará o desfecho da humanidade. Com a civilização
à beira do colapso, as pessoas estão reavaliando sua posição
através das lentes desse vírus catastrófico. Parece que os
fundamentos da relação entre natureza e humanidade foram
esclarecidos mais uma vez. Os seres humanos, é claro, não
estão em relação com a natureza, mas são parte da natureza.
Claro, a humanidade chegou aonde está hoje através de um
longo processo de desenvolvimento que reinterpreta a natu-
reza (LEE, 2020, tradução nossa).4

Desenha-se uma divisão, por exemplo, entre natureza e


sociedades/culturas e entre humano e não humano, impres-
cindível para a constituição moderna, como discute o antro-
pólogo Bruno Latour (2009) — embora, em conjunção, tenha
proporcionado subjacentemente a proliferação dos híbridos
(LATOUR, 2009, p. 40). Vislumbra-se uma separação isola-
dora de nossa existência da relacionalidade, que o geógrafo
Augustin Berque (2021, p. 224) define por “topos ontológico
moderno” — uma condição hoje considerada insustentável e
obsoleta que, entretanto, “[...] ainda governa nossos compor-
tamentos cotidianos [...]” (LATOUR, 2009, p. 228).
Por conseguinte, a atualidade das consequências dessa
dissonância no diálogo entre humanidade e natureza é um dado já
conhecido, como atesta Lee ao afirmar a notória vulnerabilidade

4 “Modern human beings have, in a sense, built their existence on division


from the very beginning. The condition of a civilization founded on discri-
mination against nature will narrate the outcome of humanity. With
civilization on the verge of collapse, people are reassessing their position
through the lens of this catastrophic virus. It feels like the fundamentals
of the relationship between nature and humanity have been clarified
once more. Human beings are, of course, not in relationship with nature
but part of nature. Of course, humankind has arrived where it is today
through an agelong process of development that reinterprets nature.”
342 Kurohiji J.

das civilizações modernas que admitiram somente o humano


em suas constituições (LEE, 2020). Esse é um fato também
trazido por Stengers (2015), em seu livro No tempo das catástrofes,
no reconhecimento, que se faz imposição perante seus efeitos,
de que agora habitamos esses tempos catastróficos:

Em suma, estamos, nessa nova época, diante não apenas


de uma natureza “que deve ser protegida” contra os danos
causados pelos homens, mas também de uma natureza
capaz de incomodar, de uma vez por todas, nossos saberes e
nossas vidas (STENGERS, 2015, p. 14).

À natureza incômoda do vírus para “o nosso apego


a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade
[...]” (KRENAK, 2020b, p. 58), Lee atribui uma existência,
em seus termos, artística, biologicamente filosófica e apocalíp-
tica (LEE, 2020). Ela é artística em sua capacidade, similar
à mencionada anteriormente, de causar uma mudança de
perspectiva; biologicamente filosófica porque posiciona em
destaque a opacidade que circula por entre a vida e a morte
(LEE, 2020); e é apocalíptica nas incertezas inquietantes que
envolvem seu contágio. Dessa forma, Lee segue o ensaio
afirmando que a existência do vírus que nos afeta catastro-
ficamente confirma a externalidade que caracteriza a vida
humana, bem como desafia com sua dubiedade as certezas
que estabelecemos ao longo de nossa construção enquanto
civilização. O incômodo gerado nos serve de alarme:

A investida desse vírus parece um aviso contra a rápida


evolução da civilização. Isso também poderia servir de freio
ao desenvolvimento indiscriminado da Terra, ao cresci-
mento excessivo da população e a nossa expectativa de vida
cada vez maior. Embora isso possa ser difícil para a huma-
nidade aceitar, do ponto de vista do ecossistema, essa pode
ser a ordem natural se movendo para se regular (LEE, 2020,
tradução nossa).5

5 “The onslaught of this virus feels like a warning against the rapid evolu-
tion of civilization. It could also serve as a brake on the indiscriminate
development of the earth, the excessive growth of the population, and our
HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 343

Assim, a existência apocalíptica do vírus expressa por Lee


não se conforma ao discurso simples da inevitabilidade de uma
derrota perante as consequências, como a qualidade artística
comentada acima atesta. A aceitação do apocalipse nos condu-
ziria, poderia dizer Stengers (2015), a um futuro condenado à
barbárie. Exprimir esse apocalipse totalizante é ignorarmos
as sobrevivências, como também menciona o filósofo Peter
P. Pelbart (2014, p. 259) sobre a cegueira apocalíptica que nos
impede de percebermos os lampejos dos vagalumes:

É ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos proje-


tores. É agir como vencidos: é estarmos convencidos de que
a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência.
É não ver mais nada. É, portanto, não ver o espaço — seja ele
intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável —
das aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar
de tudo (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 42).

Podemos pensar no ser intrusivo nomeado de Gaia por


Stengers (2015) para então entrevermos o difícil rumo dos
possíveis, um para o qual Lee nos chama a atenção mediante
a natureza inoportuna do vírus catastrófico. Gaia anuncia
que, mesmo nesse espaço do apesar de tudo, sua presença
em nossas vidas é, a partir de agora, inarredável, com suas
intrusões que colocam em cheque a centralidade do humano
e suas certezas (STENGERS, 2015, p. 53).
Diferentemente de nosso pertencimento à Terra —
que é capaz de ser entendido em associação à teoria Gaia
(STENGERS, 2015, p. 48-49) e que pode ser lido a partir do
filme de Ishii e até certo ponto das colocações de Lee —,
podemos dizer que reconhecer a transcendência que a Gaia
intrusiva evoca, em parte e em conjunção às palavras de
Lee de que “o mundo me transcende e é não transparente”

ever-increasing life expectancy. While this might be difficult for huma-


nity to accept, from the perspective of the ecosystem this could be the natural
order moving to regulate itself.”
344 Kurohiji J.

(LEE, 2019, p. 54, tradução nossa),6 é reconhecer um mundo


vivo por meio de sua intrusão a fim de criarmos coletiva-
mente “a possibilidade de um futuro que não seja bárbaro”
(STENGERS, 2015, p. 19):

Nomear Gaia e caracterizar como intrusão os desastres que


se anunciam, é crucial salientar, depende de uma operação
pragmática. Nomear não é dizer a verdade, e sim atribuir
àquilo que se nomeia o poder de nos fazer sentir e pensar no
que o nome suscita. No caso presente, trata-se de resistir à
tentação de reduzir a um simples “problema” o que constitui
acontecimento, o que nos atormenta. Mas também de fazer
existir a diferença entre a questão imposta e a resposta a ser
criada. Nomear Gaia como “a que faz intrusão” é também
caracterizá-la como cega aos danos que provoca, à maneira
de tudo o que é intrusivo. Por isso a resposta a ser criada
não é uma “resposta à [intrusão] Gaia”, e sim uma resposta
tanto ao que provocou sua intrusão quanto às consequências
dessa intrusão (STENGERS, 2015, p. 48).

De certa forma, na sua atitude perante ao vírus enquanto


presença em uma ordem natural reguladora e na flexibilidade
entre aliados e inimigos, Lee (2020) vai ao encontro da pers-
pectiva de Stengers ao tratar de uma Gaia não negligenciável
que, em sua intrusão, é cega à catástrofe, que é ofendida, não
justiceira ou vingativa (STENGERS, 2015). Ainda, concordam
na necessidade de seguirmos em um caminho que se torna
inconciliável com o progresso desenfreado, embora Stengers
também se atenha ao crescimento econômico nocivo, que
pode ser inferido do ensaio de Lee, ao passo que o artista
(LEE, 2020) traz à discussão um crescimento populacional
que, em suas versões mais radicais de erradicação, é conde-
nado pela autora, como mencionado inicialmente.
É por decorrência dessa atitude do artista, no que se
refere aos vírus, que Lee (2020) os entende amplamente
enquanto existências que nos revelam duas faces. Isso
porque, segundo o autor, se, por um lado, o vírus repre-
senta o atual estado catastrófico, por outro, esse ser não

6 “The world transcends me and is non-transparent.”


HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 345

humano permeia o entrelaçamento entre os seres que carac-


teriza nossa existência — é, portanto, indispensável à vida.
Conjuntamente, da nossa existência como humanidade-na-
tureza, que é a raiz de nossa condição, Lee destaca a capa-
cidade da humanidade de restaurar-se frente à pandemia,
ao entrarmos em diálogo com a natureza (LEE, 2020).
Para lidarmos com a existência dupla que são os vírus,
que, em decorrência da catástrofe, requer ser combatida ao
mesmo tempo que devemos conviver com eles, Lee recorre à
necessidade de investirmos uma vitalidade intensa. Ademais,
o ensaio os aproxima brevemente aos yakubyōgami, ou espí-
ritos da pestilência, em uma interpretação na qual Lee parece
confundir essas figuras com as características e o modo de agir
dos vírus, mas também sugere nos relacionarmos com eles:

Certamente existem diferentes tipos de vírus. A fim de


combatê-los alternadamente e viver em aceitação deles,
precisaremos exercer mais vitalidade — isto é, toda a nossa
força física, intelectual e espiritual — mas isso também
levanta muitas outras questões. Como sabemos pelos
yakubyōgami (espíritos da pestilência), quanto mais nos
confrontamos, mais fortes nos tornamos, e a estrutura de
um vírus, que varia em aparência de acordo com o tempo
e o contexto, é altamente dialética e sugestiva. Em outras
palavras, estar vivo significa estar constantemente engajado
com o externo e o Outro enquanto desenvolvemos nossas
respostas à situação e ao momento (LEE, 2020).7

Para Lee (2020), a abertura dialógica com o externo


e o Outro, que exige que lidemos com o incerto e o miste-
rioso ou sugestivo, e que pode ser evocada da figura dos

7 “There are surely different types of viruses. In order to alternately fight


them and live in acceptance of them, we will need to exert more vitality —
that is, our entire physical, intellectual, and spiritual strength — but it
raises many other questions as well. As we know from the yakubyōgami
(spirits of pestilence), the more we confront each other the stronger we
become, and the structure of a virus, which varies in appearance accor-
ding to the time and context, is highly dialectical and suggestive. In other
words, to be alive means to be constantly engaged with the external and the
Other while we develop our responses to the situation and the moment.”
346 Kurohiji J.

yakubyōgami, precisa ser transposta à disciplina da medi-


cina moderna. Assim, somos lembrados da linha tênue entre
ciências, saberes outros e religiosidades/espiritualidades
que atravessam as causas e a solução do desastre ao longo
de Mizu-no naka-no hachigatsu (1995). Como, por exemplo,
a presença significante do festival que se originou em arti-
culação à pestilência, bem como o descuido com relação
ao divino. Perante uma medicina que negligencia a perti-
nência do posicionamento de Izumi, de forma quase ritual,
a protagonista dissolve-se em conformidade com a realidade
onírica e traz a água de volta.
Ao entrelaçar as palavras e propostas de Stengers (2015)
com as de Lee (2020), podemos afirmar que estamos vivendo
em tempos catastróficos ocasionados pelas diversas conse-
quências de termos trilhado um caminho isolado que nos
afastou da natureza. Dessa forma, o vírus é uma oportuni-
dade para a humanidade responder, por nós e pelos seres
não humanos, ao que causou essa intrusão e seus resultados,
para nos deslocarmos coletivamente em direção a uma traje-
tória que nos afaste de uma perspectiva sobre os mundos
que admite a centralidade do humano. Desse modo, “o que
a existência desse vírus nos ensina é precisamente a sincro-
nicidade do meio ambiente global, a solidariedade da vida e
a intermediação de todos os seres orgânicos e inorgânicos”
(LEE, 2020, tradução nossa).8
Em defesa de uma perspectiva que considere irrelevantes
os limites estabelecidos entre o vivo e o não vivo, a antropó-
loga Elizabeth Povinelli vai ao encontro dessa intermediação
ao reconhecer a simbiose existente entre o geológico e o
biológico (POVINELLI, 2016). Imaginativamente, podemos
considerar a realização de Izumi, após seu acidente, uma
conscientização em nível cotidiano dessa indelimitação,

8 “What the existence of this virus teaches us is precisely the synchronicity of


the global environment, the solidarity of life, and the intermediation of all
organic and inorganic beings.”
HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 347

imprescindível para o emblemático desfecho em prevenção


à catástrofe cada vez mais presente.
Como mencionado anteriormente, à primeira vista,
o posicionamento de Lee perante Gaia, não nomeada por ele
em seu ensaio, pode ser tido como condizente ao pertenci-
mento — como talvez o seja no filme de Ishii, que também
não a nomeia. Entretanto, o autor reconhece-a a partir do
presente do desastre viral e dele encontra uma possibilidade
de resistirmos, uma vez que a catástrofe avalia a disposição
humana de persistir e se reinventar (LEE, 2020). Sobre esse
reaver que considera a estadia da Gaia intrusiva de Stengers,
Lee escreve: “Aliás, talvez o que as pessoas estejam procu-
rando não seja a devoção à natureza nem a desafiadora reafir-
mação da civilização, mas uma consciência ambivalente da
existência que abrange ambas” (LEE, 2020, tradução nossa).9
Destarte, se o movimento de Lee converge para a
intrusão, o desastre, e não para o pertencer, propõe-se
pensarmos por onde os termos ativos empregados pelo
autor ao longo do ensaio — reavaliar, ressuscitar, ensinar,
restaurador, recuperar — podem nos levar em conjunção com
a proposta de Stengers (2015). Esses termos, no vocabulário
de Stengers, nos conduzem a partir do presente catastró-
fico como parte de nossa resposta ao que causou a intrusão
de Gaia e as suas consequências. Lee (2020) não afirma
exclusivamente nosso pertencimento à Terra, mas chama
nossa atenção para a possibilidade construtiva de reavaliar,
de aprender, perante os desastres.
De forma resumida, ainda segundo o ensaio de Lee
Ufan, a complexidade do vírus catastrófico nos ensina nova-
mente sobre a relacionalidade entre orgânico e inorgânico,
entre eu e outro. Conjuntamente, isso carrega consigo a
capacidade de nos mover, na maneira como a incerteza com

9 “Incidentally, perhaps what people are searching for is neither devotion


to nature nor the defiant reassertion of civilization, but an ambivalent
awareness of existence that spans both.”
348 Kurohiji J.

a qual nos deparamos nos afeta a reavaliar a humanidade.


E com essa perspectiva trazida pelo artista que, em sintonia
com “[...] experimentar o que pode recriar — ‘fazer pegar
novamente’, como se diz das plantas — a capacidade de
pensar e agir juntos” (STENGERS, 2015, p. 197) ao longo das
tentativas de construírmos a resposta à intrusão, chegamos
à operação situada de reativar (to reclaim) o animismo, suge-
rida por Stengers (2017). Se Lee (2020) discorre a partir do
presente catastrófico sobre nos relocalizar no longo decurso
que separou a civilização moderna da natureza — uma ação
recuperadora por meio da qual resultaria uma posição exis-
tencial de ambivalência —, para a filósofa:

Reativar significa reativar aquilo de que fomos sepa-


rados, mas não no sentido de que possamos simplesmente
reavê-lo. Recuperar significa recuperar a partir da própria
separação, regenerando o que a separação em si envenenou
(STENGERS, 2017, p. 8).

Entretanto, como Lee (2020, tradução nossa) utiliza-se


do termo ressuscitar,10 para se referir à natureza que o vírus
evoca, é preciso nos atentarmos de que, para Stengers,
“reativar o passado não é uma questão de ressuscitá-lo como
ele era [...]” (STENGERS, 2017, p. 9).
Uma das quatro configurações que “organizam o mundo
humano e não humano” (STENGERS, 2017, p. 3) ou formas
de sistemas relacionais e realidades ontológicas (DESCOLA, 2014)
discutidas pelo antropólogo Philippe Descola (2013, 2014),
o animismo é um dos primeiros conceitos cunhados pela
antropologia por meio do antropólogo Edward B. Tylor (BIRD-
DAVID, 1999) para descrever os outros primitivos. Em adição,
é pertinente ressaltarmos que essa relacionalidade compreen-
dida em discussões antropológicas das cosmologias animistas,
como as de Descola, se dá na socialidade. Trata-se de uma disci-
plina que se valeu da divisão, como a entre cultura e natureza,

10 Ressurecting, de acordo com a tradução disponibilizada pela Pace Gallery.


HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 349

e de uma visão humanista antropocêntrica (DESCOLA, 2013,


p. 12; DIAS; SZTUTMAN; MARRAS, 2014, p. 500) — a isso,
podemos adicionar a colonialidade associada à contami-
nação da hegemonia científica racional (STENGERS, 2017).
Interessantemente — mas não de forma imotivada, uma vez
que tem uma razão de ser frente às recentes crises testemu-
nhadas que compreendem o social, o ecológico e o cultural —,
é uma categoria que se encontra em crescente revival, um vocá-
bulo revisitado (BIRD-DAVID, 1999).
Embora reconheça a problemática do termo que emerge
dessas conjunções, ao mesmo tempo que se situa do lado da
divisão que caracteriza a crença dos outros como animismo,
Stengers (2017) entende e nos propõe o uso dessa palavra de
forma particular enquanto algo a ser reativado. Para a autora,
que recorre principalmente aos filósofos Gilles Deleuze e
Félix Guattari, reativar o que se nomeia animismo é uma
proposta para reativarmos agenciamentos que não nos
pertencem, ao longo dos quais nos constituímos em experi-
ências relacionais que nos animam e nos transformam:

Reativar o animismo não significa, então, que tenhamos sido


animistas. Ninguém jamais foi animista, porque nunca se é
animista “no geral”, apenas em termos de agenciamentos
que geram transformações metamórficas em nossa capa-
cidade de afetar e sermos afetados — e também de sentir,
pensar e imaginar. O animismo, no entanto, pode ser um
nome a serviço da recuperação desses agenciamentos, uma
vez que nos leva a sentir que a reivindicação de sua eficácia
não nos cabe. Contra a insistente paixão envenenada por
desmembrar e desmistificar, o animismo afirma o que todos
os agenciamentos exigem para não nos escravizar: que não
estamos sozinhos no mundo (STENGERS, 2017, p. 15).

À operação empírica e pragmática de Stengers, suge-


rimos em conexão o habitar com a pedra a partir da obra de
Lee Ufan, mas também, nos limites do campo da represen-
tação fantasiada, do filme de Ishii aqui discutido inicialmente.
A proposta sensível e imaginativa de habitar com o inorgâ-
nico, aqui, refere-se aos modos conectados (STENGERS,
350 Kurohiji J.

2017, p. 5) de estar e se relacionar com o mundo capazes de


colaborar em possibilidades de habitarmos coletivamente11
outros futuros que não o da barbárie iminente e os tempos
catastróficos em ocorrência (STENGERS, 2015), como a
pandemia de covid19 refletida por Lee Ufan (2020).
Partimos da perspectiva de que as obras de Lee podem
ser entendidas como esforços de instaurar lugares de afetos,
de encontros com o outro, de modos de existência com o
inorgânico. Instaurar modos de existência está aqui no
sentido dado ao ato por Pelbart a partir de sua leitura do filó-
sofo Étienne Souriau, um modo de tornar existência que “[...]
significa menos criar pela primeira vez do que estabelecer
‘espiritualmente’ uma coisa, garantir-lhe uma ‘realidade’ em
seu gênero próprio” (PELBART, 2014, p. 250). Conjuntamente
com a proposta de Stengers da escrita como um primeiro
passo de recuperação, uma prática que é animista para a
autora, uma vez que experienciamos um “domínio ‘mais que
humano’” (STENGERS, 2017, p. 11), apresentamos mais uma
vez o que reativar significa para a filósofa em paralelo com
o trabalho de Lee:

Reativar significa recuperar e, neste caso, recuperar a capa-


cidade de honrar a experiência, toda experiência que nos
importa, não como “nossa”, mas sim como experiência que
nos “anima”, que nos faz testemunhar o que não somos nós
(STENGERS, 2017, p. 11).

No decorrer da leitura do ensaio escrito pelo artista,


nos deparamos com uma imagem da obra, também de sua
autoria, Relatum: Play of Primitive (2015), que, em conjunto
com outras, acompanha seu texto sobre a pandemia.
Por meio da reprodução disponibilizada pela Pace Gallery,
vemos uma disposição relacional entre uma pedra de corpo

11 Coletivamente, pois, ao contrário do que se entende por sociedade,


para Latour (2009), o coletivo se faz da intersecção entre do humano e
o não humano.
HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 351

pouco expressivo, rotundo e de tom terroso, e uma haste


de aço de silhueta curvilínea apoiada na parede do espaço.
Um aço de coloração mais fosca, menos metálica — de
nuances quase imperceptíveis em negrume, que podem nos
denunciar uma neutralidade e mesmo um certo contato com
o mundo externo em distância de uma qualidade asséptica
esperada da atualidade do metal.
Esse jogo do primitivo entre pedra e aço — significantes no
repertório artístico e teórico do artista — não se limita a essas
duas corporalidades. Reverbera-se com o espaço a presença
corporal realizadora da ação e, em contiguidade, o obser-
vador. Ao vermos a imagem de Relatum, há quem imagine o
sutil jogo de sombras de primitiva densidade produzido pela
conjunção projetada nas superfícies do espaço expositivo do
humano, da pedra terrena e do aço soerguido.
Ao transpormos o entendimento de Lee acerca de
uma placa de ferro para o aço, uma vez que o ferro nele
se concentra, a pedra natural encontra-se abstraída na
sua constituição em decorrência de um processo humano
(LEE, 2019, p. 51). Essa transferência do estado de exis-
tência da pedra (POVINELLI, 2016, p. 70) — que atesta
um tipo de sobrevivência desse inorgânico que, segundo
a geologia, de forma geral, não morre (POVINELLI, 2016,
p. 69) — apresenta-se em vínculo com uma pedra natural
na referida obra. Pedras essas que, para o artista, são
mineralizações da externalidade que não nos é idêntica
e as quais somos incapazes de apreender completamente
por meio das ideias (LEE, 2019, p. 74). Assim, através
desse relatum, na conjunção entre pedra (íntima com o
externo e com a natureza) e aço (produto da fabricação
da sociedade industrial), natureza e humano entram em
diálogo, relação esta que constitui sua principal proposta
(LEE, 2019, p. 20). Ainda, a perspectiva mencionada em
relação às propriedades e origem do aço complexifica a
relacionalidade humano-natureza tornada acontecimento
em seu trabalho.
352 Kurohiji J.

A experiência humana engajada relacionalmente com


“o que não somos nós” (STENGERS, 2017, p. 11), com o
mundo externo e o desconhecido, é resgatada por Lee de um
passado mediante a performance (LEE, 2012, p. 219), o que
conduz, segundo o autor, às interações perceptivas de alte-
ridade entre, por exemplo, humano e pedra. Ademais, no
mesmo contexto, o artista discute a capacidade que imagens
e esculturas então carregavam consigo de nos afetar imagi-
nativamente e nos proporcionar uma abertura para o mundo
e para os outros. Uma importância cosmológica das expe-
riências artísticas que se apresenta em contraposição ao
fechar-se em si, a uma autossuficiência tida amplamente por
Lee como característica da obra de arte moderna.
Segundo Lee (2012, p. 54), as relações por meio das
quais o eu encontra o outro, que podem se dar através do
inorgânico em seu trabalho, são, no que o artista entende
por sociedade ocidental, mais usuais de serem estabelecidas
no território humano em comparação com um de inclinação
natural no Leste Asiático. Contudo, frente a essa compa-
ração, não podemos cair na armadilha interpretativa de uma
suposta particularidade japonesa ou oriental — uma afini-
dade com o inorgânico e um reconhecimento da pedra como
outro, os quais conseguimos encontrar em solos brasileiros
conforme o filósofo e líder indígena Ailton Krenak (2020a)
aponta ao escrever sobre o povo indígena Krenak.
De forma consonante com o jogo do primitivo realizado
por Lee, o artista recorda o que ele denominou o homem
primitivo (primitive man) (LEE, 2013, p. 256) ou os povos
pré-históricos (prehistoric people) (LEE, 2013, p. 257) para
discutir a experiência relacional com o mundo externo por
meio dos lugares sagrados onde se situavam dólmens —
estruturas feitas ao empilhar pedras por povos antigos
(ancient people), mas que na sociedade industrial são enca-
radas com menos naturalidade do que o aço, por exemplo
(LEE, 2012, p. 222). Por meio dos ritos experienciados e reali-
zados nesses “[...] lares ancestrais da história abençoados
HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 353

pela infinitude intermediada do mundo externo” (LEE, 2013,


p. 257, tradução nossa),12 o espaço torna-se “[...] uma terra
holística de encontro, um mundo aberto” (LEE, 2013, p. 256,
tradução nossa).13
Essa rememoração não localizada do antigo, efetuada
por Lee, pode ser entendida por integrar a sua consciência
histórica que, reconhecida em conjunto com sua visão de
mundo, faz com que o artista se perceba inserido na imen-
sidão incerta do mundo externo que o ultrapassa (LEE, 2019,
p. 54). Ao soprar vida à visão de mundo de Lee, essa consci-
ência histórica associa-se, entre outras, a uma consciência
local por meio da qual, além da tendência do reconhecimento
da alteridade no domínio natural mencionada previamente,
o artista depreende crenças animistas:14

Por ter nascido e crescido na Ásia, eu posso estar mais em


sintonia com a consciência de “todo o resto”. Afinal, a Ásia
tem um clima de monções, então chove muito. Sempre há
coisas apodrecendo e uma nova vida brotando e, no passado,
isso deu origem a fortes tendências para crenças animistas.
Os asiáticos são mais propensos a se verem vivendo com
a natureza, com o resto do universo. Portanto, se você
perguntar sobre a influência do pensamento oriental em
meu trabalho, talvez seja nessa área que isso aconteceu
(LEE, 2010, tradução nossa).15

12 “[...] ancestral homes of history blessed by the intermediated infinity of the


external world.”
13 “[...] a holistic land of encounter, an open world.”
14 Um uso do termo na tradução disponibilizada em língua inglesa que
Stengers (2017) questionaria.
15 “The aim of my work, from the outset, is to show everything else. The mark
on the canvas is a trigger to get the viewer to imagine other things. This is
where my Asianness might have played a role. By being born and raised
in Asia, I might have been more in tune to an awareness of ‘everything
else’. After all, Asia has a monsoon climate, so there is a lot of rain. There’s
always things rotting and new life sprouting and, in the past, this gave rise
to strong tendencies toward animistic beliefs. Asians are more likely to see
themselves as living with nature, with the rest of the universe. So if you ask
about the influence of Eastern thought on my work, then maybe that is one
area where it happened.”
354 Kurohiji J.

Essas coisas inorgânicas que antes de serem deslo-


cadas já habitavam interrelacionalmente um lugar (LEE,
2019, p. 30) evocam de forma sensível e imaginativa o
antigo — como o fluxo de energia vital também o efetiva
(JANOWSKI, 2020, p. 111) — e o outro, mas o fazem no
presente do encontro com sua forma cristalizada, sedimen-
tada. Destarte, habitar com a pedra para habitarmos outros
futuros também parte do movimento imaginativo desse
inorgânico como sedimentação complexa constituída ao
longo de tempos-espaços e de partilhas com outros seres
que se converge para a atualidade do presente. A pedra
incorpora, sincronicamente, significância tanto para o
passado quanto para o nosso presente, e resistirá aos fenô-
menos em direção ao futuro.
Enquanto um modo de existência instaurado pela
mediação de Lee, nas palavras do artista (LEE, 2019, p. 55),
esse organismo vivo (living organism), que é lugar de
encontro, não é considerado pelo artista uma expressão indi-
vidual objetificadora, mas uma situação que na sua condição
viva insere-se na natureza e dialoga com o universo (LEE,
2019, p. 27). No vocabulário de Lee (2019, p. 74-75), é em sua
condição de estrutura viva (living structure) que a obra abre-se
em ambivalência sugestiva e nos conduz a saltos de imagi-
nação (leaps of imagination) — um lugar que nos proporciona
a experiência de um modo outro de existirmos (PELBART,
2014). Através da experiência de encontro com o outro e o
externo, a qualidade intervalar da infinitude é trazida à vida,
que então pode gerar afetos imaginativos (LEE, 2019, p. 218).
Nas palavras do artista, a “imaginação é um despertar para
a alteridade garantido pela infinitude” (LEE, 2019, p. 218,
tradução nossa).16

16 “Imagination is an awakening to otherness guaranteed by infinity.”


HABITAR COM A PEDRA, HABITAR OUTROS FUTUROS 355

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Mizu-no naka-no hachigatsu (1995), apesar de a pedra


ser de certa forma um outro, esse inorgânico representa
a possibilidade fantasiada de um modo de existir antigo e
cosmicamente significante que já não somos mais nós no
presente do enredo. Ou, ainda, ela integra uma herança
do primordial que dialoga anacronicamente com um
presente e um futuro catastrófico. Uma hereditariedade
que se encontra em renascimento, seja na consciência do
pertencimento na ilimitação de todas as coisas por parte de
Izumi, seja em uma ameaça desastrosa e pestilenta à exis-
tência estabelecida da humanidade. No fim do longa, num
futuro outro que acaba por se concretizar em detrimento do
desastre, o inorgânico carrega em seu corpo, em conjunto
com um valor arqueológico e cosmológico, uma convida-
tiva reminiscência onírica do ocorrido.
É um filme que imaginativamente estabelece, ou resta-
belece, pontes entre limites e entre ciência e outros saberes
e mundos. Em vista disso, também podemos apreendê-lo,
de acordo com a socióloga Shoko Yoneyama (2020), como
um referencial cultural (cultural frame of reference) com o
qual podemos vislumbrar imaginativamente um modo
outro de nos relacionarmos ontológica e epistemologica-
mente com o mundo. Um referencial cultural proposto
que é animista no sentido particular da autora do vínculo
natureza-espiritualidade-vida.
Dessas narrativas fantasiadas do humano-mineral e
representadas cinematograficamente, avistamos a obra
teórica e artística de Lee Ufan. Habitar com a pedra é reabi-
tarmos o que, para Lee, podemos aprender com o vírus: a
vida entrelaçada pelo orgânico e o inorgânico (LEE, 2020).
Essa corporalidade mineral integra um resgate espaço-tem-
poral da sua presença no antigo ou primitivo, que dialoga
com as bases da sociedade industrial em direção ao estabele-
cimento de uma configuração outra, dúbia (LEE, 2019, p. 71),
356 Kurohiji J.

um modo de existência instaurado (PELBART, 2014), uma


existência de vitalidade dialógica. Entretanto, em contraste
às propostas de Stengers (2015, 2017), que têm caráter polí-
tico, Lee (2019, p. 24) não entende seu trabalho diretamente
por vias políticas ou ativistas, mas sim que, frente às catás-
trofes, sua obra lida fundamental e conceitualmente com
problemas ambientais atuais.
Reabitarmos com a pedra é restaurador em conso-
nância com o que Stengers discute sobre reativarmos o
animismo. Mas, também, no que a intrusão de Gaia nos
compele em consonância com Krenak (2020a), para o qual
a pandemia pode suscitar o questionamento de uma ideia
naturalizada de humanidade: “não inventamos o conceito
de humanidade? Trata-se, bem mais, de nos desintoxicar
dessas narrativas que nos fizeram esquecer que a Terra
não era nossa, não estava a serviço de nossa história [...]”
(STENGERS, 2015, p. 196). Por fim, em complemento à
luta política em Stengers (STENGERS, 2015, p. 197), que
pode contaminar os outros e nós como caixas de resso-
nância, os estabelecimentos sensíveis de vínculos, ou
modos de existência humano-mineral, têm a capacidade
de nos afetar de forma contagiante ao longo dos esforços
de imaginarmos conjuntamente outros futuros habitáveis
que não o da catástrofe apocalíptica. Habitar com a pedra
corresponde a uma experiência sensível e imaginativa do
(ou que nos aproxima de) reativar, que então nos anima
e nos transforma ao nos convocar a experimentarmos
outros modos de existirmos.

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REFERÊNCIA CINEMATOGRÁFICA
MIZU-no naka-no hachigatsu. Direção: Gakuryū Ishii. Produtor:
Binbun Furusawa. Japão: Hill Villa Co., 1995. 1 vídeo (117 min).
Hett R.

AS SUBCULTURAS DA MODA
JAPONESA COMO UM ATO
DE RESISTÊNCIA

Rafael Hett
Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO
As subculturas da moda japonesa são fenômenos ampla-
mente conhecidos na atualidade, embora ainda exista muita
desinformação circulando nos mais diferentes ambientes,
em especial nas redes sociais. O choque inicial causado
pela estética agressiva de algumas subculturas acaba por
revelar preconceitos, estereótipos e visões orientalistas
sem que haja, por outro lado, uma contextualização capaz
de explicar o porquê desse modo de vestir e de se portar
provocar tanta estranheza. Este ensaio pretende, portanto,
discutir as subculturas à luz da teoria de moda a fim de
compreender de que maneira a moda em seu potencial de
criar identidades e subjetividades foi apropriada pela juven-
tude para contestar e resistir aos discursos e expectativas
tradicionais. Argumenta-se que subculturas são poderosas
formas de socialização de indivíduos que compartilham das
mesmas inseguranças e ansiedades, acentuadas em meio à
instabilidade econômica, política e social do Japão no fim da
década de 1980 e início dos anos de 1990. Contudo, as subcul-
turas não parecem escapar da lógica da moda que torna
social o que antes era subversivo, apontando, assim, para a
362 Hett R.

própria plasticidade e dinamismo do campo, bem como para


a necessidade de constantemente atualizar as categorias de
entendimento sobre a moda japonesa.
Palavras-chave: Subculturas de moda. Moda urbana. Moda
japonesa. FRUiTS. Ryuko Tsushin.

ABSTRACT
Japanese fashion cultures are widely known phenomena nowa-
days, even if there is still a lot of disinformation circulating in
the most different spaces, especially on social media. The initial
shock caused by the aggressive aesthetics of some subcultures unveils
prejudices, stereotypes and orientalist visions. On the other hand, a
contextualization capable of explaining why these ways of dressing
or behaving are generally seen with strangeness. This essay aims
then to discuss subcultures under fashion theory to understand how
fashion in its potential to create identities and subjectivities was
taken by the youth to challenge and to resist traditional discou-
rses and expectations. It is argued that subcultures are powerful
forms of socialization of individuals that share the same insecu-
rities and anxieties, hugely accentuated amid Japan’s economic,
political and social instabilities in late 80’s early 90’s. However,
subcultures are unlikely to escape the logic of fashion that trans-
forms what was subversive into something socially acceptable.
This points to the own plasticity and dynamism of the field, as well
as to the need to constantly update the categories of comprehension
concerning Japanese fashion.
Keywords: Fashion subcultures. Street fashion. Japanese fashion.
FRUiTS. Ryuko Tsushin.

Tratar da moda de rua japonesa é algo que requer uma sensi-


bilidade que frequentemente falta à crítica, em particular a
ocidental. Tendo atraído os olhos de curiosos, de entusiastas
e de profissionais do ramo, essas subculturas urbanas se
transformaram em uma faca de dois gumes: ao mesmo
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 363

tempo em que são a face de um cool Japan, são utilizadas


como forma de exotizar, inferiorizar e salientar o estranha-
mento que temos diante de fenômenos que, por motivos
diversos, nos recusamos a entender ou, então, a que temos
pouco acesso em profundidade.
Foi esse o caso quando me deparei com um vídeo
produzido por um grande influencer de uma das maiores
redes sociais do momento, conhecida por seus conteúdos
de poucos minutos. O material em questão era intitulado
Estilos estranhos da moda japonesa, embora em nenhum
momento tenha sido elucidada a razão dessa estranheza.
Talvez seja por conta da pele muito bronzeada das ganguro
ou dos visuais pesados e estruturados das lolitas? No mundo
do clickbait em que vivemos, evidentemente, o título apela-
tivo é mais um mecanismo para atrair a atenção do público;
contudo, chamou minha atenção o uso de vocábulos
bastante negativos — como “bizarro” ou “malandros” —
para fundamentar a argumentação, cuja validação supos-
tamente viria da vivência durante alguns anos in loco do
influenciador. Assisti a mais alguns vídeos do perfil, e em
todos havia o mesmo tratamento superficial que exotizava
a cultura japonesa a ponto de torná-la um objeto de curio-
sidade e de fascínio para a audiência, majoritariamente
de jovens brasileiros. Não posso afirmar quantos deles já
foram ou não ao Japão, quantos falam a língua ou conhecem
a cultura e a história nipônica, mas, pelos comentários,
é estarrecedor perceber ideias igualmente rasas, saídas
de um lugar comum e, até certo ponto, extremamente
ingênuas: “essa coisa de loli é ridículo sério”; “Ganguro é
estranho, mas Yankee é muito legal”; “e eu achando que a
moda do Brasil era estranha”; “os caras parecem ter saído
do Yu Yu Hakusho”.
Por outro lado, é possível encontrar opiniões mais
críticas: “Não tem ‘pior’, é o estilo deles. Por mais que seja
muito diferente dos brasileiros, temos que respeitar sempre.
E outra, o loli que você falou na verdade se chamam lolitas”,
364 Hett R.

“pesquisa primeiro a diferença entre as duas palavras [loli e


lolita] aí depois tu fala [sic] da ‘estranheza’ da cultura kawaii”.
Ainda que esse vislumbre de lucidez seja encorajador, é
preocupante que ainda sejam poucos diante de um público
de 574 mil pessoas na época da publicação do vídeo e 605 mil
no momento de escrita deste ensaio.
É importante ressaltar que não se pretende fazer aqui
nenhum juízo de valor a respeito de produtores de conteúdo
digital ou influenciadores, porém, faz-se sim a crítica de
que é preciso expor a grave irresponsabilidade de publicar
materiais sensacionalistas meramente pelo entretenimento,
reforçando estereótipos e julgamentos negativos sem emba-
samento, indignação a partir da qual surgiu a motivação
de construir um texto que se apropriasse das subculturas
urbanas japonesas e que lhes desse um tratamento digno,
científico, contextual.
Abordar subculturas é sempre falar de uma sociedade
em tensão, tão pressurizada que o escape se manifesta
radicalmente, apoiando-se no choque, na rebeldia e na
provocação para forçar a sociedade a se questionar. Terasa
Younker (2012, p. 97), em seu trabalho “Lolita: Dreaming,
Despairing, Defying”, afirma que: “a moda lolita, como as
outras subculturas japonesas, se desenvolveu como uma
resposta às pressões sociais e ansiedades sentidas por
jovens na década de 70 e 80”. Yuniya Kawamura (2013, p. 27,
tradução nossa), socióloga tcheca, vai na mesma direção
em Fashioning Japanese Subcultures, ressaltando, ainda,
a importância da moda como forma de contestação:

A moda sempre foi um reflexo do estado atual da socie-


dade. Ironicamente, a desaceleração econômica do Japão
na primeira década do século XXI pode ter tido influência
na moda de rua mais duradoura de hoje. Há um alastrado
sentimento de desilusão, alienação, incerteza e raiva que
se disseminou pela sociedade japonesa. Isso levou ao
colapso dos valores tradicionais japoneses, como perseve-
rança, disciplina e crença na educação — especialmente
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 365

entre os jovens. Suas atitudes questionadoras da norma


são exibidas por meio de suas aparências, o que é uma
maneira de se fazer ver e ouvir.1

Após décadas de prosperidade econômica e social


Pós-guerra, o otimismo e a excitação foram subitamente subs-
tituídos no fim da década de 1980 e início dos anos de 1990 por
taxas astronômicas de desemprego, pelo encolhimento do
PIB e pelo fim dos sonhados “empregos vitalícios”. Na década
de 2000, e ainda hoje, uma volta ao que foram os gloriosos
anos 1960 e 1970 parece impossível. Sem uma economia, um
governo ou uma sociedade que pudesse garantir um estado de
bem-estar e conforto, de uma geração para a outra, criou-se um
mal-estar que, por sua vez, tornou essa juventude descrente,
sem perspectivas de um futuro promissor, para quem a vida
adulta não representava nada além de um período enfadonho,
cerceado por regras e por códigos de conduta rigorosos
(KAWAMURA, 2013, p. 100-101).
Tanto Younker quanto Kawamura, a partir de entrevistas
conduzidas com membros de subculturas, identificaram um
teor de escapismo e de nostalgia nessas expressões, que denun-
ciam também uma mudança no perfil da juventude. Se antes
a identidade do sujeito era bastante atrelada à família ou à
empresa, isto é, em prol do coletivo, “os adolescentes de hoje
veem a afirmação da identidade individual como muito mais
importante e significativo” (KAWAMURA, 2013, p. 42, tradução

1 “Fashion has always been a reflection of the current situation of the society.
Ironically, Japan’s economic slowdown in the first decade of the twenty-first
century may have played a role in today’s longer-lasting street fashion.
There is a widespread feeling of disillusionment, alienation, uncertainty,
and anger, which has spread throughout Japanese society. This has led to
the breakdown of traditional Japanese values, such as perseverance, disci-
pline, and belief in education — especially among children. Their norm-
-breaking attitude is exhibited through their appearance, which is a way to
make themselves seen and heard.”
366 Hett R.

nossa).2 A moda, nesse sentido, tem uma imensa contribuição


a fazer, especialmente no atual estágio da modernidade, que
é o da “apoteose da gratuidade estética”, em outras palavras,
“o prazer de ver, mas também o prazer de ser visto, de exibir-se
ao olhar do outro” (LIPOVETSKY, 2014, p. 42) a todo momento
e em todos os lugares. Em outras palavras, a moda se constituiu
simultaneamente em “um palco de apreciação do espetáculo
dos outros” e em “um investimento de si, uma auto-obser-
vação estética sem nenhum precedente” (LIPOVETSKY, 2014,
p. 42), que não mais se limita às grandes cortes, mas favo-
receu a geração e a importância do juízo estético e social entre
pessoas mundanas. Esse processo é marcado, no entanto, por
crenças paradoxais, pela dúvida e pela instabilidade caracterís-
ticas de uma “sociedade-moda completamente reestruturada
pelas técnicas do efêmero, da renovação e da sedução perma-
nentes” (LIPOVETSKY, 2007, p. 60). Nesse contexto caótico,
“nós forjamos uma identidade para nós mesmos. A ficção é
uma necessidade cotidiana. Cada um, para existir, conta-se
uma história” (MAFFESOLI, 1996 apud MESQUITA, 2010).
Como será mais bem explorado na próxima seção,
a moda, movida pelo desejo e pelo inédito, é parte inte-
grante do momento social presente, algo de que os indi-
víduos podem se apropriar para auxiliá-los a buscar e a
refazer constantemente suas identidades, caso assim seja
necessário. Como afirma Cristiane Mesquita: “as pessoas
acreditam cada vez mais estar ‘criando identidades’ com
seus looks” (MESQUITA, 2010, p. 19) e, nesse processo,
esbarram em outras individualidades com as quais passam
a se reconhecer e a se comunicar, ainda que os observadores
externos possam estar completamente alheios aos signifi-
cados. As existências se tornam múltiplas, alternando entre
diversos alter egos, seduzidos pela possibilidade de viver
diferentes vidas em uma só, conforme finaliza Mesquita.

2 “Teens today see the assertion of individual identity as more important


and meaningful.”
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 367

SUBCULTURA COMO IDENTIDADE

Em diversos estudos contemporâneos, “subculturas têm sido


vistas como espaços para comunidades desviantes reivindi-
carem suas posições ou espaços, metafórica ou literalmente,
para si mesmos” (KAWAMURA, 2013, p. 7, tradução nossa).3
Elas contêm um forte sentimento de não-pertencimento à
cultura hegemônica, evidenciando o fracasso da sociedade
em criar um elo compartilhado e aceito por todos. Não por
coincidência, o fortalecimento das subculturas no Japão está
atrelado à recessão do fim da década de 1980 e início dos
anos de 1990, também conhecida como a “década perdida”
(ushinawareta jūnen 失われた10年).
Assim, mais do que apenas jovens rebeldes que se unem
para mostrar sua insatisfação de maneira desorganizada e
aleatória, Kawamura (2013, p. 20, tradução nossa) insiste que é
necessário fazer uma análise que considere inúmeros fatores:

Grupos subculturais são frequentemente determinados por


classe, gênero e idade, e são expressas na criação de estilos
com o objetivo de construir as identidades dos membros.
Subculturas existem em relação com culturas dominantes
e, ao mesmo tempo, elas tentam manter suas autonomias,
resistir à hegemonia, existir em oposição ao já estabele-
cido e construir uma identidade de grupo coesa enquanto
formam novos valores e normas que podem só ser válidas
dentro de seus grupos.4

Foi assim com os punks, skinheads, hippies e com muitos


outros grupos que compartilhavam as mesmas inquietações e

3 “Subcultures have been seen as spaces for deviant communities to claim


their position or space, metaphorically and literally, for themselves.”
4 “Subcultural groups are often determined by class, gender, and age and are
expressed in the creation of styles in order to construct members’ identities.
Subcultures exist in relation to dominant cultures, and at the same time, they
attempt to maintain their autonomy, resist hegemony, exist in opposition to
the establishment, and construct a cohesive group identity while forming new
values and norms that may be valid only within their groups.”
368 Hett R.

indignações, mas que também pertenciam mais ou menos


à mesma classe social, eram de faixas etárias semelhantes
e, por isso, puderam criar signos que faziam sentido para os
participantes daquele contexto.
Esses grupos têm plena consciência de viverem em uma
sociedade de aparências, definida pelo consumo e, portanto,
na qual o externo e o aparente também podem ser usados
como forma de contestação. É interessante notar que, ainda
que envolvam alto grau de celebração da individualidade,
as subculturas evidenciam igualmente o desejo de pertencer,
de ser aceito e de se reconhecer em um grupo. Sabe-se que o
Japão enfrenta um sério problema no que diz respeito a indi-
víduos que se isolam por sentirem que falharam em algum
aspecto da vida pública, deixando de participar ativamente do
corpo social. Esses são os hikikomori 引きこもり, um fenômeno que
expõe a rigidez da sociedade japonesa referente às realizações
de um indivíduo e que os pune de certa forma caso se desviem
dessas expectativas e não obtenham êxito (OKANO, 2021).
Mesmo para ocidentais, viver uma vida em completa reclusão
muito provavelmente acarretaria consequências de inúmeras
ordens. Não há dúvidas de que nossa existência é validada por
meio de diversos mecanismos de socialização. Desse modo,
ainda que esses processos e as expectativas sociais derivadas
de valores e normas tradicionais sejam contestadas por aqueles
que passam a se engajar em subculturas, esse engajamento é,
em si, a prova da importância do grupo, seja ele qual for.
As subculturas ganham relevância a partir do momento
em que suas crenças, modos de agir e de se comportar
passam a ser conhecidas por boa parte da sociedade a ponto
de causar incômodo e inquietação. Ao passo que essas
identidades desviantes continuam a se recusar em confor-
mar-se perante o normativo, as rupturas e incongruências
dos discursos hegemônicos se evidenciam, dando espaço à
reflexão e mudança.
Evidentemente, nada é tão simples quando se fala de
cultura e sociedade. Younker (2012, p. 109) destaca que é
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 369

difícil encontrar lolitas de mais idade, com muitas decidindo


abdicar da expressão para poderem formar uma família, uma
vez que jamais seria aceita pela família do cônjuge enquanto
lolita. Outro fator determinante é o culto à juventude. Por mais
que causem distúrbio na sociedade, a rebeldia entre jovens
é, em algum grau, naturalizada como algo típico dessa fase
e corrigível sob influência da maturidade. Em outras pala-
vras, à medida que os indivíduos envelhecem, as cobranças
sociais aumentam e passa a ser cada vez mais intolerável um
comportamento insurgente. Arrumar um emprego, casar-se,
manter um círculo de amizades: são múltiplas as maneiras
de pressionar um indivíduo a se conformar quanto menos
jovem ele for e mais responsabilidades tiver.
Isso pode explicar por que praticamente todas as
pesquisas sobre as subculturas japonesas estão restritas à
juventude, particularmente entre colegiais e jovens adultos,
como universitários. Ainda assim, entender as razões dessa
limitação também é pertinente dentro do amplo espectro
desse fenômeno.

O CONTEXTO SOCIAL E ECONÔMICO DO SURGIMENTO


DAS SUBCULTURAS
O fenômeno das subculturas urbanas de moda no Japão não
foi, conforme já discutido, uma simples onda de rebeldia sem
objetivo nem fundamento, mas se consolidou como uma forma
genuína de protesto e de criação identitária entre jovens que
passavam por situações similares, compartilhando angústias
e frustrações diante de uma sociedade colapsada.
Olhar para esse cenário nos permite obter um rico
panorama a respeito das dinâmicas sociais que possibili-
taram o surgimento das subculturas, bem como seu atual
estado após tantas transformações que se sucederam desde
a década de 1980. Georg Simmel (1957, p. 541), em “Fashion”,
comenta que a moda não pode existir em uma sociedade
pré-moderna ou na qual inexista uma divisão por classes.
370 Hett R.

Nesse caso, temos dados pertinentes para analisar uma


transformação na sociedade japonesa. Isso porque, como já
trabalhado por teóricos como Toby Slade (2009, 2010, 2016),
o fenômeno de moda nos moldes como o conhecemos e o
definimos sociologicamente emerge no Japão ainda no fim
da era Edo (1603-1868), um curioso exemplo de um local
em que a modernidade (isto é, a excitação pelo moderno,
um Zeitgeist) chega antes da modernização (a reforma dos
aparatos políticos, tecnológicos, econômicos, científicos
etc.). Porém, é durante a era Meiji (1868-1912) que o fenô-
meno de moda se consolida, fortificado por profundas altera-
ções na noção de indivíduo, de individualidade e de consumo
em uma sociedade capitalista industrial, bem como por
conta de uma maior mobilidade entre classes. Slade destaca,
por exemplo, a importância das lojas de departamento para
a instauração do ato de consumir como não só uma demons-
tração de poder e de status, mas também como uma forma
de socialização, uma vez que ampliam o acesso à moda e
ao consumo. Transformam-se, então, em um tipo de entre-
tenimento permeado pelo prazer, que muitas vezes consiste
unicamente em olhar as vitrines ou vagar pelos distritos
comerciais (SLADE, 2009, p. 62). Assim, o desejo pelo inédito
e a lógica da sedução puderam criar raízes que, entretanto,
foram abaladas pela Primeira e Segunda Guerras Mundiais.
Para Simmel (1957), sociedades mais fechadas — como
é o caso em estados bélicos e nacionalistas — tendem a ver
na mudança um agente negativo, usando de suas institui-
ções e mecanismos para manter a tradição e a hegemonia
social. Talvez seja por isso que o rápido desuso do quimono
tenha sido freado, com fortes momentos.
Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial e o início
da ocupação americana, o Japão atravessa, novamente, uma
turbulenta transição. Cada vez mais alinhado com o poderio
estadunidense e tendo recebido enormes investimentos para
sua reconstrução, o país foi amplamente influenciado pelo
American way of life durante um período conhecido como
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 371

Milagre Econômico (kōdo keizai seichō 高度経済成長). A histo-


riadora e japonóloga Carol Gluck (2007) afirma, ainda, que,
após o Japão ter se tornado o segundo maior PIB do planeta, a
ideia do direito à vida privada (shi-seikatsu 私生) ganhou impor-
tância no contexto do consumismo ascendente da década de
1960. Ainda segundo Gluck, o entendimento japonês do que
significava “democracia” estava menos atrelado ao processo
eleitoral do que ao acesso a uma economia desenvolvida
que assegurasse uma condição de vida estável, elevada e em
consonância com os ditames do capitalismo contemporâneo
(GLUCK, 2007, p. 48). Essa era a “vida moderna” (modan raifu
モダンライフ, do inglês, modern life), simbolizada pelo trem-
-bala, pelo sucesso das Olimpíadas de 1964 — as primeiras
transmitidas via satélite —, bem como por um alto padrão de
consumo e de internacionalização.
Considerando esse panorama, pode-se pensar que o
Japão aos poucos se tornaria uma sociedade em que frequen-
temente há uma primazia do individual em detrimento do
coletivo. Todavia, o capitalismo japonês dessa época parece
ter operado em uma lógica mútua de exaltação do indivíduo
consumidor em conjunto com a necessidade de fidelidade
ao grupo, seja este a família ou a empresa. Para os japo-
neses boomers, nascidos logo após a guerra, empregos vita-
lícios em grandes companhias eram sinônimo de uma vida
estável, de um casamento ainda jovem, de filhos estudando
em boas escolas e com direito a viagens e aposentadorias
confortáveis (KAWAMURA, 2013, p. 36). Esse modelo de
expectativa de vida previa uma dedicação exclusiva para a
empresa e para família, sendo esses os pilares centrais dos
esforços pessoais. Criou-se uma fantasia da vida no Japão,
dentro e fora dele, inclusive com o aumento do fluxo migra-
tório de pessoas que iam para o Japão em busca de melhores
oportunidades (dando origem, por exemplo, ao fenômeno
decasségui). Hoje, sabe-se que nem tudo era como promo-
vido pelo discurso político-nacionalista, fazendo surgir o
mote “Japão rico, japoneses pobres” (GLUCK, 2007, p. 39,
372 Hett R.

tradução nossa). No entanto, sob um aspecto geral, essa


configuração da sociedade japonesa entre 1960 e 1980 foi o
suficiente para manter certa coesão social com indivíduos
minimamente satisfeitos para não verem motivos para se
oporem aos valores vigentes. O que é preciso, então, para
o surgimento de subculturas que radicalmente contestam
esse estilo de vida?
É preciso uma grande ruptura social. E ela acontece
no fim dos anos 1980 e início da década de 1990, quando se
tornam insustentáveis as séries de empréstimos sem garan-
tias feitas pelos bancos japoneses e a grande especulação
imobiliária que, por exemplo, tornou o metro quadrado de
Ginza o mais caro do mundo.5 Pressurizada de ponta a ponta,
era previsível que um dos lados cedesse; e não é por coinci-
dência que os movimentos juvenis na Europa e nos Estados
Unidos durante a segunda metade da década de 1960 foram
chamados de “terremoto jovem” pela então editora-chefe da
Vogue Diana Vreeland (‘YOUTHQUAKE’..., 2017).
Assim como em Londres, Nova York ou Paris, para os
jovens japoneses da década de 1990, muitas das expectativas
e dos modelos da geração anterior já não faziam mais sentido.
Empregos estáveis? Salários astronômicos? Aposentadorias
confortáveis? Apenas histórias ouvidas dos pais. Instalou-se
um desconforto social que culmina em um pessimismo de
jovens, que veem na fase adulta apenas um mar de obriga-
ções e de regras que lhes dizem para seguir.
Em uma parte de seu já referido trabalho de 2013, Yuniya
Kawamura discorre sobre a influência desse choque econô-
mico e político no esfacelamento de uma suposta uniformi-
dade social japonesa, que começa a mostrar fragmentações

5 Em outubro de 1989, o New York Times noticiou que uma zona comer-
cial em Ginza, no edifício da Meidi-ya Company, chegou a custar
254 mil dólares por metro quadrado no ano anterior. O maior valor por
metro quadrado em zona residencial registrado foi de 88 mil dólares.
Disponível em: https://www.nytimes.com/1989/10/03/business/
prices-of-land-higher-in-japan.html. Acesso em: 20 mar. 2022.
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 373

bastante visíveis (KAWAMURA, 2013, p. 35). Particularmente,


Kawamura destaca o fim da crença nos empregos vitalícios
como um grande eixo de transformação, uma vez que foi
preciso redefinir os conceitos de público e de privado, os
papéis sociais e de gênero, bem como os sonhos e expecta-
tivas dos indivíduos. A pesquisadora também menciona que,
com exceção de Jun’ichirō Koizumi (primeiro-ministro entre
2001 e 2006), nenhum líder japonês durou mais de um ou
dois anos no cargo entre 1989 e 2011, levando a um cenário
de instabilidade e descrença em um futuro ou em um país
melhor (KAWAMURA, 2013, p. 36).
Nessa conjuntura, os espaços e as oportunidades se
tornam cada vez mais disputados, principalmente nos grandes
centros urbanos. A sociedade japonesa é frequentemente
referenciada por prezar mais pelo social em detrimento do
individual e, conforme discutimos anteriormente, o capita-
lismo japonês parece ter conseguido frear a primazia do indi-
víduo durante várias décadas, porém, as mudanças dos anos
1990 para os 2000, bem como o crescimento exponencial de
Tóquio, fazem da metrópole um local propício para a lógica
do “cada um por si” em um barco que aparentava naufragar.
Sobre esse tópico, a pesquisadora Niwako Yamawaki
procurou mapear o grau de individualismo e de coletivismo
no Japão contemporâneo, com descobertas interessantes e
que vão contra muitas ideias do senso comum. Por exemplo,
verificou-se que, no geral, os Estados Unidos tendem muito
mais para um coletivismo do que o Japão (YAMAWAKI,
2011). Além disso, esse estudo propôs que a questão do cole-
tivismo/individualismo não fosse só analisada por um viés
nacional, mas também por uma perspectiva que levasse em
consideração peculiaridades internas na criação de varia-
ções no espectro. Como resultado, obteve-se que Tóquio é
a prefeitura mais individualista do país e que oito das dez
prefeituras mais individualistas incluem as denominadas
“cidades designadas por decreto governamental” (seirei shitei
toshi 政令指定都市), nomenclatura utilizada para nomear
374 Hett R.

as cidades que apresentam uma autonomia normalmente


atribuída às prefeituras, devendo-se isso ao fato de apre-
sentarem altíssimos níveis de urbanização e grande contin-
gente populacional (YAMAWAKI, p. 1200-1201). Esse é um
fator relevante a ser ponderado, uma vez que a urbanização
está diretamente relacionada à modernização e à indus-
trialização, criando um fluxo migratório do campo para a
cidade que atinge, em especial, os jovens. A formação de
subculturas dialoga fortemente com esse fenômeno, como
descreve Kawamura (2013, p. 43, tradução nossa):

A subculturalização é o resultado do urbanismo e há uma


conexão entre o crescente número de grupos de subcul-
tura e a urbanização. A concentração em áreas urbanas de
amplos grupos heterogêneos enfraquece os laços interpes-
soais, estruturas sociais primárias e padrões normativos.
Densidades populacionais dinâmicas levam a uma diferen-
ciação estrutural complexa, com a alienação, desorganização
social, condutas desviantes e anomia como consequências.6

As subculturas que existem hoje em Tóquio são,


portanto, resultado desse intenso processo de urbani-
zação e de modernização, estando cultural e geografica-
mente localizadas. É genérico pensar quando falamos de
subculturas como lolita, ganguro, yankii, bōsōzoku, dentre
outras, que elas tratam de expressões encontradas abun-
dantemente em todo o Japão, símbolos da moda japonesa
contemporânea e largamente apreciadas por sua criativi-
dade e rebeldia. Pelo contrário, estudos como os de Younker
(2012), Kawamura (2013) e Kinsella (2014) nos mostram que
as subculturas se manifestam em espaços muito restritos e
que, fora daqueles círculos, a compreensão dos significados

6 “Subculturalization is the result of urbanism, and there is a link between the


growing number of subcultural groups and urbanization. The concentration
in urban areas of large heterogeneous groups of people weakens interpersonal
ties, primary social structures, and normative standards. Dynamic popula-
tion density leads to a complex, structural differentiation with consequences
of alienation, social disorganization, deviant behavior, and anomie.”
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 375

e intenções promovidos pelos grupos se perdem. Mesmo


profissionais da moda japoneses tendem a ver negativa-
mente a existência de subculturas, evitando qualquer asso-
ciação ou relação com elas. É preciso notar, no entanto, que
a moda apresenta uma dinâmica muito particular de assi-
milação do que, outrora, era considerado desviante. Desde o
início da década de 2010, período no qual foram publicados
os trabalhos das três pesquisadoras citadas acima, a popu-
larização das redes sociais e das mídias digitais trouxeram
consigo um interesse renovado pelas subculturas de Tóquio,
que passam então a ser vistas menos como signos de rebeldia
do que como commodities e catalisadores de tendências.

A LÓGICA DA MODA E A ASSIMILAÇÃO DAS SUBCULTURAS


Shōichi Aoki, fundador da célebre revista FRUiTS, declarou
no encerramento da veiculação do periódico em 2017 que
“não há mais jovens estilosos (oshare-no ko オシャレの子) a
serem fotografados em Tóquio”.7 Lançada em 1997, a FRUiTS
se tornou rapidamente conhecida por seu design simples,
intimista, com fotografias de página inteira dos looks mais
descolados das ruas da capital nipônica, especialmente em
Harajuku. Junto das imagens, informações como a idade,
profissão, interesses e as inspirações das pessoas retratadas
fizeram com que a revista tivesse um ar de espontaneidade
que faltava a outras publicações mais focadas em maté-
rias elaboradas e com marcas de grifes, como a Fujin Gahō
婦人画報 — primeira edição em 1905, voltada para mulheres
casadas de classe média-alta — e a Elle (primeira edição japo-
nesa em 1970 como afiliada da an・an e, em 1982, oficialmente
renomeada Elle Japan). Também se diferencia de títulos como

7 Disponível em: https://www.fashionsnap.com/article/2017-02-03/fruits-


stop/. Acesso em: 22 mar. 2022.
376 Hett R.

a CanCam (primeira edição em 1981) e a Classy (primeira


edição em 1984), focadas em estilos como onekei e mote-kei.8
A FRUiTS foi de fundamental importância para que
o Japão e o Ocidente virassem seus olhares para a moda
urbana de Tóquio, passando a enxergar ali não apenas
jovens rebeldes, mas todo um sistema de subculturas
extremamente efervescentes, criativas e exuberantes.
Por se tratar de jovens que nem sempre estavam inseridos
no mercado de trabalho, seus looks chamavam a atenção
pela forma inventiva de coordenar elementos na criação
de composições mais complexas. Diferentemente das
montagens luxuosas das grandes marcas, esses jovens
fotografados por Aoki exibiam com orgulho suas peças
garimpadas, inclusive, ajudando a promover pequenos
comércios locais ao frequentar e divulgar os que ofere-
ciam novidades mais exclusivas (e com bom preço!)
do momento (Figura 1).
De modo similar, a Ryuko Tsushin 流行通信 é uma publi-
cação que merece atenção. Foi lançada em 1966 como parte
das relações públicas da empresa de Hanae Mori, mas
teve o nome da designer retirado em 1969 e adotou uma
visão mais geral da moda, da arte e da cultura internacional
para os leitores japoneses. Seu auge aconteceu durante as
décadas de 1980 e 1990, com a sede da publicação tendo
sido projetada por Tadao Ando. A Ryuko Tsushin se dife-
renciava das demais revistas por seu objetivo de criar um
público consumidor crítico dotado de informação de moda.
Sua criteriosa curadoria de designers, artistas, exposições,
dentre outros, dialogava com um público mais consciente e

8 Onekei お姉系 é um dos estilos mais difundidos entre estudantes univer-


sitárias e office ladies (OL, em japonês). O primeiro ideograma, 姉,
corresponde ao de “irmã mais velha”, sugerindo ser uma moda mais
adulta, mais séria e profissional. Por sua vez, o estilo mote-kei モテ系
deriva do verbo moteru モテる, que significa “ser popular”, em especial
para “ter” potenciais pretendentes amorosos, tendo sido idealizado
para transmitir delicadeza, sutileza e bom gosto sem extravagâncias.
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 377

questionador do establishment da moda da época, ávido por


entender em maior profundidade o que acontecia na cena
fashion e por trás das tendências.

Figura 1. Primeira capa da FRUiTS, 1997.

A Ryuko Tsushin foi a pioneira em usar o termo lolita,


conforme explana Reighn (2021) em seu comentário a respeito
de um importante editorial de 1986 publicado no periódico e inti-
tulado “A melancolia da lolita: vestindo-se como uma garota”.
A autora chama atenção para a atmosfera etérea e distante das
imagens, bem como para as legendas em primeira pessoa de
um eu que parecia dialogar com o leitor em um tom extrema-
mente melancólico. Nas roupas, eram visíveis laços, babados
e rendas, mas ainda de uma forma muito sutil, conferindo à
modelo um ar jovial, frágil e ingênuo, apesar de claramente
ser uma adulta. Um ano depois, em 1987, a revista publicaria
378 Hett R.

uma matéria intitulada “Crítica ao estilo Lolita”, o que, segundo


Reighn, aponta para uma primeira popularização dessa forma
de se vestir e de se comportar de modo infantilizado. Portanto,
a Ryuko Tsushin teve enorme importância na vulgarização
dessa subcultura, que, aos poucos, ganhou os ares e as diversas
variantes que existem atualmente.

Figura 2. Foto do editorial de 1986, “A melancolia da lolita:


vestindo-se como uma garota”, da Ryuko Tsushin.

Apesar de não ter tido um foco único no estilo urbano


de rua, como a FRUiTS, e de ter sido descontinuada em 2007,
dando lugar a WWD Japan, a Ryuko Tsushin foi relevante na
consolidação de um sistema de moda japonês que transfor-
masse os fenômenos de moda em uma indústria organizada,
fornecendo para o público ferramentas para compreender
e agir crítica e ativamente em relação ao que consumia e
desejava consumir.
Décadas depois, qual o cenário que pode ser encon-
trado hoje? Ao retomar a fala de Aoki de que “não há mais
jovens estilosos a serem fotografados em Tóquio”, e ao
considerar a descontinuidade desses dois grandes veículos
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 379

de moda, a FRUiTS e a Ryuko Tsushin, pode parecer que


houve um trágico declínio das subculturas da moda japo-
nesa. No entanto, é mais provável que se trate apenas da
própria lógica da moda em ação, isto é, “a incessante resso-
cialização daquilo que era associal” (BENVENUTO, 2000,
grifo e tradução nossos).9
Em seu comentário sobre o trabalho de Georg Simmel,
Sergio Benvenuto explica que o alto da hierarquia — chamada
de “esnobes” — historicamente adotou muitas tendências cujas
origens remontam às classes mais humildes, como é o caso
da calça jeans. Em Simmel, encontramos a expressão demi-
-monde, para o qual poderíamos estabelecer submundo como
equivalente. Para o teórico alemão, o demi-monde apresen-
tava frequentes inovações quando se tratava da moda, moti-
vadas pela opressão que sofriam do topo da pirâmide e que
engatilhava uma aversão às leis, às instituições e às normas
vigentes. No contínuo ímpeto de se diferenciar desses padrões,
segundo Simmel, esconde-se a “expressão estética do desejo da
destruição” (SIMMEL, 1957, p. 552, tradução nossa).10
Isso porque, dentro da teoria de Simmel, a dinâmica
entre distinção e imitação é fundamental. Em busca de se
distinguir de seus pares, de outras camadas ou de seus
rivais, um grupo surge com uma inovação que, após um
tempo, é imitada e precisa ser sucedida por outra novidade
que mantenha a diferenciação, em um ciclo ad infinitum.
Sobre essa dinâmica, Benvenuto adiciona que: “quando
uma novidade é absoluta, tem sua máxima intensidade no
sentido de criar verdadeiras paixões, sejam positivas ou
negativas: escândalo e entusiasmo, repugnância e amor,
ansiedade e atração” (BENVENUTO, 2000, tradução nossa).11

9 “The incessant resocialization of the asocial.”


10 “[...] there lurks an aesthetic expression of the desire for destruction [...].”
11 “When a novelty is absolute, it has a maximum intensity, in the sense
that it creates real, true passions, be they positive or negative: scandal and
enthusiasm, disgust and love, anxiety and attraction.”
380 Hett R.

Nessa conjuntura, o filósofo italiano afirma ser igualmente


relevante considerar as variantes intensidade e extensão:
“conforme a novidade ganha em extensão e perde seu inedi-
tismo, perde da mesma forma sua intensidade e capacidade
informativa” (BENVENUTO, 2000).12
Esse mecanismo pode nos ser útil para entender o
porquê de um suposto “desânimo” da parte de profissionais
como Aoki ao declarar o fim dos “jovens estilosos”. De acordo
com o fluxo da propagação de novidades comentado acima,
o grande ineditismo das subculturas urbanas de Tóquio
nas décadas de 1990 e 2000 — restritas a poucos grupos
de certas localidades que se comunicavam entre si dentro
dos limites tecnológicos da época — é sucedido por cada
vez mais indivíduos que se interessam por aquelas formas
de se expressar e que se identificam com os discursos que
se opõem aos da hegemonia tradicional. As subculturas
deixam, então, as bolhas de outrora, proliferando-se nas
redes sociais e atraindo a atenção da mídia, perdendo, no
entanto, sua intensidade enquanto novidade. A percepção
original de uma cultura questionadora, insatisfeita e incon-
formada com a sociedade de seu tempo se esvanece até
mesmo entre os membros de uma mesma subcultura, talvez
mais jovens (nunca tendo visto a sociedade colapsada da
qual emergiu seu grupo), talvez simplesmente pouco enga-
jados e fascinados menos pela insurgência do que pela
estética em si. Em outras palavras, quando uma novidade
adquire extensão, as variáveis se acumulam e as interpreta-
ções se diversificam, causando um efeito que, aos olhos dos
que viveram a primeira onda, pode soar como um esvazia-
mento, uma banalização, decorrendo disso um desinteresse
e mesmo uma crítica negativa em relação à nova geração,
como se “na época anterior fosse muito melhor”.

12 “As the novelty gains in extension and loses its novelty, it loses its intensity
and its informative capacity.”
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 381

A moda, em especial, está intimamente atrelada ao


capitalismo dentro do contexto de sociedades modernas.
Dizer que a função da moda é a “incessante ressocialização
do associal” implica na afirmação de que, inevitavelmente,
a moda absorverá o que antes era chocante, perturbador ou
insurgente. Em relação a subculturas, podemos dizer que a
imitação de seu estilo pela camada mais alta representa um
enorme perigo para a manutenção de seu teor inovador,
conforme descrito por Simmel. Mas essa imitação se tornará
tendência apenas quando, e se, houver um preciso arranjo
entre diversos agentes da indústria, capazes de transformar
aqueles signos em moda. Simmel não viveu para ver esse
mundo complexo e, de fato, uma teoria vertical de cima para
baixo (trickle-down) era suficiente. Contudo, atualmente, a fim
de entender as subculturas, parece mais interessante falar
de ebulição (bubble-up), na qual as tendências surgem dos
extratos mais inferiores e sobem em um movimento intenso
até chegar nas elites, as famosas “febres” (VEJLGAARD, 2008,
p. 160). Exemplos dessa dinâmica, quando o hippie, o punk,
o hardcore, o fetichismo, bem como a lolita, o bōsōzoku, o visual
kei, entre outros, chegam das ruas para as grandes revistas
e aparecem nas maiores passarelas do mundo, têm seus
códigos e comportamentos transformados em commodities.
Expostos sob os holofotes, o que antes era interessante passa
a ser déjà vu. A excitação que se sentia anteriormente pela
ruptura estética causada pelas maneiras ousadas de se vestir
e de se portar se abranda, uma vez que até mesmo a sociedade
se encontra menos chocada diante dessas manifestações.
Aoki tinha razão quando proferiu seu comentário em 2017,
afinal, para os padrões de alguém que vivenciou a ascensão das
subculturas, os jovens de praticamente duas décadas depois já
representavam uma nova geração, com valores diferentes da
juventude forçada a se tornar adulta nas circunstâncias extre-
mamente desfavoráveis da década de 1990 e início dos anos
2000. Em 2017, a época de ouro dos empregos vitalícios já estava
muito distante, a sociedade passava por grandes modificações
382 Hett R.

advindas da digitalização e da automação do mundo. É claro


que havia, e sempre haverá, jovens questionadores dispostos a
confrontar regras, normas e o status quo. Contudo, a materiali-
zação desse questionamento, isto é, como ele assume a forma
de uma expressão de um grupo, não necessariamente precisa
corresponder aos moldes do que era feito décadas atrás. Para
esses novos grupos que se formam, não há perdas, não há esva-
ziamentos. Essa é uma perspectiva de quem estabelece compa-
rações entre dois ou mais momentos, tão isso é verdade que,
recentemente, Aoki começou a postar arquivos da FRUiTS no
Instagram e disse ponderar sobre um retorno da publicação,
embora pense ser um desafio se adaptar às novas exigências e
demandas da comunicação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito principal deste ensaio não era apresentar as
subculturas de Tóquio, material que já foi extensamente
produzido por inúmeros veículos e pesquisadores de quali-
dade. Por isso, o leitor que tenha vindo em busca de um
descritivo dos grupos, com suas características mais proe-
minentes e estilos icônicos, talvez se sinta decepcionado.
Contudo, conforme mencionado no início, o motivador
para esse ensaio foi um vídeo que trata as subculturas como
meras excentricidades de um Japão exótico, pronto para ser
descoberto e julgado pelo olhar ocidentalizado. Meu intuito
foi, então, o de mostrar que as subculturas são um fenômeno
de moda com um contexto histórico, social e geográfico
muito particular. Longe de serem meras expressões frívolas
de uma juventude perdida, as subculturas emergiram no
Japão, e mais precisamente em Tóquio, em um momento
delicado, no qual as fraturas de uma sociedade extrema-
mente pressurizada romperam e causaram uma fragilização
nos pilares que possibilitavam uma coesão social.
O estouro da bolha econômica na década de 1990, conhe-
cida como a “década perdida”, fez com que os antigos sonhos
AS SUBCULTURAS DA MODA JAPONESA 383

dos japoneses, como estabilidade profissional em uma só


empresa e grandes salários, não fizessem o menor sentido
diante de altas taxas de desemprego, precarização da mão
de obra e perda do poder aquisitivo. Assim, a vida adulta
não mais representava um período de prosperidade e de
conquistas, mas sim de uma constante luta para sobreviver e
vencer em meio a pressões familiares, individuais e sociais.
As subculturas reuniram, portanto, indivíduos com ansie-
dades, medos e indagações em comum, que decidiram então
expressar esse descontentamento com as normas e se usam
da moda como uma das maneiras de atingir esse fim. Sabemos
que a moda nos permite viver diferentes vidas e identidades,
sendo um importante fator na constituição da subjetividade.
Dessa forma, através de estilos ousados e contestadores para
os padrões comportamentais e vestimentares da época, esses
jovens acabaram trazendo uma inovação que foi reconhe-
cida e absorvida pela indústria ao longo dos anos, mantendo
o incansável ciclo da moda de “ressocialização do associal”,
nas palavras de Sergio Benvenuto (2000, tradução nossa).13
Grandes veículos midiáticos, como a FRUiTS e Ryuko
Tsushin, colaboraram para que a moda das subculturas
atingisse ampla visibilidade, embora tenham, como conse-
quência, perdido parte de seu teor inicial de inovação e de
choque. Ainda que Shōichi Aoki, criador da revista, tenha
decretado em 2017 o fim dos “jovens estilosos” das ruas de
Tóquio, vemos ressurgir nos últimos anos o interesse por
essas expressões. Assim, devemos tomar muito cuidado
para não cairmos nas garras do orientalismo, julgando com
olhos de hoje o que aconteceu décadas atrás, sem nenhuma
contextualização ou explicação mais profunda.
As subculturas permanecem como um elemento impor-
tante da moda japonesa, que abrange muitos outros fenô-
menos igualmente interessantes e pertinentes dentro da
complexidade e riqueza da cultura nipônica. Não é preciso

13 “The incessant resocialization of the asocial.”


384 Hett R.

ser um grande especialista para falar sobre essa temática,


todavia, temos sim a responsabilidade de buscar fontes
confiáveis que nos ajudem a entender que aquilo que nos
causa estranheza em um primeiro olhar é, também, parte da
experiência estética e da vida no geral.

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FONTES DAS FIGURAS


Figura 1
Primeira capa da FRUiTS, 1997. Disponível em: https://www.
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Figura 2
Foto do editorial de 1986, “A melancolia da lolita: vestindo-se como
uma garota”, da Ryuko Tsushin. Disponível em: https://honeydewdolly.
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em: 23 mar. 2022.
MURAKAMI A.

UMA DANÇA SÓ DE OLHOS:


A DANÇA BUTŌ NA TRAVESSIA
DA CATÁSTROFE

Anais Murakami
Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO
Esta pesquisa baseia-se nas relações entre arte, corpo e
catástrofe e sugere a dança Butō como ferramenta para
questionar e repensar a vida. O texto aponta as conexões
entre o Butō e as filosofias e conceitos japoneses, como o
ma 間 e o mushin 無心. A partir dos artistas Kazuo Ohno,
Min Tanaka, Tadashi Endo, Tatsumi Hijikata e Yoshito
Ohno, a dança Butō é analisada como uma prática que
desloca as concepções sobre existência, arte, cultura e
natureza, sendo observada como uma perspectiva que não
demarca a dicotomia, mas, ao contrário, agrupa as coisas,
busca a transposição das diferenças e o corpo sem fron-
teiras, como uma proposta de existência política. O ensaio
relaciona a prática de Butō ao animismo e alarga as rela-
ções entre esta e o conceito japonês ma 間, trazendo-o além
do Butoh-Ma, de Tadashi Endo, e identificando o espaço
entre como cerne dessa prática que se dá como ferramenta
para a travessia da catástrofe.
Palavras-chave: Butō. Catástrofe. Ma. Animismo.
388 MURAKAMI A.

ABSTRACT
This research is based on the relations between art, body, and
catastrophe and suggests the Butō dance as a tool to question and
rethink life. The text points the connections between Butō and
Japanese philosophies and concepts, such as ma 間 and mushin
無心. From artists such as Kazuo Ohno, Min Tanaka, Tadashi
Endo, Tatsumi Hijikata, and Yoshito Ohno, the Butō dance is
analyzed as a practice that displaces conceptions about existence,
art, culture, and nature, and is observed as a perspective that does
not demarcate dichotomy but, on the contrary, brings things toge-
ther, seeks the transposition of differences and the body without
borders, as a proposal for political existence. The essay relates the
practice of Butō to animism and extends the relationship between
it and the Japanese concept of ma 間, bringing it beyond Tadashi
Endo’s Butoh-Ma, and identifying the space in between as the core
of this practice that occurs as a tool for traversing the catastrophe.
Keywords: Butō. Catastrophe. Ma. Animism.

Ao adentrar o estúdio do dançarino Kazuo Ohno (1906-2010),


localizado em Kamihoshikawa, Japão, o corpo é envolvido
por uma simplicidade vagarosa e pelas memórias agru-
padas nos cantos da sala. Em minha primeira visita, em
2017, presenciei a entrada humilde do anfitrião na sala. Com
a mão no peito, curvou suavemente a cabeça e pronunciou
com voz doce: “Yoshito”.
Yoshito Ohno (1938-2020), dentro do estúdio de seu pai,
Kazuo Ohno, convidou todos os corpos a experienciar o
renascimento da dança Butō através de si mesmos, por meio
daquele espaço no qual a dança havia brotado anos antes.
Para isso, seria necessário estar consciente de um estado de
retorno a todo o instante. Achar um lugar dentro de si, como
ensinava Yoshito, e voltar a ser um bebê ao se conectar com
o silêncio, com o peso de uma folha de papel. Em meio aos
seus movimentos, Yoshito sussurrou que os nossos pés
UMA DANÇA SÓ DE OLHOS 389

pisam sob nossa história e que esta precisa ser incorporada,


vivida e trazida para fora através da dança.
O contexto de surgimento da dança Butō é carregado de
uma especificidade histórico-política: a resposta do corpo
japonês ao período pós-Segunda Guerra Mundial. Os precur-
sores Tatsumi Hijikata (1928-1986) e Kazuo Ohno, junto
com seu filho Yoshito Ohno, deixaram o Butō dançar em
seus corpos desde onde seus pés pisavam, desde as ruínas
e destruições humanas latentes do período, tocando em
lugares obscurecidos do corpo e da mente japonesa.
O estado arruinado da vida e da cidade após a guerra
resultou em um marco de transformação simbólica e poética
no país, levando o imperador Hirohito1 裕仁 a deixar de ser
“um ente divino inacessível, tendo a sua fragilidade confun-
dida com as ruínas”. Ele passa, então, a assumir a nova
imagem de defensor da natureza, produzindo uma mudança
de paradigma no país: “do poder sobre a vida, para uma
política que conferia poder à vida” (GREINER, 2015, p. 112).
A sociedade abriu-se forçadamente às mudanças que se
faziam na passagem de um tempo a outro.
Não significa dizer, no entanto, que o Butō surgiu como
resposta à queda da bomba atômica; mas às modificações ocor-
ridas na sociedade japonesa nos anos subsequentes, que criaram
um solo fértil para o surgimento de uma arte que lida tão intensa-
mente com os interstícios da matéria. Ao dançar, Hijikata “colo-
cava tudo em questão: a vida, a sociedade, o espírito, o corpo, a
sexualidade e também a dança” (UNO, 2013, p. 43).
Em meio a um conturbado período de perda de identi-
dade no Japão, em 1959, o Butō começa a abrir as vísceras e
a trazer a intimidade crua ao contexto coletivo. Foi apresen-
tado publicamente pela primeira vez por meio de Cores proi-
bidas (Kinjiki 禁色), criação de Tatsumi Hijikata inspirada no
livro de mesmo título de Yukio Mishima. Na obra, Hijikata
entregava uma galinha nas mãos do menino Yoshito Ohno,

1 Imperador Shōwa 昭和, 124º reinado do Japão, de 1901 a 1989.


390 MURAKAMI A.

que simulava matar a ave. Nesse caso, a morte e a vida


são expressas em estado de tensão e questionamento, afir-
mando uma unidade da própria condição humana e de sua
existência em ruína.
O corpo em crise é acionado pelo Butō, o qual se torna
acessível de diferentes formas e por múltiplos corpos, uma
vez que a dor, o sexo, a raiva e a morte podem ser assimilados
de maneira plural, sem apagar a subjetividade e a singulari-
dade de cada corpo-memória que os vive/dança. Sendo assim,
o Butō pertence e não pertence ao contexto do pós-guerra, ele
está e não está atrelado à especificidade da cultura japonesa.
Sendo o tema da morte um dos pontos crucialmente
tocados pela prática do Butō, gera-se uma caraterística trans-
cultural que, no entanto, não transpõe as particularidades
localmente situadas dessa dança. Em sua ambiguidade,
é possível gerar uma identificação universal com o Butō,
mas também é evidenciada uma especificidade. Na relação
com a morte, sobressaem-se as bases das tradições culturais
japonesas, influenciadas pelo budismo e xintoísmo, respon-
sáveis pela manutenção das práticas de culto aos antepas-
sados e ao espírito das coisas, reconhecendo os mortos
presentes no mundo dos vivos. Esse reconhecimento foi
cultivado no cerne do Butō de Hijikata de maneira ímpar,
incorporando certas tradições de forma irreverente ao trans-
formar o respeito aos antepassados em compreensão física
de um potencial da existência, por meio do envolvimento
com “os limites imperceptíveis da vida” (UNO, 2013, p. 68).
Hijikata considerava os mortos seus professores: “não
se esqueçam de conviver com seus mortos. […] Considerem
e apreciem o Butō desse ponto de vista. Eventualmente, o
entenderão melhor” (HIJIKATA, 1995, p. 58). Assim, sua
criação inovadora não se lança isoladamente ao futuro; ela
carrega consigo a sabedoria do passado e da memória que o
artista permite aflorar em seus espasmos criativos.
Tendo crescido na cidade de Akita, localizada no
nordeste do Japão (Tōhoku 東北), Hijikata teve seu trabalho
UMA DANÇA SÓ DE OLHOS 391

profundamente influenciado por certas características


da região, marcada por um clima severo e pela pobreza.
Referenciando as erupções do corpo e da natureza sombria
de Tōhoku, “a terra habitada, ou assombrada pelos diabos e
espíritos malignos” (UNO, 2013, p. 45), juntamente com as
memórias de uma vida dificultada, Hijikata nomeou o Butō
como Dança das Trevas (Ankoku Butō 暗黒舞踏). Tōhoku
também foi considerado um dos centros da cultura Jomon,
desenvolvida pelos povos originários do Japão e foi habitado
durante séculos pela população Ainu, recebendo, assim,
forte influência de tradições indígenas. O anseio de retomar
aspectos originários, vivos em traços do cotidiano rural de
Tōhoku, esteve presente no trabalho de Hijikata.
Nos anos 1960, ele retornou à região a convite do fotó-
grafo Eikoh Hosoe,2 nascido em Yamagata — cidade próxima
a Akita —, para realizar um trabalho em conjunto. Hosoe
e sua família haviam sido evacuados de Tóquio devido à
guerra, retornando então para Tōhoku. Suas memórias de
infância, gravadas naquele lugar, estavam marcadas simul-
taneamente pelo período sombrio da guerra e pelas traves-
suras de menino que vivia no campo, o que produziu o desejo
de registrar a região antes que fosse modificada.
O projeto Kamaitachi contém registros da interação de
Hijikata com a população e paisagem rural. Seu título foi
inspirado na lenda de mesmo nome, que fala sobre o espí-
rito do vento possuído que corta os agricultores durante o
trabalho no campo. Nas fotografias, o corpo de Hijikata se
funde completamente a tudo o que atravessa: o solo, o ar,
as folhas e as pessoas. Sua presença não intervém no que
acontece, mas se envolve de maneira simbiótica, fazendo do
corpo um elemento de passagem. Essa integração marca a
estratégia do dançarino, que penetra um complexo momento

2 O verdadeiro nome de Hosoe é Toshihiro, e foi modificado


por ele após a Segunda Guerra Mundial para denominar que,
a partir daquele momento, nascia um novo Japão.
392 MURAKAMI A.

de transformações de forma orgânica em busca do fluir da


existência, seja ela envolvida por doçura ou sofrimento.
O estado pueril que traz a si mesmo inspira uma radical auto-
nomia da existência; não cede por completo, mas reserva
no interior de si a semente de sua singularidade, mesmo
envolta por uma densa atmosfera externa.
Além da retomada da lenda dos espíritos Kamaitachi,
outra crença popular de Tōhoku que influenciou Hijikata foi
o Kaze Daruma 風達磨, seres humanos transformados em
espíritos do vento. Daruma 達磨 é um boneco sem braços
que salta para trás quando é empurrado para frente, como
o vaivém de uma gangorra, um símbolo japonês de persis-
tência que conduz ao sucesso. É também uma abreviação de
Bodhidharma, um sacerdote da Índia que aprendeu a prática
e ensinamentos budistas com um dos discípulos de Sidarta
Gautama (Buda)3 e o levou para a China em c. 500 a.C. Da
China, foi levado para o Japão, dando origem ao zen budismo.
Hijikata foi influenciado por esses conhecimentos, os quais
estão presentes em sua dança, como afirma: “quando o Kaze
Daruma se encontra à porta e adentra a sala, ‘isso já é o butō’”
(HIJIKATA, 2006, p. 10, tradução nossa).4
Em conjunto com Hijikata, Hosoe também realizou o
filme Umbigo e a bomba atômica (Heso to genbaku へそと原爆,
1960), com coreografia e participação do dançarino. Nele,
tratam do contexto pós-guerra com uma linguagem extre-
mamente vanguardista, fazendo, ainda, uma releitura da
performance Cores proibidas. O filme mostra a existência

3 Também conhecido como Sidarta Gautama ou Shakyamuni,


é considerado um ser que alcançou a completa iluminação por
meio da aceitação da impermanência. Originário de Lumbini,
atual região do Nepal, Buda abandonou a vida em seu clã,
conhecido como Shakya, para viver de forma ascética e praticar
a meditação. Seus ensinamentos deram origem ao budismo,
que hoje se manifesta por meio de diversas tradições.
4 “When the Wind Daruma stands at the door and goes into the parlor,
‘this is already butoh’.”
UMA DANÇA SÓ DE OLHOS 393

irremediavelmente circunscrita em si mesma, a interligação


dos seres, o poder e o centramento humanos. O conflito se
mostra como elemento intermitente presente no manejo das
coisas: quem pode escolher o início ou fim de algo?
Ambos os projetos são demarcados por distintas ações
que se complementam. Se por um lado estas obras afirmam
o retorno ao lugar de origem, à ruralidade e à tradição,
por outro se coloca de forma disruptiva, inserindo o corpo
radicalmente no espaço para tratar das complexidades da
guerra. Postura que foi elemento-chave na constituição do
Butō, uma arte que faz sua mirada para trás e caminha ques-
tionadora para frente.
É evidente, tanto nessas obras quanto em sua dança em
geral, a afirmação de uma intimidade corpórea com a natu-
reza — o vento, a lama, os elementos de um ambiente agrí-
cola. Segundo o filósofo Kuniichi Uno, Hijikata colocou-se
paradoxalmente contra a natureza ao mesmo tempo que
sugeriu a reconstrução de sua intimidade com ela. Mas qual
natureza Hijikata assinala ao dançar?
Para refletir sobre isso, recorro à tradução da palavra natu-
reza em japonês. Em “Changing Process of the Japanese Concept
of the Word ‘Shizen’” (“Shinbun kiji kara mita nihonjin-no
‘shizen’ kan-no henka katei ni kansuru kōsatsu” 新聞記事
からみた日本人の 「自然」 観の変化過程に関する考察), os autores
Yasunori Kozuki, Hitoshi Murakami e Noboru Tōyama (1998)
explicam que, só a partir do impacto da cultura chinesa, os
japoneses passaram a tentar definir a natureza, utilizando pala-
vras que não delimitavam uma diferença entre o ser humano
e o elemento natural, como “algo em seu estado natural”
(ten’nen 天然), “o céu e a terra” (tenchi ou ametsuchi 天地), “tudo
no universo” (banbutsu 万物), “toda a extensão” (uchū 宇宙),
“princípio que se aplica a tudo” (tenri 天理), entre outras.
Foi então adotada a palavra shizen 自然, que se originou
do chinês jinen, tendo o significado, tanto no confucionismo
quanto no taoismo, associado ao “princípio da força própria”,
algo que não necessita de intervenção para que mude.
394 MURAKAMI A.

Já na era Meiji (1868-1912), estimulados pelo contato com a


cultura ocidental, os japoneses passaram a utilizar a palavra
shizen também como uma tradução da palavra nature (do
inglês), que não tem o mesmo significado. Em japonês,
nature seria definido como mizukara みずから, uma força
pensada que você mesmo decide fazer, enquanto shizen seria
onozukara おのずから, uma força não pensada, sem força
nenhuma, que acontece de acordo com o curso das coisas,
o raciocínio da natureza. O termo shizen está carregado de
diversas camadas de influência, desde os tempos da inexis-
tência de uma palavra no Japão para nomear a natureza,
passando por influências chinesas e ocidentais.
O shizen moderno, entendido como nature, segue uma
lógica de relações binárias, ausente das constelações macro-
-microcósmicas de shizen. Significava uma série de relações
nas quais não se excluíam nem separavam claramente a
esfera humana, o reino das ideias, ou mesmo os seres sobrena-
turais, a matéria, o ambiente. Diferentemente disso, a palavra
nature forma uma série de relações dialéticas: natureza versus
criação, cultura e história; natural versus artificial. Relações
que separam um reino — de coisas, processos, forças, imagens
e conceitos — de outro, a província dos seres humanos.
Sugiro que os paradoxos e conflitos incutidos em shizen
foram encarnados na dança de Hijikata — pseudônimo
que significa “do lado da terra” —, colocando-se contra
uma experiência essencialista e bifurcada (WHITEHEAD,
1968) e em busca de um sentido animista de natureza que
incluísse tudo. Não significa dizer que ele se colocou contra
qualquer influência externa na preservação de raízes tradi-
cionais; do contrário, como artista de vanguarda, Hijikata
permitiu a coexistência das influências modernas ocidentais
e das tradições japonesas em seu corpo. Vivenciou amplos
sentidos de natureza e cultura e fez a linguagem se adaptar
aos seus gestos, e não o contrário.
Em uma definição generalista do animismo, pode-se
considerar que é uma visão na qual tudo tem alma, espírito
UMA DANÇA SÓ DE OLHOS 395

ou vida. No entanto, há uma multiplicidade de formas da


visão animista, que varia a cada contexto, cultura e etnia.
O animismo que identifico na dança de Hijikata manifes-
ta-se por meio de uma conexão inerente estabelecida com
os elementos de seu entorno, em especial com a alma da
memória. Além de sua relação com os espíritos (seus profes-
sores), no Ankoku Butō Hijikata, filia-se à memória como se
fosse um ser, com vida própria, forma e estrutura com o qual
ele se envolve e dança, deixando-a modular suas ações.
No mesmo sentido, Kazuo Ohno expressou uma
forma única de animismo em sua dança, ao propor um
estado de devir que atravessa tudo. Ao considerar que seu
gesto poderia ser conduzido pelo universo de uma flor, por
exemplo, Ohno situa-a no centro das relações, afirmando a
capacidade da flor de sociabilização, agência e constituição
de universos. Ele falava constantemente que o ser contém
o universo, conectando-se com a tradição do pensamento
oriental, também particularmente animista.

A Via Láctea não existe no céu, ela está dentro de você; a


Via Láctea corre pelo cosmos sem fim, ela corre pelo fundo
da terra. A Via Láctea que corre por aquelas bandas, será
que é dela que vem a conversa que ouvimos na plataforma?
A conversa dos céus, a conversa do fundo da terra, elas têm
relação com seu interior (OHNO, 2016, p. 162).

Lígia Verdi (apud OHNO, 2016, p. 15), ao introduzir


a dança de Kazuo Ohno em seu prefácio do livro Treino
e(m) poema, diz que “é preciso esvaziar-se, abandonar-se,
mantendo-se disponível e atento à escuta que vem de dentro
e de fora”. Os mestres do zen budismo utilizam muito a narra-
tiva (kōan 公案) mu 無 durante as meditações. O mu significa
nada, não ter, sem, uma resposta em negativa que também
reserva um significado não dual, podendo ser absorvido
como tudo, o paradoxo tudo-nada. O nada, no amplo sentido
do mu guiava Kazuo Ohno, formulando um gesto em que se
deixa tudo para trás na finalidade de perceber a profundi-
dade do que vem de dentro e de fora.
396 MURAKAMI A.

Para discorrer sobre a dança de Kazuo Ohno, opto por


falar sobre seus escritos. Palavras encarnadas no corpo, uma
forma própria de Butō, sua poesia descreve o modo como
percebe o mundo. Sua escritura se localiza entre a palavra e
a dança, enquanto a dança se localiza entre o movimento e o
ideograma. Por isso, ao fazer uma análise descritiva de seu
trabalho, nada mais digno do que se envolver também por
suas criações poéticas, deixando-as bailar.

Gostaria de transmitir algo, mesmo que seja um pequenino


grão de areia — talvez isso eu consiga. Se eu puder trans-
mitir esse minúsculo grão, extraindo-o de tantos outros
infinitos, talvez valha a pena investir minha vida nisso. É
melhor penetrar fundo, até o âmago dos âmagos, mesmo
das coisas minúsculas, tratando-as com cuidado. Ainda há
tempo (OHNO, 2016, p. 24).

A delicadeza direta da palavra e a densidade revelada


por entre elas têm o peso idêntico de seu corpo. Sua vontade
de materializar um contato leve e translúcido com o entorno
soa nostálgico, talvez reflita uma tentativa de adocicar visões
amargas vivenciadas em seu passado em meio a guerra. Sua
dança-palavra habita a fissura, a transição do desastre.
Transitoriedade e travessia são características que
habitam a vida, a arte e a catástrofe. Enfrentar o sofrimento
e acionar o mais profundo estado da dor e do submundo
humano foram as incertezas que também guiaram os dança-
rinos de Butō em face à percepção de que o ser humano
vivencia o corpo em estado de desordem. Quando dançam o
sofrimento, eles transcendem e condensam materialmente
os conceitos budistas de impermanência, como se encar-
nassem uma meditação em movimento, sentindo cada um
de seus órgãos expostos do lado de fora do corpo, compreen-
dendo que nada permanece igual nunca.
Há 2,5 mil anos, Buda descobriu que o corpo e todo
o universo são compostos por partículas subatômicas
chamadas de kalāpas, em pāli, que estão em fluxo constante
de existência e inexistência. Buda percebeu isso a partir da
UMA DANÇA SÓ DE OLHOS 397

experiência direta do seu próprio corpo, entendendo que


“‘a verdade’ sobre o sofrimento deve ser explorada até o seu
fim”,5 em um movimento de assimilação e aceitação.
Essas concepções residem dentro do Butō, uma dança
que nasce e morre na aceitação da impermanência, esta-
belecendo uma contraforça que não significa parar dentro
do sofrimento, mas atravessá-lo, entendendo a dor como a
capacidade de se sentir e ser afetado, explorando os confins
do corpo, os limites do desconforto, a fim de transformar-se
e gerar o movimento denso, pesado, trêmulo. A partir da
experiência íntegra do corpo vivo e suscetível a inúmeras
sensações, pode-se chegar à raiz da vida, à experimentação
do gesto como folha, vazio, barro. Assim, as fraturas ativam
um processo de mutabilidade em que as circunstâncias ines-
peradas são aceitas e transformadas. A finalidade é chegar
a uma experiência mais profunda, acionando no corpo uma
ruptura capaz de partir o tempo e a História.
Impermanência, transitoriedade, austeridade e vazio
da mente são algumas das características do Butō. O mushin
無心, termo filosófico e estético do zen budismo, representa
os estados de anulação da mente, equanimidade diante das
mudanças, derretimento das expectativas de perfeição. Pode
ser associado à prática de Butō, pois o estado de mushin não
nega as fraturas, possibilitando o contato com a vida em seu
estado limítrofe da fragilidade. O mestre do zen budismo,
Takuan Sōhō, considera que a mente deve estar sempre no
estado de fluir. O mushin significa literalmente “a mente sem
a mente”, não ocupada de nada mais além da sua conexão
com o cosmos. Ele representa o corpo imerso na passagem
do tempo e a sucessão dos acontecimentos, em estado cons-
tante, incapaz de ter controle sobre as circunstâncias. Como
na dança, os pensamentos são deixados de lado com a finali-
dade de experienciar as coisas antes de entendê-las.

5 Padhāna Sutta, escritura na língua pāli referente aos ensinamentos de


Buda (HART, 1987).
398 MURAKAMI A.

O wabi-sabi 侘び寂び é também um conceito da estética


japonesa que considero ligado à resiliência encarnada no
Butō, uma vez que wabi 侘び representa a beleza rústica e
quieta, enquanto sabi 寂び indica a maturidade simples que
apenas a natureza pode oferecer às coisas pelo processo de
impermanência e transformação. O fundamento do wabi-sabi
está principalmente no processo, e não no produto; na deca-
dência e envelhecimento, e não no crescimento. No Butō,
o paradoxo de permanecer ou não o mesmo é intrínseco à
resiliência do corpo e não pode ser negado ou impedido, mas
sim apreciado enquanto potência. Apreciar o corpo arruinado,
exposto pelo Butō, é uma característica wabi-sabi expressa
não apenas na dança, mas também na cosmologia na qual os
corpos são convidados a mergulhar, na busca de encontrar a
harmonia no caos.
Mas como abordar a experiência da impermanência
e da equanimidade diante de grandes e coletivas dores?
A dança Butō é associada à transposição do sofrimento, das
fronteiras culturais, mas também é vista como uma arte do
pós-guerra. A escritora e crítica de arte Susan Sontag6 (2003,
p. 6) considera que “nenhum ‘nós’ deveria ser aceito como
algo fora de dúvida, quando se trata de olhar a dor dos outros”.
Ao abordar os sofrimentos decorrentes da guerra e a exacer-
bada propagação de fotografias capturadas e difundidas
nesses contextos, Sontag comenta que, a partir de 1945, com
a queda das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki,
tudo aquilo considerado seguro e garantido torna-se frágil e
indefensável, e a realidade passa a ser expressa pelas foto-
grafias como abominável.
As formas de narrar o terror produzem ressonâncias,
panorama no qual o Butō opta por expurgar do corpo o

6 Susan Sontag (1933-2004) foi ensaísta, filósofa e ativista norte-ameri-


cana. Suas críticas, especialmente voltadas para direitos humanos e
conflitos políticos, como situações de guerra, exerceram enorme influ-
ência em sua geração. Sontag também escreveu extensivamente sobre
fotografia, cultura e mídia.
UMA DANÇA SÓ DE OLHOS 399

indecifrável, os registros abaixo da pele, as fotografias não


imprimíveis e nem deletáveis. Como prosseguir? O que fica?
Na Cúpula Genbaku 原爆ドーム, em Hiroshima, há ruínas de um
edifício que esteve a 150 metros do epicentro da bomba atômica
e resistiu parcialmente ao impacto. Durante minha visita ao
local, encontrei uma senhora ativista japonesa que, voluntaria-
mente, relatou-me o sofrimento vivenciado ali, anos antes:

As pessoas […] queimaram e morreram instantaneamente e


[…] longe, há mais de três quilômetros de distância, as pessoas
também queimaram […]. Aqui tinha um mar de chamas,
então as pessoas correram para o estribo para escapar. Há sete
rios em Hiroshima, e também o mar. Naquele momento a maré
estava alta, então eles flutuaram no rio e voltaram, os corpos
voltaram. A superfície do rio coberta de corpos e também o fundo
do rio. Eles coletaram e carregaram os corpos e os cremaram.
Muitas pessoas mortas não foram identificadas. Suas cinzas
permanecem. Você vê um monte ali atrás […] abaixo do monte,
cinzas não identificadas de setecentas pessoas permanecem.7

Assimilei este relato somente após estar no Novo


Museu Nacional de Arte (Kokuritsu Shin-Bijutsukan 国立
新美術館), onde me deparei com a série Bathroom, de 1953,
de On Kawara, que mostra as dilacerações e as decadências
de um corpo que se percebe humano em sua mais cruel
instância através de uma série de desenhos de corpos dentro
de um pequeno banheiro, com partes cortadas e multipli-
cadas a cada quadro. A obra revela “a tensão entre a profun-
didade do que estava acontecendo no Japão e a incapacidade
dos artistas da nação para descrever isso adequadamente”
(MURAKAMI, 2015). As diferentes formas de assimilação
encontradas para lidar com os impactos e mudanças do
período se refletem nas múltiplas formas de expressão artís-
tica decorrentes.

7 Relato fornecido por uma voluntária e ativista japonesa anônima nos


arredores da Cúpula Genbaku 原爆ドーム, em janeiro de 2017. O diálogo
ocorreu em inglês e a tradução é de minha responsabilidade.
400 MURAKAMI A.

Na cidade de Hiroshima, a ambiguidade também se


reflete na arquitetura, mesmo passados anos do aconteci-
mento. Enquanto em algumas partes há marcas evidentes,
especialmente de carbonização, que escurecem as fachadas
de muitos prédios, em outras regiões parece existir apenas
o presente, sem rastros do passado — a aceitação talvez
como forma de continuidade e não de conformidade, estágio
prévio da recriação do corpo.
Mediante tantas complexidades, foi preciso “libertar o
corpo”, como disse Hijikata, e cada corpo tem algo especí-
fico do qual precisa se libertar. O dançarino faz da libertação
uma fonte potente para a sua criação. A hipótese aqui endos-
sada é de que o Butō surge como ferramenta para questionar
e repensar a vida, não para criar certezas, discursos ou
ideais. Seu modo de operar está conectado historicamente
com as tristezas da guerra, sem necessariamente produzir
um relato ou definir o entendimento de quem sofre e de que
forma sofre, sem usar números e sem produzir memórias
definidas, vivenciando no profundo do corpo aquilo que
deixa rastros no tempo. E o tempo é penetrável, permeável e
sem delimitação de espaço, corpo ou matéria.
O Butō se filia assim não à pontualidade de um acon-
tecimento, mas à continuidade de seus efeitos, encarnados
ampla e repetidamente na sociedade. Suas práticas se
ampliam, lidando com as catástrofes em uma dimensão
microcotidiana. Por isso ressoam ainda hoje e em corpos
situados fora de seu contexto de surgimento.
O paradoxo do Japão pós-guerra — invadido por uma
cultura estrangeira e em busca da preservação utópica da
tradição — foi vivenciado de forma singular por diversas
culturas que passaram por processos de assimilação do fora
e afirmação do dentro — mais significativamente, as inva-
didas e/ou colonizadas. Dualidade instaurada pela impossibi-
lidade da reconstrução total, pela convivência com o passado
latente e a assimilação radical do novo, produziu um descon-
forto transformado pelo Butō em qualidade transcultural.
UMA DANÇA SÓ DE OLHOS 401

Afinal, no espaço entre as culturas reside o encontro delas,


o ponto de assimilação e mistura. O Butō desperta o desfazer
de fronteiras pois nos joga no ponto de coabitação, um
espaço indefinido em que as diferenças coexistem, sendo a
condição intermediária — entre — característica do próprio
nascimento da dança.
O conceito japonês ma 間, entendido como entre, denota
um espaço intervalar. Não apenas uma distância em linha
reta entre dois pontos no espaço, mas também uma cons-
ciência simultânea de ambos os polos, podendo significar
interstício ou vazio. A distância entre as coisas pode ser
também o ponto de encontro entre elas, e as características
que as tornam opostas podem ser entendidas como uma
sendo o ponto de referência para interpretação e compre-
ensão da outra. A depender do ideograma que o acompanha,
o ma pode ser interpretado de outras formas e dizer respeito
a um espaço imaginário em que tudo pode ser concebido em
um tempo transitório, em que a passagem não é pura, mas
uma mistura de luz e sombra, de opostos.
Tadashi Endo (1947-) é um dançarino de Butō nascido em
Pequim que possui cidadania japonesa e vive na Alemanha.
Quando se apresenta no Japão é anunciado como “Tadashi
Endo, da Alemanha”, e quando se apresenta na Alemanha
é anunciado como “Tadashi Endo, do Japão”. Desse modo,
Endo afirma ser um homeless (do inglês, sem-teto), perma-
necendo sempre no estágio entre (SANTOS; SOUZA, 2005).
Assim, concentra forças opostas que coexistem em seu
corpo e acumula os tensionamentos dos quais necessita
para realizar sua dança, a qual intitula Butoh-MA.
Embora Endo não tenha vivenciado tão diretamente o
contexto catastrófico do surgimento do Butō, encontrou na
dança um meio. Através dela, pôde desenvolver uma ferra-
menta para lidar com as formas decorrentes de ruína social, em
um novo contexto de sociedade. A partir do Butoh-MA, Endo
propõe o esfacelamento das fronteiras culturais e o desloca-
mento dos pontos de referência do corpo. Quando adentramos
402 MURAKAMI A.

o espaço entre, podemos deixar de lado nossas pré-concepções


sobre o mundo e experienciá-lo a partir de outros pontos de
vista, sejam eles culturais, estruturais ou simbólicos.

Qualquer dançarino de butoh, ou pessoas que desejam


dançar butoh, todos são aceitáveis e possíveis, desde que
não percam a noção de que são peixes diferentes nadando
no mesmo rio, no mesmo rio do butoh. Temos que lutar o
tempo todo, nunca estar plenamente confortáveis e nunca
mostrar exatamente aquilo de que somos capazes, mas sim,
deixar-se existir (SANTOS; SOUZA, 2005, p. 13).

O ma se configura também como um lugar de formu-


lações de subjetividades fluidas, como ponto de encontro
da diferença, de percepção de que tudo é destituído de um
eu e todas as coisas são interconectadas pelo ponto vazio,
transitório. A partir da experiência extramatéria, não deli-
mitada pela forma, mas pelo entre-forma, surge o potencial
de se conectar com aspectos imateriais, cósmicos e trans-
cendentais. Aspectos estes evidenciados pelo Butoh-MA, em
que o vazio é explorado com uma beleza espiritual na qual
o dançarino tensiona os opostos, habitando a coexistência
entre ambos.
Na obra Ikiru: hommage to Pina Bausch, Endo não
apenas permite ao seu corpo ser habitado por vibrações invi-
síveis da dançarina Pina, mas as recebe como um encontro
com a imagem distorcida de si mesmo. Seria o objeto metá-
lico e reflexivo com o qual ele dança a representação da
desfiguração do corpo diante do outro, o estado disforme de
uma existência posta entre, em travessia? O espaço inter-
mediário no qual o dançarino se coloca não apenas retoma
a relação com os mortos e os espíritos, típica do Butō, mas
também com a tragédia que tanto toca Endo: a da travessia
entre as culturas. Esta o inspira e se retorce no cerne de sua
existência “sem lar”. De certo modo, isso é um problema
encarado pela dança de Tadashi Endo em silêncio, a trans-
formação do Butō ao longo das camadas de tempo, as novas
catástrofes enfrentadas pela dança.
UMA DANÇA SÓ DE OLHOS 403

Quando você me pergunta sobre terrorismo e situação polí-


tica, eu volto novamente a falar sobre Butoh-MA, “estar
entre” (in between). Eu penso que, no futuro, todos seremos
uma mistura, uma mescla entre europeus, japoneses, asiá-
ticos, americanos, africanos, e [isso] se dará no plano
das religiões. Talvez, então em todo o mundo haverá paz
(SANTOS; SOUZA, 2005, p. 13).

Endo afirma, ainda, que devemos estar desconfortá-


veis para dançar o Butō, a luta contra as situações de dor
simboliza, para ele, dançar. Essa é a experiência do espaço
como intervalo, acionado por meio da consciência de lugar,
que acessa simultaneamente a forma e a não forma a partir
da intensificação da visão sensível, não permitindo ao corpo
prender-se unicamente à noção tridimensional de espaço.
O Butoh-MA se baseia no entendimento de um corpo sensi-
tivo em relação ao entorno, enquanto no zen budismo ma
significa também harmonia. Na dança de Endo, esse enten-
dimento se estreita dentro de uma concepção da mistura,
e não da pureza, como signo de harmonia.
Outro importante dançarino de Butō, Min Tanaka (1945),
desenvolveu o Body Weather Farm Project, uma pesquisa
em um vilarejo montanhoso na região rural do Japão,
chamada Yamanashi, em que buscou explorar a origem da
dança através do trabalho agrícola. Trata-se de algo além
do entendimento sobre a dança ou sobre a vida rural: versa
sobre o entendimento do viver em conjunto com o ambiente,
que se atravessa e se influencia mutuamente. Ele manteve
a construção do Butō com um ambíguo engajamento, abor-
dando a cultura e a fisicalidade japonesas e ecoando também
a aproximação de Hijikata com sua terra natal, conduzido
pela ideia de uma presença da cultura camponesa indígena
na área rural japonesa (MARSHALL, 2006).
Tanaka compreende que sempre há um centro — de
ego humano — percebido dentro de nosso corpo o tempo
todo e questiona por que ele não pode estar dentro do sonho
ou em outro lugar. “Então, se eu tiver a chance de receber
404 MURAKAMI A.

os estímulos de fora, através da pele, eu irei conter mais do


que o que está dentro da minha roupa. Isso é Body Weather”
(MARSHALL, 2006, p. 61, tradução nossa).8 Min Tanaka
exerce seus movimentos com a força de um tempo geoló-
gico, “aberto sobre o tempo infinito não humano, aberto aos
animais, às plantas, aos minerais, às moléculas, ao cosmos”
(UNO, 2013, p. 52). O tempo do mundo meio visível e meio
invisível seria um tempo próprio que Tanaka formula ao
deslocar o centro de seu ego?
O Body Weather operou em muitos lugares, mas
quando o laboratório foi deslocado para a área rural, a área
das plantações, foram encontradas vastas formas de traba-
lhar com o corpo físico e o corpo sensível. A diversidade se
dá em um campo invisível do corpo, um ponto sutil no qual
Tanaka chega — não mais o corpo que dança, mas um corpo
físico que se conecta com o outro, como uma expansão do
movimento namba, técnica de caminhada antiga no Japão
vista por Tanaka como representativa do corpo agrícola.
Os braços e as pernas se movem em uníssono, direita com
direita, esquerda com esquerda, fazendo o corpo desapa-
recer e deixar ressurgir o outro, o fora.
No pensamento dominante ocidental, o outro nomeia
aquilo que é inferior, algo fora do parâmetro de quem domina.
Seria uma experiência secundária. O teórico indiano Homi
K. Bhabha (1998) critica o uso da potência afetiva e simbólica
da cultura como modo de demarcar uma característica de
nação, unidade inseparável e delimitadora de diferenças que
apaga as misturas, os cruzamentos culturais e mestiçagens
localizadas no interior de toda nação e toda prática cultural.
Essa demarcação é filiada ao sistema de definição do outro
como cisão, o qual cria um ponto fronteiriço, dificultando a
experiência intersubjetiva e a experiência do estado entre.

8 “So if I have a chance to get stimulation from outside through my skin,


I contain more than is inside of my clothing. That is Body Weather.”
UMA DANÇA SÓ DE OLHOS 405

A historiadora da arte Michiko Okano considera, em


seus estudos sobre o ma, a existência do terceiro excluído, ao
mesmo tempo um e outro ou nem um, nem outro, diferindo-se
da visão aristotélica que prevê a existência do ser ou não ser,
um ou outro (2007, p. 11). Associo o lugar de coexistência, coabi-
tação ou de desidentificação do terceiro excluído à dança de
Min Tanaka, em que a experiência transitória do corpo é o que
conta; mesmo quando a experiência está fora de si e é suposta-
mente do outro, trata-se de um outro que habita em seu interior.
O outro transpõe a definição do eu e desmembra a ideia
de indivíduo, ação tão cara às discussões atuais do pós-an-
tropoceno.9 Desse modo, com pés fincados na lama da plan-
tação de arroz, Min Tanaka deixa de ser corpo e enuncia os
organismos, plantas, o ar e os outros elementos do ambiente
e supera sua existência humana. Muitos de seus trabalhos
se dão neste ponto de encontro com o ambiente aberto, não
apenas o adentrando, mas também deixando ser adentrado.
Não significa dizer, no entanto, que sua obra é parte do pensa-
mento pós-antropoceno. Mais do que isso, o modo de existir
de seu trabalho está alinhado corporalmente com os dilemas
das sociedades antropocentradas (catastróficas), de modo
a transpassar o pensamento crítico e racional, rompendo o
ciclo do indivíduo enquanto dança. Tanaka aciona a mudança
desde dentro, desde o abandono de seu ego.
Sugiro que a trajetória poética do Butō e suas diferentes
manifestações — não concentradas somente no Japão, mas já
assimiladas e espalhadas por todos os continentes — venham
a gerar um entendimento do corpo liberado das categorias
dicotômicas. Afirma-se, assim, as interconexões possíveis

9 O Antropoceno é uma proposição geológica apresentada em 2016.


Ela considera que a profundidade das ações humanas produziram
alterações significativas na geologia e no ecossistema da Terra,
demandando sua demarcação como período geológico do planeta.
O pós-antropoceno surge nesse contexto a partir da análise crítica de
diversas pensadoras e pensadores que buscam alternativas para se
constituir um futuro além do antropocentrismo, que gerou o antropo-
ceno (HARAWAY, 2016).
406 MURAKAMI A.

dentro do processo de assimilação da diferença. Acredito


ser mais próximo da intersubjetividade que o Butō, em suas
extensas variações, está. Interessa mover o solo das pessoas
e a maneira como entendem os seres e os acontecimentos,
desde o estabelecimento de diálogos de polifonias. No fluxo
perpétuo do tempo, em que nada permanece o mesmo,
o dentro e o fora podem trocar de posição, como no ma.
Os dançarinos do Butō, cada um a seu modo, manifes-
taram uma linguagem disruptiva da arte, capaz de modificar
estruturas rígidas desde a parte interna do corpo, os sentidos,
os hábitos e marcas antigas, até a superfície da pele e o inte-
rior do pensamento, no espaço transitório entre. Eles propu-
seram formas subjetivas de transpor as diferenças, de acessar
as origens, compreendendo que a maior radicalidade gerada
pela arte, diante dos conflitos, é a modificação da existência
interna, da condição de relação entre o corpo e o mundo, da
forma como se olha. Kazuo Ohno (2016, p. 34) nos ensina:
“A realidade muda a todo instante, não é mesmo? Cuide bem
de seus olhos, existem danças assim, só de olhos”. É no fluxo
das mudanças que o Butō transborda, caminhando no espaço
transitório — da catástrofe para a criação.

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ARIANO H.

YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E


TRAGÉDIA: A POLÍTICA E O CORPO
NO CURTA-METRAGEM YŪKOKU

Helena Ariano
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

RESUMO
Este ensaio apresenta algumas considerações sobre o curta
Yūkoku: rito de amor e morte, roteirizado, produzido, diri-
gido e atuado pelo escritor Yukio Mishima (1925-1970) em
1965. Para esta análise, são levantadas reflexões sobre os
aspectos essenciais de seu pensamento: um diálogo entre a
importância do corpo, sua relação com a morte e o erotismo
e seu patriotismo. Para uma maior compreensão das bases
presentes em sua ideologia, considerações sobre algumas
obras suas, como Sol e aço (1968) e Hagakure: a ética dos samu-
rais e o Japão moderno (1967), são realizadas, além de alguns
levantamentos sobre o Japão Pós-Guerra, seus efeitos sobre
o escritor e de que forma a modernidade japonesa e a ociden-
talização interferem em sua concepção ideológica e estética
e, consequentemente, no curta em questão.
Palavras-chave: Yukio Mishima. Japão Pós-Guerra. Corpo.
Morte. Erotismo.

ABSTRACT
This essay outlines a few considerations on the short film Yūkoku:
Patriotism or the Rite of Love and Death, scripted, produced,
directed, and performed by author Yukio Mishima (1925-1970)
410 ARIANO H.

in 1965. For this analysis, reflections are made about essential


aspects of his thinking: a dialogue between the importance of the
body, its relationship with death and erotism and his patriotism.
To further understand the bases present in his ideology,
considerations are made about some of his works, such as Sun and
Steel (1968) and Hagakure: The Samurai Ethics and Modern
Japan (1967), as well as inquiries regarding Postwar Japan,
its effects on the writer and in which ways Japanese modernity
and westernization interfered in his ideological and aesthetic
conception and, consequently, in the short film in question.
Keywords: Yukio Mishima. Postwar Japan. Body. Death. Eroticism.

YUKIO MISHIMA: MULTIPLICIDADE ARTÍSTICA

Yukio Mishima, nascido Kimitake Hiraoka, em 1925, foi


um dos mais prolíficos e polêmicos escritores japoneses
do período Pós-Guerra. Sua produção abrange inúmeros
romances, contos, peças de teatro (tanto de nō quanto de
kabuki), tendo o escritor engendrado inclusive por áreas
distintas da produção escrita: entre suas ousadias artísticas,
encontram-se a fotografia, para a qual ele serviu de modelo,1
o teatro e o cinema, nos quais foi tanto diretor quanto ator.
Esse artista múltiplo, em 1970 (ano de sua morte), escreveu
uma introdução sobre si no catálogo de uma exposição
em sua homenagem,2 dividindo sua vida em quatro rios:
do livro, do teatro, do corpo e da ação. Dentre esses aspectos

1 Duas séries fotográficas importantes nas quais Mishima serviu de


modelo foram Punição pela rosa (Barakei, 1962), com o fotógrafo Eikoh
Hosoe, e Morte de um homem (Otoko-no shi, 1970), com o fotógrafo
Kishin Shinoyama.
2 A exposição Yukio Mishima, realizada pela loja de departamento Tōbu,
entre 12 e 17 de novembro de 1970. Mishima viria a cometer sepukku —
morte por esventramento, de tradição samurai, chamada de harakiri
no Ocidente — poucos dias depois, em 25 de novembro.
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 411

essenciais em sua vida, o foco para ele, a partir de determi-


nado momento, se instaurou nos dois últimos: o corpo e a
ação, que de certa forma moldaram sua produção artística e
mesmo sua vida pessoal.
Os rios do livro e do teatro se referem exclusivamente
a seu ofício. Ao falar de sua produção literária, Mishima a
associa à imagem do cultivo de uma lavoura, denotando a
importância de um trabalho constante e incansável — algo
que o acompanhou em todos os aspectos de sua vida. Embora
afirme não ser possível abandonar o rio do livro, o escritor
destaca o tormento em que se encontra sob o domínio das
palavras: “o livro escrito afasta-se de mim, ele já não mais será
um alimento para meu espírito, só podendo transformar-se
em chicote no futuro” (MISHIMA, 1970 apud KUSANO,
2006, p. 1). Posteriormente, como veremos adiante, Mishima
escreveria em Sol e aço, de 1968, sobre a corrupção das pala-
vras no espírito e sua firmeza em mergulhar no universo do
corpo e da ação, e essa desilusão com o ato de escrever se
observa também quando ele aborda o rio do teatro.
Nesse Rio, existe o encanto inicial do espetáculo e do
mundo de ilusões e de beleza propiciado pelo teatro, que,
segundo o escritor, muitas vezes permite experiências mais
intensas que as da vida real. Embora seja conhecido mais
amplamente por seus romances (ao menos no Ocidente),
Mishima escreveu inúmeras peças de teatro, em especial
de nō e kabuki, trazendo muitas vezes uma junção entre o
moderno e o tradicional. É importante destacar que o escritor
via o nō como algo fortemente tradicional, que impediria
a “intromissão pelo homem contemporâneo” (MISHIMA,
1970 apud STOKES, 2000, p. 171, tradução nossa),3 desta-
cando a beleza presente nas representações4 e afirmando ser
o nō a “união suprema da solenidade religiosa e da beleza

3 “No meddling by contemporary man.”


4 A beleza da flor, segundo Zeami, seria a representação ideal, a essência
absoluta do ator que permite que a emoção flua no espectador.
412 ARIANO H.

sensual” (MISHIMA, 1970 apud STOKES, 2000, p. 171,


tradução nossa).5 Além disso, ele dá grande destaque para
a presença da morte, da destruição e do silêncio no nō. Esse
teatro, portanto, é extremamente simbólico para o autor,
havendo, inclusive, a adoção dessa estética e elementos para
a confecção do curta. Cabe salientar, no entanto, que embora
Mishima tivesse o teatro como uma espécie de “ideal artís-
tico”, lentamente esse prazer “transformou-se em amargura”
e uma nova busca passou a ser iniciada: o corpo (MISHIMA,
1970 apud KUSANO, 2006, p. 5).
Embora Mishima afirme em Sol e aço (1968) que as
palavras se desenvolveram antes da linguagem da carne,
o corpo sempre esteve presente de uma forma ou de outra
em sua vida. Este texto não apresenta um foco biográfico,
mas algumas considerações breves sobre a vida do escritor
auxiliam na compreensão de certos pensamentos aqui
abordados. Filho primogênito de Azusa e Shizue Hiraoka,
Kimitake Hiraoka6 foi tomado ainda bebê sob os cuidados
de sua avó paterna, Natsuko. Descendente direta de samu-
rais, a mulher de temperamento forte e vítima de nevralgia
craniana sujeitou a criança a grandes expectativas (por conta
de seu saudosismo de um Japão tradicional) e a um confina-
mento a seus aposentos em convivência direta com o que
Mishima viria a descrever posteriormente como “odores
de doença e velhice” (MISHIMA, 1949 apud STOKES,
2000, p. 40, tradução nossa),7 além de impedi-lo de realizar
brincadeiras mais ativas. O pequeno Kimitake teve uma
criação dita feminina para os moldes da época (ou seja, uma
criação mais reclusa, austera e controlada) e, embora esses

5 “Supreme union of religious solemnity and sensuous beauty.”


6 Seu pseudônimo surgiu apenas em 1941, criado por um professor que
apoiava sua carreira literária. Mishima o utilizou em alternância com
seu nome real até o fim da guerra, quando passou a utilizar apenas o
nome artístico.
7 “Odors of sickness and old age.”
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 413

acontecimentos não fossem raros a sua época, isso certa-


mente o conduziu a uma obsessão pelo corpo.
Em contraste a uma infância e adolescência em que apre-
sentava muita fragilidade física, Mishima, a partir de seus
trinta anos, passou a cultivar sua forma física por meio de
intenso treinamento com musculação, boxe, karatê e kendô.
Ao narrar brevemente essa trajetória no rio do corpo, ele
destaca que em dado momento não estava mais satisfeito
com suas obras criadas pelo espírito, aspirando a criar uma
beleza visível, transformar a si em uma obra — para isso,
“a condição necessária é o corpo” (MISHIMA, 1970 apud
KUSANO, 2006, p. 395).8 Um fato de sua vida que o marcou
negativamente foi quando, aos 20 anos de idade, foi recusado
no alistamento no Exército. Esse acontecimento traz algumas
reflexões. Por um lado, Mishima nutria o desejo de morrer
jovem em campo de batalha,9 não aceitando a decadência, ou
seja, o envelhecimento natural do corpo. Por outro lado, sua
recusa no Exército se deu por conta de um diagnóstico errado
do médico responsável, que foi conscientemente confirmado
por Mishima.10 Ou seja, o próprio escritor se privou da expe-
riência que tanto almejava. Uma possível explicação para
essa decisão é justamente a consciência de que seu corpo, na
época, não era adequado, digno para a morte.
Ao traçar a importância do corpo para Mishima,
é imprescindível considerar sua forte relação com a morte,
a tragédia e o erotismo. Em Sol e aço, obra que considera
como sua “confidência crítica”, ele reflete sobre sua relação

8 Em The Life and Death of Yukio Mishima, Stokes traduz essa parte
como “I had to make my body beautiful” (“eu tinha que transformar
meu corpo em algo belo”, em tradução livre), associando, portanto,
a virilidade do corpo a sua beleza.
9 Como muitos jovens de seu tempo, que vivenciaram o nacionalismo da
guerra e a derrota do Japão, Mishima nutria um sentimento de glorifi-
cação da morte que perdurou durante toda sua vida.
10 O resfriado de Mishima foi confundido com um quadro de tuberculose.
O escritor, à época, não desmentiu o diagnóstico dado erroneamente.
414 ARIANO H.

com a linguagem da carne em contraponto à linguagem das


palavras — vendo estas como corruptoras da realidade e o
corpo, como vivência máxima. Ele também associa o corpo
ideal, principalmente masculino, à tragédia:

O sentimento trágico nasce quando a sensibilidade perfeita-


mente comum e normal, por um momento, se enche com uma
nobreza privilegiada [...]. Fundamental: que a “nobreza privile-
giada” tenha sua base estritamente numa espécie de coragem
física. Os elementos de intoxicação e sobre-humana claridade
no trágico nascem quando a sensibilidade comum, dotada com
força física certa, encontra aquele tipo de momento privile-
giado que nasceu para ela (MISHIMA, 1986, p. 14).

Desse modo, um corpo deve ser construído ideal-


mente para ser levado para a morte. A associação do corpo
com a destruição, portanto, é muito forte no pensamento
de Mishima: a destruição violenta, a ruptura da vida —
ao mesmo tempo em que a vida se afirma no ápice da morte —,
o oposto da decadência. Essa noção de destruição também
contém um aspecto niilista nietzschiano: um niilismo ativo,
de violenta ação, com alto poder destrutivo.11 Desse modo, a
presença de Nietzsche12 no pensamento de Mishima é forte,

11 Os conceitos de niilismo ativo e niilismo passivo e suas diferenciações


são abordadas mais detalhadamente na obra A vontade de poder (1901).
Para Nietzsche, quando o niilismo se mostra como um declínio e uma
redução do poder do espírito, sem reagir ou atacar — o nada como
uma força negativa —, esse seria o niilismo passivo, que Nietzsche
associava erroneamente ao budismo. Por outro lado, havendo uma
força destrutiva e um aumento da vontade do espírito, levando a uma
ação — o nada como uma força positiva —, esse seria o niilismo ativo,
o ideal. Esses conceitos e sua influência sobre Mishima são abordados
por Roy Starrs em Deadly Dialetics: Sex, Violence and Nihilism in the
World of Yukio Mishima (1994).
12 Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo alemão produtor de
ampla obra. Algumas de suas concepções mais significativas foram
o conceito do niilismo, fortemente associado ao pessimismo; a morte
de Deus; a vontade de poder ou de potência como força que norteia os
seres humanos; e a dicotomia, em especial na arte, entre o apolíneo
e o dionisíaco (resumidamente, a ordem e o caos). Os conceitos mais
presentes em Mishima e em sua obra, segundo Kusano (2006) e Starrs
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 415

tendo influenciado inclusive em como ele enxerga o próprio


Japão e na forma como passa a perceber um dos elementos
mais importantes na construção de sua noção de corpo:
a escultura grega.
Em 1952, o escritor realiza uma viagem ao Brasil e à
Grécia, que ele narra no livro O cálice de Apolo.13 Nessa viagem,
o corpo é posto em evidência, tanto no carnaval no Rio de
Janeiro quanto em seu contato com as esculturas gregas.
Na cidade brasileira, terra na qual Mishima parece ter sido
“assaltado por uma espécie de reminiscência dentro do
sonho de que com certeza [...] já vira esse lugar” (MISHIMA,
1952, apud KUSANO, 2006, p. 77), ele vivenciou sua sexuali-
dade com liberdade aparentemente inédita.14 Já na Grécia,
apartir de sua apreciação das esculturas clássicas, parte de
sua visão sobre o corpo se molda ao enxergar a união entre
juventude e beleza, e, com isso, o autor é atraído pela super-
fície — “os gregos acreditavam no exterior” (MISHIMA, 1956
apud KUSANO, 2006, p. 407) — ressaltando a importância da
união entre corpo e mente, defendendo que no advento da

(1994), são o niilismo, em específico o niilismo ativo (ver nota 11),


a ação e a potência e o apolíneo e dionisíaco, esses últimos abordados
em O nascimento da tragédia (1872).
13 Mishima denomina o Brasil e a Grécia de Países Solares, sendo o título
do livro justamente uma homenagem ao deus grego do Sol. Algumas
considerações a esse respeito são importantes: Mishima via muita
importância no Sol em sua percepção — e construção — de corpo,
como é possível notar em Sol e aço. No entanto, é curioso ele se dirigir
ao Ocidente para abordar sua relevância. Na mitologia nipônica, os
japoneses seriam descendentes de Amaterasu, a kami do Sol — o povo
japonês, portanto, seria um povo solar. Mishima se direcionar a uma
mitologia externa mostra o forte impacto da modernidade ocidental
em seu pensamento.
14 Segundo John Nathan, biógrafo do escritor e citado por Kusano (2006),
o acompanhante de Mishima na viagem, Mogui, surpreendeu-se com
sua “homossexualidade descarada” (NATHAN, 1974 apud KUSANO,
2006, p. 79). Mishima nunca escondeu sua sexualidade, como é possível
notar em suas obras Confissões de uma máscara (1949) e Cores proibidas
(1951), mas durante essa estadia no Rio de Janeiro houve uma intensi-
ficação em sua experiência de libertação sexual.
416 ARIANO H.

modernidade houve uma ruptura entre esses dois aspectos


do ser humano. Por conta dessa ruptura, segundo ele,
mais presente no homem do que na mulher,15 seria neces-
sária uma ação brusca, violenta, intensa, que, aos olhos de
Mishima, levaria à morte, à tragédia final.
O rio da ação, portanto, é a consequência natural do
corpo masculino ideal. Nesse rio há “lágrimas, suor e
sangue” (MISHIMA, 1970 apud KUSANO, 2006, p. 529), algo
ausente no rio do livro e irresistível ao homem. A questão do
masculino é inegavelmente presente em Mishima, como se
depreende, por exemplo, em Hagakure: a ética dos samurais e o
Japão moderno (1967),16 em que um dos destaques é a respeito
da suposta efeminação do homem moderno e a necessi-
dade de um retorno a uma qualidade de guerreiro tradicio-
nal.17 Apesar dessa importância da masculinidade na visão
de Mishima, o aspecto mais presente em sua concepção é
a morte. O preceito máximo do Hagakure destacado pelo
escritor é “o caminho do samurai é a morte”, e em Sol e aço,
o corpo, a tragédia e a destruição são elementos indissociá-
veis. Foi visto que nessa obra Mishima narra seu trajeto de
desenvolvimento físico: anteriormente corroído pelas pala-
vras (corruptoras da realidade), o corpo, em contato com
exercício físico intenso, encontra sua própria linguagem,

15 A relação com a mulher é complexa em Mishima, e isso permeia suas


personagens femininas. Por um lado, ele parte da visão de que o corpo da
mulher estaria mais ligado às funções biológicas (destacando a criação
dos filhos), não tendo a mesma ruptura entre corpo e espírito do homem
e, portanto, não havendo a mesma necessidade de ação. Por outro lado,
“mulheres de vontade resoluta” (KUSANO, 2006) compõem a maior parte
de suas personagens femininas, e a própria protagonista do curta Yūkoku
se apresenta como uma heroína trágica, conforme será visto.
16 Esse livro é uma análise do Hagakure de Jōchō Yamamoto (1659-1719).
A obra de Yamamoto consiste em uma compilação de preceitos desti-
nados aos samurais e dita quais seriam suas ações ideais ante diversas
situações, com foco na arte de morrer.
17 A concepção de efeminação do homem japonês já existia na obra
original de Yamamoto, e Mishima resgatou essa ideia, destacando a
necessidade de uma emasculação.
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 417

unificando-se à consciência. Um dos fatos narrados nesse


livro foi o treinamento militar que ele realizou durante
um mês nas Forças Armadas Japonesas (Jieitai), em 1967,
quando experimenta uma sensação de quase morte.18 Para
ele, a morte é o único fim possível, sendo associada à tragédia
e ao grupo — “a dissolução da individualidade era indispen-
sável. A qualidade trágica do grupo também era necessária”
(MISHIMA, 1986, p. 86). O sofrimento extremo, cujo ápice
é a morte, está associado ao coletivo, sendo a linguagem
máxima da carne.
Depreende-se dessas considerações a construção de uma
identidade coletiva, presente em Mishima especialmente
após o início de seu treinamento. Um dos aspectos que dizem
respeito à coletividade no Japão é o conceito de kokutai 国体.
Podendo ser traduzido como corpo nacional, essência nacional
ou identidade nacional, o kokutai está fortemente relacionado
ao nacionalismo e à valorização do tennō 天皇 e da estrutura
nacional. O tennō não significa apenas imperador, mas impe-
rador celestial, governante divino, e sua importância está dire-
tamente relacionada ao xintoísmo.19 Para Mishima, o Japão
Pós-Guerra, com a ocupação americana, perdeu grande parte
de sua identidade, em especial da tradição guerreira. A defesa
do tennō, portanto, seria a única forma de recuperação do
Japão tradicional — a única revolução possível.
A morte do escritor está profundamente relacionada a
essas questões: o corpo, a ação, o grupo e o patriotismo.20
Após seu intenso treinamento, Mishima funda, em 1968, um
grupo paramilitar chamado Tatenokai (Sociedade do Escudo),
milícia cujo objetivo era promover virtudes militares e agir
em defesa do imperador. Em 25 de novembro de 1970, esse

18 Ao realizar a simulação de altitude a mais de 40 mil pés (cerca de


12,20 quilômetros).
19 Ele seria descendente direto da kami Amaterasu.
20 Outro elemento presente é o erotismo, que está fortemente presente
no curta Yūkoku.
418 ARIANO H.

grupo realiza um motim no quartel-general das Forças de


Autodefesa, que não é levado a sério pelos presentes. Após
proclamar seu último grito — “Viva o Imperador” (“Tennō
Heika Banzai”) —, Mishima comete seppuku seguido de
Morita, um de seus jovens seguidores.
Sua morte foi e ainda é profundamente polêmica,
embora bastante coerente com a história que ele mesmo
traçou. Altamente criticado por seus contemporâneos, o ato
de Mishima trouxe um grande incômodo. Ele procurou rees-
tabelecer uma identidade nacional, a seu ver, perdida no
Pós-Guerra, e o desconforto causado por suas ações podem
dizer respeito à forma como ele escancarou certas questões
da história recente do Japão, como a guerra, o nacionalismo,
o militarismo e uma ideologia de glorificação da morte.

O CONTEXTO PÓS-GUERRA
Mishima viveu parte de sua juventude nos tempos da guerra,
e houve certas influências dessa época em seu pensamento.
O período em questão trouxe importantes implicações polí-
ticas e sociais no Japão, além de consequências direcio-
nadas à corporeidade, à existência dos indivíduos. Segundo
Yoshikuni Igarashi (2011)21 essas repercussões se refletiram
não apenas nos corpos dos sujeitos anônimos, mas mesmo no
do Imperador, ecoando, portanto, na identidade japonesa de
forma geral. Em relação aos corpos dos cidadãos, houve uma
espécie de “senso de libertação” após a derrota: por conta da
perda do controle do Estado japonês sobre eles, que não mais
estavam sob a regulação política nacionalista dos tempos
de guerra, os sujeitos muitas vezes passaram a se entregar
a prazeres físicos como sexo e a comida — embora esta
fosse escassa. No entanto, se por um lado havia a libertação
do controle do Estado japonês, por outro lado esses corpos

21 Ele aborda essas questões ao longo de todo seu livro Corpos da


memória: narrativas do Pós-Guerra na cultura japonesa (1945-1970).
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 419

passaram a ser controlados por um novo poder: os Estados


Unidos. Durante a ocupação inimiga no país, as forças
armadas americanas estabeleceram práticas médicas e higie-
nistas com o intuito de produzir um corpo japonês saudável e,
por conseguinte, democrático — que não representaria riscos
para os Estados Unidos. Isso acabou ocasionando muitas
vezes uma atitude violenta contra os cidadãos japoneses.
Nesse contexto, também o corpo de Hirohito, o
Imperador Shōwa,22 passou por grandes mudanças. Havia
uma importância, inclusive mítica, da figura do governante
no Japão, percebido como um representante divino de toda a
nação. Com a derrota do país, Hirohito foi humanizado: sua
voz foi ouvida na rádio pela primeira vez, seu corpo visto em
meio às ruínas pela população, sua figura posta lado a lado
a do general Douglas MacArthur, estabelecendo-se simbo-
licamente uma relação de poder. Essa relação foi conside-
rada por Yoshikuni Igarashi como feminina (Japão) versus
masculina (Estados Unidos).23
Durante as décadas de 1950 e 1960, o Japão passou por
um intenso crescimento econômico, em grande parte propor-
cionado pela ocupação americana no país. Nesse período,
aspectos do modo de vida estadunidense foram incorpo-
rados no cotidiano dos japoneses, como o consumo de eletro-
domésticos, mudanças nas moradias e paisagens urbanas
e incorporação massiva de vestimentas ocidentais.24 Esse
cenário propiciou uma brusca transformação nas condições
do Japão: antes uma nação guerreira, o país tornou-se força-
damente pacífico. Não mais sob a tensão da guerra, os cida-
dãos vivenciavam a vida cotidiana. Juntamente com esse

22 A era Shōwa durou de 1926 a 1989.


23 Essa é apenas uma das possibilidades de leitura, sendo plausível
pensar nela em outros termos, por exemplo, dos princípios yin e yang
(a escuridão e a luz; o princípio passivo e o princípio ativo).
24 Este último acontecimento já se dava desde o período Meiji (1868-1912),
tendo aumentado durante a ocupação e democratização forçada.
420 ARIANO H.

fator, ainda havia o fato de que a figura do tennō havia sofrido


uma significativa mudança, perdendo grande parte de sua
aura divina, ao mesmo tempo em que se isentava da respon-
sabilidade política da guerra. Em 1960, também houve fortes
movimentos populares antitratado de Segurança, dos quais
Mishima participou ativamente.25
Visto isto, o suposto processo de efeminação do homem
japonês moderno,26 o pacifismo do Pós-Guerra e suposta perda de
identidade e da essência japonesas foram aspectos severamente
criticados por Mishima, que durante boa parte de sua vida buscou
um retorno a um Japão tradicional, com um passado guerreiro e
varonil, e o retorno da importância da figura imperial, deixando
claro seu forte patriotismo. O escritor perseguiu intensamente,
também, a paixão e a tragédia (que em sua percepção só seriam
possíveis em tempos de guerra), mesclando a sua ideologia
aspectos tradicionais japoneses, fortes influências ocidentais,
a linguagem da carne e o êxtase da morte.

YŪKOKU: RITO DE AMOR E MORTE


Em 1960, pouco tempo após as manifestações antitratado de
Segurança, Mishima escreveu o conto Yūkoku 憂国, tradu-
zido em português como Patriotismo, sobre o qual declara:

[...] apesar de ser um conto de menos de cinquenta páginas,


uma vez que aí estão concentrados vários elementos meus,
caso uma pessoa queira ler somente uma obra minha, eu
recomendaria Patriotismo. Assim, ela poderá compre-
ender tanto os meus aspectos positivos como os negativos
enquanto escritor (MISHIMA, 1960 apud KINJO, 2020, p. 49).

25 O primeiro Tratado de Segurança foi selado em 1951, estabelecendo


a relação entre Japão e Estados Unidos, com a maior parte do poder
militar dado aos ocupantes estadunidenses. Em 1960, houve uma
intenção de renovação desse tratado, o que ocasionou revoltas popu-
lares e fortes críticas ao ministro Nobusuke Kishi.
26 Como falado acima, é uma das possíveis visões das relações Japão-
Ocidente. No entanto, a questão da masculinidade é um tópico bastante
importante para Mishima.
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 421

Segundo Mônica Setuyo Okamoto e Pedro Tinen (2019),


há três bases presentes no escritor: o patriotismo (manifestado
na sacralidade do imperador),27 o erotismo e a violência (que
culminaria no ápice da morte), e esses três elementos encon-
tram-se no conto em questão. O enredo é simples: trata-se do
duplo suicídio patriótico do jovem casal Shinji Takeyama,
tenente do Exército Imperial, e sua esposa Reiko. A motivação
do suicídio é acarretada pela ação de terceiros: alguns jovens
oficiais, companheiros do tenente, realizam um motim em
nome do Imperador, e o protagonista teria de enfrentá-los e
encerrar a revolta. Dividido entre a lealdade por seus colegas
e a lealdade pelo Imperador (qualquer tipo de enfrentamento
culminaria em traição a um dos lados), o tenente resolve
cometer seppuku, testemunhado e acompanhado por sua fiel
esposa. O acontecimento histórico real que serviu de base para
o levante dos oficiais no conto foi o incidente de 26 de fevereiro
de 1936,28 que é visto por Mishima como um modelo por conta
de sua proposta de restituição do papel do tennō.
Mesclado à motivação política, há o uso de outros
dois importantes elementos: o amor erótico e a morte.
Os momentos finais do casal são marcados por uma forte ritu-
alidade, em que os preparativos (organização de pertences,
arrumação da casa, redação de cartas de despedida) são reali-
zados diligentemente rumo ao último feito do casal antes
da morte: seu derradeiro êxtase sexual. A todo momento, a
intensa atração dos dois é assinalada, e o erotismo presente
em sua relação é ampliado justamente por sua profunda leal-
dade ao imperador, como se depreende do seguinte trecho:

27 Cabe dizer que Mishima se refere à instituição imperial e sua simbo-


logia, não à figura pessoal de Hirohito.
28 Na década de 1930, época em que a narrativa se passa, havia forte
faccionalismo no Exército Imperial Japonês, o que acarretou diversos
conflitos. Um deles foi a revolta de um grupo de jovens oficiais do
exército que assassinaram diversos membros superiores em nome da
instituição imperial e tiveram suas ações abafadas pelo próprio impe-
rador Hirohito. É esse levante que é trazido no conto.
422 ARIANO H.

“Portanto, além de não ver incoerências ou contradições entre


sua compulsão carnal e a sinceridade de seu patriotismo,
o tenente, ao contrário, era capaz de considerá-los insepará-
veis” (MISHIMA, 2020, p. 25 e 26).
A morte, que apresentava motivações patrióticas,
intensificava o desejo sexual. Todo o intercurso é descrito
meticulosamente, destacando as características varonis do
tenente, a delicadeza e sensualidade de Reiko, que os guia
ao momento final: a destruição do corpo. Clímax do conto,
o seppuku do tenente é explícito e posto em contraste com a
sutileza da cena de amor, colocando o corpo como protago-
nista: as vísceras tomam vida, “vitalidade quase indecorosa”
(MISHIMA, 2020, p. 52), e o sangue se espalha profusa-
mente. Nos momentos finais, o foco é dado a suas insígnias
militares, tornando clara a importância da patente do prota-
gonista para suas motivações: a morte de um guerreiro.
Cinco anos depois (1965), o conto se tornaria curta-me-
tragem — essa adaptação é extremamente importante para
compreender os pensamentos estético e ideológico de Mishima
e como estão relacionados. Na produção dessa obra, o escritor
assume diversos papéis: roteirista, produtor, diretor e, principal-
mente, ator. Homônimo ao conto, o curta Yūkoku 憂國 recebeu
do próprio Mishima o subtítulo “Rito de amor e morte”,29 desta-
cando não apenas a importância da ritualidade — que assume
caráter quase religioso, sagrado —, como também a relação
entre os elementos patriotismo, amor erótico e morte. O curta,
por ser uma adaptação do conto, apresenta o mesmo enredo,
e sua potência enquanto obra audiovisual reside nas escolhas
estéticas de Mishima, bastante complexas e em consonância
com suas crenças ideológicas e artísticas.
O filme é dividido em cinco partes, sendo a primeira a
introdução; da segunda à quarta, o desenvolvimento; e a

29 Essa tradução foi feita em inglês, francês e alemão para a estreia


mundial do curta na Cinemateca de Paris. Em português, a tradução
do curta é Patriotismo: rito de amor e morte.
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 423

quinta, a conclusão. A primeira parte se inicia com a esposa


Reiko organizando seus pertences para dá-los a amigas e
parentes como uma espécie de herança. Durante seu ato,
imagens translúcidas do tenente são rememoradas, fazen-
do-a reviver momentos com seu amado, envoltos de profunda
ternura. O curta é mudo, portanto, o uso de imagens é crucial
para o fluxo narrativo.30 Além da ausência de falas, duas
grandes características do curta é o palco de teatro nō, espaço
onde ocorre a ação e que adiciona elementos importantes
dessa linguagem artística, e a filmagem em preto e branco,
enfatizando o contraste entre a luz e a sombra para a narra-
tiva visual. No curta, quatro estruturas principais do palco nō
(Figura 1) são utilizadas: o palco principal, a tábua de espelho
(kagami-ita), a passarela e a sala do espelho (kagami-no-ma).

Figura 1. Planta de palco de teatro nō.

No palco principal, espaço em que Reiko realiza esses


preparativos, é onde basicamente se passam todos os acon-
tecimentos centrais: os momentos iniciais; a cena de sexo do
casal, último êxtase amoroso antes do fim; a morte do tenente
e de Reiko; e a cena final do casal. Um aspecto importante do

30 Antes de cada ato, há o desenrolar de um rolo de caligrafia com uma


breve explicação dos acontecimentos subsequentes. O restante da
narrativa ocorre por meio da atuação e da trilha sonora.
424 ARIANO H.

teatro nō que é utilizado por Mishima é a narrativa que não se


passa no mundo presente, mas em um mundo passado, frag-
mentos contidos no campo do sonho e da memória. No nō,
o chamado teatro “de aparição” descreve a “alma do herói”
(GIROUX, 1991, p. 67), e o mesmo ocorre na representação
que se segue: ambos os personagens já se encontram mortos,
e a narrativa é uma reminiscência dos feitos de outrora.
A segunda parte, chamada de “O retorno do tenente”,
mostra quando esse personagem, já sabendo do levante promo-
vido por seus companheiros, volta à casa e marido e mulher
juram morrer juntos. O gesto, ritualizado e contido, é essen-
cial para a compreensão da trama e mesmo de características
dos personagens: os gestos do tenente são mais bruscos e os
de Reiko, mais delicados. Três características importantes
do teatro nō são a mímica, representado no curta pelo gesto;
a dança, elemento que será abordado mais adiante; e o canto.
Este último foi substituído por uma poderosa trilha sonora:
a primeira parte da ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner,
composta entre 1857 e 1859. Essa música está associada forte-
mente à tragédia e à morte, intensificando, juntamente com o
uso do corpo, o heroísmo do casal. Após o acordo de morte,
a maneira como ela ocorre é demonstrada por meio do gesto,
e finalizada essa troca, há um beijo apaixonado, o desejo inten-
sificado pelo vislumbre do trágico fim.
Outra estrutura importante do palco nō é a tábua de espelho,
onde tradicionalmente se posiciona o pinheiro sagrado,31 e no
curta-metragem essa imagem foi substituída pelos dizeres em um
rolo de caligrafia que podem ser traduzidos como “Sinceridade
máxima”.32 Esses dizeres aparecem no conto em apenas uma

31 Segundo Darci Kusano (2006), o pinheiro presente na tábua de espelho


é a representação do pinheiro sagrado yogo do santuário Kasuga, em
Nara. As peças de nō ocorriam antigamente ao ar livre, apenas poste-
riormente foram transferidas para os palcos dos santuários xintoístas.
32 No conto, há duas possibilidades de tradução: a versão de 1987, feita
por Aulyde Soares Rodrigues, traduz o termo no rolo de caligrafia
como sinceridade. A versão de 2020, feita por Jefferson José Teixeira,
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 425

cena em que o rolo de caligrafia é mencionado; já no filme, eles


são aparecem atrás dos personagens em diversos momentos,
desde seu acordo tácito de morrerem juntos até a morte do
tenente. Essa simbologia deixa claro o patriotismo que guia
ambos, denotando a devoção e lealdade do casal. Na Figura 2,
marido e mulher preparam-se para o último ato amoroso,
narrado na terceira parte do curta, “O amor final”. Com os dizeres
em evidência, um outro fator mostra sua devoção e heroísmo: à
cabeceira do leito, as armas com as quais cada um se matará já
estão preparadas — a espada do tenente em cima e a adaga de
Reiko embaixo, mostrando certa hierarquia entre ambos. A cena
de amor é vislumbrada por meio de fragmentos imagéticos, em
belíssimos contrastes de luz e sombra. A trilha sonora intensifica
o ato, que se encerra com o casal em posição semelhante à do
início e os dizeres ao centro, guiando suas ações e pensamentos.

Figura 2. O casal preparando-se para o ato de amor. Ao centro, os dizeres: “Sinceridade


máxima”; e, à cabeceira do leito, a espada e a adaga com as quais se matarão.

Após o ato amoroso, a quarta parte destaca o seppuku do


tenente, uma cena explícita e brutal, assim como no conto.
Com espasmos de dor e coberto de suor e sangue, ele se

traduz o termo para devoção. De qualquer forma, a noção de lealdade


está aí presente, inclusive imageticamente, durante todo o curta.
426 ARIANO H.

entrega heroicamente à morte, com seus órgãos internos


tomando protagonismo (Figura 3). No conto, essa cena apre-
senta a mesma expressividade:

[...] a ferida se abriu substancialmente e as vísceras saltaram,


como em uma violenta excreção. Ignorando o sofrimento de
seu dono, as vísceras apresentavam um aspecto saudável,
de vitalidade quase indecorosa, escorrendo vividamente
para fora e indo se acumular entre as pernas. O tenente
abaixou a cabeça, seus ombros se movimentando ao ritmo
da respiração, os olhos se entreabriram, e um fio de saliva
lhe escorreu da boca. As insígnias douradas em seus ombros
brilhavam (MISHIMA, 2020, p. 52).

Figura 3. A morte do tenente, foco em seus órgãos saindo do corpo.

Na cena do seppuku do tenente, o protagonismo de seu


corpo e o foco nas insígnias militares intensificam o valor
da morte: não é uma morte comum, mas deliberada, militar,
política — patriótica. O tenente torna-se seus órgãos e sua
patente, aumentando o heroísmo de seu ato, o que por sua
vez é intensificado pela trilha sonora. Pode-se ver nessa cena
e na de sexo uma possível simbologia da dança do nō, que, no
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 427

teatro de Zeami,33 é priorizada. Por meio da mímica, da dança


e do canto, eclode o que Zeami chama de flor do nō: a beleza
nos olhos do espectador adquirido por meio do efeito cênico
da representação. O gesto, no curta de Mishima, tem essa
importante função narrativa e estética.
Por fim, na quinta e última parte, cujo foco é o breve e
honroso suicídio de Reiko, há uma passagem da personagem
para a sala do espelho (Figura 4). Essa sala, no teatro nō, é desti-
nada à metamorfose do ator: nela, ele põe a máscara e se trans-
forma no personagem, na maioria das vezes uma entidade.
De certa forma, o mesmo ocorre com Reiko. Após a morte de
seu marido, da qual ela foi testemunha, a mulher se maquia
cuidadosamente, construindo sua própria máscara mortu-
ária e dirigindo-se rumo a seu suicídio heroico. Novamente
os dizeres são postos em evidência na cena, e enfim Reiko
perfura sua garganta com a adaga. Cabe destacar que essa
arma lhe foi dada por sua mãe para seu enxoval e consistia
em seu bem mais valioso: como esposa de um militar, Reiko
esperava destino semelhante, aguardando-o sem medo.

Figura 4. Após a morte do tenente, Reiko maquia-se na


Sala do Espelho antes de cometer seu suicídio.

33 Zeami Motokiyo (1363-1443), teórico e dramaturgo fundamental do


teatro nō, desenvolveu diversos tratados em prol da sua excelência,
criando o conceito de flor do nō. Zeami passa a priorizar o canto e a
dança em detrimento da mímica em suas peças e forma de atuação.
428 ARIANO H.

A forma como o conto e o curta se encerram é levemente


diferente: na obra literária, a última cena é justamente a visão
turva de Reiko após a entrada da adaga. No curta, mais um
elemento estético é inserido: o jardim de pedras japonês (kare-
sansui 枯山水) ou jardim zen (Figura 5). O karesansui já havia
tido seu significado refletido anteriormente por Mishima,
em especial o jardim zen do templo Ryōanji, em Kyoto, e o
escritor pensava em sua importância para a configuração
de uma estética nipônica. Mishima evoca “a beleza assimé-
trica do jardim zen de pedras e areia” (KUSANO, 2006, p. 404)
desse templo ao se colocar diante das ruínas do Partenon, que
visitou em sua viagem à Grécia. Por meio desse confronto
de estéticas distintas, Mishima reflete sobre a presença da
morte, escrevendo que, diferentemente da “imortalidade da
beleza” proposta pelos gregos, a “beleza assimétrica do jardim
de pedras está sugerindo a imortalidade da própria morte”
(KUSANO, 2006, p. 404). Ao posicionar o casal no jardim na
cena final, Mishima louva a morte, em especial essa morte
representada por meio da autodestruição do corpo, o suicídio
de cunho patriota precedido e marcado pelo erotismo.

Figura 5. Cena final: o casal já morto em cima


da representação de um jardim zen japonês.
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 429

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No curta Yūkoku: rito de amor e morte estão condensados


aspectos essenciais que caracterizam o pensamento de
Mishima. O patriotismo, elemento mais evidente a priori,
é destacado no título e está presente a todo momento
guiando as ações dos personagens. Por meio dos dizeres
“Sinceridade máxima”, do uso da espada e da valorização da
categoria militar — destacada pela arma e pelo uniforme do
tenente —, Mishima evidencia seu nacionalismo. A devoção
ao imperador é um ponto-chave: a derrota na guerra trouxe
consigo mudanças cruciais na figura do imperador, como
visto na parte 2 (“O contexto Pós-Guerra”). Para Mishima, a
recuperação da dupla estrutura do tennō — como governante
e como ser “cultural, poético e mitológico” (MISHIMA apud
KUSANO, 2006, p. 537) — traria a revolução cultural do Japão
e a restauração de seus valores. Além disso, ele deixa claro
que o levante de 26 de fevereiro de 1936, inspiração para o
enredo do curta, é um modelo para ele.
Associados ao patriotismo, estão outros dois elementos
importantes para Mishima, presentes em praticamente
toda sua obra: a morte e o erotismo. Já em escritos iniciais,
anteriores mesmo a Confissões de uma máscara (1949),34
a morte é parte constituinte: a questão da destruição —
associada à necessidade de ação — e do sofrimento está
diretamente relacionada à beleza para Mishima, trazendo
um aspecto trágico em suas produções. A beleza sufo-
cante, violenta, atroz, a beleza como experiência limítrofe
assume ares eróticos, e, assim, a morte acaba se relacio-
nando intimamente com a sexualidade. Em Confissões de
uma máscara (1949), por exemplo, Mishima já discorria
sobre a proximidade desses dois elementos ao narrar suas

34 Confissões de uma máscara é considerada sua primeira obra de


sucesso publicada profissionalmente. Antes dela, ele escrevia para
revistas literárias.
430 ARIANO H.

fantasias sexuais: uma atração profunda por jovens e belos


homens morrendo violentamente. Esse erotismo brutal
e mortal seria abordado ainda inúmeras vezes em outras
obras, inclusive em ensaios fotográficos em que o corpo
violentado em evidência é o do próprio Mishima.35 A morte
violenta do tenente é o clímax do curta, e sua beleza é inten-
sificada por conta do patriotismo de seu ato e da cena de
sexo trazida anteriormente. Além disso, o êxtase sexual é
elevado ao seu máximo no vislumbre da morte, potenciali-
zando todas as sensações, e o amor do casal é intenso por
conta de sua profunda devoção imperial.
Outra característica presente no curta é a coexistência
da tradição japonesa com a modernidade ocidental. Mishima
insere nessa obra a temática do nacionalismo japonês junta-
mente com elementos importantes da tradição artística
nipônica, como o teatro nō e o jardim zen. A utilização desses
recursos dialoga com a tentativa de um resgate de valores
que caracterizariam a identidade japonesa. Associado a isso,
a tradição moderna ocidental também se encontra enraizada
em Mishima, que utiliza como trilha sonora uma ópera de
Richard Wagner. A partir da música há o elogio à tragédia
e uma afirmação da transcendentalidade da morte amorosa
e patriota do casal, e é importante assinalar que Mishima
enxergava Wagner também sob uma ótica nietzschiana.
Em meio à modernidade japonesa, em especial no período
Pós-Guerra, a construção de uma nova identidade se dá
a partir da junção de diferentes fatores: o resgate ao tradi-
cional e uma releitura do moderno.
Mishima também consegue trazer a questão do grupo,
que, como visto em Sol e aço, é tão cara a ele, por meio do próprio
tenente. Há o levante dos oficiais, que mostram a importância
da coletividade; mas em seu protagonista, o coletivo se vê por

35 Um exemplo é o ensaio que Mishima realizou com Kishin Shinoyama,


em 1968, interpretando São Sebastião agonizando. Cabe destacar
que essa imagem do santo foi o objeto de sua primeira masturbação,
conforme ele narra em Confissões de uma máscara.
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 431

meio de seu uniforme e suas ações. O uniforme cala qualquer


traço de individualidade de Shinji Takeyama, evidenciando o
pertencimento a um grupo: a patente de tenente. Além disso,
ao cometer um suicídio político36 tendo sua esposa como teste-
munha, o tenente realiza uma junção das esferas pública (seu
posto) e privada (seu lar), evidenciando o quanto a questão
política se encontra no centro do pensamento de Mishima.
Por fim, o curta pode ser lido como um dos ensaios de
morte realizados pelo escritor. Mishima, ao encarnar o prota-
gonista, coloca seu corpo em evidência — corpo este que já
há alguns anos havia sido submetido a intenso treinamento
físico —, mostrando-se, portanto, apto à morte e à tragédia.37
Ao dar vida ao tenente, que claramente é um modelo de mascu-
linidade e autoridade, ele se possibilita encenar sua própria
destruição, algo que viria a repetir em outros momentos,
como no ensaio Otoko-no shi (A morte de um homem), de 1970,
com o fotógrafo Kishin Shinoyama.38 É sabido que Mishima,
ao realizar os preparativos para sua própria morte, toma
caminhos semelhantes aos do tenente: a busca por um grupo,
o motim, a morte dupla,39 o seppuku. Seu fim ideal já estava em
planejamento, sendo essa obra audiovisual uma das etapas
de preparação: nela, todos os Rios de Mishima deságuam,
mostrando-se presentes por meio do roteiro, da direção, da
atuação, da importância do corpo e da prévia da ação, pers-
crutada por ele. Sua ideologia máxima se encontra presente,
assim como inúmeros elementos artísticos que dialogam
com suas crenças. É possível dizer, portanto, que o curta é
uma síntese estética e política de Mishima.

36 O termo político é aqui utilizado tendo em vista o caráter patriótico do ato.


37 Cabe destacar que, para Mishima, o corpo destinado à morte e à
tragédia deveria ser saudável, forte e viril.
38 Nesse ensaio, Mishima encena diversas vezes sua própria morte,
em cada foto uma forma distinta de morrer. Todas ocorrem de uma
maneira trágica e com um toque de erotismo.
39 O suicídio de Mishima é testemunhado e acompanhado por Morita,
um de seus jovens seguidores.
432 ARIANO H.

BIBLIOGRAFIA
GIROUX, Sakae Murakami. Zeami: cena e pensamento nō. São Paulo:
Perspectiva; Fundação Japão; Aliança Cultural Brasil-Japão, 1991.

IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da memória: narrativas do Pós-Guerra


na cultura japonesa (1945-1970). Trad. de Marco Souza e Marcela
Canizo. São Paulo: Annablume, 2011.

KINJO, Victor. Quem são mishimas? Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

KUSANO, Darci. Yukio Mishima: o homem de teatro e de cinema.


São Paulo: Perspectiva; Fundação Japão, 2006.

MISHIMA, Yukio. Hagakure: a ética dos samurais e o Japão moderno.


Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

MISHIMA, Yukio. Patriotismo. Trad. de José Teixeira. Belo Horizonte:


Autêntica, 2020.

MISHIMA, Yukio. Sol e aço. Trad. de Paulo Leminski. São Paulo:


Brasiliense, 1986.

OKAMOTO, Mônica Setuyo; TINEN, Pedro. Patriotismo, de Yukio


Mishima: persona, autor e ator no cinema. In: OLIVEIRA, Janete;
SEVERIANO, Edylene. (org.). O Japão entre linhas e telas: inter-
faces entre cinema e literatura. São João de Meriti, RJ: Desalinho,
2019. p. 66-86.

PATRIOTISMO ou Rito de amor e morte. Direção: Yukio Mishima.


Japão: Art Theatre Guild (ATG), 1965. Publicado pelo canal do
Youtube Logos Fílmico, 23 mar. 2016. 1 vídeo (27 min 38). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=8HDyfZaU2FM&t=109s.
Acesso em: 27 ago. 2022.

STARRS, Roy. Deadly Dialetics: Sex, Violence and Nihilism in the


World of Yukio Mishima. Honolulu: University of Hawaii Press, 1994.

STOKES, Henry Scott. The Life and Death of Yukio Mishima. New York:
Cooper Square, 2000.
YUKIO MISHIMA, PATRIOTISMO E TRAGÉDIA 433

FONTES DAS FIGURAS


Figura 1
Planta de teatro nō. Artista desconhecido. Disponível em: https://www.
the-noh.com/en/world/stage.html. Acesso em: 25 mar. 2022.

Figura 2
Tenente e Reiko no leito. Fonte: YŪKOKU: rito de amor e morte.
Direção de Yukio Mishima. Japão: Art Theatre Guild (ATG), 1965
(8 min 42).

Figura 3
A morte do tenente. Fonte: YŪKOKU: rito de amor e morte. Direção
de Yukio Mishima. Japão: Art Theatre Guild (ATG), 1965 (18 min 50).

Figura 4
Reiko na Sala do Espelho. Fonte: YŪKOKU: rito de amor e morte.
Direção de Yukio Mishima. Japão: Art Theatre Guild (ATG), 1965
(22 min 52).

Figura 5
Casal sobre jardim japonês. Fonte: YŪKOKU: rito de amor e morte.
Direção de Yukio Mishima. Japão: Art Theatre Guild (ATG), 1965
(27 min 6).
RIBEIRO JUNIOR P.

ENTRE SIRENES E SUSSURROS:


A PALAVRA COMO RELICÁRIO
DE ECOS CATASTRÓFICOS 1

Plinio Ribeiro Jr.


Pesquisador independente

RESUMO
A partir de uma tipologia que busca alargar a dimensão
acerca daquilo que pode ser considerado uma catástrofe —
não apenas eventos de grande relevância histórico-social
(como terremotos, guerras, acidentes nucleares etc.), mas
também acontecimentos que constituam uma faceta mais
subjetiva e íntima, como a morte de um familiar — o presente
texto tem como objetivo principal traçar um panorama que
ilustre de que maneira essas catástrofes afetaram a vida
e a obra de artistas do campo literário japonês. O recorte
temporal adotado privilegia fatos e acontecimentos que
ocorreram ao longo do século XX. Além disso, a bibliografia
selecionada permitirá que sejam estabelecidos paralelos
comparativos entre autores e/ou obras provenientes de
outras regiões geográficas, mas que nutram laços efetivos —
e afetivos — com a realidade social e artística do Japão.
Palavras-chave: Literatura. Japão. Catástrofe. Luto. Resiliência.

1 Dedico este texto à memória de Gum Tanaka (1994-2022), cujo azul da


madrugada segue ecoando entre nós.
436 RIBEIRO JUNIOR P.

RÉSUMÉ
Basé sur une typologie qui cherche à élargir la dimension de ce que
l’on peut considérer comme une catastrophe — c’est-à-dire, non
seulement des événements de grande importance historique et sociale
(comme les tremblements de terre, les guerres, les accidents nucléaires
etc.), mais aussi des événements qui constituent une facette plus
subjective et intime, comme la mort d’un membre de la famille —
cet article vise à dresser un panorama qui illustre la manière dont
ces catastrophes ont affecté la vie et l’œuvre d’artistes appartenant au
champ littéraire japonais. L’approche temporelle adoptée privilégie
des faits et des événements qui ont eu lieu au long du XXème siècle.
En outre, la bibliographie choisie permettra d’établir des parallèles
comparatifs entre des auteurs et/ou des œuvres provenant d’autres
régions géographiques, mais qui ont des liens effectifs — et affectifs —
avec la réalité sociale et artistique du Japon.
Mots-clés: Littérature. Japon. Catastrophe. Deuil. Résilience.

Nasci dois anos após o Grande Terremoto.


Yukio Mishima, Confissões de uma máscara

Confissões de uma máscara (Kamen-no kokuhaku 仮面の告白),2


publicado em 1949, é um livro em que Yukio Mishima (1925-
1970) fornece ao leitor uma narrativa permeada de elementos
referentes a sua juventude. Ao iniciar seu relato autobiográ-
fico atrelando a sua existência ao grande sismo que ocorreu na
região de Kantō,3 em 1° de setembro de 1923 (Kantō daishinsai
関東大震災), Mishima ressalta o quanto a(s) catástrofe(s)
encontra(m)-se enraizada(s) no imaginário coletivo japonês.

2 Cabe ressaltar que, nesse texto, foi usada a versão em francês das
obras literárias citadas.
3 Barreira do Leste, onde se encontra a capital Tóquio, assim como
Yokohama.
ENTRE SIRENES E SUSSURROS 437

Efetivamente, a iconografia japonesa é repleta de exemplos


dessa transposição da catástrofe ao campo das artes — A
grande onda de Kanagawa (Kanagawa oki nami ura 神奈川沖
浪裏), literalmente: “Do outro lado da onda, na enseada de
Kanagawa” — (KATSUSHIKA, 1831), uma das mais icônicas
entre as xilogravuras do mestre Hokusai Katsushika (1760-
1849), ilustra muito bem essa realidade. Assim como Mishima,
muitos autores e pensadores japoneses utilizaram-se da
palavra como meio de expressão para transpor e registrar as
reverberações de eventos catastróficos.
Ao iniciar uma série de artigos4 escritos na sequência da
tripla catástrofe que atingiu a enseada da região de Tōhoku
(Tōhoku chihō taiheiyō oki jishin 東北地方太平洋沖地震), em
11 de março de 2011, a escritora Yōko Tawada aponta que
“Nós (japoneses) aprendemos, crianças, a manter a calma
em caso de catástrofe natural. Sempre que ouço as palavras
‘catástrofe natural’, eu me sinto muito calma” (TAWADA, 2012,
p. 91, tradução nossa).5 Essa especificidade no comportamento
japonês diante da catástrofe — refletida no currículo escolar e
na rotina das empresas, através da formação e de simulações
de como comportar-se em caso de desastres — acarretaria uma
especificidade nipônica também quando se trata da transpo-
sição de acontecimentos trágicos ao campo artístico-literário?
Residente na Alemanha desde 1982,6 a autora nos fornece
alguns elementos que permitem delinear os contornos da rele-
vância dos livros diante deste tipo de acontecimento.

Recebi hoje alguns outros e-mails do Japão. Um escritor japonês


me escreveu que sua mãe idosa, em Fukushima, vai bem.
Depois dessas catástrofes, alguns livros tornaram-se desinte-
ressantes para ele, sem que ele fosse capaz de dizer a razão.

4 Reunidos e publicados em francês no livro Journal des jours tremblants


(Diário dos dias trêmulos), esses artigos foram inicialmente escritos
em alemão, à exceção de um deles, escrito e publicado em japonês.
5 “Nous avons appris, enfants, à garder notre calme en cas de catastrophe natu-
relle. Dès que j’entends les mots ‘catastrophe naturelle’, je me sens très calme.”
6 A maior parte de seus livros são escritos originalmente em alemão.
438 RIBEIRO JUNIOR P.

Ele começou a fazer uma lista dos livros “resistentes aos


tremores”, quer dizer, os livros que guardam um valor para
além das catástrofes. Uma tradutora de Tóquio escreveu
que ela redescobriu alguns livros quando eles caíram das
estantes. Desde então, ela fica quase todo o tempo sentada no
chão, lendo. Os livros lhe dão um sentimento de segurança
e continuidade (TAWADA, 2012, p. 97-98, tradução nossa).7

Não somente os livros reagem aos terremotos, mas


eles provocam reações em quem os lê. Eles ultrapassam a
condição de ameaça (pela possibilidade de causarem danos
ao caírem das estantes) e tornam-se então um refúgio, uma
evidência tangível de que é possível resistir aos tremores.

NOVAS PERSPECTIVAS DE IMERSÃO


EM TEMPOS CATASTRÓFICOS
Ao percorrer-se a cronologia ao longo dos últimos cem anos,
evidencia-se que a simples menção de algumas datas é sufi-
ciente para evocar eventos que afetaram profundamente o
curso da história japonesa: 1923, 1945, 1995 e 2011.
Durante a primavera de 1945,8 Reiko Kruk-Nishioka
era uma garota de dez anos que vivia num vilarejo próximo
à cidade de Isahaya (Isahaya-shi 諫早市), parte da província
de Nagasaki (Nagasaki-ken 長崎県), distraindo-se —
e encantando-se — com o voo das “libélulas vermelhas”,

7 “J’ai reçu aujourd’hui quelques autres courriels du Japon. Un auteur


japonais m’a écrit que sa vieille mère, à Fukushima, va bien. Après ces
catastrophes, certains livres sont soudain devenus pour lui intéressants,
sans qu’il puisse dire pour quelle raison. Il a commencé à dresser une liste
des livres ‘résistants aux séismes’, c’est-à-dire des livres qui gardent leur
valeur au-delà des catastrophes. Une traductrice de Tokyo m’écrit qu’elle a
redécouvert certains livres lorsqu’ils sont tombés de ses étagères. Depuis, elle
est presque tout le temps assis par terre à lire. Les livres lui procurent un
sentiment de sécurité et de continuité.”
8 O que equivale, no hemisfério norte, ao período entre março e junho.
ENTRE SIRENES E SUSSURROS 439

nome pelo qual eram conhecidos os aviões biplanos utili-


zados para o treinamento da aviação japonesa.9
A rotina, já duramente afetada por todos os anos da
guerra,10 tornou-se então apocalíptica no verão daquele ano,
quando o exército dos Estados Unidos lançou o Fat Man,
a bomba atômica que atingiu Nagasaki em 9 de agosto, três
dias depois do lançamento de Little Boy em Hiroshima. Reiko
e sua família viviam a cerca de 20 km do epicentro. Foi preciso
que quase sete décadas se passassem para que emergisse na
autora — residente em Paris desde 1971 — a consciência de
que, mesmo sendo uma criança na época, ela era uma teste-
munha viva (KRUK-NISHIOKA, 2020, p. 194) e não queria
que sua visão dos acontecimentos daquele fatídico ano de
1945 fosse enterrada com ela: “As feridas do inferno da bomba
atômica nunca secaram para mim. Nesse país estrangeiro
(a França), a lembrança do meu país natal tornou-se cada dia
mais forte, ele aquece cada uma das minhas células” (KRUK-
NISHIOKA, 2020, p. 193, tradução nossa).11
Eis a gênese do projeto do livro Les Libellules rouges
(As libélulas vermelhas),12 estruturado a partir das estações do
ano e que apresenta capítulos curtos cujos títulos ecoam a
maneira como o olhar da pequena Keiko (personagem prin-
cipal e alter ego de Reiko) percebia a realidade ao redor dela.
“Os demônios desembarcam”, por exemplo, é o título do capí-
tulo em que ela descreve a chegada do exército americano:

9 “O rugido das libélulas vermelhas faz tremer as janelas da sala de aula”


(KRUKA-NISHIOKA, 2020, p. 19).
10 No contexto japonês, é mais pertinente empregar o termo Guerra do
Pacífico (Taiheiyō sensō 太平洋戦争) do que Segunda Guerra Mundial.
Esse conflito — que durou de 1937 a 1945 — iniciou com a invasão da
China pelo Japão.
11 “Les croûtes de l’enfer de la bombe atomique n’ont jamais séché pour moi.
Dans ce pays étranger, la pensée de mon pays natal est devenue jour après
jour plus forte, elle donne la chaleur à chacune de mes cellules.”
12 Publicado inicialmente no Japão, em 2013, com o título Akatonbo, 1945
nen 赤トンボ、1945年, literalmente: Libélulas vermelhas, ano 1945).
440 RIBEIRO JUNIOR P.

Aqueles que chamávamos de “cachorros americano-


-britânicos” durante toda a guerra invadiram o vilarejo [...]
Durante muito tempo a família toda falou em voz baixa,
temendo até respirar, na esperança de que os demônios
passariam sem perceber que existíamos. Tecidos escuros
cobriam os abajures para esconder a luz, fazendo com que
a casa ficasse tão sombria como se morássemos embaixo
da terra (KRUK-NISHIOKA, 2020, p. 149, tradução nossa).13

O olhar infantil parece fazer emergir uma outra pers-


pectiva, movida pela curiosidade sem tabus própria das
crianças: “Eu queria ver o monstro, esta bomba de um tipo
novo que ultrapassava a imaginação e que já começavam a
chamar de ‘a bomba de Hiroshima e de Nagasaki’” (KRUK-
NISHIOKA, 2020, p. 103, tradução nossa),14 resultando em um
texto isento de supérfluos, o que muitas vezes acentua o teor
dramático dos fatos retratados: “Por que é preciso que tantas
desgraças se empilhem sobre um corpo tão frágil? Mesmo
para um espírito de criança, isto parecia tão absurdo. E tão
injusto” (KRUK-NISHIOKA, 2020, p. 168, tradução nossa).15
Da mesma maneira que a representação fukinuki yatai
吹抜屋台 (literalmente: teto soprado e retirado)16 trouxe para
as artes visuais a possibilidade de se adotar uma “pluralidade

13 “Ceux qu’on a appelés ‘les chiens américano-britanniques’ toute la durée


de la guerre ont envahi le village [...] Longtemps, toute la famille a parlé
à voix basse, osant à peine respirer, espérant que les démons passeraient
sans nous remarquer. Les tissus noirs couvrent les abat-jours pour cacher la
lumière, et la maison est aussi sombre que si on vivait sous la terre.”
14 “Je voulais voir le monstre, cette bombe d’un type nouveau qui dépassait
l’imagination et que, déjà on commençait à appeler ‘la bombe d’Hiroshima
et Nagasaki’.”
15 “Pourquoi faut-il que tant de malheurs s’amoncellent sur un corps si
fragile? Même pour un esprit d’enfant, cela semblait tellement absurde
Et tellement injuste.”
16 Trata-se de um ponto de vista oblíquo de cima para baixo para
retratar o interior de um edifício. Desenvolveu-se durante o período
Heian (Heian jidai 平安時代, 794-1185), a partir dos rolos de pintura
(emakimono 絵巻物) usados como sistema de narrativa ilustrada
(FAUROUX, 2014, p. 130).
ENTRE SIRENES E SUSSURROS 441

de pontos de vista” (FAUROUX, 2014, p. 130, tradução nossa)17


acerca da realidade espacial, teria a literatura — através desse
olhar infantil (kodomo-no minasu 子供の見なす) — a possi-
bilidade de uma nova apreensão da vida, isenta dos filtros
próprios da visão adulta da vida e da realidade? Afinal, além
de ser uma abordagem direcionada a partir de um outro ponto
de vista — literalmente de baixo para cima —, é também uma
perspectiva que possui outra densidade:18

[...] eu não quis verificar a veracidade de minhas lembranças


em livros e documentos. Eu trouxe à tona as lembranças e
as emoções de uma menina de dez anos, eu escrevi e dese-
nhei19 tais quais eles tinham sido os pensamentos que eu tive
naquela altura, sem medo e sem receios (KRUK-NISHIOKA,
2020, p. 194, tradução nossa).20

AS FORÇAS MOTRIZES NO RASTRO DE CATÁSTROFES


Um dos aspectos singulares do livro de Reiko Kruk-Nishioka
é o fato de ter havido um longo tempo de decantação entre
os eventos relatados e o desejo de trazê-los à tona, o que, de
certo modo, representa um contraponto ao que parece ser
a tendência geral no campo literário. Além das imagens,
a palavra é um dos primeiros vetores de transcrição de
eventos dramáticos, quer seja através de relatos jornalísticos,
de simpósios e discussões acadêmicas que visam alargar o

17 “Pluralité de points de vue.”


18 No campo do cinema de animação japonês, o filme O túmulo dos
vagalumes (Hotaru-no haka 火垂るの墓, 1988), dirigido por Isao
Takahata e roteirizado a partir do conto semiautobiográfico do autor
Akiyuki Nosaka, é um excelente exemplo da singularidade do olhar
infantil no contexto de uma guerra.
19 Libélulas vermelhas é um livro permeado por desenhos da própria autora.
20 “[...] je n’ai pas voulu vérifier la réalité de mes souvenirs dans des livres et
des documents. J’ai rappelé à moi les souvenirs et les émotions d’une petite
fille de dix ans, j’ai écrit et dessiné telles qu’elles étaient alors les pensées que
j’avais à cet âge, sans peur et sans crainte.”
442 RIBEIRO JUNIOR P.

campo de análise, quer seja de obras literárias — de cunho


ficcional ou não. No caso dos escritores, há de se considerar
que uma catástrofe pode ser retratada com gradações dife-
rentes. Um bom exemplo disso encontra-se em dois livros
do célebre autor Haruki Murakami.
Em 1995, na sequência do grande terremoto de Kōbe
(Hyōgo-ken nanbu jishin 兵庫県南部地震), literalmente:
terremoto da parte sul da província de Hyōgo) e do aten-
tado do gás sarin no metrô de Tóquio (chikatetsu sarin jiken
地下鉄サリン事件), o autor decidiu retornar ao Japão. Além disso,
essas tragédias o levaram à escrita de dois livros: Underground
(Andāguraundo アンダーグラウンド, 1997) e Depois do terremoto21
(Kami-no kodomotachi wa mina odoru 神の子どもたちはみな踊る),
literalmente: “Todas as crianças divinas dançam”, 2000). Como
veremos, o primeiro deles é o resultado de uma longa enquete
cujo início se deu de maneira prosaica.
Ao folhear um exemplar da revista Diário de senhoras
(Ladie’s Home Journal), Murakami deparou-se com o relato
de uma mulher que descrevia a demissão de seu marido,
vítima do atentado ocorrido no metrô de Tóquio, causando
no autor um inconformismo que se manifestou sob forma de
uma pergunta: “Por que não se fazia nada?” (MURAKAMI,
2013, p. 12), e sobretudo de uma ação, a de escrever o livro.
Trata-se de um extenso trabalho, fruto de mais de sessenta
entrevistas realizadas por ele. Primeira e (até então) única
obra de não ficção de Murakami, o livro apresenta no final
de seu prefácio uma espécie de prelúdio ficcional onde, diri-
gindo-se diretamente ao leitor, retrata de maneira muito
precisa a banalidade que costuma preceder as catástrofes:

Estamos na segunda-feira, dia 20 de março de 1995, na


manhã de um sublime dia primaveril. O ar cristalino encon-
tra-se agitado por uma leve brisa, e as pessoas fecham a

21 O livro ainda não foi publicado em português. A análise desse texto foi
feita a partir da versão francesa, publicada em 2002, cujo título original
é Après le tremblement de terre.
ENTRE SIRENES E SUSSURROS 443

gola de seus casacos ao redor de seus pescoços. Ontem foi


domingo; amanhã será o equinócio da primavera, um feriado
nacional. Você que não pode emendar para curtir um longo
fim de semana, você deve sem dúvida pensar: “Eu gostaria
muito de não ir trabalhar hoje”. Sem chance. Você acorda na
hora de sempre, toma banho, troca de roupa, toma o café da
manhã e vai para o metrô. Você consegue se encaixar num
vagão superlotado, como sempre. Tudo indica que será um
dia perfeitamente similar aos outros. Até que um homem,
com uma máscara branca protegendo a parte inferior do
seu rosto, atinge o chão do seu vagão com a extremidade
afiada do seu guarda-chuva para furar os sacos plásticos
que contêm um estranho líquido... (MURAKAMI, 2013, p. 19,
tradução nossa).22

Depois do terremoto, por sua vez, é um livro que se opõe


em muitos aspectos a Underground: primeiramente, por ser
uma curta coletânea de contos ficcionais (seis no total), nos
quais a tragédia — no caso, o terremoto ocorrido em 17 de
janeiro de 1995 — é apresentada apenas como um tênue pano
de fundo no qual se desenrola a ação. Essa sutileza, aliás,
está presente no nome da obra em japonês,23 que remete não
ao terremoto, mas ao título de um dos contos.
Mais do que uma realidade absoluta, o terremoto de
Kōbe parece servir como uma espécie de espelho onde se
refletem contornos de alma humana até então invisíveis,
como se a ênfase fosse dada aos movimentos das várias

22 “Nous sommes le lundi 20 mars 1995, au matin d’une superbe journée de


printemps. L’air cristallin est encore agité par une petite brise, et les gens
serrent le col de leur manteau atour de leur cou. Hier, c’était dimanche;
demain, ce sera l’équinoxe de printemps, une fête nationale. Vous qui ne
faites pas le pont pour vous octroyer un long week-end, vous pensez sans doute:
‘J’aimerais bien ne pas devoir aller travailler aujourd’hui’. Pas de chance.
Vous vous levez à l’heure habituelle, vous vous lavez, vous vous habillez, vous
prenez votre petit déjeuner et vous descendez dans le métro. Vous réussissez
à vous glisser dans une rame surpeuplée, comme d’ordinaire. Ça promet
d’être un jour parfaitement semblable aux autres. Jusqu’à ce qu’un homme,
un masque blanc protégeant de votre wagon du bout effilé de son parapluie
pour percer des poches en plastique remplies d’un étrange liquide...”
23 Kami-no kodomotachi wa mina odoru 神の子どもたちはみな踊る, literal-
mente: “Todas as crianças divinas dançam”.
444 RIBEIRO JUNIOR P.

camadas tectônicas que compõem a existência humana.


É o que ocorre com Yoshiya, personagem central de “Todas
as crianças divinas dançam”, conto que dá o título à versão
japonesa do livro: “Essa floresta, é dentro de mim que ela
está, finalmente. Fui eu mesmo que a criei. Esses animais
selvagens, é no fundo de mim que eles vivem” (MURAKAMI,
2002, p. 71-72, tradução nossa).24

DIÁLOGOS CATASTRÓFICOS
Como já se disse, as tragédias ocorridas no Japão em 1995 foram
o estopim da decisão de Murakami de voltar a viver no Japão
(na altura, ele vivia nos Estados Unidos). De outras maneiras,
em outros períodos, as catástrofes serviram como plataforma
de diálogo entre o Japão e o ocidente. Uma das mais emble-
máticas foi encarnada pela atriz Emmanuelle Riva, no filme
Hiroshima mon amour (Hiroshima meu amor), dirigido por Alain
Resnais e apresentado no Festival de Cannes de 1959:

ELA: Eu sempre chorei pelo destino de Hiroshima. Sempre.


ELE: Não. Pelo quê você teria chorado?
ELA: Eu vi os noticiários. No segundo dia, diz a História,
eu não inventei, desde o segundo dia, certas espécies
animais ressurgiram das profundezas da terra e das cinzas.
Cachorros foram fotografados. Para sempre. Eu os vi. [...].
ELE: (interrompendo-a) Você não viu nada. Nada.
ELA: [...] Hiroshima se cobriu de flores, centáureas, gladíolos,
flores de São Miguel, glórias matutinas que renascem das
cinzas com um extraordinário vigor, desconhecido até então
nas flores [...]. Eu não inventei nada.
ELE: Você inventou tudo (DURAS, 1960, p. 26-28, tradução
nossa).25

24 “Cette forêt, c’est en moi-même qu’elle est, après tout. C’est moi-même qui
l’ai créée. Ces bêtes sauvages, c’est au fond de moi qu’elles vivent.”
25 “ELLE: J’ai toujours pleuré sur le sort de Hiroshima. Toujours.
LUI: Non. Sur quoi aurais-tu pleuré?
ELLE: J’ai vu les actualités. Le deuxième jour, dit l’Histoire, je ne l’ai pas
inventé, dès le deuxième jour, des espèces animales précises ont resurgi des
profondeurs de la terre et des cendres. Des chiens ont été photographiés.
Pour toujours. Je les ai vus [...]
ENTRE SIRENES E SUSSURROS 445

O texto de Marguerite Duras apresenta-se como uma


espécie de torpor no qual as palavras revelam também aquilo
que elas ocultam. A tensão do diálogo dos personagens abre
brechas que criam zonas de convergência entre a mulher fran-
cesa e o homem japonês. A ação se passa em Hiroshima, mas
também em Nevers, cidade francesa ocupada pelos alemães
durante a Segunda Guerra, e que foi o palco do amor proibido
entre um soldado nazista e a mulher que se encontra agora
em Hiroshima. No trauma coletivo da guerra — e da bomba
atômica —, encontram-se emaranhados dramas pessoais,
histórias de desilusão amorosa e de perdas.
Na língua japonesa, o ideograma 災い (wazawai) remete,
pictoricamente, a uma noção de desastre natural26 e pode ser
traduzido por catástrofe e/ou calamidade, além de encon-
trar-se presente na composição de muitas palavras que se
referem a esse contexto, como, catástrofe natural (tensai 天災),
grande terremoto (daishinsai 大震災) ou ainda acidente/calami-
dade (saika 災禍). A esta noção superlativa da catástrofe —
compartilhada por muitos indivíduos — sobrepõem-se
outros aspectos de infortúnios, de situações catastróficas
que pertencem a um plano mais solitário na psique humana.
São níveis diferentes que podem coabitar e, sobretudo, não
existem regras que definam qual deles têm mais densidade
quando se trata da pulsão artística que cada um deles aciona.
A esta outra categoria de catástrofe poderíamos asso-
ciar palavras como infelicidade, tristeza, má-sorte ou luto que,
em japonês, encontram-se todas abarcadas por uma mesma

LUI: (il lui coupe la parole) Tu n’as rien vu. Rien.


ELLE: [...] Hiroshima se recouvrit de fleurs. Ce n’étaient partout que
bleuets et glaïeuls, et volubilis et belles-d’un-jour qui renaissaient des
cendres avec une extraordinaire vigueur, inconnue jusque-là chez les fleurs
[...] Je n’ai rien inventé.
LUI: Tu as tout inventé.”
26 A partir da junção de ideogramas que remetem à antiga grafia de rio/
enchente (kawa 川) e fogo (hi 火) (HENSHALL, 1998, p. 211). Waza refere
ações de deuses malévolos; wai, seus efeitos. A noção de desastre natural
segue um entendimento de que deidades são personificações de natureza.
446 RIBEIRO JUNIOR P.

palavra: sem-felicidade (fukō 不幸). É ao redor dessa noção


que se tecerão novos diálogos acerca da catástrofe, que
surgirão outras possibilidades de criação literária, que indi-
carão, por exemplo, se perdas de ordens diferentes podem
ser comparadas (DELECROIX; FOREST, 2017, p. 25):

Ninguém é obrigado a fazer a estatística das catástrofes das


quais se é contemporâneo. São tantas, umas mais mortais
do que as outras, e algumas revelando horrivelmente a velha
alma mortífera dos homens. Acontece que eu tinha esque-
cido. Havia na minha memória um branco ali onde deveria
se encontrar a lembrança do grande terremoto de Kōbe
(FOREST, 2004, p. 260, tradução nossa).27

Philippe Forest é um escritor e professor francês cujos


pais se conheceram no contexto do grande êxodo de 1940.28
Sua escrita é marcada pelo tema do desaparecimento de sua
filha, Pauline, morta de câncer aos quatro anos e tema de
seus primeiros romances.29 A experiência desse luto cons-
titui o ponto de partida de sua obra literária e é a perda que
se tornou a referência mor para todas as reflexões subse-
quentes acerca desse tema (DELECROIX; FOREST, 2017,
p. 18). Em 1999, Forest fez uma longa viagem ao Japão, com o
objetivo de romper com o passado. Em Sarinagara, publicado
em 2004, o autor evoca esse tema por meio de um diálogo
entre a sua perda e aquelas sofridas por três artistas japo-
neses. Assim sendo, aos capítulos em que ele aborda suas
reflexões pessoais, e que recebem o nome das cidades onde
elas ocorreram (Paris, Tóquio, Quioto e Kōbe), intercalam-se

27 “Nul n’est obligé de se faire le comptable des catastrophes dont il a été


contemporain. Il y en a tellement, toutes plus tueuses les unes que les autres
et certaines révélant affreusement la vieille âme meurtrière des hommes.
Il se trouve j’avais oublié. Il y avait dans ma mémoire un blanc là où
aurait dû se trouver le souvenir du grand tremblement de terre de Kōbe.”
28 Fuga massiva de populações belgas, holandesas, luxemburguesas e
francesas em decorrência da invasão do exército alemão.
29 L’Enfant éternel (A criança eterna, 1997), Toute la nuit (A noite toda,
1999), além do ensaio “Tous les enfants sauf un” (“Todas as crianças
exceto uma”, 2007).
ENTRE SIRENES E SUSSURROS 447

os capítulos em que ele discorre acerca da vida e da obra


de Issa Kobayashi (1763-1828), Sōseki Natsume (1867-1916) e
Yōsuke Yamahata (1917-1966).30
O título do livro, Sarinagara, que pode ser traduzido por
Entretanto ou Mesmo assim, remete à última palavra de um
haiku 俳句 composto por Issa: “no momento mais obscuro de
sua vida, contemplando sua esposa aos prantos debruçada
sobre o corpo (morto) da filha [...]: ‘eu sabia que esse mundo —
era efêmero como orvalho — e mesmo assim mesmo assim’”31
(FOREST, 2004, p. 82, tradução nossa).32 Tanto Philippe Forest
quanto Issa e Sōseki lidaram em algum momento de suas vidas
com a morte de um(a) filho(a) e, sobretudo, tiveram que lidar
com a vida na sequência dessa perda e arregimentar forças
que os permitissem dar início à história que começa quando
uma criança morre (FOREST, 2004, p. 78), afinal, a escrita pode
ser considerada como uma forma de resistência ao desejo
de tentar atribuir um sentido total ao absurdo da existência
(DELECROIX; FOREST, 2017, p. 189) ou, em outras palavras:

[...] escrever foi, ao longo desses últimos anos, minha


maneira de meditar o esquecimento, de deixá-lo se estender
para conservar interminavelmente viva nele a memória
exclusiva de amar. Creio ter compreendido isso, somente
isso: sobreviver é a provação e o enigma (FOREST, 2004,
p. 272, tradução nossa).33

30 Issa Kobayashi foi um dos grandes mestres da arte do haiku (poemas


curtos), cuja vida foi marcada por muitos lutos, inclusive de seus filhos.
Sōseki Natsume foi um pioneiro do romance moderno japonês, fazendo
do mal-estar oriundo da modernização do Japão, assim como de sua
saúde frágil, os temas principais de sua obra. Já Yōsuke Yamahata foi
o primeiro fotógrafo a retratar as vítimas e as ruínas de Nagasaki após
a bomba atômica.
31 Tradução feita a partir da versão em francês. Eis o original em japonês:
露の世は 露の世ながら さりながら (tsuyu-no yo wa / tsuyu-no yo nagara /
sarinagara) (FOREST, 2004, p. 9.
32 “Je savais ce monde — éphémère comme rosée — et pourtant pourtant.”
écrire fut, au cours de ces dernières années, ma manière à moi de
33 “[...]
méditer l’oubli, de le laisser s’étendre afin de conserver interminablement
vivante en lui la mémoire exclusive d’aimer.”
448 RIBEIRO JUNIOR P.

A literatura pós-catastrófica pode então representar esse


ponto de transição onde, após ter estado suspenso em uma
gangorra que se encontra imersa numa paisagem nebulosa,
o escritor descobre que basta um impulso para que a catás-
trofe oscile para o outro lado: a angústia catastrófica passa
então a ser ressignificada através do ato criativo. Diante dessa
miríade de diálogos entre os diversos tipos de calamidades,
assim como da maneira como artistas ou escritores irão decan-
tá-los, revela-se “aquilo que há de universal na experiência
mais singular e de singular na experiência mais universal”
(DELECREUX; FOREST, 2017, p. 99, tradução nossa).34

KENZABURŌ ŌE: RENASCIMENTOS


No momento em que representava um dos autores mais
promissores de sua geração, Kenzaburō Ōe foi confrontado,
num espaço de poucos dias, com dois eventos que metamorfo-
searam as engrenagens de sua vida e de sua literatura. Era 1963
e ele tinha acabado de assistir ao nascimento de seu primeiro
filho, “mas ele tinha uma considerável má-formação na cabeça
e, para tentar salvá-lo, era preciso operá-lo urgentemente [...]
mesmo se a operação fosse bem-sucedida [...] ele teria como
sequela uma deficiência grave” (ŌE, 1996, p. 13-14). Em meio
a esse contexto delicado, Kenzaburō viajou para Hiroshima no
intuito de redigir uma reportagem acerca de um fórum político
internacional que iria acontecer na cidade no intuito de abolir
as armas nucleares. A configuração peculiar desse momento de
sua vida deu origem a duas obras: Uma questão pessoal (Kojinteki
na taiken 個人的な体験, 1968), uma série de relatos onde o perso-
nagem central é o pai de uma criança deficiente35 e Notas de

ce qu’il y a d’universel dans l’expérience la plus singulière et de


34 “[...]
singulier dans l’expérience la plus universelle.”
35 Este foi apenas o primeiro livro de uma série em que, quer seja de
maneira ficcional ou autobiográfica, o autor aborda o nascimento
e desenvolvimento de seu filho, e as implicações disso na sua vida.
ENTRE SIRENES E SUSSURROS 449

Hiroshima (Hiroshima nōto ヒロシマ・ノート, 1965), coletânea de


ensaios a respeito dos sobreviventes de Hiroshima. Essas expe-
riências modificaram definitivamente sua vocação de escritor.
Bird é o nome do personagem central de Uma questão
pessoal, o jovem cuja trajetória nada mais é do que um espelho
do contexto de vida de Kenzaburō:

Bird, pela primeira vez, viu seu filho. Era um bebê medonho,
com uma carinha vermelha e enrugada. [...] Meu filho tem
a cabeça envolta em bandagem, como Apollinaire ao ser
ferido no campo de batalha, pensou Bird. Meu filho foi ferido
como Apollinaire, num campo de batalha abandonado, que
eu nunca vi — e agora ele grita silenciosamente. [...] Terei
que enterrá-lo como um soldado morto na Guerra (ŌE, 2000,
p. 43-44, tradução nossa).36

O filho real do autor — Hikari 光, nome cujo significado


é luz — sobreviveu à intervenção cirúrgica e, na sequência, a
vida de ambos passou a evoluir de modo síncrono. As limita-
ções cognitivas de Hikari não o impediram de encontrar na
música uma via de expressão de sua visão de mundo,37 afetando
igualmente o impulso criativo de Kenzaburō: “Escrever e viver
com meu filho se sobrepõem e essas duas atividades só podem
se aprofundar reciprocamente” (ŌE; OZAKI, 2014, p. 164,
tradução nossa).38
O ano que seguiu ao nascimento de Hikari — talvez
o mais peculiar de toda a vida de Kenzaburō (ŌE; OZAKI,

No entanto, é o único que foi editado no Brasil, em 2003. A edição fran-


cesa na qual este texto se apoia é de 2000.
36 “Bird, pour la première fois, vit son fils. C’était un bébé affreux, avec un
petit visage rouge et ridé [...] Mon fils a la tête entourée de pansements,
comme Apollinaire lorsqu’il a été blessé sur le champ de bataille, pensa
Bird. Mon fils a été blessé comme Apollinaire, sur un champ de bataille
abandonné, que je n’ai jamais vu — et maintenant il crie silencieusement
[...] Il faudra que je l’enterre comme un soldat mort à la guerre.”
37 Ele se tornou compositor profissional.
38 “Écrire et vivre avec mon fils se superposent et ces deux activités ne peuvent
que s’approfondir réciproquement.”
450 RIBEIRO JUNIOR P.

2014, p. 88) — foi também, não se deve esquecer, o momento


em que foi publicado Notas de Hiroshima, fruto da semana em
que o autor pôde não apenas encontrar as pessoas implicadas
no fórum organizado na cidade, mas também ir ao encontro
dos sobreviventes da bomba atômica: “Sem essa semana,
tenho certeza de que nem a minha vida de escritor, nem a vida
de homem que levei desde então teriam existido” (ŌE, 1996,
p. 15, tradução nossa).39 Dentre os elementos componentes
dessa vida pós-1963 há uma grande consciência política e um
engajamento efetivo na sua oposição à utilização da energia
nuclear,40 mas também a descoberta do “estranho poder cura-
tivo da arte” (ŌE, 1996, p. 18, tradução nossa).41

POSSIBILIDADES DE RECONSTRUÇÃO
Qualquer que seja a dimensão da catástrofe, há uma tempo-
ralidade própria a cada uma delas, o que implica, para cada
indivíduo, superar o estrondo inicial para ocupar-se do
que vem a seguir: o momento pós-catástrofe. Isso implica
em lidar com o impacto do choque, mas também com os
destroços, tanto no plano material quanto nos planos
psíquicos e metafóricos, como se esse momento pós-catás-
trofe fosse uma espécie de no man’s land e o ato de criação
representasse uma redenção viável, uma possibilidade de
reconstrução (fukkô 復興).
Como especifica o arquiteto e professor Shōichirō
Sendai, essa acepção de construção que se tornou popular
na sequência do grande sismo de Kantō de 1923 (Kantō
daishinsai 関東大震災) não visa a restauração de um estado

39 “Sans cette semaine-là, il est sûr que ni ma vie littéraire ni la vie d’homme
que j’ai menée à partir de là n’auraient existé.”
40 Como no caso do artigo “Adeus ao nuclear!” (“Adieu au nucléaire!”),
publicado inicialmente no Japão e, na sequência, traduzido para
o francês para integrar uma coletânea de artigos acerca do Japão
pós-11 de março (ŌE, 2012, p. 205-208).
41 “[...] l’étrange pouvoir curateur de l’art.”
ENTRE SIRENES E SUSSURROS 451

anterior (fukkyū 復旧), ou somente uma reconstrução (saiken


再建), pois remete a um fazer de novo que traz em si ambiva-
lência e almeja a um remanejamento profundo. Em um dado
momento, ao expor as especificidades da reconstrução num
contexto pós-catastrófico, o autor nos indaga: “Qual sentido
dar à história? É necessário esquecer ou, pelo contrário,
reter e transmitir?” (SENDAI, 2014, p. 135, tradução nossa).42
Esses questionamentos relevam elementos que podem
ser aplicados ao se considerar a catástrofe como celeiro do
ato de criação. Cabe ao artista esquecê-la, sublimá-la, ou então
decantá-la, fazer de sua obra o guardião solitário desse farol que
busca iluminar aquilo que poderia ficar relegado às sombras
do esquecimento? Ao longo dos inúmeros exemplos apre-
sentados neste texto, foi possível constatar que a arte oferece
os instrumentos que permitem que a reconstrução seja não
apenas executada, mas também transmitida. À cacofonia da
catástrofe segue-se então a melodia da criação artística.

Figura 1. Plinio Ribeiro Jr. Ornamenta urbis. Grafite num muro, Paris, 2020.43

42 “Quel sens donner à l’histoire? Faut-il oublier, ou bien retenir et transmettre?”


43 “Nenhuma volta à normalidade prevista”.
452 RIBEIRO JUNIOR P.

BIBLIOGRAFIA
DELECROIX, Vincent; FOREST, Philippe. Le Deuil: entre le chagrin
et le néant. Paris: Gallimard, 2017.

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Paris: Gallimard, 2019.

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MURAKAMI, Haruki. Underground. Trad. de Dominique Letellier.


Paris: Éditions 10/18, 2013.

ŌE, Kenzaburō. Adieu au nucléaire! In: QUENTIN, Corinne; SAKAI,


Cécile (org.). L’Archipel des séismes: écrits du Japon après le 11 mars 2011.
Trad. de Corinne Quentin. Paris: Picquier Poche, 2012. p. 205-208.

ŌE, Kenzaburō. Notes de Hiroshima. Trad. de Dominique Palmé. Paris:


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ŌE, Kenzaburō. Une Affaire personnelle. Trad. de Claude Elsen. Paris:


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ŌE, Kenzaburō; OZAKI, Mariko. Ōe Kenzaburō, l’écrivain par lui-même.


Trad. de Corinne Quentin. Paris: Philippe Picquier, 2014.
ENTRE SIRENES E SUSSURROS 453

SENDAI, Shōichirō. Fukkō. In: BONNIN, Philippe; NISHIDA, Masatsugu;


INAGA, Shigemi (org.). Vocabulaire de la spatialité japonaise. Paris: CNRS,
2014. p. 131-135.

TAWADA, Yōko. Journal des jours tremblants: après Fukushima. Trad.


de Bernard Banoun. Lagrasse: Verdier, 2012.

FONTE DA FIGURA
RIBEIRO JR., Plinio. Ornamenta urbis. Grafite num muro. Paris, 2020.
Fotografia digital. Fonte: arquivo pessoal.
Job M. I.

FILHO DE UBUME:
GENEALOGIA DE UM YŌKAI 1 NO
MANGÁ DO JAPÃO PÓS-GUERRA

Maria Ivette Job


Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO
O artista de mangá Shigeru Mizuki (1922-2015) construiu sua
carreira no Pós-Guerra, depois de servir ao exército japonês
por quatro anos. Partindo do pressuposto de que a arte tem
um potencial transformador de experiências e de simbo-
lização, e que as criações artísticas carregam em si traços
que ecoam o vivido, este ensaio narra um experimento de
investigação iconológica do personagem que consolidou o
sucesso de Mizuki no Japão, GeGeGe-no Kitarō. A noção de
Pathosformel, emprestada do historiador alemão da cultura
Aby Warburg (1866-1929), foi o instrumento com o qual
se operou neste estudo. Por se tratar de um empréstimo
conceitual delicado, referimo-nos à pesquisa que resultou
neste texto como narrativa de experimento, cientes dos riscos,
mas também da importância de buscar novos recursos para

1 O termo yōkai é traduzido geralmente como monstro, demônio, aparição,


ser sobrenatural, ser fantástico, fenômeno inexplicável, dependendo
do seu contexto de inserção. Aqui utilizamos a palavra yōkai no seu
original em japonês, por entendermos que, por se tratar de entidades
específicas da cultura japonesa, nenhuma das traduções contempla o
seu real sentido.
456 Job M. I.

a compreensão das imagens e para formulações de como se


dão suas transmissões através dos tempos e culturas.
Palavras-chave: Shigeru Mizuki. GeGeGe-no Kitarō. Aby Warburg.
Pathosformel. Catástrofe.

ABSTRACT
The manga artist Shigeru Mizuki (1922-2015) built his career
in the post-war period, after serving in the Japanese army for four
years. On the assumption that art has a transformative potential
of experience, a potential of symbolization, and that artistic crea-
tions carry within them traces that echo the lived, this essay narrates
an experiment in iconological investigation of the character that
cemented Mizuki’s success in Japan, GeGeGe no Kitarō. The notion
of Pathosformel, borrowed from the German cultural historian
Aby Warburg (1866-1929), was the instrument with which this
study operated. Since it is a delicate conceptual borrowing, we refer
to the research that resulted in this text as a narrative experiment,
aware of the risks, but also of the importance of turning to new
resources for understanding images and for formulating how their
transmissions take place across times and cultures.
Keywords: Shigeru Mizuki. GeGeGe no Kitarō. Aby Warburg.
Pathosformel. Catastrophe.

No editorial de julho e agosto de 2021 da revista fran-


cesa Connaissance des arts, o diretor da redação Guy Boyer
comenta sua hesitação em responder a uma jornalista se
haveria ou não os Années folles pós-Covid. Boyer considera
que, apesar de a cena artística internacional ter experi-
mentado um “boom inacreditável” na década de 1920, nada
indica uma explosão sistemática de criatividade após um
período de guerra ou pandemia. Na sequência, no entanto,
cita o informalismo, a abstração lírica e o expressionismo
abstrato americano, que foram tentativas de superar
os traumas da Segunda Guerra, ainda que sem o frenesi
FILHO DE UBUME 457

artístico, social e cultural dos Anos Loucos após o primeiro


conflito bélico mundial (BOYER, 2021).
A conexão entre manifestações artísticas e momentos
de catástrofes mundiais implícita na pergunta da jornalista
a Boyer remete a uma observação de Ernst Gombrich (1909-
2001) ao biografar Aby Warburg (1866-1929): em sua primeira
viagem a Florença, o historiador alemão da cultura e das
imagens já teria esboçado a ideia de arte como “intento do
homem de através de suas criações chegar a um acordo com
o mundo em que vive” (1992 apud BARRETO, 2019, p. 89).
Esse intento, de ordem ontológica, coloca a arte a serviço
de um processo vital de relações entre homem e mundo,
relações cujo sucesso depende da intermediação do simbó-
lico.2 E, se não se observam obrigatoriamente explosões de
criatividade pós-catástrofes, é possível, no entanto, localizar
vestígios consonantes a elas em criações artísticas produ-
zidas nos ecos desses eventos massivos.
Com essa ideia em mente, o personagem GeGeGe-no
Kitarō, que consagrou o artista de mangá Shigeru Mizuki
(1922-2015) no Japão Pós-Guerra, será examinado com a ajuda
de um instrumento analítico (GINZBURG, 2008, p. 3) que nos
foi legado também por Aby Warburg: a noção de Pathosformel,
ou formulação de páthos. Dada a complexidade de empregar
essa noção em questões que envolvem a análise de um
personagem ficcional de uma cultura totalmente diversa da
europeia, nossa intenção é apenas a do registro de um experi-
mento que se utilizou principalmente de um aspecto dinâmico
da formulação de páthos. A inspiração que norteou esse expe-
rimento foi a de que a noção de Pathosformel “ilumina as raízes
antigas de imagens modernas e a maneira como essas raízes
foram elaboradas” (GINZBURG, 2008, p. 8). Foram levantadas,
então, as origens desse garoto yōkai fictício em lendas da
tradição popular japonesa, em representações pictóricas que

2 Aqui o termo simbólico é empregado na acepção vernacular de algo que


“consiste em ou que opera por meio de símbolos” (HOUAISS, 2001).
458 Job M. I.

o antecederam, em outros elementos imagéticos e na história


de seu criador, uma vez que todo esse conjunto aponta para
uma imbricação entre artista e mundo, com conexões rizomá-
ticas de tempos e memórias, tanto em esfera pessoal como na
esfera do humano. Essas origens dialogam com a concepção
de Warburg de que a obra de arte é “um produto estilístico
de um entrelace com a dinâmica da vida”, entrelace no qual
“finalidades religioso-culturais e artístico-práticas” coexistem
(WARBURG, 2018, p. 28 apud BARRETO, 2019, p. 89).

NO RASTRO DE HISTÓRIAS DA TRADIÇÃO POPULAR


A década de 1930 no Japão viu as ruas de seus centros urbanos
serem tomadas por uma forma de entretenimento chamada
kamishibai, os teatros de papel. O kamishibaiya, ou artista
de kamishibai, parava sua bicicleta, brandia dois bastões de
madeira um contra o outro para reunir o público e, com a
ajuda de um pequeno palco, iniciava sua narrativa, que trans-
corria à medida que exibia imagens desenhadas em papel.
Tamanha era sua popularidade que, no seu auge, nos escom-
bros do Japão Pós-Guerra, mais de cinco milhões de crianças
e adultos eram entretidos por kamishibai todos os dias (NASH,
2009). Os temas abordados abarcavam super-heróis, contos
populares tradicionais, ninjas, histórias cotidianas melodra-
máticas voltadas para meninas (shōjo) e aventuras voltadas
para meninos (shōnen). Por volta de 1950, o kamishibai entra
em declínio. Tem-se então a ascensão dos mangás, concomi-
tantemente à chegada da televisão no Japão, à qual as pessoas
se referiam no início por denki kamishibai, ou teatro de papel
elétrico (NASH, 2009). É em uma das histórias contadas com
desenhos nas ruas, entretanto, que se encontram os primór-
dios de GeGeGe-no Kitarō de Shigeru Mizuki.
Em 1933, dois artistas de kamishibai, Masami Itō (1911-
1984) e Kei Tatsumi (19--) criam um personagem chamado
Hakaba Kitarō, ou Kitarō do cemitério. A inspiração dessa
dupla de kamishibaiya remonta a uma história de cunho
FILHO DE UBUME 459

sobrenatural que circulara na era Edo (1603-1868), a lenda


de Ubume, cujo nome formado pelos kanji 産 e 女 descreve
a situação de uma mulher prestes a dar à luz. Apesar de os
detalhes e desenlaces variarem de acordo com o lugar onde
a lenda é contada ou o suporte em que ela foi registrada —
coleções de histórias de fantasmas, textos religiosos ou
outros documentos —, o denominador comum a todas é o
fato de a mulher morrer no parto ou pouco antes deste, o
que, aliás, não era incomum na época. Ubume é um yōkai
que aparece ao entardecer em pontes ou encruzilhadas,
com a parte inferior do corpo coberta de sangue e com um
bebê no colo (Figura 1). Ela pede que algum transeunte do
sexo masculino segure o bebê, desaparecendo em seguida.
O destino do bebê nem sempre fica claro, mas, em diversas
versões, o homem é recompensado com grande força física,
a qual lega para seus descendentes (FOSTER, 2015).
Ubume pode ser associada também a outra entidade
das tradições populares, Kosodate yūrei, “fantasma que se
importava com o filho”, segundo Kunio Yanagita (1875-1962).3
Em seu guia de histórias populares do Japão, Yanagita se
refere a Kosodate yūrei como uma mulher que ia todos os
dias, por volta da meia-noite, comprar doces em uma pequena
mercearia do vilarejo. Ela sempre colocava a mão pela porta
e oferecia a mesma moeda. Tomado pela estranheza, uma
noite o dono da loja a seguiu até que ela se transformou em
uma chama e desapareceu atrás de uma sepultura. Certo
de que se tratava de um yūrei,4 o dono da venda retornou ao
local no dia seguinte e viu um buraco, o qual escavou para
encontrar um bebê do sexo masculino com os olhos abertos,
sentado sobre o cadáver da mãe. O menino havia nascido

3 Pesquisador e escritor, responsável pela criação de uma cadeira acadê-


mica para estudos folclóricos no Japão, minzokugaku.
4 Yūrei 幽霊 é um termo traduzido comumente como fantasma japonês,
mas que, assim como yōkai, tem características culturais específicas.
Portanto, a palavra foi mantida na língua japonesa.
460 Job M. I.

após a morte de sua genitora, que todas as noites o alimen-


tava com um doce. No futuro, essa criança se tornaria um
sacerdote famoso (YANAGITA, 1986).

Figura 1. Imagens de Ubume.

Quanto à versão original de Kitarō de Itō e Tatsumi,


já no Japão moderno, pouco se tem conhecimento, uma
vez que a maior parte das ilustrações e registros das histó-
rias foram destruídos na Segunda Guerra. Do que restou,
sabe-se que Hakaba Kitarō era um menino nascido em um
cemitério, seus pais haviam se deparado com um destino
injusto e Kitarō teria sido amaldiçoado por seu legado.
O garoto exibia comportamento terrível e feições mons-
truosas: dentes protuberantes e desiguais, cabelos desgre-
nhados, um dos olhos grande e desproporcional, prestes a
saltar de sua órbita (Figura 2). Essa versão para kamishibai
teria sido contada com imenso sucesso durante cerca de
três anos (DAVISSON, 2016), e é a ela que Shigeru Mizuki
retorna, a princípio quando vai produzir desenhos para os
kamishibaiya no Pós-Guerra, e depois para a criação de um
personagem que acabou por se consolidar como GeGeGe-no
Kitarō, no mangá de meados da década de 1960.
Para seguir com a investigação de Kitarō, vale conhecer
algo da vida de seu criador, Shigeru Mizuki, sobretudo,
antes de ele desembarcar em Tóquio em 1946, ao fim de um
FILHO DE UBUME 461

período de quatro anos nas selvas da Papua-Nova Guiné


como soldado do exército japonês.

Figura 2. Hakaba Kitarō de Kei Tatsumi, imagem para kamishibai.

Sakaiminato, cidade onde Mizuki cresceu e da qual só


se separou ao ser recrutado para lutar na Segunda Guerra
Mundial, era um vilarejo portuário às margens do Mar do
Japão. Apartada da costa leste de Honshū pela cadeia de
montanhas que se ergue no centro da ilha, Sakaiminato
acabou por não ter o mesmo destino dos centros urbanos
banhados pelo oceano Pacífico no que tange ao intenso movi-
mento de modernização posto em marcha no arquipélago
a partir de 1868. A cidade permaneceu predominantemente
rural e bastante pobre, segundo as narrativas autobiográficas
do artista de mangá em questão (MIZUKI, 2012, 2013, 2014).
Em contrapartida, a região preservou elementos da tradição
cultural e religiosa varridos de certa forma em outros locais,
com o ingresso da nação na era moderna. Mizuki nos conta
que crescer em contato com esse ambiente em que templos,
santuários, cemitérios e crenças no sobrenatural faziam parte
da paisagem cotidiana, somado ao seu interesse acentuado
por essa dimensão da existência, teria sido determinante na
escolha dos temas de suas obras no futuro. Mas não apenas
esses assuntos foram fonte de referência para seus mangás.
O sentimento de desenraizamento da terra natal para servir
ao exército japonês na Segunda Guerra e as agruras de quatro
462 Job M. I.

anos na selva de uma ilha do Pacífico, onde perdeu o braço


esquerdo em um bombardeio inimigo, apareceram ilustrados
em vários de seus gekiga,5 mesclados a narrativas da Guerra
ou da história do Japão durante toda a era Shōwa (1926-1989).
Sua carreira de artista de mangá começaria, no entanto,
depois de se estabelecer na costa leste, no período do Pós-Guerra.
No início, Mizuki fornecia desenhos para kamishibai, quando
entrou em contato com Hakaba Kitarō de Itō e Tatsumi.
Ao seguir o fluxo das mudanças de suporte para suas criações,
levou essa história para os quadrinhos e, posteriormente, para
os animes, tornando-se o responsável por inserir nessas mídias
o sobrenatural japonês na forma de yōkai.
Em um determinado momento, Kitarō do cemitério de
Shigeru Mizuki, por requisição dos patrocinadores de TV,
tornou-se definitivamente Kitarō do GeGeGe (GeGeGe-no
Kitarō) e ganhou um toque autoral, uma vez que a marca
de seu criador — a forma como era chamado na infância,
GeGeru [fonético em português: gue-gue], diminutivo para
Shigeru — passou a integrar o nome de seu personagem.
Outros toques autorais irão integrar também esse garoto
yōkai que há seis décadas sofre transformações em sua imagem
e continua sendo editado e refilmado, mantendo-se em voga
na indústria do entretenimento japonês. Recentemente, Kitarō
atravessou as fronteiras e chegou a diversos outros mercados,
com ênfase particular no francês e no americano.

AS FORMULAÇÕES DE PÁTHOS
Ao escrever sobre a conferência de caráter autobiográfico
que Aby Warburg proferiu em dezembro de 1927, no salão
da Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg (Biblioteca
Warburg para a Ciência da Cultura), por ele formada em
Hamburgo, Cássio Fernandes (1969-) menciona o fato de
Warburg ter construído em sua fala “o sentido e a coerência

5 Quadrinhos voltados para o público adulto, com conteúdo dramático.


FILHO DE UBUME 463

que marcaram os variados temas de pesquisa sobre os quais


se debruçou e continuaria a debruçar-se” (FERNANDES,
2018, p. 12). Esses temas estariam entrelaçados, passariam
pela crítica à noção de Antigo em Winckelmann e tratariam
em grande medida da transmissão do legado Antigo no
Renascimento italiano, assim como da questão das trocas
culturais entre Sul e Norte — temas que estariam, do ponto de
vista histórico, geográfica e cronologicamente circunscritos ao
continente europeu. Mas ao mesmo tempo em que há especifi-
cidades nos estudos de Warburg, este nos transmitiu também
certos instrumentos e maneiras de operar com imagens.
Um deles seria a noção de Pathosformel ou formulação de páthos:

[Warburg] mostrou que a Antiguidade havia criado, para


certas situações típicas e incessantemente recorrentes,
diversas formas de expressão marcantes. Certas emoções
internas, certas tensões, certas soluções são não apenas
encerradas nelas, mas também como que fixadas por encan-
tamento. Em toda parte em que se manifesta um afeto da
mesma natureza, em toda parte revive a imagem que a arte
criou para ele. Segundo a própria expressão de Warburg,
nascem “fórmulas típicas do páthos” que se gravam de
maneira indelével na memória da humanidade (CASSIRER,
1942, p. 211-212 apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 175).

Essas “fórmulas típicas do páthos” atravessam os tempos


para serem revividas por um afeto da mesma natureza em
outro momento da história e, muitas vezes inclusive, com
um sentido oposto ao do original, mas sempre carregando,
capturada na sua forma, a energia do seu páthos primordial.
Talvez seja um pouco como se as badaladas de um sino aqui,
no momento presente, pudessem ressoar em um sino do
século II, fazendo-o vibrar, e a vibração desse sino antigo,
quiçá existente agora apenas na memória da humanidade,
ressoasse e fizesse vibrar também o sino atual.
Em um recorte bem delimitado e enxuto, ao utilizar a
noção de Pathosformel na investigação de GeGeGe-no Kitarō
neste texto, a ideia fundamental seria identificar o páthos em
464 Job M. I.

lendas e imagens que estariam na origem deste personagem


de mangá. A hipótese que nos norteia é a de que o afeto vincu-
lado a certas situações na história do Japão e na vida de Shigeru
Mizuki teriam feito reviver “a imagem que a arte criou para
ele [para esse afeto]”, nas palavras de Cassirer (1942 apud
DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 175), e que essa imagem pode ser
reconhecida nos traços desse garoto yōkai super-herói.

O PERSONAGEM GEGEGE-NO KITARŌ


As imagens de Kitarō que serão investigadas aqui pertencem
às representações do personagem apenas nos mangás, pois
entende-se que Mizuki teria operado diretamente nelas. Para
isso, seremos orientados pelo quadro da Figura 3. No caso
dos animes que desde 1968 ganham novas versões a cada
década, sendo a última de 2018, ou seja, três anos depois da
morte de Shigeru Mizuki, as transformações já seriam deter-
minadas por fatores outros que não as mãos de seu criador,
o que extrapola o recorte estabelecido para este breve estudo.

Figura 3. Quadro mostrando as transformações na imagem de Kitarō.

O personagem Kitarō é um menino yōkai que, como


um filho de Ubume, nascera de uma mãe morta, também
um yōkai. É encontrado ainda bebê, quando um vizinho do
FILHO DE UBUME 465

cemitério escava a sepultura onde a mãe estava enterrada,


em uma situação semelhante à da lenda de Kosodate Yūrei.
Nas versões iniciais, o menino tem um comportamento
arredio e feições bem monstruosas, mas, conforme as publi-
cações vão se desenrolando, mudanças ocorrem. Em sua
versão final, GeGeGe-no Kitarō é um yōkai que luta ao
lado dos humanos para defendê-los de espíritos malignos.
É a primeira vez que um desses seres sobrenaturais da
cultura japonesa é alçado à condição de super-herói e integra
uma obra de mangá. Vale observar aqui que, quando Mizuki
começou a desenhar em Tóquio no Pós-Guerra, seu pai, que
na época trabalhava na embaixada americana, deu-lhe uma
caixa com gibis remanescentes de Super-Homem, Mickey
Mouse e HQs de terror, como Tales from the Crypt e Vault
of Horror, os quais Mizuki copiava para aprender técnicas
dos quadrinhos.6 Cabe cogitar se desse exercício não teria
sido herdada a ideia de um heroísmo com superpoderes.
A derrota do Japão na Segunda Guerra, os anos de ocupação
americana e o fato de o Imperador não mais se reconhecer
publicamente como figura divina foram golpes penosos
para a nação. Para o historiador francês especialista em
Japão contemporâneo Jean-Marie Bouissou (1950-), inclu-
sive, o trauma da derrota imprimiria seus reflexos nas obras
dos artistas de mangá da primeira geração através de um
grau de complexidade e intensidade dramáticas inexistente
nos quadrinhos americanos e franco-belgas.
Bouissou cita o exemplo do gênero de ficção científica
mecha メカ, em que robôs de combate pilotados por adoles-
centes que salvam o Japão ou um mundo de ataques alie-
nígenas seriam “uma ilustração clara da frustração sentida
pelos filhos, os quais sonharam vencer a guerra perdida por
seus pais” (BOUISSOU, 2010, p. 25, tradução nossa). No caso

6 Ressalta-se aqui o valor da cultura da cópia no Japão, em oposição ao


conceito de cópia em lugares outros do planeta, onde copiar uma obra
é considerado um ato de menor valor.
466 Job M. I.

de Shigeru Mizuki, ele mesmo lutou, foi derrotado e saiu


mutilado de uma guerra para a qual, segundo seus relatos,
não via sentido algum. O desejo de paz e justiça que compõe
a personalidade de seu personagem mais célebre poderia
muito bem funcionar como uma referência de Mizuki a seus
próprios anseios, assim como a correlação que Michael
Dylan Foster faz entre a ausência do olho esquerdo de Kitarō
e do braço esquerdo de seu criador (FOSTER, 2009a, p. 167).
Quanto às representações imagéticas do personagem nos
mangás, o quadro da Figura 3 nos mostra que o garoto yōkai
passou por doze transformações significativas. No primeiro
campo ao alto e à esquerda, temos um dos poucos desenhos
que restaram do kamishibaiya de Kei Tatsumi. Nas imagens de
Mizuki que evoluíram a partir dele, veem-se basicamente três
elementos que parecem entrar em discussão a cada quadro,
seguindo o sentido da seta indicadora: o formato da cabeça,
os cabelos e o olho ausente, que nas primeiras seis imagens
alterna inclusive de lado no rosto de Kitarō, para então se
acomodar do lado esquerdo, recoberto por uma longa franja.
A figura do menino com apenas um olho remete a outros
yōkai do imaginário japonês, como Hitotsume-Kozō, Ao-bōzu,
o tsukumogami 7 Kasa-obake (Figura 4), e também a criaturas
mitológicas da história ocidental, como o Ciclope. A autora
Zilia Papp fala sobre achados de cerâmicas da era Jōmon
(c. 14.000 a 300 a.C.) sugerirem a importância de deidades de
um olho só. O Kojiki (712 d.C.)8 menciona uma divindade da
montanha, Yama-no kami, que perde um de seus olhos para
os humanos (PAPP, 2010, p. 150). Sobre os cabelos desgre-
nhados, talvez possamos imaginar que eles sejam uma forma
de enfatizar a dimensão do que há de caótico e incômodo no

7 Na tradição popular japonesa, objetos e utensílios domésticos que


completam cem anos transformam-se em yōkai, que são chamados
pelo nome específico de tsukumogami 付喪神.
8 Kojiki 古事記, ou Registro de fatos antigos (712 d.C.), compõe, com
Nihonshoki 日本書紀, ou Crônicas do Japão (720 d.C.), os primeiros
registros escritos de que se têm notícias no arquipélago.
FILHO DE UBUME 467

monstruoso. Mas esse elemento é encontrado também nas


representações artísticas de yūrei, que exibem certos traços
característicos, dos quais cabelos mais longos e desarru-
mados são parte integrante.

Figura 4. Representações de Hitotsume kozō, Ao bōzu e Kasa obake.

Temos, então, um personagem de quadrinhos da


contemporaneidade, representado como um menino
comum, mas que na verdade é um yōkai com superpoderes
e que atua como um super-herói a defender a humanidade.
Seu nascimento em uma sepultura a partir de uma mãe
morta faz referência a histórias que circularam séculos antes
no Japão. Sua imagem, ainda que com todas as suavizações
estéticas sofridas, carrega o páthos de sua origem sobrena-
tural, violenta, trágica, pontuada pela morte, na forma de
uma mutilação — o garoto tem apenas um olho, marca da
monstruosidade, mas também do divino — e de um cabelo
cinza despontado e despenteado, que pode ser encontrado
nas imagens de fantasmas japoneses.

KATASZTRÓFÁK, SEU PÁTHOS, SUA ARTE


A psicanalista Maria Torok (1926-1998), ao falar sobre a relação
da obra de Sándor Ferenczi (1873-1933) com Katasztrófák, ou
468 Job M. I.

catástrofe em húngaro, atribui os seguintes sinônimos para


essa palavra: trauma, acidente, afecção, páthos (TOROK, 2000
apud GONDAR, 2012, p. 194). Pensemos, então, na catástrofe
que é uma guerra, sobretudo para os diretamente envolvidos
nela. Shigeru Mizuki, por exemplo, depois de ter se estabilizado
profissional e afetivamente no Japão, em meados da década de
1960, retornou várias vezes a Papua Nova-Guiné para reencon-
trar amigos que fez em uma tribo local nos anos de 1940 e revi-
sitar antigas zonas de combate, as quais filmou amadoramente
em inúmeras fitas de videocassete. Uma vez em casa, revia com
empolgação durante horas e horas essas cenas, todas iguais e
entediantes segundo um biógrafo seu, Noriyuki Adachi (1948-),
o que “indica a gravidade e a profundidade da lembrança da
guerra na vida de Shigeru” (ADACHI, 2018, p. 361). Em Corpos da
memória, Yoshikuni Igarashi contempla o impacto do conflito
mundial e da derrota do Japão na sociedade do Pós-Guerra
através da tentativa de “ler a presença ausente das lembranças
da guerra” (IGARASHI, 2000, p. 3). Essa questão se refletiria
em uma relação tensa do país com seu passado. As memórias
das perdas continuaram a assombrar o Japão, apesar de ele ter
se reinventado como nação pacífica e prosperado economica-
mente depois de sua derrota em 1945.
Se pensarmos nos sinônimos propostos por Torok,
podemos cogitar que, no páthos, na catástrofe de uma nação
que precisou se render sob o efeito de duas bombas atômicas
e na intensidade das experiências de Mizuki como soldado,
encontra-se a energia configuradora de Kitarō, uma vez
que ela “conjura” formulações de imagens, cenas, enredos
e lendas de diversos tempos e origens, todas elas, no
entanto, com o mesmo teor patético do que a suscitou: quer
seja o páthos do trágico ou do desejo de um superpoder que
o supere. Eros e Tânatos.
O professor de línguas e culturas do leste asiático e
escritor Michael Dylan Foster diz que, em “um certo sentido,
a narrativa de Mizuki fala sobre provação e renascimento, e
sobre transcender o cataclismo da guerra” (FOSTER, 2009b,
FILHO DE UBUME 469

p. 166). Foster diz ainda que o tom biográfico nostálgico com


o qual Shigeru Mizuki construiu um mundo sobrenatural com
o mangá, anime e outras narrativizações da memória revela a
saudade de um tempo passado, mas também um desejo cria-
tivo de um mundo melhor (FOSTER, 2009b, p. 165). Talvez essa
ambivalência se faça presente de forma mais ruidosa no perso-
nagem Kitarō, nas suas marcas de monstro e herói, de pros-
crito e sagrado, de vida e de morte, do terrível e de sua versão
atenuada pelo cartum, cujo estilo caricatural o aproxima do
cômico. O amanhecer de uma nação derrotada, por extensão
de sentido, nos conduz ao nascimento de um filho de Ubume,
uma mãe morta, que encontrou no Kitarō de Mizuki uma vívida
e triunfante expressão a circular há mais de sessenta anos
contínuos pelas mídias populares do Japão e do mundo.

BIBLIOGRAFIA
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São Paulo: Devir, 2018. p. 361-364.

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Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

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do antigo, escritos inéditos. Trad. de Cássio Fernandes. Campinas, SP:
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470 Job M. I.

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California Press, 2015.

GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror. Trad. de Federico Carotti,


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Companhia das Letras, 2008. E-book.

GONDAR, Jô. Ferenczi como pensador político. Cadernos de Psicanálise,


Rio de Janeiro, v. 34, n. 27, 2012. p. 193-210.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de


Janeiro: Objetiva, 2001.

IGARASHI, Yoshikuni. Bodies of Memory. Princeton, NJ: Princeton


University Press, 2000.

MAYER, Fanny Hagin (ed., trad.). The Yanagita Kunio Guide to the
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MIZUKI, Shigeru. Vie de Mizuki 2: le survivant. Paris: Cornélius, 2013.

MIZUKI, Shigeru. Vie de Mizuki 3: l’apprenti. Paris: Cornélius, 2014.

NASH, Eric. P. Manga Kamishibai: The Art of Japanese Paper Theater.


New York: Abrams Comic Art, 2009.

PAPP, Zilia. Anime and Its Roots in Early Japanese Monster Art. Leiden:
Global Oriental, 2010.

FONTES DAS FIGURAS


Figura 1
SAWAKI, Sūshi. Rolo ilustrado dos cem espíritos (Hyakkai zukan 百怪図巻)
(detalhe). [S. l.], c. 1737. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/
Hyakkai_Zukan#/media. Acesso em: 22 set. 2020.
FILHO DE UBUME 471

Figura 2
TATSUMI, Kei. Hakaba Kitarō. [S. l.]. [194-?]. Disponível em: https://
aminoapps.com/c/join-the-battle/page/blog/kbaf-birth-of-kitaro-bonus/
aYvj_V0S0ueQPX1RzKzDp04qLzXJMw4j3x. Acesso em: 29 ago. 2022.

Figura 3
MIZUKI SHIGERU MEMORIAL MUSEUM. Quadro mostrando as
transformações na imagem de Kitarō. Sakaiminato, abr. 2018. Fonte:
acervo da autora.

Figura 4
Quadro montado pela autora: Hitotsume kozō. Disponível em: https://
pt.wikipedia.org/wiki/Hitotsume-kozo#/media/Ficheiro:Obake_
Karuta_4-06.jpg; Ao bōzu. Disponível em: https://narutoworldbrazil.
blogspot.com/2013/05/mitologia-e-folclore-ao-bozu.html; e Kasa
obake. Fotografia digital da autora, no Mizuki Shigeru Museum,
Sakaiminato, abr. 2018.
Gibson L.

MAPEANDO O TEMPO:
TRAUMA, GUERRA E MEMÓRIA
NO FOTOLIVRO CHIZU (1965)
DE KIKUJI KAWADA

Lucas Gibson
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

RESUMO
Em 1965, vinte anos após o bombardeiro atômico de Hiroshima,
o fotógrafo Kikuji Kawada (1933-) publicou seu fotolivro O mapa
(Chizu 地図) com imagens que fazem referência às memórias
da Segunda Guerra Mundial e seu impacto social, econômico
e político para o Japão, como as manchas de radiação no
Memorial da Paz de Hiroshima, o desenvolvimento da socie-
dade de consumo e o militarismo japonês. A obra de Kawada, de
caráter mais subjetivo, tem um design inovador e teve algumas
reimpressões, gerando interpretações diversas no decurso
do tempo. Este texto tem por objetivo investigar o impacto de
Chizu como fotolivro desde sua primeira edição até os dias de
hoje, analisando seu contexto histórico de produção, as inten-
ções e vivências do autor, a experiência sensorial do livro, as
escolhas técnicas em sua confecção, o conteúdo das imagens
e sua atemporalidade. Adicionalmente, os conceitos de tempo,
memória e trauma são trabalhados em conjunto com a análise
do livro, com o intuito de compreender sua relevância e ressig-
nificações ao longo dos anos.
Palavras-chave: Fotografia. Japão. Pós-Guerra. Kikuji Kawada.
O mapa.
474 Gibson L.

ABSTRACT
In 1965, twenty years after the atomic bombing of Hiroshima,
the photographer Kikuji Kawada (1933-) published his photobook
The Map (Chizu 地図), with images that refer to the memories of the
Second World War and its social, economic, and political impact for
Japan, such as the radiation stains at the Hiroshima Peace Memorial,
the development of consumer society and Japanese militarism.
Kawada’s work, of a more subjective character, has an innovative design
and had a few reprints, generating different interpretations over time.
This essay aims to investigate the impact of Chizu as a photobook from
its first edition to the present day, analyzing its historical context of
production, the author’s intentions and experiences, the book’s sensory
experience, the technical choices in its making, the content of the images
and their timelessness. Additionally, the concepts of time, memory,
and trauma are studied together with the analysis of the book,
to understand its relevance and reinterpretations over the years.
Keywords: Photography. Japan. Postwar. Kikuji Kawada. The Map.

INTRODUÇÃO

Em julho de 1958, o fotógrafo Kikuji Kawada (川田喜久


治, 1933-) avistou pela primeira vez as manchas causadas
pela radiação no teto do Memorial da Paz de Hiroshima.
Na ocasião, Kawada viajava com o fotógrafo Ken Domon
(1909-1990) e estava a trabalho para a revista Shūkan Shinchō.
Sua função era retraçar e registrar o percurso realizado
por Domon na confecção de seu seminal livro Hiroshima,
lançado pouco antes no mesmo ano.1 Em certo momento

1 Kawada possuía uma relação de muita proximidade com Domon. Seu


contato com o fotógrafo se iniciou a partir de um concurso fotográfico
da revista Ars Camera, em que Domon e Ihei Kimura eram os jurados
e escolheram o trabalho de Kawada como vencedor (FRITSCH, 2018).
Em entrevista com Joshua Chuang e Miyuki Hinton (2021), Kawada
chegou até mesmo a creditar a criação de Chizu a Domon, afirmando
MAPEANDO O TEMPO 475

da viagem, Kawada decidiu retornar ao Memorial da Paz de


Hiroshima sozinho, caminhou até o porão e se deparou com
as manchas2 no teto (Figura 1) (CHUANG; HINTON, 2021).

Figura 1. Kikuji Kawada, “Memorial da Paz de Hiroshima, teto,


mancha e descamação”, série Chizu (O mapa), c. 1960-1965.

Esse encontro epifânico, que seria o momento inaugural


de sua série fotográfica O mapa (Chizu 地図, 1960-1965)3 e o faria
retornar à cidade para continuar o projeto, é descrito pelo autor:

que a publicação de Hiroshima, em 1958, cumpriu um papel essencial


para o nascimento de seu projeto. Porém, Kawada fez a ressalva de
que sua relação com Domon nunca fora de mestre e aprendiz, embora
Domon muitas vezes a interpretasse dessa forma.
2 A título de curiosidade, Kawada produz as fotos das manchas sem
utilizar flash ou qualquer outra fonte de luz artificial, preferindo
longas exposições de obturador possibilitadas pelo uso da câmera em
um tripé. O ambiente era obviamente muito escuro, mas o fotógrafo
sabia que o tempo estendido de exposição garantiria fotos detalhadas,
método que ele considerou essencial para alcançar os resultados dese-
jados (CHUANG; HINTON, 2021).
3 Por considerarmos importante a familiarização com o nome original da
obra, utilizaremos primordialmente a nomenclatura Chizu para se referir ao
fotolivro de Kawada, traduzindo-a para o português quando for necessário.
476 Gibson L.

Dentro [do memorial], estava úmido, escuro, e havia um


cheiro estranho... meus olhos tomaram um tempo para se
ajustar antes que eu notasse as manchas. Foi um momento
inexplicavelmente forte. Eu senti que havia encontrado este
aterrorizante, desconhecido lugar. Eu tive a ilusão de que
poderia quase escutar vozes fracas fundidas com o vento e
sons crepitantes vindo das paredes. [...]
Novos eventos como esse são para mim frequentemente
conectados com meus sentidos de olfato e audição. Quando
eu encontrei as manchas, eu me senti eletrizado. Isso era
diferente de qualquer imagem que eu havia construído ante-
riormente de Hiroshima (CHUANG; HINTON, 2021, p. 12,
tradução nossa).4

É curioso observar que as manchas que interessaram


Kawada não foram objeto de apreço por Domon, ou ao
menos não foram notadas por ele. Ainda que inicialmente
Kawada tenha sido influenciado pelas crenças de Domon
acerca da fotografia realista (COLBERG, 2021), sua busca
por uma evidência menos direta da tragédia de Hiroshima
se explica, em parte, pelo contexto histórico e ideológico de
ambos os fotógrafos. O nascimento da série Chizu5 — produ-
zida entre 1960 e 1965, culminando na publicação de um foto-
livro6 homônimo — está relacionado com o surgimento e o

4 “Inside,it was damp, dark, there was a strange smell... my eyes took a
moment to adjust before I noticed the stains. It was an unspeakably
powerful moment. I felt like I had encountered this terrifying, unknown
place. I had the illusion that I could almost hear faint voices merged with
the wind and crackling sounds coming out of the walls. [...] New events like
that for me are often connected with my senses of smell and hearing. When
I encountered the stains, I felt electrified. It was unlike any previous images
I had pictured in my mind of Hiroshima.”
5 Kawada escolhe o título Chizu (O mapa) por considerá-lo abrangente,
permitindo uma melhor adequação de imagens de natureza distinta
no projeto. Além disso, um mapa transmite a ideia de “um certo lugar
e um certo tempo”, além de “representar as paisagens espirituais e
psicológicas de um certo período” (CHUANG; HINTON, 2021, p. 13-14).
6 Muito se discute sobre a nomenclatura fotolivro e sua utilização em
trabalhos de pesquisa em português, além de sua aplicação em deter-
minados contextos. Não é nosso objetivo aprofundar essa discussão,
de modo que utilizaremos o termo para caracterizar a obra de Kawada
tendo como referência a definição de Gerry Badger, que caracteriza
o fotolivro como “um tipo particular de livro fotográfico, em que as
MAPEANDO O TEMPO 477

fomento de novas formas de produção fotográfica no Japão,


marcadas pela subjetividade mais exacerbada e pela valo-
rização da individualidade dos fotógrafos.7 Por isso, muitas
das imagens que compõem a série de Kawada, ainda que
carreguem um apelo estético intrigante, não são explícitas
em sua proposta e precisam de uma contextualização para
serem melhor compreendidas. Em contrapartida, a traje-
tória de Ken Domon está diretamente conectada à promoção
e fundação do Realismo Fotográfico de 1950, movimento que
enaltecia imagens que retratassem de maneira objetiva as
consequências da guerra para o Japão. Domon e os adeptos
do movimento buscavam, nas palavras de Alexandra
Munroe (1999, p. 33), um “legado de evidência” em suas
imagens, advogando por uma presença reduzida de subje-
tividade nas fotografias. O registro do teto do Memorial da
Paz de Hiroshima (Figura 1), por ser de caráter mais subje-
tivo e menos direto, não se mostra conectado aos preceitos
do Realismo Fotográfico, constituindo uma estética mais

imagens predominam sobre o texto e em que o trabalho conjunto do


fotógrafo, do editor e do designer gráfico contribui para a construção
de uma narrativa visual” (BADGER, 2015). Também utilizaremos a
palavra livro de maneira alternada com fotolivro. Para um maior apro-
fundamento da questão, vale consultar o artigo “Sobre fantasmas e
nomenclaturas [parte 3]: fotolivros”, de Ronaldo Entler (2015), bem
como o extenso trabalho realizado por Marina Feldhues Ramos (2021)
sobre o tema, intitulado Fotolivros: (in)definições, histórias, experiências e
processos de produção, em que aborda, entre outras questões, os desafios
por trás da nomenclatura e outras relacionadas.
7 Em 1954, o conceito de fotografia subjetiva foi introduzido no Japão
pela revista Camera, estimulando a experimentação fotográfica sem
incentivar a exclusão de abordagens mais objetivas da realidade, ainda
que em um primeiro momento a oposição ao realismo tenha sido uma
interpretação difundida do conceito. Em 1960, os conflitos em torno da
revisão do Tratado de Mútua Cooperação e Segurança entre os Estados
Unidos da América e o Japão criaram tensões políticas relevantes que
permitiram aos fotógrafos japoneses explorar novas formas de docu-
mentação social (IIZAWA, 2003). Coletivos como o Grupo VIVO (1959-
1961), que teve Kawada como um dos membros fundadores, surgem
nesse momento de virada subjetiva do olhar, unindo o desejo pela
observação do cenário Pós-Guerra a uma presença marcante de estilo
e expressão imagética pessoal.
478 Gibson L.

comum aos fotógrafos nascidos entre as décadas de 1920 e


1930, responsáveis por produzir séries e livros sobre o Japão
na década de 1960 a partir de um olhar mais sugestivo.
Entender as imagens de Chizu passa, necessariamente,
por uma compreensão expandida do Japão dessa época e de
suas tendências fotográficas, fortemente influenciadas pelas
mudanças sociais, econômicas e políticas. Aqui, busca-se
mapear a trajetória da série Chizu no tempo até a forma que
melhor representou seu conteúdo — a de fotolivro —, marcando
de forma potente e intrigante a história da fotografia japonesa.

A TRAJETÓRIA DA SÉRIE CHIZU E SUA CONSOLIDAÇÃO


COMO FOTOLIVRO
Para Ivan Vartanian e Ryūichi Kaneko (2009), o fotolivro
constitui o meio mais eficaz de visualização da produção foto-
gráfica japonesa das décadas de 1960 e 1970. Este momento
da história japonesa demandava uma visão coletiva das
fotografias, que proporcionavam mais impacto quando
vistas em grupo do que individualmente. Essa necessi-
dade se confirmava mesmo diante de um sequenciamento
imagético não linear ou convencional, pois permitia uma
melhor apreensão do contexto de produção das imagens e
suas eventuais mensagens implícitas. Contudo, enquanto é
correto dizer que os japoneses incorporaram aprendizados
e inspirações estrangeiras na confecção de seus fotolivros
(PARR; BADGER, 2010),8 Vartanian e Kaneko (2009, p. 11)
apontam que a compreensão do fotolivro japonês como um
fenômeno homogêneo na forma e no conteúdo constitui
uma percepção frequente nos meios artísticos e acadêmicos
externos ao Japão. Esta perspectiva se origina da atribuição

8 Para exemplificar esta questão, Parr e Badger (2010) mencionam o


catálogo da exposição de Andy Warhol no Moderna Museet e o livro
Love on the Left Bank, de Ed van der Elsken, publicados, respectiva-
mente, em 1969 e 1956, obras que ajudaram a estimular a linguagem
fotográfica em âmbito nipônico.
MAPEANDO O TEMPO 479

de características padronizadas aos livros, vistos como um


compilado de imagens borradas, de alto contraste, sangradas,
em preto e branco e limitadas a certos temas. Assim, conhecer
o contexto histórico de produção dos fotolivros japoneses
permite entendê-los de maneira mais precisa, evitando a
reprodução de clichês e pontos de vista normatizados.
Em um fotolivro como Chizu, publicado pela primeira
vez em 6 de agosto de 1965, exatos vinte anos após o bombar-
deio atômico em Hiroshima, o conhecimento desse contexto
é primordial para uma melhor absorção dos sentidos da obra,
que, mais de cinco décadas após seu lançamento, continua a
despertar a atenção de pesquisadores e entusiastas da foto-
grafia japonesa. É possível compreender parcialmente as
ideias do livro por meio de seu conjunto de imagens e de seu
formato, fator que destaca a importância de analisar a obra
em sua proposta coesiva e sequencial. Ademais, tratando-se
de uma obra de arte, a ideia acerca do que se deve ou não
entender do livro assume um grau de flexibilidade, já que
sua época de concepção já não mais carregava um ímpeto
obsessivo pela imagem direta e objetiva. Entretanto, admitir
a existência de uma maior liberdade de experimentação
fotográfica não significa esvaziar o comprometimento dos
fotógrafos da década de 1960 com as causas de seu tempo
e, neste ponto, Kawada e seu Chizu eram personagens de
destaque. Ademais, diante do desejo por uma compreensão
mais profunda sobre Chizu, a experiência sensorial de
análise do fotolivro e suas imagens não configura uma etapa
suficiente, ainda que seja a mais poderosa das experiências
elencadas. É necessário, além disso, recolher informações
sobre o próprio autor, sua época histórica e as escolhas de
confecção do livro, desde seus detalhes menos expressivos
até os mais significativos.
Chizu como fotolivro é um resultado posterior a diversas
iniciativas de Kawada com as imagens que compõem a obra.
No início da década de 1960, as fotos da série começaram a
aparecer em revistas fotográficas, como a Nippon Camera,
480 Gibson L.

que, em 1962, abriu uma sequência de imagens do projeto


com a icônica foto da bandeira japonesa ao chão, símbolo
da derrota japonesa e das instabilidades do Pós-Guerra
(Figura 2). A bandeira amassada, pisoteada e enlameada
foi fotografada por Kawada durante um protesto estu-
dantil contra a revisão do Tratado de Mútua Cooperação
e Segurança entre os Estados Unidos e o Japão, em 1960
(KIKUJI..., 2018).

Figura 2. Kikuji Kawada, “Hinomaru, a bandeira nacional japonesa”,


série O mapa, c. 1960-1965.

Em novembro de 1961, Chizu deu nome à segunda9 expo-


sição individual de Kawada no Fuji Film Photo Salon, em
Tóquio. A mostra combinava tanto as imagens das manchas
do Memorial da Paz de Hiroshima quanto as imagens de outra
natureza, e seu resultado diferia muito do fotolivro que veio anos

9 A primeira exposição individual de Kawada foi The Sea, em 1959,


também no Fuji Photo Salon (WARREN, 2006).
MAPEANDO O TEMPO 481

depois (FRITSCH, 2018). Antes da publicação, Kawada também


exibiu parte das imagens da série nas exposições NON, em
1962, e Gendai shashin-ten 1961-1962, em 1963 (CHUANG;
HINTON, 2021). No que tange à confecção do livro, Kaneko e
Vartanian (2009) destacam que o desejo inicial de Kawada era
de que as imagens das manchas do Memorial integrassem
um volume à parte das demais, gerando dois fotolivros como
resultado. Contudo, essa ideia foi refutada pela editora Bijutsu
Shuppansha, que “considerou as imagens das paredes do
Memorial da Paz de Hiroshima abstratas demais para ficarem
sozinhas, condensando os dois corpos de trabalho em um único
volume” (KANEKO; VARTANIAN, 2009, p. 88, tradução nossa).10
Além desse argumento, a editora alegou que a produção de
dois livros encareceria muito o processo de confecção. Assim,
o fotolivro foi lançado em 1965, contendo 98 páginas, impresso
com a técnica da fotogravura, acompanhado de texto do escritor
Kenzaburō Ōe — que no mesmo ano publicou a obra Notas de
Hiroshima — e respeitando a escolha da editora por uma publi-
cação única. No fim, essa união de imagens provou ser uma
ótima escolha para a potência do livro, que ganhou uma sofisti-
cação ímpar ao propor a união das séries.
O trabalho primoroso do designer Kōhei Sugiura11
trouxe contribuições fundamentais para a experiência
imersiva do livro, privilegiando um formato com imagens
ocultas entre páginas, sendo necessário abri-las, propondo,
assim, um exercício de investigação do conteúdo das
imagens e garantindo maior interação com o leitor
(Figuras 3 e 4).12 Em algumas dessas interações, inclusive,

considering the images of the walls of the Atomic Bomb Dome too
10 “[...]
abstract to stand alone, condensed the two bodies of work into one volume.”
11 Para Vartanian e Kaneko (2009, p. 19), o mérito dos designs de Sugiura
para os fotolivros das décadas de 1960 e 1970 reside, principalmente
em sua capacidade de “suprimir a ideia de que o fotolivro seria a repro-
dução de um original, e sim o original ele mesmo”.
12 Kawada começou a editar o livro entre 1962 e 1963, quando conhece
Sugiura, em um espaço alugado em Yotsuya chamado Shōheikan,
482 Gibson L.

o próprio livro se assemelhava a um mapa, que se reve-


lava conforme a busca do leitor progredia. Sugiura afirmou
que a experiência de abrir e fechar as imagens, vendo-as
aparecer e desaparecer ao longo da obra, era como cavar
o solo em busca de tesouros (THE PHOTOGRAPHER. .
.,
2021). A construção do livro nesse formato representa
a visão obscura de Kawada sobre as consequências da
guerra, além de constituir uma interpretação sobre a
forma como o Japão incorporou o conflito em sua história,
trazendo imagens escondidas que necessitam da atividade
do leitor para serem reveladas (KANEKO; VARTANIAN,
2009). Não coincidentemente, muitas das imagens ocultas
traziam símbolos relacionados diretamente com a guerra,
como as manchas do Memorial da Paz de Hiroshima e
imagens de pilotos kamikaze (Figura 4), como se aludissem
a questões que o Japão gostaria de esquecer.

Figura 3. Imagens do fotolivro Chizu (O mapa), de 1965. Na esquerda, vê-se a caixa/


luva que acompanha o livro, que se encontra ao centro. Na direita, uma das propostas
imersivas e interativas do design, que já se manifesta na abertura do livro.

onde ambos trabalharam no processo de escolha das imagens


(CHUANG; HINTON, 2021).
MAPEANDO O TEMPO 483

Figura 4. Exemplo de imagem oculta entre páginas,


que precisam ser abertas pelo leitor.

Outro ponto inovador em Chizu é o sequenciamento


de imagens. Enquanto livros como Hiroshima, de 1958, de
Domon, seguem a narrativa clássica do fotolivro, marcada
pela linearidade de ideias e acontecimentos, a obra de
Kawada dispensa esse tipo de conexão, privilegiando uma
combinação de imagens a partir de elementos diversos.
Isso não implica dizer que Chizu não possui uma organi-
zação temática e que suas imagens não convergem para
um ponto comum; na verdade, é exatamente a coesão entre
as imagens como as escolhas por trás de sua ordem de
aparição que constituem fatores engrandecedores da obra
e que garantiram sua atemporalidade. Diante do conteúdo
final do livro, Kawada classificou as fotografias a partir de
três categorias: imagens sobre o desenvolvimento econô-
mico do Pós-Guerra e os objetos descartados dessa época
(como garrafas de Coca-Cola e pacotes de Lucky Strike),
imagens feitas no Memorial da Paz de Hiroshima e
imagens de soldados japoneses e de instalações militares
(KIKUJI..., 2018). De fato, para além de Chizu, muitos outros
livros publicados entre as décadas de 1960 e 1970 optaram
por um sequenciamento mais experimental que às vezes
484 Gibson L.

funcionava de forma harmônica e coerente e às vezes não,


sendo marcado, assim, por tentativas diversificadas, como
a criação de pequenas seções dentro do livro ao invés de
uma única longa sequência narrativa.
É possível notar, em adição, a presença de diversas pala-
vras permeando as fotografias da obra, desde o envoltório do
livro até o conteúdo propriamente das imagens. Escritas em
japonês e inglês — com exceção da capa que, além destas
duas línguas, também prevê a tradução da palavra chizu
para outros idiomas —, as palavras ocupam o fotolivro de
maneiras diversificadas, sendo por vezes adicionadas nas
imagens pelo próprio autor e, por outras, colocadas como
parte da própria estrutura da imagem, como fotos de cartas
escritas por pilotos kamikaze durante a Segunda Guerra
Mundial (Figura 4). Além das expressões presentes nas
imagens, o texto de Kenzaburō Ōe cumpre um papel interes-
sante no processo de contextualização da obra, chamando
a atenção para a responsabilidade do Japão na guerra e
ajudando a esclarecer a multiplicidade buscada por Kawada
nos temas do livro (KANEKO; VARTANIAN, 2009).
No fim, essas considerações demonstram como os
detalhes na confecção de um fotolivro permitem um maior
impacto da obra e sua permanência no tempo, além de
ressaltar a importância do trabalho conjunto entre autor,
editor e designer, como afirmado por Gerry Badger (2015)
em sua definição de fotolivro, mencionada anteriormente.

REIMPRESSÕES E REEDIÇÕES DE CHIZU


AO LONGO DO TEMPO
Entretanto, é importante ressaltar que a edição de 1965
de Chizu não foi a única na história do fotolivro. A reim-
pressão — e, às vezes, também reinvenção — de livros publi-
cados no passado constitui um fator comum na história da
fotografia japonesa, prática que se estende aos dias atuais.
A título de exemplo, três anos depois de publicar seu fotolivro
MAPEANDO O TEMPO 485

Hiroshima, Ken Domon publicou algumas das imagens


da obra no livro Hiroshima-Nagasaki Document 1961, em
parceria com o fotógrafo Shōmei Tōmatsu. Este, por sua vez,
foi o autor de um dos livros mais celebrados sobre Nagasaki,
o Nagasaki 11:02, lançado pela primeira vez em 1966. Ambos
os fotógrafos criariam versões expandidas e revisitadas de
seus livros no futuro, como a versão de 1995 de Nagasaki
11:02: August 9, 1945, que apresenta diferenças na escolha das
imagens (COLBERG, 2021).
O fotolivro Chizu de Kawada, por sua vez, foi relan-
çado em outras versões em 2005, 2014 e 2021. Enquanto as
versões de 2005 e 2014 — publicadas pelas editoras Nazraeli
Press & Getsuyōsha e Akio Nagasawa, respectivamente —
adotaram o padrão do design de Kohei Sugiura da edição de
1965, diferindo pouco desta, a versão de 2021, publicada pela
MACK, segue uma direção distinta, trazendo a reimpressão
da boneca13 original14 de Chizu (Figura 5).
Conforme mencionado, Kawada desejava separar as
imagens das manchas do Memorial da Paz de Hiroshima
das demais, gerando dois livros como resultado. Esta edição
de Chizu, por se tratar de um fac-símile do protótipo original,
mantém as aspirações iniciais do fotógrafo, trazendo dois
livros com as imagens e um terceiro que reúne textos sobre
a obra e uma entrevista com Kawada, assinados por Joshua
Chuang e Miyuki Hinton. Na Figura 5, à esquerda, vê-se a
caixa/luva que cobre os fotolivros e traz impresso o nome

13 A boneca ou boneco de um livro constitui uma simulação de sua forma


impressa final, antes de ser publicado, funcionando como uma espécie
de protótipo do resultado do livro. Antes da publicação definitiva, um
autor geralmente faz quantas bonecas ou bonecos achar necessário,
de modo a experimentar possibilidades de design, impressão e tipos
de papéis, além de identificar possíveis falhas. Na confecção de foto-
livros, a criação de bonecas é de suma importância, principalmente
por ser um tipo de livro no qual o design e a qualidade da impressão
possuem grande relevância.
14 A boneca original de Chizu — única e feita à mão por Kawada —
foi adquirida em 2001 pela Biblioteca Pública de Nova York.
486 Gibson L.

de Kawada e do projeto na frente. Os fotolivros são os dois


de capa preta, enquanto o livro de capa branca mais à direita
reúne os textos e a entrevista.

Figura 5. Representação dos livros que compõem a versão de 2021 de Chizu


(Maquette Edition).

A versão de 2021 possui algumas diferenças notáveis


em relação à edição de 1965. Em primeiro lugar, muitas das
imagens são equivalentes, mas têm variações de tonalidades,
orientações e recortes, além de um formato diferenciado
no que tange ao aspecto físico dos livros. A versão de 1965
possui 22,5 × 15 cm, enquanto a de 2021 mede 29,9 × 19,7 cm.
Ademais, a edição inspirada na boneca não possui as imagens
ocultas para serem abertas e desbravadas, como constam
nas edições anteriores. Essas diferenciações suscitaram
MAPEANDO O TEMPO 487

diversas discussões sobre qual versão de Chizu poderia


ser considerada a “definitiva” ou a “melhor”: a baseada na
boneca — por se conectar aos desejos iniciais de Kawada —
ou a versão de 1965, fruto das decisões tomadas junto com
o designer e a editora.15 Baseado no que foi argumentado
sobre as sucessivas reimpressões de livros japoneses e suas
diversas modificações, ainda que por vezes o mercado de
livros de arte coloque as versões mais antigas das obras em
um local de maior cobiça e especulação, consideramos infru-
tífera uma discussão hierarquizante das edições por não
se conectar com os objetivos atrelados aos fotógrafos e às
reedições de obras. Obviamente, isso não quer dizer que não
se possa ter uma versão favorita, que suscite maior conexão
íntima e pessoal. O que julgamos importante é a compre-
ensão acerca do papel das reimpressões, que tentam tornar
fotolivros antigos mais acessíveis e permitem a reinvenção
das obras no tempo, possibilitando sua constante revisitação
e novas interpretações. Por fim, é importante trazer o argu-
mento de Jörg Colberg (2021) sobre essa discussão, visto que
aponta o desejo por uma versão definitiva de um livro como
um anseio ocidental, o que não encontra uma associação
lógica e obrigatória nas publicações japonesas.
Em adição, a versão que reproduz a boneca traz dois
novos pontos positivos: além de ser uma versão de valor
mais acessível — ainda com alto preço, porém mais fácil de
ser adquirida se comparada com as edições anteriores —,
a presença de diversos textos sobre a obra e o artista permite
alcançar uma compreensão maior sobre um livro que é
considerado um dos mais importantes da história da foto-
grafia japonesa. A versão de 2021 também traz uma espécie
de mapa comparativo entre a edição de 1965 e a boneca,
ressaltando similitudes e diferenças entre ambas.

15 Importante ressaltar que as decisões da versão da boneca também


foram tomadas em conjunto com Sugiura, conforme explicado na entre-
vista concedida por Kawada a Joshua Chuang e Miyuki Hinton (2021).
488 Gibson L.

REVISITANDO CHIZU: TEMPO, TRAUMA E MEMÓRIA

Chizu não é um livro fácil — na ocasião de seu lançamento,


em 1965, foi bem aclamado pela crítica, mas fez pouco sucesso
entre os leitores, obtendo índices baixos de venda, principal-
mente por apresentar um formato inovador para a época
e por ter sido considerado confuso e obscuro (KANEKO;
VARTANIAN, 2009). Ainda assim, é indiscutível a atempora-
lidade da obra, que permanece como um dos fotolivros mais
enigmáticos e de maior impacto do século XX. Contudo,
é válido questionar como suas imagens reverberam nos dias
de hoje, mais de cinco décadas após seu lançamento e mais
de setenta anos do fim da guerra. As sucessivas reimpres-
sões e em formatos fiéis à edição de 1965 parecem demons-
trar um apreço e interesse contínuos pelo livro; porém, uma
etapa fundamental para entendê-lo hoje e em sua época
passa, inicialmente, pela compreensão dos sentimentos de
Kawada em relação à guerra, tanto no passado quanto no
presente. Nascido em 1933, Kawada era novo demais para
ser um combatente na Segunda Guerra Mundial, mas tinha
idade suficiente para compreender a realidade e sentir o
gosto amargo do conflito. Quando criança, o fotógrafo conta
ter presenciado um avião estadunidense voando tão perto
do chão que “pôde ver o rosto do piloto enquanto sua metra-
lhadora atirava sucessivamente” (HINTON, 2021, p. 26 apud
COLBERG, 2021, tradução nossa).16
Diante dessa memória que o perseguiu durante a vida,
é curioso observar que Kawada muitas vezes negou uma
possível relação direta entre Chizu e o trauma da guerra
(COLBERG, 2021). Sobre este aspecto, em conversa com Jörg
Colberg, a pesquisadora Miyuki Hinton defende a hipótese de
que Kawada se sente incapaz de falar dos traumas da guerra,
considerando que ele sobreviveu e não foi atingido diretamente

could see the face of the pilot as its machine guns issued bullets,
16 “[...]
rapid-fire.”
MAPEANDO O TEMPO 489

pelas experiências terríveis proporcionadas pelo conflito.


Desenvolvendo o raciocínio, Hinton elenca alguns fatores para
justificar o sentimento de Kawada: primeiramente, o fotógrafo
foi afortunado o suficiente de não viver em uma cidade que foi
completamente destruída pelos ataques e bombardeios suces-
sivos. Em segundo lugar, ele não tinha idade para ser um comba-
tente no confronto, mas cresceu em Tsuchiura, prefeitura de
Ibaraki, próximo do local onde estava instalada a Yokaren —
a escola de elite para pilotos da marinha imperial, em que se
formavam os kamikaze —, de modo que via com frequência os
jovens se preparando para o combate. Por fim, Hinton destaca
que Kawada, assim como a maior parte da população japonesa
da época, foi vítima da propaganda de guerra, que difundia a
ideia de que a guerra era justa e que o Japão estava vencendo
(COLBERG, 2021). Assim, a falta de contato direto do fotógrafo
com o conflito poderia explicar sua crença de ser incapaz de
falar disso — Chizu não seria, em sua visão, um trabalho neces-
sariamente relacionado ao trauma da guerra, pois também
começou a ser realizado mais de uma década após o encerra-
mento do confronto, em um momento em que seria possível
olhar para o passado de outra forma. A maior proximidade
com a guerra por Ken Domon, a título de exemplo, que fora
cooptado pelo governo imperial para produzir propaganda
de guerra, explica parcialmente o apreço deste por imagens
mais diretas dos conflitos e seus efeitos, pois temia que uma
ausência de documentação objetiva pudesse gerar um desco-
nhecimento do passado pelos japoneses e, consequentemente,
sua repetição (ANDRÉ, 2019; COLE, 2015).
Em complemento, citando os pensamentos do psicólogo
jungiano Hayao Kawai, Miyuki Hinton associa a experiência
de Kawada em Chizu pela ótica da psicologia transpessoal:

Ao não agir como uma vítima ou testemunha direta da


atrocidade da guerra, Kawada pode falar a partir de uma
experiência transpessoal. Mas a partir do momento que
ele pensasse representar esse trauma, ele sentiria como
se estivesse traindo a humanidade. A ideia da experiência
490 Gibson L.

transpessoal pode nos ajudar a compreender não apenas


O mapa, mas também outras obras de arte (HINTON, 2021
apud COLBERG, 2021, tradução nossa).17

Nessa direção, Joshua Chuang conceitua Chizu como um


trabalho fruto da imaginação de Kawada, que não constitui
de fato um documento, sendo uma abstração das diferentes
pistas visuais que Kawada coletou enquanto fotografava. Para
Chuang, o trabalho fotográfico de Kawada é como o de um
arqueólogo, explorando os diferentes detalhes do tempo e do
espaço (THE PHOTOGRAPHER..., 2021). Entretanto, negar
a obra como um documento estrito não implica esvaziar seu
valor documental, que está presente junto da visão particular
e subjetiva do fotógrafo. Ademais, ainda que Kawada possa
negar a relação de Chizu com o trauma de guerra utilizando
justificativas pessoais, essa perspectiva pode ter interpreta-
ções distintas diante do papel do meio fotográfico. Margaret
Iversen (2017, p. 1, tradução nossa) defende que a fotografia
em si é um meio capaz de “apresentar ou simular um traço
ou resíduo de um evento traumático”,18 e citando o histo-
riador da arte Peter Geimer, a autora complementa que “fotó-
grafos estão apenas parcialmente conscientes do que estão
fazendo, e a estética ou valor epistêmico de suas imagens
frequentemente dependem deste ponto cego” (IVERSEN,
2017, p. 6, tradução nossa).19 Não se trata de analisar o grau de
consciência de Kawada na produção das imagens, mas sim
de evidenciar como o meio fotográfico propõe uma lacuna

17 “By Kawada not acting as first-hand victim or witness of wartime atrocity,


he’s able to speak about a trans-personal experience. But once he pretends
that he represents that trauma, he feels as though he’s betraying humanity.
The idea of the trans-personal experience can help us understand not only
The Map, but also other pieces of art.”
18 “[...] presenting or simulating a trace or residue of a traumatic event.”
19 “Photographers are only partly aware of what they are doing, and the
aesthetic or epistemic value of their pictures often depends precisely on this
blind spot.”
MAPEANDO O TEMPO 491

interpretativa que está sujeita a sucessivas revisitações no


decurso do tempo. Ainda que muito da imagem fotográfica
seja “calculado, previsível, e deixe espaço para intervenção”,20
há também uma “dimensão do imprevisível”21 nela, de modo
que a fotografia pode ser vista como uma ocorrência: “algo na
imagem ocorre ou algo acontece dentro da imagem” (ibidem,
tradução nossa).22 Essa imprevisibilidade se mostra, ademais,
como uma faísca condutora do trabalho de Kawada, pois seu
encontro inesperado com as manchas do Memorial da Paz de
Hiroshima foram o germe, a epifania primária de seu projeto.
Compreender Chizu hoje passa, em adição, pelo ques-
tionamento acerca do tempo das imagens. Sobre essa
ideia, o crítico Tatsuo Fukushima relaciona o tempo pessoal
com o tempo histórico em Chizu, apontando que na obra
eles coexistem no mesmo plano, defendendo que as ações
pessoais e as ações da nação estão intrinsecamente conec-
tadas (KANEKO; VARTANIAN, 2009, p. 88). Assim, a ideia
de Chizu como um trabalho de arqueologia das imagens
proposta por Chuang (THE PHOTOGRAPHER..., 2021)
se conecta diretamente aos preceitos evocados por Didi-
Huberman (2015, p. 18-19), em sua obra Diante do tempo:
história da arte e anacronismo das imagens, em que o autor
propõe uma arqueologia crítica da história da arte e dos
modelos de tempo em relação às imagens. Se sempre “diante
da imagem estamos diante do tempo” (DIDI-HUBERMAN,
2015, p. 15), isto implica reconhecer o potencial de reconfigu-
ração do presente e do passado nas representações:

Diante de uma imagem — por mais antiga que seja —,


o presente nunca cessa de se reconfigurar [...]. Diante de
uma imagem — por mais recente e contemporânea que

20 “[...] calculable, foreseeable, and leaves open the potential for formal
intervention.”
21 “[...] dimension of the unforeseen.”
22 “[...] an occurrence: something in the image occurs or something falls into
the image.” (grifos do autor)
492 Gibson L.

seja, ao mesmo tempo o passado nunca cessa de se recon-


figurar, visto que essa imagem só se torna pensável numa
construção da memória, se não for da obsessão. [...] Diante
de uma imagem, enfim, temos que reconhecer humilde-
mente isto: que ela provavelmente nos sobreviverá, somos
diante dela o elemento de passagem, e ela é, diante de
nós, o elemento do futuro, o elemento da duração [durée].
A imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro
que o ser [étant] que a olha (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 16,
grifos do autor).

As imagens de Chizu produzem novos mundos, enal-


tecem a experiência de seu autor e, ao mesmo tempo,
produzem memória, aludindo a momentos da história
japonesa e mundial, ainda que de maneira menos explí-
cita em alguns momentos. Em complemento às ideias de
Didi-Huberman (2015) sobre as reconfigurações do tempo
nas imagens, Ulrich Baer (2002) traz uma definição sobre a
temporalidade na fotografia que muito se aplica à realidade
de Chizu: “Em algumas fotografias, a impressão de atempo-
ralidade coincide com uma estranha temporalidade e um
contraditório senso de presente envolvendo a experiência
retratada” (BAER, 2002, p. 11, tradução nossa).23
Por isso, além da compreensão do contexto histórico,
Chizu precisa ser visto a partir de uma perspectiva múltipla,
que também considera a memória coletiva, a vivência de
seu autor, a experiência sensorial do livro, suas escolhas
de confecção, seu valor como obra de arte no tempo e seu
consequente impacto no mundo de hoje. Chizu possui
muitas camadas a serem reveladas e descobertas por
leitores, mas preserva sua parcela de enigma e mistério,
que não encontra afinidade com a racionalidade estrita,
permitindo a coexistência de presente e passado em suas
imagens. Chizu sobreviverá como uma obra simultanea-
mente atemporal e conectada com seu contexto histórico

23 “In some photographs, the impression of timelessness coincides with a


strange temporality and contradictory sense of the present surrounding the
experiences depicted.”
MAPEANDO O TEMPO 493

específico, trazendo em seu conteúdo as intenções de seu


autor, bem como permitindo sua reinvenção e ressignifi-
cação ao longo do tempo. E nós passaremos.

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Impressão em gelatina de prata, 18,42 × 24,13 cm. Acervo do Museu de
Arte Moderna de São Francisco. Disponível em: https://www.sfmoma.
org/artwork/2002.65.3. Acesso em: 31 mar. 2022.

Figura 2
KAWADA, Kikuji. “Hinomaru, a bandeira nacional japonesa”.
Imagem da série O mapa. c. 1960-1965. Impressão em gelatina
de prata, 18,42 × 24.13 cm. Acervo do Museu de Arte Moderna
de São Francisco. Disponível em: https://www.sfmoma.org/
artwork/2002.65.10. Acesso em: 31 mar. 2022.
MAPEANDO O TEMPO 495

Figura 3
KANEKO, Ryuichi; VARTANIAN, Ivan. Japanese Photobooks of the 1960s
and ‘70s. New York: Aperture, 2009.
Figura 4
KAWADA, Kikuji. Chizu. [S. l.]: Nazraeli Press & Getsuyosha, 2005.
Fotolivro. Disponível em: https://cuatrocuerpos.com/donde-esta-
nuestro-mapa/. Acesso em: 31 mar. 2022.

Figura 5
KAWADA, Kikuji. Chizu. Maquette Edition. London: MACK, 2021.
Fotolivro. Disponível em: https://bookobscura.com/items/61af3f98d-
5ffeb16bac63b69. Acesso em: 31 mar. 2022.
REFERÊNCIAS DAS
IMAGENS ARTÍSTICAS

CLAUDIO MUBARAC (1958-)


(Luiz Claudio Mubarac)
Série Sobre os corpos primevos e a mortalidade da alma

Figura 1
Ponta-seca, água-forte e monotipias sobre pergaminho (acima).
Fotografia feita com celular, de arquivo da internet, retrabalhada (abaixo).

Figura 2
Ponta-seca, água-forte, monotipia e desenho sobre pergaminho
(acima). Fotografia feita com celular, de arquivo da internet, retraba-
lhada (abaixo).

Figura 3
Ponta-seca, água-forte, monotipia e desenho sobre pergaminho
(acima). Fotografia feita com celular, de arquivo da internet, retraba-
lhada (abaixo).

Figura 4
Ponta-seca, água-tinta, monotipia e desenho sobre pergaminho
(acima). Fotografia feita com celular, de arquivo da internet, retraba-
lhada (abaixo).

MADALENA HASHIMOTO (1956-)


(Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro)
Figura 1
Hokusai nos trópicos 199. 1994-2022. Colagem e têmpera sobre papel arte-
sanal, com excerto de calendário Shikō Munakata (1903-1975) e Hokusai
502 

Manga volume 2 (1879). 29 × 22 cm (irregular). Monges budistas em


prática de magias e preleções.

Figura 2
Hokusai nos trópicos 208. 1994-2022. Colagem de xilo e tinta sumi sobre
papel artesanal, com excerto de Hokusai Manga volume 2 (1879).
29 × 22 cm (irregular). Monge Kūkai 空海 (774-835), mais conhecido
como Kōbō Daishi, fundador do budismo Shingon, autor de peças de
nō, retira-se no monte Takano e controla árvores em chamas.

Figura 3
Hokusai nos trópicos 209. 1994-2022. Colagem de xilogravura e tinta acrí-
lica sobre papel artesanal, com excerto de calendário Shikō Munakata
(1903-1975) e Hokusai Manga volume 2 (1879). 29 × 22 cm (irregular).
Lendário monge Hōshōbō 法性坊, mestre de Michizane Sugawara
(845-903), personagem de teatro nō, que assusta na forma de relâm-
pago e apazigua o espírito do mestre zen Eihei Dōgen (1200-1253).

Figura 4
Hokusai nos trópicos 217. 1994-2022. Colagem e tinta sumi sobre
papel artesanal, com excerto de Hokusai Manga volume 2
(1879). 29 × 22 cm (irregular). Handaka sonja 半託迦尊者,
o 16º arhat recluso nas montanhas; tinha poderes mágicos como voar,
atravessar rochas e portar tigela, das quais escapam dragões.

M.A.D.A.L.I (1980-)
(Madali Rosa Tschope)
Série Yūreiga 幽霊画.

Figura 1
Yūrei 幽霊 1. 2021. Fotografia manipulada digitalmente.
Figura 2
Yūrei 幽霊 2. 2021. Fotografia manipulada digitalmente.
Figura 3
Yūrei 幽霊 3. 2021. Fotografia manipulada digitalmente.
Figura 4
Yūrei 幽霊 4. 2021. Fotografia manipulada digitalmente.
Referências das imagens artísticas 503

PLINIO RIBEIRO JR. (1974-)


Figura 1
Berlim – Estação Grunewald, de onde partiam boa parte dos trens
rumo aos campos de concentração nazistas e marcava-se, nas plata-
formas, a data de cada partida, o número de deportados e o destino
final. Fotografia.

Figura 2
Varsóvia – Trecho do muro do gueto de Varsóvia. Fotografia.
Figura 3
Hiroshima. Fotografia.
Figura 4
Tóquio – Detalhe de casa que sobreviveu tanto ao terremoto de 1923
quanto aos bombardeios da cidade durante a Segunda Guerra. Fotografia.
SOBRE OS AUTORES

Alice Andrade Drummond (1985-)


Cineasta, diretora de fotografia e mestranda no Programa de Pós-graduação
em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Pesquisa sobre represen-
tações audiovisuais de catástrofes contemporâneas. Leciona direção
de fotografia e é membro fundador do DAFB, coletivo de mulheres e
pessoas transgênero do departamento de fotografia do cinema brasileiro.
É também sócia da produtora audiovisual A Flor e a Náusea.

Anais Murakami (1993-)


É artista e doutoranda em Poéticas Visuais no Programa de
Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e mestre em Arte
e Cultura Contemporânea pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Pesquisadora visitante e professora assistente na
Universidade Waseda, Japão. Estudou Butō com Tadashi Endo e
Yoshito Ohno, participou de exposições nacionais e internacionais
e foi premiada pelo QOL PARADISE AIR.

Atílio Avancini (1953-)


Fotógrafo e professor associado do Departamento de Jornalismo
e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo (ECA-USP) e membro permanente do Programa de
Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP. Vice-
coordenador do Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA). Pós-doutor pela
Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 (2011-2012). Professor-visitante
da Universidade de Quioto para Estudos Estrangeiros (2006-2007).
E autor de Entre gueixas e samurais e Lavagem do Bonfim.

Claudio Mubarac (1958-)


Professor Titular do Departamento de Artes Plásticas da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP),
Luiz Claudio Mubarac é professor de desenho e gravura, além de
506 

artista com ampla exposição nos meios de arte no Brasil e no exte-


rior, tendo também publicações como artista, curador e teórico do
campo das artes gráficas. Em 2019, a convite da Editora Escola da
Cidade, publicou o importante estudo Sobre o desenho no Brasil, que
contém textos clássicos seminais e ensaios visuais contemporâneos.

Dudu Tsuda (Carlos Eduardo Tsuda) (1979-)


Doutorando em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp - São Paulo) e
mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É artista multimídia,
professor da Faculdade Santa Marcelina e fundador do selo de arte
sonora e música experimental ALEA_experimental. Foi contemplado
com bolsas e prêmios em diferentes países, como França, Japão,
Espanha, Alemanha, Colômbia e Brasil.

Felipe Mendes Pinto (1998-)


Estudante de pesquisa no Programa de Pós-graduação em Artes da
Universidade de Osaka (Ōsaka Daigaku Geijutsugaku Senkō 大阪大学芸
術学専攻), onde desenvolve estudo sobre relações interculturais a partir
do teatro nō. É mestre em Letras (Programa em Língua, Literatura e
Cultura Japonesa) pela Universidade de São Paulo (USP), com foco na
tradução intersemiótica de concepções estéticas do Japão, e bacharel
em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Gisele Giandoni Wolkoff (1973-)


É escritora, tradutora e professora do Instituto de Ciências Humanas
e Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde coordena
o projeto Cultura e Artes no Sul-fluminense: Memória e História.
No GEAA, é responsável pelo projeto Arte Japonesa: Espacialidades,
Temporalidades e Inter-relações. Também é pesquisadora da Cátedra
W. B. Yeats da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e publica escritos sobre
poesia contemporânea e tradução.

Helena Ariano (1992-)


Mestre em História da Arte pela Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp Guarulhos), com a dissertação Eros e morte: a linguagem
do corpo no curta Yūkoku de Yukio Mishima, e bacharel e licenciada
em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Virtual do
Estado de São Paulo (Univesp). É arte-educadora e ilustradora autô-
noma. Sua pesquisa estética é focada nos temas do corpo, do grotesco
Sobre os autores 507

e da sexualidade. Tem participado de eventos acadêmicos centrados


em Estudos Japoneses e História da Arte.

Heloisa Okamoto Pinho (1994-)


Mestre em Museologia e Patrimônio Cultural pela Universidade
da Ânglia Oriental, bacharel em Relações Internacionais pelo
UniCuritiba. Ex-coordenadora do laboratório de restauro dobre papel
na Arte & Restauro, criadora da Ars Consultoria Artística. Tem expe-
riência no Sainsbury Institute for the Study of Japanese Arts and
Cultures, com bolsa da Fundação Ishibashi, e no Centre for Heritage
Management, da Universidade da Ânglia Oriental. Pesquisa budismo,
museus, patrimônios imateriais e fluidez cultural.

João Kurohiji (1998-)


Mestrando no Programa de Pós-graduação em Língua, Literatura e
Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo (USP), bacharel em
Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (Unesp) e bolsista de Iniciação Científica do CNPq (2017-2018).
Atualmente, suas pesquisas convergem para os temas relacionalidade
humano-natureza, presença da pedra e animismo na arte japonesa
moderna e contemporânea a partir da segunda metade do século XX.

Juliana Akstein (1994-)


Mestranda em Poéticas Visuais pela Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo (ECA-USP), onde estuda a questão do
vazio nas Artes Visuais, a relacionando ao elemento cultural japonês
ma 間. Tem bacharelado pela ECA-USP, com intercâmbio acadê-
mico na Unversidade Nova de Lisboa em 2016. Realizou residências
artísticas no Atelier de la Carabine (Paris, 2019) e Atelier Cabine
(Lisboa, 2020). É artista visual e membro do Grupo de Estudos
Arte Ásia (GEAA).

Lizia Maria Ymanaka Barretto (1985-)


Doutoranda desde 2020 pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA-USP), mestre em Cultura Japonesa
pela Universidade de São Paulo (USP, 2019), onde defendeu a disser-
tação A pluralidade de Takashi Murakami no desafio aos limites da arte,
e graduada em Letras, com habilitação em Tradução Inglês-Português,
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, 2006) e
em Arte: História, Crítica e Curadoria (PUC-SP, 2012). Tem experi-
ência em crítica e curadoria e atualmente pesquisa a arte japonesa.
508 

Lucas Gibson (1992-)


Pós-graduado em Fotografia e Imagem pelo Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Candido Mendes (IUPERJ-
UCAM) e mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA-UFRJ). É pesquisador do
Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) e da Coordenadoria de Estudos da Ásia
da Universidade Federal de Pernambuco (CEÁSIA-UFPE). Seu tema prin-
cipal de pesquisa é a fotografia japonesa do Pós-Guerra e contemporânea.

Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro (1956-)


Livre-docente em Arte e Literatura Japonesa pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). Professora
Sênior no Programa de Poéticas Visuais do curso de Artes Plásticas da
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-
USP). Tradutora (Rashōmon e outros contos, Livro do travesseiro), artista
plástica (Das dez mil faces, Transpacific Borderlands) e ensaísta (Ukiyo-e
pinturas do mundo flutuante, A erótica japonesa na pintura e na escritura
dos séculos XVII a XIX, Helena e Riokai: entre Brasil e Japão, Paris).
M.A.D.A.L.I (1980-)
Madali Rosa Tschope é mestre em Artes Visuais pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e graduada
em Artes Plásticas pela Faculdade Santa Marcelina. Produz livros de
artista que incorporam computação gráfica, fotografias e ensaios visuais.
É membro do Grupo em Pesquisa em Impressão Fotográfica (GPIF) e
Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) e se dedica a pesquisas que tangenciam
os temas de danças macabras, expressões de fantasmagorias e gráficas.

Maria Ivette Job (1967-)


Doutoranda em História da Arte pela Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp, 2023), mestre em Cultura Japonesa pela
Universidade de São Paulo (USP, 2021) e bacharel em Psicologia
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, 1993).
É membro do Grupo de Estudos Artes Ásia (GEAA) e do Espaço
Potencial Winnicott (EPW), do Sedes Sapientiae. Pesquisa a imagem
sob os referenciais teóricos da Psicanálise e de Aby Warburg. Atua
profissionalmente como psicoterapeuta.

Marina Bertani Gazola (1987-)


É mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR,
2017). Professora na mesma universidade e tradutora do idioma inglês,
publicou no Plurivozes Americanas. American Plural Voices. Plurivoces
Sobre os autores 509

Americanas (2015) e em periódicos, como o ABEI Journal. Colabora


no projeto Cultura e Artes no Sul-fluminense: Memória e História, da
Universidade Federal Fluminense (UFF), chancelado pela Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

Michiko Okano (1957-)


Professora associada de História da Arte da Ásia da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp). É coordenadora do Grupo de Estudos
Arte Ásia (GEAA); autora dos livros Ma: entre-espaço da arte e comuni-
cação no Japão (2011) e Helena e Riokai: entre Brasil e Japão, Paris (2021);
e curadora de Olhar InComum: Japão Revisitado (2016) e Transpacific
Borderlands: The Art of Japanese Diaspora in Lima, Los Angeles, Mexico
City and São Paulo (2017-2018). Atualmente pesquisa a arte japonesa
produzida no âmbito das inter-relações geográficas.

Paulo Endo (1965-)


Professor associado do Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo (USP). Psicanalista formado em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Coordena o grupo de
pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto
de Estudos Avançados (IEA) da USP. É autor de Psicanálise: confins/
política, memória e sujeitos sem direitos (2022). Em 2006 recebeu o prêmio
Jabuti pela obra A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico,
fruto de seu doutoramento no Instituto de Psicologia da USP.

Plinio Ribeiro Jr. (1974-)


Mestre em Literatura, Artes e Pensamento Contemporâneo pela
Universidade Paris 7 – Diderot. Pesquisador e artista baseado em Paris
desde 2002, trabalha atualmente em projetos caracterizados pela trans-
versalidade das temáticas que permeiam sua trajetória artística e acadê-
mica. Sendo o Japão um dos focos principais de sua pesquisa e inspiração,
busca implementar uma triangulação entre a França, o Japão e os países
de língua portuguesa. Mais informações em: www.purinio.fr

Priscila Yanagihara Shimizu (1992-)


Doutoranda em Poéticas Visuais pela Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo (USP), mestre em Letras pelo
Programa de Língua, Literatura e Cultura Japonesa da USP e bacharel
e licenciada em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade de
Campinas (Unicamp). Desde 2013, realiza pesquisa sobre xilogravura japo-
nesa, entre teoria e prática, pratica continuamente a pintura e o desenho e
é professora de Arte e STEAM-S no Colégio Dante Alighieri, em São Paulo.
510 

Rafael Hett (1996-)


Mestre em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela Universidade de
São Paulo (USP), pós-graduado em Comunicação e Produção de Moda
pelo Centro Universitário (FMU), e graduado em Letras (Português,
Francês e suas respectivas literaturas) pela Universidade Federal de
Pelotas (UF-Pel). Seus temas de interesse incluem: japonismo, moda
contemporânea, moda e sociedade, moda e literatura, diálogos entre
moda e arte, bem como os desdobramentos da moda face às revolu-
ções tecnológicas no Antropoceno.

Rafael Teles da Silva (1990-)


É licenciado em Química pela Universidade Federal
Fluminense (UFF-Volta Redonda). Foi pesquisador de Iniciação
Científica no projeto Cultura e Artes no Sul-fluminense: Memória e
História. É coautor do artigo “Dos globalismos aos regionalismos:
o sul-fluminense” (Revista Fafire, 2018) e do capítulo “Para uma
educação sustentável: ecopoesia em transdisciplinaridade: a região
sul-fluminense” (In: Educação ambiental, sustentabilidade e desenvolvi-
mento sustentável: contribuições para o ensino de graduação (2019). Coedita
o volume 1 de Vozes do Sul.

Ryanddre Sampaio de Souza (1985-)


Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), mestre em Antropologia Social pela Universidade
Federal do Mato Grosso (UFMT) e bacharel em Museologia pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). É pesqui-
sador do Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA), do Instituto Brasil Plural
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), do Núcleo de
Antropologia e Saberes Plurais (UFMT) e do Núcleo de Arte, Imagem
e Pesquisa Etnológica (UFRJ).

Ryūta Imafuku 隆太今福 (1955-)


Antropólogo, crítico cultural e professor emérito da Universidade de
Tóquio para Estudos Estrangeiros (TUFS). Esteve no Brasil como
professor visitante da Universidade de São Paulo (USP), em 2000, e da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2003.
Entre suas publicações, destacam-se: A heterologia da cultura; Mínima
gracia; Archipel-monde; A gramática parda; Homo ludens no Brasil; Jorge
Luis Borges: um tigre sonhador no labirinto e Notas sobre a protofotografia
(Títulos aqui traduzidos para o português).
Tipologia Roboto, Shippori Mincho,
EB Garamond
Data 2023

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