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Rio de Janeiro
2003
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Aprovada por:
Rio de Janeiro
2003
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Agradeço muito especialmente ao meu orientador, José Amaral Argolo – que em muitos
momentos parecia estar mais seguro de meu trabalho que eu mesmo – e aos mestres
Maria Helena Junqueira, Consuelo Lins, Geraldo Nunes, Ieda Tucherman e Milton José
Pinto pelos ensinamentos e pela generosidade.
Pela leitura do material e pelas sugestões valiosas, agradeço a Rogério Lannes Rocha e Car-
los Gustavo Trindade. Pelas discussões sobre pontos cruciais do trabalho e pela paciência
em me ouvir, agradeço a Caco Xavier, Ângela Farias, Erivelto Pires Martins. E pela acolhi-
da, incentivo e sugestões, agradeço aos pesquisadores Moacy Cirne e Sonia Bibe Luyten e à
comunidade de pesquisadores de quadrinhos dos GTs por eles coordenados.
Agradeço à Capes e à ECO/UFRJ pelo apoio indispensável que viabilizou essa jornada,
e aos funcionários e professores da Pós-Graduação da ECO Lúcia Acar, Raquel Paiva,
Fernando, Marianne e Laécio pelo suporte tão necessário aos alunos.
Pelo apoio irrestrito, pelo incentivo permanente e, sobretudo, pela amizade, agradeço a Do-
lores Pinheiro, Margarette Mattos e, muito especialmente, a minha família, Áurea, Aldemar
(in memorian), Margareth, Fábio, Rosângela, Lílian, Almir, Vítor e Aldemar Júnior.
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Resu m o
Abst r act
This work concerns the comics journalism or, more accurately, the comics' character and
its graphic-narrative tools when used with journalistic purposes. Comics with such pur-
poses have been made since the 19th century. However its theoretical field was not estab-
lished until the creation of the concept in 1992, with the first edition of Joe Sacco’s jour-
nalistic books, accepted as its very starting point. Sacco’s work is analyzed here based
upon a study of some passages from Palestine, his most known and controversial book.
The middle 19th century’s illustrated journalism (mostly in Constatin Guys' work) and
comics reports (like those from Angelo Agostini) in the pre-printed photography era were
analyzed placing the comics journalism in a historical perspective. A variety of works by
other authors which were written right before or after Sacco’s are also studied, showing
that the comics journalism is still growing. Besides, I suggest the classic photo report to
be understood as a graphic-sequential narrative, that is, as having a comics' quality. As an
example, I analyze, among others, a photo report from O Cruzeiro magazine. The
photoromance – a comic story in which the narrative is made through photos, instead of
drawings – is also considered here as a possible journalistic tool, and some recent exam-
ples show that it has been tried for some time now. This study is concluded with the con-
sequences of the comics journalism both in the fields of comics and of journalism.
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Su m á r io
AN EXOS 1
I N T R O D U ÇÃ O
Todo mundo sabe muito bem que palavras escritas ferem e matam. Nos livros de ficção,
há sempre alguém mais feliz ou mais infeliz que a gente e as duas alternativas são igualmente
incômodas. Romances são feitos de palavras inventadas sobre pessoas inventadas, são deva-
neios da imaginação. E os livros de não-ficção nada mais fazem que aumentar ainda mais a
nossa angústia existencial. Neles, sabichões ficam chamando outros sabichões de idiotas. Li-
vros são maléficos para a sociedade porque deixam as pessoas infelizes e, portanto, devem ser
queimados. As idéias neles contidas devem ser destruídas a qualquer custo. Mas as histórias
em quadrinhos podem ser poupadas. Afinal, que mal elas podem fazer?
A situação acima – que é apresentada por Ray Bradbury em seu conto (que depois virou
um romance) Fahrenheit 451 – não é muito elogiosa ao quadrinho. No conto, que se passa em
um futuro não muito distante, todas as construções são à prova de fogo. Não há mais incên-
dios. A literatura, por seu turno, é proibida por ser considerada socialmente nociva. Grupos
subversivos, no entanto, guardam e divulgam esses livros. A função dos bombeiros no mundo
de Fahrenheit 451 não é mais a de apagar incêndios (pois esses não existem mais) mas a de
localizar e queimar livros para livrar o mundo de seu conteúdo incendiário.
Num universo onde obras capazes de fazer pensar acabam queimadas, ser poupado é
ser considerado, no mínimo, absolutamente inócuo. É preciso admitir que, por muito tempo,
isso não esteve muito longe da verdade, mesmo que uma verdade relativa. Durante décadas,
a grande maioria da produção de quadrinho era composta de obras para crianças ou adoles-
centes, com uma abordagem fortemente escapista e descolada da realidade. Não que não
houvesse histórias em quadrinhos profundas, provocativas ou socialmente relevantes. Mas
elas eram uma minoria quase invisível e, freqüentemente, eram ignoradas, negligenciadas
ou simplesmente desconhecidas da grande maioria das pessoas.
Escrita em 1953, a história de Bradbury foi filmada em 1966 por François Truffaut
(com roteiro seu e de Jean-Louis Richard). Na época, o quadrinho americano vivia sob o
controle imperativo do chamado “código de ética”, uma censura interna auto-imposta
pelas próprias editoras com o intuito de banir de suas páginas quaisquer idéias que pu-
dessem ser consideradas socialmente nocivas. Desde então, muita coisa mudou no cam-
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A T EO R I A ( N A P R Á T I CA , A I N D A U M P R O B L EM A )
a música ou a televisão, têm não somente uma vasta e reconhecida bibliografia como
também receberam uma atenção especial de grandes pensadores que, de modo geral ou
específico, se dedicaram a discuti-los. Em 1970, na introdução ao livro Shazam!, Luis
Gasca (1977, p. 9) alertava para a escassez de títulos em teoria de quadrinho dizendo,
não sem ironia, que “a bibliografia sobre o tema é tão volumosa quanto conseqüente em
suas lacunas, quanto minguada em seus temas, quanto limitada em seus alcances”.
É bem verdade que a situação é melhor hoje que há trinta anos. Uma boa biblioteca
de teoria de quadrinho já pode contar não somente com enciclopédias, mas também com
livros historiográficos, documentais, análises sociológicas, semióticas, temáticas, estu-
dos de gêneros, comparação entre linguagens e outras variantes teóricas. Alguns desses
livros alcançaram a condição de verdadeiros clássicos. Outros nunca deixaram de ser
polêmicos. Mas também é necessário admitir-se que essa bibliografia, por melhor que
seja, ainda é tímida e limitada diante da base teórica de outras áreas da comunicação.
Além disso, a grande maioria dessas obras é de conhecimento praticamente restrito aos
próprios estudiosos da área de quadrinho e algumas nem isso.
Como conseqüência, a história em quadrinhos acaba sendo freqüentemente tratada pela
academia como uma espécie de filha bastarda, sem pai (re)conhecido cujo destino, na maio-
ria das vezes, é o de ser analisada, destrinchada e dissecada com ferramentas de outras á-
reas. É comum encontrarem-se estudos que praticamente se limitam a aplicar ao objeto
quadrinho teorias alienígenas, isto é, teorias oriundas de outras áreas e que não foram for-
matadas para tratar com eficiência de suas especificidades gráfico-seqüenciais. Algumas
vezes, os resultados são até mesmo interessantes, mas fatalmente restritivos. Uma aplicação
dessas teorias alienígenas sobre a linguagem do quadrinho nos fala muito mais do alcance
do pensamento dessas áreas do que do quadrinho propriamente dito.
Estudos desse tipo certamente são importantes e necessários, mas não podem
nunca ignorar a teoria de quadrinho existente, pois esse tipo de abordagem tende a
atuar como uma espécie peneira que só retém o que cabe na teoria escolhida, dei-
xando passar (e, conseqüentemente, ignorando) tudo o que essa teoria não explica.
Freqüentemente, é no cascalho abandonado pelas outras áreas teóricas que vão parar
os detalhes mais importantes e relevantes da linguagem do quadrinho, pois é justa-
mente aí que reside sua especificidade.
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A teoria de quadrinho não é realmente uma área nova, mas apenas uma ilustre des-
conhecida. Na primeira metade do Século XX, as abordagens sociológicas e psiquiátri-
cas do quadrinho costumavam culpá-los por alguns males da nossa sociedade, mas as
coisas mudaram a partir das décadas de 1950-60, quando tanto teóricos gerais da comu-
nicação quanto especialistas em quadrinho passaram a produzir de modo mais intenso a
bibliografia específica da área. Os estudos do semiólogo italiano Umberto Eco sobre
Super-Homem (escrito em 1962), Charlie Brown (1963) e Steve Canyon (1964) – com-
pilados no livro Apocalípticos e integrados – já são relativamente bem conhecidos. As
pesquisas do austro-britânico Ernst Gombrich – um dos maiores historiadores da arte
em atividade no Século XX – sobre caricaturas, cartuns, representações fisionômicas e
manuais pictóricos de instruções, por outro lado, são menos divulgadas mas imprescin-
díveis para uma correta compreensão da linguagem do quadrinho e do cartum. Neste
meio século, muitas obras importantes foram lançadas.
Contudo, na primeira metade do Século XIX, o franco-suíço Rudolph Töpffer já produ-
zia teoria de quadrinho de altíssima qualidade, com uma clarividência singular consideran-
do-se que, ao mesmo tempo, ele estava inventando o quadrinho moderno. Há uma diferença
muito marcante entre as técnicas empregadas até o final do Século XVIII e o que fazemos
hoje e o marco dessa transformação são as próprias HQs de Rudolph Töpffer. Para quem se
interessa pela gênese da linguagem do quadrinho moderno, o livro Töpffer – l’invention de
la bande dessinée, de Thierry Groensteen e Benoît Peeters, é fundamental não somente por
analisar sua produção de quadrinho mas também por mostrar a competência de seus estudos
como teórico. Assim, seguindo essa nova diretriz, adotamos a terminologia ‘quadrinho mo-
derno’ para nos referirmos às narrativas gráfico-seqüenciais posteriores a Töpffer. As lições
encontradas em sua produção teórica são mais profundas e atuais que muitas ‘descobertas’
recentes e, se ainda nos surpreendemos com a clareza de seu pensamento, isso apenas revela
o tamanho de nossa ignorância.
Na presente dissertação, tentei adotar como postura e desafio a meta de utilizar prefe-
rencialmente a teoria de quadrinho existente, recorrendo a teorias alienígenas apenas como
suporte auxiliar. Neste sentido, nunca será demais ressaltar a importância da teoria de qua-
drinho brasileira, sobretudo das obras de Moacy Cirne, Álvaro de Moya e Sonia Luyten,
que há mais de trinta anos mantêm uma produção contínua e consistente. A obra de Cirne é
mais focada na construção de uma teoria da linguagem do quadrinho, com um claro com-
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1
No original: “ La bande dessinée doit - elle nécessairem ent êt re im prim ée, déveloper un récit ,
présent er des personages en act ion, et c ?”
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mento do quadrinho como linguagem. Muitas das definições de outros autores, sobretu-
do dos anos 1960 a 80, conceituavam quadrinho fundamentalmente como um fenômeno
de comunicação de massa. Considero que a definição de McCloud, ao focar na lingua-
gem, é um verdadeiro salto evolucionário na teoria de quadrinho. Seu livro, além de
outras observações sagazes e surpreendentes, apresenta ainda um conjunto de ferramen-
tas para análises mais objetivas das HQs. Só o seu gráfico de transições de quadros já
seria capaz de inscrever seu nome com destaque na história da teoria de quadrinho. Mas
ele foi além e ainda construiu o livro todo como uma história em quadrinhos, demons-
trando que gibi não serve só para contar histórias.
Além de sua definição de quadrinho, as idéias de McCloud também me serviram de
guia em diversos pontos, consciente ou inconscientemente. Quando falo da relação entre
o traço realista das HQs de aventura e o traço cartunístico das histórias de humor, por
exemplo, também estou utilizando suas idéias. Mas o impacto de sua obra em meu pen-
samento acontece mesmo onde não é citado. Lê-lo pela primeira vez foi uma surpresa e
um choque. Uma agradável surpresa ao encontrar outro teórico que via o quadrinho do
modo como eu achava que deveria ser visto. Mas um choque ao perceber que suas idéi-
as e seu ferramental estavam anos-luz à frente das referências com as quais os outros
teóricos trabalhavam.
A atual fase produtiva da teoria de quadrinho é, sem dúvidas, um reflexo saudável
das grandes transformações pelas quais têm passado as HQs nas últimas duas décadas.
Mas, como manda a lógica, a produção de quadrinho evolui mais rápido que a teoria.
Apesar do grande impacto causado pelas reportagens em quadrinhos de Joe Sacco, não
existe ainda uma teoria consistente sobre o tema. Tive então que trabalhar com referên-
cias menos nobres, como orelhas de livros, resenhas, reportagens e entrevistas. Também
tive que contar aqui com um pouco de acaso, uma certa intuição e bastante paciência.
A paciência: Mesmo antes de conhecer o trabalho de Sacco, eu já tinha o (dispendi-
oso) hábito de adquirir as obras de quadrinho que, por alguma razão, faziam coisas dife-
rentes, insólitas. Enquanto ia definindo mais claramente minha dissertação, eu também
ia vasculhando meu acervo e descobrindo que muitas coisas correlatas estavam sendo
experimentadas por outros autores. Esse garimpo estendeu-se também para algumas
bibliotecas e para a internet, além do acervo de amigos. O fator complicador é que, co-
mo o jornalismo em quadrinhos é um campo teórico só delimitado recentemente, seu
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conteúdo ainda é tênue e está disperso em incontáveis micro-referências. Ainda está por
ser feito um trabalho de sistematização desse conhecimento.
A intuição: Diante de um material tão misterioso e indistinto, tive que buscar algo que
me orientasse. Nesse caminho de idas e vindas de camundongo em labirinto, passei por
diferentes trilhas. Algumas conduziam a becos sem saída, enquanto outras desembocavam
em campos tão vastos que extrapolavam completamente os limites possíveis de uma disser-
tação de mestrado. Mas me ajudou bastante uma certa obsessão hiper-interpretativa, que me
leva automaticamente a buscar padrões de comportamento nas coisas mais (aparentemente)
aleatórias. Os psicólogos classificam esse comportamento compulsivo como paranóia, mas
vamos chamá-lo aqui de intuição, o que é mais discreto.
O acaso: O contato com algumas disciplinas da pós-graduação da ECO, ou mais preci-
samente com seus professores e alunos, foi fundamental para que minha pesquisa chegasse
a esta conformação final. Em alguns casos, esse contato foi agradavelmente gratificante e
muitas partes desta dissertação foram diretamente desenvolvidas como trabalhos das disci-
plinas. Mas mesmo nos momentos em que essa integração parecia difícil, os questionamen-
tos foram fundamentais e indispensáveis para que eu revisse ou reafirmasse as minhas posi-
ções. Obras fundamentais para minha pesquisa, como o livreto Sobre a modernidade, de
Baudelaire, me foram inicialmente apresentadas nessas disciplinas.
ES T R U T U R A D A D I S S ER T A ÇÃ O
Inicio esta análise do jornalismo em quadrinhos pela obra de Joe Sacco, que, de todos
os quadrinistas que se aventuraram pelo gênero, ainda é, sem dúvidas, o mais importante.
Seus livros conjugam grandes qualidades tanto como história em quadrinhos quanto como
reportagem. Sacco é o autor mais lido, o mais comentado e, sobretudo, o mais comprometi-
do com a idéia de reportagens em quadrinhos, que constituem o veio central de sua produ-
ção e não apenas uma experimentação eventual. O primeiro capítulo da presente dissertação
é dedicado a esse desbravador, situando-o também em relação à história do jornalismo ilus-
trado. No segundo capítulo, analiso outros exemplos de histórias em quadrinhos que tam-
bém podem ser classificadas como peças de jornalismo. O terceiro capítulo é dedicado à
fotorreportagem, propondo que ela também pode ser entendida como uma história em qua-
drinhos devido à natureza gráfico-seqüencial de sua estrutura.
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Q U ES T Ã O CEN T R A L
Dentre as várias abordagens possíveis, optei por estudar o comportamento dos recursos
técnicos e formais da HQ quando empregados a serviço do jornalismo. Esses recursos são
ferramentas poderosas que têm produzido excelentes resultados na construção de reporta-
gens em quadrinhos. Meu objetivo na presente dissertação não é o de avaliar as qualidades
jornalísticas das obras estudadas e sim o de demonstrar que as histórias em quadrinhos po-
dem ser utilizadas como suporte para reportagens.
M ET O D O L O G I A
É fato que, mesmo com os progressos, os preconceitos contra o quadrinho ainda são
muitos e ainda são fortes – isso já se tornou um chavão que, por si só, não leva a lugar
algum. Para romper essa barreira, talvez a argumentação teórica pura não seja o cami-
nho mais interessante. A linguagem do quadrinho já é intensamente utilizada para fina-
lidades muito mais amplas e abrangentes que a produção puramente comercial que en-
contramos nos gibis infantis e de super-heróis. Mais importante que simplesmente dizer
que o quadrinho pode ser mais bem utilizado é mostrar que essa utilização, de fato, já
acontece. Optei, aqui, por calçar minha argumentação fundamentalmente sobre exemplos
extraídos de HQs e fotorreportagens. Minhas análises das obras selecionadas têm por finali-
dade ir compondo essa argumentação. Na falta de grandes referências teóricas sobre o jor-
nalismo em quadrinhos, esse me pareceu ser um dos poucos caminhos viáveis. Esses exem-
plos envolvem obras de alta qualidade e, em alguns casos, fartamente premiadas. Uma pre-
miação não é, por si só, uma garantia absoluta, mas uma grande quantidade de prêmios con-
feridos a boa parte das obras de um gênero ainda tão incipiente quanto o jornalismo em
quadrinhos é certamente algo para se refletir.
A linha condutora de meu pensamento nesta dissertação foi, portanto, a argumenta-
ção extraída da exemplificação. Para tanto, não uso uma metodologia única e padrão nas
diversas análises. Ao contrário, vou variando pouco a pouco as abordagens e as ferra-
mentas de análise para extrair argumentos variados e complementares e, com eles, ir
compondo minha linha de raciocínio. Dedico uma atenção especial à obra de Sacco, mas
as conclusões sobre sua obra também valem, em maior ou menor escala, para outras. Espero
que as descrições e análises não tenham resultado desnecessariamente longas.
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Nas análises dos exemplos, tento extrair, tanto quanto possível, mais informações ou
sentido da estrutura visual que do texto verbal. É necessário lembrar que podemos ter HQs
com imagem e sem texto, mas nunca HQs com texto e sem imagens. Assim, se isso é da
natureza das histórias em quadrinhos, nada mais natural que também seja da natureza da
teoria de quadrinho. A análise do discurso verbal vem de uma longa tradição e desenvol-
veu já uma série de ferramentas eficientes. A análise do discurso visual, por outro lado,
ainda é um campo de divergências mais acentuadas. Há já diversas ferramentas de aná-
lise, mas a mais importante ainda é o velho bom senso que, segundo Descartes, é das
coisas do mundo a mais bem distribuída. Assim, mesmo que fossem possíveis análises
mais aprofundadas e técnicas baseadas na porção verbal das histórias em quadrinhos,
resisti a essa tentação para não colocar em risco meu propósito.
Q U EST Õ ES P A R A O FU T U R O
I N S E R ÇÃ O N O P R O G R A M A D A E CO
As histórias em quadrinhos são tanto uma linguagem quanto uma mídia. Suas espe-
cificidades como linguagem clamam por uma área de estudo específica no seio acadê-
mico da comunicação, mas esse ideal – já atingido pelo cinema, por exemplo – ainda
parece um tanto distante para o quadrinho. Suas especificidades midiáticas também a
inserem no campo da comunicação, tanto pelo aspecto de comunicação de massa de
uma grande parcela da produção quadrinística quanto pelas possibilidades de interseção
com outras linguagens, como literatura, cinema, artes gráficas e o próprio jornalismo.
Por essas razões, considero, por princípio, que a teoria de quadrinhos encontra no cam-
po da comunicação seu verdadeiro lugar de pertencimento.
No caso específico da presente dissertação, esses fatores são ainda reforçados pela
escolha do tema – o jornalismo em quadrinhos – e pela discussão dos aspectos gráfi-
co-seqüenciais do jornalismo ilustrado e da fotorreportagem. Pelo grande destaque da
ECO/UFRJ no cenário acadêmico nacional e pela abertura de seu programa para abor-
dagens transdisciplinares, considero uma honra e uma responsabilidade desenvolver
aqui este trabalho.
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1 – JO E SA CCO
1 . 1 – A G U E R R A CO M O N O T Í CI A
O jornalismo vive de notícias. E poucas coisas rendem mais notícias que guerras
e conflitos neste mundo belicoso em que vivemos. Diante da possibilidade de ser-
mos direta ou indiretamente atingidos pela brutalidade da guerra, a busca de infor-
mações atualizadas é quase uma necessidade vital. Muita gente ainda se lembra cla-
ramente da ansiedade coletiva que foi a Guerra das Malvinas, entre a Argentina e a
Inglaterra, que teve palco nas vizinhanças da costa brasileira. Nossos navios de guer-
ra foram deslocados para o litoral gaúcho em estado de prontidão e a sensação cole-
tiva era a da iminência da entrada do Brasil no conflito. Todos os dias, os jornais
(impressos e televisivos) eram escrutinados atentamente. Será que foi hoje? Não.
Que alívio. Será que vai ser amanhã?
E na era do império da visualidade, as notícias de guerra levam inexoravelmente às
imagens de guerra. Elas sempre estiveram presentes no imaginário coletivo, das fotogra-
fias de James Robertson na Guerra da Criméia (ainda em meados do Séc. XIX) às cenas
do conflito que será mostrado hoje à noite no Jornal Nacional (certamente algum con-
flito será mostrado, desde que você não esteja lendo isso em um domingo). Ainda é em-
blemática a famosa fotografia de Robert Capa na Guerra Civil Espanhola (Figura 1) que
mostra um solitário soldado republicano de pé sobre uma colina. Seus joelhos estão do-
brando-se e o corpo, caindo para trás. A cabeça pende um pouco de lado. Seu braço
direito está estendido para trás e seu rifle está praticamente solto na mão. Pela primeira
vez no fotojornalismo, estava-se diante do momento exato da morte de um soldado.
Tudo cai, tudo tomba, para sempre congelado no tempo. E, na fotografia, a morte nunca
termina de chegar. Durante muito tempo se discutiu se a fotografia seria verdadeira ou
posada. Mas esse dado é irrelevante diante do grande impacto que ela causou. Verdadei-
ra ou falsa, seu impacto foi real e permanente.
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Nosso novo milênio recebeu seu batismo de fogo com as imagens dos atentados ao
World Trade Center 2 e ao Pentágono 3. Semanas antes, os talibãs tinham surpreendido e
chocado o mundo ao explodir duas centenárias imagens de Buda em pé esculpidas em
rocha viva nas montanhas do Afeganistão. Duas esculturas, duas cidades americanas.
Duas torres em Nova Iorque, dois alvos em Washington. Iconoclastia milimetricamente
calculada. Mas uma iconoclastia que, contraditoriamente, se vale da imagem para ope-
rar. Às 8:45 da manhã (hora local), o primeiro avião choca-se contra uma das torres
do World Trade Center, um dos mais conhecidos cartões postais da Big Apple. Sur-
presa absoluta e estarrecedora, a imagem domina imediatamente os telejornais de
todo o mundo (literalmente). Mas, mal sabíamos nós, aquela torre em chamas era
apenas para estabelecer a audiência. O verdadeiro show ainda estava para começar: a
exibição ao vivo do segundo avião chocando-se, 21 minutos depois, contra a outra
torre (Figura 2). Uma hora depois, o desabamento das duas torres. No fim, os icono-
clastas tinham produzido o mais aterrador show de imagens já apresentado ao vivo e
em escala mundial. Os destruidores de imagens fabricaram as imagens que ficarão
para sempre na memória de todos os que passaram pela frente de uma televisão na-
quele 11 de setembro. Depois disso, a guerra.
Muitos jornalistas se especializaram na cobertura de conflitos internacionais. O ne-
ozelandês naturalizado americano Peter Arnet, por exemplo, tornou-se mundialmente
conhecido por sua cobertura da 1ª Guerra do Golfo pela rede de tevê CNN, em 1991,
quando foi o único jornalista a transmitir o bombardeio de Bagdá pelos americanos. Ele
tinha ganho um Prêmio Pulitzer em 1966 por sua cobertura na Guerra do Vietnã e vol-
tou a ser notícia em 2003, na 2ª Guerra do Golfo (chamada eufemisticamente de Guerra
do Iraque 4), quando concedeu uma entrevista para a televisão iraquiana fazendo revela-
ções que causaram mal estar no povo e no governo americano. Esse é o caso de um jor-
nalista que se destacou a ponto de parar do outro lado da notícia.
2
Conj unto de edifícios com erciais que se localizava ao sul da ilha de Manhattan, Nova I orque.
3
Edifício-sede da Secretaria da Defesa dos Estados Unidos, em Washington
4
A (1ª ) Guerra do Golfo foi em preendida em 1991 pelos Estados Unidos, então sob o governo do
presidente George Bush, contra o I raque e seu presidente Saddam Hussein por este contrariar os
interesses am ericanos na região do Golfo Pérsico, um dos m aiores m ananciais m undiais de pe-
tróleo. A dita Guerra do I raque foi em preendida a partir de 2003 pelos Estados Unidos, agora sob
o governo do presidente George W. Bush (filho), contra o I raque e seu presidente Saddam Hus-
sein por este contrariar os interesses am ericanos na região do Golfo Pérsico. Prefiro cham ar a
14
Guerra do I raque de 2ª Guerra do Golfo por acreditar que se trata de um a segunda versão do
m esm o conflito ou, m ais precisam ente, de um a retom ada do m esm o.
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5
Os term os técnicos específicos dos quadrinhos estão listados no glossário ao fim da dissertação.
6
Quando se descrev e ou analisa um a hist ória em quadrinhos, seus quadros são indicados
por um núm ero que corr esponde a sua ordem de leit ura. Salvo indicações expr essas em
cont rário, ela é fundam ent alm ent e a m esm a de um t ext o escrit o sobre um a página: no oci-
dent e, é da esquer da par a a direit a form ando linhas horizont ais que se sucedem de cim a
para baixo. Assim o quadro 1 inicia- se no cant o superior esquerdo, o 2 segue a or dem des-
crit a acim a e cont inua- se assim at é o final da página, no cant o inferior esquerdo. Convém
lem brar que os elem ent os int ernos de um quadro, sobret udo os t ext uais, t am bém t endem a
ser lidos nessa ordem .
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1 . 2 . 1 – Le m b r e - se d e m i m
serviência de Sacco ao ‘jornalismo de verdade’, ela nos revela, ao contrário, que o pro-
cesso de leitura de uma fotorreportagem pode ser bastante semelhante ao de uma histó-
ria em quadrinhos. Seu planejamento rigoroso é quase uma tese neste sentido. O primei-
ro quadro, com recordatório e balões, faz com que o leitor passe para o corpo textual da
matéria mantendo a sensação inicial da leitura de uma HQ. O texto é planejado para tirar
proveito das figuras que o acompanham, numa integração palavra-imagem bastante perti-
nente para uma reportagem dentro de uma revista em quadrinhos. A presença de uma dupla
de redator e fotógrafo (palavra e imagem) é até mesmo simbólica, sobretudo por Sacco fun-
dir depois as duas funções ao criar sua ‘fotorreportagem’ com desenhos no lugar das fotos.
As imagens subjetivas também simulam esse olhar da câmera fotográfica, reforçando a
relação. Nesta seqüência, Sacco nos diz claramente que nós estamos sendo apresentados à
Palestina que seus olhos presenciaram. Ele nos empresta seus olhos.
A representação do olhar do autor como o olhar do leitor é ainda manifesto em um deta-
lhe discreto porém marcante: em nenhum momento de Palestina, Sacco desenha os próprios
olhos. Ele está sempre com seus óculos de grau transparentes, mas eles são sempre desenha-
dos brancos, vazios, vazados como uma máscara de papelão (Figura 3, Figura 8 e Figura 12).
Quando outros personagens são mostrados com óculos, vemos seus olhos – como na página
135 (Figura 11) – mostrando claramente que esse recurso foi utilizado de maneira diferencia-
da e proposital. Este auto-retrato sem olhos tornou-se uma de suas ‘marcas registradas’ e foi
repetido exatamente do mesmo modo no livro-reportagem Gorazde.
1 . 2 . 2 – Pr e ssã o m od e r a d a
O capítulo Pressão moderada – parte 2 (Figura 12 a Figura 23) tem uma quadriniza-
ção destoante do restante do livro. Os quadros são retangulares ou quadrados, não san-
grados, e o fundo das páginas (bordas e calhas 7) é preto. O traço é um pouco mais rea-
lista que de costume, com um enquadramento variando entre o plano americano, o plano
de detalhe e o enquadramento de corpo inteiro. A narrativa se dá em três níveis. No
primeiro, temos os recordatórios referentes à narrativa de Sacco, numa espécie de ‘con-
versa’ com o leitor. O segundo nível corresponde às imagens onde Sacco interage com
seu entrevistado, chamado Ghassan, e o terceiro nível mostra a narrativa propriamente
7
Vide glossário.
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mo quadro, o único da terceira linha, ocupa metade da página e mostra o único plano
aberto do episódio, com pessoas passeando despreocupadamente. Aparentemente, é um
dia calmo e tranqüilo de uma cidade qualquer: um executivo caminha com sua esposa,
vemos alguns homens com o tradicional kippah sobre a cabeça, dois judeus ortodoxos
passam com suas longas costeletas cacheadas, uma mãe caminha com seu bebê e, quase
displicente no centro do quadro, vemos um jovem com uma mochila em um ombro e
uma metralhadora no outro (um militar?). Esse jovem caminha sem causar espanto em
meio a pessoas habituadas a militares armados nas ruas, mas sua presença na composi-
ção é marcante, apesar de discreta. Sua cabeça é a mais elevada de todas (ainda que le-
vemente) e está no centro da perspectiva, exatamente sobre o ponto de fuga. Em seu ensaio
A perspectiva como forma simbólica (1986), o historiador da arte Erwin Panofsky propõe
que a perspectiva da pintura renascentista compunha muito mais que uma simples represen-
tação tridimensional do espaço, apontando também para uma concepção de mundo e para
estruturas sociais. Em A última ceia, afresco de Leonardo da Vinci, a cabeça de Cristo ocu-
pa o centro da perspectiva e toda a cena gravita ao seu redor. Como centro organizador do
espaço (físico e mental), o ponto de fuga representa, na Última ceia, uma metáfora da ver-
dade absoluta. A imagem final de Pressão moderada não é um quadro de Leonardo, mas
parece comungar com sua geometria metafísica.
O clima de placidez da cena faz um contraponto absoluto com a tensão progressiva do
resto da narrativa, numa espécie de anticlímax aliviador. Sabiamente, Sacco não retorna
nem ao primeiro nem ao segundo níveis da narrativa (Sacco narrador e Ghassan narrador),
encerrando-a com essas imagens mudas, porém, eloqüentes. O céu está limpo, mas há uma
tempestade gigantesca e trágica se formando por trás daquela aparente banalidade. Ao con-
cluir sem palavras, Sacco mostra confiar na capacidade discursiva da imagem.
A paginação de Sacco em Pressão moderada é extremamente competente no estabele-
cimento do ritmo da narrativa, ajudada por seu grande domínio no uso das elipses. A inser-
ção de quadros só com imagem, sem texto, além de estabelecer elipses mais dinâmicas,
também contribui na imposição de um ritmo mais fluido à narrativa, evitando o excesso de
texto escrito. E a inserção, digamos, casual das alucinações ao lado de Ghassan aprisionado
aumenta o clima de enlouquecimento lento, contínuo e progressivo. Mas sua resistência
quase resignada e a falta de provas contra ele impedem a narrativa de desaguar em um clí-
21
max trágico. No final das contas, essa passagem demonstra claramente que Sacco não se
ocupa do que pessoas fazem em uma guerra, mas do que uma guerra faz com as pessoas.
1 . 2 . 3 – Ca r a c t e r í s t i c a s g e r a i s
Para criar suas histórias em quadrinhos, Joe Sacco fez opções muito acertadas,
tanto graficamente quanto narrativamente. Algumas das principais características de
seu trabalho são:
♦ N a r r a t i v a p r i n ci p a l e m p r i m e i r a p e sso a
Os quadrinhos-reportagem de Sacco começam e são conduzidos através do relato de
sua própria presença nos locais, conversando com as pessoas, um procedimento condizen-
te com a reportagem-depoimento. Essa narrativa em primeira pessoa ajuda a diminuir
uma possível solenidade imposta pelos temas espinhosos que escolhe, além de criar uma
espécie de pacto com o leitor. A narrativa na primeira pessoa é uma característica da parte
verbal da história em quadrinhos de Sacco, mas que tem uma contrapartida visual quando
ele também se desenha como um dos personagens em cena: um repórter-narrador.
A subjetividade naturalmente decorrente dessa postura alterna-se freqüentemente com a
objetividade de sua acurada pesquisa e levantamento de dados. As passagens menos quadri-
nísticas, mais dissertativas ou de informações históricas, podem ter no repórter-narrador um
eficiente elo de ligação com o restante da história em quadrinhos. Este personagem-repórter-
narrador e seu discurso em primeira pessoa também fazem com que os depoimentos de seus
entrevistados encontrem-se em perfeita harmonia com o todo da obra.
♦ A u t o co n sci ê n ci a d o n a r r a d o r
O personagem-narrador de Joe Sacco tem consciência clara de que está em uma repor-
tagem e em uma história em quadrinhos, criando um jogo metalingüístico que estabelece
uma espécie de cumplicidade com o leitor. Os palestinos sabiam que estavam sendo entre-
vistados por um repórter, o personagem-narrador sabe que está em uma HQ e o leitor sabe
que está lendo um relato pessoal e subjetivo.
♦ T o m co n f e ssi o n a l
Sacco segue a trilha do quadrinho alternativo dos anos 1960-70, passando pelas confis-
sões autobiográficas indiscretas de Robert Crumb e pela crônica do cotidiano pessoal de
Harvey Pekar. Nessas histórias, os autores costumam confessar suas fraquezas e limitações,
22
♦ T r a ço p r o p o si t a l m e n t e d e scu i d a d o
O estilo de desenho de Joe Sacco, com seu traço esquemático e suas hachuras dese-
nhadas a mão, também remonta diretamente ao quadrinho underground, sobretudo ao
trabalho de Robert Crumb, reconhecido como o ‘papa’ do gênero. Este estilo impôs-se
historicamente como uma espécie de grito de liberdade em relação ao quadrinho ‘bem-
acabado’ da produção mais comercial, além de aproximar-se também da charge de jornal,
automaticamente associada a um comentário mais crítico do cotidiano.
Outra conotação deste traço descuidado é o de anotação pessoal ou escrita íntima,
como uma anotação de diário. Um desenho mais elaborado, mais acadêmico, remeteria
à idéia de material pronto para ser apresentado aos outros.
♦ U so se l e t i v o d a s m e t á f o r a s v i su a i s q u a d r i n í st i ca s
Em Palestina, Joe Sacco não utiliza onomatopéias gráficas diretamente sobre as ima-
gens. Elas são empregadas como palavras contidas em balões ou recordatórios. Os balões
de pensamento também não são utilizados. O único personagem com monólogos interiores
é o próprio Sacco, mas ele os utiliza nos recordatórios. A ausência de balões de pensamento
contribui muito para a sensação de objetividade alcançada pela narrativa, pois está em per-
feita harmonia com o fato de que Sacco nos conta unicamente o que viu ou ouviu.
Outras metáforas visuais, contudo, são utilizadas com relativa freqüência, como linhas
de movimento, traços para representar som alto, gotas de suor para representar tensão, notas
musicais para representar música, halo branco ao redor de figuras em destaque ou poeira
para veículos em movimento.
♦ I n t e g r a çã o o r g â n i ca d o s e l e m e n t o s d a p á g i n a
Os diversos quadros, balões e recordatórios de cada página são planejados de modo
a compor um todo orgânico e integrado. Esse princípio é comum às boas HQs, mas em
Palestina esse recurso é mais acentuado que o comum. Freqüentemente os quadros se
sobrepõem uns aos outros ou formam encaixes irregulares e assimétricos. Alguns recor-
datórios são longos e formam um bloco maciço, mas muitas vezes eles são picotados em
pequenos recordatórios menores que se esparramam sinuosamente pela página, extrapo-
23
♦ U so d o p r e t o e b r a n co e m d e t r i m e n t o d a co r
HQs em preto e branco são mais baratas e rápidas de ser produzidas. Isso confere mais
autonomia e poder de decisão ao autor, pois lhe permite afastar-se bastante da linha de mon-
tagem dos quadrinhos das grandes editoras. Mas o mais importante, no caso de Sacco, é o
impacto psicológico do preto e branco, também buscado pela fotografia e pelo cinema
quando abandonam a cor. Alguém já disse que a realidade é colorida, mas o preto e branco
é mais realista. Apesar dos avanços da tecnologia, grandes fotógrafos, como Cartier Bres-
son ou Sebastião Salgado, e grandes cineastas, como Woody Allen e Steven Spielberg, usa-
ram (ou usam) o preto e branco como uma opção estético-formal.
A cor é uma informação que não costuma ser desconsiderada quando a finalidade da
imagem é mais científica, como por exemplo no cine-fotodocumentarismo geográfico ou
biológico. Entretanto, em alguns casos a cor poderia ser dispersiva ou levar a reações emo-
cionais indesejadas. Ao filmar Psicose, Alfred Hitchcock optou pela película em preto e
branco para amenizar o choque que causaria na platéia do período a cena do assassinato no
banheiro e evitar que ela resultasse simplesmente grosseira. É também o que se dá nas re-
portagens de Sacco. As cidades destruídas, pessoas feridas ou assassinadas e corpos em
decomposição ocasionalmente mostrados são claros o suficiente para indignar o leitor, po-
rém discretos o suficiente para não afetar demasiadamente sua capacidade de raciocínio.
♦ P e r so n a g e n s l i g e i r a m e n t e ca r i ca t u r a i s e m u m ce n á r i o r e a l i st a
Scott McCloud, em seu livro Desvendando os quadrinhos (1995, p. 9), propõe que
os desenhos realistas correspondem a uma visão externa, física do mundo, enquanto um
traço caricatural está a serviço de uma visão interior, subjetiva, psicológica. As HQs de
aventura, que se atêm ao ato heróico visto de fora, privilegiam o traço realista enquanto
as tirinhas de humor, ao mostrarem as dúvidas interiores de seus anti-heróis, casam-se
melhor com um traço mais estilizado, cartunístico. O traço de Sacco é mais realista nos
cenários e ligeiramente caricatural no tratamento dos personagens, conforme uma tradi-
ção que também engloba desde Tintin, de Hergé, até o quadrinho japonês. Seguindo o
24
mesmo pensamento, o traço dos personagens é mais realista nas cenas dramáticas e um
pouco mais caricatural nas cenas de intimidade ou de descontração.
O aspecto caricatural dos personagens, contudo, é um pouco maior em Palestina e
foi ligeiramente amenizado em Gorazde. Isto pode ser devido a alguma diferença de
postura em relação aos dois conflitos (Sacco admite ter estabelecido uma grande rela-
ção afetiva com alguns moradores de Gorazde) ou pode ser uma simples evolução
técnica de seu estilo de desenho.
♦ A u t o - r e p r e se n t a çã o m a i s ca r i ca t u r a l q u e o s o u t r o s p e r so n a g e n s
Como uma espécie de derivação do item anterior, o traço com o qual Sacco representa
a si próprio é sempre mais caricatural que o de todos os outros personagens. Como conse-
qüência, os leitores identificam-se instintivamente com a subjetividade do personagem-
repórter-narrador. A característica gráfica mais marcante de sua auto-representação é o fato
de ele estar sempre de óculos, com as lentes formando um vazio sem detalhes: seus olhos
nunca são desenhados. Quando Sacco é mostrado de perfil, a região dos olhos é simples-
mente sombreada com hachuras. O sentido talvez seja o de dizer que seus olhos são os o-
lhos do leitor. Seu rosto é como uma máscara de olhos vazados que os leitores vestem. Seus
olhos – que nunca são vistos – são os olhos através dos quais o leitor tudo vê.
Todos os itens acima convergem para a criação dessa aura de ‘realismo humanista’
que tem se mostrado extremamente eficiente no jornalismo em quadrinhos de Joe Sac-
co. Esses itens não constituem uma fórmula padrão, mas tão somente uma entre tantas
combinações possíveis dentre as imensas possibilidades do quadrinho. Como veremos
no capítulo 2, outros autores que também enveredaram pelo jornalismo em quadrinhos
fizeram opções estéticas diferentes, com objetivos e resultados diferentes. Fax from Sa-
rajevo utiliza com eficiência os recursos clássicos do quadrinho industrial americano. Fla-
shpoint tem um traço acadêmico e foi colorido a tinta. Shadowplay é expressionis-
ta/surrealista, juntando arte pintada, desenho fotocópia e colagem.
As alternativas gráficas a serviço de uma reportagem em quadrinhos são as mesmas
de qualquer HQ: uso de cor ou PB; arte pintada; coloração a mão; coloração por compu-
tador; arte em linhas sem hachuras; diferentes estilos de traço, seja mais caricatural,
mais realista ou até mesmo expressionista; narrativa em primeira ou em terceira pessoa;
texto com ou sem recordatórios, com narrativa mais centrada na ação ou nos diálogos;
25
1 . 3 – O F A L CÃ O M A L T Ê S
miséria, fome, egoísmo, luta pela sobrevivência, roubos, traições, corpos apodrecendo vi-
vos, doenças químicas, pragas e até o nascimento de uma nova vida em meio ao caos. Pu-
blicada no Japão em 1972-73, a obra é considerada um dos mais contundentes libelos contra
a guerra, tendo vendido mais de cinco milhões de exemplares e recebendo versões para
cinema, desenho animado e ópera. Em 1976 foi criado o Projeto Gen, uma instituição sem
fins lucrativos, especialmente para cuidar de sua publicação em outros países. No Brasil,
Gen saiu em quatro volumes entre 1999 e 2001 pela Conrad Livros.
Assim como nas artes, no cinema, na literatura e no jornalismo, a guerra foi tema de
grandes obras também no quadrinho, ainda que os mais céticos prefiram não acreditar
que isso seja possível. Não creio que uma linguagem artística seja por si só superior ou
inferior a outra. Toda arte tem suas obras primas, mas na grande maioria dos casos é a
mediocridade que impera. Em qualquer área. Para cada Machado de Assis ou cada Ing-
mar Bergman que surge, aparecem centenas ou milhares de autores que não fazem a menor
diferença. No final das contas, não é a suposta superioridade da literatura, por exemplo, que
importa, e sim as qualidades intrínsecas dessa ou daquela obra específica. Se alguns cineas-
tas do início do Século XX não tivessem acreditado nas potencialidades de sua arte, se não
tivessem ousado romper os limites pré-estabelecidos, muito provavelmente o cinema ainda
seria considerado apenas uma diversão barata para a ralé. Uma grande arte é feita de gran-
des obras. E há grandes obras em quadrinhos. Em meu artigo Guerra de papel, publicado
na revista Você/UFES (DUTRA, 1998, p. 32-35), eu defendia a idéia de que a capacidade
de produzir obras de alta qualidade com um tema tão espinhoso e delicado como a guerra
pode ser entendido como um forte indício da maturidade da linguagem do quadrinho. O
trabalho de Sacco é mais um argumento nesta linha de pensamento. E um dos bons.
Nascido na Ilha de Malta, Joe Sacco passou a infância na Austrália e se formou
em jornalismo nos Estados Unidos. Desde a universidade, já se interessava por qua-
drinho. Começou profissionalmente com HQs mais tradicionais, migrando depois
para temas autobiográficos. Uma de suas poucas experiências como jornalista foi em
uma revista de crítica de quadrinho, The Comics Journal. Após sair da revista, Sacco
vagou pela Europa durante quatro anos, enquanto publicava uma revista própria,
Yahoo, que durou seis números. Nessa revista, suas histórias autobiográficas foram
se impregnando de sua experiência de ‘cronista viajante’, ganhando aos poucos um
tom mais jornalístico. Sacco é, por definição, um cidadão do mundo. Mas podería-
27
mos dizer que ele é um maltês com olhos de falcão que consegue fazer emergir o
humano, mesmo em situações limite como a guerra. Sacco desenha histórias em
quadrinhos com temas jornalísticos ou autobiográficos. Ou ambos. Gosta de se de-
senhar com os lábios de Mick Jagger, seu ídolo.
1 . 3 . 1 – Cr o n o l o g i a b á s i c a
1 . 4 – S A CCO N A M Í D I A I M P R E S S A E D I G I T A L
internet mostrando o que jornalistas, críticos ou mesmo outros quadrinistas têm a dizer
sobre esse repórter/quadrinista e sua incomum cobertura de guerra.
Em sua resenha de dezembro de 2000 sobre Gorazde para The New York Times, o
jornalista David Rieff (2000) – que, assim como Sacco, também cobriu a guerra nos
Bálcãs – admite haver uma discrepância entre o cotidiano encontrado nos locais dos
conflitos e o que finalmente torna-se notícia, dizendo: “A Bósnia de Sacco é a mesma
que nós, que cobrimos o conflito, realmente vivemos dia-a-dia e não aquela que geral-
mente apresentávamos em nossas reportagens”.8 David Rieff é autor de Slaughterhouse:
Bosnia and the Failure of the West, entre outros livros.
Sacco tem uma sensibilidade acurada para as pequenas coisas do cotidiano local,
detalhes aos quais outros jornalistas não costumam dar muita importância. Contudo, ele
não se deixou seduzir cegamente por essa realidade corriqueira. Sua visão humanista, se
aplicada sem critérios ou medida, poderia fazer com que ele perdesse seu distanciamen-
to crítico e sua visão de conjunto. Muitas vezes, essa macro-visão e o detalhe sutil po-
dem ser difíceis de se conciliar. Mas para Rieff, Sacco “produziu um trabalho que, de
maneira improvável, consegue combinar uma rara percepção da sensação de estar na
própria Guerra da Bósnia com uma madura e ampla compreensão dos aspectos históri-
cos e políticos do conflito”. 9 (Op. cit.)
Ainda segundo Rieff, “o objetivo de Sacco é evocar uma realidade muito diferente e
muito mais visceral. [...] Dentre os inúmeros livros que apareceram sobre a Bósnia,
poucos disseram a verdade com mais coragem que Sacco”. 10 (Op. cit.) Esse desejo de
retratar a realidade de modo mais visceral que o jornalismo tradicional já tinha levado
os adeptos do new journalism a experimentar uma mistura de técnicas jornalísticas com
recursos literários, trazendo força dramática ao que antes soava frio e distanciado, mas...
O livro de Sacco não tem apenas força dramática. Mais crucialmente, ele tem a
emblemática qualidade de um bom romance histórico ou político. E, de certo
8
No original: “ Sacco's Bosnia is t he one t hat t hose of us who covered t he fight ing act ually
experienced day by day, rat her t han t he one we m ost ly report ed on.” ( RI EFF, 2000)
9
No original: “ Joe Sacco ( …) has produced a work t hat im probably m anages t o com bine rare
insight int o what t he war in Bosnia felt like on t he ground wit h a m at ure and nuanced polit i-
cal and hist orical underst anding of t he conflict .” ( Op. cit .)
10
No original: “ Sacco's aim is t o evoke a very different and far m ore visceral realit y. ( …) Of
t he m yriad books t hat have appeared about Bosnia, few have t old t he t rut h m ore bravely
t han Sacco's.” ( Op. cit .)
31
modo, ao menos nas mãos de Sacco, o formato de quadrinho revela ter vantagens
que nem o romance nem a prosa não-ficcional conseguem impor. Há um
dinâmico imediatismo aqui. 11 (Op. cit.)
Outro ponto bastante frisado é o fato de que, ao dar voz e visibilidade aos anônimos,
Sacco confere a suas reportagens um caráter claramente humanista. Celso Fonseca (2002),
em resenha para a IstoÉ, ressalta que “com a volúpia dos melhores repórteres, ele visita
hospitais, conversa com médicos e enfermeiras, relata grandes sofrimentos e reconstitui a
barbárie da guerra com incômodo realismo”. Na Folha de São Paulo, Marcelo Starobinas
(2001) disse que “os desenhos de Sacco, cujo olhar observador e satírico não deixa passar o
menor detalhe, revelam o lado humano da tragédia”.
E qual o grande segredo de suas reportagens humanistas? Para David Rieff (Op.
cit.), “a técnica de Sacco consiste em deixar falar e falar seus personagens, algumas
vezes sobre as coisas mais triviais. E ele ainda consegue fazer isso sem nos aborrecer ou
sem perder o fio de sua narrativa”. 12
Os elogios à obra de Sacco seguem em frente. Em matéria não assinada, o jornal
The Economist (2001) diz que “como uma fusão de quadrinho e reportagem, o todo de
Gorazde é maior que suas partes”. 13 Esse é um argumento muito recorrente nas análises
da obra de Sacco. Afinal, uma das maneiras mais fáceis de se tentar entender o insólito
jornalismo em quadrinhos é dividindo-o cartesianamente em suas partes mais facilmente
reconhecíveis: o quadrinho e o jornalismo.
Outra abordagem freqüente é a da divisão entre a palavra escrita e a imagem. Esses dois
elementos têm poderes diferentes e limitações também diversas. A história em quadrinhos é
uma das tantas linguagens que tira proveito da soma das qualidades dos dois, juntamente
com o cartaz, o design gráfico, o jornalismo impresso, a internet e muitos outros. Segundo
Teddy Jamieson (2002), do The Herald, “em sua combinação de palavras e imagens, Sacco
traz realidade imediata e humanidade ao relato de palestinos vivendo na Faixa de Gaza ou
11
No original: “ Sacco's book not only has dram at ic force. More crucially, it has t he em blem -
at ic qualit y of a good hist orical or polit ical novel. And in som e ways, at least in Sacco's
hands, t he com ic book form reveals it self t o have advant ages t hat neit her novels nor nonfic-
t ion prose can com m and. There is a cinem at ic im m ediacy here." ( Op. cit .)
12
No original: “ Sacco's t echnique is t o let his charact ers t alk and t alk, som et im es about t he
m ost t rivial t hings. Yet he does t his wit hout boring us or losing t he t hread of his narrat ive.”
( RI EFF: Op. cit .)
13
No original: “ As a fusion of com ics and report age, t he sum of ‘Safe Area Gorazde’ is
great er t han it s part s.” ( Pencil power in: The Econom ist , 2001)
32
de muçulmanos sob fogo na cidade de Gorazde”.14 Para Margo Jefferson (2002), do The
New York Times, “esta mídia não nos deixa separar ações, rostos, corpos ou cenas das pala-
vras que os explicam e amplificam”.15
Alguns críticos consideram as reportagens em quadrinhos de Sacco até mesmo su-
periores às reportagens tradicionais sobre o mesmo tema. Marcelo Starobinas (Op. cit.)
lembra que “Área de segurança Gorazde [...] tem sido apontado por acadêmicos e pela
imprensa americana como uma das melhores reportagens de guerra já publicadas”. Cel-
so Fonseca (Op. cit.) também relata que “pode ser exagero, mas Joe Sacco vem sendo
comparado a nomes de peso como Truman Capote e Tom Wolfe”.
Enquanto uns ficam no ‘ouvi dizer’, outros assumem mais abertamente suas posi-
ções. Margo Jefferson (Op. cit.) confessa: “Eu achava que tinha lido atentamente sobre a
guerra sérvia na Bósnia e sobre palestinos em acampamentos nos territórios ocupados
de Gaza e West Bank. Mas eu não havia percebido os fatos como percebi desta vez
[lendo Sacco]”. 16 E David Rieff (Op. cit.) pergunta-se, surpreso: “Quem teria imaginado
que a melhor evocação dramática da catástrofe bósnia viria a ser uma história em qua-
drinhos do tamanho de um livro?”17 Rieff ainda detalha mais as comparações, tentando
entender a especificidade do trabalho de Sacco. Para ele:
Certamente, nada do que ele reporta é novo. A difícil situação dos enclaves orientais –
Gorazde, Cerska, Zepa e Srebrenica – apareciam intensamente nas reportagens de
brilhantes correspondentes como Roy Gutman, John Burns, Allen Little, Christiane
Amanpour e Roger Cohen. Mas a evocação de como era a vida tinha necessariamente
que aparecer como fundo, como ‘cor’ em suas reportagens. Em forma de livro,
somente o incomparável Blood and Vengeance, de Chuck Sudetic, com seu obsessivo
e microcósmico foco sobre a arrasada Srebrenica, consegue manter a dimensão
humana no primeiro plano. Mas o livro de Sudetic era, acima de tudo, o esforço de um
dos mais bem informados repórteres da guerra em explicar a tragédia bósnia através do
14
No original: “ I n his com binat ion of words and pict ur es Sacco brings a real im m ediacy and
hum anit y t o his account s of t he experiences of Palest inians living in t he Gaza st rip, or Mus-
lim s under fire in t he t own of Gorazde.” ( JAMI ESON, 2002)
15
No original: “ This m edium will not let us separat e act ions, faces, bodies or scenes from t he
words t hat explain and am plify t hem .” ( JEFFERSON, 2002)
16
No original: “ I t hought I had read diligent ly about t he Serbian war on Bosnia and about
t he Palest inians in cam ps in t he occupied t errit ories of Gaza and t he West Bank. But I had
not felt t he fact s as I did t his t im e around.” ( JEFFERSON: Op. cit .)
33
1 . 5 – S A CCO N A O P I N I Ã O D E S A CCO
Bem, quantas pessoas vão ver isso? Na verdade, isso não vai acordar um monte de
gente. Mas, por outro lado, esta é a mídia em que eu trabalho e ela é uma ótima
maneira de alertar as pessoas. Quer isso aconteça ou não, ainda é um bom meio de
fazê-lo. 21 (SACCO apud: BENNETT, 1994)
É com esse misto de ceticismo e confiança que Sacco se posiciona diante do próprio
trabalho. Mesmo reconhecendo as limitações do formato ‘ingrato’ que escolheu, ele
17
No original: “ Who would have im agined t hat t he best dram at ic evocat ion of t he Bosnian
cat ast rophe would t urn out t o be a book- lengt h com ic st rip?” ( RI EFF: Op. cit .)
18
No original: “ Of course, none of what he reports is new. The plight of the eastern enclaves –
Gorazde, Cerska, Zepa and Srebrenica – figured hugely in the reporting of such brilliant corre-
spondents as Roy Gutm an, John Burns, Allen Little, Christiane Am anpour and Roger Cohen. But,
of necessity, the evocation of what life was like had to appear in their reporting principally as
backdrop, as ''color.'' I n book form , only Chuck Sudetic's incom parable ''Blood and Vengeance,''
with its painstaking, m icrocosm ic focus on doom ed Srebrenica, m anages to keep the hum an
dim ension in the foreground. But Sudetic's book was above all an effort by one of the war's m ost
knowledgeable reporters to explain the Bosnian tragedy through the fate of the eastern enclaves.
Sacco's goal is m ore to evoke reality in its lived details.” (RI EFF: Op. cit.)
19
No original: “ El trazo nervioso de Sacco consigue trasladarnos al interior del conflicto palestino
con un verism o poco usual, no ya en el cóm ic, sino en cualquier m edio de com unicación.” (AZPI -
ZARTE apud: CHAVES e SERRANO 2002)
20
No original: “ Anyone who begins reading Palest ine, wondering why anyone would t hink
com ics would be a suit able form for j ournalism , will finish it wondering why it isn't used
m ore.” ( JAMI ESON: Op. cit .)
21
No original: “Well, how m any people are going to see this? This isn't really going to wake up a
lot of people, but, on the other hand, this is the m edium I work in, and it is a very good way of
alerting people. Whether it does or not, it's actually a good way of doing it.” (BENNETT, 1994)
34
insiste na criação de suas reportagens em quadrinhos pela confiança de que esse formato
também tem suas qualidades e suas vantagens.
Uma desvantagem é que leva muito tempo para desenhar uma história em
quadrinhos. Por exemplo, estive em Gorazde pela última vez em 1996 e levei três
anos e meio para finalizar meu trabalho. É um problema, pois dá trabalho, e nesse
meio tempo você não tem muito dinheiro. Assim, tenho de interromper o trabalho
no meio para ganhar dinheiro com outra atividade.
Mas há tremendas vantagens. A principal delas é que, com uma história em
quadrinhos, consigo atrair o interesse das pessoas para questões sociais como essas,
o que é difícil nos EUA. Aqui eles pensam só sobre o próprio umbigo.
É muito difícil encontrar um amigo meu interessado em saber o que se passa no
Oriente Médio ou na Bósnia. Mas se eles vêem um livro de história em quadrinhos,
por alguma razão isso parece ser mais acessível a eles.
Os quadrinhos têm muito apelo em razão das imagens. Assim, você conquista
atenção do leitor e é capaz de contar a eles histórias difíceis e introduzir a
informação. (SACCO apud: STAROBINAS, 2001)
Seu senso de justiça lhe faz ver os conflitos pelo lado dos excluídos. Ele não defen-
de as ações de guerra de nenhum dos lados. Está apenas interessado em ouvir suas histó-
rias. Neste sentido, seus livros vão contra o maniqueísmo e a miopia crítica que domina
boa parte do jornalismo mais tradicional. Seu interesse pelos palestinos, por exemplo,
35
está justamente em fugir da imagem imposta pela grande mídia, que insiste em reduzi-
los a um bando de terroristas fanáticos que explodem bombas sobre os judeus de Israel,
como se eles fossem uma simples continuação dos nazistas anti-semitas da II Guerra
Mundial. Apesar de seu ponto de vista divergente, Sacco acha que seu processo de tra-
balho não difere muito do de um jornalista comum.
Mas ele reconhece que o fato de trabalhar em um produto de confecção lenta impõe um
ritmo de trabalho diferenciado.
Tenho uma maneira diferente de trabalhar. Quando você está pensando em escrever
reportagens, você sempre pensa numa história curta.
No meu caso, eu penso sobre a situação em geral, passo bastante tempo com as
mesmas pessoas. Elas passam a confiar em mim, ficamos amigos. E assim fica
mais fácil entender quem eles são.
A minha sorte é que não preciso enviar matérias e ter um horário de fechamento todos
os dias. Não tenho aquela urgência de ter de voltar para casa após três horas, antes que
meu jornal tenha de começar a rodar. (SACCO apud: STAROBINAS, 2001)
Assim, Sacco pode dispensar mais tempo ao contato com as pessoas, conhecendo-as
ou entrevistando-as, sem um grande planejamento e aberto para as casualidades.
vas’, escritos de pessoas que tenham alguma paixão pelo que escrevem”. 22 (SACCO
apud: BENNETT, 1994-2)
Sacco compreende que seu trabalho tem um nível de comprometimento político
muito diferente do da grande maioria dos autores de HQs. Para ele, “o problema com
muitos quadrinistas é que eles olham apenas para outros quadrinistas como modelo. Eu
prefiro olhar os escritores”. 23 (Ibid.) E acrescenta:
Acho que artistas podem ter importância política e eu gostaria que mais
cartunistas/quadrinistas fizessem isso porque acho que essa é uma mídia realmente
eficiente para tornar claras as questões políticas. A arte tem feito isso de um modo
que as deixa palatáveis. 24 (Ibid.)
1 . 6 – P O L Ê M I CA CO N T R A JO E S A CCO
A obra de Joe Sacco está longe de ser uma unanimidade. E nem poderia ser diferente,
pois abordando assuntos tão arraigados e explosivos como os ódios étnicos centenários, ele
certamente não vai conseguir agradar a todo mundo (e, a bem da verdade, ele não tenta).
Mesmo uma olhada rápida sobre seu trabalho deixa evidente que sua defesa dos persegui-
dos e massacrados não elege perseguidos quaisquer, já que tanto os palestinos de Palestina
quanto os muçulmanos de Gorazde são povos árabes. Suas reportagens em quadrinhos cur-
tas têm temas mais diversificados e é possível que, com o tempo, ele também acabe tornan-
22
No original: " Journalism t hat has som e convict ion t o it , in ot her words, st uff t hat isn't con-
sidered 'obj ect ive,' people writ ing t hat have som e passion for what t hey writ e." ( SACCO
apud: BENNETT, 1994- 2)
23
No original: “ I t hink t he problem w it h a lot of cart oonist s is t hey look [ only] at ot her car-
t oonist s as t heir m odels... I 'd rat her look at writ ers." ( I bid.)
24
No original: " I t hink art ist s can have a polit ical role and I guess I wish m ore cart oonist s
would do t hat , because I t hink it 's really an effect ive m edium for get t ing a polit ical point
across. The art is doing it in a way t hat m akes it palat able." ( I bid.)
25
No original: " Any dent I 'm going t o m ake [ wit h t his work] is pret t y m inor." ( I bid.)
37
do-se um pouco mais abrangente na escolha dos temas de suas reportagens longas, mas até
o momento seu tema principal tem sido povos árabes combatidos ou massacrados por gru-
pos judaico-cristãos ocidentais. Ao mostrar o lado humano dos palestinos, ele foi acusado
de anti-semita, como no artigo abaixo, supostamente publicado no site TheGolem em 14 de
abril de 2002 e reproduzido na lista de discussão “EEJH” Jewish History, News and Opini-
on (do portal yahoo) em 4 de junho do mesmo ano 26:
26
Tent ei localizar o art igo no sit e original, m as sua organização é confusa, sem um a m ecâni-
ca de busca int erna e par ece t er sofrido m odificação em sua arquit et ura de endereços. Con-
t udo, o carát er inflam ado e engaj ado do art igo é bast ant e condizent e com out ros t ext os dis-
poníveis no sit e.
38
Ele supostamente narra histórias reais de décadas de sofrimentos que lhe foram
relatadas por testemunhas palestinas. Todas dizem respeito a atos fictícios de agressão
e subjugação israelense. Extraordinariamente, ele recolheu todo esse material sem
nenhum conhecimento do idioma árabe e sem os serviços de um tradutor. Portanto, ele
enfeita seus desenhos com lampejos vindos de sua imaginação.
Palestina alega apresentar jornalismo de qualidade em forma de quadrinhos.
É lamentável que isso seja permitido. Não deixem as atitudes de vocês se limitarem
a ler isso. Por favor, cerrem seus dentes e enfrentem a leitura das obras de Sacco
para ficar cientes do perigo que ele representa. Ele diz ser um jornalista graduado
mas não segue as regras fundamentais do jornalismo, que pedem que fatos e
detalhes sejam verificados antes de serem publicados.
Após verem por vocês mesmos o que está acontecendo, tomem uma atitude. Pelo
menos façam com que outras pessoas também fiquem sabendo dessa ameaça à
verdade. Propaganda ideológica nos meios de comunicação podem fazer com que
vidas sejam salvas ou perdidas. Não fiquem calados permitindo que isso vá ainda mais
longe. O estadista britânico Edmund Burke disse uma vez: “Tudo o que o mal precisa
para triunfar é que os homens bons não façam nada”. Não sejam uma dessas pessoas
boas porém passivas. Não deixem o terrorismo vencer.27 (DOBBS, 2002)
27
No original: “ Beware of ‘PALESTI NE’
The graphic novel ( adult com ic) series, ‘PALESTI NE’, w hich is published in paperback,
represent s a series of diat ribes by Joe Sacco, a Queens, NY resident , who uses t he m edium
of cart oons in t he sam e way t hat t he classic Nazi propaganda cart oonist s of t he 1930s did.
His work is as dangerous and insidious as t he Nazi cart oons, Der St urm er. I f t his m an and
his writ ings can’t be st opped, t hey m ust be fought against .
I ronically, his com ics are getting critical acclaim in m ainstream publications such as “ Enter-
tainm ent Weekly”, and he publishes his m aterial on a Guggenheim Grant. Yet his work is practi-
cally unknown to m ost people, Jews as well as non-Jews. Even watchdog organizations such as
CAMERA ( The Com m ittee for Accuracy in Middle East Reporting in Am erica) haven’t yet taken
any notice of it in their newsletter. Meanwhile, he is m isusing the m edia to further the Palestin-
ian-Arab terrorists’ m ovem ents. Sacco is a person who refuses to acknowledge that he is sup-
porting terrorists by stubbornly refusing to look at reality. Whether or not you have a high toler-
ance for filth and a strong stom ach ( a fair warning: Sacco’s com ics are literally nauseating), you
m ust take this farther. You can learn m ore about this potent threat to both I srael and to j ournal-
ism by browsing the website of his publisher, Fantagraphic Books.
Alt hough his drawings have lit t le art ist ic m erit , t hey nevert heless repr esent a pot ent
force. Sacco draws st ereot ypical “ Jews” , usually in I sraeli uniform , perform ing all m anners of
barbarous act s against t he “ poor innocent Arab Palest inians.” I ndeed, m ost of his Jews have
ident ical feat ures, while his Arab charact ers are all individualized.
He relat es supposedly t rue st ories of decades- long m isery t hat he claim s have been t old
t o him by Arab wit nesses. All concern m yt hical act s of I sraeli aggression and subj ugat ion.
Rem arkably, he has m anaged t oget her his st ory m at erial wit hout any knowledge of
Arabic and wit hout t he services of a t ranslat or. Then he em bellishes his drawings wit h high-
light s from his im aginat ion.
Sacco’s ‘PALESTI NE’ claim s to be reporting hard journalism in com ic book form . I t is repre-
hensible that this is allowed. Don’t let your actions stop at reading this. Please grit your teeth, and
39
Ao reproduzir o texto, o moderador do EEJH, Dr. Bryan Griffith Dobbs (Op. cit.),
teve o cuidado de advertir que “esta mensagem vem de uma fonte da web cuja confiabi-
lidade pode ser equivalente a sua tranqüilidade” 28. Como moderador, o papel do Dr.
Dobbs é mais de conduzir e fomentar as discussões que de encabeçá-las, função que,
aparentemente, desempenha com sensatez. As perseguições sofridas há diversas gera-
ções pelo povo judeu são reais, mas isso não significa que alguém está sendo anti-
semita ao dizer simplesmente que os judeus são imperfeitos e cometem erros como todo
mortal. Parece que, para o autor do texto, seu povo está acima de qualquer crítica. Fe-
lizmente, sua opinião não é unanimidade. Em 5 de junho, Stan Nadel (2002), também
membro do EEJH, postou a seguinte réplica:
Dei uma olhada no web site e, a julgar pelo material disponível, ele não me pareceu
anti-semita – apesar de ser claramente contrário à política israelense. Considerem essa
citação extraída da página sobre Hebron: “Essa é uma cidade cruel com os judeus... nas
revoltas árabes de 1929, mais de sessenta judeus de Hebron foram massacrados... e em
1936, a pequena comunidade judia foi expulsa da cidade...”
Já andamos um longo caminho desde a Der Sturmer. 29
actually tackle Sacco’s works so that you’ll be inform ed of the danger that he represents. He claim s
to have acquired a journalism degree although he doesn’t follow fundam ental rules of journalism
that concern the need to verify facts and details before they appear in print.
Aft er seeing for yourself what is happening right now, t ake act ion. At t he very least let
ot her people know about t his current t hreat t o t r ut h. Media propaganda m eans lives ar e
saved or lost . Don’t be silent and wait for t his t o go away. The Brit ish st at esm an Edm und
Burke once said, “ All it t akes for evil t o t rium ph is for good m en t o do not hing.” Don’t be one
of t hose good yet passive people. Don’t let t he t errorist s win.” ( DOBBS, 2002)
28
No original: “ This m essage com es from a web source whose reliability m ight be the equivalent
of its calm ness.” ( DOBBS, 2002)
29
No original: “ I looked at t he web sit e & fr om t h e lim it e d m a t e r ia l a va ila ble it doesn't
st rike m e as Ant isem it ic- - t hough it is clearly st rongly opposed t o I sraeli policies. Consider
t his quot e from t he panel on Hebron: ‘t his has been a cruel t own t o Jews...in t he Arab riot s
of 1929 upw ards of 60 Hebron Jews got m assacr ed...in 1936 t he sm all Jewish com m unit y
got run out ...’
This is a long way from der St urm er.” ( NADEL, 2002)
40
seu exército e evangelizar os palestinos” 30. A Fnac é exemplar pelo destaque que dá ao
quadrinho em suas prateleiras e o livro Palestine foi lançado pela editora Vertige-
Graphic em 1996, recebendo vários prêmios.
Se, por um lado, a obra de Joe Sacco incomoda algumas pessoas por humanizar
os árabes, por outro ela também não agrada aos que esperam uma postura crítica
ainda mais severa. Em 1 de setembro de 2002, o site “Ninguém presta!” publicou
uma resenha de Palestina intitulada Todas as boas intenções do inferno, cujo autor
assina simplesmente Hugo. O site apresenta uma visão pessimista da humanidade e
atira à direita e à esquerda, mirando principalmente nos líderes mundiais imbuídos
de “boas intenções” e as conseqüências nefastas de seus atos. Na opinião de Hugo
(2002), Sacco é tímido em suas críticas aos judeus por medo de ser classificado co-
mo anti-semita. Em suas palavras:
Toda história tem vários lados e, dependendo de por onde é vista, ela pode mudar radical-
mente de aspecto. Os conflitos em Israel foram, por décadas a fio, mostrados na mídia unica-
mente pelo lado dos judeus. Sacco decidiu ouvir o outro lado e o resultado é inevitavelmente
polêmico porque esbarra em traumas históricos relativamente recentes ou mal resolvidos, como
o holocausto judeu, o crescimento do fundamentalismo árabe e a criação de um estado israelen-
se que ignorou completamente os antigos moradores da região. O livro Palestina não mudou o
rumo da história, mas certamente tem ajudado a acrescentar nuances e meios-tons a essa história
que antes só era contada em um preto-e-branco radical.
30
No original: “ inspirer aux lect eurs dont des enfant s, la haine d'I SRAËL, en diabolisant son
arm ée et en évangélisant les palest iniens.” ( Apud: PASAMONI K, 2002)
41
1 . 7 – M O D ER N I D A D E E A L ÉM
Por suas especificidades, a obra de Joe Sacco é, realmente, inovadora, mas as relações
entre jornalismo e ilustração não são tão novas, como provam as charges dos jornais ingle-
ses do Século XVIII e as reportagens ilustradas do Século XIX. Assim, a história do jorna-
lismo ilustrado talvez seja o melhor lugar para se começar a entender o jornalismo em qua-
drinhos. E de fato, alguns dos pensamentos que Charles Baudelaire apresentou em um pe-
queno texto publicado há 140 anos soam hoje estranhamente familiares.
Baudelaire, além de um dos grandes escritores franceses do Século XIX, também
foi um atento observador das artes e expressões de seu tempo. Seus ensaios sobre a arte
foram postumamente reunidos em um volume e são lidos e estudados até hoje. Um des-
ses artigos ficou especialmente famoso por apresentar pela primeira vez a palavra ‘mo-
dernidade’ como um parâmetro cultural e artístico. O ensaio, intitulado O pintor da vida
moderna, foi publicado originalmente no jornal Le Figaro dividido em três folhetins
entre novembro e dezembro de 1863 e apresenta uma análise dos desenhos de Constan-
tin Guys, ilustrador francês (nascido na Holanda) da segunda metade do Século XIX.
Baudelaire, a pedido do artista, manteve-o no anonimato chamando-o apenas de G, de-
talhe mantido na edição brasileira mas abandonado em algumas edições francesas. Ao
apresentar Guys em seu ensaio, Baudelaire (1997, p. 16) diz:
Durante muito tempo ele fora correspondente de um jornal inglês ilustrado e [...] nele
publicara gravuras a partir de seus croquis de viagem (Espanha, Turquia, Criméia).
Vi, desde essa época, uma quantidade considerável desses desenhos improvisados
nos próprios locais e pude ler assim uma crônica minuciosa e diária da campanha da
Criméia, melhor que qualquer outra.
de base para que outros artistas produzissem as xilogravuras que seriam finalmente impres-
sas nas páginas do jornal. Na Figura 25 temos uma dessas imagens impressas.
A idéia de uma seqüência de imagens articulando-se como texto é a base para al-
gumas das melhores definições de quadrinho, como a do teórico americano Scott Mc-
Cloud (1995, p. 9), que define quadrinho simplesmente como “imagens pictóricas e
outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a
produzir uma resposta no espectador”. Os desenhos de Guys sobre a Guerra da Criméia
são imagens pictóricas (isto é, reproduzem um aspecto do mundo visível) e estavam
sendo vistas justapostas por Baudelaire. Elas formavam ali não um conjunto aleatório
qualquer mas uma seqüência ordenada (sua ordem cronológica). Evidentemente, Guys
não estava propriamente compondo uma história em quadrinhos ao produzir seus dese-
nhos sobre a Guerra da Criméia, mas a apreciação do conjunto ordenado, assim como
fez Baudelaire, é uma experiência de leitura da mesma natureza de uma HQ.
A esse relato plasmado em imagens Baudelaire chamou de ‘crônica’, que, como se sa-
be, além de sinônimo de relato, é também um gênero jornalístico/literário. E comparando-o
aos textos escritos sobre o mesmo conflito, Baudelaire (Op. cit., p. 35) acrescenta:
Posso afirmar que nenhum diário, nenhum relato escrito, nenhum livro exprime tão
bem, em todos os seus detalhes dolorosos e em sua sinistra amplitude, a grande
epopéia da Guerra da Criméia.
É preciso ressaltar ainda que esses desenhos foram produzidos especificamente para
ser impressos em um jornal com a finalidade de reportar aos leitores imagens daquela
campanha militar. Ou seja, esses desenhos são uma peça de jornalismo, tanto quanto o
são as fotografias de um moderno correspondente de guerra. Esse conjunto de desenhos
de Guys compõe uma espécie de reportagem de guerra na forma de uma narrativa gráfi-
co-seqüencial, o que permite situá-lo como um dos ancestrais legítimos do jornalismo
em quadrinhos.
Comparando as observações de Baudelaire sobre Guys com os comentários sobre os
livros-reportagem em quadrinhos Palestina e Gorazde, de Joe Sacco, percebe-se um
outro relato gráfico-seqüencial de uma guerra produzir as mesmas impressões um sécu-
lo e meio depois:
43
Velhos, crianças, torturadores e torturados dão sua visão do conflito e Sacco trata
de transportá-las para o papel, de um jeito muito mais real do que qualquer
reportagem da CNN. (Show Bizz apud SACCO, 2001, 4ª capa)
A crítica atual, assim como Baudelaire, ainda enxerga um texto jornalístico nessas
narrativas gráfico-seqüenciais de guerras. E também ainda as considera, sob certos aspec-
tos, mais eficientes ao reportar detalhes que acabam perdidos ou negligenciados no relato
jornalístico tradicional. Sabiamente, Baudelaire (1997, p. 38) não tentou descrever ver-
balmente todo o conteúdo daquelas cenas que desfilam diante de seus olhos, pois:
Baudelaire parece antever aqui a máxima do fotojornalismo de que uma imagem va-
le mais que mil palavras.
Os relatos gráfico-seqüenciais de guerra produzidos tanto por Constantin Guys co-
mo por Joe Sacco guardam também semelhanças de procedimentos e abordagens. Am-
bos se deslocaram para os locais dos conflitos, convivendo com as pessoas envolvidas e
presenciando acontecimentos reais. E ambos transportaram-se para dentro dos desenhos
como um personagem-jornalista. O personagem-narrador de Sacco é o fio condutor dos
relatos de Palestina. E Guys é identificado no ensaio de Baudelaire em pelo menos dois
desenhos. Em Myself at Inkermann, está a cavalo observando os cadáveres amontoados
no campo de batalha. Em My humble self, conversa com duas irmãs de caridade em um
hospital ambulante. Mas suas diferenças são inegáveis. Por mais que tomemos um con-
junto de desenhos de Guys como sendo da natureza de uma HQ, eles ainda são simples
ilustrações para um texto jornalístico, enquanto a obra de Sacco constitui-se realmente
de histórias em quadrinhos produzidas e divulgadas como tal. Um é uma reportagem
gráfica e o outro, uma reportagem em quadrinhos.
Guys e Sacco também constituem seus relatos jornalísticos gráfico-seqüenciais em
direções opostas. Na metade do Século XIX, Guys constrói o jornalismo visual a partir
44
o de Sacco ainda são raros e são poucos os veículos jornalísticos impressos que ainda
privilegiam o desenho tradicional em detrimento da fotografia. Alguns casos notórios
são a Gazeta Mercantil e a revista americana The New Yorker.
O uso jornalístico da fotografia no Século XIX apresentava dois problemas: elas envolvi-
am um equipamento ainda primitivo e trabalhoso de operar (e portanto inadequado para co-
berturas rápidas) e ainda não podiam ser impressas nos jornais, como as gravuras. Os dese-
nhos jornalísticos perduraram ainda por décadas e a Guerra da Secessão Americana teve uma
ampla cobertura gráfica proporcionada por inúmeros correspondentes-desenhistas. Cenas de
crimes, de escândalos, acidentes, esportes e da atribulada vida urbana fizeram a fama da The
National Police Gazette, um dos marcos do jornalismo ilustrado americano da segunda meta-
de do Século XIX. Suas pequenas narrativas gráficas em xilogravura tinham um altíssimo
padrão de qualidade, como será mostrado no capítulo 2.
O trabalho de Joe Sacco acontece no mesmo momento em que o mundo enfrenta a revo-
lução da informação causada pelos computadores e pela internet. A informática teve seu
grande impulso nos anos 1980 com a criação dos computadores pessoais e da interface gráfi-
ca. Seus tentáculos se estenderam por todo o mundo civilizado, modificando drasticamente
muitas profissões, entre as quais as artes gráficas, a publicidade e o jornalismo. Hoje, essas
três atividades são quase impraticáveis sem os computadores. Programas de manipulação de
imagens (como o Photoshop) e de modelagem tridimensional (como o 3D Studio) abalaram
irreversivelmente a velha fé na imagem foto-cinematográfica. Ou será que, depois dos im-
pressionantes dinossauros de Spielberg, alguém ainda tem dúvidas quanto à capacidade que o
cinema e a fotografia têm de fazer mentiras parecerem verdades?
A internet iniciou-se ainda nos anos 1960, mas seu uso e alcance continuaram restritos
por muito tempo. Sua explosão mundial se deu a partir da criação da World Wide Web, pos-
sibilitada pela invenção da linguagem HTML em 1991. Hoje, buscar informações, enviar
correspondência, movimentar a conta bancária e até mesmo fazer compras pela internet
virou um ato corriqueiro para um número sempre crescente de pessoas. Muitos são os que
apregoam que o alcance da web ainda não é tão grande assim, principalmente em nosso
46
país. Mas basta perguntar: quantos brasileiros ainda preenchem uma declaração de Imposto
de Renda a mão e se deslocam a uma agência bancária para entregá-la?
Neste novo cenário onde quem tem acesso à internet dispõe a um novo e efervescente
fórum de informações e notícias, o jornalismo tradicional não é mais visto com a mesma
ingenuidade pelo público. Dizer que o jornalismo está passando por uma crise não seria
dizer nada de específico, pois nada neste mundo se renovou, evoluiu ou produziu coisas
novas a não ser por estar em crise. Os livros-reportagem de Joe Sacco não tinham por obje-
tivo apresentar uma alternativa à reportagem tradicional, mas é inegável que foram benefi-
ciados pelo contexto de seu tempo. Obviamente, seria absurdo imaginar que o jornalismo
em quadrinhos possa um dia substituir o jornalismo tradicional, mas Sacco certamente sabe
se valer das possibilidades decorrentes dos novos anseios, das novas demandas do homem
contemporâneo, como a necessidade de reencontrar nossa dimensão humana, atordoados
que estamos diante das vertiginosas mudanças ocasionadas pelas novas tecnologias e por
um consumismo globalizadamente galopante.
A história em quadrinhos tá quente ou tá fria? Billy Wilder acha que quanto mais quen-
te, melhor. Para os esquentadinhos, o negócio é ficar frio. Os americanos até misturam os
conceitos. Para eles, uma coisa hot (quente) é excitante, sensual, e uma coisa cool (fria) é
muito legal. Mas segundo Marshall McLuhan, quentes são os meios de comunicação de alta
resolução ou densidade de informação enquanto frios são os meios de baixa resolução. As-
sim, o cinema é quente, a televisão é fria. A literatura é quente, o quadrinho é frio. Devido a
sua baixa resolução ou incompletude, os meios frios demandam uma maior participação e
envolvimento do público. Quando Joe Sacco molda suas reportagens em forma de histórias
em quadrinhos, ele está agindo de acordo com essa premissa. E mais ainda ao optar por um
desenho com contornos duros, sem cor e com hachuras onde a baixa densidade de informa-
ção solicita uma participação mais intensa do leitor.
Nas últimas duas décadas, temos presenciado uma verdadeira revolução na área do quadri-
nho, com uma ampliação tanto dos recursos técnicos e gráficos como dos temas abordados e
das faixas de público atingidas. Grandes criadores estão atentos (e ativos) diante das enormes
possibilidades gráfico-narrativas do quadrinho como uma linguagem sofisticada, envolvente e
sintética. A verdadeira revolução pela qual o quadrinho tem passado nos últimos anos é um
reflexo dessa maturidade e autores como Eisner, Spiegelman e Sacco são seus arautos. Não por
acaso, todos eles com um profundo interesse pelos dramas humanos.
47
Mas qual o lugar do humano em um mundo cada vez mais submerso em tecnologia?
Nossas necessidades e nossos desejos podem ser plenamente saciados com cliques?
Uma tela pode permitir contatos pessoais mais intensos que a presença física imediata?
A tecnologia pode substituir um aperto de mão, um abraço? Certamente, não. Precisa-
mos reconhecer que a tecnologia realmente nos permite fazer coisas até há pouco tempo
inimagináveis. Mas ela não pode tudo. Um computador consegue mapear minuciosa-
mente cada curva do cérebro humano, nas não consegue entender uma piada, por mais
simples que seja. Senso de lógica, dez; senso de humor, zero. Mas a fascinação exercida
pelas novidades da tecnologia é intensa, pois um mundo novo que se abriu subitamente
à nossa frente. A vertigem foi, então, inevitável. A ressaca também. Os efeitos negativos
da rápida tecnologização do mundo são perceptíveis por todo lado. A sensação de que o
mundo está se desumanizando é mais ou menos generalizada. As pessoas estão conclu-
indo que afeto não se mede em quilobites. Em seu livro High tech, high touch, John
Naisbitt analisa essa invasão da tecnologia em nosso cotidiano e identifica como efeito
colateral uma certa nostalgia do primitivo, do artesanal. O trabalho lento e artesanal de
se criar uma reportagem em quadrinhos poderia, portanto, ser visto como um tipo de
reação adversa à hipertecnologização – e conseqüente desumanização – do jornalismo
contemporâneo. Micro-câmeras ocultas e escutas telefônicas de um lado, papel e nan-
quim do outro. Diante de uma página de história em quadrinhos desenhada a mão, fica
impossível esquecer-se que aquilo foi produzido por uma pessoa. Nos anos 1980 e 90,
alguns autores experimentaram diversas formas de HQs desenhadas por computador. O
público parece não ter demonstrado grande interesse. Ao contrário, o que houve foi até
uma forte revalorização do desenho, com uma sensível tendência à estilização e aos
maneirismos gráficos. Os computadores funcionam de forma cada vez mais impressio-
nante no desenho animado, mas no quadrinho eles quase que só se destacam em funções
acessórias, como a colorização e o letreiramento. Alguns autores ainda insistem em no-
vas experimentações digitais, mas o que o mercado de quadrinho impresso está consu-
mindo mesmo ainda é o bom e velho desenho produzido pela mão humana.
Qual o lugar do humano em um mundo cada vez mais globalizadamente indistinto e sem
diversidades? Onde foram parar nossos ideais humanistas? Se todas as pessoas são iguais, por
que algumas são mais iguais do que outras? Antigamente, a expressão ‘direitos humanos’ era
um mantra de orientação da formação da nossa sociedade ocidental. Podia não ser tão segui-
48
do, mas era, ao menos, desejado ou buscado. Hoje, nossas crianças não aprendem mais direi-
tos humanos nas escolas, mas direitos do consumidor. A modificação pode parecer inofensi-
va, mas é extremamente perversa. O status de ‘humano’ é qualitativo: todas as pessoas são
seres humanos e, portanto, têm direito à vida, à saúde e à busca da felicidade. O status de
‘consumidor’ é quantitativo: nossos direitos, nossos privilégios, aumentam na mesma medida
em que aumenta o nosso padrão de consumo. Sob esta perspectiva, o humanismo é inclusivo
e o consumismo é excludente. O atual processo mundial de transformações político-
econômicas é o da globalização desse consumismo excludente. Asiáticos miseráveis traba-
lham em sistema semi-escravagista para produzir os tênis que os americanos compram a pre-
ço de banana. A quem interessaria hoje globalizar o humanismo?
Qual o lugar do humano nos livros de Joe Sacco? O centro do centro. Palestina e
Gorazde não são obras sobre a guerra, são sobre pessoas. A guerra aqui é o leitmotif, o
tema condutor, mas não é o objeto central. Esses são livros sobre seres humanos em
condições excepcionais, em situações-limite diante de conflitos irracionais. Histórias em
quadrinhos também são fundamentalmente sobre pessoas. Poucas foram as experiências
de se produzir HQs que não se articulavam sobre personagens com comportamentos
humanos (mesmo que com carinha de bichinhos). História em quadrinhos implica quase
obrigatoriamente em personagens fazendo, dizendo e/ou pensando coisas.
Neste sentido, a HQ assemelha-se à literatura e ao teatro. O termo ‘personagem’,
que é oriundo do teatro, vem do latim persona (máscara e, tardiamente, pessoa), que por
sua vez vem do etrusco phersu (máscara). Persona também gerou em português (e nas
línguas neolatinas) ‘personalidade’ e ‘pessoa’, o que reforça o caráter antropocêntrico
da palavra personagem. A grande maioria das histórias em quadrinhos, peças teatrais e
romances envolve personagens.
O cinema, em contrapartida, acabou se desenvolvendo com uma liberdade um pou-
co maior. Em sua grande maioria, filmes também são sobre personagens, mas não ne-
cessariamente. Talvez isso seja um reflexo do grande poder atribuído à câmera, como se
ela fosse uma entidade autônoma, um olho mecânico-científico, mas o fato é que, desde
o início do Século XX, cineastas produzem cinema sem personagens no sentido tradi-
cional. Berlim – sinfonia da metrópole (1927), de Walther Ruttmann e Um homem com
uma câmera (1929), de Dziga Vertov são belos exemplos de uma tradição que chega até
nós com Koiaanisqatsi (1983) e Powaqqatsi (1988), de Godfrey Reggio.
49
1 . 9 – U M M U N D O CO M P L EX O
Nós vivemos em um mundo que parece ter se habituado ao maniqueísta (e simplista) eixo
de oposição bem-contra-mal. Foi assim durante décadas na guerra (quente ou fria) entre capita-
lismo e comunismo até que a queda do Muro de Berlim e a derrocada da União Soviética emba-
ralhassem as velhas certezas. Sem seu antigo inimigo, o capitalismo judaico-cristão ocidental
realinhou-se contra o mundo islâmico ou, pelo menos, contra sua parcela radical fundamentalis-
ta. Nosso hemisfério ocidental incentiva e incita o ódio cego aos povos islâmicos, haja visto o
grande número de vilões árabes na produção hollywoodiana das duas últimas décadas e o tra-
tamento parcial que lhes é dispensado no jornalismo de um modo geral.
Num mundo tão midiatizado como o nosso, não existir na mídia é praticamente co-
mo não existir. Não é necessário que estejamos nela como indivíduos, basta nossa re-
presentação como grupo. Na Guerra da Bósnia, os muçulmanos de Gorazde praticamen-
te não existiam para o mundo porque, por estarem confinados em um enclave, seu aces-
so era difícil através do campo inimigo. Enquanto os outros jornalistas preferiam repor-
tar o que podiam ver com certa segurança, Sacco passou longas temporadas em Goraz-
de. No Oriente Médio, a parcialidade crônica da imprensa durou décadas. Enquanto a
mídia tradicional costuma tratar aquelas pessoas sob a denominação genérica de ‘os
palestinos’, para Sacco eles são indivíduos com histórias, memórias, sonhos e decepções
específicas, com nome, endereço e, alguns, até um futuro. Sua existência como indiví-
duos tão humanos como nós é o foco central das reportagens em quadrinhos de Sacco.
A importância dos livros-reportagem em quadrinhos de Joe Sacco transcende comple-
tamente os limites das HQs. Em 11 de março de 2002, a revista The Nation publicou um
artigo onde D. D. Guttenplan (2002) critica severamente a parcialidade da cobertura da im-
prensa americana aos conflitos no Oriente Médio, fazendo apenas duas ressalvas: as maté-
rias de Deborah Sontag sobre a segunda Intifada para o The New York Times Magazine e a
reportagem em quadrinhos Palestina, de sacco. Segundo o jornalista,
Devemos esperar que a seriedade e a competência de Joe Sacco sirvam de exemplo e ins-
piração não somente para outros quadrinistas que queiram se aventurar pelo jornalismo em
quadrinhos, mas também para qualquer pessoa que deseje levar a sério a profissão de repórter.
31
No original: “ The absence of Palest inian voices, and of any sust ained effort t o depict t he
realit y of life under I sraeli occupat ion, is t he single m ost st riking difference bet ween Brit ish
and Am erican coverage of t he conflict . [ …] Joe Sacco's com ic- book depict ions of life under
occupat ion ( collect ed in t he book Palest ine and available from Fant agraphics) are an out -
st anding m arriage of art and j ournalism , but he, t oo, has few com pet it ors.” ( GUTTENPLAN,
2002)
51
2 – Q U A D R I N H O E JO R N A LI SM O
2 . 1 – D O F R A CA S S O A O S U CE S S O : U M A Q U E S T Ã O D E
FORM ATO?
32
No original: “ They st art ed at a poor level and sales got worse. Com m ercially it was a fail-
ure.” ( SACCO apud: JAMI ESON, 2002)
52
personagens continuam no número seguinte, seja em séries regulares, sem fim definido
(como as tradicionais revistas de super-heróis americanos) seja em minisséries, que são
planejadas para um número pequeno e definido de edições (como Watchmen).
O segundo modelo é o de revistas mix, com personagens e autores diversos, onde
cada história apresenta um estilo e um número de páginas diferente (como a Heavy Me-
tal). Uma variante desse segundo modelo é o da revista mix de um único autor ou um
time de autores fixos, onde eles apresentam personagens e histórias diversas, mas cen-
tradas em uma visão de mundo específica e pessoal – como Love & Rockets, dos irmãos
Hernandez, ou American Splendor, de Harvey Pekar.
Porém, tanto um quanto outro modelo deixam bem clara sua origem baseada nos
moldes dos folhetins literários. Nessas revistas, a história narrada vai sendo publicada
dividida em fascículos ou revistas mensais e a ação se desenvolve através de uma fór-
mula ancorada, sobretudo, em ganchos, expectativas e reviravoltas, conforme os câno-
nes narrativos estabelecidos pelos folhetins literários desde o Século XIX. De tão pre-
sentes nas revistas em quadrinhos tradicionais, esses cânones já fazem parte das expec-
tativas de leitura do público consumidor dessas publicações.
A compilação em livro de histórias em quadrinhos originalmente publicadas em capítulos
tem sido um caminho muito seguido no mercado americano, não somente para obras que
ambicionam uma permanência maior que as histórias comuns (como as fases clássicas dos
super-heróis mais populares) mas sobretudo para as que se pretendem de qualidade superior,
como nas auto-intituladas graphic novels. A maioria recebe uma lombada quadrada em bro-
chura, mas as mais cultuadas chegam a sair com capa dura, sobrecapa e encadernação de cos-
tura. Também é comum encomendarem-se prefácios e introduções a autores famosos, fre-
qüentemente escritores ou pessoas de outras áreas como jornalistas, cineastas ou atores famo-
sos. Essas edições especiais encadernadas costumam receber mais atenção – e até mesmo
mais respeito – por parte do público e da mídia. É como se essas obras se transformassem em
algo mais a partir do momento em que são compiladas em livros.
Um dos exemplos mais evidentes dessa tendência é a própria HQ Maus, de Spiegel-
man, que foi primeiramente publicada em capítulos, entre 1981 e 1991, na revista mix Raw.
A receptividade inicial foi boa, mas fundamentalmente restrita ao meio do quadrinho. A
partir do momento em que foi editada em livro, o impacto foi muito maior. A compilação
deu-se em dois volumes, o primeiro de 1986 e o segundo, de 1991. Os dois volumes foram
53
Time como a melhor obra de quadrinho do ano 2000. A pergunta é: Jimmy Corrigan só
se tornou melhor em 2000 ou já o era desde 1995?
O formato de livro tem realmente dado uma conotação diferente e diferenciada às obras
quadrinísticas. A idéia não é nova, pois essas compilações, chamadas de trade paperback
pelos americanos, são velhas conhecidas das editoras de super-heróis. A novidade está, so-
bretudo, em vendê-las não nas exclusivas lojas de revistas em quadrinhos (freqüentadas
somente por fãs) mas nas grandes redes de livrarias que, nos Estados Unidos, nunca vendi-
am HQs. Esse upgrade mágico transforma comic stories em graphic novels a partir de uma
mudança de formato a princípio simples, porém substancial para os segmentados padrões
editoriais americanos. Outro exemplo marcante é a longa série The Sandman, que saiu ori-
ginalmente em 76 capítulos (mais um especial em um volume e duas minisséries de três
volumes cada) na forma padrão das revistas em quadrinhos americanas: histórias de apro-
ximadamente 22 páginas de papel comum, em revistas grampeadas e com inserção de pu-
blicidade. Como a série é fechada e se constitui de arcos de histórias de cinco a oito capítu-
los em média, esses arcos foram compilados em 10 volumes (tanto em brochura como em
capa dura), com papel de qualidade melhor, sem publicidade e com novas capas e introdu-
ções especialmente encomendadas a escritores renomados.
Uma revista em quadrinhos tradicional é impressa uma única vez e fica nas bancas por
pouco mais de um mês. Nos Estados Unidos, essas revistas são vendidas nas comic stores,
lojas de revistas em quadrinhos. Em sua edição original, The Sandman foi um enorme su-
cesso e fez com que sua editora, a DC Comics, criasse um selo especial chamado “Vertigo”,
para alojar a revista e outras novas séries de conteúdo semelhante. Mas a compilação em
forma de livros fez com que ela deixasse para trás esse seu passado mais comum e se tor-
nasse hoje uma respeitável e premiadíssima série de graphic novels, que são permanente-
mente reimpressas e nunca mais saíram de catálogo. Essa nova situação de graphic novel
redefiniu o status da série e redimensionou completamente seu público. A editora tentou
relançá-la novamente em formato de revista, mas a edição não obteve o sucesso esperado.
As compilações, por outro lado, continuam sendo um sucesso de vendas.
Ao produzir Palestina, Sacco vinha de sua experiência com histórias curtas publicadas
em revistas mix diversas e na Yahoo, sua revista própria. Palestina era, então, seu projeto
mais ousado e longo. O formato de minissérie é o que lhe foi possível ou pareceu adequado
33
Lançado no Brasil sim plesm ent e com o A Liga Ext raordinária.
55
naquele momento, mas seu conteúdo e sua abordagem fugiam completamente dos padrões
das minisséries tradicionais. Aquele formato inicial correspondia ao que o mercado, a priori,
recomendava, no entanto, não funcionou para aqueles conteúdos e abordagem.
A compilação final em livro de uma história em quadrinhos seriada é um procedi-
mento muito comum no mercado americano. Praticamente toda minissérie e boa parte
das revistas regulares é, depois, reimpressa em uma edição encadernada. No caso da
compilação de Palestina, parecia que se estava simplesmente seguindo as normas mer-
cadológicas. Mas a brutal diferença de receptividade entre a versão seriada e a encader-
nada induz a pensar que algo mais aconteceu junto com aquela transformação.
A publicação de uma reportagem em quadrinhos dentro de uma revista de quadrinhos
segundo os moldes estabelecidos por Joe Sacco era um fato praticamente sem precedentes.
Poucas foram as experiências anteriores que se aproximassem da dimensão jornalística do
trabalho de Sacco. O pouco interesse inicial despertado por Palestina poderia levar à con-
clusão que não havia público para aquele produto. Mas a desproporcional acolhida recebida
pelo livro mostra que esse público existia sim, apenas estava em outro lugar. O nicho no
qual a reportagem em quadrinhos de Joe Sacco foi cair é o do livro-reportagem, um formato
já testado e aprovado pelo mercado e com público estabelecido.
O fato de Palestina ter sido primeiro publicada em minissérie e depois compilada em
livro a coloca ainda como uma espécie de forma híbrida, de transição, entre a produção
anterior de Sacco – de matriz autobiográfica e publicada em revistas – e sua produção pos-
terior – assumidamente livro-reportagem em quadrinhos e publicada diretamente em livro,
como Gorazde. Cabe lembrar que a produção autobiográfica de Sacco insere-se em uma
tradição plenamente estabelecida no mercado americano, que tem como expoentes tanto as
confissões indiscretas de Crumb – ainda no bojo da contracultura dos anos 1960-70 – quan-
to as obras de autores como Harvey Pekar, Art Spiegelman e Adrian Tomine – para citar
apenas alguns dos mais festejados autores confessionais da cena independente americana.
Outra peculiaridade forte desses trabalhos é que, apesar realistas e documentais, as histórias
têm conteúdos muito pessoais para serem entendidas como reportagem. Nos jornais diários
impressos (e em outras mídias), podemos encontrar freqüentemente autores escrevendo
textos verbais com esse mesmo registro de crônica pessoal, como nas colunas de Mauro
Rasi ou João Ubaldo Ribeiro, no jornal O Globo, por exemplo. Esses autores, contudo, atu-
am nessas colunas como cronistas e não como repórteres.
56
Na obra Palestina, Sacco faz não somente uma reportagem sobre a situação dos
palestinos na Faixa de Gaza, mas também uma crônica sobre sua ida à Palestina e
seu contato com aquelas pessoas. O livro é, a um só tempo, o documentário e o ma-
king of. Essa abordagem híbrida não é nenhuma inovação, já que é possível encon-
trá-la em outras reportagens ou documentários, seja impressos ou tele-
cinematográficos. Mas no caso de Sacco, esse hibridismo aparece como uma evolu-
ção coerente com sua produção anterior, onde suas histórias de teor autobiográfico
costumavam ter como cenários países e culturas diversos.
O sucesso das reportagens em quadrinhos de Sacco tem levado alguns veículos
jornalísticos tradicionais a experimentar em suas páginas o novo formato em reporta-
gens breves. A Time já publicou uma reportagem-HQ curta do próprio Sacco. Outras
revistas também têm aberto espaço para a publicação de quadrinho, como a The New
Yorker, que publicou desde ensaios em quadrinhos (como o de Art Spiegelman) até
contos e crônicas em quadrinhos.
A The New Yorker é uma das mais tradicionais revistas literárias americanas, cujas pági-
nas contêm ensaios, críticas literárias, contos, poemas ou trechos de livros de diversos autores.
Recentemente, uma das obras publicadas foi um pequeno conto em quadrinhos de Chris Wa-
re. Tal fato indica que seus editores consideram que o quadrinho pode ser uma leitura tão vá-
lida e interessante quanto a literatura tradicional. Essa postura, a princípio ousada para uma
tradicional revista literária, é, na verdade, bastante coerente com seu histórico e seu perfil, pois
em suas páginas o jornalismo literário sempre conviveu em harmonia com o cartum humorís-
tico e suas matérias costumam ser ilustradas mais com desenhos que fotografias. Anualmente,
sai uma edição especial quase toda dedicada ao cartum.
A abertura de revistas tradicionais e respeitáveis para o universo do quadrinho é impor-
tante, muito valiosa e deve ser aproveitada com sabedoria pelos quadrinistas. A respeitabili-
dade emprestada por essas publicações aos assuntos e obras que aborda pode ser um grande
aliado na luta do quadrinho por uma maior aceitação como uma linguagem nobre. Mas é
inegável que a questão do veículo adequado também não se resolve nessas publicações,
porque essas revistas são e vão continuar sendo publicações de textos, mesmo que assesso-
rados por imagens. Essas publicações não podem ser encaradas como um substituto para a
mídia tradicional do quadrinho, que são as revistas e os livros especificamente quadrinísti-
cos. A The New Yorker pode fazer a concessão de publicar uma ou outra HQ, mas ela nunca
57
será um veículo ‘de’ quadrinho. Esses espaços só serão realmente úteis em longo prazo se
conseguirem fazer com que seus leitores passem a consumir quadrinho também em seus
veículos originais, formando novos públicos.
Dentre as opções apresentadas ou utilizadas até agora como veículo para as reportagens
em quadrinhos, o livro-reportagem parece ser a solução mais adequada. Principalmente
porque o próprio livro-reportagem é já uma busca de espaços, posturas, meios e relações do
conteúdo jornalístico com o leitor diferentes das que o jornalismo tradicional estabelece nos
jornais e nas revistas semanais e mensais e até mesmo no jornalismo eletrônico.
2 . 2 – O L I V R O - R EP O R T A G EM
ria da produção de jornais e revistas, que são, em última instância, periódicos voltados
fundamentalmente para a atualidade da notícia.
Produtos de elaboração mais lenta – como o documentário tele-cinematográfico, o li-
vro-reportagem e a reportagem em quadrinhos – têm que se cercar de cuidados e garantias
de qualidade mais consistentes e permanentes pois, quando finalmente forem publicados ou
exibidos, terão que ser capazes de resgatar aquele antigo interesse do público pelo assunto
abordado ou até mesmo suscitar esse interesse do nada, se o assunto for inédito.
A segunda característica do livro-reportagem importante para as reportagens em
quadrinhos é a sua abertura para experimentações com outros procedimentos não jorna-
lísticos. As origens da atual popularização do livro como suporte jornalístico estão inti-
mamente ligadas ao new journalism e à heterodoxia de suas reportagens regadas com
muitos recursos advindos de outras expressões, especialmente da ficção literária. O li-
vro-reportagem tem, portanto, sedimentadas as bases para a incorporação do jornalismo
em quadrinhos como uma de suas tantas possibilidades. Quando inserido no âmbito do
new journalism, o livro-reportagem em quadrinhos deixa de ser um objeto único e es-
drúxulo e acaba funcionando como uma das tantas outras possibilidades dentro da gama
de recursos à disposição do jornalista.
Mais do que felizes coincidências, o livro-reportagem e o jornalismo em quadrinhos
têm origens que se comunicam e se atraem. Livros sempre foram usados como suporte
para obras cujo conteúdo é de natureza jornalística, de História (Séc. V aC), de Heródo-
to e Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha a Os dez dias que abalaram o mundo
(1919), de John Reed, mas o que chamamos de livro-reportagem moderno foi gestado e
gerado no seio do new journalism, com grande repercussão nos anos 1960 da contracul-
tura e do inconformismo social. Nesse mesmo período, o quadrinho underground evolu-
ía e se alastrava nos meios contestatórios com sua postura anti-establishment e despon-
tava como uma espécie de manifesto contra o escapismo alienante dos super-heróis ana-
bolizados e dos bichinhos falantes.
O quadrinho alternativo percorreu então um longo caminho desde o underground
dos anos 1960. Os autores americanos influenciaram de imediato uma leva de quadrinis-
tas europeus, que vinham de uma tradição menos conformista que o mercado america-
no. O quadrinho do velho continente já apresentava um conteúdo mais adulto, tanto pelo
erotismo quanto pelo gosto pela aventura. Mas o contato com o underground americano
59
fez com que ele ousasse novas experimentações gráficas e narrativas. Desse grupo, sur-
giu a lisérgica editora francesa Les Hunaoïdes Associés e seu principal veículo, a revista
Métal Hurlant, criada em 1974. Os franceses foram o carro-chefe dessa renovação nos
anos 1970, influenciando autores da Itália, Espanha, América Latina e, finalmente, dos
próprios Estados Unidos.
O capítulo seguinte dessa saga foram os efervescentes anos 1980. As transforma-
ções ocorridas nessa década em vários países estão entre as mais importantes de toda a
história das HQs. Akira, de Katsuhiro Otomo, toma de assalto o mercado japonês. Os
roteiristas ingleses Alan Moore e Neil Gaiman conduzem o quadrinho comercial ameri-
cano a sua maturidade intelectual. No rastro da Métal Hurlant, várias publicações se
tornam veículo privilegiado da excelente produção alternativa, como a espanhola El Ví-
bora, a Argentina Fierro, a italiana Figidaire e a brasileira Animal – até hoje a melhor,
mais ousada e mais importante revista mix já surgida por essas bandas, mas que, infe-
lizmente, não sobreviveu ao ‘legado econômico-cultural’ da era Collor.
Em compasso com o resto do mundo, o mainstream americano finalmente se abre para as
influências internacionais. Quadrinizações extraídas do mangá (quadrinho japonês), realismo
gráfico bebido de desenhistas latinos, roteiristas iconoclastas importados da Inglaterra, tudo
contribuiu para transformar o quadrinho de super-heóis em um negócio multimilionário que
se estendeu aos cartuns da TV, aos videogames, jogos, brinquedos e, principalmente, ao ci-
nema. O mercado tradicional de super-heróis se viu sacudido por novos autores com um tra-
balho mais autoral e ousado. Só no ano de 1986, por exemplo, surgiram A piada mortal (Mo-
ore/Bolland), Batman, o Cavaleiro das Trevas (Miller) e Watchmen (Moore/Gibons), que
figuram com folga em qualquer lista das melhores HQs de super-heróis de todos os tempos. É
como se três grandes raios caíssem em seguida no mesmo lugar.
Outro fruto do período foi a grande evolução da cena independente americana, com
revistas de proposta mais ambiciosa (como a Raw) e com novas levas de autores a reju-
venescer o cenário e a trazer um renovado sopro de vitalidade ao universo quadrinístico
(como os irmãos Hernandez e sua premiadíssima e legendária Love & Rockets). Um dos
ápices desse movimento certamente foi o Prêmio Pulitzer especial conferido em 1992 a
Maus, de Art Spiegelman. De Maus a Palestina, a passagem é, até mesmo, lógica.
Quando Sacco finalmente deságua seu jornalismo em quadrinhos no livro-reportagem,
está apenas fazendo reencontrar os dois braços dessa mesma corrente.
60
2 . 3 – JO R N A L I S M O O U JO R N A L I S M O S ?
E qual o lugar do texto jornalístico? No início do Século XIX, essa pergunta seria res-
pondida de forma simples e inequívoca, pois texto jornalístico era fundamentalmente o texto
que podia ser visto estampado nos jornais, aqueles cadernos periódicos e descartáveis impres-
sos em papel barato para divulgar as notícias do mundo. Simples assim. Mas as coisas muda-
ram bastante neste meio tempo, sobretudo quando as tecnologias eletroeletrônicas entraram
em campo, como telégrafo, telefone, gravador de som, rádio, cinema, televisão, telex, fax,
computador e até mesmo um simples aparelho celular34. E, se para McLuhan, a velha máqui-
na de reproduzir palavras de Guttenberg descortinou para nós uma galáxia, diante da internet
não podemos imaginar menos que incontáveis universos paralelos, tanto em termos de alcan-
ce quanto de velocidade. Estamos apenas no limiar desse multiverso35.
O pensamento jornalístico não se expandiu somente sobre essas novas tecnologias.
Velhos suportes também foram sendo apropriados, incorporados, modificados. Não são
poucos os jornalistas que optam hoje por publicar suas reportagens em forma de livro,
mas se pensarmos no trabalho de Euclides da Cunha em Os sertões ou no de Heródoto
sobre as Guerras Greco-Pérsicas, veremos que esse princípio nem é tão inovador assim.
Os cancioneiros medievais também iam de um reino a outro cantarolando novidades, co-
mo uma espécie de talk-show ambulante numa época em que notícia já era entretenimen-
to. E o que eram os antigos cronistas viajantes da América selvagem senão precursores
dos repórteres da National Geographic e do Discovery Channel? O new journalism de
Truman Capote e Tom Wolfe, inclusive, fez também o caminho inverso e inundou o jor-
nalismo tradicional de procedimentos tipicamente literários.
34
Em abril de 2002, os m eios de com unicação de m assa venezuelanos se dedicaram quase
exclusivam ent e à cobert ur a da deposição do president e Hugo Chávez. Em out ras épocas, o
povo não t eria out ra font e rápida de inform ação e est aria à m ercê do que depois se revelou
um com plô da m ídia em apoio a um golpe das velhas oligarquias. Mas a população de Cara-
cas inst ant aneam ent e criou um a rede de com unicação paralela e inform al at ravés dos celula-
res. Nas ruas, de posse desse m aravilhoso aparelhinho, a m assa popular que elegeu Chávez
est ava perm anent em ent e inform ada e art iculada, exigindo – e conseguindo – a volt a de seu
president e. O uso do celular com o rede de inform ação m udou a hist ória da Venezuela.
35
Uso o t erm o aqui ao m odo de um neologism o para designar as diversas realidades im at e-
riais possibilit adas pela int ernet . Mas o t erm o j á é velho conhecido dos fãs de quadrinhos de
super- heróis. Para os leit ores da edit or a am ericana DC Com ics, o m ult iverso é o conj unt o de
universos paralelos onde viviam versões alt ernat ivas dos personagens t radicionais do univer-
so principal da edit ora. Esses diversos universos foram fundidos em um único em 1985, no
m egaevent o Crise nas I nfinit as Terras.
61
Hoje, todos os caminhos se cruzam e as fronteiras não são mais tão claras. Gian-
francesco Guarnieri levou para o palco a luta do movimento sindical brasileiro em Eles
não usam black-tie. Óperas antigas são relidas e transpostas para novos cenários, como
O navio fantasma de Wagner, que, nas mãos de Gerald Thomas, acontece imprensada
contra o Muro de Berlim, entretecendo comentários visuais sobre a história do Século
XX. Notícias viram quadros, poemas, balés, e tudo mais. O que podemos dizer das can-
ções de protesto perseguidas por nosso passado regime militar? Ou da Guernica de Pi-
casso? Ou da fotografia de Sebastião Salgado? Ou do Capibaribe sem plumas de João
Cabral de Melo Neto? Ou de nossa literatura de cordel? Qual, então, o espanto em al-
guém fazer jornalismo em quadrinhos?
Uma rápida visita a qualquer banca de revistas mostrará uma gama de variações que
vai do jornalismo investigativo ao jornalismo opinativo, de textos éticos a textos opor-
tunistas e inescrupulosos, de temas tradicionais (como política, economia, cultura ou
ciência) a temas mais mundanos (como fofocas sobre artistas ou detalhes da intimidade
de famosos). Essa variedade tão grande e contraditória de abordagens indica, certamen-
te, a pluralidade própria dos diversos jornalismos possíveis. Vista assim, a palavra ‘jor-
nalismo’ será ampla o suficiente para abarcar tanto os repórteres da Time em campo de
batalha quanto as revistas sensacionalistas que perseguem astros de Hollywood à cata de
fofocas. Ao final desse leque de variações e tipos de jornalismo, uma conclusão possível é
que, para ser classificada como jornalismo, talvez uma obra não precise (e nem consiga)
apresentar, ao mesmo tempo, todas as possibilidades e facetas do jornalismo. Da mesma
forma, também não podemos querer que uma obra específica de jornalismo em quadrinhos
consiga conter todo esse leque de variações possíveis. Não podemos nem mesmo esperar
que, para ser chamada de jornalismo em quadrinhos, a obra tenha que corresponder a esse
ou aquele modelo de jornalismo. Afinal, quem foi que determinou que o jornalismo em
quadrinhos tinha que ser inaugurado tendo como parâmetro de jornalismo determinado mo-
delo? Para uma visão mais ampla do jornalismo em quadrinhos, o caminho mais adequado
é buscarem-se as variações e a amplitude do espectro em trabalho de outros autores, pois a
produção de Sacco é somente um jornalismo em quadrinhos entre tantos outros possíveis. O
pioneirismo de seu trabalho não o torna necessariamente um paradigma limitante para os
outros autores. Não podemos restringir a idéia de ‘jornalismo em quadrinhos’ somente a
trabalhos nos mesmos moldes.
62
expressão. Essa prática se alastrou pela juventude mundial como rastilho de pólvora
naqueles anos contestadores e incendiários. No Brasil da revolta contra a ditadura mili-
tar, a aclimatação gerou até uma versão tupiniquim do nome, ‘udigrudi’, corruptela de
underground.
A apropriação do quadrinho como parte desse processo contracultural não foi gra-
tuita nem inofensiva. Ao contrário, ela se revelou bastante estratégica. A literatura, o
teatro, a pintura e as outras artes tradicionais sempre foram arena de debates e revolu-
ções, tanto estéticas quanto ideológicas. Enquanto isso, o quadrinho se mantinha numa
quase absoluta ingenuidade. Obviamente, como qualquer produto cultural, o quadrinho
também reflete a ideologia de quem os produz, mas até os anos 1950 essa ideologia a-
contecia mais no registro do subliminar. O quadrinho underground desempenhou, en-
tão, um duplo papel: de um lado, permitiu ampliar o leque de ferramentas a serviço dos
processos revolucionários; de outro, operou uma inversão maliciosa de valores ao trazer
histórias sujas, cruéis e realistas para uma linguagem onde antes reinavam alegres bi-
chinhos falantes e exemplares e corajosos heróis quase sempre virtualmente assexuados.
Esse fenômeno não se restringiu somente ao quadrinho underground, pois projetou
seus reflexos até mesmo sobre o conservador mercado de super-heróis, como o Arquei-
ro Verde, que nas mãos da dupla Denny O’Neil (roteiro) e Neal Adams (desenhos) pas-
sou por alguns apuros mais sintonizados com a realidade, como quando descobriu que o
adolescente Ricardito, seu companheiro de aventuras, era viciado em heroína (saga pu-
blicada no início dos anos 1970).
2 . 4 – R EP O R T A G EN S EM Q U A D R I N H O S A N T ES E D EP O I S
D E S A CCO
Apesar de sua importância e visibilidade, a obra de Sacco não pode ser entendida
como um paradigma limitativo – e nem mesmo delimitativo – do que é ou não jornalismo
em quadrinhos. O jornalismo em si apresenta uma grande possibilidade de abordagens
diferentes e não dá para imaginar que, quando se fala em jornalismo em quadrinhos, ele
só possa ser feito da mesma forma que Joe Sacco. Seu trabalho é uma interpretação pes-
soal dos fatos, é uma reconstituição ‘dramatizada’, sua presença como repórter-narrador é
constante, o tom é opinativo, mas isso não significa que todo jornalismo em quadrinhos
tem que seguir esses parâmetros. E, de fato, nas diversas histórias em quadrinhos que
64
2 . 4 . 1 – Ca b r i ã o
de uma contrapartida textual – sobre padres jesuítas da cidade de Itu que aconselhavam os
fiéis a escrever cartas a Deus para contar seus problemas e fazer pedidos. As cartas seriam
depois queimadas no altar para que a fumaça conduzisse sua mensagem ao céu, mas não
antes de serem secretamente abertas pelos ‘distintos’ padres, que dessa forma eram conhe-
cedores dos mais profundos segredos da paróquia. A matéria textual diz:
CARTA DE ITU – Recomendamos aos nossos leitores as seguintes linhas, que nos
foram enviadas por um assinante como dignas de serem apreciadas.
“Contou-me um amigo de Itu, homem de espírito limpo de ridículas
superstições, que os jesuítas daquela cidade dizem aos seus penitentes que, quando
quiserem pedir alguma coisa a Deus ou aos Santos, lhes dirijam uma carta fechada
e a depositem sobre o altar de S. Luiz.
“Nessa igreja, as cartas são queimadas publicamente, dizendo os astutos
jesuítas que, com a fumaça sobe o recado a Deus ou aos Santos, que por este
motivo ficam inteirados do pedido e o satisfazem quando querem.
“Assim inventaram um correio muito expedito entre o paraíso e este mundo
sublunar, invenção mais simples e útil que o mesmo fio elétrico.
“Não basta aos tais ardilosos senhores jesuítas a alta polícia do
confessionário. Interceptaram também a correspondência entre a consciência de
seus escravos penitentes e Deus, indo aí os segredos domésticos que tanto eles
almejam conhecer.
“Veja se desmascara essa impudente impostura no seu jornal, fazendo a
esmola de abrir os olhos ao povo.
“O vigário de Itu indignou-se com este procedimento dos jesuítas (que, aliás,
ele mesmo meteu naquela cidade) e foi ter com os bichos reclamando contra esta
‘jonglerie’.
“O vigário já diz que ‘ele e eles’ são o azeite e a água que nunca podem
ligar-se.” (Op. cit., p. 320)
Também neste ponto, há uma distinção no uso das duas alternativas. A matéria em
quadrinhos limita-se a reportar o fato, em imagens sintéticas e texto direto, numa aborda-
gem mais informativa. A matéria textual, em contrapartida, localiza a fonte (mantendo-a no
anonimato), narra o fato principal, narra também outro fato correlato – a tentativa (frustra-
da) de interferência do vigário da cidade – e dá voz à súplica de que a denúncia no jornal
possa ajudar a por fim à impostura dos padres. Neste caso, a matéria verbal é mais informa-
tiva, mas só ela foge da simples narração dos fatos para expor outras opiniões (“O vigário
68
de Itu indignou-se com este procedimento dos jesuítas”) e pedir providências (“Veja se
desmascara esta impudente impostura no seu jornal”).
Os desenhos de Agostini eram feitos em litografia e não em xilogravura, como era
freqüente na imprensa mais comercial. A litografia torna mais fácil e rápido a elabora-
ção de gravuras com mais volume e tridimensionalidade devido aos meios-tons e à tex-
tura do lápis litográfico. A utilização da técnica denota uma certa ambição artística, um
desejo do desenhista (que, no caso, também é editor e jornalista) em expor seus dotes
técnicos. Na reportagem em quadrinhos “Incêndio”, seu desenho é até um tanto ligeiro e
descuidado, mas na grande maioria das vezes, suas caricaturas, cartuns e quadrinhos são
belos e bem elaborados.
O Cabrião era um tablóide de oito páginas, metade ilustrada e a outra metade somente
com texto. As ilustrações estavam restritas às capas (p. 1 e 8) e à página dupla central (p. 4 e
5). Agostini utilizava uma técnica mista para a impressão das páginas ilustradas, com lito-
grafia para os desenhos e impressão tipográfica para os textos. Com isso, cada página ilus-
trada deveria ser impressa duas vezes. As desvantagens eram o aumento do tempo de im-
pressão e algum possível ligeiro desencaixe entre texto e imagem (erro de registro). Mas as
vantagens eram compensadoras: o tipo de imprensa dá um ar mais jornalístico ao texto –
totalmente em harmonia com as páginas unicamente textuais do jornal – e os tipos móveis
permitem que as correções ortográficas sejam feitas com mais facilidade.
O quadrinista franco-suíço Rudolph Töpffer, anterior a Agostini, já fazia suas HQs
com textos escritos a mão. Ele propunha que, com isso, o texto se integrava de modo
mais harmônico ao desenho, o que não aconteceria com o tipo de máquina. De fato, esse
é o padrão visual utilizado de forma quase absoluta pelo quadrinho até hoje. Mas
Töpffer utilizava a técnica da autotipia, na qual o desenho a traço é feito de modo direi-
to num papel especial e depois aplicado invertido na pedra litográfica. A impressão final
inverte novamente o desenho. Esse processo assemelha-se ao atual, que também é feito
com o desenho já no aspecto final. Agostini não queria o desenho a traço, mas o de
meios tons. Para isso, desenhava diretamente sobre a pedra, de modo invertido, o que é
uma temeridade para quem não é Leonardo da Vinci, pois os erros ortográficos ocorrem
freqüentemente e são mais difíceis de corrigir.
A obra gráfica de Agostini é um dos maiores patrimônios quadrinísticos brasileiros,
com HQs curtas, jornalísticas ou não, apresentadas em jornais como o Cabrião, e longas
69
publicadas, de modo seriado, por anos a fio. Seu trabalho antecipou em décadas as páginas
dominicais de quadrinhos que fizeram a fama e fortuna de autores americanos. Mas Angelo
Agostini também é um dos maiores jornalistas do Século XIX no Brasil. Joaquim Fonseca
(1999, p. 213) o considera “uma das maiores figuras da imprensa brasileira em todos os
tempos”. Defensor ferrenho da liberdade de imprensa (além de tantos outros ideais libertá-
rios), Agostini foi vítima de um dos primeiros processos movidos no país contra um jorna-
lista. É bastante emblemático, portanto, que um dos patronos tanto do jornalismo quanto do
quadrinho nacional seja também precursor do jornalismo em quadrinhos.
O Brasil ainda deve a Agostini um estudo à altura de seu talento e de sua importância,
mas nos últimos anos sua obra vem sendo paulatinamente resgatada. Hoje, não depende-
mos mais de umas míseras reproduções descontextualizadas aqui e ali. Duas coletâneas
recentes são item obrigatório na biblioteca de todo pesquisador brasileiro de quadrinho.
A faceta jornalística e satírica de Agostini pode ser apreciada na edição fac-similar do
Cabrião, compilada e apresentada por Délio Freire dos Santos (e de onde extraí os e-
xemplos analizados acima). O trabalho é primoroso e todo o jornal (e não apenas as
histórias em quadrinhos) foi reproduzido na íntegra e sem alterações ou revisões. O lan-
çamento é um marco da memória tanto quadrinística quanto jornalística brasileira.
A faceta aventurosa e visionária do quadrinista Agostini está no livro As aventuras de
Nhô-Quim & Zé Caipora, uma edição organizada e apresentada por Athos Eichler Cardoso.
Infelizmente os textos originais foram transcritos para a grafia moderna e aplicados com
letras de imprensa. Isso pode ajudar na sua popularização, pois torna o resultado mais atra-
ente para os leitores jovens, mas descaracteriza um pouco a obra. Uma outra solução inte-
ressante seria manter o texto original abaixo dos quadros e fazer a transcrição no pé da pá-
gina. Mas mesmo com essa ressalva, o livro é, sem dúvidas, um dos lançamentos quadrinís-
ticos brasileiros mais importantes das últimas décadas (se não o mais importante).
2 . 4 . 2 – T h e N a t io n a l Po lice Ga z e t t e
Outro bom exemplo de jornalismo em quadrinhos no Século XIX são as ilustrações se-
qüenciais do jornal The National Police Gazette, antigo semanário policial e esportivo ame-
ricano. Em suas páginas, os textos jornalísticos eram freqüentemente acompanhados de
ilustrações em xilogravura. Algumas vezes, a imagem era a única figura a ilustrar a matéria
e mostrava um momento emblemático do fato reportado, como na Figura 28, datada de
70
1879. Nela, são vistos os últimos momentos de vida do assassino Walter Watson, con-
denado à forca por assassinato. Sua esposa, fiel até o fim, se despede com um beijo a-
paixonado. Além do casal central, há o carrasco com a forca, seu assistente com o ca-
puz, o pastor com a bíblia, o alçapão sob seus pés e até mesmo as escoras laterais que
sustentam a viga de onde pende a forca. Todos os elementos da cena são extremamente
econômicos, porém, indispensáveis. Outras vezes, a imagem era constituída de dois ou
mais quadros que mostravam momentos diversos da notícia em uma pequena história
em quadrinhos, como nos exemplos a seguir.
As imagens ilustrativas da Police Gazette não tinham apenas função narrativa,
mas também descritiva e respondiam algumas das perguntas clássicas da reporta-
gem, ou melhor, mostravam as respostas, como na ilustração de página dupla publi-
cada em 1883 (Figura 29). Ao centro, o quadro maior mostra o quê: a inauguração
da Ponte do Brooklyn, em Nova Iorque. Nosso olhar vagueia pela beleza imponente
da ponte, com suas pistas para carruagens, trens e pedestres. O vento tremula as
bandeiras, infla as velas dos barcos e empurra os balões que se aglomeram para o
evento. No primeiro plano, como um dos pontos altos da comemoração, uma banda
musical inicia a travessia inaugural.
No mesmo quadro, próximo à cabeça da ponte do lado nova-iorquino, o belo edifí-
cio da Police Gazette e seu relógio nos dizem quando: às 8:20 h da manhã (o céu claro
nos diz que é dia). Ausente na cena, a data em si é um caso particular por não tratar-se
de uma imagem figurativa. A inauguração da ponte foi um evento nacional cuja data
todos conheciam. O jornal publicou a reportagem gráfica duas semanas após o evento, o
que, para a época, não era um tempo longo. E, por fim, na mesma edição, estava a maté-
ria textual com as informações mais técnicas.
Os retratos ovais (devidamente legendados) mostram quem: o presidente americano, o
governador de Nova Iorque, os prefeitos e os construtores. As imagens laterais nos revelam
fatos correlatos: a chegada do presidente no lado de Nova Iorque e os políticos que aguar-
davam no lado do Brooklyn. Os detalhes da multidão, dos políticos e dos palanques mos-
trados conferem a essas imagens uma função eminentemente descritiva. A imagem superior
(dividida em duas) mostra os visitantes admirando a decoração do edifício da Police Gazet-
te e a inferior, o almoço para convidados nos salões do jornal. Percebe-se que estavam pre-
sentes as pessoas simples do povo e a elite social nova-iorquina.
71
36
No original: “ Raid in t he Tenderloin – Night scenes in t he st at ion following t he raid of
Clark’s not orious New York dive, where wine, wom en and song were in full sway.”
72
A leitura de um jornal ilustrado pode ser feita em três níveis: o das imagens, o dos
textos em destaque e o do corpo das matérias. É importante ressaltar que, no jornalismo
ilustrado, as imagens em si, tomadas isoladamente e sem o texto, constituem já um nível
de informação e estabelecem um discurso, mesmo que não-verbal ou pré-verbal.
The National Police Gazette foi fundado em 1848 como um jornal semanal ilustra-
do e a partir de 1878, tornou-se realmente um sucesso absoluto até ser suplantado pelos
grandes jornais diários da virada do século. Suas pequenas narrativas gráficas em xilo-
gravura tinham um altíssimo padrão de qualidade. Quando a expressividade dessas ilus-
trações é comparada com o aspecto estático das fotografias do mesmo período, é possí-
vel perceber que a fotografia não tinha apenas problemas técnicos a resolver, pois inda
lhes faltava casualidade e espontaneidade. Por mais paradoxal que pareça, os desenhos
da época pulsavam com mais vida que as fotografias.
O time de artistas a serviço do jornal era de extrema competência e inventividade, cujo rea-
lismo das imagens era decorrência de uma anatomia perfeita, perspectiva acurada e iluminação
sábia que valorizava o volume, a tridimensionalidade e a dramaticidade das cenas. Esse realis-
mo estava muito distante do aspecto caricaturesco dos jornais satíricos. A diagramação das ima-
gens também merece um destaque especial, por abandonar o óbvio e apresentar dinamismo e
integração em suas partes. Os requadros37 das seqüências quadrinísticas tinham freqüentemente
um formato variado e alternavam vinhetas redondas e retangulares. O resultado é mais dinâmi-
co e eficiente que boa parte da produção atual de HQs. Os cortes e os enquadramentos se situam
num meio-termo exemplar entre a composição clássica da pintura e o aspecto corriqueiro da
fotografia. Mas com um detalhe importantíssimo: a fotografia só alcançou realmente essa natu-
ralidade composicional décadas mais tarde.
2.4.3 – Maus
37
Vide glossário no final da dissert ação.
73
emotivo; no tempo passado, a narrativa mostra a dura luta de Vladek para sobreviver em
um campo de concentração nazista durante a II Guerra Mundial. O desenho segue a
linha despojada do quadrinho underground, em sintonia com o texto autobiográfico,
recurso que seria depois seguido por Sacco.
Maus foi inicialmente publicada em capítulos seriados na revista alternativa Raw –
editada pelo próprio Spiegelman – e posteriormente compilada em livro, em dois volu-
mes. O primeiro saiu em 1986, com o material produzido até então e, imediatamente
traduzido em diversas línguas, ganhou vários prêmios, entre os quais o de melhor álbum
estrangeiro no festival de Angoulême de 1988. Spiegelman continuou desenhando a
história e em 1992 lançou o segundo e último volume, repetindo a premiação em An-
goulême (1993). Com a coleção completa, em 1992 Maus rendeu a Spiegelman um Pu-
litzer especial (o prêmio não prevê a categoria quadrinho), além de tornar-se o argumen-
to-chave a favor da maturidade atual da linguagem do quadrinho.
No total, são 285 páginas mostrando essa dupla história de vida, de pai e filho de dife-
rentes gerações e períodos históricos também completamente distintos. Os personagens são
desenhados com proporções e postura humana, mas com cara de animais. Os nazistas cha-
mavam os judeus de ratos (maus em alemão) e os poloneses de porcos e é assim que eles
são desenhados por Spiegelman (Figura 31). Os alemães, obviamente, são gatos.
A Figura 32 mostra uma página típica de Maus, com traço econômico e sintético
que evita os detalhes supérfluos mas com expressão corporal e facial extremamente efi-
ciente. É fundamentalmente essa expressividade que conduz a narrativa e indica clara-
mente o registro emocional do texto. Esse traço solto – tão comum nas tirinhas de hu-
mor, no quadrinho underground e na moderna cena independente americana – é bastan-
te adequado a HQs autobiográficas ou confessionais como Maus, por conferir-lhes um
aspecto de escrita íntima ou de anotação pessoal.
A quadrinização utilizada por Spiegelman em Maus é relativamente regular, com pou-
cas variações de enquadramentos, onde freqüentemente predominam os planos médio e
americano. Eventualmente são utilizados o plano geral e o grande plano geral, mas o plano
de detalhe é utilizado com muita moderação. A narrativa gráfica é fundamentalmente clás-
sica, um pouco conservadora até, cujo momento mais diversificado fica por conta de uma
antiga HQ curta de Spiegelman incluída em Maus. A certa altura da história, a atual mulher
de Vladek mostra a Art uma revista com uma história alegórica que ele tinha desenhado
74
sobre o suicídio de sua mãe. O último quadro da página apresenta Art contra um fundo pre-
to segurando a revista na mão (Figura 33).
Chamada Prisioner on the Hell Planet – a case history (Prisioneiro do Planeta Infer-
nal), essa HQ tem quatro páginas e um estilo gráfico e narrativo bastante diferente de Maus.
Os personagens têm traços humanos, mas o estilo do desenho é mais expressionista. A nar-
rativa alterna planos de detalhe com outros mais abertos. A história foi publicada anos antes
de Spiegelman começar a série Maus, o que explica sua discrepância gráfica.
Sua inclusão em Maus também é diferenciada. Como se trata de um objeto existente no
plano diegético, isto é o plano interno da narrativa, sua presença na página é mostrada como
uma revista aberta, dobrada para trás (Figura 34). Na primeira página, vê-se inclusive a mão
de Art segurando-a, numa espécie de detalhe do quadro imediatamente anterior. O fundo
além das bordas da revista é preto e essas quatro páginas são o único lugar de Maus onde
isso acontece. Esse recurso gráfico demarca claramente a mudança de foco narrativo, con-
forme o conceito de ‘moldura do texto artístico’ proposto pelo semiólogo russo B. A. Us-
pênski em Elementos estruturais comuns às diferentes formas de arte – princípios gerais de
organização da obra em pintura e literatura. No ensaio, Uspênski faz uma análise compa-
rativa de molduras indicativas de mudança de ponto de vista ou foco narrativo tanto na lite-
ratura quanto nas artes visuais. Em uma história em quadrinhos, essa moldura delimitadora
acontece simultaneamente nos dois planos, o gráfico e o narrativo.
Eventualmente, Spiegelman também se vale de mapas e diagramas como recurso narra-
tivo auxiliar, como na página 10, quadro 7 (Figura 35), onde um caderno de anotações mos-
tra o esboço feito por Vladek de um típico esconderijo judeu por trás de uma parede falsa. A
página seguinte (Figura 36) mostra outro exemplo de uso criativo da configuração gráfica
como recurso narrativo. O quadro 1, em ‘L’, é muito fino, deixando entrever apenas o canto
de uma casa, com um detalhe da quina, com janela e telhado. Os três quadros seguintes,
contidos na área livre do ‘L’, têm uma localização que corresponde aos três compartimentos
do esconderijo, conforme mostrado no esboço da página anterior.
O cenário de fundo também apresenta eventualmente algumas metáforas visuais
como recurso narrativo. Na página 125, quadro 5, por exemplo, Anja e Vladek, fugiti-
vos, perambulam por uma Polônia controlada pelos nazistas. A estrada mostrada neste
quadro faz um cruzamento em forma de suástica (Figura 37), indicando que não havia
caminho seguro para os judeus nos territórios ocupados pela Alemanha de Hitler.
75
A narrativa clássica utilizada por Spiegelman na maior parte do livro faz com que as
soluções diferenciadas criem um claro contraste, destacando-se de forma naturalmente
evidente, mas sem a necessidade de se exagerar demasiadamente o conteúdo dramático.
Entretanto, isso não significa que as cenas mais chocantes fossem evitadas. A Figura 38,
por exemplo, mostra quatro judeus enforcados em praça pública. O momento do enfor-
camento em si não é descrito, pois seria apenas desnecessariamente melodramático. A
imagem principal, em um “L” reverso, domina o centro da composição. Os enforcados
pendem de uma trave, com a estrela de Davi aplicada sobre o peito.
A imagem dos corpos mortos tem seu potencial dramático explorado com sabedoria,
numa seqüência que engloba antecipação, impacto e distensão. A antecipação é obtida nos
três primeiros quadros, na metade superior da página, que mostram os personagens comen-
tando a prisão de alguns judeus e cujo suspense decorre do uso de expressões como “vieram
notícias piores”, “acabaram de levar meu amigo” e “fazer deles um exemplo”, mas o desti-
no dos desaparecidos ainda não é mencionado. O impacto do quadro 4 é visual. Vladek não
descobre o destino dos desaparecidos por ouvir dizer e sim ao vê-los enforcados. O leitor
também. O discreto recordatório no canto inferior direito do quadro, ao informar friamente
que os corpos ficaram lá expostos por uma semana, conduz à distensão empreendida nos
quadros 5 e 6, que diluem o impacto da cena anterior ao repetir e multiplicar suas pernas
pendentes em associação a um texto que não fala de suas mortes mas de suas vidas. Vidas
semelhantes às de muitos dos judeus anônimos que se juntam na multidão ao fundo.
Entretanto, o recurso gráfico mais marcante – e mais citado – de Maus é, sem dúvi-
da, o fato de os personagens serem desenhados com cabeças de animais. É essa também
sua característica que inicialmente mais causou incômodo – indignação até – pois levou
muita gente a concluir apressadamente que Spiegelman estava apenas reforçando os
preconceitos anti-semitas, quando sua intenção parece realmente ter sido a de explicitá-
lo para problematizá-lo e tentar suplantá-lo.
Essas cabeças animalescas sobre corpos humanos conferem aos personagens de
Maus uma aparência de pessoas usando máscaras. Quando estavam incógnitos ou dis-
farçados, isto é, quando se passavam por poloneses comuns, os judeus-ratos eram dese-
nhados usando máscaras de porco, como na página 149 (Figura 39). Mas nem sempre os
disfarces funcionavam muito bem. Algumas pessoas eram mais facilmente reconhecí-
veis, como Anja, mãe de Art. No quadro 7 da página 136 (Figura 40), Spiegelman deixa
76
isso claro utilizando recursos gráficos. Seus pais são desenhados de costas, com os ros-
tos de perfil mostrando as máscaras. Enquanto Vladek tem uma aparência mais discreta,
Anja mostra sua longa cauda, que sai por baixo da saia revelando sua verdadeira condi-
ção. O quadro 5 da página 155 mostra que, quando um desses judeus disfarçados era
localizado por um soldado nazista, ele era literalmente desmascarado (Figura 41).
Animais comportando-se e falando como pessoas são uma presença marcante na li-
teratura satírica, humorística ou na moralizante desde a antiguidade. No Século XX, os
desenhos animados de Disney e de outros autores levaram ainda mais longe esse recur-
so. Mickey Mouse é certamente um dos rostos mais conhecidos de nosso tempo. Mas o
quadrinho e o desenho animado também têm muitos outros ratinhos falantes, como Ig-
natz 38 (o ratinho que atirava tijolos no[a] apaixonado[a] Krazy Kat), Speedy Gonzales
(o Ligeirinho), Super-Mouse, Fievel, Pink e Cérebro e tantos outros. E não podemos nos
esquecer do brasileiríssimo Níquel Náusea, que apesar do nome parecido, não acha gra-
ça em ser confundido com o Mickey Mouse. O camundongo Jerry – da dupla Tom &
Jerry – não fala, mas nem precisa. E mesmo que o italiano Topo Gigio não seja dese-
nho, mas marionete, essa lista de ratinhos falantes ficaria desfalcada sem ele.
Os ratinhos desenhados por Spiegelman nesta história real e cruel contrapõem-se
completamente ao universo lírico de seus colegas de traço. Em Maus, esses estranhos
homens-ratos não remetem à fantasia mas ao surrealismo intrínseco do holocausto. A-
quela inicial aparência de fábula é logo invertida e negada, pois o autor não a usa para
mascarar e omitir os aspectos mais duros e grotescos da realidade. Ao contrário, Spie-
gelman joga essa realidade na cara do leitor, revelando-lhe em detalhes aquele vergo-
nhoso período da história do Século XX onde uma nação, baseada em princípios falsa-
mente científicos, impôs a outras pessoas condições sub-humanas de vida. Muita coisa
já foi dita sobre esse jogo entre mostrar e omitir das máscaras em Maus, mas uma das
observações mais interessantes é a do escritor Adam Gopnik, que é eventualmente cita-
da até pelo próprio Spiegelman. Em sua resenha Comics and catastrophe (Quadrinho e
catástrofe), publicada na revista New Republic de 22/06/1987, Gopnik (Apud:
O’SULLIVAN, 1990, p. 138) observa que
38
I gnatz e Krazy Kat foram criados por George Herrim an; Speedy Gonzales ( o Ligeirinho) foi
criado por Warren Fost er e Friz Freleng; Super- Mouse foi criado por Paul Terry; Fievel foi criado
por David Kirschner e Don Blut h; Pinky e Cérebro é produção de Steven Spielberg; Níquel Náu-
77
2 . 4 . 4 – Br ou g h t t o lig h t
O livro Brought to light (1989), com duas histórias apresentadas como graphic do-
cudrama, é provavelmente a primeira reportagem em quadrinhos nos mesmos moldes
das posteriores Palestina e Gorazde. Já o livro Maus é uma biografia que tem sua im-
portância jornalística determinada pela raiz testemunhal do relato da vida, ou melhor, da
sobrevivência em um campo de concentração para judeus durante a II Guerra Mundial.
Mas Brought to light, por outro lado, tem o objetivo claro de ser uma reportagem, sobre-
tudo a HQ Flashpoint. Neste sentido, é, certamente, a obra precursora que abriu cami-
nho para a produção contemporânea de jornalismo em quadrinhos.
Já antenado com a idéia de jornalismo, o livro traz, em destaque na capa, algo que
pode ser tanto um longo subtítulo quanto uma manchete: “30 anos de contrabando de
sea foi criado por Fernando Gonsales; Tom & Jerry foram criados por William Hanna e Joseph
Barbera; Topo Gigio foi criado por Maria Perego.
39
No original: “ Spiegelm an’s anim al heads are, purposefully, m uch m ore uniform and m ask-
like t han t hose of any ot her m odern cart oonist . His m ice, while t hey have dist inct hum an
expressions, all have essent ially t he sam e face. As consequence, t hey suggest not j ust t he
condit ion of hum an beings forced t o behave like anim als, but also our sense t hat t his st ory is
t oo horrible t o be present ed unm asked.” ( GOPNI K apud: O’SULLI VAN, 1990, p. 138)
40
No original: “ Do you t hink it ’s in bad t ast e t o have done a com ic book about t he Holo-
caust ? No, I t hink t he Holocaust was in bad t ast e.”
78
drogas, venda de armas e operações secretas que roubaram a América e traíram a Cons-
tituição” 41. (MOORE E OUTROS, 1989, capa)
Quanto à classificação, estampada na capa, como graphic docudrama, é importante
lembrar que o termo comics journalism ainda não existia em 1989. Por mais de um sé-
culo, o quadrinho americanos foram chamados de comic stories, independentemente de
seu teor. Eram comic stories tanto as hilariantes tiradas de Calvin e Haroldo (Bill Wat-
terson) quanto as sanguinolentas histórias de terror da EC ou as hipertestosteronizadas
batalhas dos super-heróis da Marvel e da DC. No início dos anos 1980, para fugir deste
estigma, histórias autocontidas, mais longas e de teor mais dramático – como Maus, por
exemplo – passaram a ser chamadas de graphic novel (romance gráfico). O termo gra-
phic docudrama parece seguir o mesmo raciocínio. A palavra ‘docudrama’ é um termo
cinematográfico utilizado para designar um filme no qual atores interpretam cenas que
reconstituem fatos reais (ou supostamente reais). Por definição, docudrama seria uma
espécie de documentário em forma de drama. A diferença fundamental entre o docu-
drama e o tradicional filme ‘baseado em fatos reais’ está em que o docudrama se pre-
tende menos artístico e mais documental que o outro. Um exemplo bastante conhecido
de mini-docudrama são as dramatizações de crimes apresentadas no programa Linha
Direta, da Rede Globo de Televisão.
Na introdução de Flashpoint, Jonathan Marshall tenta entender melhor a nova lin-
guagem. Para ele, o graphic docudrama é uma fusão do quadrinho educacional ameri-
cano dos anos 1940 e 50 com o quadrinho politicamente orientado dos anos 1960 e a
alta qualidade das graphic novels dos anos 1980. Na busca de uma conceituação, Mar-
shall (in: MOORE, 1989, página não numerada) se pergunta:
Isto é uma revista em quadrinhos tradicional? Isto é jornalismo puro? Não, mas esta é
uma excelente história. Para um leitor antiquado como eu, Flaspoint: The La Penca
Bombing quebra todos os estereótipos. Por um lado, não se trata nem das tradicionais
revistas de super-heróis para crianças nem desse tipo de lixo de entretenimento
supostamente preferido por adultos semi-alfabetizados. Por outro lado, apesar da
seriedade do assunto, isto certamente não se parece com jornalismo ou erudição. Com
sólida certeza e avaliação cuidadosa das evidências, [Flaspoint] se posiciona em favor
41
No original: “ 30 years of drug sm uggling, arm s deals and covert operat ions t hat robbed
Am erica and bet rayed t he const it ut ion”
79
Ainda sem um lugar específico, esse jornalismo em quadrinhos (ou docudrama grá-
fico, se preferirem) é comparado a outras linguagens conhecidas em busca de semelhan-
ças e diferenças. Mas seu caráter inovador e, sob certos aspectos, inédito não diminui
suas qualidades nem como quadrinho nem como jornalismo.
A HQ-reportagem mais jornalística do livro, Flashpoint – the La Penca bombing,
com texto de Joyce Brabner e desenhos de Tomas Yeates, aborda o envolvimento da
CIA no atentado para matar Eden Pastora, líder dos Contras, em 1984, na Nicarágua, e
de outras ações na América Latina. São 32 páginas onde o texto e os desenhos seguem
os princípios mais tradicionais do docudrama tele-cinematográfico e se baseiam em
investigações/testemunho do casal de jornalistas americanos Martha Honey e Tony
Avirgan. A reportagem começa com uma breve narrativa da guerrilha revolucionária
latino-americana e de como ela cruzou o caminho dos dois.
Os autores optaram por fundir graficamente a estrutura da história em quadrinhos
com alguns recursos ilustrativos do próprio jornalismo, como a utilização de mapas,
desenhos infantis e até cenas de cartilhas em quadrinhos que ensinavam a fazer coquetel
Molotov. Este tipo de recurso não é novidade no quadrinho, embora seu uso esteja cer-
tamente a serviço do realismo jornalístico. O desenho também é mais realista que no
quadrinho tradicional e a diagramação é dinâmica, com bom uso da integração dos qua-
dros e da sobreposição de elementos.
Na página 10 da reportagem (Figura 42), o impacto visual é planejado para conduzir a
argumentação mais por meio da imagem. O texto limita-se a ser um simples relato e des-
creve as manobras da FEMA – Federal Emergency Management Agency para desviar ar-
42
No original: “ I t is a t radit ional com ic book? I s it st raight j ournalism ? No, but it ’s a super
st ory. To an old- fashioned reader like m yself, Flaspoint : The La Penca Bom bing breaks ev ery
st ereot ype. On t he one hand, it ’s not t he usual superhero com ic for kids, nor t he kind of en-
t ert aining t rash supposedly favored by sem i- lit erat e adult s. On t he ot her hand, despit e seri-
ous subj ect , it cert ainly doesn’t look like j ournalism or scholarship. I t dispenses wit h hedged
assert ions and careful w eighing of evidence in favor of act ion, im pact and visual im aginat ion.
This “ graphic docudram a” com es w it h panel- aft er- panel of bright color draw ings, not t he
usual m ass of gray t ext and grainy halft one phot ography. I t ’s like a t elevision docum ent ary
80
you can carr y in your pocket – and w it hout t he usual net work censorship.” ( MARSHALL in:
MOORE, 1989, página não num erada)
81
clímax da página anterior, que mostrava um grupo de repórteres, entre os quais o próprio
Tony Avirgan, em um acampamento na Nicarágua para uma entrevista coletiva com Pasto-
ra, que denunciaria o envolvimento da CIA com os Contras. Um dos fotógrafos da equipe
era um agente da CIA infiltrado e a explosão da bomba levada por ele (disfarçada de equi-
pamento fotográfico) matou oito pessoas, entre as quais, cinco repórteres americanos. Avir-
gan e Pastora estavam entre os sobreviventes.
A outra HQ-reportagem do livro, Shadowplay – the secret team, com texto de Alan
Moore e desenhos de Bill Sienkiewicz, é uma fantasia em tom de fábula que complementa a
primeira. Em um bar decadente, uma águia americana antropomorfisada oferece seus ‘ser-
viços patrióticos’ de extrema direita aos possíveis interessados, enquanto relata alguns ‘ca-
sos de sucesso’ de suas ações na América Latina. O desenho é expressionista e cheio de
ousadias gráficas, um belo exemplo do trabalho de um artista então no auge da fama.
O texto começa com o narrador falando diretamente ao leitor, que dessa forma fica
inserido como um personagem: “Você nem se lembra como aconteceu de você estar
aqui”. A primeira página abre com uma estranha representação da Estátua da Liberdade
segurando uma bomba no lugar da tocha (mais à frente analisarei melhor essa imagem).
O texto nos avisa: “Isto não é um sonho”. Sabemos que estamos na zona portuária de
Nova Iorque, mas tudo é estranho. Um garoto vende jornais, mas suas páginas estão em
branco, como quem diz que nada por aqui vira notícia. É como se o mundo da lingua-
gem e suas metáforas tivesse se materializado diante dos olhos dos leitores. A antiga
imagem que pensávamos conhecer, a do sonho americano, era realmente só um sonho.
O texto nos lembra novamente: “Isto não é um sonho”.
Paramos diante da porta de um bar, empurramos e entramos. Dentro, uma estranha fi-
gura de terno nos oferece um drinque e puxa conversa. Estranhamente, ele tem a cabeça de
uma águia (Figura 44). Nosso companheiro de copo insinua que trabalha para o governo e
ajuda a remodelar outros países para combater o comunismo ou, em suas palavras, venden-
do sonhos (o American Dream?).
Estabelecidos o cenário e os personagens principais do drama, os autores partem para o
ponto central da matéria que é o relato de mais de 30 trinta anos de envolvimento de institu-
ições americanas em ações ilegais que causaram a morte de milhares de civis inocentes não-
americanos. Na página cinco, os autores contam como, na luta contra o comunismo na Chi-
na, os militares americanos instalaram Chian Kai-Shek em Taiwan. Para se estabelecer,
83
Chian massacra mais de 20 mil pessoas. Na página 5, quadro 5 (Figura 45), Alan Moore faz
as contas: um corpo humano tem em média um galão de sangue e uma grande piscina com-
porta 20 mil galões. Portanto, a pequena operação militar produziu uma piscina de sangue.
Como imagem de fundo, a Águia acena para seu amigo Chian deitada em uma confortável
bóia no centro de sua bela e rubra piscina. Daí em diante, a reportagem usa essa piscina de
sangue (ou seja, ´pacotes’ de 20 mil mortos) como parâmetro de comparação e cria um dos
mais mórbidos e infames padrões de medida já imaginados.
O ponto de vista do texto de Moore, acompanhado em sintonia perfeita pelo dese-
nho de Sienkiewicz, se mantém permanente e explosivamente provocativo. Um outro
bom exemplo é quando comenta o mesmo ‘incidente’ do atentado em La Penca. Na
página 25 (Figura 46), ele resume o relato propriamente dito a dois quadros metafóricos
semelhantes. No primeiro (página 5, quadro 3), o assassino da CIA, Amac Galil, está em
um campo de gado e segura uma bomba. O fundo alude à idéia de que o povo inocente é
tratado como gado, mas essa imagem talvez esteja associada ao sobrenome do líder dos
Contras, Pastora. No segundo quadro (página 5, quadro 4), com a mesma composição (co-
mo numa tradução da imagem anterior), Galil agora é o fotógrafo Per Anker Hansen e segu-
ra uma ´valise fotográfica´. Ao fundo, uma paisagem com um rio vermelho (sangue?).
No quadro 5 da mesma página, o texto diz: “Bum. Pastora sobreviveu. Cinco jornalistas
morreram”43. Abaixo desse texto sucinto, estão oito fotocópias degradadas de fotografias das
vítimas fatais, cinco das quais marcadas com um ‘X’ vermelho. O texto poderia então condu-
zir a um discurso indignado pela morte de jornalistas americanos, mas os autores dão uma
guinada total e lembram que, por anos a fio, muitos centro-americanos foram assassinados,
sendo 70 mil em El Salvador, 60 mil na Guatemala e um número desconhecido na Nicarágua.
Estimativa total: oito piscinas. Em comparação, “cinco jornalistas? Merda – isso mal é uma
poça”. O quadro 6 mostra o indicador de contagem: oito rubras piscinas. O último recordató-
rio do quadro está manchado com algumas gotas de vermelho que ressaltam a insignificância
da pequena poça de sangue americano diante das oito piscinas.
A presença da águia americana como um elemento de fantasia dentro de Shadowplay
pode, a princípio, parecer um procedimento totalmente antijornalístico. Mas é bom lembrar
que liberdades artísticas como essa já vêm sendo utilizadas pelo new journalism norte-
americano. Em seu livro Os eleitos, sobre os primeiros astronautas e a conquista espacial,
84
Tom Wolfe escreveu uma cena narrada do ponto de vista de um chimpanzé em pleno teste
de vôo do Projeto Mercury. E mesmo quando, em uma reportagem, se faz uma narrativa
subjetiva de alguém que não o próprio autor, está-se extrapolando os limites do jornalismo
tradicional. O solilóquio da águia americana de Shadowplay não apresenta nenhum tipo de
liberdade literária que não tenha sido anteriormente tomada pelo jornalismo.
Neste ponto, o grafismo exacerbado poderia fazer com que a denúncia investigativa so-
asse um pouco fantasiosa, o que não significa que esse tipo de desenho seja inadequado ao
jornalismo em quadrinhos, pois o jornalismo comporta abordagens completamente diversas
entre si. Para estilos jornalísticos diversos, estilos gráficos diversos. Alguns anos mais tarde,
Sienkiewicz lançou Voodoo child, uma belíssima biografia em quadrinhos de Jimy Hendrix
onde o aspecto lisérgico de seu desenho é uma solução extraordinariamente adequada para a
história de um astro da geração sexo, drogas e rock and roll.
Uma águia oferecendo seus serviços de extrema direita em um boteco decadente
parece uma fantasia delirante, porém os dados relatados são reais e foram extraídos da
Declaração de Evidência elaborada pelo Christic Institute. Os ‘casos de sucesso’ que
ela narra são documentados e baseados em diversos livros, filmes e vídeos cataloga-
dos ao final da história.
Brought to light significa ‘trazido à luz’ e a relação luz-sombra atravessa toda a obra.
A começar pelos títulos das duas reportagens em quadrinhos apresentadas. Shadowplay,
ou ‘teatro de sombras’, fala de ações ilegais que acontecem escondidas de todos, enquanto
Flashpoint, ‘ponto cintilante de luz’, acena com um lampejo de esperança que pode aju-
dar a iluminar essa escuridão. Bastante adequados para a narração de ações ilegais que
grupos militares e paramilitares de extrema direita executam à sombra das instituições
democráticas norte-americanas. Ações essas executadas em um mundo que, sob certos
aspectos, foi moldado à sombra dos Estados Unidos.
O resultado e os objetivos de Shadowplay são diferentes dos de Flashpoint. Uma maté-
ria tem conteúdo específico (relata o caso Pastora), enquanto a outra generaliza (e revela
que isso também se repete em outros lugares e em outras épocas). Uma é realista (a reporta-
gem-denúncia), enquanto a outra abusa do surrealismo (como quem diz que o fato em si já é
surreal). Juntas, as duas matérias compõem um conjunto complementar de discursos que,
pelo ineditismo da empreitada, teve um índice de acertos surpreendentemente alto. O livro
43
No original: “ Boom . Past ora survived. Five j ournalist s died.”
85
estabelece alguns dos parâmetros básicos do que viria a ser depois conhecido como jorna-
lismo em quadrinhos, o que realiza já como uma obra mestra, tanto pela técnica e pelo cui-
dado da produção quanto pelo assunto e pelas abordagens.
As HQs de Brought to light são reportagens em quadrinhos criadas a partir de informa-
ções fornecidas, sobretudo, pelo Christic Institute, uma organização americana sem fins
lucrativos, de bases religiosas, especializada em investigações legais de casos criteriosa-
mente selecionados que envolvessem direitos humanos, justiça social e liberdades individu-
ais, tanto dentro quanto fora dos Estados Unidos. Mas o livro também é uma das ações dire-
tas do próprio instituto no intuito – que o encomendou – de desmascarar as ligações da CIA
e de outras instituições americanas com o terrorismo mundial. O livro foi publicado durante
o processo judicial movido pelo instituto a partir dos relatórios por eles levantados e tinha
como objetivo ser uma denúncia pública. Por que escolheram a forma de uma história em
quadrinhos para fazê-lo? A resposta não é muito clara e não havia precedente para esse tipo
de peça jornalística. As opções anteriores eram a reportagem tradicional, o livro-
reportagem, o documentário e o docudrama tele-cinematográficos, entre outras. Na época, a
história em quadrinhos não era uma dessas alternativas previstas.
Certamente, o Christic Institute não apostou todas as suas fichas exclusivamente no
‘graphic docudrama’ Brought to light. Tanto o próprio caso judiciário, movido a partir
do relato do casal de jornalistas, como seus desdobramentos foram notícia em diversas
mídias. Mas, dado seu ineditismo, uma insólita reportagem em forma de história em
quadrinhos poderia ser muito mais que um simples veículo e despontar como um verda-
deiro fato de mídia. Para tanto, a produção das duas histórias foi cercada de certos cui-
dados, pois além de bem escritas, foram exemplarmente bem desenhadas e o livro bem
produzido, com as páginas coloridas impressas em papel couché e jornalistas de renome
convidados para escrever as introduções. O formato escolhido, 21,5x27,5 cm com lom-
bada quadrada, é maior que o padrão das revistas em quadrinhos comerciais americanas
e compõem um objeto diferenciado. A capa cartonada e plastificada também é um cui-
dado extra. E o projeto gráfico ainda inova ao utilizar uma direção de leitura reversa
para as duas histórias do livro, ou seja, uma está de cabeça para baixo em relação à ou-
tra. Cada uma começa em uma das capas e segue até o meio do livro.
O texto da orelha menciona que: “Brought to light funde a trama da reportagem in-
vestigativa e a sofisticação da embalagem de graphic novel e inventa uma nova forma –
86
o docudrama gráfico” 44. A aposta, portanto, parece realmente ter sido a de se criar uma
reportagem tendo como suporte um objeto único e absolutamente inusitado e, desse
modo, ganhar a atenção da mídia e, conseqüentemente, do público. Algo parecido com
as famosas campanhas de Oliviero Toscani para as lojas de roupas Benetton, direciona-
das inicialmente mais aos formadores de opinião e jornalistas que ao público final pro-
priamente dito. A escolha dos autores em Brought to light também foi estratégica. En-
quanto Brabner e Yeates são profissionais extremamente competentes e capacitados
para a empreitada, Moore e Sienkiewicz sobressaem como duas das maiores e mais po-
lêmicas estrelas internacionais do novo quadrinho dos anos 1980 pelo conteúdo de suas
obras e por suas atitudes e posturas ideológicas.
Quaisquer que tenham sido as intenções, vale ressaltar que o resultado saiu muito
acima do esperado, tanto que Sienkiewicz até hoje considera Shadowplay uma das obras
mais importantes de sua carreira. O livro, escrito sob o governo de Bush pai, ainda é
forte e incômodo e, a julgar pela nova política internacional de extrema direita do go-
verno Bush filho, cada vez mais atual, necessário e urgente. O Christic Institute, contu-
do, não sobreviveu a suas boas intenções. O processo contra a CIA não deu em nada,
pois o juiz alegou falta de provas. E uma série de processos judiciais apoiados pela CIA
contra o instituto lavaram-no à falência.
Em seu filme O ovo da serpente, o cineasta sueco Ingmar Bergman defende a idéia
de que, mesmo nos anos 1930, antes do início da II Guerra Mundial, já era possível se
antever o destino para o qual o nazismo estava arrastando a humanidade. Segundo ele,
um ovo de serpente pode parecer inocente e inofensivo, mas quando olhado contra a luz,
revela-se o monstro se formando em seu interior. Mesmo em Bergman o mal é uma
sombra revelada pela luz da verdade.
Moore e Sienkiewicz também olharam o ovo da serpente contra a luz. Shadowplay
inicia e conclui suas páginas com essa estranha imagem da Estátua da Liberdade. Na
primeira página (Figura 47), vê-se claramente que, em sua mão esquerda, ao invés da
tradicional Constituição, há uma valise de dinheiro. A tiara de sua cabeça não ostenta
mais raios de luz e sim perigosos mísseis nucleares. E sua mão direita não segura mais a
44
No original: “ Brought t o light fuses t he int rigue of invest igat ive report ing and t he sophist i-
cat ion of t he graphic novel package and invent s a new form – t he graphic docudram a” .
87
velha tocha com o fogo da liberdade, mas um misto de bomba-relógio com bomba de
pavio. O pavio está aceso. O texto adverte: “Isto não é um sonho”
Na penúltima página, estendemos a mão e saímos correndo do bar, empurrando portas
e tudo o mais que estiver à nossa frente. A cena toda é vista por uma desconfortável ‘câme-
ra subjetiva’. Na última página (Figura 48), estamos de volta ao cais do porto. Nossa mão se
funde com a paisagem, um navio parte em direção ao horizonte e aquela estranha versão da
Estátua da Liberdade é uma aparição à nossa frente. O canto inferior direito, geralmente
reservado para a palavra ‘fim’, está ocupado por uma daquelas piscinas vermelhas. Isto é
realmente o fim dessa história ou apenas uma interrupção até a próxima piscina de sangue?
O texto insiste: “Isto não é um sonho”. Não era. Doze anos depois, num certo 11 de setem-
bro, a profecia se concretizou a uns poucos quilômetros da Estátua da Liberdade.
2 . 4 . 5 – Fa x f r om Sa r a j e v o
Nos anos 1990, Sacco não foi o único a misturar jornalismo e quadrinho. A ele,
também se juntaram outros autores, como Kubert. Ao contrário dos cult/alternativos
Sacco e Spiegelman, o roteirista e desenhista Joe Kubert é um notório membro da gran-
de indústria americana de quadrinho comercial, tendo roteirizado e desenhado os princi-
pais personagens das grandes editoras americanas de super-heróis, como Flash, Tarzan
ou Homem-Gavião, até histórias aventurescas de guerra como Sargento Rock e Ás Inimi-
go. Sua escola, a Joe Kubert School of Cartooning and Graphics (aberta em 1976) formou
e continua formando muitos dos maiores astros das últimas gerações de quadrinistas ame-
ricanos. Kubert é, ele mesmo, um standard da tradicional indústria americana de quadri-
nho. Mas a dura realidade da Guerra da Bósnia invadiu seu trabalho através dos faxes
enviados por seu amigo bósnio Ervin Rustemagic.
Ervin é um empresário internacional e agente de arte de Sarajevo. Quando os tanques
invadiram e isolaram a cidade, seu único meio de contato com os clientes e amigos era
uma máquina de fax, que usou para enviar centenas de pequenas notas sobre o conflito e
sua luta para manter a família viva. Kubert era um dos destinatários dessas mensagens.
Em suas mãos, elas viraram um livro em quadrinhos de 208 páginas chamado Fax from
Sarajevo – a story of survival (1996), ganhador de diversos prêmios americanos e interna-
cionais. O que impressiona especialmente em Fax from Sarajevo é ver um grande domí-
nio da técnica narrativa tradicional sendo usado para documentar um fato real.
88
cífico de Fax from Sarajevo, acrescenta-se a peculiaridade ímpar de ser uma obra narra-
da a partir de um relato vivo, produzido no calor dos acontecimentos e enquanto eles
ainda se desenvolviam. O livro guarda um certo parentesco com o Diário de Anne
Frank. Tanto parentesco importante só faz aumentar ainda sua responsabilidade e Ku-
bert se sai muito bem na empreitada. As premiações e a respeitabilidade crítica colhidas
pela obra são uma evidenciam claramente isso. Dentre os prêmios, vale citar o de Me-
lhor Álbum Estrangeiro no Festival de Angoulême de 1998.
2 . 4 . 6 – O s in e v it á v e is e q u ív o co s. . .
Essas questões estéticas seriam até aceitáveis se a coleção cumprissem bem pelo menos
seu papel como reportagem, o que não ocorre. O problema primordial é que, como os pró-
prios autores deixam claro na apresentação, não existe nenhuma apuração direta dos fatos.
Não há indicação de que alguém tenha sido especialmente entrevistado ou de que os autores
tenham ido aos locais para uma pesquisa mais acurada. As informações levantadas para o
trabalho parecem se restringir exclusivamente às já publicadas nos jornais. Aconteceu em
quadrinhos é uma série que simplesmente parodia, comenta e se apropria de informações de
outros veículos, sejam essas informações verdadeiras ou não.
Obviamente, os autores devem ter feito alguma escolha a partir da avaliação das
inevitáveis contradições entre as diversas versões de diferentes jornais, mas eles fazem
questão de deixar claro que a ancoragem central da abordagem escolhida é a mesma do
jornal O Povo na Rua, o único veículo citado como fonte. Essa eliminação das contradi-
ções, certamente, foi feita tendo como base as próprias convicções ideológicas dos auto-
res e não uma imparcial busca da verdade dos fatos. Tal busca implicaria tanto em am-
pliar o acesso às fontes existentes – incluindo também inquéritos policiais, relatórios de
investigação, laudos técnicos e outros – quanto em produzir novas fontes – seja através
da entrevista direta com envolvidos e testemunhas ou de visitas ao cenário dos aconte-
cimentos, por exemplo. A julgar pelos resultados, nenhum desses recursos foi utilizado.
Como peça de jornalismo, essa coleção já nasce comprometida. Os autores se isentam
de suas responsabilidades jornalísticas e advertem que “para não causar danos morais
aos envolvidos, são omitidos os nomes reais, com os personagens sendo despidos de
suas características físicas verdadeiras” e que mantêm a cronologia dos fatos “na medi-
da do possível” (Op. cit. p. 2). Informam ainda que a reconstituição foi feita de acordo
com a visão do desenhista, sem ser necessariamente uma fiel retratação de cada ação
desenrolada durante o acontecido.
Com personagens falseados e sem respeitar rigidamente cronologia, isto não é, de
forma alguma, uma reportagem. Trata-se de uma peça ‘literária’ com liberdades ‘artísti-
cas’ que pretende apenas uma certa verossimilhança com o que os autores entendem
como a realidade social brasileira, dos subúrbios e das favelas. Os autores optam, por-
tanto, por essa verossimilhança, abrindo mão completamente da veracidade. Essa ambi-
ção ‘artística’ aparece mais claramente no uso de recordatórios enfeitados, que algumas
91
vezes têm forma de papiro enrolado, escudo de brasão, placa com cantos chanfrados ou
até mesmo de duas mãos se apertando.
Na quarta capa, declaram que as publicações não objetivam apontar culpados ou
sugerir providências e que a finalidade é apenas de reconstituir fatos verdadeiros
baseados, exclusivamente, no que foi noticiado nos jornais. Mostram, assim, que se
alinham muito mais com os jornais sensacionalistas e sanguinolentos que querem
simplesmente se apropriar e amplificar uma noção violenta de realidade, cujo objeti-
vo é o de vender mais jornais e revistas do que propriamente repensar a sua função
como reportagem. O jornalismo, principalmente o investigativo, busca, sim, apontar
culpados e/ou sugerir providências. Portanto, essas peças deixam bem claro o seu
alinhamento com o jornalismo sensacionalista.
Toda a condução da ação, além dos enquadramentos, da dinâmica das imagens e da pró-
pria estrutura narrativa como um todo, tem uma influência forte e clara dos filmes de ação
americanos, sobretudo os policiais violentos ou de guerra, como Rambo ou outros. Temos,
por exemplo, cenas com ponto de vista subjetivo no meio de tiroteios, drama humano indivi-
dual sobreposto à ação principal e ângulos de visão superiores que acompanham helicópteros.
Todos esses recursos são verdadeiros cacoetes do cinema de ação americano. Cada página de
Aconteceu em quadrinhos apresenta um único quadro sintético, sempre acompanhado de
um recordatório que conduz a narrativa. O início das duas histórias é direto, situado a ação
em poucas palavras e conduzindo diretamente à ação. As conclusões apenas fazem um ba-
lanço rápido dos casos, apresentando seu saldo em números de mortos e feridos. A estrutura
narrativa resulta absolutamente semelhante à dos docudramas apresentados no programa
Linha Direta, da Rede Globo, mas as duas obras diferem nas finalidades. O Linha Direta
também mergulha no chamado mundo cão, mas faz questão de indicar os culpados e de
mostrar que conduz à prisão dos acusados, apresentando-se como um programa de utilidade
pública (se real ou não, não vamos discutir aqui). A série Aconteceu em quadrinhos, ao fu-
gir de suas responsabilidades jornalísticas, fica apenas com o sensacionalismo inútil.
2 . 4 . 7 – . . . e o s m e r e cid o s p r ê m io s
Maus, Brought to light, Palestina – uma nação ocupada, Área de segurança Go-
razde e Fax from Sarajevo apresentam todos uma característica bastante peculiar: as
fartas premiações. Foram conquistados prêmios tanto nos países de origem quanto nas
92
3 – FO T O JO R N A LI SM O
A imagem fotográfica tem uma aura de veracidade que o jornalismo também alme-
ja, porque ambos pretendem-se uma transcrição fiel à realidade dos fatos e apresentam
um forte caráter documental. Se alguém fizer um desenho mostrando sua imagem junto
à Muralha da China, ninguém se sente obrigado a acreditar, mas se, ao invés disso, essa
pessoa mostrar uma fotografia, a credibilidade da imagem é praticamente automática.
Em certa instância, o jornalismo também opera de modo semelhante. Deu no New York
Times? Então deve ser verdade. Nada mais natural, portanto, que desde o surgimento da
fotografia o jornal a tenha desejado.
A aura de veracidade da fotografia às vezes também beira o campo da magia, como po-
de atestar o fato de que alguns povos não aceitavam ser fotografados por medo de ter assim
roubadas as suas almas. Verdade e poder são conceitos que desde o início estiveram auto-
maticamente associados à fotografia. A esposa desconfiada contrata um detetive para se
certificar da traição do marido. O que ele mostra como provas? Fotografias.
A fotografia tem a capacidade de tornar novamente presentes coisas e fatos que já
aconteceram, mesmo que há muito tempo. Uma fotografia de um campo de concentra-
ção nazista, por exemplo, revela sua existência de modo quase palpável. A presentifica-
ção de conceitos e fatos através da imagem é um fenômeno anterior à fotografia. Desde
a antiguidade, todo grande império sabe muito bem se valer de imagens para ajudar jus-
tificar e fortalecer sua existência. A efígie de Júlio César nas moedas romanas levava o
imperador a cada recanto do Império. É bem verdade que esses conceitos abstratos po-
dem ser questionados, combatidos e destruídos. De um dia para o outro, o terrível Muro
de Berlim virou um monte de cacos. Conceitos abstratos mudam com o tempo e a subje-
tividade de uma imagem desenhada, pintada ou esculpida – isto é, produzida pela mão
humana – não resiste a essa mudança. Sobre essa fragilidade das ambições faraônicas,
há um belo poema do inglês Percy Bysshe Shelley dizendo que, no deserto, uma placa
aos pés de uma estátua colossal traz, orgulhosamente, a inscrição: “Meu nome é Ozi-
94
mandias, rei dos reis. / Contempla minhas obras, ó poderoso, e desespera” 45. Mas da
estátua só restaram as pernas sem tronco e a cabeça semi-enterrada na areia. Ao redor,
sua tal obra não é mais vista, só o deserto infindo.
O Muro de Berlim não era causa da divisão das Alemanhas, mas uma conseqüên-
cia. A imagem simbólica do muro só existe e só opera porque a divisão que ele repre-
senta lhe é anterior. O fim dessa divisão retirou do muro seu poder e deixou apenas o
símbolo de um passado a ser corrigido. Quando as imagens personificam conceitos,
elas dependem da sobrevivência desses conceitos para que possam continuar tendo
poder. Mas conceitos morrem. Mitos morrem. Imagens morrem.
Entretanto, com o advento da fotografia, aquela cristalização de fluidos conceitos
abstratos desaguou em algo insólito: a presentificação quase mágica do real. Do ponto
de vista factual, a realidade que a fotografia representa forçosamente a antecede. É im-
possível se fotografar um objeto antes que exista ou um fato antes que aconteça. O fato
antecede a fotografia, nem que seja por aquela micronésima fração de segundo que a luz
leva para atingir o filme fotográfico. Mas do ponto de vista simbólico, dá-se o contrário.
A realidade dos fatos pode ser desconhecida ou estar em dúvida e a fotografia, ao servir
como prova, pode mudar o conceito da verdade. Um exemplo claro é o chamado ‘tira-
teima’ das provas esportivas nas quais os atletas chegam praticamente juntos e sempre
fica a dúvida sobre quem venceu a prova. É a fotografia que revela a verdade e decide
com quem ficará a medalha. No futebol, o tira-teima não pode ser utilizado durante as
partidas. A decisão do juiz em campo é soberana e não pode ser mudada facilmente,
mas os programas esportivos o aplicam após os jogos. O placar não muda, porém a ver-
dade não será mais a mesma. Meu time perdeu, mas o juiz errou. A fotografia prova
isso. Para sempre. Essa permanência da imagem fotográfica ante a volatilidade do
‘mundo real’ está bem expressa nas palavras de Roland Barthes (1984, p. 13): “O que a
fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que
nunca mais poderá repetir-se existencialmente”.
Desde que as fotografias surgiram, os jornais desejam tê-las impressas em suas páginas.
Os processos de impressão do Século XIX, contudo, não possibilitavam a realização desse
desejo. A técnica de transformação dos tons claros e escuros de uma fotografia na retícula
45
No original: " My nam e is Ozym andyas, King of Kings. / Look on m y works ye Might y, and
despair." Ozim andias é o nom e grego para o faraó Ram sés I I .
95
maravilhas mecânicas de então eram notórias por saber imitar atividades humanas e não
causavam mais assim tanta surpresa. Havia máquinas que andavam, máquinas que navega-
vam, máquinas que fiavam, que teciam e que bombeavam água. E as que ainda não existi-
am já eram sonhadas, seja por cientistas líricos e oníricos, seja por escritores adeptos de
uma ciência fictícia que chamamos invertidamente de ficção científica. Aqueles desenhos
de luz – também chamados por alguns de heliografias – certamente maravilhavam, porém
não mais surpreendiam entre tantas novas maravilhas que surgiam a todo o momento. Pas-
sado esse maravilhamento inicial, a fotografia logo impôs uma outra característica, essa
sim, inovadora: seu caráter documental. Pela primeira vez em toda a história da humanida-
de, uma imagem pictórica era um verdadeiro documento do real.
Desde a aurora dos tempos o homem produz imagens que, em alguns momentos,
chegaram a um grau de fidelidade e detalhismo impressionantes, a começar pelos bisões
da Gruta de Altamira, passando pelos retratos romanos e pelas paisagens do Gótico tar-
dio do norte da Europa, entre tantos outros. É bom lembrar que aquelas primeiras fotogra-
fias, ao contrário de um bom desenho, apresentavam uma grande margem de indefinições.
Para começar, eram em preto e branco, ou seja, invariavelmente desprovidas de coloração.
E por necessitarem de um longo tempo de exposição, seus temas estavam limitados a paisa-
gens inertes ou retratos duros, artificialmente posados. As primeiras vistas fotográficas das
movimentadas metrópoles européias como Londres e Paris mostravam ruas desertas, pois
ninguém ficava parado tempo suficiente para ter sua imagem capturada pelo lento processo
fotográfico de então. A falta de profundidade de campo, com os planos secundários clara-
mente desfocados, também era marcante. Os desenhos, pinturas e gravuras, por outro lado,
não tinham obrigatoriamente essas limitações. Podiam ser muito mais nítidos, detalhistas,
movimentados e coloridos que qualquer fotografia. Em suma, a imagem produzida pela
mão do artista era, na verdade, muito mais próxima da realidade imediata que a imagem
fotográfica. A fotografia colorida, dinâmica e nítida que conhecemos hoje é resultado de um
longo e penoso processo de sucessivas inovações implementadas ao longo das décadas.
A verdadeira novidade trazida pela fotografia em meados do Século XIX não foi a
qualidade da nova imagem mas, como foi dito acima, seu caráter documental. Por ser
mecanicamente capturada, a fotografia impôs-se como uma espécie de imagem ‘autori-
zada’ ou ‘oficial’ do mundo. Essa ‘autoridade’ da imagem fotográfica foi, desde cedo,
seu maior fascínio, seu maior poder.
97
Muita gente tende ainda a imaginar que, com o advento da fotografia, o artista não
precisaria mais saber desenhar e que isso daria a qualquer pessoa o poder de produzir
belas imagens. Esse argumento pode até ser relativamente válido para as modernas má-
quinas automáticas, mas absolutamente não era o caso diante do misterioso e ritualístico
processo de produção de um daguerreótipo. Primeiramente todo o equipamento era caro
e totalmente manual. Em segundo lugar, não havia filme pronto nem laboratório de re-
velação, devendo o daguerreotipista preparar e sensibilizar uma chapa de vidro especifi-
camente para cada imagem, além de revelá-la. Certamente, seria muito mais simples e
rápido se pegar um pedaço de papel e fazer um desenho. A verdadeira mágica da foto-
grafia consistia em trazer para diante dos olhos do espectador a própria luz capturada
que iluminava e modelava o objeto original. E, pela primeira vez, uma imagem, ao ser
vista, produzia no olhar humano a fabulosa sensação de estar olhando para o próprio
objeto mostrado (ou, pelo menos, para sua versão mais verdadeira), por mais tosca que
essa imagem pudesse ser. Barthes (1984, p. 11) materializa bem essa sensação: “Um dia, há
muito tempo, dei com uma fotografia do último irmão de Napoleão, Jerônimo (1852). Eu
me disse então, com um espanto que jamais pude reduzir: ‘Vejo os olhos que viram o Impe-
rador’”. Somente diante da imagem fotográfica – ou cinematográfica –essa afirmação pode
ser feita. Nenhum dos artistas que pintaram um retrato de Jesus esteve efetivamente diante
de seu modelo. Nenhum objeto, por seu turno, pode ser fotografado sem estar diante das
lentes de uma câmera fotográfica, mesmo que seja a mais distante estrela.
A pintura foi, muitas vezes, definida como uma janela. Agora, era como se a má-
quina fotográfica tivesse finalmente aberto essa janela, expondo ao espectador a própria
realidade e não mais sua imitação ‘falsificada’ pela mão do artista. É essa comunhão
mágica com a realidade que fez com que aquelas toscas imagens tecnicamente inferiores
aos desenhos pudessem ser consideradas mais fascinantes que esses. A fotografia é uma
imagem-documento. O gênio finalmente escapou da garrafa.
A fotografia impressa, contudo, não significou o fim do jornalismo gráfico-
seqüencial, que continua e continuará sempre útil, pois nem todos os acontecimentos
que viram notícia de jornal são fotografados. Em algumas situações, as câmeras fotográ-
ficas e filmadoras são mesmo proibidas e o jornalista-desenhista ainda é a única alterna-
tiva. Aqueles clássicos desenhos de julgamentos famosos não são exercícios artísticos
mas uma maneira de contornar a restrição à fotografia no tribunal. Esses desenhistas de
98
tribunal ainda trabalham nos mesmos moldes de Constantin Guys e dos artistas-
correspondentes do Século XIX. Outra grandes utilização da gráfico-seqüencialidade no
jornalismo impresso são as reconstituições de crimes e acidentes, cuja condição quadri-
nística é clara e inequívoca. Também existe seqüencialidade gráfica nos chamados info-
gráficos, mesmo que eles não sejam necessariamente narrativos. Lembro aqui o questi-
onamento de Thierry Groensteen de que o quadrinho não tem necessariamente que ser
uma narrativa. Scott McCloud, em sua definição à qual recorro permanentemente, tam-
bém não condiciona quadrinho à narrativa mas à transmissão de informações. O info-
gráfico é um discurso gráfico-seqüencial. Mesmo em menor escala, o quadrinho ainda
permeia o jornalismo impresso de forma indissociável.
3 . 1 – F O T O R R EP O R T A G EM CO M O H Q : A R EV I S T A O
CR U Z E I R O
Em uma reportagem tradicional, o eixo central de organização das idéias expostas está
no texto verbal46 principal ou corpo da matéria, ao qual podem ser acrescidos outros ele-
mentos como boxes, imagens (com ou sem legendas), gráficos, tabelas ou olhos. Esses ele-
mentos, contudo, são acessórios do texto principal. A fotorreportagem, ao contrário, é um
caso específico dentro do jornalismo onde o fluxo da leitura se dá não por meio do texto
verbal e sim através da seqüência das imagens. Neste caso, é o encadeamento das imagens
que estabelece o discurso da reportagem. O texto – geralmente reduzido à função de legen-
da das fotografias – é que tem uma função ilustrativa, pois o ponto fundamental da fotorre-
portagem é a preponderância da imagem sobre o texto.
Em seu livro A revolução da fotorreportagem, no qual analisa o jornalismo fotográfico
da revista O Cruzeiro, Nadja Peregrino (1991, p. 59) constata que “um primeiro fato que
chama a atenção [na fotorreportagem] é o sentido de crônica visual que organiza a informa-
ção dentro de uma ordem cronológica dos acontecimentos”. A preponderância da imagem
sobre o texto demonstra que a fotorreportagem não é uma simples reportagem verbal ilus-
trada mas, na verdade, uma reportagem visual auxiliada por texto. Segundo Nadja (Op. cit.,
46
Cham o- o aqui explicit am ent e de t ext o verbal por ent ender t ext o com o t essit ura de idéias e
não necessar iam ent e de palavras, o que t am bém t orna possível um t ext o visual ( com o o t et o
da Capela Sist ina, de Michelangelo, ou um a t ela de Mondrian) ou sonoro ( com o a Sext a Sin-
fonia de Beet hoven ou um a fuga de Bach) , por exem plo.
99
p. 59), “as informações fotográficas constituíam a matéria-prima para a edição das reporta-
gens ilustradas” e eram a base para a elaboração das legendas e dos textos. Essa preponde-
rância da imagem sobre o texto é reiterada mais adiante, quando ela diz que “a legenda ilus-
tra e complementa o processo de comunicação icônica” (Op. cit., p. 64). A fotorreportagem
de O Cruzeiro que escolhi analisar permite demonstrar as idéias da autora. Intercalei minhas
observações com citações do texto de Nadja para pontuar mais claramente as implicações
quadrinísticas de suas palavras.
Na edição de 9 de fevereiro de 1957 da revista, a primeira matéria inicia-se, nas pá-
ginas 4 e 5, com uma grande imagem de impacto (Figura 52). A reportagem, com seis
páginas, retrata a volta ao Brasil de um menino de dois anos e meio que passou quase
quatro meses com o pai em Londres para tratamento de um retinoblastoma, que destruiu
quase completamente sua visão. No canto superior esquerdo da primeira página da re-
portagem (página 4 da revista), o título informa: “Com a meia luz nos olhos, voltou ao
Brasil o menino Robson” (O CRUZEIRO, 1957, p. 4). Imediatamente abaixo, o lide
complementa: “Passou três meses e meio em Londres, tratando-se, e salvou a vista es-
querda, para ver o cachorro e os pássaros” (Ibid.).
À direita do lide, uma pequena fotografia, de aproximadamente 6,3x5 cm, mostra sua
mãe aguardando ansiosa no aeroporto em companhia de um grupo de pessoas. No pé da
mesma página, uma fotografia sobre um outro momento da espera: a vizinhança o aguar-
da em sua rua, toda enfeitada de bandeirolas de papel de seda e com faixa de bem-vindo.
Maior que a primeira, essa imagem tem 13,2x12 cm. Mas a terceira imagem é a maior e,
sem dúvida, a que mais impacta. Com 34,5x31 cm, ocupa uma página e um terço e mostra
a mãe exaltada segurando o filho no colo, rostos colados, e a mão enlaçando o pescoço do
marido. Essa terceira fotografia ocupa uma área 34 vezes maior que a primeira e 17 vezes
e meia maior que a área ocupada pelo corpo de texto da matéria. Não há a menor dúvida
sobre qual é o elemento mais importante dessa página dupla.
Cada uma das três fotografias tem uma breve legenda que a contextualiza. Cada con-
junto de fotografia mais legenda tem uma certa completude significacional. Com um rit-
mo crescente, essas fotografias dominam completamente a leitura e dão o tom emocional
da reportagem. O título, composto em três famílias tipográficas diferentes, é graficamente
chamativo. O lide é mais discreto mas, por formar um bloco compacto logo abaixo do
título, também conduz a uma leitura automática. O corpo de texto, que em uma reporta-
100
gem tradicional é a parte principal, tem aqui uma presença discreta na página. Provavel-
mente, sua leitura ficará por último. E o seu conteúdo é fundamentalmente uma paráfrase
ou tradução do que já apreendemos vendo os outros elementos. Certamente, há no corpo
de texto uma ou outra informação um pouco mais detalhada, mas ele não consegue deixar
de ser redundante em relação à eloqüência daquelas imagens.
E o que leva a pensar que o texto parodia as imagens e não o contrário? Primeiramente,
a organização do material. O corpo de texto é o elemento gráfico de menor destaque na
página. E em segundo lugar, o caráter imediato da imagem. Quando olhamos sem ler uma
mancha de texto, ela é apenas uma mancha e nada mais. Somente com o processo da leitura
propriamente dita é que aquelas letras amorfas viram informação. As fotografias, ao contrá-
rio, são imediatamente informação. Olhar uma fotografia já é lê-la, mesmo que em um nível
superficial. E somando-se o caráter imediato da informação fotográfica com sua disposição
na página, o resultado é a mencionada preponderância da imagem sobre o texto nas reporta-
gens fotográficas de O Cruzeiro.
O eixo central do fluxo da fotorreportagem, portanto, não é o texto verbal e sim o
conjunto das imagens fotográficas. Para que esse conjunto funcione como um discurso
articulado, é necessário que elas não formem um amontoado casual, mas estejam inter-
ligadas por algum critério. Para Nadja, esse critério é a ordem cronológica dos aconte-
cimentos, que organiza as informações dando a elas o sentido de crônica visual. En-
quanto uma fotografia isolada tende a congelar eternamente esse único instante na men-
te do leitor, uma seqüência gráfico-cronológica de fotografias fará com que o leitor
complemente as elipses representadas pela passagem de uma fotografia a outra, recom-
pondo o movimento e a ação dos personagens e recriando o que Nadja chama de “tempo
vivo”. O que distingue, portanto, a verdadeira fotorreportagem de uma simples reporta-
gem ilustrada é o encadeamento das imagens estabelecendo o fluxo das informações,
geralmente através da simulação gráfica do tempo do relato. Em outras palavras, na
fotorreportagem, a narrativa jornalística é de natureza gráfico-seqüencial.
A ordem de leitura e o tamanho das fotografias também são analisados por Nadja.
Geralmente, as grandes fotorreportagens de O Cruzeiro eram constituídas de dezenas
de fotografias que ocupavam muitas páginas, a maioria com diversas fotografias (fre-
qüentemente quatro ou seis). O início, meio e o fim das matérias era marcado por fo-
tografias de página inteira, alternando o ritmo visual da diagramação. E a direção de
101
leitura da seqüência de fotografias vai da esquerda para a direita e de cima para baixo,
correspondendo ao padrão de leitura do nosso sistema de escrita que, não casualmente,
é o mesmo das HQs ocidentais.
As conclusões de Nadja Peregrino sobre as características das fotorreportagens de O
Cruzeiro (que valem para as fotorreportagens em geral) correspondem com exatidão às
características de uma história em quadrinhos. Segundo Scott McCloud (1995, p. 9), histó-
rias em quadrinhos são “imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada
destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”.
Na fotorreportagem que analiso, os elementos componentes não somente estão dis-
postos em uma ordem deliberada, como essa ordem é exatamente a mesma de uma his-
tória em quadrinhos, conforme mostra o diagrama da Figura 53. O corpo de texto (qua-
dro “t”), por ser uma paráfrase de todo o restante, forma um elemento autônomo em
relação aos outros.
A leitura inicia-se pelo título (quadro 1), situado no canto superior esquerdo, que ex-
pressa o tópico principal da reportagem e tem no lide (quadro 2) o complemento dessa in-
formação. Observem que o lide forma um bloco relativamente compacto (juntamente com
os créditos e a legenda da primeira fotografia). Por formar um bloco do mesmo tamanho da
primeira fotografia, ele funciona como se fosse um dos quadros da seqüência. A primeira
fotografia (quadro 3), que mostra a espera da mãe, pode parecer desmerecidamente reduzi-
da, mas seu tamanho tem uma forte razão de ser, como veremos adiante.
O corpo de texto (quadro “t”) pode, facultativamente, ser lido logo em seguida ou somen-
te após a última fotografia, como se fosse o quadro 6. É justamente por sua localização ambí-
gua que não lhe conferi uma numeração seqüencial como os outros elementos, mas uma letra.
Seguindo a ordem das fotografias, chega-se à segunda, que é o nosso quadro 4. A primeira e a
última fotografia pertencem à mesma cena do reencontro. A segunda, ao contrário, mostra a
espera na rua onde a família reside. Longe de uma simples casualidade, percebe-se neste caso
um uso tanto econômico quanto sofisticado da narrativa em paralelo. As duas páginas seguin-
tes da reportagem mostrarão a chegada de Robson em casa.
Essa narrativa em paralelo é sofisticada porque serve para aumentar a expectativa da
cena principal, ampliando seu impacto, que explode na grande imagem que domina toda a
composição. Onde a primeira e a segunda fotografias eram contenção e angústia da espera,
a terceira (quadro 5) fica marcada pela pura emoção de uma mãe zelosa reencontrando seu
102
filho doente. A expressão visivelmente emocionada do rosto da mãe é o ponto focal de toda
a composição. O sorriso terno e suave do menino lhe serve com perfeição de contraponto.
Mas enquanto a mãe é toda emoção, o pai tem um olhar vago e ligeiramente preocupado,
como quem pensa que, mesmo que os médicos ingleses tenham estacionado a evolução da
doença, isso não muda a verdade de que seu filho está praticamente cego, enxergando ape-
nas vultos com o único olho que lhe restou. Entretanto, um detalhe sutil o trai e revela a sua
emoção: a maneira afetuosa como ele segura o carrinho de brinquedo sobre o coração, co-
mo se embalasse o próprio filho. A posição do carrinho em seus braços, inclusive, é exata-
mente a mesma da criança no colo da mãe. Ela tenta abraçar o marido, passando a mão ao
redor de seu pescoço, mas ele permanece inerte. Estamos em 1957 e sabemos muito bem
que homens não demonstram facilmente suas emoções. Completando a cena, o rosto sorri-
dente do funcionário do aeroporto que protege a mãe permite entender com clareza o choro
dela: são lágrimas de felicidade. O quepe do funcionário, com sua estrela bordada, dá à cena
um caráter solene, quase como uma cerimônia oficial. A fotografia, de Badaró Braga, é
perfeita. Sua composição é tão eficiente e exata em seus detalhes que ela parece ter sido
longamente calculada e não ter sido feita no calor de um momento fugidio e irrepetível.
A primeira e a terceira imagem apresentam um aparente salto. Na primeira, a mãe
aguarda a chegada do avião, com a cabeça um pouco levantada como quem o vê ainda
no ar, e na terceira imagem, já está com o filho no colo. Uma narrativa tradicional inse-
riria entre as duas uma imagem do avião pousando ou na pista, mas essa imagem, na
verdade desnecessariamente óbvia, é dispensável. Dessa forma, a inserção da segunda
imagem, com a cena da espera dos vizinhos na rua, é muito mais eficiente. Além de
mostrar um claro domínio da montagem clássica tipicamente cinematográfica (mas
também quadrinística), ela não somente é muito mais interessante e informativa que a
imagem do avião, como também dá o ritmo da passagem das outras duas.
A primeira imagem mostra a ansiedade e a terceira, emoção e alívio. A calma e dis-
tanciada espera dos vizinhos, ao intercalá-las, cria uma espécie de vale entre dois picos
de emoção, que ressalta com muito mais eficiência a explosão emocional da mãe na
grande imagem. Essa explosão também é amplificada pelo acentuado contraste de ta-
manho entre a grande imagem final e a pequena fotografia de abertura. Essa é a razão de
ser da pequena dimensão da primeira fotografia: fazer com que a terceira imagem pare-
ça ainda maior do que de fato é.
103
imagens apenas cumprem o preconizado no lide, como a que mostra Robson vendo o
pássaro na gaiola e a que o mostra alisando o cachorro.
A última fotografia da página, no canto inferior direito, é uma cena do dia seguinte,
mais íntima, com mãe e filho tomando o café da manhã. Sua função é servir de modula-
ção em direção à conclusão da narrativa gráfica, com cenas mais plácidas. Para tanto,
ela comunga com os dois momentos. Graficamente, ela faz parte do grupo de fotografi-
as da página seis, tanto no formato quanto em sua localização na composição. Mas seu
tema é estranho às duas primeiras partes da narrativa. Essa mãe, calma e atenciosa, em
nada mais lembra aquela exaltada mulher da página cinco.
Após a agitação das páginas anteriores, chega-se à grande fotografia que ocupa qua-
se toda a página sete. Nela, Robson brinca de carrinho com o irmão mais velho, cujo
estrabismo mostra que os problemas de visão são uma espécie de maldição familiar. O
carrinho é o mesmo que o pai segurava e que ele ganhou da Federação dos Sindicatos de
Motoristas de Lisboa, por onde passaram na volta da Inglaterra. O detalhe principal da
fotografia é o olhar vívido e interessado do garoto por seu brinquedo, mesmo que esse
olhar seja fraco, quase inexistente. A ternura da fotografia não esconde sua melancolia.
As páginas oito e nove (Figura 56) – as últimas da reportagem – rompem com o pa-
drão dos pares anteriores ao apresentar uma única fotografia que ocupa uma página e
meia e um texto mais longo (de meia página aproximadamente). A imagem mostra o
menino sozinho, apoiado na grade sobre a mureta da igreja da Penha, situada sobre uma
colina, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Uma névoa espessa encobre a paisagem ao
fundo e mal permite vislumbrar os telhados das casas mais próximas. Imagine-se então
o quão pouco Robson está vendo.
A composição da fotografia mostra o grande domínio técnico de Badaró Braga. A gra-
de protetora onde Robson está apoiado foi enquadrada em diagonal, imprimindo uma leve
dinâmica na imagem que, de resto, parece totalmente estática e contemplativa. A cena é
dominada por um poste de luz com uma luminária em forma de lampião. Ele traça uma
grande linha vertical situada a um terço da largura da fotografia, o que o situa no centro da
página da direita. O menino está exatamente a seu lado. Os dois elementos unem-se de for-
ma tragicamente irônica: Uma criança quase cega olhando uma paisagem enevoada ao lado
de um lampião. Até a grade protetora ganha aqui quase um sentido de prisão. No canto su-
perior esquerdo, estão as folhas de uma árvore que não é mostrada. Esse detalhe em silhueta
105
preta opõe-se ao branco da neblina, acentuando a profundidade do campo que, sem horizon-
te visível e sem ponto de fuga, perde-se no infinito de um futuro incerto. De todas as foto-
grafias, essa é a única não legendada. Sua eloqüência dispensa explicações.
A névoa nos sonega a paisagem. O título do texto que conclui a reportagem começa
com reticências – como se continuasse esse raciocínio – dizendo: “...E há névoa nos
olhos de Robson”. O corpo de texto é bastante longo para uma fotorreportagem, sendo
maior que todo o texto restante junto. Seu conteúdo é o mais informativo, narrando com
mais detalhes a história, além de também fazer algumas digressões sobre o sentido da
vida. Na verdade, o texto e a última fotografia formam quase uma peça autônoma em
relação às outras partes da matéria, como uma crônica ilustrada. Para ressaltar sua auto-
nomia em relação ao restante, esses dois elementos são ligados um ao outro por um re-
quadro grosso cinza claro. O conjunto assemelha-se muito às páginas de solilóquio inte-
rior que Frank Miller utiliza na série Sim City (Figura 57).
Os três pares de páginas apresentam variação, modulação e ritmo. Mais que uma
simples coleção de fotografias jornalísticas impactantes, essa fotorreportagem mostra
um ótimo aproveitamento do material fotográfico e de suas potencialidades narrativas,
que são estendidas e amplificadas pelo uso da seqüencialidade gráfica. Mas também não
se deixa dominar inocentemente pelo absolutismo da imagem. Quando necessário, o
texto longo é utilizado sem problemas. Desta forma, um outro elemento quadrinístico
também fica evidente: a integração dinâmica e criativa entre palavras e imagens, que as
utiliza exatamente pelo que cada uma faz de melhor.
Com tanta semelhança de procedimentos entre o quadrinho e a fotorreportagem clás-
sica, é importante ressaltar as principais diferenças: o fato de usarem fotografias ao invés
de desenhos e de não usarem balões. Quanto à fotografia, o que foi dito aqui para a foto-
novela como quadrinho também vale para a fotorreportagem.
Quanto aos balões, uma rápida análise é capaz de mostrar que eles são freqüentes
mas não indispensáveis em uma história em quadrinhos. Existem HQs totalmente sem
texto, como O sistema, de Peter Kuper, ou HQs sem balões mas com um texto narrativo
fora do quadro (ao modo das legendas de fotografias) tanto nas antigas histórias de
Töpffer como nas modernas histórias de Loustal. A definição de quadrinho proposta por
McCloud – e que utilizo como base – não menciona desenho ou fotografia nem muito
menos texto ou balões.
106
Mas será que a equipe da revista O Cruzeiro tinha consciência das implicações qua-
drinísticas de suas fotorreportagens? Bem, minhas pesquisas não têm a intenção de res-
ponder a essa pergunta, mas uma coisa é certa: se não tinham consciência, pelo menos
tinham coerência. A gráfico-seqüencialidade era um elemento marcante nas fotorrepor-
tagens publicadas na revista. E com grande domínio da técnica narrativa quadrinística,
com uso exemplar de ações em paralelo, ritmo visual, composição e uso da paginação
com finalidades narrativas. O domínio da gráfico-seqüencialidade pelo pessoal da revis-
ta equipara-se ao dos melhores quadrinistas.
E não podemos esquecer do grande destaque que a revista sempre reservou ao hu-
mor e ao cartum. O imortal Amigo da Onça foi, por anos a fio, presença indispensável
nas páginas de O Cruzeiro. Na mesma edição de 9 de fevereiro de 1957, sete páginas
foram reservadas para as colunas identificadas como ‘humorismo’. Além da página O
Amigo da Onça, ainda desenhado por Péricles, há duas páginas para Perguntas inocen-
tes, de Carlos Estevão, duas para Garotas, de A. Ladino e Alceu Penna, e duas para O
pif-paf, de Emmanuel Vão Gôgo (que nada mais é que o pseudônimo de Millôr Fernan-
des no início da carreira como uma espécie de cruzamento tupiniquim de Emmanuel
Kant com Vincent Van Gogh).
As relações de O Cruzeiro com as histórias em quadrinhos são ainda mais amplas. Zi-
raldo – mais conhecido como jornalista de O Pasquim e como autor do bestseller infantil O
menino maluquinho – também trabalhou na revista na qual, em 1963, lançou a fotofofoca,
que é uma espécie de cartum fotográfico. Quando passou a ser editada em uma revista es-
pecial, a fotofofoca foi rebatizada como fotopotoca, nome pelo qual ficou mais conhecida.
A fotopotoca consiste de uma fotografia com balões de diálogo humorísticos. Esses diálo-
gos irreverentes costumam alterar o contexto original da fotografia, criando o humor através
do conflito de idéias. A fotopotoca está para a fotonovela assim como o cartum desenhado
está para a história em quadrinhos desenhada.
Em 1960, por meio de O Cruzeiro, Ziraldo lançou a revista em quadrinhos mensal
Pererê, um dos marcos das HQs brasileiras e cuja primeira fase durou até 1964. Na dé-
cada de 1970, Pererê seria reeditada pela Editora Abril, mas não passou então de 10
números. Com onças, corujas, índios, sertanejos e, obviamente, um Saci Pererê, a revis-
ta de Ziraldo é uma louvação dos tipos e personagens genuinamente brasileiros, com um
traço limpo e pop e histórias inventivas e divertidas.
107
3 . 2 – ¡ ¡ V I V A L A L I B ER T A D ! !
produzidas independentemente umas das outras seja reunido em uma narrativa única e
coerente. As fotografias apresentadas em ¡¡ Viva la libertad !! não são creditadas. Aliás, a
revista – praticamente um panfleto – só não é totalmente anônima devido à identificação
da gráfica num discreto rodapé da página 9, mas nenhum jornalista nem fotógrafo é citado
nominalmente. Na página 4, uma referência genérica diz:
Algumas das fotografias utilizadas parecem ser de arquivo e outras parecem fotografias
oficiais de cerimônias governamentais, mas a grande maioria é constituída realmente de
fotografias dos episódios da revolta contra a ditadura militar. Cada episódio é narrado em
um capítulo próprio com uma a cinco páginas. Para marcar o início de cada novo episódio é
utilizado um título, com o tom entre o jornalístico e o folhetinesco, como “Princípio do
fim...”, “Empalidece a esperança”, “A fuga do tirano” ou “O sabor da liberdade”.
A narrativa gráfica inicia-se na página 6 com uma imagem trêmula dos aviões dos
militares rebeldes sobrevoando Caracas (Figura 58). A fotografia ocupa mais da meta-
de da página. Na fotografia abaixo, um buraco em rua arruinada é inspecionado com
interesse por um grupo de curiosos. Provavelmente trata-se de um resultado do bom-
bardeio. Entre as duas fotografias, uma única legenda descreve: “Aviões rebeldes so-
bre Caracas, momentos antes de metralhar [o Palácio de] Miraflores, residência presi-
dencial” 48 (Op. cit., p. 6).
A primeira imagem da página seguinte é reveladora dos procedimentos narrativos
dos autores e mostra um grupo de cinco soldados operando um canhão antiaéreo. Eles
são identificados como militares leais ao governo repelindo o ataque aéreo rebelde. A
cena é noturna e foi feita com auxílio de um flash. Os soldados estão muito calmos e
tranqüilos. Cinco soldados também parecem uma quantidade desnecessária e excessi-
47
No original: “ Arriesgando sus vidas, los fot ógrafos – profesionales y aficionados – cum plie-
ron t am bién su deber. Gr acias a su valient e act it ud el m undo ent ero puede vivir la hist oria
de nuest ra revolución, expresada gráficam ent e en las páginas que siguen. Par a ellos, nuest ro
hom enaj e agradecido.”
48
No original: “ Aviones rebeldes sobre Caracas m om ent os ant es de am et rallar Miraflores,
residencia presidencial.”
109
bastante condizente não somente com os propósitos de uma fotorreportagem, mas tam-
bém especialmente com a revista onde se encontra que, como diz o subtítulo estampado
na capa, se propõe a ser uma “história gráfica” do fim da ditadura militar.
O corpo de texto desse capítulo narra o surgimento e a circulação desses panfle-
tos-manifestos. O texto limita-se a comentá-los e situá-los para o leitor, em alguns
casos informando também sua importância ou suas repercussões. A única exceção, no
final do texto da página 18 (Figura 61), é a citação do panfleto que conclamava o povo
para uma manifestação geral de desagravo contra o governo tirano. Essa citação en-
cerra o corpo do texto em um parágrafo isolado e em caixa alta que, não por acaso, é
uma solução gráfica para destacar um texto.
No final da página 19, aparece a reprodução do próprio panfleto citado. A sua locali-
zação na página é idêntica à de sua citação em caixa alta na página anterior. Ambas estão
no canto inferior direito e têm o sentido gráfico de conclusão. A diagramação da página
19, inclusive, também é calculada e eficiente. O manifesto maior ocupa os dois terços
superiores da página. O corpo de texto pequeno indica que o original foi reduzido. A
margem esquerda é um pouco maior que a direita, fazendo com que a composição pareça
ligeiramente empurrada para o lado externo (direito) da página.
O rodapé da página está dividido por duas reproduções. A da esquerda, também li-
geiramente reduzida, corresponde a um texto mimeografado. Sua margem esquerda
também é maior que a direita, reforçando o efeito da imagem superior. Mas o elemento
mais singular da página é a imagem final, que mostra o panfleto da manifestação geral.
A reprodução tem um corpo de letra bastante legível. Provavelmente, a imagem foi li-
geiramente ampliada em relação ao original. E sua localização também é singular. Em
uma página de composição arejada, onde as margens laterais são grandes, essa imagem
encontra-se a um mísero meio centímetro da borda externa, a lateral direita. Quase va-
zando, ela conduz imediatamente às duas páginas seguintes que, obviamente, relatam a
manifestação e seus efeitos. Portanto, mesmo em uma seqüência de quatro páginas tex-
tuais, a diagramação e o pensamento gráfico é que fazem a condução do tom emocional.
Mesmo que as idéias estejam expostas no texto verbal, é a diagramação que diz como
elas devem ser interpretadas ou o que deve ser valorizado.
O resultado final é o mesmo dos manjados ganchos de final de capítulo de um
folhetim, como os romances em fascículos que saíam encartados nos jornais do Sé-
112
culo XIX ou sua versão moderna, as telenovelas. Além do gancho, há o uso sagaz e
criativo da virada de página, recurso muito utilizado por histórias em quadrinhos e
fotonovelas. Se uma situação dramática conduz a uma revelação súbita, geralmente
essa revelação só é dada no primeiro quadro da página seguinte, mantendo o misté-
rio que seria frustrado se, durante a leitura da página, o leitor já estivesse vendo a
imagem da futura revelação.
Um outro elemento que também ressalta as qualidades folhetinescas da revista ¡¡
Viva la libertad !! é o fato de as reportagens-capítulos formarem um único bloco se-
qüencial. Os capítulos estão fundamentalmente na ordem cronológica dos eventos.
Mesmo os de cronologia mais flexível, como a coleção de panfletos, estão estrategi-
camente inseridos de modo a auxiliar na condução da ação.
Esse domínio absoluto da narrativa gráfico-seqüencial mostra que, mesmo com o fato de as
histórias em quadrinhos terem sido consideradas culturalmente inferiores e socialmente nocivas
nos meados do Século XX, sua técnica narrativa estava largamente disseminada no jornalismo
impresso. Como o quadrinho antecede a fotorreportagem, devemos concluir que ele a influen-
ciou e não o contrário. A revista Life – que fez as primeiras experimentações mais ousadas e que
moldou e ditou os parâmetros da fotorreportagem – só surgiu em 1936 quando as histórias em
quadrinhos já tinham desenvolvido todos seus principais recursos técnicos. E no Século XIX –
quando os jornais ainda não traziam fotografias impressas – a seqüencialidade gráfica das histó-
rias em quadrinhos já era utilizada como recurso auxiliar do jornalismo, como vimos em Agos-
tini e em The National Police Gazette.
As evidências sugerem que o período que vai do início dos jornais com fotografias
impressas na virada do século até o surgimento da fotorreportagem com a revista Life
teria sido apenas um período intermediário entre dois tipos de jornalismo gráfico-
seqüenciais. No início, certamente era mais simples a utilização direta de uma ou de
algumas fotografias como ilustração no sentido tradicional do termo. Mas com o tem-
po, o domínio técnico da reprodução fotográfica e o desenvolvimento da linguagem
foto-jornalística permitiram e demandaram maiores ousadias gráficas. A fotorreporta-
gem é uma resposta a essa demanda.
Situar a fotorreportagem como uma simples evolução do fotojornalismo, ignorando
suas origens no jornalismo gráfico-seqüencial do Século XIX, é não compreender suas
reais implicações. Fotorreportagens são reportagens em quadrinhos avant la letre. Elas
113
são a ponte de ligação entre as congêneres de The National Police Gazette e os novos
procedimentos inaugurados por Brought to light. Ora, se a fotorreportagem é uma histó-
ria em quadrinhos através de fotografias, isso faz dela um tipo de fotonovela.
3 . 3 – A M P L I A N D O O CO N CE I T O D E F O T O N O V E L A
construiríamos para essa ‘nova coisa’ não se aplicaria às velhas fotonovelas, como se elas e
esse ‘outro’ não fossem da mesma natureza.
Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa. Mudar seu nome não muda o seu
perfume. No final da década de 1970, Will Eisner escreveu e desenhou uma histó-
ria em quadrinhos chamada Um contrato com Deus, cujo conteúdo não era infanto-
juvenil. Ele não queria, portando, que ela fosse lançada por uma editora de quadri-
nho, cujos produtos, na época, eram vendidos exclusivamente em lojas especiali-
zadas em quadrinho (e, conseqüentemente, freqüentadas somente por crianças e
adolescentes). Para atingir o seu público correto, isto é, os adultos, ela precisaria
estar à venda em locais freqüentados por adultos, como as livrarias. Para conven-
cer uma editora de livros a lançar sua HQ, Eisner disse que tinha inventado uma
nova linguagem, que ele batizou de ‘romance gráfico’ – ou graphic novel, no ori-
ginal em inglês. Curioso, o editor pediu para ver o material. Após folheá-lo, recu-
sou alegando que o produto ainda era apenas uma história em quadrinhos. Ele não
foi muito esperto em recusá-la, pois Um contrato com Deus vendeu bem, ganhou
alguns prêmios e tornou-se um marco histórico do quadrinho adulto. Mas sua ava-
liação estava correta. Uma graphic novel ainda é tão somente uma história em
quadrinhos. Essa distinção é unicamente mercadológica, mas muita gente, ao tentar
valorizar esses produtos mais sofisticados, acaba perpetuando e amplificando os
preconceitos contra o quadrinho em geral, ao insinuar que aquelas graphic novels
são diferentes do resto, ou seja, do lixo.
Qual seria, portanto, a vantagem de se criar um neologismo para que as fotonovelas
fossem academicamente apresentáveis? Quaisquer que fossem os ganhos, eles não seri-
am compensadores diante das perdas. Ao contrário, creio que a insistência no nome
tradicional – forçando uma inversão de valor – é mais honesta e compreensível.
Entendo a fotonovela como uma história em quadrinhos com fotografias no lugar
dos desenhos. A diferença entre a fotonovela e as histórias em quadrinhos tradicionais é
mais ou menos a mesma que existe entre o cinema tradicional e o desenho animado.
Tanto um filme de atores quando um de animação são igualmente cinema. O princípio
que rege os dois é o mesmo: imagem em movimento. Se essa imagem é fotografada ou
desenhada, isso certamente implicará em uma série de especificidades, mas não a ponto
de algum deles deixar de ser cinema.
115
A História em quadrinhos seria uma narrativa (mas ela não é necessariamente uma
narrativa) constituída por imagens feitas à mão por um ou vários artistas (isto elimina
o cinema e a fotonovela), sendo essas imagens estáticas (diferentemente do desenho
animado), múltiplas (ao contrário do cartum) e justapostas (diferentemente da
ilustração e do romance em gravuras). Mas esta definição ainda se aplica muito bem
à Coluna de Trajano e à Tapeçaria de Bayeux. Seria necessário solicitar também a
aplicação sobre papel ou outro material análogo. 49
49
No original: “ La bande dessinée ser ait un récit ( m ais elle n’est pas forcénem ent um
récit ...) const it ué par des im ages dues à la m ain d’um ou plusieurs art ist es ( il s’agit
d’élim iner ciném a et rom an- phot o) , im ages fixes ( à la différence du dessin anim é) , m ult iples
( à la différence de l’illust rat ion et du rom an en gravures...) . Mais cet t e définit ion s’applique
116
Por essa definição, fotonovela não é quadrinho porque não foi desenhada a mão.
Com tanta especificidade excludente, é como se Couperie estivesse simplesmente di-
zendo: tire tudo o que não é HQ e o que sobra é HQ. Ao seguir esse raciocínio, deverí-
amos também excluir do grupo as HQs pintadas, feitas com colagem, em baixo-relevo,
por computador, bordadas ou que utilizem qualquer técnica que não o desenho.
Um outro fator neste desdém da teoria de quadrinho para com a fotonovela é certa-
mente o seu tema magno. A grande massa da produção comercial de fotonovelas restrin-
gia-se fundamentalmente a histórias românticas. As narrativas podiam ser incrementadas
com elementos de suspense, drama ou outros, mas o romance estava quase sempre pre-
sente. É provável que seu principal público histórico também conte neste descaso. As
fotonovelas românticas eram dirigidas, sobretudo, às mulheres de baixo poder aquisitivo.
Deixando claro o preconceito, talvez as fotonovelas tenham deixado de receber a devida
atenção dos pesquisadores por ser ‘coisa de mulher’, e pior, mulher pobre e sem instrução.
Se for o caso, isso revela não somente um preconceito em relação às fotonovelas, mas
também em relação à própria mulher.
Essa omissão em relação à fotonovela também transparece nas enciclopédias tradicio-
nais. A Enciclopédia Mirador Internacional, edição de 1995, não considerou a fotonovela
digna de um verbete. Ainda mais recente, a versão de 1997 da Nova Enciclopédia Barsa
também a ignora solenemente. Em 1970, a Grande Enciclopédia Delta Larousse não lhe
dedicava um verbete, mas a edição de 1988, intitulada Grande Enciclopédia Larousse
Cultural lhe concedeu cinco linhas. A Larousse Cultural, contudo, não é uma simples
enciclopédia e sim um dicionário enciclopédico, o que a obriga a contemplar os verbetes
característicos de um dicionário.
Nas obras de referência específicas de fotografia, o resultado não é melhor. A foto-
novela é ignorada por obras como a Enciclopédia Focal de Fotografia (1975), o Dicio-
nário de Fotografia de Pichard Ehrlich (1986) e o Dictionnaire Mondial de la Photo-
graphie, da Larousse (1994).
Os dicionários tradicionais obviamente não a ignoram. E nem poderiam. Nossos dois
mais importantes léxicos, numa demonstração de clareza, classificam a fotonovela como
um tipo de história em quadrinhos. O Aurélio diz que a fotonovela é uma “narração nove-
encore t rès bien à la colonne t raj ane et à la t apisserie de Bayeux... I l faudrait invoquer en
plus la j uxt aposit ion sur papier ou sur t out aut re m at ériau aux propriet és analogues.”
117
lesca [...] apresentada em quadrinhos e na qual os desenhos são substituídos por fotografi-
as com balões” (AURÉLIO, 1999, p. 935). O Houaiss a define como um “gênero de lite-
ratura de massa, de estilo romântico, [...] apresentada em forma de quadrinhos fotográfi-
cos, com textos sucintos em legendas ou balões” (HOUAISS, 2001, p. 1382).
Se os pesquisadores de quadrinho tiveram (e ainda têm) certa dificuldade em ver a
fotonovela como HQ, o mesmo não se deu com os pesquisadores da própria fotonovela.
Em 1974, no prefácio de seu livro Fotonovela e indústria cultural, Angeluccia Bernar-
des Habert (1974, p. 9) alertava para essa questão, quando dizia: “Ninguém se surpreen-
de mais com o interesse dos eruditos pelos quadrinhos. [...] A fotonovela, entretanto,
também uma forma de narrativa em quadrinhos, permanece à margem dessas discus-
sões”.. Dagomir Marquezi (1980, p. 139) reitera essa visão em seu artigo Doce ilusão,
coletado em 1980 no livro Auika!. Segundo ele, “a intelligentsia nativa contempla [a
fotonovela] com um desprezo só comparável ao que devota às novelas de TV”.
Com o fim do mercado de fotonovelas (que simplesmente desapareceram das ban-
cas), essa situação parece não ter nenhuma motivação para mudar. Como indústria cul-
tural, as fotonovelas morreram. As bancas de revistas não apresentam mais nenhuma
publicação especializada em fotonovelas. Das antigas revistas do início dos anos 1970,
algumas ainda estão em circulação, mas com o conteúdo modificado, como Capricho,
que hoje apresenta matérias de beleza e de comportamento, Amiga e Contigo, ambas
com fofocas de televisivos e famosos. Ocasionalmente, as fotonovelas ainda são expe-
rimentadas por algum veículo (geralmente como paródia), mas em algum lugar dos anos
1980 e 90 sua outrora poderosa indústria desmantelou-se.
As fotonovelas tradicionais – isto é, aquelas narrativas foto-seqüenciais com temas
românticos publicadas em revistas especializadas – surgiram na Itália do pós-guerra e
alastraram-se pelo mundo de cultura latina. Sua origem está associada ao cinema ou
mais precisamente, a um subproduto do cinema: as revistas sobre a chamada sétima
arte. Após a derrota na II Guerra Mundial, a Itália amargou uma crise econômica que
trouxe em seu bojo algumas mudanças sócio-culturais. O neo-realismo cinematográfico,
por exemplo, é um dos produtos do período.
Nessa época, era comum que as revistas sobre cinema trouxessem fotografias em se-
qüência mostrando algumas das cenas dos filmes. Com o tempo, essas cenas – associadas a
breves legendas explicativas – acabaram por tornar-se uma espécie de resumo gráfico-
118
3 . 4 – Z É L I A , U M A F O T O N O V EL A
Em outubro de 1991, quando não era mais a ministra da economia do governo Collor,
Zélia Cardoso de Mello lançou um livro de memórias (transcritas pela pena de Fernando Sa-
bino) que causou furor, espanto e indignação. Com o cândido título de Zélia, uma paixão, o
livro tinha como tema principal seu romance com Bernardo Cabral, um homem casado,
quando ele ainda era ministro. A revista Veja não economizou adjetivos em seus comentários,
classificando-o como “escândalo de breguice sentimentalóide”, “escândalo de fofocas”, “es-
cândalo de mistificação” e, “enquanto obra literária, [...] escandalosamente ruim”.
Com sua trama de sexo, poder e traições, as histórias relatadas por Zélia têm um
forte tom folhetinesco. A certa altura, inclusive, ela se define como uma Cinderela às
avessas. A Veja não teve dúvidas. Juntou as palavras da ex-ministra com algumas das
muitas fotografias que pessoas públicas como ela geram e construiu uma fotonovela, à
qual deu o singelo nome de A Cinderela e o Boto Tucuxi. Famoso na mitologia amazo-
nense, o boto tucuxi é tido como um ser encantado que à noite abandona as águas e se
transforma em um homem sedutor. Na introdução da fotonovela, lê-se:
O escritor Fernando Sabino dedica mais da metade das 267 páginas do livro Zélia,
uma paixão para descrever o picaresco romance entre Zélia e Bernardo Cabral.
Narra desde a primeira vez em que Cabral a abordou até o último telefonema. O
enredo – meloso, patético, constrangedor – caberia numa fotonovela como a que se
segue, toda ela baseada em trechos e diálogos do livro. (Veja, 1991, p. 29)
A matéria ocupa sete páginas e um terço. As páginas foram divididas ao meio, na hori-
zontal. Na parte inferior corre o corpo de texto verbal da matéria e na superior, a fotonovela
(Figura 62). À exceção da primeira página da matéria, cuja metade superior é ocupada por
uma fotografia de Zélia e Sabino na mesa de autógrafos no dia do lançamento.
Para guiar a condução da leitura, toda a metade superior das páginas ocupadas pela
fotonovela ganhou um fundo cinza sangrado pelo topo e pelas laterais, dando a idéia de
120
uma faixa horizontal contínua. Além disso, são utilizadas pequenas setas triangulares
entre as fotografias para indicar a imagem seguinte em caso de dúvidas. A fotonovela
abre com uma imagem de dois corações sobrepostos, dando o toque sentimentalóide do
texto. Em um coração, a fotografia de Cabral e no outro, a de Zélia.
A narrativa propriamente dita apresenta os recursos tradicionais da fotonovela, como
recordatórios, balões de fala e de pensamento. A escolha das fotografias foi precisa e muito
feliz. A primeira, por exemplo, que ilustra o primeiro encontro dos dois, os mostra cumpri-
mentando-se sorridentes. Zélia tem um ar um pouco mais formal, com seu corpo ereto e seu
olhar frontal. Cabral ao contrário, tem um aspecto ligeiramente ambíguo, com seu quadril
um pouco projetado para a frente, seus ombros levemente inclinados e sua cabeça também
um pouco inclinada para a frente, exatamente como quem lança um olhar lânguido. Sua
postura é discretamente sinuosa. Segundo o relato de Zélia no livro, foi ele quem a seduziu.
Nesta primeira fotografia, o balão de pensamento de Cabral diz “Huummm...”, como quem
gosta do que vê. A fotografia corresponde maravilhosamente bem ao texto, como se tivesse
sido programada para isso.
Além das fotografias da narrativa básica, foram utilizadas outras para ilustrar pensa-
mentos, indicar elipses ou compor metáforas visuais. No quadro 4 da lâmina 2, o ministré-
rio de Collor estão em uma reunião oficial (Figura 63). Zélia e Cabral estão em primeiro
plano, de costas para o leitor, mas com a cabeça virada para a câmera. O texto informa que
ela ganhou uma garrafa de champanhe e uma proposta para jantar a dois. O jantar, obvia-
mente, não foi fotografado. No canto direito da fotografia, sobreposto a ela, a garrafa de
champanhe materializa a narrativa em elipse, prolongada no quadro seguinte, o primeiro da
página 31, que mostra um quarto sem ninguém, com uma cama de casal ao centro (Figura
64). Na imagem do quarto, o balão de fala de Cabral tem o rabicho quebrado, em forma de
raio, que nas normas narrativas da HQ pode indicar a voz de alguém fora da cena, sugerindo
que seu autor estaria no canto do quarto, fora do quadro.
Na página 32, quadro 3 (Figura 65), Collor diz que a notícia do romance “é nitrogli-
cerina pura! Qualquer movimento e explode tudo”. O balão de fala situa-se entre a foto-
grafia de Collor e uma outra mostrando policiais federais prestes a tocar fogo em um
monte de objetos que estão em sacolas não identificadas. A fotografia não tem nada a
ver diretamente com os fatos narrados, pois constitui uma metáfora visual da fala do
então presidente. A fotografia talvez fosse conhecida na época, sendo provavelmente da
121
destruição de alguma apreensão de material ilegal pela polícia federal. Se for o caso,
isso amplia ainda mais o duplo sentido da metáfora.
As duas imagens finais da foto(novela)reportagem (Figura 66) também têm uma função
simbólica. Zélia e Cabral vão a Paris para o que seria uma espécie de lua de mel. Ele volta ao
Brasil para um tratamento dentário e simplesmente não retorna, deixando-a abandonada e
sozinha na inconvenientemente romântica Cidade Luz. A penúltima imagem mostra uma
cadeira de dentista vazia com um balão de fala representando Cabral enquanto a última mos-
tra uma vista noturna da Torre Eiffel com um balão de fala de Zélia. As bordas entre as duas
fotografias estão como que rasgadas, como aquelas fotografias de casamento rasgadas ao
meio usadas em filmes e na ilustração jornalística para indicar a separação de um casal. No
final, como era de se esperar, um pequeno recordatório no canto inferior direito mostra a pa-
lavra “fim” e indica tanto o fim da fotonovela quanto o fim do caso de amor.
O que realmente importa nesta reportagem em forma de fotonovela apresentada pela
Veja não são suas qualidades artísticas em si, mas a sua própria existência ou o fato de
ter sido possível. Ela é o resultado de uma coincidência feliz mas não muito comum: a
junção de situações ou pessoas fartamente fotografadas com uma narração confessional
dos eventos por uma das pessoas envolvidas.
Em A Cinderela e o Boto Tucuxi, a narrativa gráfico-seqüencial foi utilizada com
finalidades satíricas, ao dizer que aquele enredo era tão “meloso, patético, constrange-
dor” que parecia coisa de fotonovela. Mas o fato é que a experiência foi possível e fun-
cionou muito bem. As fotografias foram muito bem selecionadas, o texto foi resumido
na medida exata e a diagramação tira proveito das expressões corporais dos retratados e
da composição interna das fotografias. As pessoas estão sorridentes, sérias ou mesmo
carrancudas na medida certa e na hora certa. É possível imaginar-se o mesmo expedien-
te utilizado com finalidades mais sérias.
A capa da revista (Figura 67) é também um caso especial. Ela mostra o casal de ex-
ministros em um desenho de contornos fortes e retícula estourada (com pontos grandes e visí-
veis). A imagem é claramente inspirada nos quadros do pintor pop americano Roy Lichtenste-
in, que por sua vez fazia telas inspiradas nos comics ou histórias em quadrinhos americanas.
Outros recursos quadrinísticos também são utilizados para ressaltar o aspecto de HQ. No can-
to superior esquerdo, aparece um recordatório. Ao centro, dois balões de fala. E no rodapé,
uma chamada em letras garrafais anuncia o assunto. As fontes utilizadas nos balões, no recor-
122
3 . 5 – 4 8 H O R A S – U M A R EP O R T A G EM - F O T O N O V EL A
A revista MTV tem como universo o público jovem e a cultura pop. Sua linha edito-
rial e seu projeto gráfico refletem bem isso. Além de o quadrinho ser um dos temas usu-
ais da revista, a ilustração das matérias utiliza muito a seqüencialidade como recurso
técnico. Na matéria As grandes lições dos clipes, publicada na edição de maio de 2003,
foram extraídos alguns fotogramas de videoclipes para compor seus resuminhos gráfico-
seqüenciais, exatamente ao modo dos antigos cine-romances, precursores da fotonovela
italiana. O, digamos, ‘fotoclipe’ mostrado na página 100 da revista, com imagens retira-
das do videoclipe da música Ligo pra ela, do B5 (Figura 68), tem quatro imagens que
mostram respectivamente: uma garota de carro, ao telefone, avistada por um rapaz de
bicicleta; rapaz da bicicleta acenando interessado; homem atravessando a rua com uma
torta na mão; rapaz e bicicleta caídos no chão e sujos de torta. O uso de recursos narra-
tivos gráfico-seqüenciais pela revista MTV, além de fazer referência ao universo pop das
HQs, também serve de correlato gráfico às imagens múltiplas, rápidas e vorazes da tele-
visão, que o próprio canal da MTV ajudou a acelerar.
Não é de espantar, portanto, que eles também tenham enveredado pelo campo da fotor-
reportagem com sabor de fotonovela. As páginas 88 a 91 da mesma revista apresentam uma
fotorreportagem em quatro páginas – com texto de Alex Menotti e fotos de Nino Andrés –
chamada 48 horas (Figura 69 a Figura 71). Os repórteres passaram dois dias em companhia
da banda Los Hermanos, cobrindo o tempo antes, durante e depois de uma apresentação da
banda em um festival de música. Apesar de não mostrar nenhum balão de fala, a configura-
ção de fotonovela é clara, como demonstram as seguintes características:
♦ Os quadros estão separados por uma fina calha branca. A largura das calhas é bem
menor que a margem branca que contorna as páginas, fazendo com que o conjunto de
quadros forme um bloco coeso no centro de cada página. A quadrinização prioriza a
formação de claras fileiras horizontais de quadros, o que, auxiliado pelo horário de
cada fotografia, impede que o leitor se perca, mesmo que ele não esteja habituado às
normas narrativas do quadrinho.
♦ O primeiro quadro – que ocupa a metade da primeira página (Figura 69) – apresenta
três blocos de texto sem a caixa de recordatórios, isto é, aplicados diretamente sobre a
fotografia. No primeiro, o título da reportagem aparece em grandes letras vermelhas.
Imediatamente abaixo, o segundo bloco mostra o lide em letras também grandes, po-
rém bem menores que as do título. O terceiro bloco de texto indica o propósito da re-
portagem, os locais e as pessoas envolvidas. A lista dos componentes do grupo musi-
cal acaba sendo um correlato da lista dos nomes do elenco de uma fotonovela, que
também costumava ser apresenta no início, freqüentemente sobre a primeira fotogra-
fia. Um quarto bloco de texto é o primeiro recordatório, que indica a data e o horário
do início da aventura, ou seja, da cobertura.
♦ Nos quadros que indicam os momentos de sono dos repórteres – como por exemplo o
quadro quatro da página 86 (Figura 69) –a clássica onomatopéia “ZZZZZZZ” aparece
sobre um fundo preto, com o recordatório no centro do quadro. Há dois quadros desse
tipo e eles, obviamente, não contêm fotografia.
uma banda, esses dois quadros contêm um dos pontos mais interessantes da reporta-
gem para os fãs que gostam desse tipo de informação.
♦ As duas páginas finais seguem sem variações o padrão estabelecido. O único detalhe
interessante fica por conta do modo de concluir a reportagem. Ao invés da clássica
palavra “fim” que encerra as fotonovelas, aparece uma caixinha preta com três pontos
brancos, que é o ícone que conclui todas as matérias da revista (Figura 71).
muitas opções possíveis, mas é também uma escolha bastante lógica, dadas as suas ca-
racterísticas e o projeto gráfico e editorial da revista.
A cobertura fotográfica de uma viagem como a de Los Hermanos também se asseme-
lha às fotorreportagens de expedições geográficas ou científicas de revistas como a National
Geographic – salvaguardadas as devidas proporções, obviamente. Em ambos os casos, te-
mos o mesmo princípio de registro visual de uma viagem. Esse princípio também está pre-
sente nos álbuns da Déscription de l’Egytpte da expedição de Napoleão, nas modernas re-
vistas de turismo e nos guias de turismo ilustrados com HQs de Töpffer.
3 . 6 – L A D O L CE V I T A I N A N G O U L ÊM E
senta o padrão gráfico utilizado. À exceção de duas pequenas variações, as páginas da reporta-
gem são constituídas de três linhas, com um único quadro horizontal na primeira linha, três ver-
ticais na segunda e outro quadro horizontal na terceira. Os quadros formam um bloco compacto
mais vertical que a página da revista. Enquanto esta tem 21,5x27,5 cm, a mancha da matéria
ocupa uma área de 14x25 cm. As margens superior e inferior têm, respectivamente, 1 e 1,5 cm,
mas as laterais têm 3,75 cm. O formato mais estreito da reportagem gráfica se aproxima mais da
dimensão de uma revista em quadrinhos americana (17x26 cm) que da de uma revista de notí-
cias como a The Comics Journal, reforçando a condição quadrinística do texto. Um fato impor-
tante a considerar é que, apesar de as revistas de fotonovelas terem o mesmo formato das revis-
tas de notícias, elas nunca tiveram uma penetração real nos mercados de cultura anglo-saxônica.
O autor da matéria é canadense, mas ela foi feita para uma revista americana. A aproximação do
formato das revistas em quadrinhos americanas parece bastante natural.
As semelhanças com as soluções gráficas de 48 horas são muitas. Coincidentemente, há
também um quadro sem fotografia, somente com texto (lâmina 2, quadro 4). As duas únicas
diferenças marcantes são a não obrigatoriedade do recordatório e a ausência do ícone de final
de matéria. Em La dolce vita in Angoulême, o texto é geralmente aplicado sobre as próprias
fotografias, em preto ou em branco, conforme o tom da imagem. Eventualmente, o texto re-
cebe um destaque – para solucionar algum problema de visibilidade sobre a fotografia – como
sombreamento, box rebaixado ou mesmo algum eventual recordatório. O tamanho do corpo
das letras varia conforme o tamanho dos quadros, sendo maior nos quadros maiores ou com
menos texto. A integração entre palavras e imagens é aqui maior que em 48 horas. A aplica-
ção do texto busca se adaptar aos espaços neutros ou chapados das fotografias, como na lâmi-
na 3, quadro 1 (Figura 73), onde ele acompanha a perspectiva da rua.
A grande maioria dos quadros mostra fotografias da cobertura, mas em algumas ima-
gens mostram cenas extraídas de histórias em quadrinhos expostas ou lançadas no festi-
val. Ironicamente, o único balão mostrado na reportagem – na lâmina 3, quadro 4 (Figura
74) – não é de fala de ninguém, mas a imagem de uma placa indicativa no nome de uma
das ruas formadas pelas passagens entre os estandes. Para acentuar o efeito cômico, Tes-
sier escolheu o momento em que um fotógrafo apoiava-se na placa para subir mais alto
que os outros na ânsia de capturar a melhor imagem. Neste momento, o balão parecia
indicar sua fala, com o rabicho apontado em sua direção.
128
3 . 7 – R EV EA L
50
No original: “ hello” , “ as you can see” e “ now, ladies and gent lem en...” ( RI CHARDSON:
2002, p. 45)
129
3 . 8 – CO N S I D E R A ÇÕ E S
dramáticas da história em quadrinhos. As tentativas aqui também têm sido tímidas, mas
interessantes. Uma obra de grande porte nestes moldes, contudo, precisa encontrar o
equilíbrio harmônico entre esses elementos. A experiência bem-sucedida de Sacco pode
servir de parâmetro. Ele também teve que encontrar sua fórmula ideal e o fez com expe-
rimentações em histórias curtas até sentir-se seguro para aplicá-la em uma reportagem
longa. O resto, como se diz, é história. Os preconceitos deixados pelo império comercial
praticamente exclusivista das fotonovelas românticas nos países de cultura latina podem
dificultar um pouco esse caminho, como indica o tom pejorativo de seu uso pela Veja.
Mas as possibilidades são muitas e estão apenas aguardando para ser mais bem explora-
das. Estamos à espera dos desbravadores.
132
verso em quadrinhos, de Larry Gonick), científicas (Espaço, tempo e além, de Bob Toben e
Fred Alan Wolf) e até manuais de conserto de automóveis (Automóveis, de Mike Twite e R.
Deynis), para ficar apenas nos exemplos mais evidentes. Outras tantas possibilidades ainda
estão por serem descobertas. Nos capítulos anteriores, alguns desses recursos foram anali-
sados a partir de suas ocorrências específicas, mas outras questões mais genéricas também
desempenham um papel fundamental nas relações entre quadrinho e jornalismo. Algumas
delas são abordadas a seguir.
4 . 1 – S O B R E P O S I ÇÃ O D E E L E M E N T O S D I E G É T I CO S E
N Ã O - D I E G É T I CO S
Essa gradação, que vai do mais figurativo (e com poucos recursos visuais não-
diegéticos) ao mais abstrato (e com muitos desses recursos) não é absoluta entre as dife-
rentes linguagens, podendo haver variações internas a cada linguagem e determinadas
por diferenças de estilo ou outras. O coro grego comentando as ações dos personagens
em Poderosa Afrodite, de Woody Allen, é um elemento visual não-diegético. Mas
mesmo no interior de uma linguagem específica o eixo de intensidade parece ser o
mesmo, pois obras mais realistas (como um drama familiar) tendem a utilizar menos
esses recursos que obras menos realistas (como uma paródia).
A história em quadrinhos é, por natureza, uma linguagem não-naturalista. Diferente-
mente das narrativas audiovisuais cinéticas, a história em quadrinhos não tem som nem
movimento. Todos os ruídos, falas, movimentos e ações têm, forçosamente, que ser indica-
dos através de recursos visuais estranhos à realidade diegética da narrativa. As falas e pen-
samentos são apresentadas em balões, a voz do narrador recebe um box como suporte (o
recordatório), os ruídos são representados por onomatopéias gráficas, os movimentos, por
linhas cinéticas e assim sucessivamente. A falta de som também obriga os personagens a
exagerar a expressão facial para imprimir a entonação ou valor emocional da fala (como
também era feito no cinema mudo). Essa ausência de som e movimento ainda leva a um
aproveitamento expressivo de qualquer elemento visual, como o requadro, que pode alterar
o formato para indicar uma mudança de plano narrativo. Se a narrativa básica apresenta
requadros retangulares, a utilização de requadros de cantos arredondados ou ‘em nuvenzi-
nha’ em uma parte da narrativa pode indicar um sonho ou um flasback.
A intensa sobreposição de elementos diegéticos e não-diegéticos possível – e natural
– em uma história em quadrinhos é um caso ímpar nas linguagens narrativas visuais. E aí
exatamente repousa uma de suas grandes peculiaridades que podem ser imensamente ú-
teis no jornalismo em quadrinhos.
4 . 2 – P ER SO N A GEN S
Para Acevedo, os personagens são o ponto de partida do quadrinho. Sua visão sobre o en-
sino de HQ é pragmática, sem grandes discussões teóricas. Seu livro é pouco mais que um
manual culinário para a confecção de histórias em quadrinhos. Mas autores melhores também
costumam atribuir a mesma importância aos personagens, como Ivan Tubau com seu Dibu-
jando historietas. O livro é bem mais consistente que o de Acevedo, alternando capítulos prá-
ticos e teóricos e contendo algumas observações preciosas sobre conceituação de quadrinho,
sua relação com o cinema, sua estruturação gráfica, entre outras. No início do primeiro exer-
cício prático (a adaptação de um trecho do romance O facão maltês, de Dashiell Hammett),
Tubau se dedica a estudar que cara devem ter os personagens. Essa visão parece ser comparti-
lhada também pelos autores. Kazuo Koike, roteirista de Lobo solitário, concentrou seus esfor-
ços de autor sobretudo na evolução dos personagens ao longo do desenrolar da trama. O su-
cesso duradouro da série e os diversos prêmios que recebeu atestam a eficiência de sua técni-
ca. Para ele, os personagens são o elemento central de uma HQ. Segundo Koike (2000, p.
136
51
No original: “ Com ics are carried by charact ers. I f a charact er is well creat ed, t he com ic
becom es a hit .” ( KOI KE, 2000, p. 315)
137
Palestina, de Joe Sacco, tem como um dos pontos fortes o destaque dado ao caráter
humano dos palestinos. Ao fazer sua reportagem em quadrinhos sobre um fato impor-
tante e potencialmente crítico como a questão dos palestinos em Israel, Sacco deu des-
taque e voz ao ser humano que habita aquelas terras, que vive aqueles dramas. Os pales-
tinos deixam então de ser para nós apenas um conjunto de eventos, incidentes, explo-
sões e contagem de mortos nos jornais televisivos para erguerem-se diante de nossos
olhos como pessoas que andam, de alimentam, sentem frio, sentem medo, têm alucina-
ções, desejos, buscam segurança, como qualquer pessoa.
O ambiente do quadrinho e sua tradição no tratamento de personagens, portanto, foi um
grande facilitador para que esse humanismo aflorasse tão intensamente e não passasse des-
percebido dos leitores. Mas dizer simplesmente que esta é uma boa história em quadrinhos
é diminuir muito o seu alcance. Realmente, Palestina é bem contada, desenhada com gran-
de competência, com um uso sábio dos recursos técnico-narrativos, mostrando um autor no
pleno domínio da linguagem do quadrinho. Entretanto, o que marca seus leitores não é a
técnica mas a sensibilidade e o humanismo com que Sacco dá vida e voz aos excluídos.
Palestina é, com justiça, considerada uma das primeiras peças de reportagem a realmente
considerar os palestinos como seres humanos. Após a leitura do livro, fica difícil continuar
vendo os palestinos pura e simplesmente como um bando de terroristas árabes que ficam
jogando bombas nos judeus, como ainda insiste em tentar nos fazer acreditar a cobertura da
grande imprensa. A questão é muito mais densa e profunda e só pode começar a ser com-
preendida partindo-se do princípio de que, nos dois lados da questão, estão seres humanos
com demandas que precisam ser ouvidas.
4 . 3 – O V EÍ CU L O
O que torna possível uma peça de jornalismo do modo como a entendemos? Dentre
os diversos fatores, um dos preponderantes é o fato de ser apresentada em um veículo
adequado e de maneira condizente com esse veículo. De nada adianta um texto com
conteúdo jornalístico – como, por exemplo, com relatos de acontecimentos marcantes
do cotidiano – se for apresentado em um veículo que não tenha esse perfil. A simples
informação de uma explosão em uma fábrica, por exemplo, ainda sem identificação de
sua causa, é suficiente para um flash jornalístico na televisão ou no rádio, mas é absolu-
140
tamente inadequado para uma revista semanal, que deverá informar a causa, as conse-
qüências e outras informações necessárias. Entre o jornal diário, a revista semanal e o
livro-reportagem, há uma progressão de complexidade e completude.
A inexistência de um veículo realmente adequado para o jornalismo em quadrinhos
certamente foi um dos fatores que sempre limitou sua produção. Afinal, até há alguns
anos, quem buscava informações sobre a realidade dos fatos jamais imaginaria encon-
trá-las em um gibi, conhecidos que são como terreno de aventuras e fantasias mirabo-
lantes. Essa compartimentação de formatos e temas só passou a ser desmontada de mo-
do mais sistemático com o surgimento do new journalism e suas práticas heterodoxas.
Mas essa abertura do jornalismo se deu, a princípio, pela incorporação de recursos lite-
rários, sendo necessário ainda algum tempo para uma aproximação mais intensa do
quadrinho com o jornalismo.
Nas duas últimas décadas, entretanto, esse cenário tem se modificado com o surgimento
tanto do formato das graphic novels (com suas dezenas ou centenas de páginas) quanto de
obras contundentes e reconhecidas dentro e fora dos redutos quadrinísticos, como Maus, pre-
miada com um merecido Pulitzer especial. As premiações de Spiegelman e de Sacco devem
ser entendidas como uma indicação de que a associação entre o suporte quadrinístico e os
procedimentos jornalísticos tem grandes potenciais que devem continuar sendo explorados.
4 . 4 – D ESEN H O E FO T O GR A FI A
A fotografia tem um valor documental que o desenho não tem. Ela tem uma carga
quase mágica de ‘verdade’. E é exatamente por ser aceita como verdade que a fotografia
pode mentir. Antigos aliados do poder na União Soviética caem em desgraça e desapa-
recem misteriosamente das antigas fotografias históricas. Nas novas versões daquelas
‘fotografias’, é como se nunca tivessem estado lá. E isso ainda na primeira metade do
Século XX, com os retoques fotográficos sendo feitos a mão. Hoje, com a popularização
da manipulação eletrônica da imagem, quem ainda acredita cegamente em tudo o que vê
numa fotografia? Diante da imagem de um corpo perfeito de mulher numa revista mas-
culina, por exemplo, os incrédulos já têm até uma resposta pronta: “Puro Photoshop!”.
E isso ainda é pouco, se pensarmos nos dinossauros hiper-realistas de Spielberg e no
assombroso mundo novo que eles inauguraram.
141
O desenho, ao contrário, não é tão documental quanto a fotografia. Ele não tem a
mesma aura mágica de verdade mecanicamente reproduzida. Um desenho é uma inter-
pretação artística, intermediada pela mão do ilustrador. O desenho é sempre ‘um outro’,
nunca ‘o mesmo’ reproduzido. O desenho não vale como verdade e, conseqüentemente,
o desenho não serve como mentira, ele não tem esse poder. Paradoxalmente, ao evitar a
dicotomia verdade-mentira, os desenhos funcionam bem como relato mediado. Um de-
senho é como uma imagem que alguém nos conta.
A crise de credibilidade que acompanhou a chamada pós-modernidade nos impede
de acreditar cegamente não apenas na fotografia mas também no próprio jornalismo, em
nossas antigas certezas científicas, sociais, ideológicas e em tudo mais que um dia já foi
durável, permanente ou eterno. Nada mais é verdade absoluta. Pelo menos, não por mui-
to tempo. O jornalismo em quadrinhos de Joe Sacco e companhia, por não ser jornalis-
mo tradicional, por conduzir sua narrativa através de desenhos e por não apresentar fo-
tografias, consegue se manter um pouco à margem dessa crise.
Essa crise de credibilidade, contudo, deve ser entendida como um fator que retira da
fotografia apenas seu caráter de verdade ‘absoluta’, pois a imagem fotográfica ainda
resguarda sua força documental, seu poder de evocação e sua carga informativa. O jor-
nalismo foto-cinematográfico é uma realidade imponente e, acredito, irreversível. A
fotorreportagem clássica tem já uma longa ficha de serviços prestados ao jornalismo e
ainda não apresenta sinais de esgotamento. Se seu uso é hoje mais setorizado que já foi
um dia, é devido ao desenvolvimento de outras mídias visuais e audiovisuais, mas gran-
des fotorreportagens ainda continuam sendo feitas. E sua irmã mais nova, a reportagem
em quadrinhos de base fotográfica, ainda aguarda o surgimento de obras mais ambicio-
sas, mas já parece estar testando e desenvolvendo suas ferramentas.
4 . 5 – Q U A D R I N H O E I M P R EN SA
Moacy Cirne (1970, p. 12), em A explosão criativa dos quadrinhos, afirma que as
raízes metalingüísticas, políticas, sociais e econômicas do quadrinho “se formam e se
projetam no espaço-tempo gráfico das revistas e jornais”. Mais à frente, ele reitera: “os
quadrinhos nasceram dentro do jornal – que abalava (e abala) a mentalidade linear dos
literatos” (Op. cit., p. 38). Na época, Cirne, assim como a grande maioria dos teóricos,
142
A década de 1930 viu as HQs se descolarem dos jornais com a criação das revistas es-
pecificamente de quadrinho (uma evolução dos antigos suplementos dominicais dos jor-
nais). Mas a relação entre quadrinho e jornal sempre continuou e continua forte. Muitos
52
Yellow Kid foi criado por Richard Out cault . Os sobrinhos do Capit ão ( The Kat zenj am m er
Kids) foram criados por Rudolph Dirks.
143
5 – CO N CLU SÃ O
Por que raios alguém vai querer fazer uma reportagem em quadrinhos, dando-se ao
trabalho de passar meses ou mesmo anos produzindo uma série de desenhos para um
mero gibi, se ele pode simplesmente fazer uma reportagem tradicional, com um texto
que lhe tomará muito menos tempo, conterá, a princípio, mais informações e será lido
por mais pessoas? Mas essa pergunta também pode ser feita de outras formas (já come-
çando a respondê-la): Por que raios alguém vai querer ler um livro-reportagem se pode
ler uma cobertura mais breve e objetiva em uma revista semanal? Porque alguém vai ler
uma revista semanal se pode ver aquela informação no jornal da televisão sem precisar
nem mesmo ter o trabalho de ler?
Veículos diferentes, formas diferentes, suportes diferentes para reportagens também
permitem fazer abordagens diferentes, freqüentar universos diferentes e ter visões dife-
rentes sobre a mesma coisa. O tom, o conteúdo, a quantidade de informação, o tipo de
informação e a resposta que essa informação suscita no público não são os mesmos di-
ante de um site de notícias instantâneas na internet, de um jornal de televisão, de um
jornal impresso diário, de uma revista semanal, de um livro-reportagem, de um docu-
mentário tele-cinematográfico. Conseqüentemente, também não serão os mesmos diante
de uma reportagem em quadrinhos.
Uma analogia bastante interessante para essa questão é a conhecida fábula do elefante,
onde um certo marajá teria chamado várias pessoas cegas de nascença para conhecer e des-
crever um elefante. Cada um dos cegos se aproximou então de uma parte do elefante, apal-
pando aquela região tentando entender o que tinha diante de si. Após algum tempo, o mara-
já pediu a cada um que descrevesse o elefante a partir das impressões que teve. O que tinha
apalpado a perna disse que um elefante era algo rígido e cilíndrico como o tronco de uma
árvore. O que apalpou o rabo interveio, dizendo que não, que na verdade um elefante era
fino e cheio de pelos na ponta como uma vassoura. O da tromba disse que ele era longo e
flexível como uma mangueira. O da orelha o comparou a um leque, o da barriga o compa-
rou a um grande caldeirão e assim por diante, sem que eles se entendessem sobre a real na-
tureza de um elefante. Percebendo que eles não chegariam a um consenso, o marajá os in-
145
terrompeu e disse que o elefante não era nada disso porque era, na verdade, tudo isso. Cada
um deles teve uma impressão correta e elas, juntas, eram apenas aparentemente contraditó-
rias ou divergentes, pois somente a soma de todas as descrições daria uma idéia mais ampla
e completa do elefante.
Da mesma forma, creio ser mais produtivo questionar não a posível inutilidade de
uma reportagem em quadrinhos, mas perguntar o que pode acontecer numa reportagem-
HQ que normalmente não acontece ou que acontece em menor escala em outras formas
de jornalismo. Creio que somente assim será possível discutir se essa nova abordagem
pode contribuir ou não para uma melhor compreensão do fenômeno reportado.
Muitas reportagens já foram feitas em diversas mídias sobre a Intifada Palestina.
Tanto por seu conteúdo informativo quanto pelas discussões que gerou, uma das mais
importantes é Palestina, a reportagem em quadrinhos de Joe Sacco. A grande maioria
das resenhas e críticas publicadas sobre a obra reconhece como um de seus maiores mé-
ritos o destaque dado aos aspectos humanos do povo palestino, um dado geralmente
negligenciado ou mesmo ignorado pela cobertura tradicional. Esse fato não será surpre-
sa se nos lembrarmos que todas as histórias em quadrinhos tradicionais se desenvolvem
fundamentalmente sobre o destino de personagens.
As histórias em quadrinhos têm suas limitações (como qualquer linguagem), mas as vanta-
gens são interessantes e devem ser levadas em consideração. Algumas das características mais
interessantes do quadrinho para sua utilização como veículo para reportagens são:
Portabilidade – As HQs podem ser carregadas e lidas em qualquer lugar e sem nenhum
aparato extra, assim como o livro ou a revista e diferentemente da televisão ou da internet.
Hibridismo – As HQs conjugam qualidades das linguagens verbal e visual – e, conse-
qüentemente, contornam algumas de suas limitações de quando usadas isoladamente.
Profundidade – As HQs permitem abordagens profundas, detalhadas e extensas de seus
temas. Os diversos prêmios literários e jornalísticos obtidos por obras quadrinísticas são
uma prova cabal e irrefutável disso.
Apelo aos jovens – Como a grande maioria do público de HQs no mundo ocidental é
constituída de jovens, elas são um excelente suporte para transmissão de informações e
conceitos que visem à formação de novas mentalidades.
Parentesco com a charge – As HQs jornalísticas têm como precedente popular a char-
ge dos jornais, que já conjuga desenho e informação jornalística com postura crítica
146
sobre o cotidiano. A charge é tão poderosa e eficiente que até mesmo alguns jornais
televisivos têm produzido charges animadas.
de quadrinho. Livros são vendidos em livrarias. Quem compra somente livros não freqüenta
uma loja de quadrinho. As lojas de quadrinho são freqüentadas fundamentalmente por cri-
anças, adolescentes e jovens, quase nunca por adultos instruídos. Neste cenário, produzir
uma obra em quadrinhos para esse público adulto requereu um certo redimensionamento
mercadológico. Essa mudança de parâmetros começou sutilmente nos anos 1960 com os
autores do quadrinho underground vendendo sua produção de mão em mão e tomou corpo
em 1978, quando Will Eisner publicou Um contrato com Deus em forma de livro e o pôs
para vender em livrarias ao invés de lojas de quadrinho. Não dá para imaginar que uma
história dramática e comovente como Maus, de Art Spiegelman, por exemplo, pudesse ser
levada a sério pela imprensa sendo chamada de ‘história cômica’ (comic story). Como gra-
phic novel, ela rendeu a Spiegelman um Prêmio Pulitzer, abrindo as portas para uma maior
visibilidade e aceitação do quadrinho como uma linguagem adulta.
Uma mudança de nome permitiu a Eisner atingir o público adulto, vendendo suas
HQs em livrarias. Essa mudança de nome também permitiu a Spiegelman ter sido lido
pelas pessoas certas, que puderam reconhecer em seu trabalho qualidades suficientes
para lhe conferir um prêmio Pulitzer. Nomes são senhas, são passaportes ou, como se
diz em inglês, são passwords, ‘passa-palavras’ ou ‘palavras-passes’. Nomes são senhas
que movem pedras e nos permitem trilhar novos caminhos, como aquele ‘abre-te, sésa-
mo’ das mil e uma noites.
A criação do termo ‘jornalismo em quadrinhos’, por outro lado, ajudou a ampliar o es-
paço que as HQs têm na mídia, aumentando sua visibilidade junto ao público. Password,
passaporte, passa-fronteiras. Pois a luta que a história em quadrinhos tem travado nos últi-
mos 20 anos tem sido a de deixar de ser vista como um gênero menor e impor-se definiti-
vamente como uma linguagem completa, autônoma e sofisticada. O cinema também era
menosprezado na primeira metade do Século XX, mas venceu essa guerra. A do quadrinho
ainda está em curso e muitas têm sido as pequenas, porém importantes vitórias.
O mercado de quadrinho passa hoje por uma crise delicada, na qual a diminuição do
número de leitores (dragados pela internet e pelas novas mídias) convive com uma pro-
dução mais adulta e altamente sofisticada (vide Do Inferno, de Moore e Campbell ou
Jimmy Corrigan, de Chris Ware, além, obviamente, das reportagens em quadrinhos).
Art Spiegelman – que é não só um dos mais importantes autores, mas também um dos
mais articulados pensadores do quadrinho – se pergunta se essas obras são elegantes
149
5 . 1 – O L H A N D O P A R A A F R EN T E
53
O Sobra, que na int im idade é o m ilionário Lam ont Cranst on, é um com bat ent e do crim e
criado nos desiludidos anos 1930 por Maxwell Grant ( pseudônim o de Walt er B. Gibson) para
os pulps am ericanos e depois t ranspost o para os quadrinhos. Suas hist órias cost um avam ser
apresent adas com um a fr ase que o m arcou para sem pre: “ Quem sabe o m al que se esconde
no coração dos hom ens? O Som bra sabe.”
150
GLO SSÁ R I O BÁ SI CO
Balão
Contêiner do texto das falas ou pensamentos dos personagens. O balão também pode ser
vazio, conter onomatopéias, símbolos ou mesmo imagens. Geralmente tem um rabicho que
indica seu autor. Em alguns casos, o balão pode se limitar ao rabicho ao lado de um texto.
Calha
Espaço vazio, geralmente em branco, entre os quadros de uma história em quadri-
nhos. As primeiras HQs modernas (isto é, a partir de Töpffer) não apresentavam calha,
separando os quadros apenas com uma única linha delimitadora. Alguns quadrinistas
atuais ainda utilizam essa configuração.
Lâmina
No nosso caso, o mesmo que página. Mas uso aqui os dois termos de forma distinta para
diferenciar a numeração. A página sempre corresponde à sua numeração expressa, enquanto
as lâminas são aqui contadas a partir da primeira página de quadrinhos da história em questão.
Quando o livro (ou revista) é todo ocupado por uma única história, indico aqui as páginas
analisadas pela numeração da página no original. Mas quando o livro contém várias histórias
ou é um livro-texto com uma HQ inclusa ocupando apenas algumas páginas, as citações são
feitas pela numeração da lâmina a partir da primeira, pois a indicação da página forneceria um
número enganosamente alto. Assim, a segunda página de uma HQ que comece na página 40
de um livro, por exemplo, será indicada como lâmina 2 e não como página 41.
Onomatopéia
Transcrição verbal de um ruído através da imitação de seu som. A língua inglesa é
rica em verbos onomatopaicos, como to knock (bater na porta), to slam (bater a porta)
151
Quadrinização
1. O ato de transformar em HQ uma história (original ou adaptada).
2. A disposição final dos quadros (ou diagramação) de uma HQ sobre a página.
Quadro
Unidade de espaço visual onde se desenvolve a ação narrada. Cada quadro apresenta
geralmente (mas não necessariamente) um momento específico ou uma breve duração
de tempo. A princípio, o quadro apresenta uma imagem figurativa e a ela podem ser
sobrepostos balões, recordatórios, onomatopéias ou outros quadros.
Recordatório
Box de texto, geralmente na voz do narrador, aplicado sobre a imagem do quadro ou
adossado a ela.
Requadro
Linha de contorno de um quadro. Nem todos os quadros têm requadro, podendo sua
imagem ser recortada sobre um fundo neutro ou ser fundida às de outros quadros, for-
mando um painel contínuo.
Splash-page
A página de abertura de uma HQ recebe esse nome quando apresenta uma imagem de
impacto e o título em destaque. Nem toda HQ começa com uma splash-page.
Vinheta
O mesmo que quadro.
152
R EFER ÊN CI A S BI BLI O GR Á FI CA S
Livr os t e ór icos
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daguerreótipo, 97 El discurso del comic (Gasca e Gubern), 16
Damiani, Damiano, 118 El País (jornal), 11
Dança com lobos (Blake e Costner), 133 Eleitos, Os (Wolfe), 84
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Del Duca, Cino, 118 de arte – princípios gerais de organização da
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Desvendando os quadrinhos (McCloud), 5, 23, Ennis, Garth, 25
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Details (revista), 11, 28, 65 Espaço, tempo e além (Toben e Wolf), 133
Deynis, R., 133 Esta é uma historinha que conta como o vovô
Dez dias que abalaram o mundo, Os (Reed), 58 virou avestruz (Oliveira), 132
Diário de Anne Frank (Frank), 89 Estado de São Paulo, O (jornal), 11
Diários Associados (editora), 107 Estátua da Liberdade, 86
Dibujando historietas (Tubau), 135 Estevão, Carlos, 106
Dicionário de Fotografia (Ehrlich), 116 Estrangeiro, O (Camus), 136
Dictionnaire Mondial de la Photographie Explosão criativa dos quadrinhos, A (Cirne),
(Larousse), 116 141
Direito penal ilustrado (Saraiva), 132 Facão maltês, O (Hammett), 135
Discovery Channel (canal televisivo), 60 Fahrenheit 451 (Bradbury), 1
Disney, Walt, 76 Fantagraphics Books (editora), 27, 37, 50
Do Inferno (Moore e Campbell), 148 Fatos e Fotos (revista), 107
Doce ilusão (Marquezi), 117 Fax from Sarajevo (Kubert), 24, 87, 88, 91, 147
docudrama, 78, 85, 91, 138, 147 Federação dos Sindicatos de Motoristas de
docudrama gráfico, 86, 88 Lisboa, 104
Domu (Otomo), 2 FEMA – Federal Emergency Management
Drawn & Quarterly (revista), 28 Agency, 80, 81
Dream and the Lie of Franco, The (Picasso), 128 Fernandes, Millôr, 106
EC (editora), 78 Fierro (revista), 59
ECO – Escola de Comunicação da UFRJ, 7, 10 Fievel (Kirschner e Bluth), 76
Eco, Umberto, 4 Figaro, Le (jornal), 41
Economist, The (jornal), 31 Figidaire (revista), 59
160
Firecracker Alternative Book Awards, The Gorazde (Sacco), 11, 14, 18, 24, 28, 30, 31, 32,
(prêmio literário), 51 36, 42, 48, 51, 55, 57, 65, 77, 91, 147
Flash (Kubert), 87 Grande Consórcio Suplementos Nacionais –
Flashpoint – the La Penca bombing (Brabner e GCSN (editora), 107
Yeates), 24, 77, 78, 79, 84, 88 Grandes lições dos clipes, As (MTV), 123
Fnac (livraria), 39 graphic docudrama, 77, 78, 85
Folha de São Paulo (jornal), 11, 31, 107 graphic novel, 51, 54, 78, 86, 114, 140
Fonseca, Celso, 31, 32 Griffith Dobbs, Bryan, 39
Fonseca, Joaquim, 69 Groensteen, Thierry, 4, 5, 98
fotofofoca. Consulte fotopotoca Guarnieri, Gianfrancesco, 61
foto-jornalismo, 12, 43, 64, 65, 66, 95, 107, Gubern, Roman, 16
112, 147 Guernica (Picasso), 25, 61
fotonovela, 105, 106, 112, 113, 114, 115, 116, Guerra Civil Espanhola, 12, 95, 147
117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, Guerra da Bósnia, 28, 30, 49, 65, 87, 147
127, 128, 129, 130 Guerra da Criméia, 12, 41, 42, 44, 146
Fotonovela e indústria cultural (Habert), 117 Guerra da Secessão Americana, 95, 146
fotopotoca, 106 Guerra das Malvinas, 12
fotorreportagem, 7, 10, 18, 65, 66, 98, 99, 100, Guerra de Acari, 89
101, 105, 106, 107, 110, 112, 113, 119, 123, Guerra de Acari (Quintão e outros), 89
125, 126, 128, 130, 141 Guerra de papel (Dutra), 26
Freire dos Santos, Délio, 69 Guerra do Golfo, 1ª, 13
Gaiman, Neil, 59 Guerra do Golfo, 2ª, 13
Galil, Amac, 83 Guerra do Iraque, 13
Ganshoren-Brussels, festival franco-holandês de Guerra do Vietnã, 13, 25, 95
(festival de quadrinho), 29 Guerra Mundial, I, 25, 95
Garotas (Ladino), 106 Guerra Mundial, II, 25, 35, 73, 77, 86, 117, 147
Gasca, Luis, 3, 16 Guerra nas estrelas (Lucas), 133
Gazeta Mercantil (jornal), 45 Guggenheim, Fundação, 29, 37
Gen – pés descalços (Nakazawa), 25 Guilherme, o Conquistador, 62
Gen, Projeto, 26 Guri, O (revista), 107
Ghassan, 18, 19, 20 Gutman, Roy, 32
Gibi (revista), 107 Guttenberg, Johannes, 60
Gibons, Dave, 59 Guttenplan, D. D., 49
Globo (rede televisiva), 78, 91 Guys, Constantin, 41, 42, 43, 44, 98, 146
Globo, O (jornal), 55, 107 Habert, Angeluccia Bernardes, 117, 118
Gombrich, Ernst, 4 Hammett, Dashiell, 135
Gonick, Larry, 133 Hansen, Per Anker, 83
Gopnik, Adam, 76 Harvey Awards (prêmio de quadrinho), 27, 51
Heavy Metal, 52
161
Los Angeles Times Book Review, The (revista), Nação, A (jornal), 107
11, 28 Nadel, Stan, 39
Los Hermanos, 123, 126 Naisbitt, John, 47
Loustal, 105 Nakazawa, Keiji, 25
Love & Rockets (irmãos Hernandez), 52, 59 Nash, John, 138
Luyten, Sonia, 4 Nássara, 143
Mafalda (Quino), 143 Natal com Karadzic (Sacco), 28
Manchester Guardian First Novel (prêmio Nation, The (revista), 49
literário), 2 National Geographic (revista), 60, 126
Marquezi, Dagomir, 117, 118 National Police Gazette, The (jornal), 45, 64, 69,
Marshall, Jonathan, 78 70, 71, 72, 112, 113
Marvel (editora), 78 Navio fantasma, O (Wagner), 61
Maus (Spiegelman), 2, 25, 52, 53, 59, 65, 72, new journalism, 30, 58, 60, 81, 84, 140, 146
73, 74, 75, 76, 77, 78, 91, 140, 147, 148 New Republic (revista), 77
Máximo, Carlos, 89 New York Times Magazine, The (revista), 49
McCloud, Scott, 5, 6, 23, 42, 98, 101, 105, 132 New York Times, The (jornal), 11, 28, 30, 32, 93
McKean, Dave, 129 New Yorker, The (revista), 45, 56
McLuhan, Marshall, 5, 46, 60 Ninguém presta! (web site), 40
Melo Neto, João Cabral de, 61 Níquel Náusea (Gonsales), 76
Menino maluquinho, O (Ziraldo), 106 Non sequitur (Wiley), 143
Menotti, Alex, 123 Notes from a Defeatist (Sacco), 29
Mercury, Projeto, 84 NPR (agência de notícias radiofônicas), 28
Métal Hurlant (revista), 59 O Sombra, 149
Meursault (Camus), 136 O’Neil, Denny, 63
Mickey Mouse (Disney), 76 O’Neill, Kevin, 53
Miller, Frank, 25, 59, 105 Olimpíada de Munique, 16
Millôr, 143 Oliveira, Fortunato Câmara de, 132
Mirador Internacional, Enciclopédia, 116 Oliveira, Rafael de, 89
Miraflores, Palácio de, 108 Ônibus 174 (Padilha), 130, 137
Mirim (revista), 107 O'Sullivan, Timothy, 95
Mônica (Souza), 107 Otomo, Katsuhiro, 2, 59
Moore, Alan, 53, 59, 82, 83, 86, 148 OuBaPo (grupo francês de teóricos do quadrinho),
Morais, Marcelo, 89 5
Moya, Álvaro de, 4 OuBaPo OuPus 1 (Groensteen e outros), 5
MTV (canal televisivo), 123, 125 Ouroboros, 44
MTV (revista), 123, 125, 128 Ovo da serpente, O (Bergman), 86
Muro de Berlim (Alemanha), 49, 61, 93, 94 Ozimandias, 94
My humble self (Guys), 43 Padilha, José, 130, 137
Myself at Inkermann (Guys), 43
163
Sacco, Joe, 2, 6, 7, 8, 11, 14, 15, 16, 17, 18, 19, Sturmer, Der (revista), 37, 39
20, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, Sudetic, Chuck, 32
33, 34, 35, 36, 37, 39, 40, 42, 43, 44, 45, 46, Super-Homem (Siegel e Shuster), 4
48, 49, 50, 51, 54, 55, 56, 59, 61, 62, 63, 64, Super-Mouse (Terry), 76
65, 73, 87, 130, 131, 137, 139, 140, 141, 145, Suplemento Infantil (revista), 107
146, 147 Suplemento Juvenil (revista), 107
Salgado, Sebastião, 23, 61 Tapeçaria de Bayeux, 62, 115
Sandman, The (Gaiman e outros), 54 Tarzan (Kubert), 87
Saraiva, Denise Cárdia, 132 Teogonia (Hesíodo), 138
Sardi, Jan, 138 Tessier, Marc, 126, 127
Sargento Rock (Kubert), 87 The fixer (Sacco), 29
Science Fiction Grand Prix (prêmio literário), 2 TheGolem (site), 37
Sérafini, Dominique, 132 Thomas, Gerald, 61
Sertões, Os (Cunha), 58, 60 Thompson, Hunter S., 35
Shadowplay – the secret team (Moore e Time (revista), 11, 28, 54, 56, 61
Sienkiewicz), 24, 82, 83, 84, 86 Tintin (Hergé), 23, 126
Shazam! (Moya, org.), 3 Tipografia Vargas (editora), 107
Shelley, Percy Bysshe, 93 Toben, Bob, 133
Show Bizz (revista), 43 Todas as boas intenções do inferno (Hugo),
Sienkiewicz, Bill, 82, 83, 84, 86, 132 40
Sigmund – vulgo Sig (Jaguar), 143 Tom & Jerry (Hanna e Barbera), 76
Sim City (Miller), 105 Tomine, Adrian, 55
Simon, Joe, 25 Töpffer – l’invention de la bande dessinée
Sistema, O (Kuper), 105 (Groensteen e Peeters), 4
Slaughterhouse: Bosnia and the Failure of the Töpffer, Rudolph, 4, 64, 68, 105, 126, 150
West (Rieff ), 30 Topo Gigio (Perego), 76
Sobre a modernidade (Baudelaire), 7 Torre Eiffel (França), 121
Sobrinhos do Capitão (Dirks), 142 Toscani, Oliviero, 86
Sogno (revista), 118 Trajano, 62
Sontag, Deborah, 49 Truffaut, François, 1
Souza, Maurício de, 107 Tubau, Ivan, 135
Speedy Gonzales, dito Ligeirinho (Foster e Twite, Mike, 133
Freleng), 76 Última ceia, A (da Vinci), 20
Spiegelman, Art, 2, 25, 28, 46, 52, 55, 56, 59, Um homem com uma câmera (Vertov), 48
72, 73, 74, 75, 76, 77, 140, 148, 149 Uma mente brilhante (Sardi e Hicks), 138
Spielberg, Steven, 23, 89, 140 underground, 22, 58, 62, 63, 73, 148
Starobinas, Marcelo, 31, 32 Understending comics,. Consulte Desvendando os
Steve Canyon (Caniff), 4 quadrinhos
Stripdagen Haarlem, (festival de quadrinho), 29 Understending media (McLuhan), 5
165
Union des Patrons et des Professionnels Juifs Watchmen (Moore e Gibons), 52, 59
de France, 39 Watson, Walter, 70
Uspênski, B. A., 74 Watterson, Bill, 78, 143
Utne Reader, The (revista), 11, 27 Weirdo (revista), 28
Van Gogh, Vincent, 106 Welles, Orson, 16, 103
Vão Gôgo, Emmanuel. Consulte Millôr Wilder, Billy, 46
Veja (revista), 119, 121, 122, 125, 130, 131 Wiley, 143
Vera Cruz, 143 Wizard (revista), 129, 136
Vertige-Graphic (editora), 39, 40 Wolf, Fred Alan, 133
Vertigo (editora), 54 Wolfe, Tom, 32, 60, 84
Vertov, Dziga, 48 World Trade Center (conjunto de edifícios de
Víbora, El (revista), 59 Nova Iorque), 13, 95
Vladek, 72, 73, 74, 75, 76 X-Men, 125
Você/UFES (revista), 26 Yahoo (Sacco), 26, 27, 54
Voodoo child (Sienkiewicz), 65, 84, 132 Yahoo (site), 37
VPRO Grand Prix (prêmio de quadrinho), 29 Yeates, Tomas, 79, 86, 88
Wagner, Richard, 61 Yellow Kid (Outcault), 142
War junkie (Sacco), 28 Zélia, uma paixão (Mello e Sabino), 119
War Story (Ennis e outros), 25 Zero Zero (Sacco), 28
Ware, Chris, 2, 53, 56, 148 Ziraldo, 106, 143
Washington City Paper (jornal), 11, 27
JORNALI SMO EM QUADRI NHOS
A linguagem quadr iníst ica com o supor t e par a r epor t agens
na obr a de Joe Sacco e out r os aut or es
AN EX OS
– I LU S T R A ÇÕ ES E FO T O GR A FI A S –
Rio de Janeiro
2003
A N EX O S
Figura 1
Shadowplay, página 1.
Figura 48
48 horas, lâmina 1.
Figura 70
48 horas, lâmina 2.
Figura 71