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Tteia 1C - o nome desta instalação de 2002 de Lygia Pape (1927-2004) - além de ser
lido como “teia”, brinca com o apelido “teteia”, que atribui com carinho graciosidade
a pessoas ou coisas, e a inscreve como a última da série de Tteias, iniciada em 1977,
em exercício junto aos seus alunos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio
de Janeiro. Nascida como proposta de estender fios na natureza, Pape imaginaria o
seu desdobramento, já nos anos 1990, enquanto lançamento de malhas entre
prédios, que se espalhariam pela cidade. A respeito de Espaços Imantados (1968), a
artista diz:
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“Nas minhas idas e vindas de carro pela cidade (eu dirijo muito), comecei a desenvolver
um novo tipo de relacionamento voltado para o espaço urbano, como se eu fosse uma
espécie de aranha, tecendo teias. É todos aqueles ‘atravesse aqui’, ‘dobre a próxima
esquina’, e assim por diante, para cima e para baixo dos viadutos, dentro e fora dos
túneis. Eu e todos os outros... É como se estivéssemos captando uma vista aérea da
cidade: era uma teia ou labirinto imenso. Eu chamei aquilo de ‘Espaços imantados’
porque era algo vivo. Como se eu estivesse lá, bem dentro, puxando este fio que não
tem fim”.1
1Lygia Pape apud Guy Brett, “A Lógica da Teia” in Gávea de Tocaia. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p.
310.
2 A metáfora aparece, também, em um trecho famoso de Hélio Oiticica: “os fios soltos do experimental
são energias / q brotam para um número / aberto de possibilidades / no Brasil há fios soltos num campo
de possibilidades / por que não explorá-los”. Hélio Oiticica, “Experimentar o Experimental”, 1972; e em
depoimento de Mario Pedrosa sobre a artista: “Lá dentro de toda trama, que representa a artista-motriz,
é a pequenina partícula, o sopro vital a que se une tudo, arte e não-arte, forma e parte, cor e espaço,
num circuito que se inicia aqui e não termina acolá, mas mantém sempre aberta a brecha, onde a idéia
rebrota, e faz tudo recomeçar, desde o viço para as sensações, o calor para a forma e a vitalidade por
onde a vida se engalana, e o prosseguimento das coisas indica que arte e idéia nunca param,
traspassadas pela inspiração coriácea de Lygia Pape.” Mario Pedrosa, “Para Lygia Pape” in Gávea de
Tocaia. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 296.
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chegarmos à última da série, vemos prefigurar um sentido de “conquista do espaço”
que se vale da luz, da sombra, e da cor. Propomos nesta breve investigação um olhar
para Tteia 1C que possa interpretá-la informado por aspectos presentes não só na
série mencionada, mas pertencentes a um conjunto mais abrangente de trabalhos da
artista.
À procura de pontos de referência, nos perguntamos: como Lygia Pape pode ser
posicionada em relação às propostas de “interação” e participação do corpo na obra
na direção, por exemplo, do experimentar o experimental de Hélio Oiticica, que
compartilhou com ela sentidos específicos da gama de questões artísticas na
passagem dos anos 1950 aos 1970? O que ativaria processos de significação entre
sujeito e obra, e qual a importância da mediação do espaço para isso? Sua obra
pode ser vista à luz de quais temas fundamentais à escultura moderna? De saída, a
atenção pode ser dedicada a delinear particularidades de uma dialética recorrente:
do papel da relação interior/exterior da obra; da obstrução/abertura desta aos
espaços; e dos expedientes de participação/distanciamento do observador. Aqui
compreendemos a singularidade de Lygia Pape através da hipotética convergência,
em Tteia 1C, de aspectos de sua obra um tanto heterogênea.
Assim, Livro da Criação, Livro da Arquitetura e Livro do Tempo, todos do fim dos anos
1950 e começo dos 1960, parecem vir da experiência com as matrizes de Tecelares.
Algumas delas já prefiguravam as bases de 16x16 ou 30x30cm desses livros, feitos em
3“Dossiê Lygia Pape: Entrevista a Paulo Venâncio Filho, Glória Ferreira e Ronald Duarte”, in Arte e Ensaios
ano V, número 5. Rio de Janeiro: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA UFRJ,
1995, p. 10.
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cartão ou madeira, e que parecem flagrar o salto para a escultura como um movimento
lúdico. Já em 1989-92, temos Amazonino que, assim como Tteia, busca a ânima
singela do objeto em seu título; novamente bases quadradas, de onde fios lassos
pendem para o chão. Referências florestais, fios, e planos-plataforma para o espaço.
As Esculturas KV10 (1997) podem ser lidas como inversões completas dos antigos
Tecelares em seus materiais, procedimentos, formas e efeitos ópticos: placas circulares
de alumínio, cortadas a plasma em sistema computadorizado. Nos sulcos é que estão
o que se poderiam chamar figuras, e o fundo, antes translúcido, passa a reflexivo,
brilhante: hipérbole do jogo transparência/opacidade; trabalho escultórico entre o
volume e o plano, a partir do plano. Coisa que também fica evidente nos Volantes
(1999) de ferro banhado em cobre, onde as contraposições se dão num mesmo objeto:
apenas as arestas delimitam um volume cúbico e, fundido em uma delas, hasteia-se
um plano circular reflexivo. Desta série, um dos trabalhos se diferencia: duas placas
dobradas em forma de escadas, lado a lado, trazem sentido de ascensão como em
Tteia Nº1 e Tteia 1C, e são dispostas contra fundo escuro, como em Tteia Nº7. Aqui,
um dado de mistério: o chumaço de fios de cabelo apoiado num dos degraus; no
interior de outro Volante, o chumaço pende por um fio dourado. Seria um outro modo
de dizer: Isto não é uma nuvem (1983)? Conjugado ao problema do espaço, seja na
superfície dos objetos ou na transparência dos volumes, vem indicado o par
interioridade/exterioridade. Tema que, desde a escultura moderna, associa-se à origem
do conhecimento da obra: estaria ele alojado em seu interior, de modo análogo àquilo
que previamente habita o espírito de quem a vê? Ou estaria ele em sua superfície, para
o que contaria mais a experiência momentânea do observador, inserido num espaço
específico? 4 E ainda, que corpo seria esse metonimicamente colocado dentro da obra
a partir de uma esfera de cabelo?
4 Rosalind Krauss, “Caminhos da Escultura Moderna”. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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experiência imediata do corpo habita o interior significativo da obra. Ovo e Divisor (os
dois de 1968) realizam essa inclusão de modo literal. Na primeira, a pessoa tem a
experiência de, agachada, se desprender do interior de um cubo rasgando a sua
superfície. Contrariando a alusão à noção originária e única do nascimento, é proposta
uma experiência do através, do limite, da transição para uma situação exterior aberta
às possibilidades, como se latentes na obra.5 Em Divisor, um pano de algodão imenso
com aberturas divide e une as pessoas, entre umas e outras, e individualmente, entre a
cabeça e o que está abaixo dela. Comparado à abertura via rasgo no Ovo individual,
como não ver uma ponta de ironia nesta captura coletiva em um plano único? Muito da
preocupação de Lygia Pape está ligada à ambiguidade da inclusão literal do corpo na
obra, e na recíproca complementar da fusão, o corpo que também engole a obra.
Inquietações que com frequência a levarão para fora do campo da participação estrita.
A integração corpo-obra pode ser vista já desde o fim dos anos 50, em suas
aproximações ao teatro, como na “atuação” designada a holofotes e caixas de som
sobre um palco quadrado vazio, com um buraco no centro (em projeto, 1957), e
também no Ballet Neoconcreto (1 e 2, 1958). Neste, o corpo veste sólidos geométricos
de cor, que se movimentam, se cruzam, se alinham, se unem, e se afastam sobre fundo
e tablado pretos. Na coreografia, as formas são engolidas pelo escuro que se faz
material e tende a anular a dicotomia figura-fundo. A dinâmica visível/invisível atribuída
ao corpo, de oculto a revelado, pode ser estendida à forma como trata a relação luz/
ausência de luz. Em Faca de Luz (1975), um feixe luminoso penetra pela fresta rasgada
da caixa coberta por plástico preto, e cai diretamente sobre o corpo da artista.
Tais aproximações carregam consigo uma poética de rasgos, fissuras, feixes, facas,
sobreposições, cruzamentos, fios: “ENFIO A CABEÇA ESPAÇADAMENTE PELAS
FENDAS”.6 Neste seu poema visual de matriz concreta, as palavras são elas próprias
cortadas e redistribuídas no espaço branco da página. Ele sugere até um
aprofundamento de nossa leitura para Tteia 1C, em que o movimento do corpo gera
um efeito de paralaxe pela disposição dos prismas. Mas, como são transparentes e se
5“o OVO-corpo-ambiente dentro = AMBIENTE FORA identifica o deslocamento do corpo com o seu
AMBIENTE AO ALCANCE DO CORPO com o AMBIENTE INFINITO que ABARCA AS INFINITAS
POSSIBILIDADES DE DESLOCAMENTO DESSE CORPO”. Helio Oiticica, “PAPE : OVO” in Gávea de
Tocaia. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 302.
6Lygia Pape, “Enfio a cabeça espaçadamente pelas fendas” in Gávea de Tocaia. São Paulo: Cosac &
Naify, 2000, p. 35.
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sobrepõem visualmente, ocorre uma ilusão que contraria a impressão esperada: o
movimento do prisma, relativo à distância entre o observador e a profundidade em que
se encontra o objeto, em algum momento não corresponde à distância real. (Ao que se
adiciona ainda a confusão entre os interiores e os exteriores dos primas). Com isso, o
olhar projeta-se para o entre-prismas, tateia as distâncias reais em que se dão os
cruzamentos ópticos. Nessa investigação visual da profundidade, o olhar leva consigo,
magnetizado, o que poderia ser chamado de quase-corpo que, diferente do corpo, é
transportável àquele espaço interior da obra. O movimento do brilho sobre os fios,
oblíquos e mais próximos do eixo vertical, sublimando matéria em luz, enleva ao
sentimento de suspensão: somatório dos efeitos-vetores da obra. No plano da fusão
sensorial sujeito-objeto, somos luz.
A intervenção da imagem externa deste trabalho - posto não ser “penetrável”, mas de
fruição dada por caminhar acercado -, na existência interior do sujeito poderia nos
trazer outras metáforas, motivações, significados desse mimetismo de movimentos do
espírito. Ocorre que, consideradas outras obras de Pape, percebemos sua resistência à
abstração excessiva. Não se pode afirmar que o sentimento atmosférico, a
universalidade, ou o vitalismo radical sejam seus únicos motores e entonações.
Vejamos, por exemplo, Alva de Prata (1997), em que uma faca está cravada na areia,
entre dois filtros d’água que pingam um líquido vermelho (sangue?). A imagem é de
terror, “estranhamente familiar”, e corpo, aqui, só enquanto cadáver oculto; a ideia de
“corpo na obra” é revertida em suspense, como se questionasse até que ponto a
interpenetração -assim como a participação e a inclusão da ação do observador -,
seriam desejáveis enquanto paradigma de novidade como haviam sido nos anos 1960.
Tal qual a dicotomia estabelecida em seus Volantes, cujas superfícies brilhantes
refletem e repelem, a leitura da reflexividade do material como incorporação do espaço
na escultura é contrariada. Podemos ver nesse mesmo âmbito da repelência, até da
repulsa: a Caixa das Baratas (1967) 7 e retorno delas libertadas em Memória Tupinambá
(1996-99) dominando a superfície de uma esfera; a Caixa Caveira que Geme (1968), que
emite um ruído tétrico quando manipulada, ecoado na caveira de Wanted (vídeo, 1974);
os cachos de cabelo dentro da Caixa Brasil (1968), ressurgidos nos Volantes, como
7O argumento da repulsa evocada pela Caixa de Baratas enquanto crítica à moda da participação na arte
no fim dos anos 1960 foi sugerido por Agnaldo Farias em comentário sobre a obra, durante a disciplina
“Modos de Produção do Espaço na Arte Contemporânea”, do Programa de Pós-graduação da FAU USP, em
2013.
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vimos; ou a Cortina de Maçãs que, apodrecidas, invertem seu apelo. Alusões ao ato de
comer, de engolir, à antropofagia - como na série Os Tupinambás (2000) -, ou à
autofagia são vistos na galinácea Eu Como Eu (1999); em EAT ME: A Gula ou a Luxúria
(vídeo, 1976), e desde a Roda dos Prazeres e a Língua Apunhalada (ambas de 1968),
que trazem, respectivamente, anilina e sangue na língua; além do pedaço de carne crua
dentro da Caixa das Formigas (1967). A mistura obra-corpo traz em seu bojo um ponto
de interrogação sarcástico entre o desejo e a indisposição.
EXCURSO