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2020
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Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.
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Prefácio
É uma honra apresentar o quarto livro de José Maria Dias da Cruz, visto que os três primeiros já
foram bastante inovadores e significativos. Fruto de seu processo artístico, sua obra escrita reflete a
consistência de um pensamento dentro de um campo de estudo enigmático que é o da cor. Pintores que
tem a oportunidade de conhecer a fundamentação teórica proposta por ele, rapidamente percebem que
estão diante do ouro.
As breves anotações sobre as cores e coloridos na Arte Moderna e Contemporânea são inspiradoras
e podem se desdobrar em várias questões, por isso não é possível nem para o próprio José Maria chegar
a uma conclusão. A medida em que vai avançando nas descobertas entorno do olhar, constitui uma
sabedoria, mas há sempre barreiras a serem rompidas dentro de sua pesquisa. Exige-se para tal
humildade e segurança, uma mistura difícil. É uma atuação na fronteira do conhecimento de modo
desbravador.
Este livro resgata alguns conceitos mencionados em seus livros anteriores, mas extremamente
pertinentes, pois cada vez mais suas anotações, assemblages, pinturas e análises se interligam,
consolidando a base de uma teoria das cores que considera o tempo de observação um fator central.
Na contemporaneidade, nota-se que cada vez mais os meios se cruzam e a arte ganha um caráter
interdisciplinar. Esta pesquisa parte da pintura, passa pela poesia, pela filosofia, pela física, mas pode
servir para qualquer um interessado em questões visuais. Pois, apesar de vir de observações feitas por
ele mesmo ou por outros pintores, tendo uma origem bastante específica, é possível pensar trabalhos
em outros meios dentro do campo das artes como instalação e performance, por exemplo, e até mesmo
outras áreas como o design podem se beneficiar.
É uma reflexão que permite infinitas possibilidades de construção do espaço. Põe-se em cheque a
função da linha como um limite rígido que determina formas a serem preenchidas com cores.
Confiando no olho e entendendo seu funcionamento, percebe-se que as cores não são subordinadas às
formas. De fato, nenhuma das duas opera hierarquizando a outra. Ora as formas prevalecem, ora o
colorido, num eterno bailado. Analisar e introjetar esta dinâmica se torna possível, pois o pensamento
plástico de José Maria conecta relatos e anotações de artistas com sua percepção sensível apurada. Ao
seguir sua intuição com conhecimento, apresentou uma maneira de ver que enfoca a fenomenologia
das cores e que compreende os trajetos do olhar. Rompeu com círculo cromático iluminista pela sua
característica inerente de idealização das cores, porém não ignorou sua existência, ressaltando porque
não incorpora em sua pesquisa trabalhos de outros artistas como Seurat, Albers e Ittens que abordaram
o mesmo assunto. A proximidade dos pintores modernos com a ciência influenciou bastante suas
pesquisa, mas ao adotarem premissas oriundas do experimento da refração da luz, a percepção ficou
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condicionada a ideias como a “pureza” de uma cor dentre outras classificações. Costumo dizer que é
como a diferença entre estudar o comportamento de um gás na atmosfera e do mesmo dentro de um
tubo de ensaio.
Certa vez, disse ao Zé que seu trabalho se aproxima da música e até mesmo seu vocabulário explicita
isto. Palavras como ritmo, clave, matiz, intervalos e questões relativas a temporalidade são recorrentes.
Ele descobrira uma lógica maior que opera nos coloridos disponíveis aos olhos em determinadas seções
espaciais. É como um compositor com ouvido treinado e consciente das imensas possibilidades de
criação, só que a partir do olhar.
O livro propõe a organização deste conhecimento de maneira, ao mesmo tempo, didática e poética,
fazendo um só o professor e o artista. Por tratar de temas como o conflito entre a percepção sensível e
a linguagem verbal, este modo de exibir o conteúdo parece ser o mais efetivo. Aproxima-se de um
processo científico e é bastante mental, entretanto, não tem a pretensão de se estabelecer como uma lei
física. Afirma-se como um apanhado de experiências feitas sem instrumentos que não sejam os
próprios olhos dos artistas coloristas como Poussin, Cezanne, Braque e suas descobertas. O mérito de
José Maria é exatamente o fato de tornar tangível esta pesquisa para o público, transportando um
conhecimento restrito a poucos ateliês artísticos ao longo da história a todos aqueles que se interessam
pelo saber do olho.
Cabe ao leitor descobrir o que fazer com isso. Esse tipo de trabalho disponibiliza um repertório
praticamente ilimitado para ser desenvolvido. Deste modo, vai além de um estudo que funciona como
um material de consulta para aplicação. Ao introduzir o conceito de dimensão temporal do colorido,
José Maria marca seu nome na História da Arte e abre caminho para que outros artistas, cientistas,
designers, arquitetos, etc... pensem o olhar, as cores e que além de criar utilizando esta pesquisa como
ferramenta, possam dar prosseguimento a ela. Neste sentido, seus livros são também um convite.
Bernardo Magina
essoa
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INTRODUÇÃO
“Em cada dez pintores apenas um é colorista.”
Diderot
Hélio Oiticica escreveu, na década de sessenta, que havia um problema na pintura, a cor.
Declarou, então, que a era da pintura de cavalete estava definitivamente encerrada.
Seguiu seu caminho “espacializando” a pintura. Pergunta-se: o problema continua?
Creio que sim.
Creio que esse problema da cor na pintura pode ser estudado a partir dos artistas
pós- impressionistas do final do século XIX.
Van Gogh e Odilon Redon, aos se referirem ao rompimento do tom, afirmaram que se
misturássemos um laranja e um azul puros em quantidades iguais obteríamos um cinza
absolutamente incolor. Apoiavam-se no círculo cromático iluminista que pretendia,
racionalmente, explicar todos os fenômenos cromáticos da natureza. Já Guaguin
afirmou que a cor era enigmática. E se perguntou se deveríamos pintar uma sombra
azulada ou o mais azul possível. Instalaram-se suas dúvidas. Sendo a cor enigmática,
como racionalizá-la? Deveria usar a cor adjetivada ou idealizada? Já Cézanne afirmou
que a luz não existe para o pintor, tem que se substituída por outra coisa, a cor. No final
de sua vida diz que não realizou e nem realizará nada do que pretendera e que fora um
primitivo pelas coisas novas que descobrira. Já Seurat, baseado no livro de Chevreul,
realizou uma obra ancorada em princípios científicos. Estudou a divisão do tom baseado
no círculo cromático iluminista. Seurat foi seguido por Paul Signac e esse método foi
classificado pela crítica como pontilhismo, que é apenas um procedimento e não uma
questão teórica.
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Alguns impressionistas utilizaram em seus quadros duas escalas básicas para a
passagem luz sombra que obedeciam a ordem das cores do espectro. As duas escalas: 1 -
laranja, amarelo, verde e azul: 2 - laranja, vermelho, violeta e azul.
Cézanne ao romper com os impressionistas não mais pensou nas cores e coloridos a
partir do círculo cromático iluminista, portanto não mais colorindo a partir de una escala
baseada na ordem das cores do espectro. Daí ter afirmado que a luz não existe para o
pintor e que somente um cinza reina na natureza. Para mim esse é o cinza sempiterno,
um não espaço e um não tempo causa e efeito dos coloridos. Esse cinza resulta do
rompimento do tom que dá uma dimensão temporal à cor. Assim percebemos em
Cézanne uma escala na qual são introduzidos os rompimentos dos tons. Portanto uma
escala que em nada obedece a uma ordem das cores do espectro.
LR, TR-LR, TR-AZ, AZ, VD, TR-VD (laranja e seu rompimento, azul e seu
rompimento e verde e seu rompimento)
Citemos então Guaguin: “Esforcei-me para provar que os pintores, em nenhum caso,
precisam do apoio e instruções dos homens de letras. Esforcei-me lutando contra todas
essas resoluções que se transformam em dogmas e que desorientam não somente os
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pintores mas o público. Afinal, quando compreenderemos o sentido da palavra
liberdade?” De minha parte creio que devemos hoje procurar fazer um discurso da
teoria da pintura e não fora dela.
Parece-me que essa crise na pintura que eclodiu a partir da década de sessenta e os
discursos sobre sua morte recalcaram ainda mais a questão da cor. Claro, isso não
impediu que grandes artistas com novas ideias surgissem como acima anotamos.
De minha parte continuei fiel à cor, e nos meus estudos descartei o círculo cromático
iluminista, o que me permitiu descobrir o cinza sempiterno como um pré ou pós-
fenômeno. Redefini o rompimento do tom não mais como misturas pigmentares, mas
como sobreposição no tom de sua pós-imagem o que deu à cor uma dimensão temporal.
Pensei nas cores abstratas substantivas, ideias platônicas nas quais a cor subsiste por si
só. Pensei nas cores concretas adjetivas como um par que contém em si sua oposta e
cuja condição é ser no colorido. Reinterpretei o serpenteamento vinciano. Estou
intuindo que podemos, baseado na topologia e nos fractais, pensar uma geometria das
cores. Mas, assim como Cézanne, me sinto como um primitivo pelas coisas novas que
descobri. Muitas ainda são as dúvidas.
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TEORIA DAS CORES, DE ARISTÓTELES ATÉ HOJE
“Fuja de estudar com aquele que produz uma obra destinada a morrer com ele”
Leonardo da Vinci
No livro de Manlio Brusanti, História das cores, está dito que em nossa cultura a cor
está recalcada e esse recalque mais se manifesta na contemporaneidade. Vale lembrar
Diderot, que diz que em cada dez pintores apenas um é colorista. Ou seja, para a
maioria dos pintores o primado do desenho era mais importante que o primado das
cores. Vale lembrar, também, que nesse livro acima citado o autor nem cita Cézanne,
que em minha opinião não é apenas um grande colorista, mas fundador de uma nova
teoria das cores, como a seguir veremos.
Uma história das teorias das cores é vastíssima e neste texto citaremos alguns pintores,
os veremos como teóricos das cores em seus próprios quadros, e mostraremos como
surgiram alguns conflitos entre desenhistas e coloristas, esses decorrentes das ideias
aristotélicas. E como a teoria das cores é uma parte da teoria da pintura, dela nos
ocuparemos também.
Para Aristóteles as cores eram propriedades dos objetos e eram vistas quando sobre eles
incidiam as luzes. Nas sombras elas não eram vistas, daí o filósofo considerar mais
importante a questão das luzes e sombras. Para Aristóteles as cores eram supérfluas e
eram quatro correspondendo aos quatro elementos: vermelho, fogo; verde, água; azul, ar
e amarelo, terra. Um filósofo posterior a Aristóteles, Plínio, exclui o amarelo,
argumentando que os véus das noivas romanas eram dessa cor, portanto, femininos e,
assim, o amarelo torna-se desprezível. Uma simbologia das cores a partir dessas ideias
se instala e permanece até a Idade Média e Renascença. Em um afresco de Giotto, Judas
está com uma vestimenta amarela.
Giotto
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Claro, a cor sempre foi um motivo de investigação dos filósofos, dos gregos até hoje,
mas pouquíssimos tentaram escrever uma teoria das cores. Isso se deve ao fato de as
cores serem enigmáticas e as formas mais racionais. Diremos, então, que no gráfico (no
desenho) as cores ficam subordinadas às formas e no pictórico (no colorido) as formas
ficam subordinadas às cores, mas não em termos absolutos.
Sabe-se que antes da Idade Média alguns manuais de pintura foram escritos. As pinturas
romanas, das poucas que se conhecem, as que foram recuperadas com a erupção do
Vesúvio, eram muito sofisticadas. Estas, em relação às cores, eram decorativas, mas
dentro das ideias aristotélicas, isto é, enfatizando o claro escuro, portanto o primado do
desenho.
Pintura romana
Afresco romano
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Cimabue
Depois de Aristóteles outro teórico das cores pode ser citado: Alberti. Para ele eram
quatro as cores essenciais: o vermelho, o verde, o azul e o cinza, este para as variações
do claro escuro. Alberti enfatizava a importância do relevo e de um colorido natural no
qual as cores locais eram respeitadas. Prevalecia, portanto, o primado do desenho.
Agora um parêntesis.
No ano 1434 Van Eyck pinta o famoso quadro, o Casal Arnolfini. Mostra uma classe
social ascendente. É um quadro de dimensões pequenas. O espaço plástico ocorre além
do suporte, portanto, é um espaço plástico remoto. Vemo-lo por uma visão mono ocular.
O colorido é natural, mas as cores e os objetos são simbólicos. Quase cinquenta anos
depois Leonardo da Vinci pinta a Mona Lisa. Nesse quadro Leonardo nos mostra como
essa classe social vê o mundo. Vemos a Mona Lisa em seu tamanho natural, ou seja,
Leonardo representa o espaço imediato, esse no qual nos orientamos através de uma
visão bi ocular. Os historiadores de arte dizem que Leonardo introduziu o esfumato em
pintura para resolver os limites dos corpos. Esfumato é um procedimento. Para
Leonardo os limites dos corpos são uma questão da teoria da pintura. Diz ele no Tratado
da Pintura: "Devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo e o
modo como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares
ou concavidades angulares." Seguem as imagens.
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Van Eyck
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(corrigir – Curvaturas circulares)
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Abrimos aqui um parêntesis. No quadro de Cézanne abaixo, A cabana de Jordão,
podemos observar como ele percebeu o serpenteamento vinciano, as concavidades
angulares. Vemos a chaminé tanto inteira, como o que está atrás dela, o céu.
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Cézanne
Fecha-se os parênteses.
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Boticelli
Há um filósofo que diz: "Sim, pois, onde estão as cores puras no mundo percebido? Na
verdade elas pertencem ao mundo nomeável, mas esse mundo nomeável reparte o
mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa enigmática que é o critério de
relevância implícito na língua estruturada. Parece que se abre um abismo entre os
domínios da percepção sensível e da linguagem, entre as qualidades percebidas e as
qualidades nomeadas, mas ficamos em dúvida se deveríamos concordar de que o
percebido só se faz passando pelo crivo da nomeação, como se a linguagem estivesse
filtrando a percepção, canalizando-a no sentido de só poder captar certos padrões em
detrimento de outros. Com certeza este é um problema que teria de ser colocado para
uma fenomenologia das cores, onde uma incursão no domínio da pintura seria,
certamente, bastante esclarecedora." (Mário Guerreiro)
Costumo dizer que o pintor pode chegar à filosofia por seus próprios meios e não, como
muitos pensam, partir da filosofia para chegar à pintura.
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No texto de Mário Guerreiro acima vemos que ele fala da percepção, mas considerando
o objeto em seu simples aspecto. Ou seja, sem considerar as cores adjetivadas, as que
compõem um colorido, e as substantivadas, ou seja, as cores de lembrança e, por
consequência, nomeáveis.
Vejamos, então, as observações de Poussin. Diz ele que há duas maneiras de se olhar
um objeto. Uma delas: ou o olhamos considerando, pela percepção, seu simples aspecto
e há nisso uma visão simples. Em minha opinião, nesse caso, logo o nomeamos para
não nos perdermos. Afinal essa língua estruturada tem uma lógica. Poussin continua
afirmando que podemos olhar prospectivamente e nesse caso temos que considerar o
saber do olho. Nesse saber está implícito um conhecimento, ou seja, uma lógica que
independe das palavras, portanto outro pensamento, um pensamento plástico no qual as
palavras não têm nenhuma necessidade. Mas não considero nem um nem outro com
valores absolutos. O pintor lida com os dois, o plástico e o verbal.
Digo que as cores abstratas são substantivas, são ideias platônicas e subsistem por si
mesmas. São como cores de lembrança e as identificamos muito mais pelas suas
respectivas nomeações. Não as relacionamos com outras cores.
Mondrian
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Mondrian no final de sua vida declara que esses quadros pintados com pretos,
esbranquiçados, vermelhos, amarelos a azuis são desenhos a óleo. Pinta, então, seus
últimos quadros. Como o artista não era pressionado pelo mercado, certamente percebeu
que havia chegado a um limite, e se continuasse a na mesma linha cairia em uma
repetição. Nos quadros anteriores a esses últimos há uma presença, uma solidez que os
tornam exemplares. Há invenção plástica.
Picasso
No quadro de Picasso acima vemos as cores mais como abstratas substantivas e a figura
contornada por traços. Diremos, portanto, que esse quadro é mais um desenho colorido.
Nele é forte o narrativo, mas este fica totalmente subordinado ao plástico.
Podemos observar, também, um ritmo cromático: a quantidade de azul está para a de
vermelho, assim como esta para o amarelo. Ou então o espaço total do quadro está para
o das cores, assim como este está para o espaço de cinzas. Podemos afirmar, assim
como o fizemos com Mondrian, que esse quadro de Picasso também tem uma presença
muito forte.
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Braque – Museu Nacional de Thyssen-Bornemisza
Nesse quadro de Braque diremos que as cores são amareladas e azuladas, avermelhadas
e esverdeadas, claras, escuras. Temos, portanto, um colorido que tem uma lógica.
No meu estudo abaixo mostro um tom a se romper e como nunca saberemos quando
uma cor é ela mesma.
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Uma observação: as geometrias, desde a euclidiana, são acromáticas. Creio ser possível
pensarmos em uma geometria cromática. Por exemplo, uma geometria fractal
cromática. O cinza sempiterno seria o elemento que se repetiria em cada
fracionamento. Curioso é nos lembrarmos da frase de Cézanne na qual ele diz que pinta
somente uma fração do espaço. Tenho muito que estudar a partir dessas observações.
Citemos agora Paul Valéry para termos uma ideia do que vem a ser um pensamento
plástico: "[...] Mas examinemos mais de perto: olhemos dentro de nós. Apenas nosso
pensamento tende a arredondar-se - vale dizer, a se aproximar de seu objeto, tratando de
operar sobre as coisas mesmas (na medida em que seu ato se converte em coisa) e não já
sobre signos quaisquer que excitam as ideias superficiais das coisas - , apenas vivemos
esse pensamento, sentimo-lo separar-se de toda linguagem convencional.[...] Sentimos
que nos faltam as palavras e sabemos que não há razão para que existam as que nos
respondam - quer dizer - ... as que nos substituam - , pois o poder das palavras (do qual
tomam sua utilidade) é trazer-nos à proximidade de situações já experimentadas, é
regularizar ou instituir a repetição; e nos encontramos aderidos agora a essa vida mental
que nunca se repete."
Por esse olhar prospectivo, ou seja, por um saber do olho e um pensamento plástico,
vamos além dessa vida que nunca se repete. Vamos construindo uma lógica, como diz
Cézanne, que não tem nada de absurdo. Podemos entender, por exemplo, uma geometria
das cores. Ou que as cores e os coloridos quando resultantes do cinza sempiterno, cinza
este causa de si mesmo, são causas, consequentemente, deles mesmos e assim nos
aproximamos de Espinoza, como mais a seguir veremos.
Leonardo estabelece diversas passagens entre luzes e sombras passando pelas quatro
cores que ele enumera, mas com uma ordem, ou seja, com um ritmo enquanto
recorrência pressentida. Cria uma escala que pode ser a base de um colorido. Por
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consequência, podemos percebê-las prospectivamente como concretas adjetivas.
Pertencem ao pensamento plástico. Diremos agora que as cores são enigmáticas e as
formas racionais.
De Vasari: "O desenho, pai de nossas três artes, Arquitetura, Escultura e Pintura, como
provém do intelecto, envolve um juízo final universal das coisas e se traduz em uma
forma ou ideia da natureza, exata em todas suas medidas. Daí que o desenho conheça a
proporção que guarda o todo com as partes e com as partes entre si com o todo; isso não
se aplica unicamente ao corpo humano e aos animais, mas também às plantas, edifícios,
esculturas e pinturas. Deste conhecimento, nasce certa opinião que, depois de elaborado
na mente, passa a ser expresso com as mãos mediante o desenho".
De Francisco Holanda: "O desenho, a que em outro nome se chama debuxo, nele
consiste e é a fonte e o corpo da pintura e escultura e de todo outro gênero de pintar e a
raiz de todas as ciências".
"As colores, de meu conselho, não devem ser muito alegres, mas antes tristes e graves.
E no meio da tristeza e sombras acudir com uma, duas e até três colores finíssimas e
alegres, porque esse dessemulado aviso faz grande harmonia, e tem môr primor do que
se pode cuidar".
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Cézanne
Outra observação. Cézanne afirma que só pinta uma fração do espaço. Diremos, então,
que há o cinza sempiterno do colorido e os de cada cor. Como é um colorido fracionado
diremos que há um colorido total que nos é interditado. Pela lógica do terceiro incluído
diremos que o colorido total está na zona do sagrado.
Rilke afirma que esse cinza não existe, mas que dele surgem as cores. Digo que as cores
para o cinza sempiterno convergem e divergem.
"A essência do que pode ser concebido como inexistente não envolve a existência".
Espinoza
"A natureza faz acontecer coisas em suas diferentes partes que se distinguem do todo e
entre si. Portanto há uma espécie de intercausalidade que é definição do próprio cosmo".
Henry Atlan
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ficam subordinadas às formas, e no desenho, além das manchas, hachuras, etc, até
mesmo traços, há algo de pictórico. E há as diversas distâncias entre coloridos e
desenhos. Cézanne diz que quanto mais as cores se harmonizam, mais as formas se
precisam. Há uma dialética entre as cores enigmáticas e as formas racionais sem excluir
as sensações e emoções.
Poussin
Vale citar uma frase de Poussin: “As cores na pintura são como chamarizes que
seduzem os olhos, como a beleza dos versos da poesia.” Sabemos que Poussin estudou
o Tratado da Pintura de Leonardo da Vinci. Segue uma frase de Leonardo: “A pintura
é uma poesia muda.”
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Caravaggio
A discussão entre coloristas e desenhistas se adensa a ponto de Poussin ter declarado que
Caravaggio foi posto no mundo para acabar com a pintura.
Não estamos fazendo um julgamento estético. Queremos apenas mostrar que as questões
de um e de outro eram opostas.
Caravaggio tinha outra consciência do espaço plástico. Segue a imagem de uma de suas
naturezas mortas. Esse pintor ocupa-se do plano pictórico. A linha horizontal abaixo
funciona como um rodapé e a partir dele sobe o plano vertical. A questão da planaridade
da pintura foi retomada por alguns artistas do século XX, inclusive Mondrian.
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Caravaggio
Estamos falando de teoria das cores. Muitos artistas mostram suas ideias teóricas sobre
as cores em seus próprios quadros. Um exemplo é Rubens. Ele não partiu de um colorido
natural e por isso foi denunciado por alguns críticos. Vejamos o quadro abaixo.
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Rubens
Ele usa tanto a modelação, ou seja, a passagem da luz para sombra sendo feita pela mesma
cor, ora clara, ora escura, como a modulação, essas nas mulheres, ou seja, na passagem
da luz para a sombra tem-se avermelhados e nas meias-tintas semitons levemente
esverdeados, portanto, Rubens utiliza várias claves de matiz.
Podemos afirmar que esses pintores conheciam essas novas teorias das cores, mas não
as aplicavam em suas telas rigorosamente.
Algumas observações. Duchamp faz referência ao retianismo. Diz ele: "Nesse ponto é
que aparece o retiniano. Aquela famosa libertação do artista, no tempo de Coubert,
alterou o seu status de dependente de um patrocinador ou colecionador para o de
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indivíduo livre, que por sua vez tinha o direito de aceitar ou recusar, mas apenas em
termos socialmente iguais. Essa libertação no século XIX tomou a forma de
impressionismo, que, de certo modo, foi o começo do culto para com o material da tela
– o próprio pigmento. [...] Cem anos de retianismo é bastante. Antes a pintura era um
meio para um fim, fosse religioso, decorativo ou romântico. Hoje é um fim em si. Isto
é, um problema bem mais importante que o de ser arte figurativa ou abstrata”.
Digo que a cor é para ser pensada e o pigmento para ser usado. E digo mais, para se
evitar o retianismo é importante classificarmos as cores em concretas e abstratas, mas
não em termos absolutos, pois o pintor lida com as duas.
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Ingres
Seurat, no final do século XIX, baseado no livro de Chevreul, Da lei dos contrastes
simultâneos, realizou uma obra ancorada em princípios científicos. Estudou a divisão do
tom baseado no círculo cromático iluminista. Seurat foi seguido por Paul Signac e esse
método foi classificado pela crítica como pontilhismo, que pode indicar, talvez, bem
mais um procedimento que uma questão teórica. Seurat preferia que fosse classificado
como divisionismo, ou seja, que um tom, visto a curta distância, poderia ser divido em
pequenas pinceladas de cor, que quando vistas a longa distância resultariam no tom
original da cor local. Por outro lado seus quadros eram construídos a partir do número
de ouro, ou seja, baseados na geometria euclidiana, que o colocava próximo à tradição
grega retomada durante a Renascença.
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André Lhote em seu livro Tratado da paisagem dizia que o pintor devia escolher uma
ou outra escala. Em vários quadros meus utilizei as duas escalas. Segue um exemplo.
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Kandisnky pensou, sobretudo, no simbolismo das cores. Em relação às formas e cores
considerou o quadrado, o triângulo e o círculo formas primárias, sendo o primeiro
vermelho, o segundo amarelo e o terceiro azul. Reconstruiu um circulo cromático no
qual o oposto do laranja era o violeta.
Aristóteles ao enfatizar a relação claro-escuro e considerar a cor supérflua fez com que
os artistas, mesmo os coloristas, respeitassem as cores locais. Cézanne em seus retratos
começa a romper com a cor local e é seguido por Matisse. Os fauves abolem totalmente
a cor local. Seguem umas imagens.
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Cézanne – Fonte, Google
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Matisse – Fonte, Google
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Derain – Fonte, Google
Parece-me que uma crise na pintura que eclodiu a partir da década de sessenta do século
XX e os discursos sobre sua morte recalcaram ainda mais a questão da cor. Claro, isso
não impediu que grandes artistas com novas ideias surgissem, como acima anotamos.
Estou imaginando a possibilidade de se pensar em uma geometria das cores. E digo que
essa geometria sou eu, pois a cor é um fenômeno subjetivo. Mas assim como Cézanne,
me sinto como um primitivo pelas coisas novas que descobri. Muitas são ainda as
dúvidas.
Vejamos, agora, como essas questões se desdobraram nas obras de alguns artistas
modernos e contemporâneos.
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enfatiza mais a concreta adjetiva, muito embora ainda não as diferenciasse. E mais
ainda: estará nos apontando para repensar o que Leonardo da Vinci nos diz sobre o
serpenteamento e uma visão bi ocular, e como o pintor deve evitar a segunda morte da
pintura?
Cézanne encerra a discussão entre desenhistas e coloristas. "A luz não existe para o
pintor, tem que ser substituída por outra coisa, a cor".
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Seguindo o mestre de Aix e observando as cores simples de Leonardo da Vinci e
considerando o conflito entre a percepção sensível e a linguagem, e por extensão as
cores concretas, descartei o círculo cromático iluminista. Segue uma assemblage.
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Cézanne afirmou que somente um cinza reina na natureza. Rilke em suas cartas sobre
Cézanne disse que esse cinza não existe, mas que se manifesta no quadro e dele surgem
as cores.
Denomino o cinza intuído com conhecimento plástico pelo mestre de Aix como
sempiterno.
Um tom considerado como cor concreta adjetiva se rompe, objetivamente, quando sobre
ele se sobrepõe sua oposta, sua pós-imagem. Não é, como muitos teóricos afirmam, um
problema de misturas pigmentares, ou seja, uma pintura retiniana denunciada por
Duchamp. Temos então uma distância entre a cor e sua oposta e a passagem entre elas é
um ponto. Diremos, então, que esse ponto, que não possui nenhuma dimensão, não é
mais aquele definido pela geometria euclidiana, é um não espaço, um não tempo, mas
com uma potência. Como todas as cores se rompem, o cinza onipresente contém todas
elas, ou seja, todos os coloridos, e assim este cinza é causa e efeito de todas as cores e
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coloridos. Como na natureza tudo está colorido, o cinza onipresente nela se manifesta
como um pré ou pós-fenômeno.
Mas não percebemos todos os coloridos, esses nos são interditados. Daí entendermos
porque Cézanne dizia que só pinta uma fração do espaço. Cada colorido, então, terá seu
exclusivo cinza sempiterno e com a mesma lógica do cinza onipresente, ou seja, ambos
são causa de si mesmo. E há ainda a questão de jamais sabermos quando uma cor é ela
mesma. Podemos pensar na geometria dos fractais e na topologia. E mais ainda, o
colorido com uma dimensão metafísica e ontológica, estas agora enriquecidas com as
novas descobertas da física quântica.
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Acredito que, por um espírito de época e a sincronicidade e o inconsciente coletivo
pensados por Jung, nesse espaço à frente do quadro que coincide com esse no qual nos
orientamos fez Duchamp colocar nele sua obra A fonte.
Podemos considerar, partindo da geometria dos fractais, uma superfície plana na qual se
transfere um colorido com mais de duas e menos de três dimensões.
Alguns críticos afirmam que os pintores cubistas do período analítico criavam quadros
com apenas duas dimensões e que usavam umas poucas cores: ocres, terras e cinzas não
os considerando coloristas. Se Diderot diz que em cada dez pintores apenas um é
colorista acrescento: não há o gráfico e o pictórico absoluto, e assim podemos
exemplificar: Cézanne e Braque criam um equilíbrio entre o gráfico e o pictórico.
Curiosa é a afirmação de Duchamp quando diz que o cubismo começa com Cézanne e
passa pelos fauves. Há, sem dúvida, pintores cubistas que são mais gráficos, e que seus
quadros têm apenas duas dimensões quando o vemos de uma forma não prospectiva.
Como nos adverte Poussin, em um olhar prospectivo temos que considerar o saber do
olho, as diversas distâncias e os eixos visuais. No quadro abaixo de Braque podemos
observar rompimentos de verdes, vermelhos, amarelos, azuis e tons claros e escuros.
Portanto há um colorido e o cinza sempiterno se manifesta, e uma atmosfera se interpõe
à frente do quadro. Assim, considerando-se a geometria fractal, tem mais de duas e
menos de três dimensões. Seguindo Leonardo da Vinci e suas observações sobre o
limite dos corpos e Poussin que faz referência às diversas distâncias e aos eixos visuais,
podemos afirmar que nesse espaço à frente do quadro de Braque esses objetos podem
ser observados em suas diversas faces.
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Braque
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O cubismo em Picasso é menos pictórico, como mostramos em uma reprodução
acima e nessa imagem que segue abaixo, na qual os planos são mais modelados que
modulados e as linhas de contorno são mais visíveis, portanto mais gráficas. Aqui
apenas queremos mostrar que Picasso está mais perto da tradição aristotélica que
prioriza a representação do volume pelo claro escuro. O espaço plástico é mais
remoto que imediato. As diversas faces são realizadas por linhas de contorno
euclidianas. E há nesse quadro de Picasso
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uma grande área cinza, mas esse como cor, e não o sempiterno e sobre ela traços, mais
como linhas euclidianas que vincianas.
Picasso
Seguem diversas assemblages nas quais desenvolvo minhas ideias relativas a outra
teoria das cores.
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O ESPAÇO CEZANNEANO E O CUBISMO
A tradição não é dada por direito de herança. E, se a quiser, é preciso muito trabalho
para a obter.” T.S. Elot
Para estudarmos o espaço cézanneano, isto é, aquele que cria uma atmosfera à frente do
suporte e que coincide com o espaço imediato temos que considerar:
5 – Repensar as frases de Cézanne na qual ele diz que devemos tratar a natureza através
do cone, da esfera e do cilindro, e outra na qual ele diz que os objetos no espaço são
todos convexos;
6 – Podemos nos perguntar: porque esse espaço cezanneano está vazio, não é pensado
como um novo caminho para a pintura?
Sobre o serpenteamento mostramos dois gráficos para que possamos entender o que são
as curvaturas circulares e as concavidades angulares. Mostramos também um quadro de
Cézanne, A cabana do Jordão, no qual podemos observar as concavidades angulares.
Sobre o cinza sempiterno: vale lembrar que ele não existe quando é uma possibilidade
de potência, e quando se manifesta passa a existir como pré fenômeno que dá origem
aos coloridos e as formas. Como cada colorido tem seu exclusivo cinza sempiterno e
cada cor desse colorido, idem, podemos dizer que nesse caso, o cinza sempiterno é um
pós fenómeno, pois as cores ao se romperem se dirigem a ele, o cinza sempiterno. Sobre
as cores concretas adjetivas já falamos que a condição delas é ser no colorido e que
nunca saberemos quando uma cor é ela mesma. Daí não podermos considerar as coisas
com valores absolutos.
Sobre o recalque da cor em nossa cultura citamos acima o crítico Manlio Brussanti e seu
livro, A história das cores, no qual nem cita Cézanne. Alguns críticos e artistas atuais já
se referem a uma cromofobia. Mas como escrevemos acima, não consideramos as coisas
44
com valores absolutos. Por consequência diremos que o pintor lida simultaneamente
com as cores concretas adjetivas e abstratas substantivas e há as diversas distâncias
entre uma e outra.
Citemos agora parte da frase de Cézanne: “ Permita-me repetir o que lhe dizia:
“Abordar a natureza através do cilindro, da esfera e do cone, colocando o conjunto em
perspectiva, de forma que cada lado do objeto se dirija a um ponto central.”
Aqui faremos um parêntesis. Digo que uma coisa é o suporte e outra o espaço plástico.
Assim podemos pensar em um espaço no qual colado ao suporte há uma figura, e além
dele o espaço plástico remoto. Neste caso o espaço ocorre, como teorizou Alberti, além
do suporte. Há, também, o fato no qual o espaço plástico fica colado ao suporte e um
exemplo são os quadros de Mondrian os quais eram construídos com linhas verticais e
horizontais pretas, brancos levemente acinzentados e as três cores primárias, o
vermelho, o azul e o amarelo. E há o espaço plástico realizado por Cézanne à frente do
suporte e este pode ser maior que o tamanho do suporte. Fecha-se o parêntesis.
Nessa frase de Cézanne ele se refere a cada lado de um objeto ou de um plano. Como
citamos o serpenteamento vinciano e o olhar prospectivo poussiniano, concluímos que
essa lateralidade, citado por Cézanne, refere-se a uma visão bi ocular e aos eixos
visuais.
Cézanne não diz que cada objeto deve ser circunscrito às formas geométricas como uma
construção histórica do espaço plástico.
Sobre esse ponto central acreditamos ser uma referência ao cinza sempiterno. Como
disse que era um primitivo pelas coisas novas que descobrira, ficou só com a intuição.
45
No quadro abaixo de Cézanne podemos perceber um espaço plástico curvo, composto
de partes esféricas, cônicas e cilíndricas. Um olho atento pode observar uma esfera mais
como uma apresentação de um espaço plástico onde figura-se a montanha. Percebemos
também as concavidades angulares e curvaturas circulares.
Cézanne
Nessa parte da frase de Cézanne podemos perceber a consciência que ele tinha do
espaço plástico em sua expansão e profundidade. Como ele diz que a arte é uma religião
creio que quando se refere a Deus, e diz que pintamos somente uma fração do espaço,
põem em discussão nossos limites diante da natureza, mas, apesar de ser católico e
detestar elucubrações intangíveis, nos leva a pensar em Espinoza que diz que Deus é a
natureza.
46
importante livro. No seu livro Tratacdus lógicus philosóphicus Wittengstein afirma que
ética e estética são uma coisa só. Fecha-se os parênteses.
Cézanne
Continuando a frase: “Ora, para nós, seres humanos, a natureza é mais em profundidade
que em superfície, donde a necessidade de introduzir nas nossas vibrações de luz,
representadas pelos vermelhos e amarelos, certa quantidade de azulados para se fazer
sentir o ar”
Merleu-Ponty no texto A dúvida de Cézanne diz que não há uma terceira dimensão na
obra de Cézanne e sim uma profundidade. É o que percebemos no quadro acima.
Percebemos mais, a manifestação do cinza sempiterno que cria a sensação de uma
atmosfera.
Acredito que a partir dessas percepções de Cézanne podemos rever o Cubismo. Mais
acima mostrei um quadro de Braque no qual vejo tanto frontalmente como lateralmente.
Braque modula, rompe os tons, e assim permite a manifestação do cinza sempiterno.
Aproxima-se de Cézanne. Mas como há uma tradição o cubismo de Braque, na minha
opinião, tem suas raízes também em Leonardo da Vinci e Poussin. Em Braque
observamos o serpenteamento vinciano e os eixos visuais poussinianos. Claro, há o
47
cubismo de Picasso, mas como ele mais modela que modula, o espaço plástico fica mais
colado ao suporte.
Picasso
Muitos historiadores das artes afirmam que o cubismo começou com o quadro
Demoiselles D‟Avignon. Aqui voltamos a citar Duchamp que afirma que o cubismo
começou com Cézanne e passou pelos fauves. Picasso nunca foi fauvista. Para mim esse
importante quadro de Picasso, um marco na história das artes, é um desdobramentos das
ideias de Gauguin relativas a arte primitiva.
Claro, são diversos os pintores cubistas, como Leger, André Lhote, Juan Gris Gleizes,
Metsinger e outros e cada qual com suas respectivas consciência do espaço plástico.
48
Escreveremos agora sobre o espaço cezanneano e perguntaremos por que ele está tão
inexplorado na contemporaneidade. É um assunto complexo e aqui faremos apenas
algumas anotações. No capítulo Teoria das cores, de Aristóteles até hoje escrevi um
pouco sobre isso. Agora acrescentarei algumas anotações.
Acredito que esse espaço cezanneano está inexplorado por conta do recalque da cor e da
permanência ainda de um círculo cromático que considera as cores com valores
absolutos e com a pretensão de todos os fenômenos cromáticos da natureza. Sabemos
que a física quântica introduziu no pensamento contemporâneo as incertezas e vários
níveis de realidade e percepção considerando, como observa o cientista Ilya Prigogine, a
flecha do tempo e estas descobertas não são consideradas pelo circulo iluminista. Não
considera as cores abstratas substantivas, ideias platônicas que subsistem por si só e as
concretas adjetivas. A cor concreta adjetiva é um par, que contém sua oposta e não a
uma complementar, (o círculo iluminista faz referência às complementares que são
obtidas por misturas pigmentares que Duchamp condena ao denunciar o retinianismo
como uma dependência que os pintores dos séculos XIX e XX tiveram pelo próprio
pigmento) e também a lógica do terceiro incluído que, como afirmamos acima,
considera uma dimensão temporal. Por isso, para mim, esse círculo iluminista é
obsoleto, não nos leva a ver o mundo e pensá-lo a partir dessas novas descobertas e
quero deixar claro que a arte não deve ser ilustrações de fatos científicos. Digo que a cor
é para ser pensada e os pigmentos para serem usados.
Termino então com uma pergunta: como direcionar a arte contemporânea para esse
espaço cezanneano e repensarmos nossa relação com a natureza?
49
Cézanne, Braque, Dufy, Picasso e o cubismo
Primeiro temos de lembrar a frase de Leonardo na qual ele diz: "Devemos observar com muito
cuidado os limites de qualquer corpo e o modo como serpenteiam para julgar se suas voltas
participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares". Fig 1 e Fig. 2
Fig 1
50
Fig 2
Cézanne afirmou que devemos “tratar a natureza através do cone, da esfera e do cilindro” e que “os
objetos no espaço são todos convexos.” Não se referiu a uma circunscrição dos objetos a cones,
esferas e cilindros. Afirmou, também, que “somente um cinza reina na natureza e que alcança-lo é de
uma dificuldade espantosa”. No quadro abaixo percebemos que Cézanne modula rompendo os tons e
isto permite que o cinza sempiterno se manifeste. Uma consciência do espaço plástico permite que
possamos percebê-lo ora esférico, ora cilíndrico, ora cônico. (Ver fig 3)
C
Cézanne – fig 3
Consultei o Google e vi um quadro de Braque do período do cubismo cezanneano. Li que ele e Dufy
ficaram amigos e conversaram muito sobre a obra de Cézanne. Vi, também, três quadros de Dufy.
51
Nunca li nas Histórias das artes uma referência a Dufy como participante do movimento cubista.
Praticamente em quase todas li que o cubismo começa com o quadro de Picasso, Demoiselle
d'Avignon, um quadro realmente importante para a história das artes, mas li em um livro que esse
quadro é um desdobramento das ideias de Gauguin, (Primitivismo, Cubismo e Abstração de Charles
Harrison, Francis Francine e Gill Perry) o que em parte concordo. E há uma afirmação de Duchamp
na qual ele diz que o cubismo começa com Cézanne e passa pelos fauvistas. E Picasso nunca foi
fauvista. No princípio do século XX vários pintores se interessaram pela quarta dimensão, estudo
iniciado no século XIX por matemáticos e que foi divulgado para leigos no século XX. Picasso e
vários outros pintores se interessaram por essas novas ideias, ou seja, as figuras mostradas
considerando-se vários pontos de vistas ou os diversos eixos visuais, conforme previu Poussin. E
uma quarta dimensão pode ser pensada de forma acromática. Se observarmos o quadro D’demoiselle
d’Avignon (ver figura 4) notaremos que o espaço plástico está colado no suporte e numa primeira
percepção é mais sincrético do que analítico. As cores não são nem modeladas nem moduladas, são
chapadas como nas gravuras orientais que tanto interessou os pintores no fim do século XIX. As
linhas de contorno são mais euclidianas do que vincianas. Cézanne nos mostrou outra consciência do
espaço plástico quando rompeu com a perspectiva cientifica renascentista definitivamente criando
outra com um olhar bi ocular. Creio que é essa a relação de Picasso com Cézanne, o afastamento
completo com a perspectiva renascentista. João Cabral de Melo Neto mostra em seu livro sobre Miró
e afirma que esse artista compreendeu esse afastamento. A relação de Picasso com os cubistas se
devem, portanto, às questões da quarta dimensão.
52
Picasso, 1907 – Fig. 4
53
Braque – Fig. 5)
Vejamos agora os quadros de Dufy que mais se aproximou das questões estudadas por Braque. Dufy
em 1910 abandona definitivamente o cubismo.
54
Dufy Fig. 6 – 1908
Acima um dos quadros de Dufy datado de 1908 (ver figuras 6), quando, junto com Braque, pensou
em outra consciência do espaço plástico. Me pergunto, criaram as bases da passagem de Cézanne
para o cubismo? Nesse quadro (Ver figura 6) umas árvores azuis e laranjas rompidas que permitem a
manifestação do cinza sempiterno como consequência das afirmações de Cézanne que afirma que
entre o objeto e o pintor se interpõe um plano, a atmosfera, esta só possível partindo de uma sólida e
lógica estrutura cromática com a manifestação do cinza sempiterno. Não há uma data precisa quando
do esse quadro foi pintado, mas podemos inferir que foi depois dos outros dois que mostro abaixo.
Nesse quadro de Dufy o espaço plástico tem mais de duas e menos de três dimensões, as cores são
concretas adjetivas, e assim nos mostra uma percepção do espaço plástico bi ocular e não mais da
perspectiva renascentista que se interessa mais pela tridimensionalidade e, por consequência, um
olhar monocular. E nesse quadro de Dufy podemos também observar o que Poussin afirma, ou seja,
55
um eixo visual frontal e os laterais quando o olhar é prospectivo e bi ocular, e considera as cores e os
coloridos. E podemos observar o serpenteamento vinciano no tronco das árvores, tanto as curvaturas
circulares como as concavidades angulares quando uma das laterais não é mostrada e, assim, nos
permite ver o que está atrás. Creio que assim Dufy pensou também em uma quarta dimensão, mas
sem excluir a cor. E acredito em uma geometria das cores. Enfim, instalam-se as dúvidas. Acho que
descobrir coisas é semeá-las. E, também, considerar essas descobertas dependentes do espírito de
época que a arte nos mostra, mas considerar também toda uma tradição que lhe antecede. Nos
quadros abaixo (Ver figuras 7 e 8), pintado em 1908, podem nos levar a considerar Dufy um
originalíssimo precursor do cubismo? Creio que sim. Sua consciência do espaço plástico é uma
consequência de sua percepção da obra de Cézanne. Dufy, entretanto, não modulou, ou seja, não
rompeu os tons de uma forma que permitisse a manifestação do cinza sempiterno criando um espaço
plástico atmosférico à frente do suporte. Dufy modelou, ou seja, ele a usou para as passagens do
claro para o escuro a variação da mesma cor. A originalidade de Dufy se deve à percepção das
observações de Cézanne relativas ao tratamento da natureza transposta para o suporte através da
esfera, do cilindro e do cone para a realização do espaço plástico e não pela a circunscrição dos
objetos a essas formas históricas da geometria euclidiana. Mas como Dufy modelava, o espaço
plástico ocorreu no espaço remoto do suporte. É possível que Dufy tenha se interessado em mostrar o
que a maioria dos artistas seus contemporâneos com novas ideias propunham, uma quarta dimensão,
ou seja, um espaço além daquele que é limitado pelo nosso campo de visão que percebe um espaço
tridimensional. Percebemos muito pouco os eixos visuais laterais, conforme nos adverte Poussin,
pois nossa percepção desses quadros de Dufy dentro da estética cubista é ortogonal, o que não exclui
uma relação figura e fundo. Alguns teóricos afirmam que alguns quadros cubistas tangenciam uma
percepção escultórica. Creio que esse é o caso desses dois quadros de Dufy. Enfim, instalam-se as
dúvidas. Acho que descobrir uma coisa é semeá-las. E, também, considerar essas descobertas
dependentes do espírito de época na qual a coisa pode ser concebida, mas considerar também toda
uma tradição que lhe antecede. Nos quadros abaixo (Ver figuras 7 e 8), pintado em 1908, podem nos
levar a considerar Dufy um originalíssimo precursor do cubismo? Creio que sim.
Dufy – fig. 7
56
Dufu – fig 8
57
ESPAÇOS CIRCULARES E A LÓGICA DO COLORIDO
A arte sobrevoa, a ciência anda apoiada.
George Braque
“Permita-me repetir o que lhe dizia: abordar a natureza através do cilindro, da esfera e
do cone, colocando o conjunto em perspectiva, de forma que cada lado do objeto se
dirija a um ponto central.” Segue abaixo um gráfico.
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Argan em sua História da arte comenta o seguinte sobre essa frase de Cézanne: “fazer
uma laranja e uma pera sejam uma laranja e uma pera, e ao mesmo tempo, uma esfera e
um cone, isto é, formas expressivas da totalidade do espaço.” E assim dizem,
praticamente, todos os historiadores das artes. Cézanne não se refere a circunscrever os
objetos a formas ou cilíndrica, ou esféricas ou cônicas. Ele afirma que “os objetos no
espaço são todos convexos.” Daí percebemos que um cubo, como está representado no
gráfico acima, pode estar envolto em um espaço cilíndrico. Da mesma forma uma
pirâmide em um espaço cônico ou uma esfera em um espaço esférico. A perspectiva
criada por Cézanne considera também as laterais dos objetos e assim desdobra as
afirmações de Poussin relativas aos eixos visuais.
Essa perspectiva criada por Cézanne não é mono ocular, esta teorizada por Alberti e
desenvolvida pelos artistas renascentistas. Não é uma perspectiva que procura
apresentar um espaço tridimensional, mas como afirma Merleau-Ponty, um espaço em
profundidade.
Cézanne afirma que os objetos no espaço são todos convexos, ou seja, já estava intuindo
um espaço curvo que depois foi estudado pala ciência.
59
Cézanne: Fonte, Google
66 “Não podemos nós imaginar certos homens com uma geometria da cor diferente da
nossa?” Claro que isto significa: Não poderemos nós imaginar homens que têm
conceitos de cor diferente dos nossos? E isto, por sua vez, quer dizer, não poderemos
nós imaginar homens que não têm os nossos conceitos de cor, mas têm conceitos, de tal
forma próximos dos nossos, que também lhes chamaríamos conceitos de cor?”
14- Mas mesmo que houvesse também pessoas para quem fosse natural usar as
expressões "verde-avermelhado" ou "azul-amarelado" de uma forma consequente e que
mostrassem também faculdades de que nós carecemos não seríamos forçados a
reconhecer que vêem cores que nós não vemos. Não existe, afinal, um critério comum
estabelecido para o que é uma cor a menos que seja uma de nossas cores.
Paul Valéry: “[...] mesmo no estado mais claro de sua lucidez, uma possibilidade de
falência total e ruína.”
Henry Atlan: “Porque no interior da natureza as várias causas e efeitos não são iguais, e
é por isso que a natureza inteira pode ser pensada como causa de si mesma. A natureza
60
faz acontecer coisas em suas diferentes partes, que se distinguem do todo e entre si.
Portanto, há uma espécie de intercausalidade que é a definição do próprio cosmo.”
No gráfico abaixo, mostramos um cubo percebido por uma visão bi ocular em diversas
distâncias: de perto, a meia distância e de longe e de muito longe quando se reduz a um
ponto. Além desse ponto ele se torna invisível.
Temos então duas hipóteses. Na primeira: suponhamos que o cubo é vermelho. Então
quanto mais se afasta, menor é sua cromaticidade. Na segunda: Suponhamos que o
61
primeiro é vermelho e quanto mais se afasta mais se rompe tornando-se esverdeado.
Neste caso quanto mais se rompe, mas se aproxima do cinza sempiterno. Este cinza
sempiterno, como já afirmamos, é uma possibilidade de potência, não existe, é um não
espaço e um não tempo, quando se manifesta surgem as cores e também as formas.
Quando se torna um ponto tanto pode ser um cubo como o cinza sempiterno.
Citamos acima Henry Atlan. Podemos, então, imaginar um espaço plástico com as
esferas em diversos tamanhos e as formas cúbicas ou cônicas idem, mas em diversas
posições. O cinza sempiterno quando se manifesta permite o surgimento de cores e
formas. Consideremos as observações de Poussin relativas às várias distâncias. As cores
podem ter várias dimensões além das temporais, e isto podemos perceber pelo
rompimento do tom. Assim, uma superfície, por exemplo, pode ter mais de duas e
menos de três dimensões quando, pelo cinza sempiterno, uma atmosfera começa a surgir
com mais ou menos visibilidade.
62
José Maria Dias da Cruz - Anamorfose de Brasil – 2019
Nesse quadro procuro pensar em uma perspectiva cromática, portanto mais paisagística.
A área azul á esquerda induz a área central a uma possibilidade de amarelado
considerando as cores concretas adjetivas.
Nesse quadro considerei também a geometria dos fractais (o plano que cobre a bandeira abaixo e mais
detalhado do que o plano que cobre a bandeira acima que está mais distante). Considerei também a logica
do terceiro incluído que permite v5arios n5iveis de realidade e percepção.
63
Claves de Valor e de matiz
Na fig.1 temos uma escala de valores que vai do claro ao escuro obedecendo a um ritmo enquanto recorrência
pressentida,. Ela tem apenas uma dimensão, a de valor. E podem desdobrar em um ritmo. Por exemplo:
primeiro intervalo, segundo, terceiro, etc. Ou um ritmo não tão lento, Por exemplo: primeiro intervalo,
terceiro, quinto, etc. Ou um ritmo mais veloz. Por exemplo: primeiro intervalo, quarto, oitavo, etc.
Na fig 2 temos as claves de valores, todas com aénas uma dimensão: a primeira com valores altos ou claros, a
segunda com valores intermediários, e a terceira com valores baixos ou escuros. Há um intervalo maior entre
uma clave e outra. Com isso temos que cada clave tem seu ritmo próprio, e as três claves um outro ritmo: A
está para B, assim como B está para C.
Na figura 3 temos uma escala com duas dimensões matiz e valor. Suas varações são idênticas à escala de
valores.
Na figura 4 temos as claves de matiz, todas com duas dimensões, matiz e valor. Suas variações são também
idênticas às claves de valores.
Mas podemos em outros níveis de realidade e percepção. E se as cores forem concretas adjetivas as regras
acima se diluem com a manifestação do cinza sempiterno. Podemos nos apoiar nas observações e Ilya
Progogine que afirma que o tempo é irreversível e não linear. Temos, então, o passado, o presente e n
possibilidades de futuros. Instalam-se as incertezas.
Nas obras de minha autoria nas quais estudei a possibilidade em um mesmo quadro trabalhar em
várias claves de matiz, valor e intensidade. Os teóricos das cores afirmavam que um colorista devia
escolher somente uma clave de matiz, valor e intensidade. Tentei ultrapassar esses conceitos. Em um
dos quadros (ver fig. 6) usei para as luzes ora alaranjados ou azulados e para as sombras ora azulados
ou alaranjados. Isso foi possível graças à manifestação do cinza sempiterno, ou seja, às cores
concretas adjetivas moduladas que fazem com que esse quadro se torne mais pictórico. Se
utilizarmos as cores abstratas substantivas tornam-se mais gráficos, ou seja, as cores ficariam e as
64
cores modeladas subordinadas às formas. Mas em uma mesmo quadro podemos mudular ou modelar
algumas figuras. (Ver fuguras de 6 a 9)
..
Fig 5 – Kandisnky
Nesse quadro de Kandisnky percebemos no primeiro plano uma sequência de claros e escuros abaixo
da locomotiva. Vemo-las todas em um instante. Percebemos os valores hápticos. O barulho e a
velocidade da locomotiva. No canto esquerdo uma criança acena com um lenço a chegada dos novos
tempos Ou ela se despede dos velhos tempos? No segundo plano dois postes. A velocidade se
encerra,e diminui o barulho. No terceiro plano percebemos a permanência de uma casa amarela e
domina um silêncio. .
65
Fig. 7- osé Maria Dias da Cruz
66
Fig 9 – José Maria Dias da Cruz
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Anotações sobre o quadro: O cinza sempiterno e contrastes
José Maria Dias da Cruz – O cinza sempiterno e contrastes – o/s/t ´20 x 40 cm – 2010
O espaço plástico à direita: o esbranquiçado, por contraste, faz com que o azulado ganhe um valor mais baixo.
Faz também que a figura a seu lado esquerdo tenha um contorno mais intenso no limite com o esbranquiçado,
e no limite de seu lado esquerdo com a área rompida de verde tenha um contorno menos intenso. Ainda nesse
espaço ao lado direito: as harmonias são dissonantes. As cores são concretas adjetivas e um cinza sempiterno
se manifesta. O alaranjado e o violáceo claros contra o azulado faz com que esse cinza sempiterno se atenue.
No espaço plástico do lado esquerdo a figura mais à esquerda sendo escura faz com que o azulado ganhe um
valor mais alto. As harmonias entre o violáceo, o esverdeado e o azulado são consonantes e isso permite que o
cinza sempiterno se intensifique. A área ao lado da figura escura, um tom rompido do violáceo tem um
contorno em seu limite com ela uma intensidade maior que a que se limita à direita com o violáceo.
Os espaços plásticos se descolam do suporte graças à manifestação do cinza sempiterno. Ocorre que o espaço
plástico à direita ora é percebido mais à frente, ora mais atrás em relação com o espaço à esquerda. O mesmo
ocorre com o espaço plástico à esquerda. O tom rompido do violáceo e o do esverdeado por si só têm o mesmo
valor. Mas no espaço plástico do quadro o tom rompido do violáceo parece com valor mais alto. Dá afirmar
que nunca sabemos quando uma cor é ela mesma.
O quadro parece, assim, desfocado, mas o cinza sempiterno permanece, como a nos mostrar que outro tempo
há de vir.
Acredito que toda obra de arte tem um conceito. Acredito que como artista, nesse momento der crise no qual
vivemos, tenho que me aproximar da natureza. Os conceitos que tento definir pertencem ao pensamento
plástico. Essa aproximação com a natureza me aproxima também de Espinosa que afirma que Deus é a própria
natureza. E me faz lembrar de umas frases de José Cândido de Carvalho em um texto de umas edições de seu
livro intitulado. O coronel e o lobisomem.
“E agora. Não tendo mais o que inventar, inventaram a tal da poluição, que é doença própria de máquinas e
parafusos. Que mata os verdes da terra e o azul do céu. Esse tempo não foi feito para mim. Um dia não vai
haver mais pássaros e rosas. Vão trocar o sabiá pelo computador. Estou certo que esse mostro, feito de mil
astúcias e mil ferrinhos, não leva em consideração o canto do galo nem o brotar das madrugadas. Um mundo
assim, primo, não está mais por conta de Deus. Já está agindo por conta própria. “
Dezembro de 1970
68
M2 e M3
Abaixo segue um quadro cuja imagem foi encontrada recentemente graças a Internet,
pintado em 1976, intitulado M2 e M3 pintado em 1976 em óleo sobre tela medindo 24 x
33 cm.
Nele apresento parte de uma maçã em visão frontal, a outra parte encoberta por um
plano. Instalam-se as incertezas; o que está encoberto por esse plano? Abaixo apresento
duas maçãs, também encobertas por planos, à direita e à esquerda. Seria uma primeira e
uma segunda maçã vistas por um eixo visual lateral? E a primeira não seria de fato a
terceira? Naquela ocasião pensava ainda nas harmonias assonantes e nesse quadro usei
69
azuis escuros e amarelos avermelhados claros. O contraste claro-escuro intensifica o
espaço cromático no qual está figurada a terceira maçã. Surgem as incertezas. Essa
maçã se apresenta com mais de duas e menos de três dimensões?
Segue um texto citado por Milton Machado em um livro sobre minha obra, Interiores de
Reflexão, editado pela Jacobsen Editora em 2.000.
“Devemos dizer que o primeiro não é primeiro se não houver depois dele, um segundo.
Consequentemente, o segundo não é apenas aquilo que vem, como algo que chega com
atraso, depois do primeiro, mas que permite ao primeiro ser o primeiro. Assim o
primeiro não tem como ser o primeiro por sua própria potência, por seus próprios
meios: o segundo deve ajudá-lo com toda força de sua demora. É através do segundo do
que o primeiro é o primeiro. A „segunda vez‟ tem, portanto, uma prioridade sobre a
„primeira vez‟, pois está presente, já desde a primeira vez, como condição prévia para a
prioridade da primeira vez (sem que ela seja, evidentemente, uma „primeira vez‟ mais
primitiva): daí que a „primeira vez‟ é na realidade, a „terceira vez.”
Sempre afirmei que a pintura não deveria ser ilustrações de questões filosóficas ou
científicas e que ela poderia chegar a uma ou outra por seus próprios meios apoiada no
pensamento plástico.
Esse quadro foi pintado depois de alguns Formulários realizados na década de sessenta
nos quais investigava as possibilidades do suporte, ou seja, o permanente e o transitório,
além de outra lógica que incluía um terceiro termo que depois soube que tinha relação
com a lógica do terceiro incluído a qual considerava os vários níveis de realidade e
percepção sem ferir a lógica aristotélica que considera somente um único nível de
realidade.
Abro aqui um parêntese. Cézanne afirmou que queria “chegar á perspectiva unicamente
pelas cores.” Afirmou também que “entre o objeto e o pintor se interpõe uma plano, a
atmosfera.” Pergunto-me: não estará Cézanne desdobrando as ideias de Leonardo da
70
Vinci relativas à perspectiva aérea criando outra na qual, como observa Merleau-Ponty
em seu texto A dúvida de Cézanne, diz que a perspectiva cezanneana é mais em
profundidade que em terceira dimensão? Fecha-se o parêntese.
O fato é que agora me apercebo que pode haver espaços plásticos, sejam remotos,
colados ao suporte ou à frente com a manifestação do cinza sempiterno, que
simultaneamente sejam também o suporte.
71
José Maria Dias da Cruz, década de 80
72
José Maria Dias da Cruz, década de 90
73
Helio Oiticica
Hélio Oiticica, como escrevi acima, apontava para um problema da PINTURA (O grifo
é meu) e anunciava o fim da pintura na qual o espaço plástico criado era o remoto. Sua
obra é enorme. Entre muitas realizou, então, os Relevos espaciais. Esses relevos
aproximam-se de Aristóteles em suas observações sobre a predominância do claro
escuro, mas em um primeiro nível de percepção predominam as cores. Pergunto-me:
não estará Hélio Oiticica criando formas e cores e fazendo-as ficar subordinadas ao
espaço da pintura sem o apoio do suporte?
Hélio Oiticica
74
Regima Vater
Desdobrando essas ideia de Hélio Oiticica temos alguns trabalhos de Regina Vater, mas
não mais observando os relevos e sim enfatizando as cores. Deixa, assim, de ser
aristotélica em relação ao claro-escuro. Nesse trabalho que segue abaixo temos um
narrativo inteiramente subordinado ao plástico. Esse narrativo não é linear, é bem mais
remoto, portanto, poético.
“Do escuro então lhe passou pela pele, num raspão, algo como uma palavra remota.”
Regina Vater
75
A verdade em pintura
O tema que aqui tentaremos expor é bastante complexo. Não é nosso objetivo
desenvolvê-lo através da linguagem verbal, mas tentar alguma aproximação pelo
pensamento plástico.
Mas antes uma observação. Tratamos neste livro de uma teoria da pintura e do desenho
também. Quando Cézanne nos mostrou um espaço plástico à frente do suporte o fez
coincidir com esse no qual nos orientamos, o espaço imediato. Naturalmente há um
limite nesse espeço plástico não muito preciso. Na contemporaneidade há muitas
manifestações que estão além desse limite, que não cabem nessa discussão. Os trabalhos
de Hélio Oiticica e Regina Vater estão situados nesse limite difuso, mas podemos
observá-los também dentro de uma teoria da pintura. Podemos vê-los, e também
repensar a arte considerando a lógica do terceiro incluído.
Cézanne
76
George Braque escreveu: “Escrever não é descrever, pintar não é representar.” Cézanne
não representa, ele apresenta. Rilke em suas cartas sobre Cézanne observou que as
maçãs de Cézanne são verdadeiras, mas não são comestíveis. Deleuze faz referência
aos valores hápticos.
Cabe aqui citarmos Leonardo da Vinci quando diz em seu Tratado da Pintura que
quando um pintor transpõe para o suporte algo vivo da natureza, mata a pintura por uma
primeira vez (podemos interpretar essa transposição como uma simples representação e
estática) e caberá ao pintor evitar uma segunda morte.
Cézanne evita essa segunda morte da pintura, cria uma pintura viva, portanto nos mostra
sua verdade.
Seguem umas citações de Braque. O que estamos tentando discutir já está dito por ele
com muita profundidade. Acrescentarei apenas alguns detalhes.
Braque
77
Curioso como podemos observar nesse quadro acima de George Braque uma referência
a Cézanne. No quadro do mestre de Aix que acima mostramos podemos observar no
fundo umas folhas em nada mostradas como representação. Braque as transpõe nesse
quadro. Mostra uma verdade em pintura.
Nesse quadro de Braque não importa se é figurativo. Nele há invenção plástica, há uma
presença que nos afeta. Há, portanto, uma verdade, Há um enigma que nos eleva
espiritualmente.
Sobre o que Duchmp fala sobre se fazer arte como um fim em si me pergunto: o artista
que se ocupa disso não estará criando uma abstração fora da realidade? Cita-se aqui
umas frases de artigo do sociólogo Robert Kurz escrito em 1999 e publicado na Folha
de São Paulo.
78
Duchamp
79
José Maria Dias da Cruz
Continuando este capítulo vale vermos uma obra de Luciana Knabben. O trabalho dessa
artista está na zona do limite incerto do espaço plástico coincidindo com o espaço
imediato. Desdobrando os relevos de Oiticica Luciana cria com plásticos transparentes
um colorido. A visão é bi-ocular, os tons se rompem o que permite a manifestação do
cinza sempiterno e do serpenteamento vinciano. A obra não se apoia em um suporte e
80
suas dimensões são pequenas. Sua condição é ser no espaço. O que vale dizer, o espaço
cromático está subordinado ao espaço imediato. Voltamos a Cézanne quando ele diz
que na natureza tudo está colorido. E da natureza segundo Espinoza quando ele diz que
ela é causa de si mesma; Essa é a verdade que Luciana nos mostra.
Luciana Knabbenn
81
Título: Natureza Morta com texturas (versão xilogravura)
Kelly Kreis 201
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Regina Vater e a arte conceitual e como objeto estético
“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”
Marcos, 15.34
Regina Vater, Fronteiras entre dois países da América do Sul, Bienal de Curitiba, 2019,
foto Lígia Teixeira
83
O trabalho de Regina Vater acima tem um pé na arte conceitual que considerava
o conceito e a ideia mais importantes do que a realização física da obra e o outro
no objeto estético, em sua presença. Assim são diversas suas respectivas
narrativas.
Como arte conceitual, a partir de seu título, fica claro uma aproximação politica:
fronteiras de uma América do Sul que foi inteiramente deformada. A obra fica
subordinada ao conceito. Podemos imaginá-la, sem prejuízo do conceito, as fronteiras
riscadas no chão ou no muro. Podemos também considerar outros conceitos. O de lugar,
por exemplo, e daí a uma crítica à globalização. Segue a letra de um samba de Arlindo
Cruz, O meu lugar.
A globalização é uma questão bastante complexa, convivemos com ela, mas vamos
resumir. Ela é uma questão capitalista que tem por objetivo a movimentação do
dinheiro, ou seja, na integração de mercado existente entre os países. Regina, ao destruir
a configuração da América Latina nos leva a pensar nessa questão complexa do lugar.
Mas como disse acima, o trabalho da Regina é também um objeto estético e tem sua
lógica. Citemos Wittegnsteuin: “Ética e estética são uma só coisa.” Tractadus lógicus
phiolsoficus.
Nessa obra de Regina podemos perceber alguns contrastes. Primeiro: as linhas curvas
das representações das fronteiras com a ortogonalidade da base com as etiquetas
indicando qual o lugar de cada fronteira. Segundo; O contraste entre as tonalidades
claras das linhas com o escuro da base que nos permite perceber, como uma unidade
primordial, um ritmo enquanto recorrência pressentida. Há, portanto, uma lógica
plástica que nos remete a vários conceitos plásticos.
85
REMBRANDT E CARAVAGGIO
Caravaggio representava a luz e a sombra pelo claro escuro modelado. Um
mesmo matiz ora é mais escuro, ora é mais claro. Torna-se, assim, mais gráfico, na
medida em que aceita o primado do desenho no qual as formas, estas mais racionais que
as cores, predominam. Isso certamente o levou a pintar uma natureza morta que
mostramos em um capítulo acima, que está em um museu de Milão, na qual uma
consciência de um espaço plástico mais plano predomina. Essa natureza morta é toda
construída a partir do número de ouro, portanto dentro de uma mentalidade quantitativa.
Caravaggio, assim, leva às questões levantadas por Mondrian com seus quadros nos
quais usava somente as linhas horizontais e verticais, as três cores primárias, preto e
nuances de brancos. O curioso é que no fim de sua vida Mondrian tenha declarado que
fez somente desenhos a óleo e logo começou a pintar seus dois últimos quadros. Em
alguns quadros de Caravaggio podemos notar leves traços como linhas absolutas de
contorno.
Vale lembrar que Leonardo enumera os brancos e os pretos no número das cores
simples, argumentando que os pintores nada podem fazer sem eles, embora reconheça
que os primeiros para os físicos e filósofos são a presença de todas as cores e os
segundos a ausência delas. Pelos rompimentos dos escuros, os quadros de Rembrandt
ganham, assim, uma atmosfera. O cinza sempiterno se manifesta e com ele o
serpenteamento vinciano. Este serpenteamento decorre do fato de Leonardo, ao pensar
nos limites dos corpos, considerou uma visão bi ocular. Esses limites tornam-se, assim,
instáveis e não absolutos como na perspectiva científica. Criam uma oscilação e uma
energia que animam o espaço plástico.
Há, assim, uma dimensão ontológica nas pinturas de Rembrandt. Isso nos leva a
Poussin que se refere a um saber do olhar prospectivo que considera a percepção de um
objeto além de seu simples aspecto. O curioso é a afirmação de Poussin na qual diz que
Caravaggio foi posto ao mundo para acabar com a pintura.
86
do vermelho (ou do verde) nunca chegamos ao verde (ou ao vermelho), suas respectivas
opostas. Entramos, assim, na zona do invisível, de um pensamento especulativo e
abstrato. Por uma intuição com conhecimento chegamos ao cinza sempiterno. Como
estamos considerando os brancos e os pretos como cores, e como todas elas se rompem,
podemos afirmar que todas elas se dirigem a um ponto central, que não tem nenhuma
dimensão, é um não espaço e um não tempo. Esse ponto, assim, contém todas as cores
de um colorido. E, ao ultrapassar certo limite, estão em uma zona não visível. Elas para
esse ponto convergem ou divergem e na divergência nos possibilita os coloridos.
Diremos, portanto, que esse ponto, o qual denominamos de cinza sempiterno, é um pré
ou pós-fenômeno. Ou causa de si mesmo. Como Cézanne afirma que na natureza tudo
está colorido, aproximamo-nos de Espinosa, que afirma que a natureza é também causa
de si mesma.
87
Falamos acima do colorido, dos rompimentos, do cinza sempiterna, do visível e
do invisível. Diremos, então, que um colorido é bem mais do que as formas
subordinadas às cores. É, também, a representação do que é visível e invisível. Para
entendermos esses fenômenos é importante um saber do olho.
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Detalhe do quadro acima de Rembrandt.
Nesse quadro podemos observar que não há um contorno absoluto, as linhas são vincianas.
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Rembrandt – National Gallery - Londres
Nesse quadro acima podemos observar como um escuro se rompe até chegar à luz, e
não a um claro.
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Caravaggio –National Gallery – Londres
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José Maria Dias da Cruz
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José Maria Dias da Cruz
93
Os Formulários, o cinza sempiterno e a lógica do terceiro incluído
Conflito de Lógicas
Representação artística de Aristóteles, pai da Lógica Clássica.
A lógica clássica é binária, ou seja, ela é constituída a partir de apenas dois valores de
verdade: verdadeiro ou falso. Tal lógica, elaborada inicialmente por Aristóteles, é
intuitiva, uma vez que ela está em conformação ao raciocínio humano.
A lógica clássica está baseada na Lei do Terceiro Excluído, onde temos o seguinte
raciocínio lógico: "ou A é A ou não é não-A e não há uma terceira possibilidade T.
Dessa forma, dentro da lógica da Lei do Terceiro Excluído, não existe um terceiro
estado no qual A possa ser A e não-A ao mesmo tempo, ou seja, não existe um estado e
dualidade T para A .
Sendo assim, a lógica clássica é considerada como “a lógica da realidade”, pois ela está
fundamentada na própria estrutura da realidade, ou seja, ela, naturalmente, faz parte do
raciocínio humano. Isso a tornou amplamente dominante na pesquisa e no ensino,
criando a necessidade de um conhecimento construído na objetividade plena e na não
contradição quando introduzimos um terceiro termo na lógica aristotélica.
No entanto, as descobertas da Física Quântica no início do século XX, revelaram que os
fenômenos que ocorrem em dimensões atômicas não correspondem à lógica clássica,
uma vez que em dimensões microscópicas, estados opostos se complementam, podendo
existir estados onde ocorrem dualidades.
94
O Princípio de Superposição Quântica está presente no centro de todos os
desenvolvimentos atuais da Mecânica Quântica. Tal princípio é o responsável pela
existência de paradoxos quânticos, os quais são consequência da grande dificuldade de
compreensão dos fenômenos quânticos, uma vez que estes não podem ser vistos por
meio do realismo clássico, onde a Lei do Terceiro Excluído funciona de forma lógica.
A Física Quântica forneceu, portanto, elementos para a formulação desta nova
ferramenta conceitual que é a lógica do Terceiro Incluído.
Lógica Clássica
A lógica clássica está baseada em três axiomas:
1. Axioma da Identidade: "A é A"
2. Axioma da Não-Contradição: "A não é não-A"
3. Axioma do Terceiro Excluído: "não existe um terceiro termo T que é ao mesmo
tempo A e não-A".
Lógica do Terceiro Termo Incluído
De modo similar, uma lógica não-clássica pode ser baseada nos dois primeiros axiomas
da lógica clássica, mas tendo como terceiro axioma, a Lógica do Terceiro Termo
Incluído:
1. Axioma da Identidade: A é A;
2. Axioma da Não-Contradição: A não é não-A;
3. Axioma do Terceiro Incluído: existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e
não-A
Em ambas as lógicas, no primeiro axioma, a Identidade diz que uma coisa “é” o que ela
“é”; no segundo axioma, a Não-Contradição diz que o que “é” não pode ser aquilo que
“não-é”. No terceiro axioma, contudo, a lógica clássica, partindo do princípio de
terceiro excluído, não admite a interação entre estados opostos, enquanto que a lógica
do Terceiro Incluído, admite, podendo existir um terceiro estado T que é ao mesmo
tempo A e não A.
O filósofo romeno Stéphane Lupasco é o responsável por desenvolver uma lógica não-
aristotélica.
A contradição entre a identidade e a não-identidade é observada nas partículas, dentro
da Física Quântica. O filósofo Stéphane Lupasco aceita esta contradição como um dado
inevitável da experiência no que diz respeito à suposta identidade das partículas, uma
tendência à heterogeneidade em um mundo que parece superficialmente dedicado à
lidar com a homogeneidade.
Ao desenvolver o seu formalismo axiomático, Lupasco postula a existência de um
terceiro tipo de dinâmica, antagônica, que coexiste com a dinâmica da heterogeneidade
(como a matéria viva), e com a da homogeneidade (a qual governa a matéria física
macroscópica). Esse novo mecanismo dinâmico demanda a existência de um estado de
equilíbrio rigoroso, exato, entre os polos de uma contradição, em uma semi-atualização
e semi-potencialização estritamente iguais. Esse estado, chamado por Lupasco de estado
T (“T” sendo a inicial do “terceiro incluído”), caracteriza o mundo microscópico, o
mundo das partículas, ou seja, o objeto de estudo da Física Quântica. Portanto, o
princípio de superposição quântica e de dualidade, por exemplo, pode ser melhor
compreendido por meio de uma lógica não-clássica. Na Mecânica Quântica, um terceiro
estado T é incluído. Devido ao próprio Princípio de Incerteza postulado por Werner
95
Heisenberg, a combinação entre os estados de “existência” e “não-existência” é um
estado físico admitido.
Por outro lado, na lógica clássica, o determinante é o raciocínio não-contraditório, algo
que se consolidou na concepção e organização do conhecimento ao longo dos séculos.
Sendo assim, o conhecimento ficou “enclausurado” em um único nível de realidade,
onde não seria lógico que dois estados contraditórios pudessem existir, pois, até então,
nunca se havia observado algo desta natureza.
O terceiro incluído não significa afirmar o paradoxo da existência de algo e o seu
contrário, o que, por anulação recíproca, destruiria toda possibilidade de predição e,
portanto, toda possibilidade de abordagem científica do mundo. É necessário reconhecer
que, dentro da Física Quântica, por exemplo, existem inúmeras conexões imutáveis e
que realizar uma experiência ou interpretar seus resultados gera um "recorte" desta
realidade. A entidade real pode, assim, mostrar aspectos contraditórios que são
incompreensíveis do ponto de vista de uma lógica clássica fundada sobre o postulado do
“ou isso ou aquilo”. Esses aspectos contraditórios deixam de ser absurdos em uma
lógica não-clássica fundada sobre o postulado do “e isso e aquilo”, ou antes, “nem isso
nem aquilo”.
Dentro da lógica do terceiro incluído, os opostos não são eliminados, eles coexistem.
Desse modo, ela não abole a lógica Aristotélica do "sim" e do "não", uma vez que
apenas não se considera a existência de apenas dois termos mas, sim, de três; um
terceiro que é o Terceiro Termo Incluído.
A lógica do Terceiro Termo Incluído permite o cruzamento de diferentes perspectivas,
onde um sistema coerente e, ao mesmo tempo, aberto, é construído, permitindo uma
melhor compreensão não só de fenômenos científicos, como no caso da Física Quântica,
mas, também políticos e sociais. (Fontes, Google e o livro O MANIFESTO DA
TRANSDISCIPLINARIDADE Basarab Nicolescu.)
No Formulário discutia também as questões do permanente e do transitório, das relações entre as áreas
. coordenadas e subordinadas, estas desdobramentos das primeiras
96
Em alguns outros formulários estabelecia dois campos, em cada qual signos diferentes,
mas com a mesma narrativa. Por exemplo: a figura de um cachimbo, relógio, maçã e
suas respectivas nomeações. Em alguns formulários cada campo com uma tonalidade
diferente, ou tendendo para um esverdeado ou avermelhado violáceo. Assim a lógica
aristotélica do terceiro excluído era respeitada: A não é B. Mas baseado nos signos
incluía um terceiro termo. Assim outro nível de realidade se estabelecia, sem ferir o
princípio de contradição aristotélico. Um cachimbo é um cachimbo, mas um cachimo
esverdeado não é um cachimbo violáceo. Por ter intuído tudo isso pude tocar meu
trabalho com bastante liberdade e acabei descobrindo que poderia desenvolver meu
pensamento plástico.
97
José Maria Dias da Cruz
98
VISIBILIDADE E INVISIBILIDADE
Ao rompermos um tom, sua tonalidade muda em direção a sua oposta. Mas não há
como tornar visíveis o cinza sempiterno e o serpenteamento que dele decorrem no
sentido de animar o espaço plástico antes de se tornarem fenômenos cromáticos, porque
se situam nessa área de não visibilidade. Tornam-se visíveis, e fenômenos, apenas
quando se manifestam na natureza. Tanto um quanto outro se nos mostram como outros
níveis de realidade. Como pós ou pré-fenômenos nos são interditados. Isto não impede,
entretanto, de nosso pensamento construir a lógica que os rege e de até permitir uma
figuração esquemática. Cita-se aqui Espinosa:
“O que não pode ser concebido por outra coisa, deve ser concebido por si.”
“A essência do que pode ser concebido como inexistente não envolve a existência.”
Para uma compreensão do que pretendo mostrar, transcrevo, aqui, uma citação do
Biólogo Henry Atlan, retirada de seu livro Entre o Cristale a Fumaça, Editora Zahar,
Rio de Janeiro.
“[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se
oponha a forças e desorganização. Mas antes um processo de desorganização
permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas,
quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras,
a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade
dialética, mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem
perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo;
sem um processo de morte controlada, não há processo de vida.”
99
SOBRE UMA GEOMETRIA (TOPOLOGIA) DAS CORES
A topologia é uma geometria que considera não os objetos com suas formas e
dimensões, mas suas superfícies. Assim a superfície de um cilindro tem as mesmas
qualidades da de um cubo independente do tamanho. A topologia não faz distinção entre
um cilindro e um cubo, por exemplo, pois ambos podem se transformar um no outro. E
um cilindro pode se transformar em um disco e vice versa.
A topologia estuda quais propriedades de um espaço topológico não variam por conta
de certas deformações. Por exemplo, um disco e um ponto são o mesmo espaço
topológico, porque podemos deformar o disco continuamente até se transformar em um
ponto em direção ao centro de seus raios.
Se, por exemplo, você começasse a caminhar pela parte de "cima" de uma fita de
Möebius, quando desse a volta completa e chegasse novamente ao ponto de
partida, estaria, sem se dar conta, parado na parte de "baixo".
(Da mesma forma, se começasse a caminhar pela borda externa da fita, ao dar a volta
completa, terminaria em sua borda interna.)
100
Falaremos, agora, do cinza sempiterno. Ele não existe, é um não espaço e um não
tempo. Podemos fazer uma referência ao vazio-cheio da física quântica. O vazio cheio é
uma possibilidade de potência. Diremos então que o cinza sempiterno também é uma
possibilidade de potência que quando se manifesta cria um fenômeno, coloridos e
formas.
Nesse caso diremos que é um pré-fenômeno. Mas cada cor que nesse caso é concreta
adjetiva, que é um par, que contém em si sua oposta, cuja condição é ser no colorido,
tem seu exclusivo cinza sempiterno. O cinza sempiterno, assim, é um pós-fenômeno.
Cada cor de um colorido converge para o cinza sempiterno. É causa de si mesmo, daí
podermos falar que um colorido contém vários fenômenos que se distinguem do todo e
entre si. Portanto há em um colorido uma Inter causalidade.
101
Diremos que um colorido é uma fração de um colorido total, posto que este nos é
interditado.
“Excelente composição:
O quadro dentro do próprio quadro, o quadro que se estende para além do próprio
quadro.
Uma aula maravilhosa sobre cor e composição...”
102
José Maria Dias da cruz
103
3 – Um conjunto fechado, o espaço plástico com um fundo azul, com as variações do
tema, várias formas, o peão trabalhado por modelação, a maria-sem-vergonha com cores
abstratas substantivas, e o restante com a manifestação do cinza sempiterno.
No quadro acima temos também uma estrutura topológica, mas ainda considerando-se
mais as formas que os coloridos.
104
Uma escala cromática partindo de unidades cromáticas como tema e suas variações no colorido
"O artista não é incompreendido, ele é menosprezado, nós o exploramos sem saber
quem ele é." George Braque
"A arte poderia salvar os homens, mas como os artistas são tão mesquinha como os
demais homens, salva apenas algumas memórias." Marques Rebelo.
105
GEOMETRIA DAS CORES – TOPOLOGIA
106
107
108
MAIS DE DUAS E MENOS DE TRÊS DIMENSÕES
Vale agora citar Merleau-Ponty que escreveu em seu texto O olho e o espírito o
seguinte: “Da profundidade assim compreendida, já não se pode dizer que é a ‘terceira
dimensã’.”
Daí dizer que um espaço plástico pode ter mais de duas e menos de três dimensões.
109
ESPAÇOS PLÁSTICOS.
“Um quadro é uma lição.”
Paul Cézanne
Espirais
110
No quadro acima realizado na década de setenta quando não utilizava o cinza
sempiterno, tentei excluir um ponto de gravidade. Há a presença da cor subordinada às
formas. A composição apoia-se no número de ouro. Usei duas escalas cromáticas: uma
dos alaranjados passando pelos esverdeados até os azulados para as sombras; outra, dos
alaranjados passando por violáceos até os azulados para as sombras. Criei vários
conjuntos: uma pera, uma laranja; ou uma maçã, uma laranja. Esses conjuntos
desdobram-se acima e em uma pera no primeiro plano, e no segundo uma laranja e o
signo M para a maçã, e abaixo em maçã no primeiro plano, e no segundo uma laranja e
o signo P para a pera.
111
UNIDADES CROMÁTICAS
“A luz não existe para o pintor, tem que ser substituída por uma outra coisa, a cor.”
Paul Cézanne
Diremos, então, que em uma unidade cromática temos três cores concretas adjetivas e
rompimentos de tons, e nelas podemos perceber os pares amarelados-azulados, e
avermelhados-esverdeados e os claros e escuros. Ou seja, percebemos as cores simples
de Leonardo da Vinci.
No exemplo abaixo temos uma escala cromática dentro da ordem das cores simples de
Leonardo da Vinci com a exclusão dos claros e escuros.
112
100
No quadro abaixo mostro aquela escala como um tema e o colorido como variações
dele.
Encontro aqui uma dúvida: Wittegenstein se referiu em seus estudos aos jogos de
linguagem. Pergunto-me, então, se mostrar duas cores aos expectadores, que pares eles
veem? Poderão dizer, amarelados-azulados, ou avermelhados-esverdeados, claro-
escuro, os dois ou os três. Serão essas respostas jogos de linguagem plástica?
101
ACORDES E UNIDADES CROMÁTICOS E A LÓGICA DO
TERCEIRO EXCLUÍDO E INCLUÍDO
Vimos acima que um acorde cromático segundo o círculo cromático absoluto é
composto por três a cinco cores que articulam as três primárias. As cores têm valores
absolutos e são regidos pela lógica do terceiro excluído. Se tivermos o acorde laranja,
verde e violeta por essa teoria diz-se que ele é formado pelas três cores secundárias.
Esse acorde é considerado perfeito porque essas cores quando decompostas articulam
duas vezes as cores primárias. O verde é o resultado das mistura do azul e amarelo. O
violeta, azul e vermelho e o laranja, vermelho e amarelo.
Falamos acima que o cinza sempiterno é um possibilidade de potência, e nesse caso ele
não existe. Mas quando ele se manifesta, e nesse caso temos que considerar uma
dimensão temporal, ele passa a existir. A lógica do terceiro incluído torna-se necessária
para enriquecermos nosso conhecimento.
Se considerarmos alguma cor concreta adjetiva temos o seguinte: sua condição é ser no
colorido e nunca sabemos quando ela é ela mesma. Para pensarmos na lógica do terceiro
incluído podemos dizer que um avermelhado em certo contexto pode ser amarelado ou
azulado, ou claro ou escuro. Nesses casos a lógica do terceiro incluído está presente,
pois como falamos, não consideramos as coisas com valores absolutos. Diremos, então
que o pintor considera simultaneamente as cores concretas e as abstratas.
Acredito que todas essas questões relativas à lógica do terceiro incluído podem nos
levar e ter uma consciência do espaço plástico mais profundo.
102
O CINZA SEMPITERNO E O SERPENTEAMENTO
103
BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A ARTE CONCEITUAL E O
PENSAMENTO PLÁSTICO
Vamos considerar apenas a arte conceitual segundo Kosuth, ou seja, aquela que faz
referência aos jogos de linguagem de Wittgentein. E que afirma que o conceito é o
principal em uma obra de arte. Segue uma imagem da artista Clea Espíndola.
Clea Espíndola
O conceito é verbal. Quando falamos que vamos comprar um sapato, claro, referimos a
um par. Ou se falarmos em um par imaginamos que sejam iguais, mas há uma
diferença: o sapato para o pé direito é diferente do para o esquerdo se o pensarmos em
termos absolutos.
104
Van Gogh
105
Esse quadro de Van Gogh tem uma ambiguidade. Pode ser visto como uma pintura na
qual se percebe uma consciência de um espaço plástico. Ou seja, é o resultado de um
pensamento plástico o qual tem sua lógica própria, portanto diferente daquela do
pensamento verbal. Mas como não consideramos as coisas com valores absolutos há as
diversas distâncias entre o pensamento verbal e o plástico.
Podemos aqui citar o quadro de Magritte, Isto não é um cachimbo. Em minha opinião é
um quadro cujo conceito mais se prende ao discurso verbal. Diria que esse quadro,
partindo-se de um pensamento plástico, poderia se intitular. Isto não é um espaço
plástico.
Esse quadro foi objeto de uma rica discussão entre vários filósofos, cada qual
defendendo seu ponto de vista.
Creio que podemos estar aqui também discutindo a questão do conflito entre a
percepção sensível e a linguagem. Ou a questão levantada por Poussin quando diz que
há duas maneiras de se ver um objeto, ou pelo seu simples aspecto, o que nos leva a
nomeá-lo, ou prospectivamente que para esse pintor depende de três coisas: o saber do
olho, as diversas distâncias e os eixos visuais. Um saber do olho nos leva a um
pensamento plástico mais acurado.
106
Nesse desenho há no centro as cores violeta e verde e uma faixa com seus respectivos
rompimentos. Essa faixa se descola da superfície do suporte e assim passa a ter mais de
duas e menos de três dimensões. Vemo-la frontalmente. As cores que deram origem a
esses rompimentos continuam coladas ao suporte, portanto atrás e vistas não mais
frontalmente, mas por eixos visuais laterais. Referem-se, assim, as concavidades
angulares. Como seus contornos não se definem em absoluto, temos as curvaturas
circulares. Do violeta partem linhas vincianas que também serpenteiam. Do lado direito
constroem duas figuras, uma avermelhada e outra esverdeadas, como está em uma
escala abaixo na qual se manifesta o cinza sempiterno. No lado esquerdo essas linhas
vincianas constroem uma figura amarelada e acima uma escada na qual se percebe um
violeta em direção a sua oposta, um amarelado. Também se percebe a manifestação do
cinza sempiterno. O desenho foi construído considerando-se o pensamento plástico e,
como digo, o pensamento plástico não exclui o pensamento verbal, o pintor lida com os
dois.
O conceito de que uma cor concreta adjetiva é um par se aproxima das questões
discutidas na instalação acima mostrada. Mas se falar vermelho? Não estarei afirmando
que ele é um par. E como esse vermelho é uma cor concreta adjetiva, não seria mais
correto falar avermelhado? Mas como nunca sabemos quando uma cor concreta adjetiva
é ela mesma, pois sua condição é ser em um colorido, como ser claro? Certamente
pensando plasticamente quando meu saber do olho e minha percepção bastam. Mas o
problema continua: como estabelecer um diálogo? Além do mais a cor é enigmática.
Nunca chegaremos a uma conclusão.
107
VOLPI
Volpi diz que não fala, mas pinta. Citemos Braque: “O pintor pensa por formas e cores,
o objeto é a poética.” O que vale dizer, o pintor pensa plasticamente. Acrescento: Volpi
é um colorista e as cores são enigmáticas, as formas são racionais.
Assim nos trabalhos de Volpi temos não uma figuração imediata e uma consequente
narrativa, conforme nos adverte Deleuze: Temos uma Figura. Ou, como digo, uma
Presença. Na obra de Volpi há invenção plástica, mas não em termos absolutos, que se
desdobra em um fato pictórico, ou seja, em um espaço cromático com seus enigmas.
Daí que esses quadros de Volpi realizados em sua maturidade não descartam totalmente
a figuração imediata ou o narrativo.
Nessas pinceladas, com muita maestria, Volpi deixa, pelo gesto, uma parte com menos
pigmento, e outra com mais, graças ao aglutinante. Essa genial invenção plástica o
permitiu criar formas. Com o mesmo gesto para as pinceladas cria outras formas com
outras cores. O colorido, assim, ganha uma infinidade de variações.
Podemos citar agora Clarice Lispector. Diz ela em seu livro Água viva que devemos ler
pelas entrelinhas. Nas linhas temos as palavras imediatas. Nas entrelinhas, as remotas.
Os quadros de Volpi ocupam, assim, o espaço imediato. Segundo Deuleze torna-se
Figura, ou, como digo, ganham uma Presença. Usando as expressões de Clarice
Lispector, “nas entrelinhas”, o espaço é remoto. Torna-se uma abstração de uma pintura.
Considerando-se uma teoria da pintura e esse espaço remoto diremos que podemos ver
pelos intervalos.
108
um culto para com o material da tela, o próprio pigmento. Temos, então, um pigmento e
sua cor e diremos que esta é abstrata substantiva. Com Volpi esta cor na tela, com
técnica e como um engenheiro, torna-se concreta adjetiva, isto é, sua condição é ser no
colorido. E há aí uma ambiguidade que acima citamos: o artista artesão.
Podemos perceber os quadros de Volpi tanto pelo seu simples aspecto como também
por um olhar prospectivo, ou seja, que dependa de um saber do olho. Outra
ambiguidade que Volpi resolve com muita maestria.
Perguntamos agora: o que faz de Volpi um grande artista? Responderemos que sua obra
é iluminada por um raio poético. Uma simples análise não explica, obviamente, o
enigma. Sua obra não é um fim em si. Há um além que não se pode explicar.
109
Volpi – Fonte, Google
110
GIOTTO, O INVENTOR.
Neste texto não vou tratar da obra de Giotto considerando os fatos históricos. Vou tentar
entendê-lo considerando uma teoria da pintura que venho desenvolvendo.
Não vou me referir aqui às expressões dos personagens, essas fortíssimas e já muito
bem analisadas por muitos teóricos. O curioso é observarmos a imagem de Cristo. Em
um olhar mais analítico é o personagem mais alto da cena, embora deitado! Creio,
assim, como um recurso plástico de muita ousadia. Não terá Giotto intuído as ideias
desenvolvidas por Poussin sobre os eixos visuais e uma percepção do espaço bi ocular?
110
Há uma figura que é percebida frontalmente. A imagem de Cristo é percebida por eixos
laterais, portanto uma visão bi ocular, que nos levam a considerar sua altura normal
como os outros personagens da narrativa. Ver figura abaixo:
Giotto usou metaforicamente uma visão bi ocular para os mostrar Cristo com uma
grandeza além dos outros personagens representados essa obra.
Nessa imagem abaixo penso ser muito importante para percebermos sua consciência do
espaço plástico é notarmos como esse espaço se desdobra em dois, um acima com umas
nuvens circunscrita a uma linha composicional horizontal, base de um triângulo que tem
seu vértice na imagem de Deus. E há nessas nuvens uma luz como ponto de passagem
para o espaço abaixo. O colorido é sutil (as formas subordinadas ás cores) e os
contrastes evidentes. Percebemos outra consciência do espaço plástico. E também as
concavidades angulares.
112
Giotto
113
No quadro abaixo Giotto o colorido obedece ao simbolismos das cores. O amarelo era
considerado uma cor descartável. E amarelo é a cor da vestimenta de Judas.
Giotto – fonte:Google
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ALBERS
Se estudarmos os escritos teóricos de Albers e seus quadros veremos que estes são bem
mais intrigantes que aqueles. Seus escritos teóricos ainda têm como base o círculo
cromático iluminista, que considera as cores com valores absolutos. Sobre o
rompimento do tom, em seu livro Interação das cores, diz que basta misturar uma
quantidade pequena de preto para que ele se dê.
Braque afirma que “o pintor pensa por formas e cores.” O que vale dizer, não há
interação das cores por si só. Essa interação depende também das formas, ou seja, um
contraste simultâneo entre cores e formas.
Duchamp dizia que o retinanismo não era somente uma pintura que agrade à vista, mas
que foi “o começo do culto para o material da tela – o próprio pigmento”. Em uma
entrevista afirma: “Antes a pintura era um meio para um fim, fosse religioso, político,
social, decorativo ou romântico. Hoje é um fim em si.” Essas questões o levaram a
procurar outros meios de expressão.
Tomemos agora o exemplo de Cézanne quando afirmou que queria refazer Poussin
direto da natureza. Creio que podemos rever Albers repensando a questão da cor que
não é questionada em seus escritos teóricos. Podemos revê-lo reconsiderando o
rompimento do tom, a cor abstrata substantiva, a concreta adjetiva e o cinza sempiterno.
Certamente as questões que mais lhes interessaram – a interação das cores – ganhariam
muito em dinâmica, dinâmica esta que nos levariam ao enigma.
115
116
ROTHKO
“Explicar uma coisa é substituir a coisa pela explicação.”
George Braque
Rothko compartilha desse pensamento de Braque e diz mais, que seus quadros devem
ser vistos em silêncio. Seguem algumas assemblages.
117
Mas perguntamos: se analisarmos os quadros de Rothko não ficaremos mais sensíveis
para usufruí-los? E para que essa análise ocorra não é necessário, como afirmo neste
livro, um saber do olho? E não podem eles nos permitir novos desdobramentos em
relação à teoria da pintura? Afinal esses quadros têm uma lógica. É ainda Braque que
diz que “Escrever não é descrever, pintar não é representar.” Daí pergunto: podemos
pintar uma maçã para Rothko?
118
INCONCLUSÃO
“Não me venham com conclusões, a única conclusão é morrer.
Fernando Pessoa
Voltamos, agora, aos dogmas denunciados por Gauguin. Certamente o mais evidente é a
palavra cubo. Tudo começou quando Emile Bernard escreveu uma artigo no jornal
L‟Ocident um artigo afirmando que Cézanne lhe dissera que devemos tratar a natureza
através do cubo, esfera e cilindro. O mestre de Aix imediatamente escreveu para o
articulista que não era cubo, e sim cone. E nem poderia ser, pois Cézanne afirmara que
os objetos no espaço são todos convexos. Mas a palavra cubo ganhou espaço quando
Matisse, como membro do júri para selecionar artistas para uma exposição, recusou os
quadros de Braque afirmando que esses eram apenas pinturas de pequenos cubos. Logo
em seguida o crítico Louis Vauxcelles nomeou o movimento que se inciava como
Cubismo. E até hoje, graças a esse dogma, há quem veja cubos, tanto em Cézanne como
nos artistas que abraçaram essa ideia. O curioso é que muitos artistas construíram suas
obras, e boas obras, a partir do cubo. Aqui no Brasil temos o texto Teoria do não objeto
de Ferreira Gullar no qual, em sua introdução, o cubo é uma referência fundamental. Há
frases que realmente não consigo entender como essas: “Com o cubismo, o objeto é
brutalmente arrancado de sua condição natural, transformado em cubos, o que
virtualmente lhe imprimia uma natureza ideal; esvaziava-o daquela obscuridade
essencial, daquela opacidade invencível que caracteriza a coisa. Mas o cubo é
tridimensional, ainda possui um núcleo, um dentro que era preciso consumir – e isso foi
feito pela fase dita sintética do movimento. Já então o que sobra do objeto é pouca
coisa.” Mas a definição que o poeta dá para não objeto para mim é claríssima.
119
Citemos outros dogmas. No texto de Merlau-Ponty, O olho e o espírito, ele cita uma
frase de Leonardo sobre o serpenteamento que não se encontra no Tratado da pintura e
endossa o que alguns filósofos afirmam: que o serpenteamento é o eixo gerador de
animais vivos. Leonardo afirma: “Devemos observar com muito cuidado os limites de
qualquer corpo e o modo como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de
curvaturas circulares ou concavidades angulares.”
Esses são alguns exemplos que não me levam a nenhuma conclusão. Fazer o quê?
Pintemos, pois.
120
José Maria Dias da Cruz
120
TROCA DE E-MAILS COM LAURAVILLAROSA
Laura
Escrevi um capítulo em meu quarto livro sobre seu trabalho pois vi uma relação com
que você fazia anteriormente. Mas vi sua última obra e percebi que você está mudando
radicalmente seu trabalho, tive a percepção de uma ruptura bem radical e complexa.
Explico. Não considero as coisas com valares absolutos. Penso que uma obra pode ficar
subordinada ao narrativo, este ligado ao discurso verbal, e assim, mais conceitual. Mas
penso também que o narrativo pode ficar subordinado à lógica do pensamentos plástico
e nesse caso se a obra ocasionar uma narração não advém da obra, é consequência dela,
será apenas um comentário dela. Como não considero as coisas com valores absolutos,
há as várias distâncias entre uma e outra. Por exemplo, uma obra tanto com valores
oriundos de um pensamento plástico lógico, e tanto com valores narrativos oriundas de
uma linguagem verbal. Creio que os trabalhos da Lygia Clark servem de bons
exemplos, há um equilíbrio entre a excelência da obra e o narrativo que dela oriunda.
Nas minhas assemblages, por exemplo, tendo criar um equilíbrio entre essas duas
percepções, ou seja, a plástica e a verbal.
Nesse seu último trabalho estou achando que você está aderindo a uma percepção na
qual o plástico fica subordinado ao narrativo engendarado pela obra. Para entendermo-la
temos que fazer uma transposição para o discurso verbal sem nenhum prejuízo para seu
valor artístico. .
Se você puder me orientar me diga como você está pensando para a realização dessas
últimas obras, se houve realmente uma ruptura com o que você fazia antes. Vou
reescrever sobre seu trabalho e acho interessante abordar essas questões.
Beijos
JM
Oi Meu querido amigo, sempre fico muito feliz quando você olha para meu trabalho.
Tenho mudado bastante sim . Iniciei (já faz um tempo) uma pesquisa sobre paisagens
e arte têxtil contemporânea .Tenho encontrado muitas coisas interessantes.
Tantos anos trabalhando com tecidos, pesquisando técnicas e artistas acabaram por
retornar como bagagem para um olhar mais aprofundado sobre o assunto.
Tento subverter os fazeres que antigamente eram os únicos meios de
expressão permitidos às mulheres . Dobraduras aparecem como pinceladas, bordados
como pinturas, um véu , um tecido desmanchado , pinturas fragmentadas em camadas e
mais camadas vão se configurando nas mais variadas narrativas. Reais ou oníricas.
Como você observou tão bem tenho abusado dos eixos visuais, da cor e dos horizontes
inventados.
Tem muita coisa pra ser dita sobre as paisagens, paisagens podem ser tudo, ora são um
auto retrato, emocionais, ora uma tentativa de ver o mundo, o clima, o mundo real, o
mundo inventado, construindo e desmanchando , talvez reconstruindo .
120
Assim tenho ido, tentando abrir novos olhares e experimentando algumas maneira de
fazer.
Já te mostrei um tricô que eu fiz de uma tela pintada . Para fazer esses tricôs preciso
pintar, deformar a imagem ( uma tela de 70 cm x 400 cm vira um tricô de 120 x 82 cm
e isso tem que ser previsto).Depois corto essa tela em tiras e vou reconstruindo,
tricotando. Dá um trabalhão, mas eu gosto tanto, preciso controlar para tudo não se
desfazer. Os pontos parecem as pinceladas impressionistas, ou os pixels, um universo
em cada ponto. As imagens só aparecem em blocos porque a tendência é que tudo se
desmanche.
Você tem razão, o trabalho está mais conceitual sim, mas sem se esquecer do
pensamento plástico, uma tentativa de equilibrar as linguagens, como você colocou.
Vamos continuar conversando, sempre gosto muito das suas observações e das leituras
que você faz.
Um grande beijo
Laura
121
SOBRE DUAS OBRAS DE LAURAVILLAROSA
122
Laura Villarosa – Fonte, Facebook
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VICTOR ARRUDA E O NARRATIVO
Quanto mais o narrativo é forte, mais os valores plásticos têm que ultrapassá-lo. Temos
nos trabalhos de Victor Arruda o narrativo como um grito. Mas os signos gerados por
essa narrativa são ultrapassados por uma pintura vigorosa que permite o surgimento de
um fato plástico. Vale dizer, um trabalho resultante de um pensamento plástico, mas
não em termos absolutos. Surgem outros signos, outra linguagem.
Esse quadro de Munch é um fato plástico que nos afeta. É o quadro que grita. Com os
trabalhos de Victor Arruda somos afetados pelo fato plástico de tal forma que somos
nós que gritamos, ou choramos, ou nos desesperamos ou nos desencantamos, sobretudo
com essa crise que se arrasta atualmente e vemos longe de uma solução. Como diz T. S.
Eliot: “O homem não suporta tanta realidade.” Chegamos ao nosso limite. Como nos
aconselha Braque: “O progresso em arte não consiste em ampliar seus limites, mas em
melhor conhecê-los. ”
124
Victor Arruda – Fonte, Google
125
Victor Arruda - Fonte, Google
Segue um poema.
Desencanto
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Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto
Manuel Bandeira
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VICTOR ARRUDA
Vejo o trabalho de Victor Arruda como fato plástico muito interessante. Há um
rompimento dos cânones pré-estabelecidos que condicionam nossas percepções. Há um
narrativo subordinado ao plástico. Creio que isso ocorre porque Victor cria um espaço
simultaneamente sincrético e analítico. A composição assim fica apoiada na força de
cada símbolo que se impõe por si, e não por uma relação proporcional com outros
obedecendo a estrutura subjacente do suporte. A imagem do revólver, por exemplo. Ela
se basta como símbolo de poder, símbolo fálico? Há a cadeira, será a de Van Goh? Lá
estão os corvos pintados em seu último quadro. E esse é o revólver com o qual Van
Gogh se suicidou? Ou será a cadeira do Kosuth? Assim o espaço plástico torna-se
analítico. O mesmo ocorre com as cores. As narrativas se multiplicam quando o espaço
se torna sincrético. Há ainda o revolver como poder. E o poder do dinheiro. Esse quadro
de Victor Arruda é complexo. Há uma dialética entre objetos do espaço imediato e
daqueles que poeticamente se multiplicam em objetos do espaço remoto. Permite-nos
ver e pensar pelos intervalos. E há outra narrativa além do quadro quando uma situação
de entropia máxima pode ser aventada. Uma pintura que nos faz pensar na teoria do
caos: da ordem ao caos e um retorno à ordem. Uma estrutura lógica se estabelece; e
também outra ordem mais humana. Victor é um humanista. Mostra-nos o poder da arte.
128
FERNANDO LINDOTE,.
Fernando Lindote. .La aparición del cráneo de Francisco José de Goya y Lucientes en la
fuente del río Nhamundá, óleo sobre tela, 2017
crédito foto: Guilherme Ternes
A primeira percepção, que temos do quadro acima, quando o vemos pelo simples
aspecto, conforme nos ensina Poussin, é de um espaço sincrético, ou seja, vemos a
totalidade da superfície pintada sem entrarmos em detalhes do que está sendo pintado.
Temos, primeiro, uma consciência do espaço plástico.
129
Notamos também as cores, uns amarelados, ora esverdeados, ora avermelhados, e suas
opostas, uns azulados. Essas cores vão criar um contraste forte com o narrativo, este fica
mais expressivo. E há um quadrado no centro do quadro que, por interação, fica azulado
e, assim, permite a manifestação do cinza sempiterno.
Na segunda percepção nosso olhar é mais prospectivo, e por consequência, nosso olhar
é mais analítico, vemos cada detalhe, estas com várias figurações.
Nas pinturas de Lindote as formas ficam subordinadas às cores, é mais gráfico do que
pictórico, mas devo acrescentar aqui que não os considero com valores absolutos. Daí
que as cores têm sua função, como acima observamos.
Há uma ambiguidade nos quadros de Lindote. Ora o espaço plástico é remoto, ou seja,
acontece além da superfície do suporte, está lá. Ora é imediato, e coincide com esse no
qual nos orientamos, está aqui e se descola da superfície do suporte e se torna maior que
ele. Há que se notar que uma coisa é a superfície do suporte, outra o espaço plástico
que pode estar além dele, nele e aquém. E esse espaço plástico pode ser maior, menor,
mas se colado ao suporte, com as mesmas dimensões. Digo isso porque se repensarmos
a teoria da pintura não mais nos interessa a discussão figura-fundo. O pintor tem que ter
liberdade e fugir de dogmas. Clemente Greemberg dizia que a única condição da pintura
não compartilhada com as outras artes era sua planaridade e que os pintores deviam
obedecer a essa condição.
É forte o narrativo nesse quadro acima, e esse fica subordinado à plasticidade. Por
consequência, as cores se subordinam também ao narrativo.
Quando nossa percepção é analítica ficamos aptos, graças aos valores plásticos que se
impõem, a construir não uma narrativa linear. Exemplo: em um de seus quadros
podemos observar a imagem de um coelho. As palavras são do Fernando Lindote: “Um
dos trabalhos que está no MASC mostra um coelho (no caso desse, uma referência a um
dos cartones do Goya sobre a primavera – um homem segura um coelho. As imagens
que eu invento, me parece, são o momento material de reflexões a partir de outras
imagens e talvez – principalmente – textos.” Mas podemos, também, pensar em outra
narrativa, em Alice no país das maravilhas. Quando percebemos outras figurações a
narrativa que construímos pode depender das aventuras de Alice ou do coelho correndo
para entrar em sua toca travestido em macaco. Há a figuração de um macaco que está
atrás de um forte plano amarelo. Mas se na primeira percepção da figuração se referir a
um pintor ou à pintura, outra narrativa se constrói e o coelho pode nos levar à Magritte:
Isso não é um coelho. Assim são muitas as narrativas possíveis. Creio que é nesse ponto
que Lindote se destaca. Há invenção plástica, há o novo e novas questões relativas à
uma teoria da pintura. Esse quadro é uma lição. E Cézanne dizia que uma pintura tem
que ser também uma lição.
130
Sendo muitas as narrativas possíveis podemos chegar a tal emaranhado delas que o
acaso pode até permitir uma narrativa inesperada.
Aqui podemos fazer uma referência à epistemologia de Espinoza que tem três fases. Na
primeira toma consciência do objeto. Na segunda racionaliza-o. Na terceira, pelo
conhecimento adquirido, pode criar o novo por intuição e com liberdade. Sendo pintor,
na segunda fase adquire um saber do olho. Isso o permite, na terceira fase, criar com
liberdade, plasticamente, por intuição o novo, ou como digo, inventar. Assim Fernando
Lindote cria um fato pictórico que nos afeta com sua presença.
131
LUIZ ÁQUILA
O pensamento plástico, o saber do olho segundo Poussin, a pincelada, e os valores
hápticos e o corpo da pintura segundo Deleuze
Para se compreender a pintura de Luiz Áquila é importante um saber do olho como nos
adverte Poussin. Por esse saber desenvolvemos nosso pensamento plástico. Assim
temos uma pincelada além de sua condição de simples pincelada, ou de seu simples
aspecto. Como não considero as coisas como valores absolutos, temos também a
possibilidade de nomeação: isto não é uma pincelada (é uma cor, por exemplo), mas
claro, sem os desdobramentos que lhes dá Magritte, esse pintor complexo. Isto não é
uma pincelada, mas podemos dizer como desdobramento da teoria da pintura e
referindo-se ao quadro, Isto não é um cachimbo : Isto não é um espaço plástico.
Magritte
Luiz Áquila, se opõe a Magritte e a Duchamp, mas apesar disso seus trabalhos são
importantes na medida que podem ser desdobrados em outras questões que enriquecem
a teoria da pintura, que, como neste livro tentamos demonstrar, é uma ramo paralelo a
teoria da arte.
Cabe aqui falarmos do poema processo, um movimento ocorrido nas cidades do Rio de
Janeiro e Natal, na década de setenta, como um desdobramento da poesia concreta.
Citemos aqui Moacir Cirne.
“E aqui estamos diante de uma diferença radical em relação à poesia concreta, por
exemplo: toda poesia concreta é acabada, “fechada”, monolítica; já o poema/processo,
para ser de fato um poema/processo, implica transformações.”
132
Luiz Áquila
Luiz Áquila
133
MILTON DACOSTA – O TAMANHO DO SUPORTE
“As partes são maiores que o todo.”
Michael Palmer
Chegando à terceira idade Milton Dacosta soube como entrar na idade da sabedoria;
poucos sabem como usufruir da sabedoria do olho. Começou a pintar suas Vênus. Nelas
os espaços se tornaram bem maiores do que o tamanho do suporte. Comparem-se esses
quadros àqueles realizados dentro da estética neoconcreta. Nestes uns traços escuros
funcionam muito mais como linhas de contorno absolutas. Aproximam-se, assim, das
linhas euclidianas as quais Cézanne afirmava que não existem na natureza e que são
abstrações. Os acontecimentos plásticos ficam reduzidos. Há, porém, uma liberdade no
uso das cores. Mas o espaço plástico fica do tamanho do suporte e nele colado. Nas Vênus
há as linhas de contorno que permitem o serpenteamento vinciano que anima o espaço
plástico. Permitem também uma visão pelos intervalos. Com isso aumentam muito os
acontecimentos plásticos; estes se tornam inumeráveis e como consequência aumenta o
tamanho do espaço plástico que não fica mais colado à superfície do suporte. Como
decorrência o espaço plástico tem mais de duas e menos de três dimensões. Considerando
esses inumeráveis acontecimentos, as partes se tornam maiores que o todo.
As Vênus, assim, são também mais cezanneanas. A crítica ainda não compreendeu que
nos quadros neoconcretos de Milton Dacosta ele parte de um tema, os postulados teóricos
do neoconcretismo. Nas Vênus o pintor parte de um motivo e isso é muito importante.
O curioso é lembrarmo-nos de uma frase de Mondrian no final de sua vida: “Só agora me
apercebo que meus quadros pintados com as horizontais e verticais pretas, e vermelho,
amarelo e azul, e brancos não passam de desenhos a óleo.” Começou seus dois últimos
quadros que não foram terminados por consequência de sua morte, mas neles já se vê um
aumento dos acontecimentos plásticos. E mais coloridos.
Há que se notar que nos desenhos as cores ficam subordinadas às formas, estas mais
racionais. Nos coloridos as formas se subordinam às cores e estas são enigmáticas. Nas
Vênus de Milton Dacosta o espaço plástico torna-se mais sincrético e menos analítico.
No quadro dentro dos postulados neoconcretos os traços nos fazem lembrar das linhas
euclidianas. Nas Vênus as linhas são vincianas pois são traçadas com tons rompidos.
134
Milton Dacosta – 13,5 x 10,5 cm – Fonte, Google
135
Milton Dacosta – Fonte, Google
136
Milton Dacosta – Fonte, Google
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ANOTAÇÕES SOBRE UM QUADRO E O GRÁFICO E O
PICTÓRICO
“Na medida que pintamos, desenhamos; quanto mais a cor se harmoniza, mais a forma
de precisa.” Paul Cézanne
No quadro em questão por mim realizado temos ao alto uma escala cromática que se
encerra numa forma sobre um fundo esbranquiçado. Ela, a escala, torna-se, assim, mais
gráfica. Em um espaço gráfico, sendo as formas mais racionais, consideramos as cores
mais pelo seu aspecto abstrato, daí diremos que as cores, nesse caso, são abstratas
substantivas, ideias platônicas que subsistem por si só. Por isso somos levados a nomeá-
las. Consequentemente as cores ficam em um segundo plano de percepção. Percebemos
uma escala e assim a nomeamos.
Abaixo temos um colorido baseado na escala acima como uma das variações possíveis
das cores simples de Leonardo da Vinci.
138
José Maria Dias da Cruz
139
PERCY LAU E SEURAT E OS CONTRATES CLARO-ESCURO
Percy Lau leva aos extremos os contrastes claro-escuro, assim como Seurat não constrói
a forma como absoluta. Em um e outro, não as considerando como não absolutas, ou,
como nos adverte Poussin, pelos seus simples aspectos, nos permite um olhar prospectivo.
Assim Percy Lau nos permite ver por fora para podermos ver por dentro e não ficarmos
confinados ao que está só por dentro. Com essa predominância ao que está por fora, nos
permite uma consciência do espaço plástico pelo serpenteamento, ou seja, pelo intervalo
entre o dentro e o fora. E aqui, repetimos o que é invisível, mas que anima o espaço. Para
nos aprofundarmos mais neste capítulo temos que considerar o fim das certezas. Assim
não podemos considerar o colorido e o desenho colorido como absolutos. Nesses
trabalhos de Seurat e Percy Lau, esse nosso artista ainda tão marginalizado, temos as
formas subordinadas aos contrastes e são por estes que um espaço plástico é criado.
Poderemos dizer então que são mais pictóricas que gráficas? E Cézanne, quando diz que
pintar é contrastar e quanto mais as cores se harmonizam, mas as formas se precisam, não
estará criando um equilíbrio entre o pictórico e o gráfico?
Seurat
140
Percy Lau
141
Percy Lau
142
GONÇALO IVO E A LINHA SERPENTEANTE
O colorido de Gonçalo Ivo, em alguns quadros, é sustentado pelo serpenteamento, ou
melhor, pelas linhas serpenteantes. Como penso, estas se diferenciam das linhas
euclidianas, que são atemporais, estáticas e idealizadas. Aqui vale a pena lembrarmo- nos
de Cézanne, que afirmou que a linha não existe em absoluto na natureza. As linhas
serpenteantes são temporais, dinâmicas.
As cores nesse quadro de Gonçalo não são vibrantes e cada extensão de um matiz é todo
trabalhado com pequenas pinceladas e pequenas intervenções gráficas que nos mostram
uma dinâmica. Nas passagens para outras extensões de matizes Gonçalo não utiliza
semitons ou rompimentos, o que descartaria a possibilidade de consideramos esse quadro
como predominantemente colorido. E também vale lembrar que não consideramos as
coisas com valores absolutos. Assim, um pintor que busca um espaço plástico mais
objetivo não exclui totalmente a idealização. E o contrário se dá o mesmo. No valor da
obra de arte, então, considera-se a invenção, o poético, uma visão de mundo, etc. Quando
Leonardo escreveu sobre o serpenteamento não havia um vocabulário específico para um
texto teórico sobre arte. Francisco Holanda, teórico português do círculo de Miguel
Ângelo faz referência às cores alegres e tristes. Hoje diríamos tom e semitom. Já Miguel
Ângelo, sobre o limite dos corpos conceitua-o como “no finito”. Então podemos traduzir
o serpenteamento como uma oscilação, como uma potência. Daí dizer que a linha
serpenteante é dinâmica, o que explica Leonardo ter se referido a suas “voltas.”
Eu e Gonçalo somos grandes amigos, mas ele mesmo reconhece as diferenças entre
nossos discursos sobre pintura. Gonçalo é um assíduo frequentador de museus e
exposições. Digo agora que isso o permite criar, espinozamente, por intuição.
143
Gonçalo Ivo – Fonte, Google
144
KAKATY, UM COLORISTA.
Na nossa cultura a cor, segundo Manlio Brusantin no livro História das cores, é
bastante recalcada. Creio que na contemporaneidade, sobretudo na arte, esse recalque
mais se acentuou, pois não foi criada nenhuma outra teoria cromática que substituísse
aquela criada no século XVIII, que se baseou em um círculo cromático que classificava
as cores em primárias e secundárias a as considerava com valores absolutos. Com isso
não quero afirmar que no início do século XX não surgiram grandes coloristas. Alguns
se libertaram do círculo cromático iluminista, como Braque, Jacques Villon, e o
brasileiro, Matinho de Haro, e alguns mais seguindo Cézanne que dissera que a luz não
existe para o pintor, teria que ser substituída por outra coisa, a cor. Outros, ainda
seguindo as bases desse círculo, conseguiram criar obras nas quais as formas
subordinaram-se às cores e podemos citar Itten, Kandisky, Klee, Sonia e Robert
Delaunay, etc. Na segunda metade do século XX podemos citar Hélio Oiticica. Esse é
um assunto ainda muito complexo para mim. Sempre me interessei pelas cores e
coloridos, mas ainda não me estão muito claras as diversas distâncias entre as cores
abstratas substantivas e as concretas adjetivas, o conflito entre a percepção sensível e a
linguagem, etc. Apesar dessas dúvidas creio que em alguns pontos importantes consegui
tocar, e estes me permitem afirmar que Kakaty é realmente um colorista. Ao romper o
tom e, por consequência, permitir a manifestação do cinza sempiterno e, assim,
descolando o espaço plástico do suporte, se afasta dos pintores brasileiros concretos e
neoconcretos.
145
Kakati – Fonte, foto do artista
146
KELLY KREIS
Há uma constância na obra de Kelly: as texturas e a invenção plástica. Ao percebermos
as texturas evidenciam-se os valores hápticos. Assim como nas maçãs de Cézanne,
essas texturas ganham outra realidade. Como diz Rilke, as maçãs de Cézanne não são
comestíveis.
Dito isso creio que posso afirmar que os desenhos e quadros de Kelly, graças a sua
enorme capacidade de invenção, tanto de relações cromáticas como de texturas, são
muito mais que desenhos ou pinturas. São pinturas e desenhos que uma vez realizados,
passam a ocupar o espaço imediato, estes percebidos no espaço plástico, e esses
percebidos descolados da superfície do suporte graças aos rompimentos de tons e ao
cinza sempiterno ao e serpenteamento. Têm, portanto, mais de duas e menos de três
dimensões. Percebemos os valores hápticos. No caso da pintura (ver adiante) o cinza
sempiterno se manifesta. Assim esses desenhos e pinturas são verdadeiros em outro
nível de percepção. São fatos pictóricos ricos em invenção plástica e presença. São
desenhos verdadeiros externos de desenhos internos ou pinturas externas verdadeiras de
pinturas internas.
147
Nesse desenho acima, um quadrado interno tensinona seu centro e, consequentemente,
enfraquece as bordas ou a estrutura subjacente do suporte. Com isto as linhas de
contorno do quadrado interno deixam de ser euclidianas para serem vincianas. Nesse
trabalho de Kellyy um cinza sempiterno se manifesta e junto com o serpenteamento as
texturas são dinamizadas.
Nesse quadro acima temos vários contrastes. Do tratamento do tomate e das bananas,
mais realista, representando quase uma tridimensionalidade, contra as jarras,
panejamento e flores, mais moduladas. Esses conjuntos, por sua vez, se contrastam com
o fundo, diversas áreas padronizadas, ou seja, superfícies tratadas da mesma forma em
todas suas extensões, mas que criam certas texturas. A manifestação do cinza
sempiterno, assim como no desenho acima referido, cria uma lógica bastante complexa.
Permite uma convivência dinâmica de elementos heterogêneos.
148
O RECALQUE DA COR
Antes, um resumo. Leonardo disse que o artista tem que ultrapassar seu mestre. O que
não significa ser melhor. Nem mais hábil. Marguerite Yuocenar diz que a perfeição
contém em si a palavra fim. Não significa tampouco concluir. Fernando Pessoa diz que
“não me venham com conclusões, a única conclusão é morrer.” Portanto apenas continuar,
na prática, sisificamente, as questões teóricas anteriores. Isso dá pano para manga.
Vale, então, um olhar atento às obras de Morandi. As cores são rompidas, rebaixadas, ou
tristes, como diria o teórico português do círculo de Miguel Ângelo, Francisco Holanda,
os intervalos mínimos, mas grandes os contrastes e os valores táteis. Leva-nos às
atmosferas que se interpõem entre o objeto e o pintor, atmosferas essas tão perseguidas
por Cézanne. Ou, como digo, ao cinza sempiterno. Daí às reflexões.
149
Observar no quadro acima que o objeto à esquerda azulado está sobre um fundo mais
amarelado e este, na medida em que se aproxima da borda, rompe-se levemente. Um cinza
sempiterno se manifesta. E nesse quadro podemos observar as cores simples de Leonardo:
esbranquiçado, amarelado, esverdeado, azulado, avermelhado e escuro.
Nesse outro quadro acima se observa o objeto entre as duas garrafas esbranquiçadas. Nele
a parte iluminada é azulada e a sombra, mais escura, amarelada, um rompimento do azul.
Na garrafa à direita há uma parte iluminada levemente amarelada (um tom rompido)
contra um azul mais escuro. O cinza sempiterno se manifesta e dá vida ao colorido. O
gargalo esbranquiçado acentua o contraste claro-escuro. Assim no mesmo quadro são
várias as modulações para as passagens de luz-sombra.
Nesses quadros os valores hápticos se manifestam. Os gestos das pinceladas são evidentes, têm
uma ordem.
150
SUZI CORALLI
Já comentamos sobre o recalque da cor em nossa cultura. Ela se manifesta bem mais
nos espaços urbanos. E é com certa ironia que os trabalhos recentes de Suzi Coralli (Cor
pop, 2019, arte digital) discutem, corajosamente, essas questões do recalque da cor e
suas consequências.
Vejamos o quadro abaixo. O curioso é que poderiam ser cores abstratas substantivas.
Mas há um narrativo, as cores pop como a artista denomina essa série. São cores
urbanas, intensas, as cores das latas como as queria Frank Stella. Será que poderia dizer
que são cores concretas, mas não adjetivadas? Afinal são cores visíveis e a artista
mostra-nas sem um ponto focal. Será que podemos dizer que elas “poluem” o espaço
plástico? Um olhar mais sensível para a lógica de um colorido pode se sentir como se
estivesse passando o tempo ou fazendo compras em um shopping ou supermercado.
Creio que esse trabalho pode também ser uma crítica aos designers que, graças ao
recalque que acima referimos, usam as cores no máximo de sua intensidade de acordo
com as imposições mercadológicas.
Resumindo, Suzi Coralli conseguiu mostrar em uma obra uma lógica dessa confusão
cromática que o mercado quer nos impor.
151
CONVIVÊNCIA DE COLORIDOS
Cézanne afirmou que pinta sempre uma seção do espaço. Nesse meu quadro
considerando a geometria dos fractais, procurei mostrar que é possível se fazer que
convivam em um mesmo espaço plástico dois coloridos.
152
JEANNETTE PRIORI
Jeannette é uma artista que tem sólida formação. Importante primeiro notarmos que
nunca se aproveitou de sua habilidade como um fim em si, mas sempre como um meio
para um fim. E foram muitas suas experiências.
No quadro abaixo temos um exemplo. Vemos as influências das teorias de Kandinsk,
mas acompanhadas de invenções plásticas. Uma releitura de um artista não deve se
limitar a uma obediência a seus princípios teóricos, mas a seus desdobramentos. Nesse
quadro há movimentos de divergência e convergência em relação ao ponto central da
superfície do suporte.
153
Jeannette Priolli – Fonte, Facebook
Nesses dois últimos temos um fato pictórico e suas presenças se devem às cores.
Em Jeannette há invenção plástica, são fatos pictóricos e têm uma presença, são
poéticos
154
DELACROIX
Quem visita o Louvre encontra em uma das principais alas alguns quadros de Delacroix,
entre eles um bastante citado por historiadores, críticos, etc., o quadro intitulado A
Liberdade Guiando o Povo. Mas em outra ala, bem menor, vai se deparar com o quadro
A Lagosta, pintura para pintores. O tema principal é a vida e a morte, mas é também um
olhar romântico para a situação política e social da Europa.
Nesse quadro de Delacroix há uma discussão bem complexa sobre a vida e a morte, e o
curioso é que a morte está representada pelos animais em primeiro plano: a lagosta, a
lebre e os pássaros pintados em "cores vivas", menos um anfíbio, uma salamandra, que
está viva. E a salamandra é um ser mítico que está bem presente no imaginário de alguns
povos. No lado direito, abaixo, há um plano, com uma mancha escura acima, que pode
ser um muro, e nosso olhar não consegue ir além dele. No lado esquerdo, em contraponto,
há outro espaço, este com linhas inclinadas, como se esboçasse um caminho que nos
possibilitasse chegar ao segundo plano onde se nota, em tons mais brandos, bem distantes,
uns cavaleiros, portanto, uma representação de coisas vivas. Curioso esse contraste. Há
ainda as questões cromáticas. Predomina um contraste alaranjado-violáceo que
potencializado faz surgir um esverdeado, e isso era teorizado pelo pintor, que afirmava
que na natureza tudo se resumia ao acorde laranja, verde e violeta. Repare que os
esverdeados no quadro, menos evidentes, estão todos rompidos. Ganham alguma
evidência induzidos pelos alaranjados e violáceos. Portanto o colorido se afirma e acaba,
assim, dialogando com as formas e daí enfatizando o narrativo, mas deixando-o
subordinado à plasticidade. Delacroix, me parece, nos aponta para o enigmático e, como
já disse, nos faz pensar na nossa própria condição, ou no miserere, isto é, na imperfeição
própria dos homens. Por isso que digo que é uma pintura para pintores. Curioso é se
constatar que um dos quadros mais comentados e reproduzidos de Delacroix seja A
Liberdade Guiando o Povo. Logo depois o pintor, desencantado, se refugia em seu atelier
onde nunca mais pintou quadros panfletários.
155
Delacroix – A lagosta, Museu do Louvre.
156
ENTREVISTA COM JANDIRA TESKE, 2013
JT - Fale-me um pouco de sua formação.
JM - Desde cedo me apaixonei pela pintura. Aos 11 anos pintei meu primeiro quadro a
óleo. Dispunha da ótima biblioteca de meu pai, fascinava-me com as reproduções e
analisava-as minuciosamente. Devo dizer que depois da literatura o que meu pai, o
escritor Marques Rebelo, mais gostava era das artes plásticas, muito embora fosse incapaz
de dar um traço, e acredito que para não enfrentá-lo em uma área na qual ele era um
mestre, escolhi aquela exatamente que ele menos dominava, a pintura. Uma defesa que a
psicologia pode explicar. Além do mais nossa casa era muito frequentada por artistas
como Iberê Camargo, Santa Rosa, Pancetti, Milton da Costa, até mesmo a Tarsila do
Amaral quando ela vinha ao Rio, e muitos outros. Mostrava meus rabiscos e recebia uma
boa orientação. E comecei também a ler livros dos próprios artistas como o Tratado da
Pintura do Leonardo da Vinci, os diários de Delacroix, Redon, Ingres, as cartas de Van
Gogh, os pensamentos de Braque, o Tratado da Paisagem de André Lhote, a Teoria da
Arte Moderna de Klee, e por aí vai. Isso me marcou muito e hoje compreendo que comecei
certo, isto é, pelas fontes primárias.
Em 1956, depois de terminar o curso científico meu pai achou que seria bom eu entrar em
uma faculdade de arquitetura. Bati o pé, queria ser pintor e meu pai então cedeu e arranjou
duas bolsas, uma do Itamarati e outra do governo francês, para que pudesse estudar em
Paris orientado pelo grande artista argentino, Emilio Pettoruti. Viajei em 1956 e voltei em
58. Lá me apaixonei por Poussin, Cézanne, Braque e outros como Jacques Villon. Minha
formação foi toda francesa, e não americana, que foi muito influenciada por artistas como
Picasso, Matisse, Caravaggio, Duchamp.
Hoje percebo como foi importante para mim essa formação. Me permitiu construir um
discurso dentro da própria pintura e não um de fora, a partir de fontes secundárias como
as análises dos historiadores de arte, livros teóricos de filósofos, críticos, etc. Claro,
devemos lê-los, mas primeiro temos que estudar as fontes primárias. Depois, mais tarde,
fui analisar os artistas americanos, como Frank Stella, Roy Lichtestein e outros que
também têm discursos dentro da própria pintura.
Questiono muitos dogmas criados pelos historiadores de arte e como exemplo cito um
deles que é a afirmação de que Leonardo introduziu o sfumatto em pintura. Isso não é uma
questão teórica e sim um procedimento. Leonardo se interessou foi pelos limites de cada
corpo e o modo como serpenteiam. Uma questão tão complexa que só esse ano, creio,
consegui entender.
JT - Sei das atividades de seu pai, o escritor Marques Rebelo, no campo das artes
plásticas. Fala-me agora dessa atividade e como elas te influenciaram.
157
estrangeiro sobre nossos pintores. Refiro-me ao livro de Romero Brest, Viente Artistas
Brasileños. Com o apoio de Jozias Leão, depois de 1948, meu pai viajou por diversas
capitais e cidades brasileiras, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre, Florianópolis,
Rezende, Cataguases, levando exposições com obras de nossos pintores modernos e da
Ecole de Paris, como Matisse, Leger, Lurçart, Marie Lauricin, Vlaminck, Derain e outros.
Vários museus foram criados, inclusive o de Santa Cantarina, o primeiro museu de arte
moderna a funcionar de fato no Brasil. Seu projeto era o de criar um museu no Rio de
Janeiro que centralizasse as atividades dos demais museus. Como disse, tinha o apoio do
Jozias Leão, embaixador que serviu na Europa durante a guerra e que formou uma coleção
com mais de duas mil obras de arte da maior importância: Braque, Picasso, Matisse, Leger,
Klee, Mondrian, Juan Gris, Morandi, Kandinsky, Magritte, Ernst, enfim, todos os nomes
significativos da arte moderna europeia. Seu objetivo era o de doar essa coleção para o
museu que seria criado. Até que um dia marcou-se uma reunião para criá-lo. Cinquenta
pessoas foram convidadas, quarenta e uma compareceram, e por fim criaram os cargos,
presidente, vice presidente e mais isso ou aquilo, um total de quarenta cargos, comissões,
etc. Somente uma pessoa não foi escolhida para nada, Marques Rebelo. O Jozias Leão,
por solidariedade, não mais quis doar sua coleção para o museu nascente. Tentou então
apoio dos governos estaduais e federais para criar um museu para sua coleção. Nada
conseguiu. Amargurado vendeu toda a coleção para o exterior. Triste saber o que o Rio
perdeu! Meu pai nunca mais quis saber das politicagens que envolvem as artes.
Tive o privilégio de frequentar a casa onde essa enorme coleção estava abrigada. E claro,
por total desaprovação com o rumo que o novo museu tomou, segui meu caminho. Já
tinha tido contato com uma arte maior e não podia me interessar pelos cursos que o novo
museu oferecia.
JT - Você esteve longe do Rio e agora (2013) está retornando. Como foi esse período de
cinco anos em Florianópolis longe de sua cidade natal?
JM - O que já te disse pode explicar o porquê de ter vindo morar em Florianópolis. Fiquei
marginalizado, fora do circuito artístico. E a crítica foi muito intolerante com meu
trabalho. Cheguei a abandonar a pintura por duas vezes, de 1961 a 64 e de 1968 a
73. Quando realizei minha primeira exposição já tinha 40 anos. Logo depois fui
convidado para ser professor do MAM Rio. Depois para a Escola de Artes Visuais do
Parque Lage. Assim me foi possível dar prosseguimento às minhas pesquisas. Consegui
editar meu primeiro livro, A Cor e o Cinza. Mas a tarefa foi árdua, com graves problemas
financeiros e com a saúde comprometida, não tive outra alternativa e me mudei para
Florianópolis por insistência de minha filha. Na nova cidade continuei trabalhando,
pintando, dando minhas aulas, editei meu segundo livro, O cromatismo Cezanneano e
terceiro livro, Pintura, cores e coloridos. Mas de certa forma me acomodei. Não pretendia
voltar para o Rio. Graças a você, Jandira, voltei e recomecei a dar aulas na escola de Artes
Visuais do Parque Lage. Sinto-me agora mais criativo e com muitos planos.
JM - Essa volta ao Rio me enriqueceu muito. Consegui finalmente entender melhor o que
Leonardo disse sobre o serpenteamento e qual a relação com o cinza sempiterno. Entendi
também a estrutura cromática de Rembrandt. E já tenho 78 anos. Que isso sirva
158
de exemplo para os jovens artistas que estão começando. É longa a caminhada que um
artista tem que percorrer. Tem-se que ter esperanças, paciência e capacidade de superação.
JT - Você é um artista muito bem considerado entre seus pares. Como você vê esse
reconhecimento?
JM - Creio que esse reconhecimento decorre do fato de que muitas pessoas percebem que
o mundo está mudando e que é necessário uma nova mentalidade, novos valores, etc.
Desde o princípio segui minha intuição, que ainda cresce com o conhecimento que venho
adquirindo. Alguns amigos artistas me dizem que eu não criei, eu fundei. Cito aqui um
pensamento de Braque: "Cézanne não construiu, ele fundou. A construção pressupõe um
preenchimento." Me pergunto então: o que deve ser fundar em um país afunilado em uma
zona distante dos centros hegemônicos? Claro, trabalhamos para sermos reconhecidos.
Melhor ainda se esse reconhecimento vem de seus pares.
JT - Você lançou seu terceiro livro, e, como você mesmo diz, estão ainda inconclusos
como os outros. Pretende continuar escrevendo?
JM - Escrevo para pintar, afinal arte é coisa mental. Continuarei pintando e, portanto,
escrevendo também. É bem possível que um quarto livro apareça. É um compromisso que
tenho com a pintura, minha cidade - o Rio de Janeiro - e com o Brasil.
159
ACONTECIMENTOS QUE ANTECEDERAM A FUNDAÇÃO DO
MAM RIO
Logo após o fim da segunda guerra mundial, naturalmente, um novo desenho geopolítico
se inicia.
Enfatizo aqui a expressão “os museus de arte devem ser rotativos”. Esta era a intenção de
Marques Rebelo, fundar vários museus, e o primeiro a de fato funcionar foi o de Santa
Catarina. Sobre o MAM do Rio transcrevo um depoimento do próprio Marques Rebelo:
“E mais outra lição: trabalhei durante dez anos na difusão das artes plásticas. Modéstia à
parte, com inteligência, entusiasmo, devoção, desprendimento – há provas. Um dia viram
que era tempo de haver um grande museu. Convocaram 50 pessoas para a sessão
fundatória. Compareceram 41, e três delas, que eu conhecia, não tinham em casa um único
quadro. Estabeleceram 40 lugares de diretoria, comissões, etc., e se fez imediata eleição.
Somente um dos presentes não foi eleito – eu.” Daí, entente-se o porquê do embaixador
Jozias Leão não doar para o museu recém criado sua vasta e importante coleção de mais
de dois mil artistas modernos europeus (Braque, Picasso,
160
Matisse, Mondrian, Kandinsky, Juan Gris, enfim, o que se fez de mais importante em
pintura na primeira metade do século XX). Jozias foi solidário a Marques Rebelo.
Termino citando um trecho de Raúl Antelo do livro Potências da imagem (esse livro foi
publicado em 2004): “Há alguns anos, a Rede Brasil Sul, empresa de comunicação do
grupo Sirostsky, organizou em Florianópolis um evento reunindo os presidentes do
Mercosul. Tratava-se de criar um símbolo de controle de qualidade para os produtos da
região. [...] Tudo isso acontecia no Centro Integrado de Cultura. Embaixo, a pouco metros,
no recinto do Museu de Arte de Santa Catarina, os restos da coleção de Marques Rebelo
não ouviam, decerto, as batidas percussivas que impeliam a escalada e lhe prestavam pré-
histórias de futuro a dança de valores. Sob a proteção da rede Globo, os três presidentes,
Cardoso, Menem e Wasmosy (Sanguinetti ausente), articulavam a linguagem da
resignação perante a videopolítica. Não se trata mais, pensavam, em extirpar a
dependência externa, porém apenas administrá-la, ainda que a região afunile em um
processo de periferização endógena, que ataca, em primeiro lugar, a memória. Os Rebelo
e Pettoruti devem ter-se estremecido ante a falsa moeda do Príncipe (1), e talvez tenham
compreendido, na própria carne, o alcance de uma política da amizade e da amnésia.”
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(1) Inspiro-me, aqui, no brilhante libelo de Gilberto Vasconcelos, O Príncipe da moeda (Rio de
Janeiro: Espaço e Tempo, 1977), que interpreta o governo FHC como mostra do capitalismo
videofinanceiro que sepulta, decididamente, o grande fantasma, Getúlio Vargas.
161
MILLÔR FERNANDES, LIMA BARRETO E MARQUES
REBELO
Divagando
Andy Warhol fez uma frase, conceitual, como eles dizem, que o tornou
famoso: “Todo mundo terá seus 15 minutos de glória até o fim do século.
Era do século XX que ele falava. Já estamos no XXI. Deu pra perceber?
Warhol tinha razão. Não há hoje quem não receba, por algum meio ou forma de
exposição pública, esses tantos minutos de glória. Seja por ser muito bonito, muito
brilhante ou até por ser muito feio. Hoje ninguém precisa ser nada pra ser alguma coisa.
Paradoxalmente Warhol conseguiu fama permanente por ter dito tal frase. Mas, ah,
revelação!,: a frase já estava no ar assim que apareceram os meios mais ou menos
ecléticos de divulgação. Lima Barreto, sempre antenado mesmo quando ainda não havia
antenas, já tinha dito a frase em 1913 nos fascículos O Triste Fim de Policarmo
Quaresma: “Houve um em Nitheroi que teve o seu
quarto de hora de celebridade”.
Peguei essa frase no belo opúsculo de apresentação do pintor José Maria Dias da Cruz,
O Brasil em 15 minutos. Sem querer humilhar ninguém, José Maria é filho do
grande Marques Rebelo.
Ah, vocês não conhecem Marques Rebelo? Nunca leram o
Espelho Partido, só três volumes: O Trapicheiro, A Mudança, A Guerra está em nós?
Pô, são 1 694 páginas. Não leram?
Então voltem ao seu Machado de Assis.
Millôr Fernandes
162
FORTUNA CRÌTICA
Seguem algumas opiniões favoráveis. As desfavoráveis me dou ao direito de não
relacionar e foram muitas: Frederico de Moraes, Ligia Canongia, Márcio Doctors, Jacob
Klintowski e alguns outros. Cito apenas a de Roberto Pontual: “Inteiramente equivocada,
sem sentido e fora de propósito é a pintura de José Maria Dias da Cruz.”
Esta exposição de José Maria Dias da Cruz não é, como a grande maioria das exposições,
um balanço ou um depósito do que o pintor fez do ano tal ao ano qual. Por outro lado, se
esta exposição expressa um forte conjunto, esse conjunto não vem da unidade de uma fase
psicológica ou moral da vida do pintor, sua unidade é uma unidade intelectual a qual se
obtém a partir de uma determinada chave, uma solução que o pintor resolveu explorar até
suas últimas consequências.
Max Bill, ao enumerar as leis da estrutura, falou de polarização; não sei se seria fora de
propósito dizer aqui porque prefiro dualidade. Na verdade polarização tem uma denotação
de afastamento (ou repulsão) dos elementos da dualidade. E esta pode ser obtida também
pelo movimento contrário, a saber, pela aproximação ou atração desses elementos. E até
mesmo pela exploração de uma dualidade não dinâmica, que nada tenha com os
movimentos de repulsão ou atração, mas subsista estático, na pura justaposição de
elementos que convivem, ou coexistam lado a lado formando uma estrutura sem tensões.
Sei que os artistas de nosso tempo são muito mais românticos para aceitar esse ingrediente
básico na obra de arte, e que chamarei “engenho”. Na poesia, onde me entendo menos
mal, depois da fecunda experiência dos concretistas e das variações que sucederam,
vemos que os poetas preferem voltar ao discurso lírico, sangrado, confessional. Assim a
presença da nova pintura de José Maria Dias da Cruz para mim, que prefiro ver a obra de
arte como construção inteligente e calculada, feita de fora para dentro, é muito mais que
uma revelação: é um encorajamento que o jovem pintor dá a uma geração muito anterior
a sua.
O artístico Pertinente
163
mesmo pela mediocridade. Por outro lado, as pesquisas profundas em busca de uma
situação de vanguarda podem conduzi-lo a um hermetismo, aquele que faz da arte uma
situação de privilégios e discriminações.
Se considerarmos uma divisão (cheia de reservas) dentro das expressões visuais a serviço
do consumo, vamos encontrar de um lado a americana publicidade e de outro a europeia
arte gráfica, onde podemos perfeitamente aceitar que, enquanto a primeira teve seus
princípios cientificamente estruturados por uma ganância comercial desprovida de
cultura, a segunda nasceu de uma necessidade de metodizar certos aspectos do processo
criativo em benefício do mesmo comércio, no entanto, calcado em bases nitidamente
culturais.
Assim, é dessa arte gráfica que José Maria Dias da Cruz extrai seu formulário, suporte
que organiza, mas principalmente cobra precisão. Sobre ele constrói suas NM‟s nas quais
introduz junto a elementos de tradicional valor poético (maçã, leiteira, etc.) outros como
o cigarro, transformando o saudosismo da natureza morta num realismo extremamente
atual.
Numa situação como a que vivemos, o trabalho de José Maria Dias da Cruz é um esforço
digno de toda solidariedade; da mesma forma que avança, encontra uma pertinência
essencial a um progresso cultural desejado.
Melhor do que ninguém, Dias da Cruz fala assim de sua obra: "Sempre parto do
princípio de que a pintura é a transposição de uma imagem construída em cima de uma
ideia. A partir dessa imagem que transpomos, podemos fazer outras retransposições,
outros desdobramentos. Relacionando apenas seus problemas conceituais, paralelos as
suas preocupações formais, estaremos dando elementos para a decodificação da obra,
suas várias interpretações."
No caso das pinturas de Dias da Cruz, objetos sem importância (peças do jogo de
xadrez, cartas, castiçais, com velas, uma embalagem em formato de um tubo, pincel,
dos de sua verdadeira propriedade e função na realidade concreta), são transpostos
para uma realidade percebida e idealizada pelo artista.
164
Desse modo, a determinação no plano das figuras citadas se dá, segundo ele próprio
define, conforme "o grau maior ou menor de envolvimento que, conscientemente,
queira lhe dar."
165
Organizados como "naturezas-mortas", são elementos que se combinam durante o
processo de conhecimento do artista para destacar e atenuar a contradição de duas
realidades muito próximas: a papável e indizível, a que se toca e esconde a parte
invisível e que sentimos e nem sempre alcançamos. A primeira existe a partir do
discurso articulado pelo artista sobre aspectos da pintura. A segunda ultrapassa o
pensamento do pintor e formula outros significados de natureza primordial, aqueles que
preferencialmente ignoramos porque estão além de nossa inteligência e compreensão.
Mas coexistem conosco à sombra de toda construção, talvez como a contraparte inimiga
que sufocamos quando vem à tona.
Guido Goulart
166
167
168
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A pintura de José Maria Dias da Cruz, embora caracterizada, desde os anos cinquenta,
por questões construtivas, só abandona definitivamente a representação em direção à
abstração no início da década de oitenta. Seu longo amadurecimento em direção à
abstração talvez seja responsável pela singularidade de uma obra profundamente
vinculada à tradição geométrica, e, ao mesmo tempo, conscientemente voltada à
renovação de alguns de seus postulados básicos.
[...]
Partindo de um profundo conhecimento e domínio da cor, José Maria propõe em sua obra
o questionamento do vocabulário cromático dominante no construtivismo e, em
particular, na Arte Concreta, pelo retorno às cores simples tal como foram definidas por
Leonardo da Vinci no Tratado da Pintura.
Partindo, então, da observação dos pares vermelho e verde, e amarelo e azul, o artista
entende que o pictórico situa-se na percepção sensível das diversas distâncias cromáticas
entre estes. Existe, pois, no trabalho, o constante tensionamento, por aproximações, entre
a cor pura, abstrata substantiva – virtual – e seu consequente desvio para a cor adjetiva,
sensível, dinâmica e cambiante. Assim o vermelho pode ser tratado em seu desvio para o
amarelo ou para o azul, o amarelo em seus desvios para o vermelho ou verde, e assim
sucessivamente. A cor aqui, embora sensível, não é intuitiva, combinada pelo gosto do
artista. Uma vez que se constitui no ponto de
169
chegada de um processo de trabalho onde sempre foi pensada em suas significações
teórico-visuais, ela é sempre dual e relaciona-se nesse precário ponto de equilíbrio. Nesse
sentido a ressensibilização da cor é a questão central do trabalho, inclusive, pela
construção da espacialidade da obra. Reforçando a intenção sensível da pintura é
importante que se observe a presença sutil, mas efetiva, do gesto da pincelada que se
materializa, sem ocultar-se em grandes chapadas de cor, constituindo-se como caligrafia
do mesmo.
[...] Acredito que Zé Maria, mais do que reinterpretar ou reelaborar a questão da cor na
pintura, apresenta-nos razões e consequências de uma necessária e urgente concepção
pluralista e, por isso mesmo, universal desta experiência. Após a leitura deste livro,
passamos a pressupor e a observar a possibilidade de inúmeros modos de conceber o
aparecimento do fenômeno cromático. Esta transformação implica mudanças em nossos
hábitos estéticos de uma ordem bastante ampla. Desse modo manifesta-se claramente o
aspecto mais destacado deste escrito brilhante: apresenta respostas e novas questões
relativas ao estado atual de nossas ideias, mas outras que as alteram de modo que
somente aos poucos suas proposições mais férteis e profundas passam a fazer algum
sentido ao leitor. Elas ainda não nos pertenciam.
----------------------------------------------------
Tivéssemos nós que escolher apenas uma palavra para definir a obra de José Maria Dias
da Cruz, essa palavra seria COR. Seu complexo trabalho não pode ser reduzido a esse
traço distintivo, é certo, mas é igualmente certo que a cor está presente de forma singular
nas suas diversas fases. Essa escolha, por outro lado, o que tem de justa, tem de
170
arriscada, sobretudo numa contemporaneidade que, ao ver-se com as questões da morte
da pintura e da arte, acabou por levar a cor numa espécie de enxurrada morro abaixo.
Além disso, não é suficiente apenas desenterrá-la. Para esse pintor a cor não é ornamento
e nem recurso expressivo. Não é também indução de vivências ópticas ou mesmo, em sua
essência, elemento construtivo. Embora a obra de arte admita sempre múltiplas e
imbricadas leituras, algo de muito importante é deixado de lado quando esse trabalho é
lido a partir de referências mais usuais. Intencionada e declaradamente, ele se move em
torno de uma releitura da cor. Voltamo-nos, portanto, para a tentativa de circunscrever
essa singularidade.
É sabido que José Maria, embora pouco ortodoxo, tem uma veia teórica bem acentuada.
No livro que há mais de dez anos escreve sobre o tema, encontramos uma definição
positiva de sua abordagem da cor. Diz ele: “A cor abstrata é substantiva, a cor concreta é
adjetiva.” Essa proposição caracteriza a cor a partir de duas dimensões e faz perguntar
pela ligação entre elas. A única forma de dar aqui uma ideia daquilo que para esse pintor
parece caber no espaço dessa ligação é reportá-la entre o inteligível e o sensível que, para
muitos, é o objeto primeiro de toda a filosofia. É como se José Maria enxergasse na cor
um fenômeno absolutamente privilegiado. De fato falamos do “vermelho” e o fazemos de
forma tácita, ao mesmo tempo imprecisa e convencionada, abstrata e substantiva, como
prefere o pintor. Mas vermelho? Leva bem longe perguntar qual ou como seria o
vermelho, ou sobre que bases poderia se assentar sua mobilização. Em paralelo, podemos
falar de “um vermelho”, de uma pincelada, concreta e singular, que se texturiza e se
modifica pela luz, pela presença de outras cores ao seu lado. Quando dizemos pincelada
vermelha, é um adjetivo que fazemos da cor. Assim, para José Maria, é nesse intervalo
que a cor existe e é caracterizada por ser mais inteligível que outras sensações como, por
exemplo, a dor ou o calor. É certo, ninguém ouviu um acorde entre uma dor de dente e
uma dor de barriga. Mas a questão aqui é o que se faz com essa especial característica
fenomênica. Se as possibilidades harmônicas são vistas apenas como mensuráveis,
sistematizáveis e utilizáveis, mesmo para pintar, passamos completamente à margem do
trabalho do pintor.
Nos seus quadros José Maria interroga a cor, procura fazê-la aparecer, ou melhor, procura
fazer aparecer o modo de aparecer a cor. Surgem transparências, passagens, ambiguidades
e fugas, temporalidades e espacialidades reinventadas no seu modo de propor-se. Não
conheço nenhum trabalho que reverta e explore a cor com tanto foco o que seria uma
ontologia das cores. Historicamente, o que podemos fazer é rastrear uma filiação a
Poussin, Cézanne e Braque, como ele mesmo faz questão de assumir. Entretanto, isso se
faz a custa de rever as perspectivas, ora formalistas, ora historicistas, pelo qual esses
pintores costumam ser lidos. Por exemplo, Braque é conhecido primeiramente como
cubista, não como colorista, mas basta colocar lado a lado quadros da mesma fase, dele e
de Picasso, para ver surgir um colorista sutilíssimo. A cor, na delicadeza mais essencial,
precisa de algo como uma sala de concertos para ser ouvida e é mesmo verificavelmente
difícil enxergar coloristas em quaisquer mostras de arte contemporânea de artes plásticas.
A arte contemporânea parece tenazmente lutar contra
171
um barulho terrível, usando para isso de contrastes que não são da ordem desse silêncio
colorido. Mas já que, a despeito de quaisquer discussões pendentes a respeito da
funcionalidade da arte, estamos diante de um colorista obstinado e singular, que toda essa
circunstância não nos impeça, a nós que ainda somos livres para contemplar e refletir, de
olhar a sua obra com a necessária disponibilidade
Fala Zé
Engraçado que por ter te acompanhado ano passado e por já ter lido fervorosamente seus
dois primeiros livros, penso que essas coisas que você está falando não são tão novas
assim. É sua pesquisa, é sua busca, é o que te mantém vivo.
Você é bem corajoso ao se situar na história da pintura. Está seguro do seu lugar. Isso é
impressionante. E não me parece ostentação ou achismo, é apenas uma compreensão do
que você fez e faz durante sua vida. Quando você fala que você é a própria geometria das
cores, vejo dessa forma, como uma transcrição dos coloridos naturais possíveis para telas
passados pelo filtro Zé Maria. É um entendimento de espaço. O Mollica me diz que vê
seu trabalho como paisagem e nesse sentido tenho que concordar com ele. Mas como toda
paisagem é inventada, a grande discussão acaba por ser sobre como isso acontece e a
resposta é através dos cromatismos desenvolvidos. Por fim, acho muito bom você elucidar
sobre outros caras que tanto se dedicaram às cores, apesar de não terem ido por Cézanne
e os venezianos... É sempre importante lembrar-se!
Abração
Bernardo Magina
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José,estou lendo seu último livro e realmente só agora percebo a questão da permanência
do cinza como transição. E muito mais do que isso. É muito rico pensar como a escala
cromática e o disco das cores são absolutamente arbitrários e que imaginar a cor em
esquemas de transição permanente torna mais rica a compreensão da arte. Isso implica
também em uma nova forma de pensar a modulação das formas pelo claro-escuro e, como
você já disse, a questão da existência das linhas.
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172
Caro José Dias,
Em uma fábula intitulada O conto da cor, escrita no início do século XX, o pensador
alemão Georg Simmel contava a saga de uma cor que, inominável, perambulava pelo
mundo em busca de si mesma. Sua dificuldade residia em jamais encontrar seu par,
encontrando abrigo – primeiro provisório e depois definitivo – na paleta de um pintor
parisiense e na opala. Poderíamos imaginar, sem muita margem de erro, que José Maria
Dias da Cruz também adotou Grülp. O pintor dedica-se obstinadamente há alguns anos
em enveredar pelos caminhos e descaminhos da cor. Talvez devamos evitar dizer que
173
ele enfrenta seus mistérios, na medida em que se é razoável duvidar até que ponto as cores
ainda lhe são um enigma; Seu desafio parece outro: partindo da noção universalmente
reconhecida da cor como um valor sempre relacional, seu problema reside em inquiri-la
a partir de três aspectos: a relação entre sua presença e a forma segundo a qual se
apresenta; por extensão, como ela é capaz de gerar espaços dentro da tela conforme salta
ou se funde às suas vizinhas; e, por último, como qualquer cor (desdobrando a lição de
Cézanne) pode constituir-se simultaneamente como luz e cinza, sem que isto a condene à
escravidão do tom ou renuncie a uma vibração singular.
Esta hipótese do cinza (o artista há anos examina um conceito formulado por ele mesmo
nomeado cinza sempiterno) traz uma série de bons desafios à superfície da tela. Um deles,
por exemplo – e, mais uma vez, dialogando com uma história da pintura moderna
– consiste em suspender, dentro dela, o lugar onde reside a cor. Afinal ela (a cor),
explicitando sua textura e, mais do que isso, existindo como uma luminosidade cinza
(desfaçamo-nos do preconceito de que o cinza além de não ser cor é uma cor morta),
estabelece um plano no qual tudo pode ser figura ou fundo. Trata-se de, por este
estratagema, colocar na fronteira a capacidade da pintura situar-se entre literalidade e
ilusão, o que se percebe pelas transparências propositalmente dúbias criadas pelo pintor,
uma vez que elas, pela articulação dos planos, sugerem camadas interpostas, mas, pela
textura das cores, empurram-nos simultaneamente para, senão o primeiro plano, aquele
intermediário, no qual (somos tentados a pensar) Grülp montou sua tenda.
É, portanto, tal corporeidade da cor que pauta as obras de José. Quando insistimos no seu
necessário vínculo com uma tradição moderna, fazemo-nos menos para situá-la
historicamente (apesar de todas as cores terem suas respectivas histórias e estórias) do
que para perceber como este seu virtual – sublinhe-se esta palavra, no que ela quebra uma
condição permanente, estática – cinza acaba por promover uma coincidência indissociável
entre plano pictórico e plano cromático, no qual o deslocamento da cor do tubo para as
tramas da tela espelha sua maleabilidade em reinventar-se. Como se Grülp se decidisse
por uma longa, quiçá definitiva, estada no Brasil, ao encontrar seu par nas telas do artista.
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José Maria Dias da Cruz, além de grande artista plástico e estudioso da cor, é um grande
mestre. Através dos exercícios propostos em suas aulas, o aluno é capaz de perceber, no
espaço plástico, e recriar, através da pintura, sofisticadas relações cromáticas e espaciais
que antes não eram sequer percebidas. Isso possibilita o artista inserir-se na tradição
cezanneana, onde José Maria se situa, ou a aprimorar sua prática através do
desenvolvimento de um “saber do olho”, o que é muito mais que uma simples ampliação
da percepção visual.
Como falei que você é um filósofo, me bateu procurar se alguém já tinha escrito sobre a
filosofia das cores. O que quis dizer vai bem além disso. Digo que você é um filósofo e
que se utiliza da linguagem da pintura para fazer filosofia, tocando em um assunto tão
importante e enigmático como o tempo.
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As cores não filosofam... Você filosofa através de suas buscas na pintura.
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José Maria é dos grandes conhecedores da cor, tendo inclusive publicado, em 2001, o
livro A cor e o cinza, onde expõe suas reflexões sobre a cor, resumindo e traduzindo toda
uma vida de experiência pictórica. Sua pintura foi sempre altamente reflexiva, cada gesto
carrega algum tipo de pergunta sobre sua razão de ser no quadro. Suas pinceladas de cor
vão se integrando umas às outras, criando uma unidade rítmica na superfície da tela. É
um pensamento cromático, altamente emotivo, que se desenvolve em cada uma de suas
telas.
Luís Camillo Osório, crítico de arte e professor da UNIRIO, em A Arte e seus desvios -
Uma breve história da arte brasileira de 1960 aos dias de hoje.
Voltando ao seu quadro. Li o que o Milton Machado falou. Concordo com ele. Esse seu
quadro tem uma sofisticação incrível, enorme, sólida, erudição, inteligência e
sensibilidade. Faz jus a quem você é, com toda a sua história e trabalho. Os símbolos
fortes, a sua presença indiscutível, física. Você não aparece lá, mas está lá. Como as
cores que surgem nos seus quadros pelas outras. Você realmente é genial.
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bom dia, Z
A natureza fica viva sobre a cadeira com a palhinha do Van Gogh, as paredes de madeira
na retaguarda, quadros contando passados, livros empilhados, talvez roupas espalhadas,
embalagens de máquinas que nunca jogamos fora com medo de nos jogar fora junto. São
pinturas novas? apesar da egiptologia? Curioso, voltar para questões antigas, uma espécie
de refazenda, como quereria um Gil.
Essa natureza morta é muito enigmática. Contém um código que se recusa à decifração.
Coisas para grandes mestres do xadrez ou para leitores de Edgar Allan Poe, do
escaravelho de ouro. O que proporciona alguma decifração é alguma espionagem, papel
desempenhado pela Maria (codinome), espiã muito sem-vergonha.
175
Vamos regando nossos jardins.
Abraços
Meu Deus! O que é a potencialidade das variações em torno de um mesmo tema? Cada
época, cada zeitgeist, cada homem: e a supremacia do olhar íntimo determinando
circunstâncias. Isso talvez seja uma coleção ilimitada de registros históricos. Você já
estava num holandês do século XVII. Mas isso pouco importa. O relevante é a expressão
de uma alma regida pelas próprias idiossincrasias. Isso talvez seja também o que muitos
chamam de estilo.
Se você encontra apoio ou registro no Egito, pouco importa. Ele poderia estar vindo da
Babilônia ou de Creta. O relevante é esse fazer incessante, promovendo qualidade, onde
o percurso pesa mais do que a chegada nisso ou naquilo. De certa maneira, jamais
chegamos onde quer que seja. O que há, na realidade, são escalas em pontos de repouso
ou satisfação momentânea, pois nosso destino é o caminho e a impermanência de todas
as coisas. Aposte sempre no verbo ESTAR.
Quanto ao outro quadro: você, com suas abstrações, às vezes me evoca William Morris.
Há algo espiritual, além da forma, algo falsamente ingênuo, prometendo combinatórias
ainda indecifráveis, pelo menos para minha cognição precária. Enfim, elas, as abstrações,
transmitem paz e isso é o bem mais precioso de qualquer homem.
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José Maria
Você fala em tempo, esse é o aspecto que mais me chama atenção, esse quadro tem o que
eu chamaria de tempo denso ou espesso, penso no tempo dos filmes de Tarkovsky, um
tempo lento que parece arrastado, mas não por lerdeza narrativa ou falta de fluência, mas
sim pela densidade dos acontecimentos.
Imagine o tempo como algo fluido, porém muito espesso, então é com enorme força que
um pequeno movimento se dá e um brutal deslocamento embora em lenta velocidade, Me
parece um grande feito plástico e pictórico. O deslocamento ou descolamento das diversas
camadas de sentido no quadro se dá desta maneira lenta e com muita intensidade, cada
pequeno movimento do olhar que parece poder estar travado em certo momento muito se
revela, questões plásticas, históricas, conceituais, culturais. Parece ser o peso que
176
Cézanne não queria abrir mão na sua dúvida, daí fazer sentido sua consideração sobre os
conceitos de tempo gregos, de fato estão todos presentes.
Seria essa talvez a questão central de Cézanne, tratar desses aspectos, acho que Bergson
trata disso no conceito de duração quando o tempo pode se abrir de certa forma.
Abraços
BobN
177
Seus quadros são misteriosos, oferecendo-me sempre muito mais do que estão sugerindo
- há algo energético embrionário em suas composições; poderia dizê-los como místicos,
mas detesto a expressão, pois não creio em misticismo, vendo sempre tudo,
principalmente o inapreensível pelos sentidos e pela cognição, como situações existentes
que ainda não foram percebidas por nossa realidade tridimensional, ou coisa que o valha.
Portanto, jamais podemos alegar que algo não exista somente porque não o percebamos.
Sua pintura me transmite tal espécie de impressão.
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Olá
Hoje encontrei em crônicas um eco aos meus sentimentos sobre perda da subjetividade.
Concluí que pode ser uma percepção corrente: esta brutalização e banalização do ser,
muitas vezes imperceptível, sedutora, principalmente para os mais jovens,
desacostumados da solidão, do silêncio e da leitura. Quem escreve, e vai fundo,
entretanto, está livre disso.
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178
Olá, Zé,
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oi Zé
Li sim, sua mensagem e seu texto. Bacana isso de edição independente, novos tempos de
internet e ilusão. Já pensei em publicar meus solitários poemas nesse esquema, para retirá-
los da gaveta às quais parecem condenados.
Sobre o háptico, com reverberações nas sinestesias, tem aquela história que o David
Sylvester conta em seu excelente Sobre a Arte Moderna, do imperador chinês que não
conseguia dormir com o barulho da cascata, daí que ordenou aos pintores que retocassem
os afrescos, eliminando as cascatas.
Das minhas cascatas, lembro a água escorrendo nos painéis de fundo da fábrica Securit,
onde gravei o vídeo Pintura. Será desse que vc está falando?
Acho muito bom escrever, e muito bom que vc escreva sem parar. E me sinto sempre
lisonjeado com as referências que vc me faz. Os quadros que enviou me parecem muito
bons. Isso também é bom, que continuem.
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Artista plástica
180
Você é mais que um grande pintor. É um humanista total.
[...] Sua ciência da cor na pintura – não fosse você primus inter pares – me revela certos
esquemas, uma economia da cor, um sistema perceptivo que é sempre novo, inaugural,
na obra pintada. Creio que a pintura tem que ir fundo no mundo das virtualidades, das
linguagens banais, das fotos estereotipadas, dos programas digitais. É preciso que ela se
abra para novas técnicas, novos meios. Mas – você me faz ver isso melhor – há uma
inteligência que é só dela. Uma poesis e uma ética, uma linguagem enfim, que está
vivíssima.
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Zé querido,
Estou sem palavras para agradecer minha inclusão no seu livro... Volto a falar e não canso
de repetir, sua generosidade me comove !!!!!! Hoje a noite, com mais tempo, vou sentar
para ler, mas como dei uma olhada rápida geral, posso adiantar que concordo quando diz,
que este formato, é mais fácil de acompanhar seu pensamento.
Li a parte do Ronaldo Macedo e é dele que desta vez copio as palavras: - não fosse você
primus inter pares !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Obrigada por não ter permitido que as muitas dificuldades da vida, maculassem esse seu
olhar generoso !!!!!
Bjs
Denise Araripe
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181
Bom, tomando a impossibilidade do absoluto, existe muito do jogo, nesse parágrafo, onde
o manuseio da hierarquia da imagem, tanto proposital, como fenomenologicamente
inconsciente, contribuem para esta terceira visão simultânea, formada por estas duas
decisões. A questão do tempo, as 'viradas de bateria', que constituem os intervalos e
contrapontos do funcionamento estratificado em profundidade, de uma imagem plana,
ainda que seus limites não estejam conformes com os limites de seu suporte, também são
interagidos destes rompimentos e suas orquestralidades, seja por quais soluções forem. O
tempo do cinza, e sua sempiternidade invisível, precisa estar sempre igual a zero. O que
o torna uma abstração inatingível. O resto não será a festa?
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zé, o que você faz seria suficiente para ser cultuado como um grande pintor e pensador
em qualquer país mais sério que o nosso. Isso todo mundo sabe. Comentei com o Bob no
outro dia e ele teceu um comentário elogioso a teu respeito.
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180
É preciso muita sabedoria para fazer uma pintura assim. Essa é a vantagem do pintor, o
tempo joga a favor. O pintor "operário", não o midiático, claro. Surpreendente mesmo,
espero ansiosamente por uma exposição com essa série.
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Oi ZM!
Será um prazer encontrá-lo. Adorei o pequeno texto, muito profundo, que você postou
sobre o Rothko (face). É um pintor maravilhoso e pouco estudado. Vem em boa hora!!
Seu pensamento, fora da academia, se produz no labor da pintura, é reflexão que
ultrapassa a configuração atual, dividida de modo regular entre quem faz e quem pensa/
o critico (que agora é acadêmico) e o artista. É um pensamento cor, com o vigor e a
inteligência de quem vive e cria a arte.
Isabela
Caro JM, minha leitura é lenta e simultânea, mas já dá pra ver as implicações filosóficas
que são tão difíceis. Começo a pensar no cinza sempiterno como conceito novo que evoca
as preocupações com a linguagem do primeiro e do segundo Wittgenstein. Algo que pode
se vincular profundamente na própria Filosofia da Arte como prática de uma teoria que
nos afaste do excesso de lógica que permeia o mundo da arte. Continuo lendo. Perdão se
me antecipo de algo que irei encontrar adiante.
A Arte e a Filosofia
Nunca será demais insistir no caráter arbitrário da antiga oposição entre arte e a filosofia.
Se quisermos interpretá-la num sentido muito preciso, é certamente falsa. Se quisermos
simplesmente significar que essas duas disciplinas têm, cada uma delas, o seu clima
particular, isso é verdade sem dúvida, mas muito vago. A única argumentação aceitável
residia na contradição levantada entre o filósofo fechado no meio do seu sistema e o artista
colocado diante da sua obra. Mas isto era válido para uma certa forma de arte e de
filosofia, que aqui consideramos secundária. A ideia de uma arte separada do seu criador
não está somente fora de moda. É falsa. Por oposição ao artista, dizem-
181
nos que nunca nenhum filósofo fez vários sistemas. Mas isto é verdade, na própria medida
em que nunca nenhum artista exprimiu mais de uma só coisa sob rostos diferentes. A
perfeição instantânea da arte, a necessidade da sua renovação, só é verdade por
preconceito. Porque a obra de arte também é uma construção, e todos sabem como os
grandes criadores podem ser monótonos. O artista, tal como o pensador, empenha-se e
faz-se na sua obra. Essa osmose levanta o mais importante dos problemas estéticos. Além
disso, nada é mais vão que essas distinções, segundo os métodos e os objetos, para quem
se persuade da unidade de finalidade do espírito. Não há fronteiras entre as disciplinas
que o homem se propõe, para compreender e amar. Interpenetram-se e confunde-as a
mesma angústia."
Uma leitura simultânea e muito paralela ao livro de JM Dias da Cruz, "Pinturas, Cores
e Coloridos."
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Os acordes da Cor
Silvana Leal
182
Animais à solta no zoo de José Maria Dias da Cruz
Cézanne gostaria de ser Poussin: "Cada vez que me afasto de um Poussin tenho uma
ideia melhor de mim mesmo". Cézanne traiu Poussin: "Preciso matar Poussin". Cézanne
queria ver como Poussin pintaria se Poussin pintasse au plein air. Quando Cézanne
pretendeu matar Poussin, este já havia morrido há muito tempo, sem resolver o
problema que o fazia detestar Rubens. Poussin adoraria matar Rubens, mas afirmou que
quem veio para destruir a pintura foi Caravaggio.
Zé Maria gostaria de ser Poussin. Zé Maria gostaria de ser Cézanne. Zé Maria gostaria
de ser George Braque, que gostaria de ser Picasso que gostaria de ser George Braque.
"Cubismo? Eu sou o pai, Braque é a mãe", vangloriou-se o espanhol. E no entanto não
foi "Les Démoiselles d'Avignon", de 1907, que inaugurou o cubismo, inaugurado por
Braque com "Maisons et Arbres", um ano depois (ver William Rubin, Leo Steinberg);
pintura que não deixa dúvidas de que Braque queria ser Cézanne, caso contrário Braque
não teria ido pintar, logo em l'Estaque. Picasso era o pai, mas só conseguiu visitar
Braque no hospital – que só admitia visitas íntimas – quando declarou: "Sou a esposa
dele!"
Zé Maria gostaria de ser Braque querendo ser Cézanne traindo Poussin para ter uma
ideia melhor de si mesmo. Uma ideia melhor de si mesmo, Zé Maria.
A maior homenagem que um artista pode prestar a outro artista é traindo-o.
Duchamp deixou Leonardo raspado quando implantou na Mona Lisa cavanhaque e
bigode. Depois disso, a moça saiu por aí com o rabo quente dando para todo o mundo.
Duchamp traiu Leonardo para provar/lembrar que "la pittura è cosa mentale". Provar
que "la pittura è cosa mentale" equivale a trair a pintura de Courbet. Afirmar que a
pintura é coisa mental equivale a rejeitar a pintura retiniana. De Courbet, de Picasso, de
Braque, de Cézanne, de...
Gleizes e Metzinger afirmaram que o cubismo era uma forma de realismo, baseado não
no realismo superficial de Courbet e sim no realismo profundo de Cézanne. Gleizes e
Metzinger traíram Courbet. Traindo Courbet, Gleizes e Metzinger traíram Cézanne.
Gleizes e Metzinger traíram Duchamp quando recusaram o "Nu Descendo a Escada" em
um salão cubista: "Se ao menos você mudasse o título..." "Nu descendo a Escada" levou
Duchamp para Nova York. "Nu Descendo a Escada" não voltou mais para a França.
Muito bem vestido ou vestida (dressed to kill), continua a subir e a descer as escadas do
Museu de Arte da Filadélfia, sempre com o mesmo título, com leve sotaque francês.
Zé Maria gostaria de ser Leonardo para reinventar o sfumato e o serpenteamento, e
assim ter uma ideia melhor de si mesmo. De si mesmo, Zé Maria, no ato de observar
com atenção uma paisagem vista sob a perspectiva atmosférica, tentando evitar, mas
não de todo, as deformações da anamorfose e os deslocamentos da paralaxe.
Robert Rauschenberg traiu de Kooning. Rauschenberg deve ter contrariado sua mãe –
não deixa de ser uma traição – mudando seu nome de batismo de Milton para Robert.
"Preciso matar de Kooning (preciso apagar de Kooning)".
Trair/apagar/reacender/reviver de Kooning equivale a substituir a figura bidimensional
estilizada de uma mulher em óleo sobre tela por uma águia empalhada tridimensional
levantando voo de uma pintura em óleo sobre tela. Ou por um galo de briga cantando de
183
galo ao som do Elvis Presley de Warhol. Ou por um bode casado de aliança e papel
passado com um pneu. A águia, o galo e o bode de Rauschenberg planejaram a traição a
Clement Greenberg. Com certa cumplicidade de de Kooning.
Zé Maria não inventou as combined paintings. Mas é fácil notar que suas pinturas
combinam muito bem umas com as outras.
Cada vez que uma pintura de Zé Maria se afasta de uma pintura de Zé Maria Zé Maria
tem uma ideia melhor da pintura de Zé Maria. Uma ideia melhor de si mesmas, de Zé
Maria.
José Maria Dias da Cruz (Rio de Janeiro, RJ, 1935/ vive e trabalha em Florianópolis) é artista,
professor e autor de livros sobre cor e espaço pictórico. Sua questão principal, tanto em termos
conceituais, como de procedimento e fatura, tem a ver com a lógica do colorido. Para ele, pensar
e pintar são sinônimos, pois trata-se de um pensamento que só existe porque há uma pintura que
se pensa através da cor e as formas estão a ela subordinadas.
Desde que decidiu tornar-se pintor em meados do século XX, seu entendimento foi
amadurecendo, no sentido de que a cor é para ser pensada e o pigmento é para ser usado, sendo
que estes dois aspectos, simultaneamente, lhe permitiram tanto explorar as possibilidades da visão
no ambiente pictórico, como criar na tela um espaço plástico capaz de ultrapassar sua estrutura
subjacente.
Tal entendimento inclui interlocuções que vão desde Leonardo da Vinci- o qual pintou as
possibilidades de alcance do olho em relação aos corpos dispostos espacialmente, obtidas por
meio de modulação (rompimento de tom) e modelação (nuances de cor)- até Cezanne, para quem
só se pinta uma fração do espaço, além de Braque, para quem o espaço plástico é, sobretudo,
pictórico. Seu complexo processo de compreensão espacial passa também pelas cores em
movimento e ritmo que engendraram o esquema multifocal em Degas, bem como em Guignard,
cuja visão cromática, em clave mais oriental e sincrética, se contrapõe à visão monocular, mais
ocidental e analítica. O leque é amplo, para cada artista corresponde um esforço aguçado da
reflexão e do olhar: Poussin, Rubens, Rembrandt se alinham com Paul Klee e Rothko, além de
Joseph Albers, Kandisnky e Paul Klee, dentre outras grandes referências.
Observando o repertório pictórico desta linhagem de artistas desde muito jovem, não através de
reproduções impressas e sim por meio de contato frente a frente com os quadros, chegou a
importantes conceitos abordados e desdobrados de modo bastante singular. Isto pode ser
observado, desde as frutas e letras, os bules, peões e cachimbos pintados nas naturezas-mortas dos
anos 60, a que denominou Formulários, até figuração das bandeiras, além dos círculos coloridos
e flutuantes, inseridos em suas pinturas como ícones das Marias- sem- vergonha. Assim, a questão
do espaço pictórico e da riqueza cromática aparece nas telas como um campo vibratório da
percepção. A cada vez, surge como um fato plástico, ainda que na contramão do concretismo e
neoconcretismo, ensejados naqueles mesmos anos. Ao longo das últimas décadas, cada vez mais,
foi, aprimorando sua relação com uma geometria não euclidiana, mais próxima, por exemplo, dos
fractais e de outras topologias menos lineares, aprofundando em o que chama uma geometria das
cores, cujos coloridos não são meras manchas, mas se afirmam como áreas definidas na própria
tela.
184
Nesta exposição o artista apresenta mais de quarenta e cinco pinturas e de vinte e cinco trabalhos
que incluem desenhos e montagens textuais, a que denomina de assemblages, bem como dois
tubos que se assemelham a caleidoscópios para serem vistos por fora, além de uma espécie de
livro didático inconsútil e uma espécie de pintura- objeto sobre madeira. Convém destacar ainda
que, para que seja possível reconhecer a trajetória pictórica, estão documentadas em vídeo
algumas das principais obras realizadas ao longo das décadas. A seu convite, também comparecem
quatro pintores, cujas obras permitem perceber uma interlocução, seja por afinidade, seja por
contraponto em relação aos seus conceitos e noções operatórias: Antonio Vargas, Fernando
Albalustro, Jociele Lampert e Silvana Macedo. O artista também selecionou alguns trabalhos de
seus alunos atuais, onde se pode reconhecer, numa das mesas expositivas, o alcance de seus
ensinamentos como professor de pintura.
José Maria Dias da Cruz tinha quatorze anos quando começou a estudar pintura com Jan
Zach e desenho com Aldary Toledo, pouco mais de vinte anos quando foi estudar pintura
em Paris. Os anos 50 e 60 marcam a fase inicial de sua formação, quando entrou em
contato com a pintura do começo do século XX. Trabalhando num escritório, em 1968
deu início a uma série de trabalhos que ficaram conhecidos como Formulários.
Desviando-se das banalidades protocolares e das grafias meramente burocráticas de sua
função, processou o suporte das fichas impressas em que apenas preenchia as prescrições
do ambiente profissional, considerando a tela como um campo onde incidiam as releituras
cubistas, as figurações geométricas e abstratas, as questões da arte conceitual e pop.
Nasciam suas primeiras naturezas- mortas como modo de processar o espaço imediato,
ao mesmo tempo em que engendrava suas primeiras preocupações e interesses acerca do
colorido na pintura, formulando gradativamente um entendimento sobre a cor abstrata (a
que existe na lembrança e no pensamento, é substantiva) e a cor concreta (a que existe no
mundo real, é adjetiva).
Explorando o uso da textura para mostrar a dimensão temporal contida na pintura, nos
anos 90 a escala de cores passou a fazer parte literalmente de suas telas. Explicitando a
desnaturalização da cor, seu papel parece ser o de servir como uma espécie de gráfico
pictórico, cujas possibilidades cromáticas são desenvolvidas especificamente para aquela
tela em que o infográfico é apresentado. Assim, o artista trata este recurso menos como
uma legenda ou esboço e mais como uma espécie de partitura que permite entender de
onde vem a lógica do colorido que apresenta em cada quadro. Decorre daí a
185
presença do rompimento de tom, entendido não por meio do círculo de cores e sim pelos
diagramas que abrem as possibilidades cromáticas. Ou seja, não mais as misturas
pigmentares, tal como apareciam no círculo de cores de Newton ou Goethe, mas a
sobreposição da pós-imagem, onde a ênfase não está na mera percepção, mas num saber
do olho acerca da apreensão do colorido. Enfatizando, concomitantemente, o processo,
tal como um professor que destaca e chama atenção para determinados aspectos de seu
raciocínio, e o registro, tal como um bailarino autoconfiante que não teme mostrar de onde
provêm seus passos, acaba chegando à questão do desenho pictórico. Eis o caráter, ao
mesmo tempo, indiciário e analítico, através do qual os infográficos de José Maria se
aproximam das notações pictóricas, mas distanciam-se do debate entre desenhistas e
coloristas.
Nos anos 2000 o artista chega ao que chama de Assemblage, denominação dada pelo
poeta Armando Freitas Filho para um processo de justaposição entre textos escritos e
imagéticos, espécie de conteúdo reflexivo autonomizado, bem como recurso sobre o
pensamento pictórico que transborda e realimenta a criação ou formulação de um
repertório onde confluem o intelectivo e o poético. Distante dos registros sob forma de
esboços ou estudos sobre papel, estes trabalhos também não se constituem como um tipo
de livro de artista. Tampouco se aproximam dos três livros que o artista escreveu, onde
apresenta um repertório mais conceitual e teórico, dotado de um caráter mais normativo
sobre seus interesses e abordagens pictóricas. No lance em que, de um lado, operam a
concisão e a síntese e, de outro, o inacabado e o incompleto, o que se apresenta é uma
espécie de constelação, onde fragmentos de artistas, poetas e filósofos se justapõem e
articulam, permitindo reunir razão e emoção através de um estado poético, repleto de
diferentes distâncias temporais e consistências reflexivas.
Signo gráfico assumido como obra, campo para onde confluem as reverberações caras ao
artista desde muito jovem, ao autor de livros e ao professor de pintura, eis a recorrência
das notações pictóricas que se colocam no mundo sob forma de obra, embora, neste caso,
não como uma tela com infográficos, mas como escritos modulares e demonstrativos.
Dizendo de outro modo, combinação entre obra e ferramenta didática, as assemblages
também podem ser alcançadas como materialização das concomitâncias e persistências,
recorrências e derivações daquilo que constitui as bases do seu repertório, construído e
consolidado ao longo de sua trajetória artística.
Privilegiando nas pinturas, seja com tinta óleo ou acrílica sobre tela, uma dimensão que
não ultrapassa 80 x 100 cm, frequentemente, suas diferentes geometrias coloridas se
fazem acompanhar por faixas e planos, marcados por bordas com proporções e contornos
variáveis. Bem recentemente, o artista também passou a realizar desenhos, os quais são
do mesmo tamanho das assemblages, ou seja, A 4. Neste ponto, em depoimento para esta
curadoria, o autor reflete do alto dos seus oitenta e três anos: ainda preciso amadurecer
todos os meus conceitos, pintar e desenhar mais... sinto que preciso desenvolver e
aprofundar os conceitos a que cheguei, tenho ainda muita curiosidade e coisas a
compreender...
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As cores em José Maria Dias da Cruz não combinam. Elas concatenam.
atrai o manifesto.
aplica.
Henrique Vasconcelos.
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O TERCEIRO ESPAÇO
Luciana Knabben
Em seu terceiro livro, O cromatismo cezanneano, José Maria Dias da Cruz nos
permite entender o que os pintores sabem procurar e o que os olhos desses pintores
enxergam mais e além do que não vemos. Para isso José Maria Dias da Cruz faz uma
pesquisa e nos traz sua experiência de pintor. Cézanne fala do cinza que reina na
natureza, enquanto José Maria Dias da Cruz reflete sobre este cinza de Cézanne, como
causa e efeito dos coloridos. Para isso, permite-nos entender que através de uma escala
de cor - entre um vermelho e o verde, sua oposta - um trajeto que vai gradativamente
esverdeando, e esse exato ponto é o cinza sempiterno, e jamais podemos dizer quando é
ele mesmo porque vai se rompendo a cada fracionamento.
Nas palavras do artista, os cinzas sempiternos são a causa e efeito dos coloridos
que nos são possíveis. Cita em seu livro A cor e o cinza: “deste ponto nenhuma notícia
teremos, salvo a intuição de que ele é o local de eliminação de tensões e de passagem
entre cores opostas, considerando estas concretas adjetivas, cuja condição é ser um
colorido”. José Maria Dias da Cruz nos propõe então, que dentro desse rompimento do
tom, exatamente no meio da escala cromática encontra-se o cinza sempiterno e a partir
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dele, toda sua escala cromática irá desenvolver-se. Por não ser um ponto exato, fixo,
mas aquilo que está móvel na projeção do nosso olhar, ocupa um espaço cromático que
vai além do plano físico das cores – que é o terceiro espaço. José Maria Dias da Cruz
estuda os contrastes e rompimentos nas obras de Cézanne, percebendo através de suas
pinturas a fração daquilo que está dentro de uma dinâmica do trajeto da cor, que ao mesmo tempo está
numa direção e no seu oposto.
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