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ARTE ABSTRATA NO BRASIL

Almerinda da Silva Lopes


AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos aqueles que contribuíram, de alguma maneira, para


a realização deste trabalho, de modo especial a Marília Andrés Ribeiro e
Fernando Pedro da Silva, editores da Editora C/ Arte, pelo convite para escre-
ver o texto deste livro, integrante da Série Didática sobre arte brasileira, pelo
estímulo e imprescindível colaboração.
Minha gratidão aos artistas e a Francisco Bandeira, pela cessão de imagens
de obras de autoria de seu tio Antônio Bandeira, bem como aos demais fam iliares
dos artistas por terem autorizado o uso das imagens que integram o livro.
Agradeço, ainda, aos co lecionadores e às instituições que nos autoriza-
ram a reprodução das obras de sua propriedade e guarda: Instituto Tomie
Ohtake, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu de Arte Contemporâ-
nea da Universidade de São Pau lo; Instituto Fayga Ostrower, Fundação Biblio-
, 30x70 c m,
teca Nacional, Fundação Hélio Oiticica, Museu de Arte Contemporânea de Ni-
terói, Museu Nacional de Belas Artes, Museu lnimá de Paula, Museu de Arte
'tSSão de par-
>. da Pampulha, Instituto Ami lcar de Castro, Fundação lberê Camargo.
Aos f uncionários de arquivos e bibliotecas onde efetuei o levantamento do
material da pesquisa: Arquivo da Fundação Bienal de São Paulo, Biblioteca do
Museu de Arte Moderna de São Paulo, Biblioteca Municipal Mário de Andrade,
Instituto Cultural ltaú, Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da USP,
Biblioteca Nacional de Belas Artes, Biblioteca do M useu Nacional de Belas Ar-
tes; Bibliot eca Setoria l do Centro de Artes e Biblioteca Central da Universidade
Federal do Espírito Santo.
Aos meus famil iares e am igos pela ajuda constante e por compreende-
pedagógicas:
'edro da Silva; rem a m inha ausência. Sou grata de modo especial a José Roberto pelo incen-
;Ribeiro. tivo, cumplicidade, companheirismo, auxílio no levantamento do material de
1tical pesquisa e pela leitura paciente do texto .
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estad o do Espírito Santo e ao
drés. Ili. Silva, Museu Vale, em especial a seu diretor, Ronaldo Barbosa .
I
PREFÁCIO

Alguns historiadores asseguram que uma aquarela de Kan-


dinsky, datada em 1910, é o exemplo mais antigo da arte abstrata
moderna, mas parece haver obras anteriores de Francis Picabia e
M .K.Ciurlonis, um obscuro compositor e pintor lituano. A velha dispu-
ta acadêmica entre arte figurativa e arte abstrata obscurece problemas
mais complexos: na sua sombra persiste a dúvida sobre questões bá- '
sicas da arte. O livro de Almerinda da Silva Lopes deixa claro que, na
disputa entre a abstração e a figuração no Brasil, o que estaria em jogo
era a definitiva implantação do modernismo nas terras brasileiras e,
em consequência, a entronização da produção brasileira nas fileiras, se
não da alta cu ltura, pelo menos da arte internacionalizada. Entre as
décadas de 1930 e 1940 do sécu lo XX, quando nosso "atraso cultural"
e nosso descompasso com a modernidade atestavam-se numa produ-
ção artística que pretendia emular a das academias do mundo ociden-
ta l, o abstracionismo estava fora de cogitação.
A lm erinda da Silva Lopes, em Arte Abstrata no Brasil, aborda
o começo da produção abstrata no Brasil depois dos anos 1940,
motivada, em parte, pe los ensinamentos de artistas exi lados no país
como Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, pela fundação
do Ateliê Abstração instalado por Samson Flexor em 1951 , e, ainda,
pela retomada das relações do Brasil com os países europeus de-
pois da Segunda Guerra Mundia l. A exposição Arte Condenada pelo
Terceiro Reich, realizada em 1945, na Galeria Azkanazy, no Rio de
Janeiro e da qual participaram obras de Klee e de Kandinsky, exibi-
ria no país os primeiros exemp los de Arte Abstrata .
A autora também destaca o projeto const rutivo brasileiro que
se desenvolveu durante a Guerra Fria, e que teve início, na década de
1930, com a constru ção do Palácio Gustavo Capanema . O projeto,
inspirado por Le Corbusier, era coordenado por Lúcio Costa e con-
tava com uma equipe de jovens arquitetos, entre os quais se desta-
cavam Oscar Niemeyer, Carlos Leão e Affonso Eduardo Reidy.
Almerinda questiona a pertinência da denominação Arte Abstra-
ta, para designar as obras que renunciam à figuração. A palavra, utili-
zada amplamente, apesar de inexata, encerra uma multidão de signifi-
cados outorgados ora pelos críticos, ora pelos próprios artistas, que
insistem em especificar valores diferentes ao conceito de abstração.
Depois de abordar a assimilação tardia das linguagens abstratas
no Brasil, Almerinda trata do Concretismo, do Neoconcretismo e da
Abstração Informal ou Lírica, dando uma visão abrangente do que
foi, é, e pretende ser a Arte Abstrata no Brasil. Nestas páginas a au-
tora nos oferece uma informação clara sobre os desenvolvimentos
históricos, artistas, programas e ideias da abstração até suas releitu-
ras na década de 1980. O glossário, cujos verbetes esclarecem os
conceitos dos moviment os abstratos internacionais, e uma abundan-
te seleção de imagens completam este livro, nos ajudará a percorrer
o complexo universo da Arte Abstrata no Brasil.

Maria Angélica Melendi

12 · A LMERINDA DA S ILVA L OPES


INTRODUÇÃO

Com o objetivo de t ornar mais claro o conceito de abstração,


antes de adentrar a especificidade das tendências não fi gurativas no
Brasil, surge a indagação: O que é Arte Abstrata?
O conceito de abstração não encontra um sentido exato na
língua portuguesa, mas corrent emente é empregado em oposição a
figura ção, representação e imitação. Enq uanto a arte figurativa pau-
ta-se no emprego de formas artísticas, que objetivam captar e re-
produzir a apa rência do mundo objetivo ou analógico, a linguagem
abstrata é articulada por formas geométricas, ou simples mente por
cores e manchas geradas pe la matéria pictórica lançada pe lo artista
sobre um suporte (tela, papel, madeira). A abstração pôs em xeq ue
a pintura naturalista o u re presentativa que predominou no Ociden-
te, do Renasci m ento ao início do sécu lo XX.
Mas, correntemente, costuma-se adotar a expressão não figura-
ção como sinônimo de abstração, o que não d eixa de ser problemá-
tico, pois coloca a figura ou a representação como parâmetro compa-
rativo, ou talvez diferenciador, da abstração. A abstração é uma
linguagem não objetiva, no sentido de que ro mpe com a praxe da re-
presentação das coisas do mundo analógico, mas dialeticamente pro-
cura o objetivo, pois é articulada seg undo o pensamento e a vontade
de dar forma, função primordial do processo de criação artística. Em-
bora o Abstracionismo seja um fenômeno mais frequentem ente ex-
presso na pintura, também se manifestou na escultura e na fotografia.
De m aneira simi lar ao que ocorre co m os códigos da escrita, a
Arte Abstrata institui-se também como um gênero de linguagem,
articu lada po r signos, por formas geométricas ou bio mórficas,
m anchas, linh as e cores. Po rém , para alg uns estudiosos, os cód i-
gos artísticos são em princípio abstratos, mesmo quando se trat a de
formas fi gurativas, isto é, que se instituem como representações
1conicas ou imitações dos objetos e dos seres. Esse pensamento
sustenta-se na concepção pela qual a natureza da arte não é a mes-
ma que rege as coisas e os seres vivos. Uma vaca pintada é uma
imagem, significando que a representação desse animal não tem a
mesma natureza do ser vaca .
A fi guração acadêmica foi ba lizada no mundo ocidental, du-
rante muitos séculos, pelo emprego da perspectiva. O advento da
fotografia e os avanços científicos, no século X IX, colocara m sob
suspeita tanto a perspectiv a como o sistema re prese ntativo em
v igor desde a Renascença .
Isso impulsionou os artistas a saírem da redoma fechada dos es-
túdios, para observar o mundo, não simplesmente para copiá-lo, mas
para reordená-lo e dar-lhe outro sentido. Para traduzir, de uma maneira
própria, aquilo que v iam, eles passam a recorrer ao pensamento, à
vo ntade formadora e até mesmo à dimensão da subjetividade .
No final daquele mesmo século, os impressionistas deixaram o
espaço fechado do ateliê para pintar diante da natureza. Foi quando
perceberam que a luz desmontava a f ixidez das formas, diluindo ou
esgarça ndo seus contornos, além de modificar as cores da natureza,
de acordo com a sua maior ou menor incidência. Essa mudança per-
manente das cores, de acordo com a intensidade da luz do sol, atribui
aos elementos do mundo a sensação de fugacidade e deu ao artista
a certeza de que nada é permanente, mas transitório.
No início do sécu lo passado, uma sucessão de movimentos,
denominados de vanguardas artísticas, propôs não só a ruptura com a
tradição, mas também a substituição do caráter representativo ou imi-
tativo das formas pela abstração. Alguns desses movimentos iriam
romper com a cor local, a exemplo do Fauv ismo, na França; outros
pleitearam introduzir na formatação das figuras e de certos temas o
sentimento e a emoção do artista, a exemplo do Expressionismo ale-
mão. Esses movimentos iriam modificar a maneira de ver e de pensar
a criação artística no mundo ocidental, influenciando, inclusive, alguns
modernistas brasileiros, entre eles Portinari, Oi Cavalcanti e Goeldi.
Quase que simultaneamente, outros artistas iriam investir, de
maneira ainda mais radical , em um novo processo de ordenação cog-
nitiva e construtiva das formas. Nascia o Cubismo, que, influenciado
pelo pensamento científico moderno, rompia com a solidez postiça
das imagens e com o ponto de vista adotado pela perspectiva renas-
centista. As formas passaram a ser fragmentadas e estilhaçadas pelos
artistas, para mostrarem, simultaneamente, as diferentes angulações
de um dado objeto : dentro, fora, em cima e em baixo.

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;se pensamento O pintor cubista, interessado em especular sobre as dimensões
rte não é a mes- espaciais, passou a representar as coisas como se estivesse se deslo-
1 pintada é uma cando em volta delas, o que possibilitava aventar a hipótese de que era
nimal não tem a possível analisar e ver simultaneamente aquilo que nos rodeia , de vá-
rios pontos de vista. Esse processo equivalia a inserir na obra uma
o ocidental , du- quarta dimensão: o temp9. Para isso, os cubistas facetam e decom-
a. O advento da põem a aparência dos objetos e dos seres da natureza, geometrizando
suas formas e atribuindo-lhes um efeito planar, para demarcar a possi-
colocaram sob
1resentativo em bi lidade de continuidade ou a não distinção entre figura e fundo.

fechada dos es-


1ra copiá-lo, mas
de uma maneira
> pensamento, à

~tividade.

istas deixaram o
·eza. Foi quando
nas, diluindo ou
ires da natureza,
;a mudança per-
uz do sol, atribu i
e deu ao artista

de movimentos,
1a ruptura com a
sentativo ou imi-
ovimentos iriam
l França; outros
1certos temas o
ressionismo ale-
1ver e de pensar
inclusive, alguns
anti e Goeldi.
riam investir, de
ordenação cag-
ue, influenciado
1 solidez postiça

1rspectiva renas-
;tilhaçadas pelos
Pablo Picasso. Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler. Óleo s/tela,
ntes angu lações 101, 1x73,3 cm, 1910. Acervo The Art lnstitute of Chicago.

Arte Abstrata no Brasil · 17


Embora o Cubismo não fosse ainda uma arte abstrata, pois não
rompera definitivamente com o referente externo, transpunha para
as telas fragmentos dissimulados ou estilhaçados das coisas do mun-
do. Mas ao implodir, facetar e geometrizar as formas, o Cubismo abria
amplas possibilidades de instauração da Abstração, considerando
que ambas as vertentes surgiram em tempos quase concomitantes.
A Abstração pode ser pautada tanto na lógica cognitiva (tendên-
cia geométrica), como na subjetividade do gesto expressivo individual
do artista (tendência informal ou lírica). Na primeira tendência abstra-
cionista prevalece o caráter racional e universal das linhas e formas
geométricas - quadrados, retângulos, círculos, triângulos - , além de
cores puras, chapadas ou sem misturas; a segunda mantém forte vín-
cu lo com a emoção e o sentimento do artista. Nesse caso, a linguagem
se caracteriza pelo emprego de signos, por manchas matéricas e por
uma gama diversificada de cores puras e intensas.

Paul Klee. Vil/a R. Óleo s/cartão, 26,5x22 cm, 1919. Acervo


Kunstmuseum, Bâle.

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1bstrata, pois não Ao optarem por uma ou por outra tendência abstrata, os artistas
transpunha para buscavam atribuir autonomia às formas, partindo do princípio de que
s coisas do mun- esses ele mentos não encontram correspondência imediata no mundo
o Cubismo abria exterior. Mas ao recorrer a um gênero de linguagem, que rompia com
o, considerando o conteúdo narrativo ou literário, o artista não iria se afastar ou se alie-
concomitantes. nar do mundo. Ambas as escolhas facultavam ao artista diferentes
ognitiva (tendên- possibilidades de instaurar e de interpretar a natureza, seja mediado
·essivo individual pela razão e pelo intelecto ou pela sensibilidade e pela emoção.
tendência abstra- Ao longo das três primeiras décadas do sécu lo XX , artistas
; linhas e formas de diferentes espaços e latitud es, que seq uer se conheciam ou
gulas - , além de mantinham algum contato, passa ram a articu lar seus respecti vos
nantém forte v ín- processos criati vos exclusivamente por formas geomét ricas, co-
aso, a linguagem res chapad as - primárias e neutras - ou por manchas.1 Ressalta-se
; matéricas e por que no Brasil as tendências abstratas su rgiram mais tarde, ou
numa o utra temporalidade.
Deve-se observar, no entanto, que a recorrência aos signos
abstratos não se co nstit ui em peculiaridade do nosso tempo, nem
foi essa gramática uma invenção da arte mod erna. A s linhas e for-
ma s abstratas já apareciam nas manifestações p ictóricas dos
nossos ancestrais, nas socied ades primitivas, e também nas d os
artistas orientais, em t empos remotos.
Os homens do pa leolítico imprimiram sinais gráficos nas pa -
red es rochosas das grutas onde habitaram e fizeram seus rituais.
Nessas pinturas e desenhos j á se obse rva a combinação de signos
abstratos e elementos fi gurais, salvaguardadas as pecul iaridades
existentes nas diferentes reg iões do planeta. A necessidade de es-
criturar símbolos também transparece nos objetos utilitários: potes
de ce râmica, re levos em placas de ba rro, mad eira, pedra, marfim,
ossos, desenhos e pinturas em cortiça, co uro, pergaminho, entre
outros suportes que nos legaram esses ancestrais.
Elabora r pinturas e gravuras com signos figura is e abstratos
revela a capacidade e a necessidade do chamado hom o sapiens
(homem sábio), de dar sentido à natu reza da qual ele fazia parte.
Através desses códigos, procurava dar forma tanto ao que ele via à
sua volta, como ao que ele não conseguia explicar, ist o é, aos enig-
mas (fe nômenos da natureza) ou aos seres do imaginário (mit os).

1
Embo ra a Abstração Informal ou Lírica sur gisse som ente depo is do t érmi no da
Segunda Guerra Mundial, ressalta-se aqui o em prego de m anchas por alguns pre-
cursores dessa vertente na Eu ro pa, entre eles: A rp, Kandi nsky e Klee.

Arte Abstrata no Brasil · 19


Isso permite levantar uma hipótese sobre esses cód igos artísticos:
eles foram gerados tanto para simbolizar quanto para comunicar.
Os signos abstratos são também abundantes nas grutas brasilei-
ras e revelam ora características locais, ora alguma similaridade com
aqueles existentes nos sítios arqueológicos europeus, já demarcados
e estudados. Desenhos e formas, possuidores de formulação geomé-
trica, também transparecem na decoração dos objetos de cerâmica,
madeira, trançados, pintura corporal e rupestre, elaborados pelos po-
vos indígenas que habitavam o Brasil à chegada dos colonizadores. 2
A partir desta breve reflexão, outra indagação pode ser levanta-
da: é possível estabelecer relação entre os signos abstratos criados
pelos povos primitivos e a Arte A bstrata Moderna? É difícil precisar o
significado, a intençã o ou m esmo a função que nossos ancestrais
atribuíram às formas gravadas ou pintadas - figurais ou abstratas -
nos locais onde viveram e fizeram práti cas rituais. Mas a grande in-
cidência desses códigos em regiões de todo o planeta é, por si só,
reveladora de que o homem sempre manifestou tendência para
abstrair, estilizar, sintetizar, simbolizar.
Mais recentemente , algumas sociedades orientais também
recorreram em suas manifestaçõ es v isuais a signos abstratos, por
motivações culturais específicas, inclusive reli giosas. Esses e ou-
tros exemplos ta lvez perm itam afirmar que os códigos abstratos
são t ão antigos quanto o próprio homem. 3 Porém , no Ocidente, a
Abstração enquanto manifesta ção artística ocorreu tardiamente, fir-
mando suas premissas modernas em torno da não representação,
da síntese e da autonomia. O que exp licaria, então, o homem oci-
dental ter refutado a ideia de arte como representação do mundo
objetivo apenas há pouco m ais de cem anos?
O processo de criação de signos abstratos nas paredes das
grutas não foi, certamente, motiv ado pela mesma necessidade que
impulsionou a formulação da linguagem abstrata pelas vang uardas
do século XX. Deve-se mencionar que os conceitos de Arte e Esté-
tica, tal como são entendidos hoje, não existiam nas sociedades pri-
mitivas, nem nas antigas civilizações. Eles surgiram com a fi losofia

2
Sobre esse assunto recomenda-se a leitura do livro de PROUS. Arte pré-histórica
do Brasil.
3
Vale observar que alguns povos asiáticos, orientais e africanos, de longa data
se expressava m por meio de fo rm as abstratas, sem que isso exercesse qualquer
influência na arte do Ocidente, o que não deixa de ser instigante.

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)digos artísticos: moderna, na metad e do século XVlll. 4 A Estética tornava-se, então,
3ra com unicar. um ca mpo do conhecimento filosófico que iria sistematizar a refle-
3S grutas brasilei- xão e o conceito da Arte.
similaridade com Os filósofos pré-românticos - Schiller, Goethe, Schlegel - an-
s, já demarcados teciparam a ideia de que a arte não era uma simples imitação ou
-mulação geomé- reprodução do mundo sensível, mas um "meio de reflexão" sobre
!tos de cerâmica, ele. Esses e outros fundamentos a propósito da Estética passaram,
orados pelos po- ao longo dos tempos, por revisão ou atualização, modificando o
colonizadores. 2 conceito de belo, de gosto, de percepção e de representação artís-
Jode ser levanta- tica . Foram-se adequando às tra nsformações do pensamento e das
3bstratos criados linguagens e aos novos paradigmas da arte, que propugnaram a
.: difícil precisar o substitui ção do conceito de represent ação por abstração, no início
ossos ancestrais do sécu lo XX, como já citado.
is ou abstratas - A arte emancipava-se, assim, do referente externo e da imitação,
Mas a grande in- passando a negar a sua condição de reflexo ou de duplo do mundo,
1eta é, por si só, para instituir-se como linguage m autônoma e não objetiva. Os códigos
tendência para não representativos, além de desmontarem os cânones clássicos da
pintura, passaram a ser engendrados numa espécie de corpo a corpo
·ientais também do artista com o próprio pensamento e a vontade forma dora. A arte
>s abstratos, por deixava de ser uma imitação do mundo, para ser uma invenção ou
sas. Esses e ou- uma ideia. Nesse caso, uma tela pintada poderia ser expressa tanto por
)digos abstratos formas geométricas, como por ma nchas orgânicas.
, no Ocidente, a A necessidade de gerar uma gramática visual ou uma linguagem
tardiamente, fir- artística, em sintonia com as descobertas científicas ocorridas no mun-
) representação, do, passou a respaldar-se tantoO numa reflexão, quanto em novos
), o homem oci- conceitos teóricos e numa problemática que colocava, por si só, os
:ação do mundo códigos primitivos e os abstratos em polos diametralmente opostos.
Po rém, os signos abstratos primitivos não foram menospreza-
1as paredes das dos ou ignorados pelos artistas modernos e contemporâneos, 5
1ecessidade que co mo co nfirmam os escritos autorais que esses últim os nos lega-
elas vanguardas ram, inclusive o processo de recodifica ção - a que alguns artistas
s de Arte e Esté- modernos iriam submeter determinados cód igos ancestrais. Os
; sociedades pri- manifestos ou programas va nguardistas que definiram as premis-
1 com a filosofia

4
O sentido etimológico da pa lavra estética (do grego Aisthesis) diz respeito a sen-
sibilidade, con hecimento sensível, assim concebido por Alexander Gottlieb Baum-
S. Arte pré-histórica garten, alemão que publicou o primeiro tratado de Est éti ca em 1750. Cf. HUISMAN.
A estética, p . 9- 13.
mos, de longa data 5 A título de ilustração cito que o crítico Mario Pedrosa, um dos articu ladores das
exercesse qualquer vang uardas abstracionistas no Brasil, chegou a propor a criação de galerias tempo-
te.
rárias nos museus locais, para dar a conhecer a arte indígena e africana.

Arte Abstrata no Brasil· 21


sas estéticas engend radas pelos signatários da abstração são mes-
clados por referências aos códigos primitivos, atestando o interesse
que eles despertaram aos art istas modernos.
Sem a intenção de est abelecer conexões e diferenças entre os
signos primitivos e a gramática não representativa que nascia com as
vanguardas históricas, é necessário observar diferentes visões e con-
ceituações de mundo se int erpondo entre a sociedade primitiva e a
moderna. Outra questão diz respeito à recepção desses códigos: os
signos primitivos tiveram contemplação restrita ao grupo social que os
escriturou no fundo das cavernas, atribuindo-lhes função mágica ou
ritual, enquanto que a arte moderna ambic ionaria estabelecer uma
comun icação universal. Nesse caso, o produto artístico m oderno é
veicu lado por instituições cu lturais, como museus e ga lerias, e porca-
tálogos e livros em diferentes regiões do planeta, tornando-o acessível
ao público de diferentes culturas e est ágios de desenvolvimento.

Vassily Kandinsky. Tab!eau à la Tache Rouge. Óleos/tela, 130x130 cm, 1914.


Acervo Centre Pompidou, Musée National d ' Art Moderne, Paris.

22 · A LMERINDA DA S ILVA L OPES


tração são mes- A substituição do referente externo pela geometria ou pela man-
:indo o interesse cha ocorria num momento de grande evolução da ciência e de outras
áreas do conhecimento, que abriram novas possibilidades de perceber
;renças entre os e apreender o mundo. Essas descobertas pareciam corroborar com o
1e nascia com as conceito de abstração preconizado por artistas como Piet Mondrian
:es visões e con- (1872-1944). Ele associou os entes não figurativos à ideia de conti-
1de primitiva e a nuum, conceito que encontrava respaldo nas novas descobertas cien-
;ses códigos: os tíficas, no campo da matemática e da física, e desmontava as antigas
1po social que os certezas, entre elas as concepções de que o mundo era algo acabado
nção mágica ou e infinito. As teorias da relatividade propostas por Einstein atestavam
~stabe l ecer uma que o mundo revelava-se como uma integração de espaço/tempo e
;tico moderno é como entidade geométrica, sentidos nos quais se ampararam as pro-
alerias, e por ca- postas artísticas das vanguardas: do Cubismo à Abstração.
3ndo-o acessível Os pintores abstratos evocavam, assim, uma nova acepção para
1olvimento. as respectivas práticas criativas, que remete a um conceito de arte
próximo de inventar, imaginar, criar, trazer à luz, tornar visível. Essas
expressões, embora não deem conta de abarcar a questão do senti-
do e da significação, demarcam a necessidade e a vontade de liberar
a pintura do engessamento da representação, como já mencionado.
A nova ordem estética abstracionista propunha romper com o
contraste entre figura e fundo assim como a imitação ilusionista do
mundo natural. A pintura passava a instituir-se como superfície ou
como campo pictórico, apoiando-se nas qualidades plásticas das co-
res e das formas geométricas, ou das manchas, o que não tem por
princípio qualquer preocupação com o conteúdo ou o tema. Assim, ao
invés de propor a formulação de um sentido único ou estabelecido a
priori, a arte abria-se a inúmeras interpretações e significações.
As controvérsias quanto à origem da linguagem abstrata são
igualmente decorrentes de disputas travadas até hoje nos centros
hegemônicos pela autoria da gênese dessa vertente vanguard ista. Os
historiadores europeus atribuíram a origem da abstração a Kandinsky,
o qual desenvolveu experiência isolada e pioneira, culminando com
a criação das primeiras aquarelas abstratas em 191 O, época em que
ele vivia em Munique e atuava junto ao grupo expressionista alemão.
Alguns críticos europeus, e também o brasileiro Ferreira Gullar, situ-
am o artista russo como precursor não apenas da Abstração Geomé-
trica, mas também da Informal, tomando com referência entre as
obras pintadas por Kandinsky naquele ano, uma tela denominada
Tache rouge (Mancha vermelha).
<130cm, 1914.
Essa posição quase unânime da crítica vem sendo, mais recen-
3ris.
temente, questionada e postulada por estudiosos, já q ue para eles a

Arte Abstrata no Brasil · 23


poética abstracionista foi gerada não por uma empreitada particu-
lar, mas coletiva. Assim, a Abstração nasceu de uma necessidade
expressiva a qual iria romper com a representação tradicional , daí
ter movido artistas de todo o planeta na formulação de novos có-
digos visuais, sem que ao menos uns conhecessem as experiências
dos outros. Esses teóricos consideram que artistas europeus como
Francis Picabia (1879-1953}, Frank Kupka (1871-1957}, Hans Arp
(1886-1966}, Paul Klee (1879-1940}, Robert Delaunay (1885-1941}, e
o americano Arthur Dove (1880-1946}, desenvolveram experimen-
tações de natureza abstrata simultaneamente, mas que em certos
casos parecem ter sido anteriores às de Kandinsky.
No entanto, o registro das experiências e descobertas nos li-
vros de autoria de Kandinsky: Do espiritual na arte (1912}, Olhar
sobre o passado (1914} e Ponto, linha e plano (1918) , confirmava
que as relações por ele propostas entre linhas, cores, sons e ritmos
musicais, não ocorreram de maneira aleatória. Essas reflexões não
apenas atribuíram legitimidade e seriedade à praxe do artista russo,

Piet Mondrian. Composição com Amarelo, Azul e Vermelho. Óleo


s/tela, 72x69 cm, 1937-1942. Acervo Tate Gallery, Londres.

24 · A LMEAINDA DA SILVA LOPES


preitada particu- como orientaram as formulações construtivas e informais de pinto-
1ma necessidade res de todo o mundo. Elas constituem-se, ainda hoje, em fontes de
o tradicional, daí leitura e de apoio a artistas e aos estudiosos da Abstração.
:ão de novos có-
A vontade de romper com os códigos visuais imitativos e a
1 as experiências
proposta de formulação de um novo conceito de espaço "topológi-
; europeus como co" - como maneira de articular uma nova morfologia visual - eram
1957), Hans Arp questões que vinham sendo investigadas desde o século XIX, não
iy (1885-1941 ) e
I
apenas por artistas, mas também por fil ósofos, poetas e cientistas.
~ram experimen-
s que em certos A Abstração foi antes de tudo um empreendimento de renún-
f. cia à figuração mimética ou naturalista e ganhou força a partir da
consolidação dos códigos fotográficos, no século XIX, como já cita-
scobertas nos li-
do. No âmbito teórico, o alemão Worringer, através da tese Abstrac-
rte (19 12), Olhar
tion e Einfühlung, publicada em Munique (1908), 6 teria influenciado
}18), confirmava
o pensamento de Kandinsky, contribuindo para a rejeição à ideia da
~s. sons e ritmos
realidade figurativa. Todavia, muitos outros artistas demonstraram,
as reflexões não igualmente, que "a arte não seria, desde então, um mero 'poder fazer',
do artista russo,
mas uma 'vontade de fazer ' ou um 'querer fazer"', isto é, ela se tornou
um arranjo inventivo dos elementos pictóricos (cores, formas, espaço)
e não uma imitação ou ilusão do mundo externo à pintura. 7 Ao romper
com a imitação das formas da natureza e com a perspectiva, a arte
tornava-se um meio de expressão e criação livre e autônoma, auguran-
do ao pintor a possibilidade de expressar-se por meio de formas eco-
res, isentas de qualquer ligação com o referente analógico.
Assim, em pouco mais de vinte anos (1913-1936) surgiram em
diferentes países da Eu ropa várias tendências abstratas de matriz
geométrica ou construtiva, que definiram as novas premissas e pa-
radigmas dessa linguagem, entre as quais merecem destaque o Su-
prematismo e o Construtivismo (na Rússia), o Neoplasticismo ou De
Stijl (na Holanda), a Bauhaus (na Alemanha) , os grupos Cercle et
Carré e Abstração Criação (na França) e o Concretismo (na Suíça).

6
Essa tese de doutorado foi apresentada no ano anterio r na Universidade de Berna
e nela o autor defende a ideia de que figuração e abstração são fenômenos perió-
dicos ou cíc licos, e que a tendência a abstrair as formas caracterizou o trabalho de
inúmeros artistas de diferentes tempos e espaços. Porém, o termo Einfühlung (por
1
não ter corresponde nte na língua portu guesa, muitas vezes é tradu zido como em-
1 patia), fora empregado pelo fil ósofo Robert Vischer, no trata do denominado Sobre
o sentimento da forma visual (1873). Foi desenvolvido por Theodor Lipps (1851 -
1
1914), na obra de sua autoria Estética (Esthetik, 1906), na qual trata do estado de
sinergia (ação simu ltânea dos sentidos) do ser humano com o mundo à sua volta.
7elho. Óleo
Cf. BONFAND. L 'Art abstrait, p. 6-8.
ires.
7 BONFAND. L 'Art abstrait, p. 6.

Arte Abstrata no Brasil · 25


Algumas dessas vertentes, bem como os preceitos teóricos que
elas engendraram , repercutiram nas propostas de muitos artistas
brasileiros, de modo especial nas formulações de concretistas atu-
antes no eixo Rio-São Paulo na d écada de1950.
A Europa tornava-se a incubadora das diferentes tendências abs-
tracionistas de matriz geométrica, até aos anos 1930. Após o contato
com essas linguagens via exposições, ou a inserção de alguns artistas
nos grupos vanguardistas europeus, as gramáticas não figurativas de
tendência construtiva penetravam, mais tardiamente, na América Lati-
na (com destaque para a Argentina e o Brasil). Deve-se considerar, to-
davia, que o acesso à Abstração no nosso país resu ltou de diferentes
processos de experimentação e reflexão dos arti::;tas, não tendo como
ponto de partida as prem issas e as formula ções do programa cubista .
Os fundamentos teóricos daquela vertente vanguardista nunca foram
assimilados ou bem compreendidos nem pelos pintores figurativos
modernos, nem pelos concretistas brasileiros.
Após o término da Segunda Guerra Mundial, ainda iriam surgir
vertentes abstratas de matriz informal ou não geométrica, para com-
pletar o ciclo da Abstração. A Abstração Informal, também denomi-
nada de Abstração Lírica, Tachismo (entre outros nomes), surgiu qua-
se que simultaneamente na Europa (França e a Itália) e nos Estados
Unidos. Pautada no emprego de manchas, formas orgânicas e no
gotejamento da tinta sobre as telas, essa vertente abstracionista foi
batizada nos Estados Unidos de Expressionismo Abstrato e Action
Painting (Pintura de ação ou gestual).
A ida de alguns artistas brasileiros, em especial para Paris, onde
tiveram contato com a formulação inicial do Tachismo, como o caso,
por exemplo, de Antônio Bandeira, ajudou a disseminar essa lingua-
gem pictórica no nosso país. Tal linguagem apresenta na subjetividade
e no gesto desconstrutivo os seus principais atributos. O contato direto
com a obra desse artista brasileiro, de alguns europeus e americanos,
na 1 Bienal de São Paulo (1951), contribuiria para atualizar e diminuir o
tempo de assimilação da gramática abstrata no nosso país.
O Abstracionismo Construtivo e o Informal, no mundo ocidental,
tiveram, no entanto, um ciclo de desenvolvimento e uma existência
ativa de duração bastante curta. Basta considerar que, na década de
1950, as tendências geométricas já haviam se esgotado na Europa. A
tendência informal ou lírica teve um período de vida ainda mais curto,
embora na metade daquela mesma década já fosse chamada de "novo
academicismo" na França. Na mesma época, o Brasil iria despertar
para o abstracionismo, recebendo inúmeras adesões de artistas de

26 · ALM ERINDA DA S ILVA L OPES


os teóricos que diferentes gerações. Mesmo assim, ambas as tendências abstratas,
~ muitos artistas como movimentos coesos, não iriam perdurar a não ser até o início
;oncretistas atu- dos anos 1960. Isso significa que, em um espaço temporal de pouco
mais de quarent a anos, foram formuladas as diferentes tendências
; tendências abs- abstratas de matriz geométrica e não geométrica em todo o mundo.
. Após o contato Esse breve espaço de tempo, decorrido entre a formula ção e o
Je alguns artistas esgotamento das diferentes ling uagens abstracionistas no Ociden-
ão figurativas de te, parece t er sid o insuficiente para a devida consolidação e amadu-
na América Lati- recimento dos respectivos conceitos e proposições. Superada a
;e considerar, to- fase de embates e oposições, antes de consol idarem-se no cenário
:ou de diferentes e no mercado artístico, as linguagens não fig urativas voltavam a ser
não tendo como postas em xeq ue no iníci o da década de 1960, q uando m uitos de
regrama cubista. se us respectivos adeptos passaram a fazer experimentações. Ou-
ista nunca foram tros reatavam o vínculo da representação, através das chamadas
tores figurativos novas figura ções, entre elas a Po p Art, identificada com a cultura de
massa e a iron ia aos novos modos de vida urbanos, embora no
inda iriam surgir nosso país assumisse um ca ráter crítico, de conotação po lítica.
~trica, para com-
3mbém denomi-
nes), surgiu qua-
3) e nos Estados
orgânicas e no
bstracionista foi
bstrato e Action

para Paris, onde


o, como o caso,
inar essa lingua-
na subjetividade
O contato direto
JS e americanos,
lizar e diminuir o
1 país.

nundo ocidental,
! uma existência
1e, na década de
do na Europa. A
iinda mais curto,
1amada de "novo
sil iria despertar
Jackson Po llock pintando, 1950.
~s de artistas de

Arte Abstrata no Brasil · 27


Mary Vieira. Polivolume: disco plástico, Ideia para uma
Progressão Serial. Alumínio anodizado, 36,6x 36,6x34 cm,
1953-1962. Acervo Museu de Arte Contemporânea da USP.

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