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AUTORREALIZAÇÃO: O NEOLIBERALISMO E TUDO UM POUCO

João Pedro Ferreira Barbosa Matias

Para iniciar este trabalho farei uma diferenciação apontando a estruturação do


modelo neoliberal sobre o conceito de autorrealização. Para tanto, irei discorrer a
partir do pensamento de Byung-Chul Han as implicações geradas na existência como
um processo de esgotamento na contemporaneidade. Por fim, abordarei o fenômeno
da disciplina de si mesmo como um movimento estruturado a partir de um modelo
neoliberal, trazendo a fenomenologia-hermenêutica como aporte dissonante do atual
modelo organizacional da sociedade.
Fundamentalmente, Byung-Chul Han, um filósofo coreano, radicado na
Alemanha, diz que a sociedade da pós-modernidade é a sociedade do cansaço, mas
o que ele quer dizer com isso? A existência do sujeito atravessada na
contemporaneidade, é essencialmente uma existência do positivo, o que ele chamou
de “inferno do igual”. Para Han, o igual é a produção de si mesmo no mundo, onde o
projeto dinâmico dos tempos atuais é uma procura incessante por bem-estar – seja
ele material, funcional, relacional, etc. – mas principalmente material.
Byung-Chul Han ainda mostra que nos tempos atuais a liberdade não passa de
uma fantasia engendrada pelo mecanismo máximo que regula a existência em uma
fórmula puramente do desempenho, – a autorrealização. A autorrealização aqui é
resultado de uma cultura do consumo, mas não meramente o consumo do negativo,
mas o consumo da fantasia. Uma espécie de dialética do eu, onde para ser “livre” eu
tenho que me prender no consumo desenfreado a procura de meu bem-estar.
Este bem-estar que nos mostra Han, é uma nova deusa, que se apossa da
economia, das relações, do trabalho, do lazer e até mesmo da mística religiosa. As
divindades perdem espaço para aquela que é a mais cultuada de todas, a saúde! É
no “preciso estar bem comigo mesmo”, que ela surge. Atualmente a chamamos de
saúde, e alguns de “narcisismo”. Constato com isso uma erosão do outro em uma
tentativa desenfreada de se autorrealizar.
O tempo é um fator determinante na produção de si, pois como constata Michel
Maffesoli, a tríade temporal do passado, do presente e do futuro, acompanha a
civilização desde seus primórdios. A cultuação do futuro, por sua vez, é uma
característica da modernidade. Isso significa que hoje nos produzimos em uma
constância do ter além de mim mesmo. Este ter além de mim mesmo, é o projeto
neoliberal fundamental, pois dessa forma eu não posso parar, não posso descansar,
não preciso do outro, somente deste Eu. “Eu” que é engordurado pela dinâmica
daquilo que é nada mais do que uma mutação do capitalismo. Neoliberalismo.
O inútil já não tem espaço, é preciso produzir o tempo inteiro. No livro de
gêneses, a estória aponta que Deus ao criar o mundo descansou no sétimo dia, este
dia, por sua vez, é o que chamarei, com a ajuda de Byung-Chul Han, de dia do inútil.
O inútil é o negativo, aquilo que me joga em direção ao outro, no entanto, tudo é levado
a condição de objeto de consumo, inclusive o outro. Seria o outro a necessidade
fundamental dos nossos tempos?
Heidegger em sua fenomenologia hermenêutica, ao mostrar o Da-sein (ser-aí)
como a condição ontológica fundamental de sermos, traz também o caráter de
abertura ao mundo. No entanto, essa abertura para o mundo, designada por seu “aí”,
é onde o ser se desdobra na sua possibilidade mundana, isto é, em seu horizonte
historicamente constituído. Ao se desdobrar, o ser não se fragmenta em partes do
mundo, ele é fundamentalmente parte integrada de um todo mundano. Ao apontar
isso, venho mais uma vez trazer à tona o neoliberalismo como modo de ser construído,
não só enquanto um fenômeno social, cultural, econômico e científico. Mas trago com
isso, o sujeito que em sua facticidade se instaurou na dinâmica do ser si-mesmo.
Neoliberalismo como modo de ser.
O neoliberalismo encontrando a existência a dinamiza para seu próprio
fundamento. Essa dinâmica equivale não apenas a conjuntura em que estamos
inseridos, mas também aquilo que Heidegger chamou de tonalidade afetiva, o ser
sempre afinado a algo. Afinação refere-se ao estado-de-humor que nos encontramos
o tempo inteiro. Com isso, podemos pensar em como a afinação se dá hoje em dia.
Seria a afinação da contemporaneidade a absoluta configuração do Eu em si-mesmo?
Por si-mesmo eu chamo a significação que o Eu estabelece com seus pares. É
necessário que o tempo inteiro este Eu esteja afinado a se reconhecer no outro. De
modo tal, que o outro torna-se sombra deste Eu. Tudo é consumível, inclusive a
própria vida. Quando Byung-Chul Han ao citar a amorosidade em Aristóteles,
destacada por atopos, o sem-lugar, como aquele que é averso a linguagem, que causa
tremores e é insensível, no qual não é passível de uma definição correspondente ao
igual, – consta que tal desaparecimento deste outro, é fundamentalmente, o
desaparecimento da alteridade atópica.
Aqui a noção de que o “céu é o limite” é a projeção do esquecimento da
alteridade em função do verbo modal “poder”, como aponta Han, onde a retração do
diferente cede espaço para o consumismo. Fatalísticamente, a sociedade disciplinar
de Foucault agora cede lugar para a sociedade do desempenho, não sendo mais
necessário o outro negativo sobre o Eu, agora é o Eu por si mesmo, engendrando a
coerção paradoxal do eu posso.
Como contraproposta ao eu posso, existe o não-poder-poder, – o fracasso. É
no não-poder-poder que existe a possibilidade do outro aparecer, pois é na
interpelação deste, que me causa a frustração do sentir, do viver e de ser. Deste
modo, a existência não mais calcificada no Eu, do bem-estar absoluto, pode permitir
a entrada da negatividade do outro. Cabe ressaltar, portanto, que o não-poder-poder
não se trata aqui meramente de um outro, mas diz respeito as afetações mundanas.
E por mundana é preciso compreender a estrutura que rege o neoliberalismo em suas
facetas na existência.
A mundaneidade tomada por aquilo que Heidegger chamou de existenciais,
trata-se do espaço e do tempo. Por espaço digo o meio, este tomado por costumes,
economia, família, etc. Por tempo me refiro a conjuntura que a civilização ocidental
organizou suas práticas antigas, com ressonâncias na contemporaneidade, a exemplo
disso, a cultura. Portanto, o caminho que segue a pós-modernidade em seu caráter
espaço-temporal, é fruto do neoliberalismo como já fora dito, no entanto, existe um
outro componente, que julgo ser motivo de destaque daqui por diante, as ciências
psicológicas e médicas.
Com o advento da ciência em seu status quo, a vida se tornou uma mera
desordem que precisa urgentemente ser redirecionada ad infinitum, de modo que ela
se positive o máximo possível. Aponto com isso, uma violência do igual, onde a
pacificidade da sociedade é antes de tudo um vírus que não é saturante, mas
exaustivo.
As psicologias conhecidas como “baseada em evidências” sabem muito bem
do que se trata o movimento positivo. Ao analisarmos, por exemplo, a psicologia
cognitiva-comportamental, facilmente percebemos uma tendência a enxergar o outro
como alguém de pensamento disfuncional. Ou seja, se todos tem um pensamento
disfuncional, preciso levar bem-estar. Esse bem-estar tem consigo duas
características fundamentais, – primeira, necessidade contemporânea do poder está
bem comigo mesmo; segunda, necessidade de dever está bem comigo mesmo. Seria
a psicologia atual parte do esquema neoliberal?
A medicina, por sua vez, levando a vida ao puro naturalismo, tem consigo
ressonâncias das práticas do século XVII. Práticas que tomam o sujeito como mero
objeto de estudo. O quadro do pintor holandês Rembrandt, “A lição de anatomia do
Dr. Tulp”, retrata muito bem a prática da medicina de sua época, onde ao redor do
cadáver existem entusiastas e estudiosos, afim de ver a dissecação realizada pelo Dr.
Tulp. Mas não é isso que busco destacar aqui, e sim as implicações de uma medicina
alinhada ao neoliberalismo.
A medicina, em especial, a psiquiatria, ao tomar o homem a partir da patologia,
instaura nele uma configuração positiva. Esta configuração se molda a partir da
medicalização de psicotrópicos, por exemplo, sob o pretexto de levar o bem-estar ao
Eu em sofrimento psíquico. Não é necessário mais um processo para se apurar as
questões fundamentais que se apresentam ao médico, e sim, tornar o serviço rápido,
– um fast food psiquiátrico.
Voltando para a psicologia, destaco Carl Rogers, fundador da abordagem
centrada na pessoa, e seu conceito de autorrealização como força motivadora para
que o self possa se realizar. Esta realização está atrelada ao que Rogers postulou
como o desenvolvimento de uma personalidade que se desdobrou no mundo pela
autorrealização. Destaco com isso, o termo autorrealização como sendo oxímoro. Por
autorrealização compreende-se um Eu, destinado a exercer cada vez mais uma
tendência atualizante frente ao mundo. No entanto, para a contemporaneidade esta
compreensão tende a ser vista como sendo parte do projeto neoliberal. Ou seja, este
Eu coberto de si-mesmo é um receptáculo que deve abrir-se o máximo possível,
chegando ao esgotamento.
A constituição da personalidade defendida por Rogers por meio da realização,
por sua vez, agora é colocada sob o rol do hiper-desempenho. Não se trata mais de
uma realização existencial, mas sim de elevar ainda mais esse Eu desprovido de
vivacidade. Vivacidade que a contemporaneidade tem extinguido, onde o tempo cede
lugar a rapidez, um doping que instaura na existência um paradoxo interessante, o
desempenho sem desempenho. A fadiga é o contraste da autorrealização.
Se a autorregulação organísmica defendida por Kurt Goldstein, compreende
um olhar holístico para o sintoma, em um sistema que tende a regular a estrutura
orgânica do sujeito. Isso não acontece com a autorrealização, agora ela passou a ser
uma estrutura necessária não mais para viver, e sim, para sobreviver.
Por fim, a autorrealização traz consigo a fantasia de se empreender para ter,
tendo, poder ser, podendo ser, enfartando. Um enfarto neuronal, como destaca
Byung-Chul Han, pelo excesso de positividade. O combate exercido pelo sistema
imunológico ao negativo viral, transformou-se em um consumível. Por consumível, me
refiro a esta autoprodução, que não se finda no esgotamento do sujeito, mas encontra
possibilidade de existência, na facilidade da mundaneidade, por exemplo, com seus
aplicativos cada vez mais sugestivos para se passar horas acessando-os.
Destarte, destaco, uma vez mais, o paradoxo em que vivemos atualmente. A
ligação do poder com o dever encontra no sujeito a possibilidade de faze-lo senhor e
escravo de si mesmo, como aponta Byung-Chul Han, vítima e agressor, prisioneiro e
vigia. A busca pelo sucesso o faz viver no imperativo do ter, não mais sendo, torna-se
obeso em si mesmo, na sua tentativa de se autorrealizar.
A psicologia fenomenológica-hermenêutica em sua conjuntura estética e ética
não toma como modelo neoliberal, uma produção de si. No entanto, uma
compreensão errônea acerca de Martin Heidegger em sua obra magna, Ser e Tempo,
pode ser levada em consideração. Ao trazer o ser-aí, como aquele aberto a
possibilidade de se desdobrar em potência, falsamente pode-se ter um entendimento
de um modelo neoliberal, seria, portanto o ser-aí neoliberal. Tal constatação de um
ser neoliberal, não se julga de todo errado, pois é o horizonte na qual este ser-aí se
encontra.
A ontologia heideggeriana eleva a questão não de uma produção de si mesmo,
como propõe o neoliberalismo, e sim como uma necessidade do “aí” aberto ao mundo.
Isso significa que o ser em que Heidegger postulou, é fundamentalmente imbuído, em
um mundo historicamente constituído para ele. Deste modo, a fenomenologia-
hermenêutica de Heidegger, não traz consigo características de levar o ser a um lugar
neoliberal, mas compreendê-lo a partir desse contexto. Portanto, a fenomenologia-
hermenêutica se encontra dissonante com o conceito de autorrealização, o si mesmo,
dá lugar ao ser-no-mundo, este que por sua vez não é sujeito nem objeto. Ser é
mundo, mundo é ser.

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