Para iniciar este trabalho farei uma diferenciação apontando a estruturação do
modelo neoliberal sobre o conceito de autorrealização. Para tanto, irei discorrer a partir do pensamento de Byung-Chul Han as implicações geradas na existência como um processo de esgotamento na contemporaneidade. Por fim, abordarei o fenômeno da disciplina de si mesmo como um movimento estruturado a partir de um modelo neoliberal, trazendo a fenomenologia-hermenêutica como aporte dissonante do atual modelo organizacional da sociedade. Fundamentalmente, Byung-Chul Han, um filósofo coreano, radicado na Alemanha, diz que a sociedade da pós-modernidade é a sociedade do cansaço, mas o que ele quer dizer com isso? A existência do sujeito atravessada na contemporaneidade, é essencialmente uma existência do positivo, o que ele chamou de “inferno do igual”. Para Han, o igual é a produção de si mesmo no mundo, onde o projeto dinâmico dos tempos atuais é uma procura incessante por bem-estar – seja ele material, funcional, relacional, etc. – mas principalmente material. Byung-Chul Han ainda mostra que nos tempos atuais a liberdade não passa de uma fantasia engendrada pelo mecanismo máximo que regula a existência em uma fórmula puramente do desempenho, – a autorrealização. A autorrealização aqui é resultado de uma cultura do consumo, mas não meramente o consumo do negativo, mas o consumo da fantasia. Uma espécie de dialética do eu, onde para ser “livre” eu tenho que me prender no consumo desenfreado a procura de meu bem-estar. Este bem-estar que nos mostra Han, é uma nova deusa, que se apossa da economia, das relações, do trabalho, do lazer e até mesmo da mística religiosa. As divindades perdem espaço para aquela que é a mais cultuada de todas, a saúde! É no “preciso estar bem comigo mesmo”, que ela surge. Atualmente a chamamos de saúde, e alguns de “narcisismo”. Constato com isso uma erosão do outro em uma tentativa desenfreada de se autorrealizar. O tempo é um fator determinante na produção de si, pois como constata Michel Maffesoli, a tríade temporal do passado, do presente e do futuro, acompanha a civilização desde seus primórdios. A cultuação do futuro, por sua vez, é uma característica da modernidade. Isso significa que hoje nos produzimos em uma constância do ter além de mim mesmo. Este ter além de mim mesmo, é o projeto neoliberal fundamental, pois dessa forma eu não posso parar, não posso descansar, não preciso do outro, somente deste Eu. “Eu” que é engordurado pela dinâmica daquilo que é nada mais do que uma mutação do capitalismo. Neoliberalismo. O inútil já não tem espaço, é preciso produzir o tempo inteiro. No livro de gêneses, a estória aponta que Deus ao criar o mundo descansou no sétimo dia, este dia, por sua vez, é o que chamarei, com a ajuda de Byung-Chul Han, de dia do inútil. O inútil é o negativo, aquilo que me joga em direção ao outro, no entanto, tudo é levado a condição de objeto de consumo, inclusive o outro. Seria o outro a necessidade fundamental dos nossos tempos? Heidegger em sua fenomenologia hermenêutica, ao mostrar o Da-sein (ser-aí) como a condição ontológica fundamental de sermos, traz também o caráter de abertura ao mundo. No entanto, essa abertura para o mundo, designada por seu “aí”, é onde o ser se desdobra na sua possibilidade mundana, isto é, em seu horizonte historicamente constituído. Ao se desdobrar, o ser não se fragmenta em partes do mundo, ele é fundamentalmente parte integrada de um todo mundano. Ao apontar isso, venho mais uma vez trazer à tona o neoliberalismo como modo de ser construído, não só enquanto um fenômeno social, cultural, econômico e científico. Mas trago com isso, o sujeito que em sua facticidade se instaurou na dinâmica do ser si-mesmo. Neoliberalismo como modo de ser. O neoliberalismo encontrando a existência a dinamiza para seu próprio fundamento. Essa dinâmica equivale não apenas a conjuntura em que estamos inseridos, mas também aquilo que Heidegger chamou de tonalidade afetiva, o ser sempre afinado a algo. Afinação refere-se ao estado-de-humor que nos encontramos o tempo inteiro. Com isso, podemos pensar em como a afinação se dá hoje em dia. Seria a afinação da contemporaneidade a absoluta configuração do Eu em si-mesmo? Por si-mesmo eu chamo a significação que o Eu estabelece com seus pares. É necessário que o tempo inteiro este Eu esteja afinado a se reconhecer no outro. De modo tal, que o outro torna-se sombra deste Eu. Tudo é consumível, inclusive a própria vida. Quando Byung-Chul Han ao citar a amorosidade em Aristóteles, destacada por atopos, o sem-lugar, como aquele que é averso a linguagem, que causa tremores e é insensível, no qual não é passível de uma definição correspondente ao igual, – consta que tal desaparecimento deste outro, é fundamentalmente, o desaparecimento da alteridade atópica. Aqui a noção de que o “céu é o limite” é a projeção do esquecimento da alteridade em função do verbo modal “poder”, como aponta Han, onde a retração do diferente cede espaço para o consumismo. Fatalísticamente, a sociedade disciplinar de Foucault agora cede lugar para a sociedade do desempenho, não sendo mais necessário o outro negativo sobre o Eu, agora é o Eu por si mesmo, engendrando a coerção paradoxal do eu posso. Como contraproposta ao eu posso, existe o não-poder-poder, – o fracasso. É no não-poder-poder que existe a possibilidade do outro aparecer, pois é na interpelação deste, que me causa a frustração do sentir, do viver e de ser. Deste modo, a existência não mais calcificada no Eu, do bem-estar absoluto, pode permitir a entrada da negatividade do outro. Cabe ressaltar, portanto, que o não-poder-poder não se trata aqui meramente de um outro, mas diz respeito as afetações mundanas. E por mundana é preciso compreender a estrutura que rege o neoliberalismo em suas facetas na existência. A mundaneidade tomada por aquilo que Heidegger chamou de existenciais, trata-se do espaço e do tempo. Por espaço digo o meio, este tomado por costumes, economia, família, etc. Por tempo me refiro a conjuntura que a civilização ocidental organizou suas práticas antigas, com ressonâncias na contemporaneidade, a exemplo disso, a cultura. Portanto, o caminho que segue a pós-modernidade em seu caráter espaço-temporal, é fruto do neoliberalismo como já fora dito, no entanto, existe um outro componente, que julgo ser motivo de destaque daqui por diante, as ciências psicológicas e médicas. Com o advento da ciência em seu status quo, a vida se tornou uma mera desordem que precisa urgentemente ser redirecionada ad infinitum, de modo que ela se positive o máximo possível. Aponto com isso, uma violência do igual, onde a pacificidade da sociedade é antes de tudo um vírus que não é saturante, mas exaustivo. As psicologias conhecidas como “baseada em evidências” sabem muito bem do que se trata o movimento positivo. Ao analisarmos, por exemplo, a psicologia cognitiva-comportamental, facilmente percebemos uma tendência a enxergar o outro como alguém de pensamento disfuncional. Ou seja, se todos tem um pensamento disfuncional, preciso levar bem-estar. Esse bem-estar tem consigo duas características fundamentais, – primeira, necessidade contemporânea do poder está bem comigo mesmo; segunda, necessidade de dever está bem comigo mesmo. Seria a psicologia atual parte do esquema neoliberal? A medicina, por sua vez, levando a vida ao puro naturalismo, tem consigo ressonâncias das práticas do século XVII. Práticas que tomam o sujeito como mero objeto de estudo. O quadro do pintor holandês Rembrandt, “A lição de anatomia do Dr. Tulp”, retrata muito bem a prática da medicina de sua época, onde ao redor do cadáver existem entusiastas e estudiosos, afim de ver a dissecação realizada pelo Dr. Tulp. Mas não é isso que busco destacar aqui, e sim as implicações de uma medicina alinhada ao neoliberalismo. A medicina, em especial, a psiquiatria, ao tomar o homem a partir da patologia, instaura nele uma configuração positiva. Esta configuração se molda a partir da medicalização de psicotrópicos, por exemplo, sob o pretexto de levar o bem-estar ao Eu em sofrimento psíquico. Não é necessário mais um processo para se apurar as questões fundamentais que se apresentam ao médico, e sim, tornar o serviço rápido, – um fast food psiquiátrico. Voltando para a psicologia, destaco Carl Rogers, fundador da abordagem centrada na pessoa, e seu conceito de autorrealização como força motivadora para que o self possa se realizar. Esta realização está atrelada ao que Rogers postulou como o desenvolvimento de uma personalidade que se desdobrou no mundo pela autorrealização. Destaco com isso, o termo autorrealização como sendo oxímoro. Por autorrealização compreende-se um Eu, destinado a exercer cada vez mais uma tendência atualizante frente ao mundo. No entanto, para a contemporaneidade esta compreensão tende a ser vista como sendo parte do projeto neoliberal. Ou seja, este Eu coberto de si-mesmo é um receptáculo que deve abrir-se o máximo possível, chegando ao esgotamento. A constituição da personalidade defendida por Rogers por meio da realização, por sua vez, agora é colocada sob o rol do hiper-desempenho. Não se trata mais de uma realização existencial, mas sim de elevar ainda mais esse Eu desprovido de vivacidade. Vivacidade que a contemporaneidade tem extinguido, onde o tempo cede lugar a rapidez, um doping que instaura na existência um paradoxo interessante, o desempenho sem desempenho. A fadiga é o contraste da autorrealização. Se a autorregulação organísmica defendida por Kurt Goldstein, compreende um olhar holístico para o sintoma, em um sistema que tende a regular a estrutura orgânica do sujeito. Isso não acontece com a autorrealização, agora ela passou a ser uma estrutura necessária não mais para viver, e sim, para sobreviver. Por fim, a autorrealização traz consigo a fantasia de se empreender para ter, tendo, poder ser, podendo ser, enfartando. Um enfarto neuronal, como destaca Byung-Chul Han, pelo excesso de positividade. O combate exercido pelo sistema imunológico ao negativo viral, transformou-se em um consumível. Por consumível, me refiro a esta autoprodução, que não se finda no esgotamento do sujeito, mas encontra possibilidade de existência, na facilidade da mundaneidade, por exemplo, com seus aplicativos cada vez mais sugestivos para se passar horas acessando-os. Destarte, destaco, uma vez mais, o paradoxo em que vivemos atualmente. A ligação do poder com o dever encontra no sujeito a possibilidade de faze-lo senhor e escravo de si mesmo, como aponta Byung-Chul Han, vítima e agressor, prisioneiro e vigia. A busca pelo sucesso o faz viver no imperativo do ter, não mais sendo, torna-se obeso em si mesmo, na sua tentativa de se autorrealizar. A psicologia fenomenológica-hermenêutica em sua conjuntura estética e ética não toma como modelo neoliberal, uma produção de si. No entanto, uma compreensão errônea acerca de Martin Heidegger em sua obra magna, Ser e Tempo, pode ser levada em consideração. Ao trazer o ser-aí, como aquele aberto a possibilidade de se desdobrar em potência, falsamente pode-se ter um entendimento de um modelo neoliberal, seria, portanto o ser-aí neoliberal. Tal constatação de um ser neoliberal, não se julga de todo errado, pois é o horizonte na qual este ser-aí se encontra. A ontologia heideggeriana eleva a questão não de uma produção de si mesmo, como propõe o neoliberalismo, e sim como uma necessidade do “aí” aberto ao mundo. Isso significa que o ser em que Heidegger postulou, é fundamentalmente imbuído, em um mundo historicamente constituído para ele. Deste modo, a fenomenologia- hermenêutica de Heidegger, não traz consigo características de levar o ser a um lugar neoliberal, mas compreendê-lo a partir desse contexto. Portanto, a fenomenologia- hermenêutica se encontra dissonante com o conceito de autorrealização, o si mesmo, dá lugar ao ser-no-mundo, este que por sua vez não é sujeito nem objeto. Ser é mundo, mundo é ser.