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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i1.

28914

Um Olhar Fenomenológico sobre as Crises Existenciais na


Contemporaneidade
[A Phenomenological Outlook on the Existential Crisis in Contemporaneity]

Rogério Holanda da Silva* ; Ricardo Décio**

Resumo: Este trabalho consiste em uma reflexão fenomenológica sobre a indigência do


nosso tempo. Traz, na verdade, uma outra compreensão acerca dos malefícios que o
atual momento tem causado ao ser humano ao imprimir um modelo de vida oferecido
desde a modernidade e que implicou em uma série de inquietações, criando novas
patologias. Trata-se de um movimento histórico, conhecido por Niilismo, que nos deu
uma “nova morada”, a qual, paradoxalmente, se mostra como não morada, um não-lugar,
ou seja, um lugar estranho. Nesse lugar, residem desassossegos vigentes, como cansaço,
stress, ansiedade, tédio, melancolia, depressão etc. Todavia, essas crises existenciais
são interpretadas pelas ciências naturais como algo exclusivamente inerente ao corpo
biológico dado. Essa interpretação é amplamente questionada aqui ao compreender que
tais fenômenos só serão devidamente compreendidos mediante a analítica existencial do
ser-aí humano, haja vista esse ente constituir-se como um ser-no-mundo que tem como
horizonte a temporalidade.
Palavras-chave: Niilismo. Stress. Ansiedade. Depressão. Ser-aí.

Abstract: This article consists of a phenomenological refection about the indigence of


our time. It discusses another understanding of the harm that the current moment has
been causing to the human being, when instilling a life model offered since modernity,
that involves several concerns, creating new pathologies. It is a historical movement,
known as Nihilism, that gave us a “new dwelling place”, one that, paradoxically, shows
itself as a non-dwelling-place, a non-place, namely, a strange place. Existing restlessness
such as tiredness, stress, anxiety, boredom, melancholy, depression, etc., are present at
this place. However, these existencial crisis are interpreted by the natural sciences as
something that is solely inherent to the biological body. This interpretation is widely
questioned here, since we understand that these phenomena will only be properly
understood through the existential analytic of the human existence, since this entity is
constituted as a being which temporality is the horizon.
Keywords: Nihilism. Stress. Anxiety. Depression. Existence.

* Atuou como professor do departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – DFI/UERN. Formado
em Filosofia, Geografia e Mestre em Ciências Sociais e Humanas. Pesquisador na área da filosofia contemporânea com ênfase na
fenomenologia e existencialismo. E-mail: holandarogerio@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002- 8253-4967.
** Bacharel em Psicologia pela Universidade Potiguar – UNP. Integrante do Núcleo de Estudos, Ensino e Investigações em Filo-
sofia – NEFIL/UERN. Pesquisador da abordagem Daseinsanálise: de base hermenêutica, fenomenológica e existencial. E-mail: ri-
cardo.decio01@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9426-348X.

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Introdução (Dasein)1 . Isto é, um ente jogado no


mundo totalmente aberto para o poder-
À luz do pensamento ontológico e fe- ser mediante o tempo2 no qual se en-
nomenológico do filósofo alemão Mar- contra imerso. De acordo com essa
tin Heidegger (1889-1976), dialogando visão moderna fisiológica, o ser hu-
com Nietzsche, Byung-Chul Han, Cio- mano é pensado a-historicamente e a-
ran e outros autores, buscamos compre- temporalmente, por consequência, sua
ender as crises existenciais ou o mal- correlação com o mundo vivido é com-
estar da contemporaneidade, consti- pletamente esquecida, por pensar o ser
tuído por alguns fenômenos, entre eles: humano como um sujeito (substância)
cansaço, stress, burnout, ansiedade, de- cerebral, separado do mundo.
pressão, vazio existencial. Nosso desejo Diante do exposto, é necessário fa-
é ir além da explicação superficial das zermos um exercício de interpretação
ciências naturais positivas (neurológi- de caráter fenomenológico atentando
cas), uma vez que, no âmbito dessas para aquilo que se mostra, em nosso
ciências, o ser humano é visto apenas tempo, contido nas vivências intencio-
como uma composição químico-física, nais de cada afinação enquanto expe-
isto é, uma substância, um ente vivo riência. Tais fenômenos, ou tonalida-
simplesmente dado e, por isso, deten- des afetivas, não são, em suma, uma
tor de determinadas propriedades ina- “coisa”. Tampouco podemos dizer suas
tas biológicas. Conforme essas ciências, “causas” do ponto de vista químico-
acredita-se que uma simples disfunção físico, justamente pelo fato de a exis-
hormonal ou uma “má” formação neu- tência do ser humano não ter um ponto
rológica seria parte das causas desses de início nem de chegada, nem um pro-
fenômenos que levariam ao sofrimento cesso a ser racionalmente organizado,
humano. mas sim travessia, afetação.
Essa é uma compreensão cogitada No entanto, é com base na analítica
pelo pensamento moderno e se cons- do ser-aí, isto é, do ente que atravessa
titui um entendimento superficial, pois a facticidade de tudo aquilo que é, de
perde de vista o sentido existencial do tudo que é dado onticamente, e no diá-
ser humano. Trata-se de uma visão logo com outros autores é que busca-
que não concebe o mesmo a partir de mos entender os fenômenos que veem
sua condição fática, ou seja, do ser-aí conduzindo o ser humano às crises exis-

1 Nesse artigo, o termo ser-aí, ou presença, corresponde à tradução do termo alemão Dasein, isto é, a essência do ser humano numa
perspectiva existencial. Nessa perspectiva, o ser-aí não é simplesmente um ente que se encontra entre outros entes. Ele se distingue
dos demais entes pelo seu privilégio ôntico, pelo fato “de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser” (HEIDEGGER,
2015, p. 48).
2 O tempo aqui não deve ser interpretado num sentido cronológico (hora, dia, semana, mês ou ano), mas como a própria tempora-
lidade, isto é, o horizonte por onde o ser-aí estrai sua existência, ou seja, sua compreensão de ser.

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tenciais. Acreditamos que tais crises nosso tempo. Na ótica da fenomenolo-


decorrem, de certa forma, do “como”, gia e hermenêutica heideggeriana, é o
ou melhor, do modo de ser existencial responsável pelas perturbações e pato-
do ser humano proporcionado por um logias para a vida no seu contorno geral
tempo que lhe é estranho. Este é um e em especial pela retirada do sossego
tempo indigente, um tempo que não do ser humano nesse mundo dito pós-
é propício para a vida confortável, no moderno.
caso, o tempo atual, o grande causador Fernando Pessoa (1999) faz uma des-
das crises existenciais na contempora- crição, de certa forma, trágica da mo-
neidade. dernidade. Ele fala a respeito da in-
digência em que nos encontramos em
meio ao vazio deixado pelo Niilismo,
que nos colocou na berlinda, na estran-
1. A indigência do nosso tempo: o Nii- geridade, provindo da falta de sentido
lismo e da sedimentação do mundo técnico-
científico. O poeta nos mostra como fi-
O ser humano, na perspectiva heideg- camos afetados em meio à era da funci-
geriana, só será devidamente compre- onalidade maquinal, na qual se estabe-
endido se for analisado mediante o leceu uma hiperexcitação, corroendo as
tempo ou a temporalidade em que se mais densas experiências e estruturas
encontra inserido, haja vista este tempo ontológicas, sedimentando uma pés-
se incumbir de fundamentar seu modo sima morada para nós habitarmos. Essa
de ser. Como ente temporal o ser hu- modernidade configurou um mundo
mano, enquanto ser-aí, é aberto para o estranho ao nosso ser, de modo que
ser, ou seja, “em seu ser, isto é, sendo, “nascemos já em plena angústia me-
este ente se relaciona com seu próprio tafisica, em plena angústia moral, em
ser” (HEIDEGGER, 2015, p, 85). Po- pleno desassossego político” (PESSOA,
rém, sua relação direta com o seu pró- 1999, p. 187).
prio ser, mostra que este ente não é em A partir da compreensão do Nii-
si mesmo, mas sempre se define como lismo, como a perda de grande parte
um vir-a-ser. Como um vir-a-ser ele se dos valores supremos e essenciais à vida
torna apropriador das condições impu- humana, é que reivindicamos como res-
tadas pelo tempo, mesmo aquelas que ponsável pelas crises existenciais hu-
o aflige e traz sofrimento. Uma des- manas que vem definhando o ser hu-
sas condições é o Niilismo3 , compre- mano na contemporaneidade. Por-
endido aqui como uma indigência do

3 “Traduzido literalmente, niilismo significa algo assim como um nadismo, uma fome de nada, uma redução de tudo a nada”
(CASANOVA, 2013, p. 175).

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tanto, o Niilismo foi e “é” o aconteci- uma vontade de estar por toda parte
mento apropriador que põe atmosferas, em casa. No desaparecimento dela, o
abrindo o espaço para uma nova forma homem moderno se vê desatado de seu
de existir do ser humano, onde se mos- sol. Sem pátria não existe mais “uma”
tra a presença da experiência do nada. direção universal, mas “muitas” dire-
Nesse sentido, o Niilismo, enquanto ções. No limite, essas direções são su-
movimento instaurador de quebra de perficiais, assim todos os lados apon-
valores e da constituição de novos, tam para uma desconexão, surgindo um
grande enfado e um caos perpétuo toma
Aponta diretamente para a sus- conta da convivência. Como bálsamo
pensão inicial de toda transcen- para isso tudo ocorre a imersão em mo-
dência, de toda imanência, de dos automáticos, técnicos, destituídos
toda causa, de toda finalidade, de significados.
de todo ser, de toda unidade, de Nessa deterioração, o ser humano
toda identidade, de toda subs- contemporâneo se mostra suspenso em
tância e de todo fundamento da uma precariedade ontológica (a perda
totalidade. (CASANOVA, 2013, do ser) que alterou grandemente a per-
p. 194). cepção no mundo pelos determinados
modos de proceder, decorrentes do mar
de possibilidades que viabilizam certos
De outro modo, pode se dizer que sofrimentos e tonalidades afetivas. Ora,
o advento do Niilismo trouxe a elimi- se toda essencialidade se volatilizou, o
nação de categorias metafísicas, como que está em vigência em todo o mundo
por exemplo: a crença na verdade ab- é o “devir”, a mutabilidade, a plura-
soluta, que sempre sustentou nossa tra- lidade. Desse modo, o ser humano se
dição. “A existência do homem ociden- reduz à mera constituição das relações,
tal como um todo foi, desde o princí- de modo que “sua identidade, por fim,
pio, erigida a partir de uma orienta- não é se não uma ilusão, o resultado
ção pelo mundo verdadeiro, pela iden- de um processo historicamente consti-
tidade, pela essência, pela forma, pelo tuído e sedimentado de simplificação. ”
repouso, pelo eterno.” (CASANOVA, (CASANOVA, 2013, p. 194), o que não
2013, p. 190). Isso significa que se não diz respeito ao seu ser mais ontológico.
podemos operar mais com tais catego- A secularização e o mundo da técnica
rias, a existência se torna um problema, moderna alteraram, portanto, nossa
mostrando-se completamente sem sen- forma de pensar e se comportar, de ser
tido, transitória. e estar no mundo, de modo que nossa
A metafísica, segundo Casanova imaginação e fantasia esvaneceram por
(2017), parafraseando o poeta alemão conta de uma realidade efetiva que se
Novalis, é uma nostalgia da terra natal,

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tornou soberana.Como disse Nietzsche do novo, do corriqueiro, do ilusório, ou


(2012, p. 149), “[...] a iluminação e o seja, das imputações oferecias por esse
colorido das coisas mudaram! Já não tempo.
compreendemos totalmente como os Essa compreensão mostra o quão
antigos experimentavam o que era mais a embriaguez moderna tem aniqui-
frequente e imediato – o dia e a vigília.” lado a vida nos mais variados senti-
Passamos pela vida como estrangeiros, dos, levando-nos a uma desconexão
sem nortes, em uma corrida sem início com a própria existência mais autên-
e nem chegada, ou seja, sem nos preo- tica. Sendo que a principal causa é, jus-
cuparmos, necessariamente, com nosso tamente, o excesso de solicitações, isto
modo de ser nesse mundo. Cada vez é, a quantidade de tarefas e objetivos a
mais nos aproximamos e nos relacio- serem realizadas. Essa é a característica
namos com os entes a nossa volta, ao de um modo de ser não vivenciado em
mesmo instante em que nos distanci- outras épocas.
amos de nós mesmos. Esse distanci- Qual a importância, então, de com-
amento levou a deformação da nossa preendermos nosso tempo? Olhando
própria imagem e, como consequência, atentos para o envio do tempo, desper-
a criação de uma nova criatura. tamos para aquilo que é próprio dele:
Uma das principais características a indigência; os discursos de verdade e
do atual momento é a velocidade das normatividade que o perpassam; a pre-
transformações sobre a vida das pes- dominância de certos dogmas identitá-
soas. A frenesi dessa pressa por mu- rios vigentes; o vigorar da funcionali-
dança, excluem-se diretamente as ex- dade; o modelo mecanicista-biológico;
periências mais densas e ontológicas4 . o pensamento calculador, quantificador
Comprometendo a qualidade de vida e dominador da técnica; a opressão de
do indivíduo ao conduzir-lhe ao desas- certas sistematizações. Tudo isso são
sossego. Nessa perspectiva, o ser hu- condicionantes da vida humana criada
mano não se reconhece mais diante si, e pelo nosso tempo. De acordo com Hei-
como disse Nietzsche (2012, p. 150): degger (2008, p. 02): “[...] a vida hu-
“Correm como ébrios pela vida e de mana é orientada, em sua tarefa mais
quando em quando caem por uma es- cotidiana, por via do tempo. A vida hu-
cada abaixo.” Isto é, imersos nessa vida mana encerra em si mesma numa regu-
descompassada, os seres humanos não lamentação temporal.” Nesse sentido, o
têm uma visão clara do que estão vi- tempo deve ser o horizonte primordial
vendo. O sentido pelo prazer de vi- para se compreender os fenômenos que
ver, cada vez mais, se integra a busca veem acometendo a vida na contempo-

4 Experiências que falam de sua essência, isto é, de sua existência.

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raneidade. paradoxo do tempo vivido, a presença


Em virtude dessa condição de ser da inquietude na calma e da calma da
temporal, a contemplação, a tran- inquietude.” Portanto, são fenômenos
quilidade e o sossego que o ser hu- típicos da sociedade atual.
mano tinha por um período conhecido
como pré-moderno, esvaiu-se por conta
da fragmentação das particularidades 2. Cansaço, Stress, Ansiedade: desas-
possibilitadas pelo movimento cientí- sossegos do ser-com
fico operacional da modernidade, “[...]
transformando o acontecimento psicoló- Tudo que se passa no onde vivemos é em
gico no que vou chamar uma experiên- nós que se passa. Tudo que cessa no que
cia ontológica: o encontro com a condi- vemos é em nós que cessa (PESSOA,
ção humana no seu caráter temporal.” 2011, p. 36).
(BORGES-DUARTE, 2018, p. 215). En-
tendemos, pois, que, em se tratando A vida moderna nos trouxe um ritmo
dos fenômenos psicopatológicos, foi o frenético de atuação no mundo, tra-
tempo que alterou nosso ser-corporal, zendo excessivas solicitações, na mai-
uma vez que nosso corpo é o primeiro oria das vezes desnecessárias para o
a sentir qualquer alteração, por estar exercício do bem-estar do ser humano.
sempre em jogo. Pressionados pelos modos de ser dos
Essa condição imposta pela moder- quais não damos conta, sobrecarrega-
nidade nos deixou amplamente limita- mos nossa existência de coisas fúteis e
dos e entregues às condições delibera- degradantes.
das pelas nossas relações diretas com os Enredada na perspectiva da positi-
entes intramundanos5 , tentando buscar vidade e na ideia de progresso, a soci-
um conforto e alívio para uma melhor edade contemporânea presencia o ser
existência, mas de todo modo frágil, su- humano cansado e exausto pela exa-
perficial, efêmero, não abarcando a to- cerbação de tarefas à serem cumpridas
talidade existencial. Por isso, ficamos no dia-dia, de tal forma que nos en-
suscetíveis a tais situações que possi- contramos, na maioria das vezes, ex-
bilitam a eclosão de certos fenômenos tenuados e fadados a perecer prema-
nocivos à saúde, tais como: cansaço, turamente. Como disse Borges-Duarte
stress, ansiedade e outros. De acordo (2010, p. 02): “[...] na modernidade a
com Borges-Duarte (2018, p. 233): “[...] vida mesma viu-se capturada no inte-
em todos estes fenômenos assistimos ao rior de uma espiral de consequências
incontroláveis e imprevisíveis.”

5 Entes intramundanos são os entes simplesmente dados no mundo, como cadeira, mesa, porta, etc. São os entes que, na manuali-
dade, veem ao encontro do ser humano.

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É nesse ensejo que o filósofo Byung- ao esgotamento social pelas performan-


Chull Han (2017), em seu ensaio ces em grande escala, manifestando o
“Sociedade do cansaço”, mostra minu- adoecimento existencial em massa que
ciosamente o nosso tempo. Sua ideia faz romper a casca dos sentidos cotidi-
base é que vivemos em uma sociedade anos que nos tranquilizam dando lu-
constituída por uma positividade muito gar a um abatimento que corrói brutal-
exacerbada, que traz em si o ideal de mente todo nosso ser. Por consequên-
sucesso ou realização pessoal ao ex- cia, somos requisitados e interpelados
tremo. Nessa perspectiva, tornamo- por uma avalanche de solicitações (pro-
nos patrões de nós mesmos, mesmo não gresso, status, poder, riqueza material,
sendo patrões. No entanto, o autor está estudos, trabalhos etc.) que nos desnor-
mostrando que o modo de exploração teiam. Por serem muitas solicitações,
ganhou uma nova forma, a saber, da não conseguimos atender a todas, o que
auto-exploração, isto é, o indivíduo, na imediatamente nos causa certa inqui-
busca de atingir certos padrões impos- etação e somos diretamente afetados,
tos, se sobrecarrega de atividades e de- chegando ao stress, ansiedade, depres-
sejos que não são próprios dele, mas são, suicídio e outras patologias.
de um modo de ser típico da sociedade Nos “Seminários de Zollikon” (2017),
moderna. o filósofo alemão Martin Heidegger nos
Ademais, ao sermos compelidos a nos mostra o fenômeno do stress saindo da
moldarmos constantemente, não temos visão químico-física da ciência neuroló-
espaço nem tempo para colocar a posi- gica. Ele aponta para nossa relação-com
ção antagônica, isto é, a negatividade da o ser-no-mundo (Dasein) marcada por
vida como o lado oposto à exacerbada uma aceleração incessante do mundo
positividade. Nesse modo de vida, o da técnica, que nos convida a participar
negativo é inaceitável, porém, a sua não ininterruptamente de tarefas cada vez
aceitação torna a vida um preço muito mais exigentes em nossa convivência.
alto. Não pensamos esse antagonismo. São solicitações excessivas que nos in-
Passamos, então, a ser uma sociedade terpelam abruptamente, conduzindo-
extenuante (exaustiva, fadigosa, enfa- nos a estados patológicos quando não
donha), por ser positiva demais, mani- conseguimos responder a determinados
festando uma posição não-dialética da chamados do mundo que veem ao nosso
vida, porque é uma sociedade que pre- encontro.
cisa do positivo sem que o negativo se
apresente.
Estresse significa solicitação.
Segundo Han (2017), a imersão de-
No caso solicitação excessiva.
senfreada nessa positividade se mos-
Em geral, a solicitação exige
tra extremamente cansativa, levando
em cada caso um correspon-

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der de alguma forma. A esse deixar claro que o problema não é ser
corresponder pertencem tam- solicitado, mas o excesso de solicita-
bém, como privações, o não ções, no qual leva a emancipação dos
corresponder e o não poder- fenômenos como stress e ansiedade, bur-
corresponder (HEIDEGGER, nout, entre outros.
2017, p. 154). Por sua vez, o ser humano, como ente
que se constitui mediante a existência,
sempre está aberto para as solicitações
Trata-se, portanto, de uma condição necessárias. A falta delas leva-nos a de-
muito difícil para o ser humano, uma sopressão que é, na verdade, uma forma
vez que temos de corresponder, cada de desassossego oposto ao da opressão.
vez mais, àquilo que está posto, isto é, E como isso acontece? Quando não
solicitado pelo mundo, respostando, a há o que corresponder, isto é, quando
cada instante, na nossa presença, aos não somos mais solicitados. Quando
chamados da vida para uma atuação paramos, sem alguma tarefa obrigató-
nesse mundo. Mas, o que vem acon- ria, esvaziamo-nos da interpelação e,
tecendo com o nosso tempo, além do por um momento, ficamos em outra
lançamento de miríade de chamados, forma de chamado: o vazio. O apo-
como bombardeio ininterrupto de obri- sentado mostra bem que a interpela-
gações que nos interpelam fortemente ção não desaparece quando estamos li-
(família, faculdade, filhos, trabalho, vres das obrigações profissionais, “[...]
amigos, etc.), é a internet. Esta, com ela permanece justamente, na verdade,
seus grupos sociais diversos, aumentou como obrigação vazia e não preenchida,
exponencialmente ainda mais as soli- e como tal torna-se uma solicitação in-
citações: diminuindo o tempo, aumen- comum e, pois, excessiva ‘depressão da
tando a pressa, aproximando e distan- desopressão.’” (HEIDEGGER, 2017, p.
ciando as pessoas ao mesmo instante. 156).
Um verdadeiro paradoxo. Borges-Duarte (2018), em seu artigo
É nesse prisma que a responsabili- “Sossego e desassossego: o paradoxo do
dade, isto é, a nossa forma de respos- tempo vivido”, mostra-nos que essa re-
tar aquilo que está posto advinda dos lação existencial marcada fortemente
chamados da existência, fica completa- pela efemeridade está perpassada pela
mente enfraquecida, uma vez que são ambiguidade de ser e não ser ao mesmo
muitos chamados no mesmo instante, tempo senhor de si nesse exercício.
acontecendo, com isso, o stress como Isso causa um fechamento das possi-
solicitação excessiva do ser, a qual nos bilidades, aparecendo diversas modifi-
leva a uma carência de respostas pelo cações como a ansiedade, advinda do
excesso, se configurando como uma ver- stress oriundo do excesso de solicita-
dadeira opressão.Todavia, é importante

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ções, tanto na tensão como no contrá- junta-se o sentimento de culpa,


rio. Nessa perspectiva, o stress é um a vergonha pela incapacidade
fenômeno que procede do mundo co- de corresponder ao seu papel,
tidiano, ou seja, da lida do ser humano a depressão. Aos aspectos or-
com os seus afazeres, na maioria das ve- gânicos e psicológicos do stress
zes, em excesso. É, portanto, um fenô- juntam-se o seu alcance sócio-
meno agravado pelo mundo contempo- cultural, numa civilização em
râneo onde exige que tudo seja muito que o tempo é ingrediente de
rápido e prático, porém essa rapidez um movimento de ritmo acele-
e essa praticidade, muitas vezes, vem rado e de pausas estratégicas,
em desacordo e com certa nocividade, não sendo tolerados os fracas-
pelo modo ou funcionalidade das exi- sados. É um movimento epo-
gências, seja ela profissional ou pessoal, cal. Na análise fenomenológica,
chegando a sacrificar a vida. o stress aparece como o fenô-
Portanto, vivemos em uma tempo- meno que expressa esta acele-
ralidade corrosiva, que desconexa o ser ração de um tempo sem tempo
humano de sua realidade mais próspera para hiatos e demoras, um con-
e mais equilibrada. Essa desconexão tínuo de momentos fragmen-
é requisitada pelo “tempo atomizado” tários, de urgências diferen-
que, com sua dinâmica, alterou nosso tes sucedendo-se ininterrup-
“aí”, levando-nos ao comportamento tamente sem estarem ligadas
estressado em todo convívio social e in- entre si (BORGES-DUARTE,
dividual. Nesse rol, surgem, gradati- 2018, p. 221).
vamente, os sinais de definhamento do
indivíduo. Primeiramente,
Contudo, isso só é possível mediante
o modo de ser na existência, algo ca-
Começa por ser o corpo a ma- ríssimo ao ser humano, justamente por
nifestar o cansaço, a exaustão; sobrepô-lo no confronto diário ao ter
a agitação, o frenesim; as pal- que responder às solicitações. Logo, a
pitações, a tensão alta. Junta- existência é o nosso ser mais ontológico
se-lhe a ansiedade, a falta de que tem o caráter de abertura [ekstática]
um sono descansado, a perda para compreensão do ser em geral, o
da memória, a incapacidade de que permite o ser humano distinguir-se
concentração. O rendimento dos outros entes ao ponto de se cons-
mental começa a claudicar, o tatar que “a pessoa – o ser humano
comportamento descontrola-se, – não é um ser substancial, nos mol-
a função deixa de ser cumprida des de uma coisa” (HEIDEGGER, 2015,
como devia. Ao esgotamento, p, 92). É por essa condição, portanto,

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que ficamos vulneráveis ao desassos- tido. Em outras palavras: en-


sego, pela insuficiência de nossas res- quanto espaço marcado pela
postas, ou por aquilo que esperam de abertura de uma totalidade
nós. Situação que nos leva à carência de conformativa, com os seus lu-
requisição que se alastra como veneno gares, regiões, proximidades e
na corporeidade do ser-aí humano. Na distancias surgindo exatamente
ânsia, “antecipamos o porvir”, adian- dessa abertura. (CASANOVA,
tando eventos, acontecimentos futuros 2017, p. 128).
que podem vir ou não, imaginando e
supondo sobre o que vai acontecer e
como será esse futuro que se faz pre- Quando somos afetados ficamos an-
sente, propiciado pela ansiedade, cor- siosos por querer a todo custo uma res-
roendo todo o nosso ser. posta imediata sobre o que está acon-
Além do stress, somos acometidos tecendo conosco. Com isso, imergimos
também pela ansiedade, que se mostra, em uma paranoia em achar que tal an-
segundo Casanova (2017), pelo próprio siedade é unicamente um problema do
ser-no-mundo, onde nos encontramos corpo fisiológico, uma doença que sub-
em relação com os outros (ser-com) e siste por si no âmbito psíquico cere-
com as coisas (ser-em), nas experiências bral, como atos isolados ou emoções
mundanas que corporamos. Perpassa- da consciência e que podem ser cura-
dos pela imediatidade, pela competiti- das com medicamentos. Contudo, não
vidade, pelo peso que a sociedade im- é bem assim, “[...] o anseio: quem an-
põe de sermos sempre vencedores, pela seia é o Dasein. O ansioso é o próprio
pressão das obrigações e pela frustação ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2017, p.
de “não respostar no presente” a solici- 181). Dito de outra forma, a ansiedade
tação excessiva, gerando, assim, o stress decorre do modo de ser existencial do
que desemboca na ansiedade. Essa con- ser humano, haja vista ser uma corres-
dição leva nosso corpo imediatamente a pondência de ser-no-mundo. Ser-estar-
ser o primeiro a sentir, alterando nosso ansioso é, portanto, uma condição pre-
comportamento. Isso porque o corpo é conizada pelo seu “aí”, isto é, pelo seu
um fenômeno que se constitui a partir ser fora de si, ou seja, o ser-aí (o Dasein).
de nosso ser-aí. Outrossim, a ansiedade, como ou-
tros fenômenos (vontade, querer, ten-
der, desejar, etc.), está diretamente li-
Ser um ser-aí não é ser um gada à estrutura ser-no-mundo, na re-
ponto do todo, mas ser a par- lação do campo correlativo intencional,
tir do predomínio primário do como frisou Husserl (2014). Destarte,
aí enquanto espaço existencial querer “algo”, desejar “algo”, está an-
significativo articulado por sen- sioso por “algo”, já se mostra imediata-

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mente à minha frente como uma con- e a busca de objetivos que se mostram,
dição decorrente do ser-no-mundo, isto na maioria das vezes, maléficos. Essa
é, do ente que está fora de si mesmo. dinâmica nos faz definhar e nos dobrar-
Esse fora, enquanto condição ontoló- mos à ansiedade por anteciparmos mui-
gica do ser humano, é um correlato da tas correspondências que se encontram
abertura do mesmo para-com-o-mundo no horizonte mundano.
e todos os entes que sempre já se en- Desse modo, como entes abertos [ek-
contram juntos. Portanto, essa forma sistere], precisamos entender o nosso
de ser é fundamento de significação tempo para poder compreender os mo-
para fenômenos como: querer “algo”, dos de nosso ser nesse mundo, o qual
buscar “algo”, desejar “algo”. Porém, nos lega uma gama de solicitações e em-
esses fenômenos não podem ser pensa- bargos que alterou nossa relação mais
dos como “pulsões”, tal como apontou própria. Enquanto abertura, podemos
Freud em sua teoria da libido, ou seja, ser, dessa ou de outra maneira, estando
sempre susceptíveis às transformações
Não se trata de um pro- do mundo e ao peso de suas significa-
cesso psíquico indefinido, de ções sedimentadas como correlato in-
um “mecanismo de pulsão tencional do existir.
mitológico” (Freud), que me Portanto, a vida nessa “correria” co-
impulsiona, mas sim de algo tidiana, típica deste tempo em que
determinado em nossa existên- “vivemos”, encontra-se carregada por
cia, isto é, de um poder-ser- um certo vazio que jamais será preen-
no-mundo determinado, pelo chido, justamente porque há uma frag-
qual nós decidimos, no sen- mentação nos objetivos e sensações as-
tido de nos termos aberto para piradas pelos indivíduos. Como con-
isto. Nós temos de concordar sequência, surgem: o tédio, a melan-
com este estar aberto, temos de colia e a depressão, isto é, as tonalida-
aceitá-lo (HEIDEGGER, 2017, des afetivas que afetam diretamente a
p. 180). saúde e o bem-estar do ser humano nos
mais diversos modos.

Essa compreensão sobre a ansiedade


nos leva a olhar para a facticidade em
que estamos imersos em nossa convi-
vência. Podemos ver, então, a correria
que se transformou nosso ser e estar no
mundo contemporâneo: as obrigações;
solicitações excessivas; falta de corres-
pondência como carência de requisição;

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3. Tonalidades afetivas tedium vitae, tos fundamentais da metafísica: mundo


depressão, melancolia – finitude – solidão”, Heidegger (2015)
atenta para “despertar” uma atmosfera
Elas são jeitos do ser-aí, e, com isto, do ser que apropria nosso tempo e nos faz en-
fora. Uma tonalidade afetiva é um jeito, tender o “tédio-profundo” e suas vari-
não apenas uma forma ou um padrão ações como a “tonalidade afetiva fun-
modal, mas um jeito no sentido de uma damental do nosso tempo”. O filósofo
melodia, que não paira sobre a assim enfatiza não um diagnóstico médico,
chamada presença subsistente própria do nem uma coisa simplesmente dada no
homem, mas que fornece para este ser o “homem” como uma propriedade que
tom, ou seja, que afina e determina o constatasse por mero arbítrio, onde se
modo e o como de seu ser. (HEIDEGGER, porta ou não. Na verdade, essa atmos-
2015, p. 88). fera já está sempre “aí”, como um en-
vio histórico que se abate sobre o ser
Em “Ser e Tempo”, o filosofo ale- humano. Aparentemente adormecida,
mão Martin Heidegger (2015) abriu apesar de velada pelas ocupações, se
uma grande chave de compreensão so- encontra em toda parte e em parte al-
bre o ser humano e sua condição exis- guma. Desse modo, para o filósofo:
tencial no século XX, com aquilo que
ele chamou de “tonalidades afetivas
fundamentais”. Sua interpretação se As tonalidades afetivas não são
contrapõe às determinações metafisi- manifestações paralelas, mas jus-
cas vigentes, até então, como disfun- tamente o que determina desde
ções da “[...] psique, mente, cérebro, o princípio a convivência. Tudo
consciência, subjetividade, e do corpo se dá como se uma tonali-
biológico”. (HEIDEGGER, 2015, p. 88). dade afetiva sempre estivesse
Contrariamente, tais tonalidades são at- aí, como uma atmosfera, na
mosferas afinadoras que se mostram em qual sempre e a cada vez imer-
certos fenômenos, como tédio, melan- gimos e desde a qual, então, se-
colia, medo, temor, tremor, ansiedade, riamos transpassados por uma
depressão, angustia, etc. Essas dispo- afinação (HEIDEGGER, 2015,
sições advêm do embate relacional de p. 87-88).
afetação que o ser-no-mundo absorve
em sua lida existencial, haja vista o ser Segundo Casanova (2015), o que o
humano ser um ente aberto para o ser. filósofo tem em mente com a palavra
Isso implica dizer que uma existência alemã para tonalidade afetiva [Stim-
não se constitui a partir de uma natu- mung] significa “astral”. Trata-se da-
reza determinada. quilo que produz um ânimo em um am-
Nesse horizonte, no livro “Os concei- biente, colocando todos em certa sinto-

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nia, como uma melodia que ressoa a to- nossa abertura, descerrando mundo,
dos nós no mundo. Essa tonalidade se ressoando nos espaços de acontecimen-
encontra já no “aí” como possibilidade tos de acordo com a quebra de senti-
da nossa lida cotidiana, bem como em dos de nossa relação, avisando-nos so-
nossos projetos de fuga do tédio. Não bre nossa negatividade. Dito de outro
deve, entretanto, ser confundida com modo, a nadidade, nossa forma exis-
um estado de humor, pois, desse modo, tencial mais própria de ser, revela a in-
se refere sempre a um matiz subjeti- determinação ontológica, convidando-
vista. O foco é atentar para a totalidade nos, assim, para uma volta sobre nossa
do acontecimento que contagia a todos existência quando permanecemos em
nós na contemporaneidade, a saber, o sua presença afetiva.
tédio-profundo como via régia de uma
experiência ontológica. No tédio verdadeiro não se
Esse tédio-profundo é, para Heideg- sente tédio apenas por algo de-
ger, a depressão, sendo considerada, de terminado, mas sente-se tédio
forma unânime, a doença “do século” e em geral. Isto é: tudo nos in-
não do homem. Essa afirmação está cor- terpela igualmente pouco. No
retíssima. O que não está apropriado é tédio [Langeweile], que quer di-
tratá-la tomando como fundamento a zer tempo longo, o tempo de-
forma neurobiológica ou mental, pois, sempenha um papel como a pa-
onde topologicamente, se encontra a lavra diz. Não há mais futuro
atmosfera, o “astral”? Nos nervos, no ou passado ou presente. No té-
cérebro, nos neurônios? Pergunta in- dio acontece a solicitação não
decifrável. Mas, a resposta é esta: em excessiva do ser (HEIDEGGER,
nenhuma parte das massas anatômicas. 2017, p. 208).
Por quê? Por justamente se tratar de um
modo de ser. E esse “estado” perpassa
todos os lugares, não só dentro de nós. Sobre essa afinação das tonalidades,
Logo, “[...] não é um fenômeno psicoló- a psiquiatria e a psicologia positivista,
gico, mas antes, o existencial a partir do ancoradas no discurso da neurociência,
qual é possível qualquer variação psí- tentam delegar a tarefa de existir para
quica dos afetos ou ‘estados de ânimo’” os neurotransmissores, para uma subje-
(SÁ, 2017, p. 56). tividade cerebral encapsulada. A exis-
Essa nomeação do tédio é uma forma tência humana e sua abertura de sen-
de englobar todas as outras modifi- tido são muito maiores que a mera ana-
cações dessa afinação: tristeza, me- tomia biológica que tenta objetivar o ser
lancolia, depressão e tédio profundo. do homem. Todavia, “[...] as teorias psi-
Constitui-se um astral que temporaliza cológicas surgem sob a pressão da tra-
dição, porque a tradição nada conhece

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além do caráter do ser da substanciali- 258).


dade e da objetivação e da coisificação.”
(HEIDEGGER, 2017. p. 214). Portanto,
essa tradição tem dificultado o avanço Assim como as compreensões de Ni-
da ciência, não permitindo conhecer os etzsche e Heidegger, Machado de Assis
fenômenos de modo mais essencial. (2001), em seu conto “Viver”, mostra,
Por via da fenomenologia percebe- de forma precisa, o advento dessa tona-
se que, o tédio, a partir da experiência lidade afetiva possibilitada pela moder-
do indivíduo neste mundo, constitui-se nidade. Enfatiza o peso do profundo
como a atmosfera morta da falta de vida fastio que a sociedade do século XIX es-
dos apartamentos, advinda da pobreza tava passando através do diálogo dos
das experiências, do vazio do nosso personagens míticos Prometeu e Ahas-
tempo, da laboriosidade incessante. Se- verus, este último um judeu errante que
gundo Nietzsche (2005), isso foi pos- ficou condenado a andar para sempre
sibilitado pela razão instrumental, que até o fim dos tempos por ter empurrado
tem como paradigma a vita activa do Cristo no dia de sua crucificação e não
homem, transformando-o em animal la- ter tido piedade dele. O escritor analisa
borans. Através dessa concepção, tanto a pressa e o fastio do tédio de acordo
o trabalho como o repouso passam a com o diálogo. Segue um trecho:
uma espécie debitária desse esquema,
acabando com a visão contemplativa de
Prometeu. – Vai, vai. Que
admiração, do espanto e da demora, por
pressa tens em acabar os teus
sempre se estar a fazer algo, como que
dias?
impelindo o tédio de se mostrar.
Ahasverus. – A pressa de um
homem que tem vivido milhei-
O que é o tédio? É o hábito do ros de anos. Sim, milheiros
trabalho mesmo, que se faz va- de anos. Homens que apenas
ler mais forte quanto mais esti- respiraram por dezenas deles,
vermos habituados a trabalhar, inventaram um sentimento de
e talvez quanto mais tivermos enfado, tedium vitae, que eles
sofrido necessidades. Para esca- nunca puderam conhecer, ao
par ao tédio, ou o homem traba- menos em toda a sua impla-
lha além da medida de suas ne- cável e vasta realidade, porque
cessidades normais ou inventa é preciso haver calcado, como
o jogo, isto é, o trabalho que não eu, todas as gerações e todas as
deve satisfazer nenhuma outra ruinas, para experimentar esse
necessidade a não ser a de tra- profundo fastio da existência.
balho. (NIETZSCHE, 2005, p. (ASSIS, 2001, p. 117).

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A descrição acima mostra o peso do serenidade do tédio que começa, silen-


tédio de suportar seu ter de ser que, ciosamente, a emergir o vazio. Porém,
segundo Heidegger (2015), constitui a lida com certas coisas é provisória,
a “serenidade vazia” que o interpela, depois ela nos abandona não nos re-
chegando na estagnação monótona da quisitando mais, e ficamos apreensivos
vida. É pela “disposição da tonalidade diante da falta de solicitação do ser.
afetiva” que o ser-aí se encontra. Com Procuramos, assim, os mais diversos
ela, nossos campos de visão e percep- afazeres para fuga, principalmente na
ção se modificam, por isso dizemos: imersão nos entretenimentos e diverti-
“o mundo está triste, a praia tediosa, mentos desenfreados, como bem expli-
a casa sem brilho”. Portanto, uma citou o filósofo Pascal (1973) em seu li-
coisa só pode ser entediante junto a vro “Pensamentos”, no qual empregou
nós porque a atmosfera já gira em meio para divertimento a palavra di-vertere:
e em torno de todo o campo existen- “se afastar de”. Nesse sentido, o diver-
cial. Como pode se dar isto? Através de timento é aquilo que faz com que nos
dois fenômenos: no comum “aborrecer- distraiamos para passarmos ao largo
se”, que propicia uma situação vivida do tédio, “divergindo” de tal situação
determinada, sem sua plena realiza- e procurando outra na qual o homem
ção (ex: uma espera do trem em uma não possa mais pensar em seu nada. O
estação que se atrasa) gerando a frus- mais importante é que este [di-vertere]
tação, caracterizando o “ser-entediado não trata-se só das distrações como os
por algo”; e no estado doentio do tédio- jogos, mas inclui também as atividades
profundo, que aparece como uma inibi- laborais, as pesquisas científicas, todas
ção da ação. elas são formas de ofuscar o vazio. O
Então, se o tédio é algo contra o pensador diz que:
que sempre lutamos, aonde ele se mos-
tra? Segundo Heidegger (2015), é no
“passatempo” que põe sua essência, re- Nada é mais insuportável para
velando a relação e o modo como nos ao homem do que ficar em
movemos nele. Movidos pelo tédio, absoluto repouso, sem pai-
sempre buscamos uma ocupação no xões, sem negócios, sem diver-
mero passatempo, mas não interessa as timento, sem aplicação. Sente
formas dessa ocupação, se é útil ou não, então sua inanidade, seu aban-
se beneficia ou não, muito menos os dono, sua insuficiência, sua de-
resultados dela. Interessa-nos apenas pendência, sua impotência, seu
“estar-ocupado” e somente isto – pro- vazio. Imediatamente surgirão
curando “qualquer estar-ocupado”. Por no fundo de sua alma o tédio,
que isto? Somente para nos livrar da o negrume, a tristeza, o pesar, a
irritação, o desespero (PASCAL,

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1973, p. 53). O meu tédio assume aspectos


de horror; o meu aborrecimento
é um medo. O meu suor não é
A característica que se assemelha a frio, mas é fria a minha consci-
esse estado é o “tédio-profundo”, uma ência do meu suor. Não há mal
grande indiferença ante o mundo que estar físico, salvo que o mal-
eclode justamente por um sofrimento estar da alma é tão grande que
advindo do esvaziamento, ficando, as- passa pelos poros do corpo e
sim, desamparado pela paragem do o inunda a ele também. É tão
tempo. Assim, o cansaço tedioso do magno o tédio, tão soberano o
presente anula as experiências ekstáti- horror de estar vivo, que não
cas temporais do passado e do futuro, concebo que coisa haja que pu-
envolvido em um presente inerte, onde desse servir de lenitivo, de an-
não se espera nada – uma espécie de tídoto, de bálsamo ou esqueci-
anulação do desejo. O desassossego faz, mento para ele (PESSOA, 1999,
então, desaparecer o movimento, e a p. 194).
impossibilidade de se tornar outro se
instala fortemente como um “eu” petri-
ficado (PASCAL, 1973) Essa descrição mostra a magnitude
Essa disposição é tematizada forte- da compreensão que Heidegger (2015)
mente por Pessoa (1999) no “Livro do interpretou sobre a afinação do tédio-
desassossego”, onde concebe no tédio a profundo, a que comumente chama-
disposição fundamental do século XX, mos hoje de depressão. É uma espé-
uma inércia esmagadora em que o peso cie de saudação morta, onde a vivaci-
do aborrecimento do nada, contido na dade contida na nossa correspondência
experiência, chega ao esvaziamento dos se esvai completamente, manifestando
gestos, impossibilitando a ação. Essa a inércia, o vácuo, a frieza de um nada
moléstia da ‘alma’ é uma espécie de mortífero que impossibilita buscar uma
cansaço interminável que penetra de tal porta de saída. Dito de outra forma,
maneira na nossa presença ao ponto de na depressão acontece uma perca da es-
paralisamos. “Não é o tédio a doença perança total, isto é, toda substância
do aborrecimento de nada ter que fazer, morre e, assim, nosso ser recobre-se de
mas a doença maior de sentir que não uma desolação, um desterro – a alma
vale a pena fazer nada. Sendo assim, naufraga no mar da fria noite da indi-
quanto mais há que fazer, mais tédio gência.
há que sentir” (PESSOA, 1999, p. 392). A vacuidade contida no estado de-
O poeta completa seu pensamento afir- pressivo é uma espécie de amoleci-
mando: mento do tônus (tonalidade), de tal
forma que as sensações que se pas-

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sam no ser do ser humano, são de panha, estando fora de nós? Ora,
uma completa nadidade. Trata-se de esse olhar afinado acontece de duas
um procurar sem encontrar-se, de um maneiras, segundo Cioran (2011): a
“não-lugar” ao infinito, de um “estar “positiva”, manifestada pelo entusi-
estagnado” em meio às relações cotidi- asmo, ou seja, uma intensidade capaz
anas. Nesse caso o existente se mos- de quebrar barreiras para alargar os ho-
tra expulso da sua própria morada, rizontes, que rompem as determinações
no tédio profundo (depressão), jus- habituais sempre no intuito de se ex-
tamente por desaparecer nossa espe- pandir; e no modo “negativo”, quando
rança, prolongando-se indefinidamente o olhar afinado dilata um vazio ex-
ao pálido esgotamento dos sentidos que tremo. Como assim? A plenitude sede
a tonalidade afetiva atravessa. “Vejo lugar para dentro de um vazio de mar-
casas inexpressivas, caras inexpressi- gens indefiníveis em toda profundeza
vas, gestos inexpressivos, pedras, cor- do ser – uma diminuição do tônus, um
pos, ideias – está tudo morto” (PESSOA, “retorno ao não-ser”.
1999, p. 203). Vez por outra, sentimos esses esta-
No livro “Nos cumes do desespero”, dos se abaterem sobre nós e ficamos de
o filósofo Cioran (2011) retrata bem, frente ou na proximidade do nada, em
no aforismo “melancolia”, sobre essa uma espécie de cansaço interminável
questão da correspondência envolvida presente na melancolia, depressão, té-
em todos esses estados e sua íntima li- dio profundo – que nos separa de todas
gação com todo o ambiente em geral, as coisas. Como isso acontece? O ritmo
que põe a cada vez sintonias atmosfé- da vida modifica a tal ponto de perma-
ricas diversas, de acordo com a resso- necemos à margem dos acontecimentos
nância de cada presença. Segundo o normativos, perdendo o elo com a vida
pensador, é como se aquilo que vemos – ficando indiferente. Mas, ao mesmo
no “exterior” fosse uma tortura inte- tempo, permite-nos a diferenciação do
rior, enfatizando que todo nosso olhar homem do mundo, pois o mundo fica
está perpassado primordialmente pelo de frente ao homem em sua inocência,
“ser-afinado” da tonalidade. Seu étimo ou seja, se mostra desnudado das sig-
em latim, advindo do grego: melankho- nificações cotidianas. Como diz Cioran
lia, significa bílis negra, uma tristeza (2011, p. 29):
vaga, um abatimento do tônus. Isso faz
com que para onde olhemos a afina-
ção nos acompanhe, basta olhar alguém O cansaço separa o homem do
com uma melancolia intensa para per- mundo e de todas as coisas.
cebermos sua tensão espiritual. O ritmo intenso da vida dimi-
Por que esse olhar infinito nos acom- nui, as pulsações orgânicas e a
atividade interior perdem essa

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tensão que particulariza a vida um caráter estético. Uma afinação su-


no mundo e que são momentos ave acontece pela passividade contem-
imanentes à existência. plativa de uma serena tranquilidade da
alma, em que as problemáticas do dia a
dia se reduzem ao silêncio.
A intimidade com o mundo desapa- Acoplado a isso, há uma renovação
rece e a vida fica frágil e problemática que faz com que diminua ou aumente
pela sensação de vagueza do mundo, esse vazio a partir da tonalidade, como
que fica com outro invólucro e o dis- o “pesar”, um sentimento profundo que
tanciamento de tudo que é notável. O exprime sobre a parte morta em nós.
“estado melancólico” tem sempre a ca- Cioran (2011) enfatiza de forma direta,
racterística de uma expansão do va- concomitante com o pensamento hei-
zio em direção aos cumes, por estar deggeriano, que mesmo a melancolia
além do mundo habitual. O ser-homem mais sombria é uma afinação tempo-
passa a mergulhar na reflexão sobre rária e não uma doença constitutiva
a negatividade que é a sua, ganhando no corpo do homem, como uma coisa
asas para voar em direção contrária da inata. Porém, as distinções e diferencia-
plenitude entusiástica, isto é: para a so- ções dos graus desses estados só podem
lidão em sentido ilimitada. Ademais, “a ser percebidos e evidenciados pela to-
melancolia comporta um estado vago, nalidade da visão, ou seja, a partir do
sem qualquer intenção determinada” modo como o “ser-afinado” se relaciona
(CIORAN, 2011, p. 30). com a sua ilimitada visão, variando e
De acordo com Heidegger (2015), oscilando de acordo com os indivíduos,
ao se distanciar da existência e es- e as respectivas situações. Para Cioran:
tar abandonado a si na melancolia, o
ser humano fica vago, deixado só no
mundo. Ademais, quanto mais cons- A renovação de certos eventos
ciência tem dessa ilimitada infinidade ou tendências anteriores, a adi-
de seu olhar no mundo pela afinação, ção à nossa atual afetividade
mais aguda fica a compreensão de sua das sensações e do meio em
própria “finitude” (o chamado beijo da que estas nasceram para deixá-
existência, para sua dança indetermi- lo em seguida – tudo isso é es-
nada). Nos estados melancólicos, deixa sencialmente determinado pela
de ser torturante e se transveste de melancolia (2011, p. 31).
uma beleza estranha, sendo suspenso
da vida em seu isolamento, que mani- A unanimidade entre todos os pen-
festa um modo de ser onde viver signi- sadores aqui citados possibilitou esse
fica não mais participar da vida. O soli- diálogo sobre o desassossego contem-
tário se isola sem esperar mais nada, em porâneo em relação ao caráter inde-

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terminado da afinação atmosférica que que sempre perfaz nossa lida relacio-
acomete o ser-aí humano em sua abis- nal nas experiências fáticas, manifes-
salidade. Desse diálogo entendemos tadas de início e na maioria das vezes
que algumas atmosferas acontecem em na ocupação cotidiana. Somente com
meio ao predomínio intramundano, esse olhar podemos chegar à proximi-
presente na cotidianidade com sua dade da temporalidade que nos per-
tranquilidade e segurança; outras vezes meia, como também às inquietudes e
ocorre pela falta das referências signi- sofrimentos em que o ser-aí (Dasein)
ficativas, onde os entes se afastam, não manifesta-se. Por ser primordialmente
mais nos solicitando, deixando-nos va- um ser-no-mundo, acompanha o curso
zios, no “não-ser”. Mas, em meio a do rio histórico e com isto se afeta, pois
estes desassossegos e crises existenci- se correlaciona com modos de ser doen-
ais, onde iremos encontrar sossego au- tios e, assim, definha.
têntico? Será que ele existe? Essa ex- A analítica aqui realizada ateve-se
periência só poderá acontecer quando aos principais fenômenos vigentes de
houver o despertar do ser-aí (Dasein) nossa época “desassossegada” no in-
e quando gozarmos o momento pre- tuito de buscar uma melhor apropri-
sente em sua singularidade, através da ação em contraposição ao pensamento
plenitude temporal retida, isto é, um paradigmático do corpo-biológico de-
tempo que mostra profundidade e pers- corrente da neurociência, onde o ser
pectiva, entregando-se a todo o aconte- humano é visto como uma conexão
cimento em sua autenticidade naquilo químico-física. Foi visto na descrição
que é. Transfigurando sua própria ex- dos diferentes modos existenciais da
periência de ser, ou talvez na supera- nossa temporalidade que o ser humano
ção do “homem”, isto é, da condição está inserido e, portanto, tocado afeti-
humana de ser homem para o estágio vamente pela relação de sentido e falta
de “super-homem” ou “além-homem”, de sentido em que está imerso.
como sugeriu Nietzsche (2011) em sua Observamos que nenhum neurônio
obra, “Assim falou Zaratustra”. pode dar conta da “relação-com” e da
“compreensão” que temos dessa rela-
ção, nem muito menos do “tempo”
que proporciona os nossos modos de
Considerações Finais ser, bem como das afinações existen-
ciais das tonalidades afetivas. A ce-
A compreensão hermenêutico-fenome- gueira acontece quando tomamos em-
nológica sobre a interpretação das prestada a visão mecanicista biológica
crises existenciais contemporâneas e como absoluta e não a questionamos,
suas formas de proceder, possibilita- entregando-nos sem pensar e imedia-
ram olhar mais uma vez para aquilo

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tamente aos especialistas e aos psico- pre novas linguagens. Afinal a existên-
fármacos: medicamentando biologica- cia humana é um labirinto abissal, um
mente às vezes algo não biológico. mistério difícil de desvelar, e não pode
A partir do diálogo dos pensa- ser acabada por nenhum esforço meto-
dores citados, abriu-se, pois, uma dológico. Isso implica dizer que toda
chave de acesso para a pensabili- objetividade é uma delimitação, ou me-
dade de interpretação dos fenômenos lhor, uma simplificação do ser do ente
ditos “psicopatológicos” contemporâ- que somos nós. Mas, o caminho está
neos, através das tonalidades afetivas aberto... com muito chão ainda para
fundamentais tanto para uma prática percorrer. Nessa aventura, eis a grande
clínica psicológica quanto para uma tarefa: analisarmos o ente que somos
apropriação pessoal sobre os momentos nós mesmos a cada vez e a própria tem-
constitutivos que nos afetam. poralidade onde nos encontramos e na
A relevância de realizar um estudo qual nos perfazem.
com esse perfil está em apreender sem-

Referências

ASSIS, Machado de. Várias histórias. Série Bom Livro. 4. ed. São Paulo: Editora Ática, 2001.
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304 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 285-305
ISSN: 2317-9570
UM OLHAR FENOMENOLÓGICO SOBRE AS CRISES EXISTENCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE

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Recebido / Received: 03/10/2019


Aprovado / Approved: 27/01/2020
Publicado / Published: 30/07/2020

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.1, abr. 2020, p. 285-305 305
ISSN: 2317-9570

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