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* Atuou como professor do departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – DFI/UERN. Formado
em Filosofia, Geografia e Mestre em Ciências Sociais e Humanas. Pesquisador na área da filosofia contemporânea com ênfase na
fenomenologia e existencialismo. E-mail: holandarogerio@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002- 8253-4967.
** Bacharel em Psicologia pela Universidade Potiguar – UNP. Integrante do Núcleo de Estudos, Ensino e Investigações em Filo-
sofia – NEFIL/UERN. Pesquisador da abordagem Daseinsanálise: de base hermenêutica, fenomenológica e existencial. E-mail: ri-
cardo.decio01@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9426-348X.
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1 Nesse artigo, o termo ser-aí, ou presença, corresponde à tradução do termo alemão Dasein, isto é, a essência do ser humano numa
perspectiva existencial. Nessa perspectiva, o ser-aí não é simplesmente um ente que se encontra entre outros entes. Ele se distingue
dos demais entes pelo seu privilégio ôntico, pelo fato “de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser” (HEIDEGGER,
2015, p. 48).
2 O tempo aqui não deve ser interpretado num sentido cronológico (hora, dia, semana, mês ou ano), mas como a própria tempora-
lidade, isto é, o horizonte por onde o ser-aí estrai sua existência, ou seja, sua compreensão de ser.
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3 “Traduzido literalmente, niilismo significa algo assim como um nadismo, uma fome de nada, uma redução de tudo a nada”
(CASANOVA, 2013, p. 175).
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tanto, o Niilismo foi e “é” o aconteci- uma vontade de estar por toda parte
mento apropriador que põe atmosferas, em casa. No desaparecimento dela, o
abrindo o espaço para uma nova forma homem moderno se vê desatado de seu
de existir do ser humano, onde se mos- sol. Sem pátria não existe mais “uma”
tra a presença da experiência do nada. direção universal, mas “muitas” dire-
Nesse sentido, o Niilismo, enquanto ções. No limite, essas direções são su-
movimento instaurador de quebra de perficiais, assim todos os lados apon-
valores e da constituição de novos, tam para uma desconexão, surgindo um
grande enfado e um caos perpétuo toma
Aponta diretamente para a sus- conta da convivência. Como bálsamo
pensão inicial de toda transcen- para isso tudo ocorre a imersão em mo-
dência, de toda imanência, de dos automáticos, técnicos, destituídos
toda causa, de toda finalidade, de significados.
de todo ser, de toda unidade, de Nessa deterioração, o ser humano
toda identidade, de toda subs- contemporâneo se mostra suspenso em
tância e de todo fundamento da uma precariedade ontológica (a perda
totalidade. (CASANOVA, 2013, do ser) que alterou grandemente a per-
p. 194). cepção no mundo pelos determinados
modos de proceder, decorrentes do mar
de possibilidades que viabilizam certos
De outro modo, pode se dizer que sofrimentos e tonalidades afetivas. Ora,
o advento do Niilismo trouxe a elimi- se toda essencialidade se volatilizou, o
nação de categorias metafísicas, como que está em vigência em todo o mundo
por exemplo: a crença na verdade ab- é o “devir”, a mutabilidade, a plura-
soluta, que sempre sustentou nossa tra- lidade. Desse modo, o ser humano se
dição. “A existência do homem ociden- reduz à mera constituição das relações,
tal como um todo foi, desde o princí- de modo que “sua identidade, por fim,
pio, erigida a partir de uma orienta- não é se não uma ilusão, o resultado
ção pelo mundo verdadeiro, pela iden- de um processo historicamente consti-
tidade, pela essência, pela forma, pelo tuído e sedimentado de simplificação. ”
repouso, pelo eterno.” (CASANOVA, (CASANOVA, 2013, p. 194), o que não
2013, p. 190). Isso significa que se não diz respeito ao seu ser mais ontológico.
podemos operar mais com tais catego- A secularização e o mundo da técnica
rias, a existência se torna um problema, moderna alteraram, portanto, nossa
mostrando-se completamente sem sen- forma de pensar e se comportar, de ser
tido, transitória. e estar no mundo, de modo que nossa
A metafísica, segundo Casanova imaginação e fantasia esvaneceram por
(2017), parafraseando o poeta alemão conta de uma realidade efetiva que se
Novalis, é uma nostalgia da terra natal,
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5 Entes intramundanos são os entes simplesmente dados no mundo, como cadeira, mesa, porta, etc. São os entes que, na manuali-
dade, veem ao encontro do ser humano.
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der de alguma forma. A esse deixar claro que o problema não é ser
corresponder pertencem tam- solicitado, mas o excesso de solicita-
bém, como privações, o não ções, no qual leva a emancipação dos
corresponder e o não poder- fenômenos como stress e ansiedade, bur-
corresponder (HEIDEGGER, nout, entre outros.
2017, p. 154). Por sua vez, o ser humano, como ente
que se constitui mediante a existência,
sempre está aberto para as solicitações
Trata-se, portanto, de uma condição necessárias. A falta delas leva-nos a de-
muito difícil para o ser humano, uma sopressão que é, na verdade, uma forma
vez que temos de corresponder, cada de desassossego oposto ao da opressão.
vez mais, àquilo que está posto, isto é, E como isso acontece? Quando não
solicitado pelo mundo, respostando, a há o que corresponder, isto é, quando
cada instante, na nossa presença, aos não somos mais solicitados. Quando
chamados da vida para uma atuação paramos, sem alguma tarefa obrigató-
nesse mundo. Mas, o que vem acon- ria, esvaziamo-nos da interpelação e,
tecendo com o nosso tempo, além do por um momento, ficamos em outra
lançamento de miríade de chamados, forma de chamado: o vazio. O apo-
como bombardeio ininterrupto de obri- sentado mostra bem que a interpela-
gações que nos interpelam fortemente ção não desaparece quando estamos li-
(família, faculdade, filhos, trabalho, vres das obrigações profissionais, “[...]
amigos, etc.), é a internet. Esta, com ela permanece justamente, na verdade,
seus grupos sociais diversos, aumentou como obrigação vazia e não preenchida,
exponencialmente ainda mais as soli- e como tal torna-se uma solicitação in-
citações: diminuindo o tempo, aumen- comum e, pois, excessiva ‘depressão da
tando a pressa, aproximando e distan- desopressão.’” (HEIDEGGER, 2017, p.
ciando as pessoas ao mesmo instante. 156).
Um verdadeiro paradoxo. Borges-Duarte (2018), em seu artigo
É nesse prisma que a responsabili- “Sossego e desassossego: o paradoxo do
dade, isto é, a nossa forma de respos- tempo vivido”, mostra-nos que essa re-
tar aquilo que está posto advinda dos lação existencial marcada fortemente
chamados da existência, fica completa- pela efemeridade está perpassada pela
mente enfraquecida, uma vez que são ambiguidade de ser e não ser ao mesmo
muitos chamados no mesmo instante, tempo senhor de si nesse exercício.
acontecendo, com isso, o stress como Isso causa um fechamento das possi-
solicitação excessiva do ser, a qual nos bilidades, aparecendo diversas modifi-
leva a uma carência de respostas pelo cações como a ansiedade, advinda do
excesso, se configurando como uma ver- stress oriundo do excesso de solicita-
dadeira opressão.Todavia, é importante
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mente à minha frente como uma con- e a busca de objetivos que se mostram,
dição decorrente do ser-no-mundo, isto na maioria das vezes, maléficos. Essa
é, do ente que está fora de si mesmo. dinâmica nos faz definhar e nos dobrar-
Esse fora, enquanto condição ontoló- mos à ansiedade por anteciparmos mui-
gica do ser humano, é um correlato da tas correspondências que se encontram
abertura do mesmo para-com-o-mundo no horizonte mundano.
e todos os entes que sempre já se en- Desse modo, como entes abertos [ek-
contram juntos. Portanto, essa forma sistere], precisamos entender o nosso
de ser é fundamento de significação tempo para poder compreender os mo-
para fenômenos como: querer “algo”, dos de nosso ser nesse mundo, o qual
buscar “algo”, desejar “algo”. Porém, nos lega uma gama de solicitações e em-
esses fenômenos não podem ser pensa- bargos que alterou nossa relação mais
dos como “pulsões”, tal como apontou própria. Enquanto abertura, podemos
Freud em sua teoria da libido, ou seja, ser, dessa ou de outra maneira, estando
sempre susceptíveis às transformações
Não se trata de um pro- do mundo e ao peso de suas significa-
cesso psíquico indefinido, de ções sedimentadas como correlato in-
um “mecanismo de pulsão tencional do existir.
mitológico” (Freud), que me Portanto, a vida nessa “correria” co-
impulsiona, mas sim de algo tidiana, típica deste tempo em que
determinado em nossa existên- “vivemos”, encontra-se carregada por
cia, isto é, de um poder-ser- um certo vazio que jamais será preen-
no-mundo determinado, pelo chido, justamente porque há uma frag-
qual nós decidimos, no sen- mentação nos objetivos e sensações as-
tido de nos termos aberto para piradas pelos indivíduos. Como con-
isto. Nós temos de concordar sequência, surgem: o tédio, a melan-
com este estar aberto, temos de colia e a depressão, isto é, as tonalida-
aceitá-lo (HEIDEGGER, 2017, des afetivas que afetam diretamente a
p. 180). saúde e o bem-estar do ser humano nos
mais diversos modos.
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nia, como uma melodia que ressoa a to- nossa abertura, descerrando mundo,
dos nós no mundo. Essa tonalidade se ressoando nos espaços de acontecimen-
encontra já no “aí” como possibilidade tos de acordo com a quebra de senti-
da nossa lida cotidiana, bem como em dos de nossa relação, avisando-nos so-
nossos projetos de fuga do tédio. Não bre nossa negatividade. Dito de outro
deve, entretanto, ser confundida com modo, a nadidade, nossa forma exis-
um estado de humor, pois, desse modo, tencial mais própria de ser, revela a in-
se refere sempre a um matiz subjeti- determinação ontológica, convidando-
vista. O foco é atentar para a totalidade nos, assim, para uma volta sobre nossa
do acontecimento que contagia a todos existência quando permanecemos em
nós na contemporaneidade, a saber, o sua presença afetiva.
tédio-profundo como via régia de uma
experiência ontológica. No tédio verdadeiro não se
Esse tédio-profundo é, para Heideg- sente tédio apenas por algo de-
ger, a depressão, sendo considerada, de terminado, mas sente-se tédio
forma unânime, a doença “do século” e em geral. Isto é: tudo nos in-
não do homem. Essa afirmação está cor- terpela igualmente pouco. No
retíssima. O que não está apropriado é tédio [Langeweile], que quer di-
tratá-la tomando como fundamento a zer tempo longo, o tempo de-
forma neurobiológica ou mental, pois, sempenha um papel como a pa-
onde topologicamente, se encontra a lavra diz. Não há mais futuro
atmosfera, o “astral”? Nos nervos, no ou passado ou presente. No té-
cérebro, nos neurônios? Pergunta in- dio acontece a solicitação não
decifrável. Mas, a resposta é esta: em excessiva do ser (HEIDEGGER,
nenhuma parte das massas anatômicas. 2017, p. 208).
Por quê? Por justamente se tratar de um
modo de ser. E esse “estado” perpassa
todos os lugares, não só dentro de nós. Sobre essa afinação das tonalidades,
Logo, “[...] não é um fenômeno psicoló- a psiquiatria e a psicologia positivista,
gico, mas antes, o existencial a partir do ancoradas no discurso da neurociência,
qual é possível qualquer variação psí- tentam delegar a tarefa de existir para
quica dos afetos ou ‘estados de ânimo’” os neurotransmissores, para uma subje-
(SÁ, 2017, p. 56). tividade cerebral encapsulada. A exis-
Essa nomeação do tédio é uma forma tência humana e sua abertura de sen-
de englobar todas as outras modifi- tido são muito maiores que a mera ana-
cações dessa afinação: tristeza, me- tomia biológica que tenta objetivar o ser
lancolia, depressão e tédio profundo. do homem. Todavia, “[...] as teorias psi-
Constitui-se um astral que temporaliza cológicas surgem sob a pressão da tra-
dição, porque a tradição nada conhece
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sam no ser do ser humano, são de panha, estando fora de nós? Ora,
uma completa nadidade. Trata-se de esse olhar afinado acontece de duas
um procurar sem encontrar-se, de um maneiras, segundo Cioran (2011): a
“não-lugar” ao infinito, de um “estar “positiva”, manifestada pelo entusi-
estagnado” em meio às relações cotidi- asmo, ou seja, uma intensidade capaz
anas. Nesse caso o existente se mos- de quebrar barreiras para alargar os ho-
tra expulso da sua própria morada, rizontes, que rompem as determinações
no tédio profundo (depressão), jus- habituais sempre no intuito de se ex-
tamente por desaparecer nossa espe- pandir; e no modo “negativo”, quando
rança, prolongando-se indefinidamente o olhar afinado dilata um vazio ex-
ao pálido esgotamento dos sentidos que tremo. Como assim? A plenitude sede
a tonalidade afetiva atravessa. “Vejo lugar para dentro de um vazio de mar-
casas inexpressivas, caras inexpressi- gens indefiníveis em toda profundeza
vas, gestos inexpressivos, pedras, cor- do ser – uma diminuição do tônus, um
pos, ideias – está tudo morto” (PESSOA, “retorno ao não-ser”.
1999, p. 203). Vez por outra, sentimos esses esta-
No livro “Nos cumes do desespero”, dos se abaterem sobre nós e ficamos de
o filósofo Cioran (2011) retrata bem, frente ou na proximidade do nada, em
no aforismo “melancolia”, sobre essa uma espécie de cansaço interminável
questão da correspondência envolvida presente na melancolia, depressão, té-
em todos esses estados e sua íntima li- dio profundo – que nos separa de todas
gação com todo o ambiente em geral, as coisas. Como isso acontece? O ritmo
que põe a cada vez sintonias atmosfé- da vida modifica a tal ponto de perma-
ricas diversas, de acordo com a resso- necemos à margem dos acontecimentos
nância de cada presença. Segundo o normativos, perdendo o elo com a vida
pensador, é como se aquilo que vemos – ficando indiferente. Mas, ao mesmo
no “exterior” fosse uma tortura inte- tempo, permite-nos a diferenciação do
rior, enfatizando que todo nosso olhar homem do mundo, pois o mundo fica
está perpassado primordialmente pelo de frente ao homem em sua inocência,
“ser-afinado” da tonalidade. Seu étimo ou seja, se mostra desnudado das sig-
em latim, advindo do grego: melankho- nificações cotidianas. Como diz Cioran
lia, significa bílis negra, uma tristeza (2011, p. 29):
vaga, um abatimento do tônus. Isso faz
com que para onde olhemos a afina-
ção nos acompanhe, basta olhar alguém O cansaço separa o homem do
com uma melancolia intensa para per- mundo e de todas as coisas.
cebermos sua tensão espiritual. O ritmo intenso da vida dimi-
Por que esse olhar infinito nos acom- nui, as pulsações orgânicas e a
atividade interior perdem essa
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terminado da afinação atmosférica que que sempre perfaz nossa lida relacio-
acomete o ser-aí humano em sua abis- nal nas experiências fáticas, manifes-
salidade. Desse diálogo entendemos tadas de início e na maioria das vezes
que algumas atmosferas acontecem em na ocupação cotidiana. Somente com
meio ao predomínio intramundano, esse olhar podemos chegar à proximi-
presente na cotidianidade com sua dade da temporalidade que nos per-
tranquilidade e segurança; outras vezes meia, como também às inquietudes e
ocorre pela falta das referências signi- sofrimentos em que o ser-aí (Dasein)
ficativas, onde os entes se afastam, não manifesta-se. Por ser primordialmente
mais nos solicitando, deixando-nos va- um ser-no-mundo, acompanha o curso
zios, no “não-ser”. Mas, em meio a do rio histórico e com isto se afeta, pois
estes desassossegos e crises existenci- se correlaciona com modos de ser doen-
ais, onde iremos encontrar sossego au- tios e, assim, definha.
têntico? Será que ele existe? Essa ex- A analítica aqui realizada ateve-se
periência só poderá acontecer quando aos principais fenômenos vigentes de
houver o despertar do ser-aí (Dasein) nossa época “desassossegada” no in-
e quando gozarmos o momento pre- tuito de buscar uma melhor apropri-
sente em sua singularidade, através da ação em contraposição ao pensamento
plenitude temporal retida, isto é, um paradigmático do corpo-biológico de-
tempo que mostra profundidade e pers- corrente da neurociência, onde o ser
pectiva, entregando-se a todo o aconte- humano é visto como uma conexão
cimento em sua autenticidade naquilo químico-física. Foi visto na descrição
que é. Transfigurando sua própria ex- dos diferentes modos existenciais da
periência de ser, ou talvez na supera- nossa temporalidade que o ser humano
ção do “homem”, isto é, da condição está inserido e, portanto, tocado afeti-
humana de ser homem para o estágio vamente pela relação de sentido e falta
de “super-homem” ou “além-homem”, de sentido em que está imerso.
como sugeriu Nietzsche (2011) em sua Observamos que nenhum neurônio
obra, “Assim falou Zaratustra”. pode dar conta da “relação-com” e da
“compreensão” que temos dessa rela-
ção, nem muito menos do “tempo”
que proporciona os nossos modos de
Considerações Finais ser, bem como das afinações existen-
ciais das tonalidades afetivas. A ce-
A compreensão hermenêutico-fenome- gueira acontece quando tomamos em-
nológica sobre a interpretação das prestada a visão mecanicista biológica
crises existenciais contemporâneas e como absoluta e não a questionamos,
suas formas de proceder, possibilita- entregando-nos sem pensar e imedia-
ram olhar mais uma vez para aquilo
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tamente aos especialistas e aos psico- pre novas linguagens. Afinal a existên-
fármacos: medicamentando biologica- cia humana é um labirinto abissal, um
mente às vezes algo não biológico. mistério difícil de desvelar, e não pode
A partir do diálogo dos pensa- ser acabada por nenhum esforço meto-
dores citados, abriu-se, pois, uma dológico. Isso implica dizer que toda
chave de acesso para a pensabili- objetividade é uma delimitação, ou me-
dade de interpretação dos fenômenos lhor, uma simplificação do ser do ente
ditos “psicopatológicos” contemporâ- que somos nós. Mas, o caminho está
neos, através das tonalidades afetivas aberto... com muito chão ainda para
fundamentais tanto para uma prática percorrer. Nessa aventura, eis a grande
clínica psicológica quanto para uma tarefa: analisarmos o ente que somos
apropriação pessoal sobre os momentos nós mesmos a cada vez e a própria tem-
constitutivos que nos afetam. poralidade onde nos encontramos e na
A relevância de realizar um estudo qual nos perfazem.
com esse perfil está em apreender sem-
Referências
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BORGES-DUARTE, Irene. Sossego e desassossego: o paradoxo do tempo vivido. In: DUTRA, Elza [org.]. O desassossego
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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio
Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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UM OLHAR FENOMENOLÓGICO SOBRE AS CRISES EXISTENCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE
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PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de
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SÁ, Roberto Novaes de. Para além da técnica: ensaios fenomenológicos sobre psicoterapia atenção e cuidado. 1. ed. Via
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