Você está na página 1de 4

Faculdade Dehoniana

HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA


Prof.: Marcelo Andrade
Julio Marco Silva e Oliveira
Data: 29/05/2020

O “Neo-hedonismo”
A caracterização da conduta humana na sociedade contemporânea, a partir de uma releitura
do Hedonismo

Introdução
Mesmo a existência humana ser algo de longa data, a questão da morte ou, melhor, a pós-
morte é algo espantoso. Basta analisar a realidade, no decorrer dos milênios, quantas suposições,
teorias e ideias estiveram (e ainda se encontram) presentes na humanidade que se propõe a resolver
essa problemática se existe de fato algo depois da morte. Na maior parte, como a história demonstra,
acreditava-se em uma realidade transcendente pós-morte; e, a partir disso, propunha-se formas de se
viver a vida atual, para que após a morte, a alma tivesse um bom fim.
Na tradição filosófica, com a contribuição de Aristóteles, houve o grande desenvolvimento
e solução de problemas da metafísica, estabelecendo uma quietação na especulação filosófica,
ocasionando uma mudança súbita na finalidade que a filosofia apresenta. Em vista disso, o autor
Julián Marías afirma que a preocupação sobre o homem se faz presente quando há ausência de tensões
filosóficas1. Portanto, com a calmaria filosófica provinda das sínteses de Aristóteles, a filosofia
retorna à questão ética, resgatando especialmente o pensamento socrático, afastando-se dos sistemas
teóricos e preocupando-se com a vida prática. Este período, quando surgiram propostas acerca da
melhor vivência humana, ficou conhecido como Filosofia Helenística.
O paper em questão visa abordar a doutrina do Hedonismo, marcante no decorrer da
Filosofia Helenística e fundamento das concepções da época, contextualizando-a em seu devido
período; propor uma possível releitura do mesmo, aplicado às relações humanas intrapessoais e
sociais no mundo contemporâneo, através da caracterização do termo Neo-hedonismo, e, por fim,
discutir a capacidade, exclusivamente humana, de amar, e qual a interferência do Neo-hedonismo na
potencialidade humana de amar.

Definição/Histórico do Hedonismo
Durante o período Helenístico, Alexandre Magno, com a expansão de seu império,
proporcionou grande propagação da filosofia grega, de modo que o pensamento nascente filosófico
entra em contato com diversas culturas. Nesse contato com as culturas, a filosofia, de uma geral,
resgata a figura de Sócrates, e de forma específica, seu pensamento sobre a moral. Para Sócrates, a
Ética consiste na investigação em descobrir qual a melhor vida para o homem. Em vista disso, os
pensadores do período decidiram por aprofundar esta investigação, afastando-se, de certo modo, da
concepção de filosofia concebido até então, considerando-a como um simples modo de vida,
abandonando seu valor teórico e priorizando a prática.2 Divide-se, de forma ampla, o período em dois
ramos: Os Cínicos, cujo pensamento era a autarquia (supressão de todos os desejos); e os Cirenaicos,
cujo fundamento é a afirmação do prazer como bem supremo. Esta última, a escola Cirenaica, funda
a doutrina do hedonismo.

1
Cf. Julian MARÍAS, História da Filosofia, 2004, p. 95-97.
2
Cf. Ibidem.
A palavra Hedonismo vem do termo grego hedonê, que significa prazer. Portanto, a doutrina
hedonista “é a doutrina que encontra no prazer o sumo bem e na busca do prazer o fim da vida do
homem”3. Para os cirenaicos, o prazer provinha do autocontrole, ou seja, o sábio (homem moderado,
que vive em equilíbrio com as coisas...) é aquele que está sempre no controle das situações e escolhe
os prazeres corporais (Entendidos como superiores ao corpo) moderados, duradouros e que não o
arrebatem4. Posteriormente, encontra-se Epicuro, tomando como ponto de partida a compreensão
cirenaica, desenvolve-a e acaba por divergir dos cirenaicos. Afirma que o prazer psíquico (do interior)
é superior aos prazeres sensíveis (do exterior), e coloca como prazer supremo a aponía (ausência de
dor física) e ataraxía (Ausência de perturbação da alma). Resumindo, Epicuro busca um “prazer puro,
sem mescla de dor nem de desagrado”5.
Apesar de ambas compreensões, dos cirenaicos e de Epicuro, apresentarem a busca do prazer
de forma moderada e equilibrada, o homem contemporâneo, ao resgatar inconscientemente a doutrina
hedonista, a transformou radicalmente, interpretando o prazer de uma forma diferente dos
helenísticos, propondo uma busca equivocada de prazer e, principalmente, enfatizando a
compreensão do prazer sem mescla de dor e desagrado de Epicuro.

“Neo-Hedonismo”
Como fora dito no começo, quando falta a tensão metafísica, a questão ética evidencia-se.
Analogicamente, pode-se dizer quando se retira a dimensão espiritual, a finalidade humana torna-se
material. Hoje, o ser humano indaga qual a melhor maneira de se viver nessa vida efêmera, pautada
não mais em uma preparação para pós-morte, em vista da descrença numa realidade espiritual, mas
num fruir hoje.
A contemporaneidade, ao continuar o processo de esquecimento da dimensão espiritual
humana iniciado na modernidade com o racionalismo, perde o sentido transcendente, se torna
materialista e enxerga na própria realidade sensível/material a sua realização final. Em decorrência
disso, o ser humano rebaixa-se, por assim dizer, da busca do divino, de algo mais elevado que si
mesmo e se fecha em si, procurando em impressões prazerosas sua realização. Contudo, diferente dos
cirenaicos, os homens contemporâneos não compreendem a moderação e limite do prazer, e, ao
alcançarem o clímax, não se aquietam e procuram ainda o intensificar. Ademais, a sociedade
contemporânea encontrando-se numa cultura hiper sensualizada e erotizada, o “prazer
contemporâneo” identifica-se, sobretudo, com o orgasmo sexual.
Agregado a isso, a era informacional proporcionou uma falta de paciência na humanidade,
ou seja, com o fluxo de informações cada maiores, o “esperar” tornou-se quase que impossível, e tudo
deve ser “agora”. Esse conjunto de fatores afetou inteiramente a sociedade, especialmente a
construção das relações sociais, tais como amizade e laços matrimoniais, algo que demanda tempo
para ser construída, é esquecida e deturbada, transformando-se num simples meio para se obter o
prazer (Sentido de orgasmo sexual), como por exemplo em uma “amizade colorida”6 ou um
casamento interessado.
Em vista disto, da sociedade hiper sensualizada e imediatista, é possível inferir uma
retomada do hedonismo, o ser humano que compreende no prazer como seu sumo bem e finalidade
última de sua existência. Contudo, diferente da doutrina helenística, o prazer se dá não pela mediação
da moderação ou autocontrole, mas sim em uma experiência desenfreada, e, além disso, se não
fornecerem o deleite esperado, são intensificados. Mediante a isso, agrega-se o fator do imediatismo,
enquanto os cirenaicos e Epicuro professavam e buscavam a ausência da perturbação da alma como
primordial à uma vida prazerosa, a contemporaneidade jamais de aquieta e se deixa perturbar por
acontecimentos fúteis, como um simples download que demora a ser concluído. Diante disso, cabe o

3
Cf. Dario ANTISERI; Giovanni REALE, História da Filosofia, 2003, p. 269.
4
Cf. Julian MARÍAS, História da Filosofia, 2004, p. 99.
5
Cf. Idem p. 105.
6
Pessoas que possuem uma relação sexual, sem compromisso ou laço de fidelidade.
questionamento se perante toda essa realidade informacional caótica das redes sociais seria possível
a quietude da alma. Assim sendo, depreende-se um Neo-hedonismo contemporâneo, pautado numa
busca imediata e desenfreada do orgasmo.

Capacidade do amor
Esse entendimento, de renúncia de si em favor do outro, do constante desapegar-se de si para
ir ao encontro do outro e, em último caso, dar a vida pelo outro. Entretanto, esse ideal de amor fora
deixado de lado, se não totalmente excluído, do mundo atual.
Fora dito no começo, o prazer deve ser sem mescla de dor e desagrado. Esse aspecto, com
algumas reinterpretações, permaneceu presente no “Neo-hedonismo”. Para os cirenaicos e Epicuro,
a dor significa algum mal físico para o corpo, e desagrado aquilo que causa perturbação para alma.
Para o Neo-hedonismo, apesar de “dor” continuar com seu significado, “desagrado” assume o sentido
de insuficiência, isto é, se algo não está sendo prazeroso é porque precisa ser intensificado. Por
exemplo, numa “amizade colorida”7, os indivíduos não estão se machucando fisicamente, mas está
sendo desagradável; os cirenaicos/Epicuro interpretariam como uma ação que transtorna a alma, em
contrapartida os contemporâneos afirmariam que os indivíduos precisariam intensificar os momentos
de relação para alcançar o orgasmo e, consequentemente, o prazer.
Portanto, o neo-hedonismo tende gradualmente resumir todo o ser humano ao seu instinto,
compreendendo a vivência da sexualidade, em sua forma mais equivocada, como sentido último de
suas ações e realizações. Ademais, o desenvolvimento do conceito de “indivíduo”, antes desconhecido
pelos clássicos em vista de seu entendimento de ser humano como necessariamente sociável, contribuiu
para a edificação do individualismo. Como se não bastasse o ser humano enxergar o orgasmo sexual
como ápice da vida, ele vai adiante e procura o “seu” orgasmo sexual, ou seja, ocorre o fechamento às
necessidades/desejos dos outros em interesse do próprio.
Sendo o requisito primordial do amor o sacrifício, como de uma mãe que acorda de
madrugada para acudir o filho ou um bombeiro que se sacrifica para salvar alguém em meio as
chamas, o neo-hedonismo impossibilita o ser humano de amar, por conta de sua repulsa em enfrentar
a experiência da dor. Pautado por essa doutrina, o ser humano é incapaz de olhar para o outro como
outro ser, mas apenas o olha com interesse próprio de satisfazer seus desejos. Todos transformam-se
em meios uns para os outros para alcançarem o orgasmo, e, quando se tornam empecilho para isto,
são descartados e abandonados. “Não podemos perder de vista que o contrário de amar não é apenas
odiar, mas também usar e jogar fora.”8.

Considerações finais
Cada vez mais imerso na cultura do neo-hedonismo, o ser humano afasta-se de sua dimensão
espiritual e, consequentemente, procura compensar o sentido de sua existência na vida efêmera.
Nisso, esquece-se de sua própria identidade de ser humano e rebaixa-se à um animal, se permitindo
dominar pelos instintos sexuais e ver neles a sua felicidade. Não obstante, esse pensamento une-se a
fuga radical de toda e qualquer tipo de dor, ou seja, a capacidade do amor (Uma decisão/atitude, em
última instância, heroica) torna-se impossível, pois amar exige o sacrifício espontâneo e livre pelo
amado(a)). Diante disso, encontra-se o paradoxo contemporâneo: O ser humano, dotado da
capacidade de amar, renuncia sua missão mais sublime, em vista do prazer sexual temerário e, ainda
sim, anseia viver os gozos do amor fugindo das características que, em certo sentido, lhe são próprias
e, necessárias: O sofrimento e a dor. Já observando indícios desse processo, o escritor inglês Gilbert

7
Pessoas que possuem uma relação sexual, sem compromisso ou laço de fidelidade.
8
Padre Paulo RICARDO, O namoro cristão, 2016. Disponível em <https://padrepauloricardo.org/aulas/odiar-
e-usar-dois-pecados-contra-o
amor?utm_content=buffer3b5fa&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_campaign=buffer> acesso em
25 de maio de 2020
Keith Chesterton afirmava, indiretamente, contra a doutrina neo-hedonista: “Em tudo que é digno de
ter – mesmo em todos os prazeres – há uma porção de dor ou tédio que deve ser preservada a fim de
que o prazer possa renascer e perdurar.”9.
O ser humano, sem dúvida, pode viver a experiência do orgasmo. Entretanto, não pode cair
na ilusão de vivê-la perpetuamente sem nenhuma perturbação; proceder ou, melhor, buscar essa
vivência é uma má compreensão da própria humanidade. Como fora dito, a vida humana não é
monótona, tanto que em sua vivência ele enfrenta altos e baixos, e isso que caracteriza os sentimentos
e as relações humanas. O primeiro, nesse “mix” de sentimentos o ser humano torna-se criativo e
inova-se a cada momento, permitindo-se viver uma história única e pessoal; e o segundo, de uma
forma geral, iniciam-se em semelhanças para se edificarem nas diferenças.
A vida necessita do amor, do verdadeiro amor que é “dar a vida pelos amigos”10, e precisa
de pessoas que o assumam em sua totalidade, não somente os prazeres e deleites, mas também as
cruzes e sofrimentos, pois o amor se prova na adversidade.

Referências:

ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da filosofia: filosofia pagã antiga. Tradução de Ivo
Storniolo. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2003.

CHESTERTON, Gilbert Keith. O que há de errado com o mundo. 1° ed. Campinas, SP: Ecclesiae,
2013.

MARÍAS, Julián. História da Filosofia. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

RICARDO, Paulo, O namoro cristão, 2016. Disponível em


<https://padrepauloricardo.org/aulas/odiar-e-usar-dois-pecados-contra-o
amor?utm_content=buffer3b5fa&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_campaign
=buffer> acesso em 25 de maio de 2020

TERESA DE JESUS. Caminho de Perfeição. São Paulo: Edições Carmelitanas, 1995.

BÍBLIA de JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1989.

9
G.K. CHESTERTON, O que há de errado com o mundo, 2013, p. 59
10
João 15, 13

Você também pode gostar