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Introdução
A questão da felicidade está inserida em todas as dimensões da vida
humana. Na história do pensamento, desde os primeiros filósofos até os
atuais, é recorrente a discussão sobre o que significa a felicidade, quais as
tensões e relações existentes com a ética, e se existe algum meio para se
alcançar esta meta fundamental da existência. Filósofos como Aristóteles,
Epicuro, Sêneca, entre outros, consideraram que a felicidade é o grande
bem da vida, para o qual todos os indivíduos direcionam suas energias.
Entretanto, não existe consenso ao longo da história a respeito do que
constitui o caminho para se alcançar este objetivo. A felicidade depende
dos outros ou é uma satisfação individual? É possível conciliar a vida ética
com o objetivo de se obter a felicidade? De que modo? A formação ética
aproxima ou afasta o indivíduo da felicidade? Em que medida? Estas são
algumas das questões que irão nortear o presente estudo.
Neste capítulo, você vai se deparar com a questão da felicidade e
sua relação com a ética. Também iremos discutir a respeito das ten-
sões entre a formação ética e a felicidade enquanto objetivo humano
fundamental. Por fim, discutiremos ainda de que modo o conceito de
felicidade está presente na tradição da teoria utilitarista, e de que modo
esta vinculação entre felicidade e utilitarismo se apresenta no contexto
social da atualidade.
2 Felicidade
Felicidade e ética
No contexto da filosofia grega clássica, não era possível desvincular o con-
ceito de felicidade da noção de ética. Filósofos como Aristóteles (Figura 1)
descreveram o ser humano como uma espécie fundamentalmente social,
dependente do convívio coletivo.
Figura 1. Estátua de Aristóteles localizada na cidade grega de Estagira, terra natal do autor.
Fonte: Panos Karas/Shutterstock.com.
A Grécia clássica foi um período de cerca de 200 anos (século IV e V) na cultura grega.
Este período clássico viu a anexação de grande parte da Grécia moderna pelo Império
Aquemênida e sua posterior independência. A Grécia clássica teve uma poderosa
influência sobre o Império Romano e sobre os fundamentos da civilização ocidental.
Grande parte da política moderna, pensamento artístico (arquitetura, escultura), pen-
samento científico, teatro, literatura e filosofia deriva deste período da história grega.
Fonte: Grécia Clássica (2017).
que tal indivíduo realiza plenamente aquilo que é sua parte na constituição do
todo, alcança a felicidade, e ao mesmo tempo, alcança também a plenitude da
ética, ou seja, sua realização plena. O que lhe conferiu a felicidade é também
o modo de contribuir para o equilíbrio do todo, em última análise, para a
realização dos demais.
Aristóteles é apenas um exemplo para se notar como não é possível desvin-
cular a felicidade da ética, no contexto da filosofia clássica. Por entenderem
que existe uma articulação harmoniosa entre as partes e o todo, cada indivíduo,
ao alcançar a felicidade está contribuindo para o bem comum. Ao contrário,
pelo mesmo motivo, sempre que alguém não é capaz ou negligencia suas
potencialidades ao não colocar em prática seus talentos naturais, está agindo
de modo contrário à ética, isto é, aos costumes, à ordem social, ao que se
espera dele em termos de sociedade.
Antes de Aristóteles, Sócrates (pertencente da mesma tradição grega clás-
sica) também já afirmara a vinculação entre ética e felicidade. Para Sócrates
(1987), a vida ética dependeria da plenitude do conhecimento. O conhecimento,
em sentido pleno, permite que sejam evitados os principais erros humanos,
qual sejam, aqueles cometidos pelos impulsos materiais. O indivíduo, quando
não conduzido pelas ilusões dos sentidos, seria capaz de tomar decisões mais
ajustadas, contribuir para o bem comum, e atingir seus objetivos de modo
preciso, pois o saber está vinculado à compreensão teórica, conceitual, da
realidade. Acima de tudo, seria capaz de obter autoconhecimento, condição
indispensável para a felicidade segundo a concepção socrática.
definições, seja das finalidades assim como dos meios de se obter os fins
almejados, variam muito de uma época para outra, de uma sociedade para
outra, ou até mesmo de um grupo para outro.
Figura 2. A estampa impressa pela Alemanha mostra o retrato de Immanuel Kant, filósofo
alemão que é considerado a principal figura da filosofia moderna. Selo alemão -1974.
Fonte: Sergey Goryachev/Shutterstock.com.
termos que estariam bem próximos do que Aristóteles entendeu por felicidade,
isto é, a realização plena da humanidade, naquilo que possui de essencial.
Deste modo, é interessante notar que os filósofos, muito embora estabeleçam
conflitos profundos sobre a natureza dos conceitos discutidos, na verdade se
complementam, já que oferecem um ao outro, ou para as gerações seguintes
(como foi o caso dos empiristas e racionalistas em relação a Kant, posterior a
estes), elementos que não estão disponíveis em seu próprio contexto.
O utilitarismo é uma teoria em ética normativa que apresenta a ação útil como a
melhor ação, a ação correta. O termo foi utilizado pela primeira vez na carta de Jeremy
Bentham para George Wilson em 1781 e posto em uso corrente na filosofia por John
Stuart Mill na obra Utilitarismo, de 1861. Até a criação do termo “consequencialismo”,
por Anscombe em 1958, o termo utilitarismo era utilizado para se referir a todas as
teorias que buscavam sua justificação nas consequências das ações, em contraponto
àquelas que buscam sua justificação em máximas absolutas. Após a adoção do termo
consequencialismo como uma categoria, o termo utilitarismo passou a designar
apenas a teoria mais próxima daquela defendida por Bentham e Mill, a maximização
da promoção da felicidade.
Fonte: Maciel (2018b).
filosófica para determinar a relação entre meios e fins, mas também insere em
tal análise o detalhamento quanto ao grau e categorias específicas de cada prazer
ou desprazer, a fim de legitimar ou deslegitimar determinada ação ou escolha,
a partir de dados concretos acerca dos valores reais de cada experiência.
Em muitos sentidos, é possível identificar na teoria utilitarista a influência
do epicurismo. Entretanto, é preciso considerar a distância histórica e o con-
texto de cada corrente. Percebemos que o utilitarismo, por estar inserido no
contexto da era moderna, traz consigo características que são específicas a
este meio. Muito embora Epicuro (1999) também concebesse que a reflexão
seria o instrumento definidor das escolhas, a partir da análise entre prazer
e dor, os utilitaristas se aproximaram dos métodos de detalhamento que são
específicos da era moderna, com o intuito de criar dados e cálculos muito
precisos para determinar o valor de cada ação.
Outro ponto a considerar é o quanto este pensamento utilitarista foi absor-
vido pela sociedade ocidental a partir da era moderna até nossos dias. A noção
de que as relações, o conhecimento, e mesmo as pessoas, são valorizadas a
partir da utilidade ou inutilidade que representam, é um traço marcante da
sociedade ocidental. O utilitarismo, em seu sentido mais sombrio, insere nas
relações entre os indivíduos a marca do cálculo quantitativo como sendo o
único bem a ser apreciado. Nesta medida, a grande crítica à sociedade contem-
porânea recai justamente no raciocínio de que os indivíduos são importantes
na medida em que são úteis, e descartáveis quando nada possuem que seja de
interesse mercadológico. Tal crítica vincula-se estreitamente à problematização
da própria sociedade burguesa, baseada no modo de produção capitalista e
tendo o consumo como principal condutor das relações.
Leituras recomendadas
BENTHAN, J.; MILL, S. Os pensadores: Bentham - Stuart Mill. São Paulo: Abril Cultural, 1989.
KRAUT, R. et al. Aristóteles: a ética a Nicômaco. Porto Alegre: Artmed, 2009.
LEBELL, S. Epicteto: a arte de viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
MULGAN, T. Utilitarismo. Petrópolis: Vozes, 2012.
PASCAL, G. Compreender Kant. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. (Série Compreender).
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.