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INTENÇÕES ESPACIAIS

E PLÁSTICA EXPONENCIAL DA
ARTE
(1900-2000)

Stéphane Huchet
Sumário

Introdução. Um labirinto de questões

Primeira Parte.
Por uma nova arquitetônica pictórica (of greater scope)

Capítulo I. Laborátorios do passado


Capítulo II. Fazer corpo com a arquitetura: Monet, Matisse, Motherwell
Capítulo III. Desenclaves na pintura
Capítulo IV. A revelação do espaço: Proun Raum e Pavilhões
Capítulo V. Coeficiência ambiental: a muralidade
Capítulo VI. Dinâmica espacial, Mondrian
Capítulo VII. Novas arquitetônicas do agenciamento

Segunda Parte.
Agrimensores e espaçólogos (situations to be lived)

Capítulo VIII. Americamerica…


Capítulo IX. Campos de força in loco
Capítulo X. Site, Sight, Serra
Capítulo XI. “Ex-situ”, And-re/ar
Capítulo XII. Caixas-de-sentir, corpo-volume
Capítulo XIII. Logos e lugar
Capítulo XIV. Desvios na domus

A casa é o corpo
…uma certa montagem acerca do mundo que é a definição do meu corpo…

Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção


Introdução
Um labirinto de questões

Cada linguagem tem uma estrutura própria que não é criticável de dentro.
Para criticar uma linguagem, é preciso uma segunda que seja em relação com a estru-
tura da primeira, mas que possua uma estrutura nova.

Richard Serra

Limiar
Numa carta escrita em 1976 para comentar o trabalho Territórios II expos-
to em Belo Horizonte em 1969-70, Dilton Araújo precisava como a intervenção
que fez com seus colegas Lótus Lobo e Luciano Gusmão foi crescendo pouco
a pouco no tempo através do transporte da proposta inicial. A carta contem uma
frase simples, mas notável porque ela aponta para a nova dinâmica espacial
que a arte da época estava experimentando: “as primeiras idéias giravam em
tôrno de grandes brinquedos e sugeriam um arranjo intencional onde o usuário
pudesse experimentar sensações como andar sôbre superfícies curvas, perder-
se num labirinto ou usar um sapato de molas” etc. Dilton Araújo precisa depois
como a relação com os objetos (brinquedos) da futura instalação mudou confor-
me as possíveis apropriações que deles faziam em lugares propícios à compra
de material. Acrescenta: “resolvemos abandonar então a fase de laboratório e
partir para uma procura de coisas prontas que pudessem ser deslocadas de seu
habitat natural e incorporadas ao patrimônio estético de Territórios I.” Nesse
momento, a idéia dos três artistas é de realizar o novo Território no Aterro do
Flamengo, no Rio de Janeiro. Dilton precisa bem como a relação com o lugar se
revelou problemática. Os pilotis concedidos pelo MAM não deixavam a interven-
ção durar, por causa do vento forte. Mais longe, no Aterro, diz Araújo, “tentamos
construir um lugar. Mas a chuva estragou tudo.” Essas frases testemuham em
toda simplicidade a dificuldade de trabalhar numa dimensão que vai se revelar
central nesse livro: a intervenção e a proposta in situ (ou site specific) que, como


SERRA, Richard. “Entretien avec Peter Eisenman”, Skyline, The Architecture and Design
Review, New York, april 1983, in: Écrits et entretiens 1970-1989, Paris: daniel lelong éditeur,
1990, p.222

Carta de Dilton Araújo para Márcio Sampaio, Diamantina, 5 de março de 1976, in: catálogo
Neovanguardas, Museu da Pampulha, 23 de dezembro de 2007 a 16 de março de 2008, Belo
Horizonte, 2008, p.20

Idem, ibidem

Idem, ibidem
lembra Frederico de Morais, tinha surgido na arte da época. Dilton lembra enfim
como, através de “assídua correspondência”, o crítico sugeriu que, seguindo
uma palavra de ordem própria às intervenções site specific, “alí deixássemos
TERRITÓRIOS para que êste se integrasse na paisagem do lugar.” Essa carta
é exemplar dos novos horizontes situacionais trabalhados pela arte contemporâ-
nea cuja gestação se situa claramente na época em que Territórios II foi realiza-
do. Precisamente, as noções de deslocamento, tateamento, relação com o lugar,
arranjo, instalação são hoje centrais na arte. (Fig. 01).

Assim, o que é cha-


mado de instalação desde
os anos 1980 remete a um
01
leque complexo e rico de
experimentações, elaborações e audácias plásticas que exemplificam uma for-
ma singular de relação com o espaço e seu conceito, através das categorias de
ambientes, de environments e outras práticas espacializantes e situacionais. A
cristalização das tarefas da arte em torno da produção de tais dispositivos es-
paciais data dos anos 1960, mas é impossível entender o que acontece nesses
anos se não remontarmos no tempo a outros fundamentos e antecipações que
se concentram nas vanguardas dos anos 1920. É a história empírico-crítica da
plástica exponencial da arte, da conquista que parte do plano pictórico e que
chega à afirmação de capacidades de envolvimento espacial agindo na esca-
la de dispositivos construídos que esse livro almeja trabalhar. Cria um roteiro
no qual a seleção das referências na arte do século XX leva à apresentação e
análise das concepções, propostas e produções que, numa longa seqüência
temporal, transformaram a arte em lugar de experimentação de novas valências
e novas situações espaciais.
Na arte contemporânea, existem dois ambientes (ou environments ou ins-
talações) que propõem um trabalho muito potente e sintético sobre as possibili-
dades que a arte do século XX conquistou no domínio das práticas espaciais e


Idem, p.21

Idem, ibidem
espacializantes. São Desvio para o
vermelho, de Cildo Meireles (1967-
84) (Fig. 02) e Plight de Joseph
Beuys (1985). Como falaremos
bastante da primeira na segunda
parte desse livro, inauguremos a
reflexão que propomos aqui pela ci-
tação do que o próprio Beuys dizia
a respeito de Plight: (Fig. 03) “pen-
so que a temperatura é o elemento
essencial da escultura.” Essa frase
é importante porque, como artista,
conceptor e praticante do que ele
chamou de escultura social, Beuys
02
fazia depender a possibilidade de
a obra de arte, concebida, produzida e recebida em certas condições, contribuir
a uma reorganização positiva das energias e da consciência existenciais dos
seres, de sua capacidade de afetá-los em um nível térmico, gerando o que o
filosófo Henry Maldiney chama de climática do espaço. Plight, que faz parte
da coleção do Museu de Arte Moderna, Centre Georges Pompidou, em Paris,
propõe ao público um ambiente feito de feltro, a matéria fetiche de Beuys, o
espaço suscitando rapidamente uma sensação física de calor que envolve, ao
mesmo tempo que parece deixar vazar ou passar dimensões atmosféricas pou-
co a pouco inquietantes. O estranhamento decorre do fato de que os rolos de
feltro (1,50m de altura e 50cm de diametro) dispostos sobre todas as paredes
da sala (na Galeria Anthony d’Offay, em Londres, e Centre Georges Pompidou,
depois), opõem um silêncio quente e aveludado ao virtual barulho vindo do exte-
rior. É uma câmara de atenuação e afastamento do ruído. Toda uma antropologia
está a trabalho nessa instalação, repousando sobre os contrastes entre cultura
e natureza, fundadores da separação entre ambos que a casa e que os espaços
construídos trabalham, para confirmá-los ou para combiná-los de outra maneira.
É o que Plight faz, que opõe um instrumento de alta civilização – o piano da pri-
meira sala, com o termômetro que mede a temperatura ambiental na sua superfí-
cie -, e o feltro, detrito animal bruto, que apaga a música – ação conjunto do feltro
e da cobertura fechada do piano –, que fala de mudez e de constrangimento, isto
é, um espectro de sensações complexas, complementares ou contraditórias que
a situação de habitar ou ocupar tal ou tal espaço, seja domestico ou não, pode
suscitar. Beuys declara a seu respeito: o feltro


Stuart Morgan, “interview with Joseph Beuys”, Parkett, nº7, 1986, p.66

“Rencontre avec Henry Maldiney”, in: L’architecture au corps, (Chris Younès, Philippe Nys,
Michel Mangemantin, sous la direction de), Bruxelles: Ousia, 1997, p.9-23
protege do frio, das tempestades e do mundo exterior, porque contem mui-
to calor. É orgânico. Esse aspecto protetor – que protege as pessoas do perigo
– é o outro pólo de significação da obra… a idéia de uma sala de concerto sem
nenhum som parece totalemente negativa à primeira vista, mas ela é concebida
para sublinhar o limiar a partir do qual todo se move na direção de um ponto críti-
co. Tudo o que se encontra além desse limite é transferido, transsubstanciado, e
sem dúvida, a significação global da arte é a transformação completa e radical do
ser humano, que começa com o conhecimento de si mesmo.

Esse comentário do próprio Beuys nos leva do lado de uma verdadeira


missão da arte. Não é isso que problematizaremos aqui, porém, a ambição on-
tológica declarada do ambiente nos interessa porque ela situa de antemão uma
certa stimmung, uma certa acústica especulativa que as artes plásticas moder-
nas e contemporâneas instituiram durante sua rapidíssima evolução desde o
início do século XX. A nosso ver, elas instituiram o que poderíamos apresentar
como uma série exponencial de processos espacializantes capazes, a partir de
um certo grau de elaboração e sofisticação, de gerar, para usar a fórmula nova-
mente, uma climática do espaço… Assim, em 1985, Beuys ressalta as qualida-
des do espaço “habitado” – que superam a habitação doméstica para se ampliar
na questão, bem heideggeriana, da habitação poética e crítica do mundo –, que
reencontraremos muitas vezes nas referências apresentadas nesse livro. A ci-
nestesia de Plight torna-se o manifesto das possibilidades sensíveis, existenciais
e simbólicas contidas nos ambientes, dispositivos espaciais e situações artísti-
cas que ocupam uma grande parte do território da arte desde os anos 1960.

03
Essas dimensões ambientais – que os artistas já nos ensinam a pensar
como prioritariamente condicionadas de dentro e do interior germinal e celular do
espaço vivido – também representam o horizonte do trabalho complexo dos dois
artistas-chave dos anos 1960, Lygia Clark e Hélio Oiticica. Por eles instituirem


Stuart Morgan, “interview with Joseph Beuys”, Parkett, nº7, 1986, p.66
um diálogo sã e epistemologicamente convincente entre a plasticidade artística e
a plasticidade arquitetural, concordamos plenamente com o que David Sperling
escreve para restituir o teor da contribuição de Oiticica acerca da construção de
um conceito experimental e ambiental do espaço:

o arquitetural e o ambiental participam da trajetória de Oiticica como


sentidos estruturais de sua obra e como instâncias de re-fundação da arte e do
sujeito. A concepção de arquitetura – e o espaço decorrente que ‘projeta’ – extra-
vasa o sentido artístico, mas não se contém no entendimento restrito do ‘espaço
arquitetônico’. Ao contrário, ao repensar o espaço na arte, é possível absorvê-lo
como re-proposição de uma ontologia do espaço em arquitetura. A arquitetura
como manifestação ambiental. […] De saida, a concepção de arquitetura que se
extraí de Éden é a de ‘corpo’. Como o corpo em Merleau-Ponty, para Oiticica a
arquitetura não está no espaço, ela é no espaço […] Como corpo, a arquitetura
é uma totalidade espacial transformável. […] Ao espaço geometrizado, confor-
mado por limites claramente estabelecidos (representação-observador, dentro-
fora), contrapõe-se um espaço topológico contínuo, conformado por gradientes
de aberturas de participação e circulações, que se estruturam mutuamente. As
várias conexões possíveis entre os gradientes são o solo sobre o qual se dese-
nham malhas de experiências. Carácter de labirinto, ambiente aberto ao viver.10

Essa abertura crítica nos parece também ter relações concretas com as
reflexões que o filósofo Michel Serres estabelece quando nos diz que as prepo-
sições e os adverbios de lugar e de situação são determinantes nas questões de
espaço e situações espaciais. Assim, em Atlas, Michel Serres lembra que o es-
paço não é uma métrica –  uma métrica que o “universal abstrato” da arquitetura
não pára de reiterar até indigestão, incapaz que é, às vezes, de levar em conta
as dimensões da topologia. Serres a relaciona com os conceitos de vizinhança
e de proximidade. Escreve:

a topologia desposa o espaço de outra maneira, e melhor. Para isso fazer,


ela usa o fechado (dentro), o aberto (fora), intervalos (entre), a orientação e a
direção (rumo a, frente a, atrás), a vizinhança e a aderência (perto, sobre, contra,
seguinte, no tocante a), o prolongamento (dentre), a dimensão… e assim por
diante, que são realidades sem medida, mas relacionais. Outrora chamada por
Leibniz de analysis situs, a topologia descreve as posições e se exprime pelas
preposições.11

Precisamos reaprender o que dentro, fora, entre, rumo a, frente a, atrás,


perto, sobre, contra, seguindo, no tocante a, etc., exigem quando se projeta ou

10
SPERLING, David. “Corpo + Arte = Arquitetura”, in: fios soltos: a arte de hélio oiticica, São
Paulo: Perspectiva, 2008, p.125
11
SERRES, Michel, Atlas, Paris: Flammarion, col. “Champs”, 1994, p.71
quando se intervém nos planos urbanos. Para isso fazer, como diz Serres, é pre-
ciso ter uma visão environmentalista, environnementaliste, ambiental.

Integração
Mas então, mais um livro sobre arte e arquitetura? Se o que o motivou é,
antes, o desejo de implantar uma paisagem crítica para possíveis percursos in-
terdisciplinares na questão das práticas espaciais – nas quais a história que leva
da pintura à instalação é determinante em muitos aspectos –, a outra motivação
é ao mesmo tempo conjuntural e cultural: trata-se de uma certa resistência que a
corporação, notadamente acadêmica, dos arquitetos pode exprimir a respeito da
frequentação dos infrequentáveis, isto é, os artistas críticos, aqueles que dizem
algo aos arquitetos e urbanistas de seu eventual descontentamento ou, simples-
mente, de sua inquietude frente ao que a produção dos espaços habitados, tanto
arquitetônicos, quanto urbanos, virou, e como ela afeta as cidades nas quais
vivemos aqui e agora…
A frase de Richard Serra citada no epígrafo soa, portanto, como manifesto
da necessidade de uma abertura. Muitos dizem que o arquiteto se queixa hoje
– e sofre – da concorrência do designer, do geógrafo, do artista e outros profis-
sionais que pretendem projetar – competência tradicional do arquiteto – ou pen-
sar a arquitetura sem dominar o ofício. Isso gera atitudes de sucetibilidade, de
desconforto, de insegurança, de fechamento. Quando as artes plásticas, porém
já voltadas desde quase um século para uma exploração sem precedentes das
questões de espaço, de espacialidade, de lugar, de ambiente, de environment,
de site, de intervenção urbana etc., entram em cena para apresentar propostas
criticamente construtivas a respeito de dimensões inerentes à situação e à expe-
riência humana nos seus aspectos sensíveis, corpóreos, ambientais, topo-gráfi-
cos/lógicos, etc., isto é, desafios que, como produtores de espaços e ambientes,
os arquitetos e os artistas compartilham, a responsabilidade do pensamento e da
produção a seu respeito sendo estruturalmente distribuída nos dois campos…,
vêm algumas rugas na testa dos arquitetos. Ninguém nega que as finalidades da
arquitetura e das artes plásticas são diferentes. A dimensão programática da ar-
quitetura é inegável, mas acontece que o que os arquitetos podem fazer quando
eles estabelecem uma proposta para satisfazer a uma demanda programática
começou a interessar muito os artistas durante o século XX, estes se mostrando
amplamente empemhados em pensar a questão da produção de ambientes, de
espaços a serem habitados, experimentados, apropriados. Parece que esse fato
fica ignorado, ou quando não o é, muitos arquitetos realizam um curto-circuito
danoso que, ao mesmo tempo, constitui o escudo atrás do qual eles se escon-
dem: dizem que os artistas – e por extensão, os outros profissionais já citados
–, invadem seu campo ou querem submetê-lo a uma tomada de poder à força.
A situação gerada por essa realidade ou por essa ficção não pode ser tratada
pela denegação, pela fuga ou pelo fechamento identitário, já que é precisamen-
te a identidade do arquiteto que está em jogo. A relação com essa situação de
eventual invasão ou contaminação deve ser tratada como um sintoma cultural
e epistemológico. Exige o contrário do encolhimento disciplinar sobre certezas
obviamente obsoletas que, muitas vezes, correspondem a uma consolidação
pseudo-crítica, criticamente fraca e inconsistente de certezas e sedimentações
que constituem o último solo de segurança do ofício. Ora, o álibi do ofício é a pior
resposta à crise das certezas epistemológicas. É no nível dessas que se deve
trabalhar.
Precisamente, quando propomos aqui apresentar na sua dinâmica com-
plexa a contribuição extraordinária das artes plásticas à reflexão crítica sobre o
espaço, a espacialidade, os ambientes, o lugar, a experiênicia corpórea, é para
dizer, antes, que não é mais possível desconsiderar o fato de que a arquitetura
e as ditas artes compartilham o exercício da plasticidade – já em 1918, o pintor
Bart Van der Leeck definia a pintura e a arquitetura como sendo a serviço do
“mesmo conceito: o espaço e o plano”12 – e, além dela, a tomada em considera-
ção da dimensão plasmática da existência. Isso cria obrigações e necessidades
de explorar esse território para melhor criar as condições de uma troca dialógica
séria e assumida sem preconceitos. A partir desse partido, significa também que
não existe posição alguma de arrogância ou pretensão de dar conta da realidade
arquitetural de maneira unilateral, como se as artes plásticas se apoderassem de
repente da arquitetura. Elas nunca o fizeram e nunca o farão. Agora, insusten-
tável é a atitude que justifica a recusa de levar em conta a simples existência de
uma séria fenomenal de reflexões agudas sobre o espaço no âmbito das artes
plásticas desde as desconstruções cubistas de 1907 – já…–, no motivo de que o
monopólio dessas questões seria o apanágio dos arquitetos e só dos arquitetos.
Isso violenta a arte, porque a mantém presa na idéia equivocada de sua inuti-
lidade, no preconceito que diz que ela procede sem fins determinados – a arte
nunca foi inútil, nunca foi a-crítica, nunca foi desprovida de projeto, nunca faltou
a cada obra um destinatário, isto é, toda imagem e toda obra sempre produzi-
ram e construiram seu usuário. É ignorância completa ou má fé pretender que
existiu uma arte desinteressada. Portanto, a recusa em saber de arte violenta a
arte no seu núcleo simbólico, além de manter uma separação crítica que, muitas
vezes, reflete um simples fechamento metedológico, impensado, inquestionado,
nas seguranças do ofício. Esse livro, portanto, tem uma motivação polêmica,
sim. Ela se prolonga na questão do ensino de arquitetura. É surpreendente ver

12
VAN DER LECK, Bart, “Sur la peinture et l’architecture”, De Stijl, nº4, 1918, in: BOIS, Yve-Alain;
BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy,
Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda,
1979, p.380
como a sensibilização dos futuros arquitetos aos modos que os artistas moder-
nos e contemporâneos tiveram e têm de trabalhar a produção, a concepção e a
apresentação (exposição) de ambientes, através de environments, instalações
ou performances — modalidades que criam uma relação experimental com os
espaços —, podem às vezes ser vistos como suspeitos, inócuos, inúteis, des-
vios ou desvirtuamentos de um pretenso núcleo puro e duro da formação em
arquitetura. Podemos perguntar porque seria ainda “natural” formar os futuros
arquitetos nos moldes de um composicionismo ou de um modelismo de quinta
geração, baseado em linguagens visuais com as quais só os artistas retardatá-
rios trabalham, isto é, as formas geométricas elementares do pós-cubismo ou
de um abstracionismo engessado e totalmente datado – que, quizá, conforta
os partidos morfológicos da geometria dos cubos e paralelepípedos reprodu-
zidos em série na arquitetura que nos cerca – porque o aporte metodológico,
experimental de tantos produtores de espaços e ambientes, como tem tantos,
por exemplo, na arte contemporânea brasileira, seria inconveniente, provocati-
vo, desconfortável? É hoje urgente, em um época de violência instituída contra
o meio-ambiente, de desrespeito grave ao patrimônio, de tratamento cínico dos
lugares, etc., pensar em uma reformulação da formação e da sensibilização do
futuro arquitetura através de métodos e propostas de relação, concepção e apre-
sentação do espaço capazes de envolver o corpo, de pô-lo frente ao desafio do
trabalho na escala 1/1, para acabarmos com a geometria dos sólidos, sua com-
binação e reprodução, e inaugurarmos uma outra geo-metria, isto é, aquela que
o traço inter-mediário transforma em apropriação mais sutil e inteligente da terra
e do solo. Acreditamos que a espaçologia que futuros “agrimensores” realizarão
deverá muito à preocupação crítica que se mostra insistente desde muito tempo
em âmbitos disciplinares vizinhos, engajados que são, sim, em uma verdadeira
relação sensual com as dinâmicas espaciais, as experiências situacionais. Não
pedimos aos arquitetos se transformarem em artistas. Isso é outro equívoco, rídi-
culo. As aproximações através da conaturalidade e dos denominadores comuns
entre os dois campos parecem com os conjuntos matemáticos: uma parte da cir-
cumferência de cada um é comum aos dois, a parte restante do conjunto ficando
isenta, mas é só através da partilha do espaço prático e reflexivo comum que a
especificidade de cada campo firmar-se-á. É se abrindo ao heterogêneo, ao tra-
balhar com ele, ao se relacionar com ele em um contato integrado e integrador
à altura do desafio criado pela crise da arquitetura acima mencionada que cada
campo firmará ou reconstituirá sua autonomia e o campo de sua competência.
Só a abertura àquilo que, na heteronomia, interessa a autonomia, possibilitará a
renovação do campo porque trabalhará conscientemente o espaço que tem em
comum com o outro campo. A hetoronomia assumida ao serviço da autonomia:
é o que Christophe Le Gac diz em um artigo que pergunta: “quando (e onde) há
arquitetura?”13 e no qual podemos ler que “não existe uma verdade UNA do uso
como fato social, mas mil maneiras de praticar uma arquitetura”, e que é urgente
“querer convencer os arquitetos” de que, frente uma diminuição progressiva de
seu “raio de atuação” à medida que “as disciplinas vizinhas invadem seu terri-
tório”, eles devem olhar “alhures”, a única maneira de afirmar a autonomia da
arquitetura significando a abertura crítica e epistemológica às disciplinas afins.14
As artes plásticas, por exemplo, já se mostraram há muito tempo cons-
cientes da necessidade de inaugurar um movimento de ampliação exponencial
de seus espaços processuais e de suas espacialidades, o que a levou a encon-
trar fortemente a dimensão arquitetural. Veremos, por exemplo, como a questão
da relação com a parede é fundamental nas artes plásticas do século XX, de
maneira direta ou indireta, como ela gera um uso peculiar da cor, como isso leva
a pintura e a arquitetura a dialogarem. Precisamente, esse livro quer remontar a
certos fundamentos históricos para que a crescente ampliação do raio de atua-
ção da pintura possa ser entendida como preparo e antecipação de uma irrupção
de valências espaciais novas no campo das artes. Em termos epistemológicos,
Jean Clay diz que a relação entre arquitetura e arte significa que “cada corpus
só faz sentido ao produzir seu interpretante”15, o que assinala a inseparabilidade
entre experiênciais artísticas e arquiteturais e a necessidade de abrir o questio-
namento e a prática de uma arte a áreas afins para poder delas receber contri-
buições valiosas. Uma elaboração formal e teórica pode encontrar condições
favoráveis ao levantamento de suas potencialidades, de suas indicações, de
seus direcionamentos, de suas intuições por outra disciplina, conquanto haja um
denominador comum entre ambas. Quando veremos Hélio Oiticica elaborar ma-
quetes de espaços habitáveis, sua legitimidade teórica repousará sobre esse ar-
gumento. A história ajuda a entender que aquilo que recolhe, assume e leva mais
longe as elaborações formais e teóricas de uma disciplina vê ao mesmo tempo
seu processo de apropriação ampliadora disciplinado pelas determinações do
campo apropriado. É o que Clay formula da seguinte maneira:

importa não somente mostrar como a arquitetura, principalmente nos anos


1920, assume os objetivos da pintura e realiza uma grande parte de seu progra-
ma, mas também, invertindo o ponto de vista, como a pintura, no processo que
a muda e finda, vem a questionar e transbordar o lugar – físico, teórico – que

13
LE GAC, Christophe, “Quand (et où) y a-t-il architecture?”, in: Art Press, L’architecture contre-
attaque, Hors-série, mai 2005
14
Idem, p.15
15
CLAY, Jean, “Contre-épreuve”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean,
Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda,
1979, p.138
pretendia anulá-la englobando-a.16

Essa frase lúcida, plena de exigências históricas e epistemológicas, esta-


belece os termos de um diálogo necessário mas obrigatoriamente dialéctico.
Para levar adiante nossa proposta, seria portanto desejável realizar uma
arquiteturação crítica do conhecimento espacial, o que muitos artistas são ca-
pazes de realizar através de produções que tangenciam as questões e proble-
máticas arquiteturais de tal maneira que a arquitetura neles se torna um recurso
metodológico para estruturar proposições críticas acerca do espaço. Nisso, o
plano do conceito se revela determinante. O desprezo ou o rebaixamento do
conceito a uma mera dimensão induzida pela prática nunca nos convenceu. Ela
mantém uma heterogeneidade infeliz. Por quê? Porque o conceito não é desma-
terializado. Aconselhamos a todos os contemptores do conceito a apresentação
possante que Gilles Deleuze dele faz quando estrutura-lhe a geologia estratifica-
da. Ou ler uma frase magnífica do último parágrafo de A imagem-tempo, onde o
trabalho do conceito não é o trabalho de alguma teoria que cohabitaria com ou
que acompanharia alguma prática, esta dando os fundamentos e a teoria sendo
um para-sito (para-site, para-sítio) do núcleo de certezas e de atestação que só a
prática propiciaria. Não. Não, porque o trabalho do conceito é uma prática plena
e total, e como prática entre outras – e com relação às quais ela não tem nenhum
tipo de relação prevalência ou de dependência –, ela gera também coisas, pro-
duz coisas, e não só vãs idéias. Aliás, as idéias agem, também afetam os corpos
e os seres. Como escreve Deleuze:

a teoria filosófica é ela mesma uma prática, tanto quanto seu objeto. Ela
não é mais abstrata do que seu objeto. É uma prática dos conceitos, e deve-se
julgá-la em função das outras práticas com as quais ela interfere. […] É no nível
da interferência de muitas práticas que as coisas se fazem, os seres, as imagens,
os conceitos, todos os tipos de eventos.17

Nesse sentido, o que propomos começar a pensar são as condições de


possibilidades empírico-críticas e empírico-transcendentais de um compartilha-
mento no mesmo platô das valênciais espaciais que as práticas tanto artísticas
quanto arquiteturais trabalham em comum… É hora de ver surgir aqui e agora
uma consciência disciplinar da existência de um mesmo estofo, de um território
conceitual compartilhado, o sentido simbólico dessa partilha remetendo, por que
não, à demonstração conceitual que Hegel fez, no seu tempo, da origem comum
da escultura e da arquitetura…

16
Idem, ibidem
17
DELEUZE, Gilles, Cinéma 2. L’image-temps, Paris: Minuit, 1985, p.365
Ritmos
É habitual remeter, quando se fala dos anos 1950 e 1960, à idéia de
uma saída fora do quadro, de uma transgressão definitiva da moldura, proces-
so que a historiografia não-brasileira remete quase sempre à articulação entre
Frank Stella, pintor, e os minimalistas. Com razão. Agora as modalidades inter-
namente “pictóricas” desse processo, que, como veremos, reenviam a muitos
artistas, são, na verdade, espalhadas no tempo e suscitaram notadamente no
Brasil contribuições não menos decisivas. Quando lemos, por exemplo, a re-
capitulação que Paulo Herkenhoff faz em volta do ano 2000 da trajetória de
Lygia Clark, o vemos insistir sobre a fase das Superfícies moduladas (Fig. 04)
dos anos 1956-57, sendo elas os primeiros passos na abertura do plano pictó-
rico para o espaço tridimensional, passos que, de maneira sempre teleológica,
representam os primórdios de uma estética espacializante, ambiental e perfor-
mática que, metodologicamente, Lygia Clark emble-
matiza de maneira perfeita. A evolução de sua arte
é uma das mais claras, sólidas, decisivas, sintéticas
e convincentes exemplificações das etapas, fases e
ritmos que a arte internacional do fim dos anos 1950
até o início dos anos 1970 realiza quando ela elabo-
ra as modalidades e os critérios formais, críticos e
epistemológicos de uma exploração do campo am-
pliado das expressões estéticas espaciais e espacia-
lizantes. Paulo Herkenhoff reconstitui perfeitamente
a evolução da artista na direção do espaço corpôreo
quando já repara nos primeiros trabalhos dela, em
1954, a abertura de um extraordinário processo de 04

exploração espacial. Sua interpretação é nítida:

Lygia Clark é o “criador” que, na segunda metade do século XX, realizou a


mais profunda investigação sobre o espaço, a mais rica. Na sua pesquisa, Clark
faz aflorar o espaço sempre inesperado, aquele que nos leva à própria lógica
da existência. Podemos pensar que a Clark de Quebra da moldura (1954), da
Descoberta da linha orgânica (1954) dividiu a superfície, lhe deu uma coesão e
a ativou. […] Para que o plano ganhe efetivamente uma dinâmica até agora não-
explorada, é preciso trabalhar com a idéia de que ele tem um caráter físico con-
creto, uma corporeidade. O plano, portanto, tem uma espécie de espessura que
é conceitual, mas que deve também ser física, para que a teoria possa funcionar
e os problemas plásticos concretizados.18

18
HERKENHOFF, Paulo, “Diagrama de vida”, entrevista de Suely Rolnik com Paulo Herkenhoff,
1 de maio de 2005, in: Lygia Clark de l’oeuvre à l’événement, Musée des Beaux-Arts de Nantes,
2005, p.83. Esse texto de Herkenhoff é um excelente material crítico para abordar as questões
que nos interessam nesse livro…
É fundamental entendermos, quando lemos uma análise como esta, que
a produção de condições de possibilidades para experimentar o espaço passou
por fases artísticas que representam os ritmos históricos de uma investigação
acerca dos modos de estruturação formal e plástica dessa experiência. Nesse
sentido, inaugurar uma reflexão sobre a dinâmica artística que leva progressiva-
mente a formas de arte hoje emblematizadas pela instalação a partir do plano
pictórico é a coisa mais justa e legítima a fazer. É nos anos 1960 que o núcleo
principal dessa dinâmica encontra suas condições de cristalização.
Assim, no Correio da Manhã do 18 de junho de 1967, Mário Pedrosa já
propunha, a partir das explorações e implosões do plano pictórico pela mesma
Lygia Clark uma síntese perfeita da evolução em questão. Ele identificava logo
em Lygia Clark o que todos nós, hoje, repetimos a saciedade: o fato de ela ter
tentado “desmoldurar o quadro pictórico para que o mesmo, flutuando no espaço
real, se identificasse com aquele.”19 Esse “plano solto no espaço” é relaciona-
do com razão por Pedrosa com o “ato mágico” de Fontana alguns anos antes,
quando “não só perfurou o quadro, mas o talhou com sentido espacial […] Para
ele, não se tratava de fazer quadros ‘espaciais’ ou esculturas ‘espaciais’, mas
de abordar em si mesmo o ‘conceito espacial’ (grifo nosso) da Arte.”20, Isso leva
Pedrosa a formular o lema que se impôs na terminologia crítica em curso hoje
na historiografia da arte, o fato de que nesse conceito, inevitavelmente, pintura
e escultura se fundiam ou perdiam suas respectivas especificidades convencio-
nais. Na seqüência do artigo, Pedrosa fala de Amílcar de Castro, mas dá a sentir
que não é a escultura que motiva em profundidade sua análise da passagem do
plano para o espaço real, mas pelo contrário aquilo que vem da pintura. O que
diz de Amílcar ou de Franz Weissman, por exemplo, resta relativamente conven-
cional: Amílcar,

protagonista desse movimento de luta com ou contra o plano […] chegou,


à sua maneira tímida e silenciosa, a romper as limitações situacionais (grifo nos-
so) da escultura para transformar suas realizações em objetos voltados para si
mesmos […] Castro (e Weissman também, na sua fase concretista) libertou suas
esculturas de qualquer precisão de base. […] Partiu do plano material, do ferro
para uma aventura espacial de aparência modesta […].21

Vemos bem que , apesar das “implicações metafísicas” que Pedrosa repa-
ra em Amílcar, ele não lhe atribui o peso que atribui à “derivação transcendental”
trazida por Lygia Clark, antes pintora, com seus Bichos: estes “apontava(m) para

19
PEDROSA, Mário, “Da dissolução do objeto ao vanguardismo brasileiro”, in: Mundo, homem,
arte em crise, São Paulo: Perspectiva, 2a edição, 1986, p.163
20
Idem, p.165
21
Idem, p.166
a necessidade de se estabelecer com o outro uma relação perdida […] origem
da famosa participação do espectador na obra de arte.”22
Com efeito, o horizonte da participação do público torna fundamental uma
inteligência dos aspectos experimentais inerentes ao processo de ampliação es-
pacial das artes plásticas durante o século XX, isto é, de suas maneiras de criar
condições plásticas de envolvimento crescente do espectador ou experimenta-
dor das obras ou dos dispositivos artísticos. É o que a primeira parte do livro pro-
blematiza. Através de alguns exemplos, Por uma nova arquitetônica pictórica (of
greater scope) propõe uma restituição possível da evolução da relação prática e
crítica da pintura com o conceito de espaço e com o desafio de pensar e produzir
novas modalidades espaciais a partir do plano bi-dimensional. É fato histórico
que as experimentações e os avanços decisivos na direção de novas espaciali-
zações na arte moderna dependem quase exclusivamente do campo pictórico,
das primeiras revoluções no plano bidimensional, e não do campo escultural…
Isso nos leva de De Stijl a Hélio Oiticica, através de um conjunto complexo e
sinuoso de parâmetros históricos e teóricos que justificam a apresentação das
análises sob a égide da busca de novas arquitetônicas para a pintura. Assim, va-
lorizaremos a relação da pintura com o espaço arquitetural, através da questão
da parede, do muro, isto é, as convergências crescentes entre o (efeito) parietal
– preferimos esse termo ao de “mural”, porque descartamos aqui o estudo do
muralismo no seu sentido programático, didático ou político – e as valências da
cor, sobretudo monocromáticas, que adquirem sempre mais força no decorrer do
século XX como geradores de ambientes envolventes. Assim, as produções ou
os dispositivos que analisaremos antecipam todos a exploração temporalmente
mais concentrada das modalidades de apresentação espacial da arte nos anos
1960, isto é, como já dissemos, tanto no minimalismo, no neoconcretismo ou
outras estéticas situacionais. Assim, antes de analisarmos mais tarde o que diz
precisamente respeito à década de 1960-70, devemos aprofundar os cernes,
os componentes e os conceitos vinculados a essa exigência histórica de pro-
blematização da apresentação da obra ou do dispositivo artístico. Essa questão
já ocupou, por exemplo, Piet Mondrian ou El Lissitzky nos anos 1920-30, sob
modalidades plurais.
Na segunda parte, atravessamos com alguns Agrimensores e espaçólo-
gos (situations to be lived) as diversas e múltiplas formas – ainda que de maneira
também fragmentária – de certos artistas contemporâneos trabalharem, pensa-
rem e produzirem – três verbos que reenviam apenas a três pulsos no corpus
de um mesmo processo – espaços, dispositivos, environments, ambientes ou
instalações nos quais o desafio de se relacionar com os lugares, com os sites
e também com a imagem do espaço habitado – a domus – determinam obras

22
Idem, p.164
e/ou contribuições críticas singulares (a obra a nosso ver muito significativa de
Cildo Meireles, Desvio para o vermelho (1967-84) servirá em certos momentos
de cursor). Refletiremos, na ocasião, sobre algumas questões mais conceituais,
ligadas ao conceito de lugar.
Essa série histórica torna patente nos anos 1960 uma forma de conver-
gência e de cristalização artística das duas linhas pioneiras que encontramos
na primeira parte do século XX, a pictórica e a arquitetural, cujos diálogos e
intercâmbios, sabemos, foram intensos e muito produtivos, a ponto de diluir as
fronteiras. Com os anos 1960, temos a possiblidade retroperspectiva de fazer
dessas duas frentes pioneiras um componente genealógico único para compor
uma matriz histórica experimental e teórica de fundamental importância para a
análise da década do minimalismo, do neoconcretismo e outras práticas situa-
cionais.
Enfim, na hora de nos aproximarmos de um encerramento provisório
do questionamento, retomaremos brevemente certas questões abordadas nas
partes anteriores, para sugerir como a estética exponencial da arte moderna e
contemporânea procurou inventar novas modalidades de relação com o corpo,
uma categoria que atravessa de várias maneiras tudo que se analisou nas duas
primeiras partes. Corpo perceptivo, corpo sensível, corpo experimental, corpo
fenomenológico. Isso nos leva à seguinte confissão: o monumento de pensa-
mento do espaço, do corpo, que Maurice Merleau-Ponty publicou sob o titulo
de Fenomenologia da percepção é para nós um texto incontornável cuja leitu-
ra precisa ser incessantemente feita, refeita, incentivada, reincentivada a cada
momento. Se existem enunciados que concentram, em centenas de páginas,
algumas das dimensões que tentamos modestamente apresentar e problemati-
zar aqui, é no livro de Merleau-Ponty que os encontramos. Meditemos sobre a
meditação de Merleau-Ponty acerca do Aqui de toda situação humana:

a palavra ‘aqui’ aplicada a meu corpo […designa] a instalação das primei-


ras coordenadas, a ancoragem do corpo ativo em um objeto, a situação do corpo
perante suas tarefas. O espaço corporal pode se distinguir do espaço exterior e
envolver suas partes em vez de desdobrá-las, porque ele é a obscuridade da sala
necessária à clareza do espetáculo…23

Tal é para nós o enunciado que melhor apresenta a paisagem teórica que esse
livro instala.
Assim, sua organização parece com o que a citação de Merleau-Ponty
ressalta da situação do corpo na sua relação com o horizonte da vida: trata-se

23
MERLEAU-PONTY, Maurice, Phénoménologie de la perception (1945), Paris: Gallimard, col.
“tel”, 1987, p.117
nele de uma montagem, de um dispositivo que quer ser um sitting e um in situ
epistemológico em um espaço que foi questionado, problematizado, pensado,
trabalhado, produzido – glorificado como uma urgência artistica – na maioria
das experimentações plásticas do século passado. Não pode ser um gesto total,
totalizante. Reivindica voluntariamente a dinâmica do fragmento…


Parte I

Por uma nova arquitetônica pictórica

(of greater scope)

A pintura moderna transforma a corporeidade em planaridade e, pela destruição do


natural reduzido em termos de plano, pela compreensão do espaço, atinge as relações
espaciais. A arquitetura constrói; ela cria uma corporeidade orgânica através de rela-
ções fechadas.

Bart van der Leck24

24
VAN DER LECK, Bart, “La place de la peinture moderne dans l’architecture”, De Stijl, nº1, 1917,
in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch
et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de
l’espace, Corda, 1979, p.378
Capítulo I
Laboratórios do passado

Se hoje se fala tanto em dispositivos artísticos, não devemos esquecer a


preocupação marcante que os artistas já tiveram no século XIX e no início do sé-
culo XX no que tange aos modos de instalação e exposição de suas obras. Sem
nos estendermos até as práticas espaciais mais amplas das últimas décadas do
século XX, podemos reconstituir uma dinâmica histórica de expansão da obra no
espaço, interessando tanto o artefacto quanto o edifício ou o lugar de exposição.
Essa história começa com Courbet e Whistler na segunda metade do século XIX.
Eles, e muitos artistas modernos das vanguardas, tiveram uma pesquisa voltada
para a questão da obra como disciplina e espaço de demonstração de uma von-
tade de completude física, notadamente através de modos de exposição garan-
tindo a oferta de condições adequadas e convincentes de apresentação e leitura
de suas obras. Talvez conhecemos todos o que aconteceu em 1855 durante a
Exposição Universal de Paris, com Gustave Courbet. Insatisfeito pela perspec-
tiva de ver suas pinturas apresentadas de maneira inadequada, — sua disposi-
ção em diversos pontos do pavilhão reservado às Belas Artes dispersando-as
no meio de outras sem relação com elas —, ele construiu um bungalow inde-
pendente para quarenta de suas obras. Definiu assim um espaço de exposição
paralelo inteiramente consagrado à sua produção e organizado de maneira a
fornecer às telas um lugar específico, autônomo, autocentrado, onde pudessem
constituir um ambiente expositivo total, sem contaminação, sem desperdício de
força, concentrado, medido como deveria, para as obras formarem um conjunto
capaz de levar cada uma delas a ser otimizada em si e no conjunto.
Este espaço – espaço de exposição, espaço de exhibição, espaço de
habitação – como totalidade estética, representa uma idéia fundamental para
inaugurar uma reflexão sobre as imemoriais relações entre arte e arquitetura. No
entanto, na modernidade, devemos ressituar sua presença nas áreas de des-
taque como a Inglaterra de William Morris e James McNeill Whistler no século
XIX. Como lembra Nancy Troy, para os integrantes do movimento Arts & Crafts,
“a integridade moral de um artista se manifestava no ambiente concebido por
ele, pela qualidade dos objetos nele colocados e, enfim, pela maneira de eles se
acordarem.”25 Ela lembra como, por extensão, a harmonia assim criada repre-
sentava um valor do qual os materiais e meios empregados para realizá-la se be-
neficiavam. É interessante frisar que essa visão apresenta sucintamente alguns
dos elementos formais e processuais que, no fim do século XX, comporão a

25
TROY, Nancy, “Le contexte historique: éthique et esthétique”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI,
Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts
plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.73
estrutura da instalação, porque a genealogia das práticas espaciais deve por em
perspectiva no passado o futuro por vir, assim como este remete a suas anteci-
pações históricas. James McNeill Whistler, pintor, dava uma grande atenção aos
espaços de exposição que ele concebia. Eram tantos ambientes com os quais
os quadros deviam entrar em harmonia. O trabalho de decoração de Whistler
consistia principalmente em combinar cenários para seus quadros. “Whistler via
em todo espaço de exposição – aliás, como em todo espaço no qual sua obra
deveria ser mostrada –, uma extensão do quadro das pinturas que deviam entrar
nele.”26 Conceber a parede, a peça chamadas a receber a pintura representa por
parte de Whistler uma atitude claramente antecipatória das práticas de ambien-
tação artística posteriores.
Ao ver que Whistler, em colaboração com o arquiteto de sua casa, Edward
Godwin, concebeu para a Exposição Universal de 1878 um interior predomi-
nantemente vazio, apesar da presença de móveis dos ateliês Morris e de pin-
turas, mas pinturas “abstratas”, não conseguimos refrear a vontade de pensar
que essa sala experimental podia ter analogias sérias com, por exemplo, Desvio
para o vermelho, de Cildo Meireles, cem anos mais tarde, com sua afirmação de
uma tonalidade predominante, as pinturas puramente abstratas sendo integra-
das num jogo mútuo dentro de um cenário interior. Agora, é claro que Desvio se
situa no contexto de uma reflexão crítica sobre o estatuto da obra de arte frente
a seu devir-mercadoria, a seu achatamento no consumo nihilista de valores etc,
quando, na sala de Whistler e Godwin, trata-se de uma motivação quase mu-
sical, de uma busca de espaços cuja substância estética represente também a
assunção de uma materialidade fina e de um ambiente sensitivo de qualidade.
É no mesmo fim de século XIX que o interior pintado e a música se encontram
na sala de música, centro estético da casa, como disciplinas de uma mesma
moeda. Alemanha e Aústria em primeira linha, e arquitetos como Peter Behrens,
Charles Rennie Macinstosh ou Henry Van de Velde.
Van de Velde tem uma abordagem ética da questão. O objetivo dele é
“a renovação do meio humano”27, começando, para isto fazer, por investir na
renovação do “lar”, valor que, sabemos, é um dos quatro elementos da arquite-
tura tanto para Gottfried Semper quanto para Adolf Loos28. Sua visão moral do
interior, exigente, o levou a ressaltar o quanto o interior não pode ser reduzido
a aspectos de projeção idiossincrática e psicológica. Quando Van de Velde es-
creve nas suas memórias: “eu me recusava a admitir, na minha própria casa, a

26
Idem, ibidem
27
Idem, p.77
28
Ler HUCHET, Stéphane, “Horizonte tectônico e horizonte ‘plástico’ – de Gottfried Semper ao
grupo Archigram. Pequena genealogia fragmentária”, in: Cinco textos sobre arquitetura. MALARD,
Maria Lúcia, (org.), Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p.170-233
presença de um objeto que não fosse tão fundamentalmente honesto, tão indu-
bitavelmente autêntico e, enfim, tão claramente acima de toda suspeita na sua
concepção quanto o carácter dos amigos que recebia”29, podemos (e devemos)
expulsar a caução que, bem no tom da época, a natureza vital e o crescimento
orgânico ofereciam à sua arte, para ver como a terminologia moral adotada por
ele — rejeitar “as camuflagens formais insolentes [que] exerce[m] uma influência
tão imoral quanto o homem que funda sua vida sobre um tecido de mentiras”30
—, antecipa o rigor também moral que um minimalista como Don Judd terá ao
reclamar a necessidade de criar uma arte sem nada sucetível de satisfazer de-
mandas psicológicas e estéticas de carácter ilusório. Nunca devemos deixar de
insistir sobre a importância da questão moral na relação dos produtores de ar-
tefatos com a matéria e a materialidade. Van de Velde tinha essa preocupação.
Quando ele recusava o ornamental como categoria da não-integração entre uma
forma e seu material, – definindo pelo contrário o ornamento como adaptação
da forma e do material –, ele dava à corporeidade global do espaço um valor
supremo. Isso, de novo, não deixava de antecipar sobre muitas das preocupa-
ções que surgirão na arte dos anos 1960, com a idéia, em Judd, por exemplo,
do uso de materiais sem possibilidade de desvios estetizantes ou Richard Serra
fazendo da obra a materialização de seu processo de formação – motivação que
faz Serra dar a mão tanto a Loos quanto ao artista construtivista russo Wladimir
Tatlin, que preconisava trabalhar “materiais reais em espaços reais”.
A concepção global da casa, do edifício etc., punha em questão a autoria,
a concentração ou a repartição das tarefas entre profissões vizinhas mas se-
paradas. A casa, o edifício: síntese de uma colaboração, harmoniosa ou tensa,
entre arquiteto e pintor? Não entraremos no detalhe dessa questão, mas é im-
portante lembrar que ela leva a pensar a responsabilidade compartilhada ou não
no que tange ao uso e à instrumentalização dos materiais, instância de todas
as preocupações morais na época. Já fizemos alusão à posição crítica de Adolf
Loos. Muitos arquitetos e críticos do início do século XX, atentos à distribuição
equânime das tarefas, à identidade das práticas, para melhor poder, às vezes,
combiná-las depois, ressaltaram os aspectos problemáticos da colaboração.
Como escreve Nancy Troy, “’colaborar’ significava perder o controle absoluto da
forma final que um dado projeto tomaria, e a maioria dos arquitetos repugnava a
compartilhar sua autoridade com outros cujos princípios estilísticos arriscavam
divergir.”31 Essa consideração a leva a citar o que R.N. Shaw escrevia em 1904:

SHAND, Morton P., “Henry Van de Velde. Extracts of his memoirs: 1891-1901”, The Architectural
29

Review, nº112, sept. 1952, p.148


30
Idem, ibidem
31
TROY, Nancy, “Le contexte historique: éthique et esthétique”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI,
Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts
plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.83
os pintores falam muitas vezes do arquiteto como do ‘homem que faz a
caixa’; dando assim a entender que o papel do arquiteto consiste em construir a
casca da casa, as paredes, o solo, as coberturas etc... e que, uma vez tudo isto
acabado, o pintor deve entrar em cena para enobrecer ‘a caixa’ pela cor, o sen-
timento e a arte. Pobre pintor! Ultimamente, o arquiteto tomou uma posição toda
diferente; ele prefere fabricar ‘a caixa’ conforme seu gosto, em função dos ditados
de seu próprio egoismo artístico, sem mais se preocupar com as demandas do
pobre pintor [...] O arquiteto trabalhou para seus próprios fins, sem conceder se-
quer um pensamento ao pintor.32

Reconheçamos que, na sua primeira parte, a análise de Shaw interessa


o futuro porque mostra que a questão do “cubo branco”, da caixa ou do espaço
neutro de exposição – problematizados nas artes plásticas e na crítica de arte
dos anos 1970, motivando suas reflexões a partir da ausência de uma relação
positiva de integração entre obras, dispositivos e espaço de apresentação —,
encontra-se antecipada por Shaw num contexto, decerto outro, mas onde as
questões críticas, oriundas do levantamento de problemas práticos, convergem.
Tudo isto cria as condições para que uma relação positiva entre arte e arquitetu-
ra seja pensada, respondendo a uma demanda. É o que acontece com o grupo
de vanguarda holandês De Stijl, a partir de 1917.
A questão da relação entre artes e arquitetura na concepção, criação e
construção do espaço é complexa. Lembramos que sua história não foi ainda
escrita, mas que o pouco que se sabe permite enxergar seus desafios: são da
ordem da colaboração, da tensão, da partilha das responsabilidades, da con-
corrência, da superposição das competências, da hierarquia etc. Frente a essa
situação, precisa Nancy Troy,

os membros de De Stijl entenderam que uma associação só era possí-


vel se pintores e arquitetos fundassem seu trabalho sobre uma estética comum.
Mais, superando aí o simples problema da integração das artes, quiseram por em
relevo o denominador comum da pintura e da arquitetura, a saber, a superfície
plana, conferindo-lhe um teor teórico.33

Do ponto de vista lógico, é a partir desse denominador comum que a


pintura e a arquitetura vão definir o que cada uma tem em próprio, seu núcleo
essencial, mas um núcleo que precisa da partilha para ser desvendado. O pintor
Bart van der Leck escrevia em 1918 na revista De Stijl que

32
SHAW, R.N., “The Home and its Dwelling Rooms”, The British Home Today, New York, 1904,
p.104-105
33
TROY, Nancy, “Le contexte historique: éthique et esthétique”, in op. cit., p.84
é só quando os meios de expressão de cada arte estiverem aplicados em
toda sua pureza, isto é, conforme as características de sua natureza e de sua
finalidade, de tal maneira que cada arte alcance sua essência enquanto entidade
autônoma, que um entrelaçamento e que uma soledariedade serão plenamente
possíveis, interrelação que tornará manifesta a unidade das diversas artes. […]
Porque a arquitetura nasce da imbricação e do encaixe de artes autônomas e
independentes que não excedem os limites de sua área.34

Assinalemos como essa análise é extraordinariamente próxima do núcleo


modernista mais radical do crítico de arte Clement Greenberg trinta, quarenta
anos mais tarde. E vale ressaltá-lo, quando vemos que van der Leck faz depen-
der a “arquitetura moderna” da capacidade de as artes, por serem plenamente
autônomas, convergirem em um mesmo espaço total — mas, no caso, essa con-
vergencia não é mais greenberguiana. Como comenta ainda Nancy Troy,

a ‘essência’ da pintura e da arquitetura que eles queriam por em evidência


em seu trabalho residia paradoxalmente em seu denominador comum: são os
artistas de De Stijl que, os primeiros, assimilaram a planaridade pictórica à mu-
ralidade arquitetural. [...Eles] terão fornecido, através de seus textos e de suas
realizações, os instrumentos de análise dos quais dispomos hoje para tratar da
articulação pintura/arquitetura.35

Essa análise é fundamental. Ela situa os parâmetros da relação que nos


interessa aqui. Com De Stijl, a boa integração arte e arquitetura encontra como
se formular dentro dos moldes da vanguarda experimental, capaz de pensar as
propostas ao mesmo tempo mais renovadoras e mais condizentes. Voltaremos
a ela depois.

Várias são as “tradições” que poderíamos escolher para analisar essas


relações. Assim, um ponto de partida sintomático é o de Paul Valéry, poeta e
filósofo muito atento aos fenômenos estéticos e simbólicos. Em 1923, ele lamen-
tava o fato de que as artes eram órfãs de sua mãe, a arquitetura, e que elas se
encontravam perdidas, sem amarras, à deriva. Refletindo sobre “O problema
dos museus”, Valéry falava de seu “mal estar” frente à função perturbadora da
instituição que faz cohabitar de maneira errática as obras de arte. Na verdade,
sob o nome de museu – mas não aprofundaremos essa questão aqui –, trata-se
da substituição dos antigos continentes da arte – os palácios, as igrejas etc., que

34
VAN DER LECK, Bart, “Sur la peinture et l’architecture”, De Stijl, nº4, 1918, in: BOIS, Yve-Alain;
BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy,
Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda,
1979, p.379
35
TROY, Nancy, “Le contexte historique: éthique et esthétique”, in op. cit., p.84
sabiam envolver, articular, integrar entre si e consigo, organi(ci)zar as diferentes
artes, sobretudo a escultura e a pintura —, por um lugar cuja função social e cul-
tural faz cohabitar produtos que perderam sua relação integrada com seu lugar
de producão e inserção originário:

pintura e escultura, diz-me o demônio da explicação, são crianças aban-


donadas. Sua mão morreu, sua mãe Arquitetura. Enquanto vivia, dava-lhes seu
lugar, seu uso, seus limites (contraintes). A liberdade de errar eram-lhes recusada.
Tinham seu espaço, sua luz bem definida, seus temas (sujets), suas alianças...
Enquanto vivia, sabiam o que queriam.36

À leitura de Valéry, a arquitetura aparece como uma forma de matriz glo-


bal, de determinação logicial (logiciel, o nome francês para software) das tare-
fas, dos lugares, do uso e das alianças mútuas entre as artes. A arquitetura era,
antes, o organigrama virtual de suas especificidades. Essas considerações, na
sua motivação profunda, bastante nostálgica, se mostram ciêntes, de forma si-
lenciada mas implícita, das elaborações contemporâneas mais interessantes na
arte do momento. (Lembramos que, por coincidência, 1923 é o ano do início do
Merzbau (Fig. 05) de Kurt Schwitters e o primeiro ambiente Proun de El Lissitsky,

05

36
VALÉRY, Paul, “Le problème des musées”, Pièces sur l’art, in: Oeuvres, vol. 1, Paris: la Pléiade,
1960, Citado por CARERI, Giovanni, “Le vertige du mélange. Architecture, sculpture, peinture”,
Cahiers du Musée National d’Art Moderne, nº39, Paris: Centre Georges Pompidou, printemps
1992, p.6.
que o primeiro readymade de Marcel Duchamp e que a primeira colagem tri-
dimensional de Picasso já foram inventados dez anos antes, em 1913, assim
como as produções espaciais do construtivismo, a montagem ou a fotomonta-
gem dadaísta). No contexto francês, o cubismo, a grande revolução artistica e
formal já consolidada graças a seu reconhecimento na época em que Valéry
escreve, representaria para o filósofo o paradigma da confusão artística, esté-
tica e cultural moderna. Diante dessa arte moderna – porém não referenciada
por Valéry a um movimento específico –, e do sistema museográfico e simbólico
dos museus – que, na época, eram verdadeiros bric-à-brac –, o poeta e filosó-
fo escreve: “meu mal estar [...] nota ou inventa não sei que relação entre essa
confusão que o obceca e esse estado atormentado das artes de nosso tempo.
Estamos e nos movemos na mesma vertigem da mistura, com que supliciamos a
arte do passado.”37 Giovani Careri pensa de maneira instigante que “Valéry teria
pressentido o elo constitutivo que devia ligar a errância ontológica da arte mo-
derna e contemporânea com sua busca de um lugar próprio.”38 Compartilhamos
plenamente essa avaliação. De todo modo, essa crise obrigaria qualquer produ-
tor de artefatos responsável, artista, arquiteto, a repensar as novas modalidades
possíveis de uma reaproximação bem sucedida, mas de alcance crítico, teórico
e epistemológico sério. Careri conclui: “seja sob a rúbrica do in situ e da instala-
ção como sob a do museu ou da exposição, os artistas desde então refletiram
muito acerca dessa relação e do lugar que a arquitetura ocupa nela.”39

37
CARERI, Giovanni, Idem, ibidem
38
Idem, p.7
39
Idem, ibidem
Capítulo II
Fazer corpo com a arquitetura: Monet, Matisse, Motherwell

Fazer uma história da pintura moderna desde, grosso modo, o cubismo,


pode consistir em fazer uma história da conquista de uma amplitude espacial
que leva a bidimensionalidade a encontrar caminhos de saída fora do plano. Não
pretendemos fazer tal história aqui mas a evocação da questão da ampliação do
espaço na pintura obriga de certa maneira a repassar por alguns marcos históri-
cos incontornáveis. Por onde começar? O olhar analítico de um artista sobre ou-
tros artistas revela-se ser uma fonte recomendável. Assim, já tivemos ocasião de
chamar atenção sobre a importância da análise que o cubismo suscitou na visão
crítica que o pintor russo Casimir Malevitch teve em 1919 da recente evolução
da relação da arte com a construção do espaço.40 Para ele, nas fases sucessivas
do processo de invenção formal próprio a Picasso e Braque, isto é, a colagem
e a montagem, encontraríamos as categorias que corresponderiam a uma con-
quista de espaços novos para a pintura. Na colagem, a apropriação de objetos
e matérias reais do ambiente cotidiano teria levado a fazer deles constituintes
plenos da textura da imagem. Na montagem, o contato com o real teria aberto o
caminho para a criação de estruturas tri-dimensionais que representariam, mes-
mo em objetos de pequena dimensão, mas sucetíveis de serem ampliados em
dispositivos maiores, as premissas dos ambientes. Agora, não podemos abordar
apenas a questão da ampliação espacial da pintura através de seus aspectos
fisicamente mais evidentes. Benjamin H.D. Buchloh sugere, por exemplo, que os
monocromos de Alexander Rodchenko (Fig. 06), em 1921, sempre-já transbor-

06

dam seus limites no fluxo incontrolável do espaço atual. Tal afirmação significa
tanto uma operação formal: o monocromo transforma o plano pictórico em um
puro relevo espacial cromático, quanto uma operação simbólica: o plano assim

40
HUCHET Stéphane, “Horizonte tectônico e horizonte ‘plástico’ – de Gottfried Semper ao gru-
po Archigram. Pequena genealogia fragmentária”. In: Cinco textos sobre arquitetura. MALARD,
Maria Lúcia, (org.), op. cit.
elevado ao estatuto de relevo espacial aponta também para uma ilimitação vir-
tual no espaço real. Essa análise formalista vai ao encontro de uma idéia que
Clement Greenberg formulará trinta anos mais tarde, em 1948. Problematizando
a tensão entre produção privada da pintura abstrata e sua frequente destinação
arquitetural, Greenberg escrevia que

existe uma urgência persistente, tão persistente que é amplamente in-


consciente, de ir além da pintura de ateliê ou de cavalete, na direção de uma
sorte de pintura que, sem ser no final das contas identificada com a parede como
pintura mural, expandir-se-ia sobre ela e tomaria conhecimento de sua realidade
física. Não sei se existe algo na arquitetura moderna que incentive essa tendên-
cia. Para desenvolver suas idéias, a pintura abstrata, sendo plana, precisa de
uma superfície de maior extensão do que aquela que a velha pintura de cavalete
oferece, parecendo inclusive se tornar trivial quando é confinada dentro de menos
de 2 pés por 2 pés. Assim, enquanto a relação do pintor com sua arte se tornou
mais privada do que nunca, por causa de uma apreciação que, por parte do pú-
blico, se restringiu, a localização arquitetural e, suponho, social à qual ele destina
seu produto, tornou-se, por uma razão inversa, mais pública. Talvez a contradição
entre a destinação arquitetural da arte abstrata e a atmosfera verdadeiramente
privada na qual esta é produzida, acabará matando a pintura ambiciosa. Assim,
essa contradição, cuja causa última reside fora da autonomia da arte, define es-
pecificamente a crise na qual a pintura agora se encontra.41

Se a análise de Greenberg ressitua bem a tensão entre motivações e


finalidades, as relações de escala tanto física quanto semiótica entre o espaço
de produção e o espaço de destinação da pintura, é uma tonalidade mais alegre,
diríamos, que caracteriza quatro anos mais tarde a avaliação que Henri Matisse
faz de uma situação da pintura bastante próxima da que Greenberg apresen-
tou:

creio que, um dia, por causa dos costumes que mudam, a pintura de ca-
valete não existirá mais. Haverá a pintura mural. As cores vêm sempre mais vos
colher. Tal azul entra na alma. Tal vermelho age sobre vossa atenção. Tal cor
tonifica. É a concentração dos tímbres. Uma era nova se abre.42

Aqui, o vocabulário é de outra ordem, mas através de encontros subterrâ-


neos o pensamento de Matisse parece entrar em ressonância com certas impli-
cações da pintura de caráter monocromático. Se a idéia de concentração, de to-
nificação, de captura e envolvimento pela cor constituem atributos das obras que

41
GREENBERG, Clement, “The Situation at the moment”, Partisan Review, Jan. 1948, p.83-84
42
MATISSE, Henri. “Réponse à André Verdet” (1952). In: Écrits et propos sur l’art, textes, notes
et index établis par Dominique Fourcade, Paris: Hermann, col. Savoir, 1972, p.148
Matisse faz nessa época, é difícil resistir à analogia que esses atributos também
têm com a pintura norte-americana que vive nesses anos sua grande época, a
dos grandes formatos, dos amplos campos pictóricos de Barnett Newman, Mark
Rothko, Clifford Still ou Robert Motherwell.
Não podemos, nesse contexto, nos esquecermos da grande antecipação
da questão que os Nymphéas (Fig. 07) de Claude Monet representam. Na gene-
alogia da questão da ex-
pansão espacial da pin-
tura, a obra de Monet é
incontornável. Ela ilustra
uma tentativa moderna
de criação de um espaço
contínuo. Este é um dos
07 polos da espacialidade
moderna, o outro sendo aquele que leva à criação de dispositivos mais “lite-
ralmente” tridimensionais. Ambos contêm uma motivação que expande a bidi-
mensionalidade além dela mesma na direção da atualidade do espaço real. Os
Nymphéas são um continuum espaço-temporal, a circularidade de um tecido
unitário, sem limites laterais. Não oferecem articulação composicional alguma;
no nível icônico, não propiciam narrativa alguma, mas bem um ambiente, uma
ambiência; no nível óptico e perceptivo, suscitam a fusão do nítido com o desfo-
cado (flou). Vemos que essas características são favoráveis e trabalham a uma
extensão do pictórico que, de certa maneira, recorre aos recursos que lhe são
próprios. Não procedem, como as estruturas tridimensionais de Schwitters ou El
Lissitzky – que veremos mais tarde –, a uma ocupação tridimensional do espaço,
mas pelo contrário, alargam a pintura numa forma de crescimento celular, numa
forma de ilimitação que escolhe precisamente não trans-formar o pictórico em
um mutante de carácter tectônico. O Merzbau ou o Proun Raum, ambos conce-
bidos em 1923, representam modalidades intermediárias na série das práticas
espacializantes; os Nymphéas, não. É o que Jean Clay43 ressalta quando lem-
bra como são um espaço sem montagem, o que representa uma ruptura com
os então tão novos paradigmas da arte moderna que a colagem e a montagem
são no final dos anos 1910 e no início dos anos 1920. Ele fala, inclusive, de uma
ascensão do informe, mas um informe que precisa ser apreciado como agente
de uma operação singular: a reversão, convexa, da bacia de nenúfares no jardim
da residência de Monet em Giverny, bacia ao redor da qual pode-se deslocar
para olhá-la na sua posição central. Nos Nymphéas do Musée de l’Orangerie em

43
CLAY, Jean, “Monet, le mur et son brouillage”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian;
CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques.
Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.158
08

Paris, a sala propôe ao visitante o resultado de uma reversão do estar-aí-dian-


te-do-olhar próprio aos nenúfares de Giverny, em um painel circular envolvente
que enquadra o olhar (Fig. 08). Aquilo rumo ao qual o olhar converge no jardim
de Giverny encontra-se agora como que projetado nas superfícies externas da
visão, visão que veria o centro de atenção da bacia de nenúfares se inverter em
panorama circular. Isso transforma o centro de atenção óptico em pele onde se
perder e se deslocar, onde se trata menos de mergulhar do que de nadar no
espaço contínuo proposto. Aqui, a arquitetura – a do museu – não é objeto de re-
constituição analógica mas suporte para a afirmação de um aspecto importante
e inovador da vocação moderna da pintura, a vocação mural, parieto-ambiental,
como o veremos posteriormente. Mas, no caso de Monet, tratava-se também de
um compartilhamento da preocupação de criar verdadeiras “zonas peliculares
sensíveis”44 capazes de operar a partir da premissa da expansão planar e, para
conquistá-la e liberá-las, do superamento das unilaterais motivações ópticas, em
prol de uma ambiência mais completa. A introdução de Architecture arts plasti-
ques diz:

teremos notado que o reconhecimento da planaridade da superfície pic-


tórica terá levado os pintores a mudar de escala (a história da frontalidade pictó-
rica desse século [o séc.XX, acréscimo nosso] é uma história da expansão: de
Cézanne a Matisse, de Mondrian a Barnett Newman). [...] Quer se trate dos gran-
des coloristas americanos [e aqui os historiadores remetem a Newman, Rothko
(Fig. 09), Motherwell, Still, Kelly etc, ao expressionismo abstrato ou ao hard-edge,
acréscimo nosso], cujas telas excedem nosso campo visual e priva o olhante de
todo o tipo de possibilidade de controle perceptivo, de Mondrian ou de Lissitzky

44
“Introdução”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de
Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire
des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.12
que combatem a pintura de cavalete por um programa de ambientes deambula-
tórios, de Monet cujo elípse dos Nymphéas (Fig. 10) nos envolve, ou de Robert
Ryman que, doravante, transporta consigo, para suas exposições, as paredes
sobre as quais trabalha [...] – reencontramos essa grande destruição, sútil ou
violenta, de uma das características fundamentais da estética da representação,
a do vis-à-vis, da ‘em-facialidade’, da relação unívoca que o espectador mantinha
com o quadro de cavalete [...]45

09 10

Reconhecemos aqui uma análise que converge com a tensão que vimos
Clement Greenberg formular em 1948 entre escala privada (doméstica) e es-
cala pública (arquitetural) da pintura mural abstrata. Ainda é no contexto de um
espaço arquitetural tendo função de receptáculo que o pintor Henri Matisse fala
em 1933-34 do desafio encontrado por ele no projeto de decoração do sala abo-
badada do museu privado do Dr. Barnes, a Fundação Barnes, em Merion, na
Pensilvânia.

La danse de Matisse como antecipação da instalação


Capítulo importante da relação moderna da pintura com o espaço, a de-
coração, La danse – A dança –, que Henri Matisse realizou em 1933 para a
Fundação Barnes, em Merion, na Pensilvânia (Fig. 11 e 12). À leitura das cartas
que o pintor

11 12

45
Idem, p.12-13
escreveu na época sobre seu trabalho, encontramos um material muito relevante
no que diz respeito às relações entre pintura e arquitetura. O que se depreende
do que Matisse escreve é o alto grau de exigência que ele demonstra, baseada
que é sobre uma motivação declarada de ampliação pictórica cuja formulação,
mais uma vez, nos leva a identificar na dinâmica da pintura moderna uma pes-
quisa acerca dos rumos e dos processos possíveis de sua espacialização, como
se, de dentro, num certo contexto disciplinar, devesse levar seus horizontes es-
paciais potenciais a seu maior grau de realização.
Na entrevista que realizou com Matisse no seu ateliê em Nice, no sul da
França, em 1933, Dorothy Dudley diz como a tela que o pintor tinha acabado
nesse momento – pouco antes dela ser levada de navio para os Estados Unidos
e afixada na parte abobadada que lhe era reservada entre três recaidas laterais
de nervuras na parte superior da parede de entrada, com suas três portas paral-
lelas, de finição superior curva, no museu do Dr. Barnes –, “dominava o momen-
to e o lugar – e [que] ela era tão imediatamente potente e cativante que fazia do
ateliê o equivalente de um templo ou de um palácio severo.”46 De certa maneira,
o sentimento exprimido por Dorothy Dudley frente à tela mostra que a pintura de
Matisse já tinha conseguido, mesmo na sua fase de esboço situacional, isto é,
de antecipação da situação real que seria sua uma vez instalada no seu espaço
de destinação, a criar uma interiorização dos elementos espaciais que consti-
tuiam a milhares de kilômetros de distância o lugar do afresco, sua arquitetura
já agindo no estofo espacial do grande pano plano pintado no ateliê de Nice, ao
mesmo tempo que, de dentro, a tela pulava de certa maneira, virtual e realmente
no seu espaço de destinação, produzia sua destinação. É o que Matisse chama
faire corps avec l’architecture, fazer corpo com a arquitetura.47 Duas questões se
apresentavam a Matisse: a harmonia formal e a harmonia material da obra com
a arquitetura da sala. “Meu alvo, escreve, foi de traduzir a pintura em arquitetu-
ra, de fazer do afresco o equivalente do cimento ou da pedra.”48 As análises de
Matisse acerca de sua obra – além de antecipar muito do que surgirá no contexto
da arte e das instalações in situ, trinta anos mais tarde –, mostram, portanto, uma
preocupação em instituir uma relação de sua prática e, sobretudo, da pintura
mural – que reencontraremos posteriormente como eixo histórico e crítico de
primeira ordem na arte dos anos 1920-30 –, com a questão da materialidade
do suporte arquitetural. De volta de sua viagem a Filadélfia, Matisse confessa a
Dorothy Dudley que sua obra, uma vez instalada, “se tornava uma coisa rígida,

46
MATISSE, Henri. “Entretien avec Dorothy Dudley”, retranscrição de DUDLEY, Dorothy, “The
Matisse fresco in Merion”, Hound and Horn, 7, n≠2, jan.mar. 1934. In: MATISSE, Henri, Écrits et
propos sur l’art, op. cit., p.139
47
Carta a Simon Bussy, 7 de março de 1933. In: MATISSE, Henri. Écrits et propos sur l’art, op.
cit., p.140
48
“Entretien avec Dorothy Dudley”. In: Ibid.
pesado como a pedra, e que parecia ter sido criada espontaneamente ao mesmo
tempo que o prédio”49 (grifo nosso). (Confessamos que o acerto da pintura com
a espacialidade do lugar de implantação a milhares de kilômetros de distância
institui uma forma de simulacro da situação real. Na garagem alugada pelo pintor
para encontrar uma realidade física análoga à da Fundação Barnes, a situação
laboratorial mostra que fazer corpo com a arquitetura pode depender de media-
ções virtuais nas quais o simulacro se revela capaz de assumir os desafios da
situação real. Matisse terá de certa maneira inventado algo como o in situ-simu-
lacro, categoria intrigante. Para Matisse, a situação de sua tela no grande sala
da Fundação Barnes contem uma série importante de desafios e implicações
que dizem respeito aos comportamentos espaciais da pintura e da arquitetura,
antecipando, repetimos, as preocupações futuras da arte, por exemplo, do mini-
malismo. O vemos atento à necessidade de criar uma relação ponderada e de
equilíbrio entre o peso espacial do lugar e o peso icônico da imagem:

sim, tal era exatamente o problema, [...] que minha decoração não amas-
sasse a sala mas, ao contrário dêsse ar e espaço aos quadros que essa galeria
era destinada a fazer ver. [...] Pelas linhas, pelas cores, pelas direções de ener-
gia, consegui dar assim ao espectador a sensação do vôo, da elevação, que lhe
faz esquecer as proporções reais demasiadamente insuficientes para coroar as
portas vidráceas.50

Aqui, várias coisas se conjugam: a respiração espacial total, confirmado


pelo envolvimento do público em um jogo perceptivo onde todos os parâmetros
do lugar, seu volume, seus ritmos tectônicos e suas imagens pintadas colaboram
e instituem um cenário total. Este corresponde exatemente ao que Matisse cha-
mava uma “verdadeira colaboração” em prol de uma “eloquência plástica”51... O
sucesso é total, os formantes da obra, “seus francos contrastes, suas relações
decididas dão um equivalente da dureza da pedra e da agudeza das nervuras
da abóbada, confer[indo] à obra uma grande qualidade mural.”52 Importante res-
saltar que Matisse conclui que “o painel de Merion tem sido feito especialmente
para o lugar. [...] Deveras, não é deslocável.”53 Não nos esqueçamos disto: fazer
para o lugar. É um lema chamado à fortuna. Na carta do 14 de fevereiro de 1934,
Matisse resume seus princípios:

49
Ibid., p.143
50
Ibid., p.142
51
Carta a Alexandre Romm, 19 jan. 1934. In: Ibid., p.144
52
Ibid.
53
Ibid.
a pintura arquitetural depende absolutamente do lugar que a deve receber
e que ela anima de uma vida nova. Uma vez que lhe é associada, não pode mais
ser separada dele. Ela deve dar ao espaço enclausurado (enclos) nessa arqui-
tetura toda uma atmosfera comparável à de um belo e vasto bosque ensolarado,
que envolve o espectador com um sentimento de aliviamento na suntuosidade.
Neste caso, é o espectador que se torna o elemento humano da obra.54

Matisse enuncia uma estética ainda presa numa relação com a natureza
mas, a nosso ver, deveríamos entender que a leveza sensível da recepção re-
sulta da doação à obra e à sua relação com o lugar do peso perfeito para que,
enquanto força plástica de ponderação e equilíbrio, ela garanta a experiência
aprazível e sensual da espacialidade global – o que Matisse nomeia atmosfera.
Exprime-se aqui algo do pensamento da sensorialidade que será três décadas
depois um componente novo de uma parte da arte contemporânea quando, atra-
vés de operações artísticas participando da pintura ou de seu campo ampliado
— os environments, os ambientes etc —, tratar-se-á precisamente de tornar o
espectador “o elemento humano da obra”. Este último ponto é importante por-
que diz muito bem como o trabalho de Matisse em La Danse ambicionava criar
as condições de um espaço completo, onde a deposição de uma tela realizada
a milhares de kilômetros de distância se mostra, uma vez instalada, como re-
sultado de uma espécie singular de respiração espacial integral do lugar mas,
sobretudo, que a percepção do público fosse uma percepção daquilo mesmo. As
proposições que ela ampara convergem na direção das preocupações que serão
as de muitos artistas da década de 1960, com um vocabulário diferente.
Assim, em 1946, falando de La Danse, Matisse lembra que “durante três
anos, t[e]ve de reconceber constantemente a obra como um metteur en scène.”55
A encenação é a palavra que diz respeito à organização, à montagem e à apre-
sentação da prestação estética. Implica evidentemente um espaço amplo, glo-
balizante, de carácter público, um espaço dinâmico, cambiante, evolutivo. Será
também uma categoria de muitas manifestações artísticas da década de 1960.
Na Barnes Foundation, Matisse pensou uma verdadeira ética da relação estética
entre sua obra, o lugar e o que, além de La Danse, o museu expunha: Renoir,
Cézanne, Seurat etc, outros universos cromáticos, na forma de quadros, de pon-
tos espaciais dispostos sobre as paredes vizinhas do “afresco”. Esses quadros e
La Danse são tantos fotogramas dentro de uma circulação lenta mas intensa de
imagens solicitantes que respiram no espaço global. Agora, o afresco realizado
no ateliê de Nice não pode ser ignorado enquanto lugar de um longo processo de
tateamento, exploração, investigação, enunciação e variação que levou Matisse

54
Carta a Alexandre Romm, 14 fev. 1934. In: Ibid., p.147
55
“Propos rapportés par Gaston Diehl”. In: Ibid., p.151
a acumular uma

série de projetos que ele tinha executado – recortados dentro de papéis


coloridos –, antes de chegar à concepção que tinha-lhe parecido justa. A cada
novo projeto, as mudanças iam na direção de um afastamento do ‘quadro’ para
se reaproximar da ‘pintura mural’ enquanto tal.56

Isso nos mostra que quando Dorothy Dudley chega à conclusão – em


forma de pergunta – de que “sua pintura tinha, portanto, corrigido realmente a ar-
quitetura?” e que Matisse “admitiu que isso pareceu-lhe imperativo”57 trata-se em
geral de um trabalho de imenso rigor para que a crítica possa escrever: Matisse
“sublinhou todo o trabalho que a adaptação da decoração à peça lhe tinha de-
mandado. Para isto, tinha purificado e verificado o desenho millimetricamente
para assegurar que fosse sempre flexível e livre.”58 A dimensão mais fascinante
deste trabalho de ajuste millimétrico é que ele foi pensado para garantir uma
relação de ponderação capaz de acertar plasticamente as condições de uma
verdadeira captura ambiental do observador: precisava, diz Matisse,

dar, dentro de um espaço limitado, a idéia da imensidão. É por essa razão


que [...] eu ofereço um fragmento e levo o espectador, pelo ritmo, a prosseguir
o movimento da fração que ele vê, de modo a ter o sentimento da totalidade. O
interesse é certamente — como na pintura em geral — dar, com uma superfície
limitada, a idéia da imensidão.59

A impossível voz espacial de Motherwell


Mas pulemos agora quarenta anos para encontrarmos uma nova e mais
recente contribuição à história das relações entre pintura e arquitetura. Trata-se,
em 1978, de uma grande tela do artista norte-americano Robert Motherwell (9 x
3 metros; lembramos que La Danse de Matisse media 13 x 3,5 metros, acima de

13 14

56
“Entretien avec Dorothy Dudley”. In: Ibid., p.141
57
Ibid., p.142
58
Ibid.
59
“Entretien avec Georges Charbonnier” (1960). In: Ibid., p.154
três portas vidráceas de 6 metros de altura), Reconciliation Elegy, para a parede
lateral de um mezzanino interior da National Gallery of Art, em Washington, pro-
jetada pelo famoso arquiteto M.I.Pei. (Fig. 13 e 14).
Num primeiro momento, Motherwell parte da ideia de que a inserção de
uma grande tela numa arquitetura de “estilo internacional” (diz ele), isto é, geo-
métrica, criaria um confronto com esta se seguisse um padrão formal igualmente
geométrico, a geometria da tela, com seu estilo “arquitetônico”, sendo engolida
pela geometria do edifício. A escolha feita por Motherwell vai repousar, portanto,
sobre um deslocamento da proposta, o critério estético, a ordem de considera-
ção avançados por ele provindo de uma arte extra-pictórica ou extra-plástica.
Escreve:

o que pode rivalizar com uma arquitetura inclusive maior, – como a, di-
gamos, de uma catedral gótica – é a voz humana, a presença humana. Queria
uma pintura tão clara e pessoal, tão pouco arquitetônica quanto a voz humana,
que, por assim dizer, é uma obra espontânea que canta, mesmo se se trata de
um canto solene.60

Motherwell apresenta a idéia de fazer cantar o muro, o que, coinciden-


temente, lembra Matisse que, confrontado a uma situação similar – apesar da
diferença entre o teto com nervuras da Barnes Foundation e o espaço geométri-
co da National Art Gallery de Pei –, levou seu comandatário, o doutor Barnes, a
comentar frente a La Danse: “agora, chamaríamos bem este lugar de catedral.
Vossa pintura é como a rosácea de uma catedral.”61 Dorothy Dudley lembra que
o próprio Matisse disse frente à sua obra: “quando olhamos deste ângulo, di-
ríamos também um canto que sobe até o teto.”62 Podemos nos perguntar se a
problematização da relação entre Reconciliation Elegy e a arquitetura de Pei não
representa, se a compararmos com a situação matissiana de boa integração en-
tre arte e arquitetura, uma volta à estaca zero da questão. Leiamos, por exemplo,
o que Theo Van Doesburg, pintor neo-plasticista, escrevia em no número 25 da
revista Vouloir, em 1927, sob o título de “L’art collectif et son importance socia-
le”:

a arquitetura dá uma plástica construtiva, fechada, através de relações


equilibradas. A pintura, vis-a-vis a arquitetura, é constrastante. A arquitetura junta,
noda. A pintura desnoda, disjunta. A arte monumental pura encontra sua base em

60
MOTHERWELL, Robert. Reconciliation Elegy, trad. franc. Guy Scarpetta, Genève: Skira, p.68.
Citado in: CARERI, Giovanni. “Le vertige du mélange”, Cahiers du Musée National d’Art Moderne,
n≠39, Art et architecture, Printemps 1992, Paris: Centre Georges Pompidou, p.17-18
61
“Entretien avec Dorothy Dudley”. In: MATISSE, Henri. Écrits et propos sur l’art, op. cit., p.143
62
Ibid.
uma oposição, naquela relação complementar de arquitetura e pintura, de formas
plásticas e cores chatas.63

É exatamente a circunstância que Motherwell reencontra (ou reinstaura) e
que Matisse, em 1933, superou em La Danse. Matisse não tinha proposto e con-
seguido uma harmonia ambiental? Uma vez sua pintura instalada, Motherwell
não parece ter sido totalmente convencido pelo resultado ou, melhor dito, pela
situação criada. Na verdade, o relativo insucesso deve muito ao estatuto de
Reconciliation Elegy. É uma tela independente. Ela não representa um órgão
essencial do corpo espacial. Não escapa à categoria de quadro. Motherwell con-
fessa e lamenta: “se eu tivesse tido o muro inteiro à minha disposição. Aqui,
seria preciso uma pintura mural, não um quadro separado, qualquer que seja
seu tamanho, pendurado a um muro de mármore.”64 Motherwell nos faz entender
muito bem que ele trabalhou dentro de limitações categoriais: um quadro plano
sobre uma parede, e não toda a parede, isto é, não um afresco mural; um lugar
de apresentação cujo carácter limitativo não foi revertido em recurso favorável,
cujo confinamento transformou-se em constrangimento. Outra história ter-se-ia
inscrito: “quizá, no final das contas, o motivo da imagem da Elegy precise ser
mais monumental (escultural)”65 – e reconhecemos que a pintura, aqui, é levada
de maneira (auto)crítica do lado de seu outro, o volume concreto, compensatório
de uma certa má consciência na realização do processo. “Se eu modificasse
minha obra, se a tornasse mais monumental, talvez poderia conservar sua viva-
cidade, este algo dançante, essas formas dançantes [...] Quem sabe?”66 Muitos
condicionais e talvez... Motherwell, que faz passar o sentimento de uma relati-
va impotência, acaba devolvendo à arquitetura e aos processos sempre dema-
siadamente acelerados de construção, a responsabilidade do não alcance pelo
pintor de seu lugar, de seu tempo, de seu canto. O “conflito” entre o arquiteto e
o artista, tal como Adolf Loos o situava no inicio do século XX, ressurge nas pa-
lavras de Motherwell:

hoje em dia, no processo arquitetural, chamam o artista demasiadamente


tarde. [...] Quizá é a complexidade tecnológica que a construção de um edifício
moderno tão maciço impõe que impede que tomemos o tempo suficiente para
permitir à voz humana de se ‘perceber’, de se procurar, de se sentir, de se ques-

63
Citado in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean. Avec la collaboration de Hubert
Damisch et Nancy Troy, Architecture et arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des
pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.147
MOTHERWELL, Robert, Reconciliation Elegy. Citado in: CARERI, Giovanni. “Le vertige du
64

mélange”, art. cit., p.20


65
Ibid., p.19
66
Ibid., p.20
tionar, de se afinar, até encontrar o registro que lhe convem.67

Motherwell lamenta a impossibilidade que as condições de produção da


arquitetura hoje impõem ao artista de trabalhar no tempo de que precisaria para
fazer um trabalho bom. Nesse sentido, ele apresenta aqui uma dimensão crítica
que contrasta com a situação de Matisse. Se o pintor francês conseguiu supe-
rar os desafios que Motherwell alista, isto é, encontrar o ritmo para a voz de La
Danse e antecipar perfeitamente no ateliê de Nice a situação final, afinando sem-
pre o processo — o que o levou a realizar uma verdadeira antecipação, decerto,
ainda de cunho pictórico, dos futuros ambientes e environments —, Motherwell,
do seu lado, esbarra num aspecto que é inerente ao processo da instalação,
como já o apresentamos em outra circunstância, a do arranjo, da busca do ajuste
convincente entre uma obra, um dispositivo e seu lugar arquitetural de inserção68,
com o risco de não consegui-lo. É o que Motherwell lamenta, apontando para
a dificuldade para uma pintura – um quadro autônomo que vem do ateliê para
encontrar uma nova situação numa instituição artística – de se entender com
o lugar. Frente ao risco de a instituição não conseguir propiciar para as obras
que apresenta ou constituir com elas uma real ambiência estética e emocional
– eventual fracasso que transforma a galeria ou o musei em uma espécie de
“mausoléu climatizado para a simples conservação dos ‘objetos’” (Motherwell) –,
surge a hipótese de que as melhores condições de visibilidade e percepção da
pintura seriam outras que as institucionais. Trata-se, no final das contas, de uma
questão de condições de apresentação, categoria essencial da arte contempo-
rânea, portanto, de certas valêncais espaciais geradas pelo desenclave do plano
e da cor.

67
Ibid.
HUCHET, Stéphane,“A instalação em situação”. In: Concepções contemporâneas da arte. Luiz
68

Nazário; Patricia Franca, (orgs.), Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.17-45
Capítulo III
Desenclaves na pintura

A ilimitação pollockiana
É é possível a partir da pintura de Jackson Pollock, aprofundar a questão
da relação moderna entre pintura e arquitetura. Jean Clay escreve que, já na
pintura de Monet e, depois, na de Pollock, trata-se de:

produzir – com uma radicalidade mais explícita em Pollock – zonas pictó-


ricas cujo ‘inconsciente’ mural nivela as contradições de superfície, tendendo à
exposição de um tecido sem fim, guano, continuum, campo equiponencial, cuja
densidade – igual em todo lugar a partir do all-over pollockiano – não é mais
tributário de efeitos composicionais (que obedeciam a uma economia restrita da
superfície, os componentes plásticos equilibrando-se em um organismo fechado
sobre si mesmo). Anula-se, portanto, [...] a possibilidade de uma fixação focal
sobre tal ou tal ponto da obra.69

Mas a diferença entre o aspecto envolvente em Monet e a superfície ain-


da ortogonal em Pollock obriga a regredir no tempo para ver como se deu a evo-
lução histórica da questão do quadro e do limite desde o fim do século XIX.
Para melhor entender porque Jean Clay escolhe voltar ao pointillisme de Seurat
em volta de 1890-1900, é necessário anunciar que toda a discussão em curso
trata da conquista progressiva de uma planaridade pictórica em expansão que,
para ser concretizada, precisa proceder a uma ruptura com o que ele chama de
en-facialité (em-facialidade), a característica que a pintura, como “janela” a ser
atravessada, explorou durante os séculos de representação clássica, pondo o
observador frente a um ponto de fuga simétrico espelhando, no espaço da ima-
gem, seu ponto de percepção no espaço real. O jogo de percepção motivava um
atravessamento da imagem pelo olhar, vetor transversal ao plano da imagem.
O que está em jogo com a planaridade da pintura moderna, é uma frontalização
da percepção, uma maneira de a imagem resistir a todo tipo de atravessamento
ou perfuração transversais, em prol de uma forma de desposamento pelo olhar
do plano frontal da tela. É o que o historiador e analista dos processos e me-
canismos da representação e das relações entre transparência e opacidade na
pintura, Louis Marin, lembra quando escreve:

no sistema da representação, a tela se encontra ocultada em profundida-


de e o plano assumido como superfície transparente; pano de fundo de uma cena
com os planos escalonados no espaço ilusionista e janela diafana aberta sobre o

69
CLAY, Jean, “Pollock: la peinture/le mur comme fragment”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI,
Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts
plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.163
mundo das aparências pintadas. Toda a empreiteira da pintura moderna poderia
ser resumida à dupla reconquista da tela e do plano, na visibilidade de seu jogo, e
o trabalho de Pollock [..] constitui-lhe uma das grandiosas realizações.70

Em Pollock, o que o olhar descobre “é sua própria intimidade desde muito


tempo esquecida com o visível. Os olhos, no olhar, se descobrem como a dobra
do quadro que vêem” (grifo nosso).71 (Fig. 15).

15

Duas coisas estão em jogo: o campo pictórico e a moldura (le cadre).


Louis Marin lembra a anedota de Aldous Huxley que percebia as telas de Pollock
como um logotipo de papel de parede industrial cujo módulo visual poderia ser
repetido infinitamente, a suspensão da repetição do motivo sendo inexplicável
(“isso levanta a questão de saber porque aquilo pára e quando o faz”).72 Pollock,
segundo Marin, teria criado modalidades pictóricas “interpretando” a afirmação
da inexistência de um começo e de um fim nas suas telas. Recorrendo às aná-
lises de Hubert Damisch, Marin observa nas telas de Pollock o jogo do entrela-
çamento e a existência da “figura”, como aquilo que “responde, a seu modo, à
contingência da suspensão de pintar”, o limite das bordas da tela sendo assina-
lados como levados em conta por muitos procedimentos pictóricos identificáveis
na tela. Marin precisa que, no final das contas,

70
MARIN, Louis, “L’espace Pollock”, Cahiers du Musée National d’Art Moderne, nº10, Paris:
Centre Georges Pompidou, 1982, p.321
71
Idem, p.318
72
Frase pronunciada durante uma mesa redonda em 1948, citada in: Idem, p.325
os quadros de Pollock podem manter com sua moldura uma relação clás-
sica e serem ao mesmo tempo sem começo nem fim, seguirem nas suas bordas
uma imperiosa necessidade, ignorar a contingência do corte, o álea da interrupção
e serem contudo repetitivos, sem origem nem termo, não porque se dissolvem no
mau infinito do ilimitado, mas porque, ao repetir a diferença e ao negá-la, articulam
rigorosamente, no mesmo lugar e no mesmo momento, o começo e o fim.73

No mesmo lugar e no mesmo momento... Este lugar é pictórico e ao mes-


mo tempo aponta para a questão da relação da obra com seu entorno. Os drip-
pings de Pollock tendem ao hors-champ, ao fora-do-quadro, quadros sem bordas
mas com um limite marcado, illimitados mas ao mesmo tempo cortados. Pollock
afirma o carácter fragmentário de suas telas, a concessão feita à moldura (ca-
dre), sua definição sendo dialecticamente equilibrada pela ausência de borda.
Jogo da ilimitação e da concentração, centrífuga e centrípeta.
Mas o mais importante é que, além da superfície como lugar de resis-
tência frontal, trata-se também na pintura de Pollock da afirmação de uma pro-
fundidade fenomenológica. Esta nos interessa porque, mais do que o corpo do
produtor, ela abre o jogo complexo da uma singular afirmação espacial na qual,
como escreve Louis Marin, acontecem mutações radicais com relação ao lugar
do espectador:

paradóxo, o fato de que a capacidade e a possibilidade de se colocar, de


apropriar-se de um lugar de visão naquele espaço de liberdade, consistem em se
colocar fora-do-lugar (hors-lieu). O único lugar lícito é de estar sem cessar fora-
do-lugar (hors-lieu) […] O espectador está numa posição u-tópica: em estado de
não-lugar sem estar em processo de movimentação, […] é entregue à utopia de
um ritmo entre estrutura e textura. [...] Essa utopia do site de visão do olhante fá-lo
entrar na infinitude do sensível pictórico onde toda síntese de recognição de ob-
jeto [...] apaga-se [...] é o formigamento das pequenas percepções inconscientes,
como dizia Leibniz, das pequenas sensações coloridas cezannianas.74

Tal desesperânça da estrutura na textura75 – fórmula notável! –, é o resul-


tado receptivo da apreensão de um evento textural no qual

a linha de novo perfil do dripping pollockiano não é nem contorno nem bei-
rada da superfície: torna-se chata, estendida sem ser um plano, cadeia de gotas
sem ser uma sequência de pontos, rede de um cabelo sem ser um feixe de retas.
A linha do dripping é o mutante da linha do desenho como o desenho do dripping

73
Idem, p.326
74
idem, p.320
75
Idem, p.319
é o mutante do desenho dos volumes no espaço.76

Sem dúvida, a pintura de Pollock funciona como o laboratório de um apro-


fundamento da experiência do espaço, as experimentações no plano bi-dimen-
sional, suficientemente radicais, afetando por extensão o campo da espacialida-
de global.
É muito interessante ver como, quando analisa com tanta profundidade a
pintura de Pollock, Louis Marin nos fornece argumentos para outra pintura em vi-
gor na mesma época. Poderíamos falar de uma história da pintura que consistis-
se na homogeneização progressiva do plano pictorico à medida que tendia a se
expandir no espaço hors-cadre.. Essa história, na verdade, é complexa porque
oferece momentos de maior equilíbrio dos dados e das experimentações formais,
e outros nos quais os pólos de trabalho investidos levam a pintura a se aproximar
de sua condição exponencial de implosão no espaço. As coisas se situam em um
espectro que corresponde tanto à infinitização espacial virtual intuida por Huxley
e a fragmentação da qual o crítico Félix Fénéon já falava em 1889 (!) a propósito
de Monet: “uma paisagem de Monet nunca desenvolve integralmente um tema
da natureza e parece com qualquer um dos vinte retângulos que talharíamos em
uma tela panorâmica de cem metros quadrados.”77 Parte desenvolvida de um
todo ou matriz formal que amplia sua singularidade a um todo espacial, virtual ou
concretamente, trata-se sempre de um vai-e-vem nas coordenadas do espaço.
Assim, é de novo Seurat que é convocado por Jean Clay que cita as aná-
lises de Meyer Shapiro sobre esse pintor para situar, ao lado de Monet e outros,
um marco importante na direção que transformará pouco a pouco a pintura em
all-over. Em Seurat, já encontraríamos um campo pictórico “monista”, o elemento
de sensação e o elemento de fatura se fundindo no elemento do ponto-toque.
Clay escreve: Seurat

foi o primeiro pintor na história que criou quadros


nos quais a matéria está por inteira homogênea: as peque-
nas manchas que dão a cor são as mesmas que dão as
linhas e os espaços. [...] Essa idéia da unidade dos dois
elementos é um ato revolucionário.78

Seurat pinta uma borda sobre a tela, a moldura


sendo ela mesma recoberta da mesma pigmentação

76
Idem, p.322
77
FÉNÉON, Félix, “Les écrits plus que complets de Félix Fénéon”, Genève, 1970, vol.1, p.173.
Citado in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert
Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pra-
tiques de l’espace, Corda, 1979, p.165
78
CLAY, Jean, “Pollock: la peinture/le mur comme fragment”, in: idem, p.164
ou sistema de toques que a superfícia da tela. Pintura total. Cintilamento icônico.
Transparência semiológica sobre as relações de continuidade entre a imagem e
sua evidenciação institucional através da convenção da moldura. Com Seurat,
a questão da visão justa é posta. Como vimos, ela o será ainda para Motherwell
oitenta anos mais tarde, declaramente. Independentemente da importante e de-
cisiva questão da inserção ou apresentação de uma pintura numa arquitetura
— para Motherwell, uma instituição receptora, e já para Seurat o museu —, fica
claro que entre as manchas monocromáticas de Motherwell e o sistema pointillis-
te de distribuição singular da cor em Seurat, onde material de fatura e material de
sensação se equivalem, aconteceu uma série de coisas que mudaram a pintura.
Elas têm a ver com a questão da cor como agente espacial.

Da cor
Se adotarmos a tese de Pierre Francastal segundo a qual a cor foi a ca-
tegoria, ou melhor dito, o agente de redifinição das tarefas da pintura moderna,
temos condições de entender melhor a lógica própria à pintura da qual nos apro-
ximamos lentamente: a pintura monocromática do pós-Segunda Guerra Mundial.
Francastel pensa que desde o impressionismo, a arte inventa as “bases de um
novo sistema figurativo, amparado em uma nova apreciação da natureza físi-
ca das cores, como também sobre uma nova apreciação da natureza do signo
plástico.”79 Falando em 1954, Francastel acrescentava com razão — a produção
da época confirmando plenamente suas asserções —, que “a cor é o ponto de
partida concreto da pintura moderna”, os pintores sendo à procura de uma arte
capaz de exprimir a seu modo algumas “das formas gerais da experiência sen-
sível.”80 Essa afirmação é importante, porque vincula o trabalho da cor e a busca
de uma arte que seja, pelo viés de suas experimentações plásticas e cromáti-
cas, uma forma de contribuição à expressão objetiva do tempo. O novo sistema
figurativo de que Francastel fala não significa a invenção de um universo visual
de objetos novos, mas que os artistas tomam como meta a objetivação formal
e plástica de “um sistema de representação positivo e integral dos fenômenos
sensíveis.”81 Notemos que, se modernizarmos o termo “representação”, habitu-
almente associado à arte clássica, ilusionista etc., a formula de Francastel, por
mais geral que seja, recobre bem o desafio das vanguardas artísticas do século
XX de encontrar para a complexidade do real e a experiência que se tem dele
modos de exemplificação artística inéditos e os mais completos possíveis. Na

79
FRANCASTEL, Pierrre, “La couleur dans la peinture contemporaine”, L’image, la vision et
l’imagination, textes réunis et présentés par Galienne Francastel, Paris: Denoel/Gonthier, biblio-
thèque Médiations, 1983, p.230
80
Idem, ibidem
81
Idem, p.235
idéia genêrica de sistema de representação integral dos fenômenos sensíveis,
tudo se encaixa mesmo, mas a genericidade do propósito se revela pertinente
para todas as experiências e propostas de ordem espacial que estudamos aqui.
Se, como diz Francastel, “é o papel desempenhado pela cor nessa renovação
figurativa do objeto”82 que representa o ponto de partida para avaliar o processo
do desenclave da cor, Francastel identifica, antes, no cubismo uma arte que
“acaba libertando a cor de todas as subserviências dos reflexos e das relações
de posição que dominaram toda a tradição renascentista.”83
A partir daí, Francastel enuncia um aspecto fundamental da nova con-
sistência formal, material, icônica e simbólica da pintura moderna, o fato de ela
adquirir consistência e resistência a nossos olhos porque estes

se familiarizaram com uma superposição dos planos [...] Os planos por-


tadores de cor, não mais simplesmente escalonados em função de suas partes
visíveis, mas superpostos e sempre presentes na sua integridade (grifo nosso)
mesmo quando não se descobrem totalmente, multiplicam de uma maneira ple-
namente nova as dimensões do écran figurativo.84

Essas análises de Francastel, em 1954, são instigantes porque dão à cor


uma força formadora na concepção, na existência e na aparição das superfícies
pictóricas modernas, a concentração da potência cromática podendo levar a lição
do espaço cubista e da abstração pós-cubista em direções como a pintura de um
Barnett Newman, de um Mark Rothko, de um Clifford Still, isto é, da monocromia
– que, sabemos, instaura um diálogo com a muralidade, o muro e “o problema
dos relevos e dos volumes” sendo apontados por Francastel como aquilo que
“orienta as especulações de toda a pintura contemporânea”. Voltaremos sobre
isto mais tarde. Francastel escreve:

admitindo que existe não uma identidade das metas e dos meios entre os
diferentes grupos de artistas originais do último meio-século, mas uma sorte de
intenção comum de inovar e uma comum atenção dada por todos ao problema da
cor, parece legítimo procurar se, através da diversidade das experiências [...] não
poderíamos contudo discernir alguns grandes princípios que preparam [...] uma
certa nova ordem da plástica e mais particularmente da cor.85 [...N]o Cubismo,
precisa Francastel, vemos aparecer o que, salvo melhor juizo, chamaria de uma
certa transparência.86 [...] Na medida em que o glacis da antiga pintura está em

82
Idem, p.237
83
Idem, ibidem
84
Idem, p.238
85
Idem, p.236
86
Idem, p.237
via de desaparecimento, algo surge que podería ser chamado de glacis óptico.
[...] A possibilidade de coexistência no espírito, no momento de se apropriar e de
julgar uma obra figurativa, de sensações que não correspondem a uma percep-
ção simultânea dos fenômenos segundo a ordem do avistamento instantâneo de
um espectáculo fixado convencionalmente e restrito a um único ponto de vista,
é um dos elementos fundamentais da utilização nova da cor, tanto no Cubismo
quanto na obra de artistas como Matisse.87

A argumentação de Francastel nos interessa porque dá uma perspectiva


histórica à questão moderna e contemporânea da cor e apresenta pistas para
restituirmos uma lógica entre os vários momentos da arte do século XX. A pintu-
ra dos grandes campos cromáticos ou monocromáticos, a partir dos anos 1950,
aparece assim como uma consequência das experimentações cubistas. Estas
propiciaram a possibilidade de 1) não fazer mais da cor um componente hierar-
quicamente inferior ao desenho –; 2) fazer da cor um componente decisivo na
nova organização do plano visual pictórico, em estado de igual responsabilidade
com os volumes e os relevos pintados; 3) liberar a cor para transformá-la em ele-
mento autônomo e levá-la, desvinculada da necessidade de manter um equilibrio
com estes volumes e relevos, a se afirmar como indutora de novos comporta-
mentos perceptivos e sensoriais, sem falar da dimensão simbólica e, até, ontoló-
gica. O desenclave da cor, que Francastel relaciona com o cubismo – momento
de convergência, cristalização e passagem além das elaborações anteriores que
são o Impressionismo, Gauguin, o Fauvisme etc. , aos quais, com Jean Clay,
devemos acrescentar Seurat e o Neo-impressionismo –, é visto por Francastel
como matriz da arte contemporânea: a “dupla especulação [que] se desenvolve
a partir de um jogo de coexistência e de empenho dos planos desenhados e dos
planos coloridos [...representa], sem dúvida, um dos fundamentos técnicos e psi-
cológicos da arte contemporânea.”88 O desenclave da cor, portanto, é também o
signo da relação estreita da arte com preocupações mais amplas que levam no
horizonte dos “fenômenos psico-fisiológicos”. Essa recontextualização da impor-
tância da cor na psicologia e em um certo cientismo da época afirma um desejo
social de explorar certos dados estéticos sucetíveis de determinarem uma ação
dentro do ambiente de vida. Francastel escreve:

nossa época fabrica a cor como ela fabrica todo seu ambiente (environne-
ment). O homem espectador e explorador cede lugar ao homem [...] fabricante de
seu universo. [...] A cor é um dos materiais que ocupa sempre mais espaço nessa
criação rápida de uma nova ambiência humana.89

87
Idem, p.238
88
Idem, ibidem
89
Idem, p.241
Vemos de repente a cor convocada para uma missão: “hoje, todo mundo
sabe que, ao utilizar a cor podemos modificar sensorialmente as condições de
percepção do mundo exterior.”90 Como “elemento de animação”, ela tem “valor
de elemento importante do real e [...] potência ativa sobre o cérebro humano.”91
O vocabulário da psico-fisiologia pode ter envelhecido, no entanto, diz algo que
não está tão afastado do que artistas empenhados posteriormente no uso amplo
da cor poderão dizer, como Hélio Oiticica, por exemplo, uma década mais tarde,
ou em um ambiente in progress como Desvio para o vermelho, de Cildo Meireles
(1967-84), a obra que mais afirma a potência que a cor tem de reelaborar a série
mural e espacial de objetos, como veremos mais tarde.
Sem dúvida, o nascimento e as primeiras enunciações do monocromo,
em um contexto de grande radicalidade artística e teórica, a Rússia do supre-
matismo e do construtivismo, exemplificam de maneira possante essa assunção
súbita e irredutível da cor como elemento pleno de afirmação artística. Os três
monocromos (Vermelho, Amarelo, Azul) de Rodchenko em 1921 - acima men-
cionados com Buchloh -, quando reproduzidos, aparecem a nossos olhos como
luminosos e quase cintilantes. O brilho intenso dessas três telas aponta para
uma espécie de irradiação visual na qual a mancha total que a superfície mono-
cromática é, nos parece manter relações profundas com o que, em um contexto
contudo diferente, a pintura de Pollock, Louis Marin chama de “espessura trans-
lúcida”:

‘translúcido’ tentaria dizer o efeito óptico daquela espessura entre tela ma-
terial e plano abstrato, que conserva um pouco da opacidade da primeira e um
pouco da transparência da outra e onde a materialidade dos pigmentos da super-
fície se dissolve ao olho em uma espécie de vibração cintilante, difusa, dispersa
ou casualmente ritmada de acentos que é, no findar do olhar, esse espaço estrei-
to de […] diferença entre matéria e luz. 92

Entre as análises de Marin acerca da translucidez em Pollock e o “glacis


óptico” de que Francastel fala a respeito do cubismo — essa camada superfi-
cial, essa superfície-mancha que faz efeito de pano vibrante e cintilante sobre
o qual o olhar desliza e que o olhar desposa —, temos categorias de análise
importantes que afirmam a condição para criar experimentalmente um contato
mais envolvente, mais oceânico, mais flutuante, mais ambiental com o espaço.
Os três monocromos de Rodchenko já antecipam algo que reencontramos na
pintura do expressionismo abstrato norte-americano. Quando Marin fala ainda

90
Idem, p.240
91
Idem, ibidem
92
MARIN, Louis, “L’espace Pollock”, Cahiers du Musée National d’Art Moderne, nº10, Paris:
Centre Georges Pompidou, 1982, p.322
de “materialidade cintilante, vibrante, ritmada, materialidade imaterial de rastros
entrelaçados”93, podemos bem ver na materialidade imaterial o resultado de um
processo no qual os ritmos e as escanções dos traços foram sutilizados, sub-
metidos a uma ampliação total para criar uma mera mancha cintilante, o que
representaria de certa maneira a latitude entre Still (Fig. 16) , Rothko (Fig. 17) e
Newman (Fig. 18). Tocamos aqui a categoria de pintura all-over, que tem a ver

16

17 18

com o papel da cor na redefinição das tarefas da pintura, uma pintura que vai se
beneficiar do desenclave acima analisado para projetar suas potencialades em
um espaço ampliado e de ação inédito.
Mas, antes de aprofundarmos essa questão, devemos nos ater na análise
de realizações cruciais dos anos 1920 que representam marcos na história das
práticas espaciais e dos processos de espacialização na arte e na arquitetura.

93
Idem, p.324
Capítulo IV
A revelação do espaço: Proun Raum e Pavilhões

Yve-Alain Bois pensa que é necessário passar pela escultura do escultor


futurista Boccioni e pelos Contra-relevos de Wladimir Tatlin para melhor ressituar
a proposta do Espaço Proun concebido por El Lissitzky em 1923. A Decomposição
de uma garafa no espaço (1912) (Fig. 19) do
escultor futurista representa, diz, uma ten-
tativa de tornar plástico o prolongamento
virtual dos objetos no espaço circundante.
Como escrevia o artista italiano, “só ao fa-
zer uma escultura de meio ou de ambiente,
pode haver renovação, já que é assim que
a plástica se desenvolverá, prolongando-se 19
no espaço para modelá-lo.”94 Na mesma época, os Contra-Relevos de ângulo de
Tatlin (Fig. 20), como desdobramentos das recentes construções tridimensionais
de Pablo Picasso desde 1912, realizam algumas operações decisivas: a ruptura
da “escultura” – nenhum gesto tradicional caracteriza mais os Contra-Relevos
– com o chão, sua suspensão em um canto
de sala uma altura inusitada, sua levitação,
oposta às leis tradicionais da gravidade e
do peso, sua constituição por planos, recor-
tes, arestas etc. Trata-se neles de frisar o
lugar, de pô-lo em relevo enquanto lugar.
Essa experiência nunca será esquecida.
Anuncia um registro essencial das práticas
20 espaciais na arte do século XX, chamado a
conhecer uma grande fortuna. Com Tatlin, vemos,
com efeito, o volume escultórico – sua montagem
–, submetido a deslocamentos que também são
característicos das Construções Suspensas (Fig.
21) que Alexander Rodchenko realiza ao mesmo
tempo que concebe, com seus três monocromos,
o fim da pintura. Se essa simultaneidade interessa
em muitos aspectos a história interna da arte, esta
serve imediatamente o propósito de um desencla-
ve não somente formal e semiótico do objeto artís- 21

94
BOIS, Yve-Alain, “El Lissitzky: l’espace de démonstration”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI,
Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts
plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.88
tico mas, além disso, reforça o forte movimento de exploração de novas situa-
ções espaciais para gerar novas percepções, visões e concepções do espaço.
Quando outros escultores importantes como os poloneses Kobro e Strzeminski
fazem da escultura um nodo transitório, uma estáse provável, aberta e fechada,
das direções e dos vetores espaciais em proveniência do infinito, a frase que me-
lhor corresponde a seus trabalhos ainda é a de Tatlin que afirma que “é o espaço
que é a fonte da forma.”95
Em 1923, é uma pequena sala de solo e teto quadrados com paredes
retangulares que o November Gruppe pôs à disposição de El Lissitzky para seu
Proun Raum (Fig. 22 e 23). Tratou-se, para ele, de criar um percurso dentro de
uma caixa espacial e, assim, de responder à definição do espaço que propunha:
“Espaço = não aquilo que olhamos pelo buraco da fechadura, não aquilo que ve-
mos pela porta aberta.”96 El Lissitzky declara, contudo, que “o espaço não está aí
somente para os olhos, não é um quadro: quer-se viver nele.”97 Essa afirmação
trata de pensar as condições para romper com um espaço de apresentação ar-
tístico no qual a imagem encontrava sua legitimidade no ponto de vista distancia-
do que mantinha a separação entre plano da representação e lugar de produção
da percepção. Explica que

a organização do plano não deve ser interpretada como quadro = pintura


mural. Pintar as paredes é tão falso quanto pendurar-lhe quadros. O novo espaço
nem precisa e nem quer quadros – ele não é um quadro que teriamos ‘traduzido’
em vários planos. Assim, entendemos a animosidade dos pintores a nosso res-
peito: pois, destruimos a parede como leito de descanso dos quadros.98

Já se trata, em 1923, de estar dentro da obra,


de percorrê-la com um “movimento rotativo”. Será o
único modo de o público se apropriar de um espaço
que El Lissitzky quer expor como matriz de circu-
22 lação onde o observador está de certa maneira no
interior dos planos. Mas, no seu início, o percurso
proposto e induzido pelo Proun Raum marca dialec-
ticamente a obrigação de encetar a apropriação do
espaço por um olhar, este tendo contudo a função de
despertar e inaugurar um percurso corporal e uma
23 experiência espacial completa. Assim, a arquitetura

95
TATLIN, Wladimir, em 1920, citado in Idem, p.89
EL LISSITZKY, “Proun Raum”, in: Sophie Lissitzky-Küppers, El Lissitzky Londres: Thames &
96

Hudson, 1968, p.361


97
Idem, ibidem
98
Idem, ibidem
se mostra como indo muito além da mera dimensão visual, linear, convidando o
corpo a se deslocar. O recurso inventado pelo artista russo consistiria, portanto,
em iniciar o processo de apropriação por uma rápida parada e suspensão do
olhar, quando este encontra-se posto no limiar de acesso, para, através de uma
diferença temporal infra-tênue, melhor levar o jogo a solicitar a totalidade do
corpo perceptivo, a “desbloquear a marcha”99. O empreendimento de El Lissitzky
constrata com a noção ainda “composicional” que um Malevitch tinha na mesma
época. O pintor suprematista pensava que os quadros expostos na parede de
um museu, por exemplo, deviam seguir uma disposição determinada por uma
justa relação cromática e formal entre eles, afim de criar as condições de uma
apresentação esteticamente bem resolvida para os quadros. Assim, conceber-
se-ia uma parede demonstrando a capacidade de a museografia transformar o
tradicional suporte parietal das telas em pintura: “as paredes do museu são su-
perfícies-planos sobre as quais as obras devem ser repartidas na mesma ordem
que a composição das formas na superfície-plano da pintura.”100
O espaço Proun ele, assume muito mais o parentesco com os Pavilhões
que, nas exposições de arquitetura da mesma época, propunham ao público um
cenário total de demonstração. É isso que parece lhe dar maior prevalência na
ordem da audácia artística e crítica, se o compararmos com outros trabalhos da
mesma época. Vejamos, por exemplo, o caso do Hall da Embaixada Francesa,
na Exposição das Artes Decorativas, em Paris, em 1925, encomendado ao
arquiteto Mallet-Stevens. Em colaboração com um mestre-vidreiro, o escultor
Henri Laurens, os pintores Robert Delaunay e Fernand Léger, Mallet-Stevens
mostra “a necessidade para a arquitetura, em uma certa época, de chamar as
artes plásticas e, inversamente, a necessidade para estes últimos de responder

99
BOIS, Yve-Alain, “El Lissitzky: l’espace de démonstration”, op. cit., p.94. No entanto, é interes-
sante ver que a parede na qual ele reservou uma porta de entrada/saida não consegue acabar
definitavamente com o dispositivo da caixa perspectivista, o limiar em questão não deixando de
constituir um lugar privilegiado para tomar um conhecimento mais ou menos global do espaço a
ser percorrido depois pelo corpo e não apenas por um olhar varredouro. Podemos nos perguntar
se, pelo fato de se tratar declaradamente de “um espaço de demonstração”, a impossibilidade
de ignorar a instituição do olhar, com o rito espacial(izado), com o enquadramento prévio da
tomada de contato – o jogo da porta de acesso no espaço –, não significaria que a orientação
da experiência de percepção e a apropriação do espaço devessem repousar sobre bases ainda
fiéis a um mínimo pacto de entendimento entre a obra e a bagagem experimental do público,
sobretudo em 1923
100
MALEVITCH, Kasimir, “Nos tâches” (1929), Écrits, Paris: Champ Libre, 1975, p.255. Vimos
que El Lissitzky trabalha contra todo tipo de redução da parede a um suporte que sutilizaria,
apropriar-se-ia, transformar-se-ia naquilo que tem vocação de apresentar: a imagem artística
como conjunto organizado, em cada quadro, em cada obra, em cada imagem individualizada, de
cores e formas
a essa convocação.”101 É por essa razão que Christian Bonnefoi encontra nos
pavilhões de exposição durante a Exposição de Artes Decorativas de Paris o
verdadeiro ponto de partida do caráter mais público de uma arquitetura “expon-
do suas próprias condições de delimitação ou de ritmo, no qual todo elemento
(objeto, mobiliário, quadro...) é concebido e disposto no espaço em função da
necessidade geral.”102 Ele também identifica neles uma função crítica e cultural
de ordenação “dos dados fragmentários e estilhaçados do mundo da produção
tanto industrial (o objeto) quanto artístico (o quadro, a escultura).”103 No exemplo
aqui escolhido, é evidente que a construção de uma dinâmica espacial total faz
convergir a arquitetura e as realizações singulares e excepcionais de alguns
artistas de vanguarda determinantes no rico campo de experimentação que nos
interessa aqui. No caso do Hall, trata-se da questão

de um espaço interno articulado, comportando vários pontos de vista si-


multâneos, difratando-se conforme o jogo de panos parietais que param o olhar,
de outros que o desviam, e de outros ainda que o deixam ‘filtrar’ através do recor-
te, rente à parede, de retângulos (espécies de enquadramentos vazios que, ao
distribuir a visão nas suas bordas, funcionam ao invés da tela de cinema); esses
buracos não abrem sobre o exterior mas sobre um novo espaço interno, aquele
que acabamos de deixar e cuja sensação espacial transforma-se assim por um
simples deslocamento.104

A avaliação de Christian Bonnefoi é fundamental. Todos os jogos comple-


xos que ele analisa – e que não podemos reproduzir aqui –, espécies de ecos
aos jogos do Proun Raum, não indicam a valorização ideológica do cubo em si,
mas sua exploração como matriz e ponto de partida para abri-lo em articulações
complexas. Já se trata de trabalhar inside the (white) cube. Assim , como diz
Bonnefoi,

todo o esforço portará sobre a destruição dos pontos do cubo, de seus


ângulos e de seu espaço enclausurado, estático [...] Como o Pavilhão do Esprit
Nouveau, [o Hall] figura, demonstra uma nova concepção do espaço que só é
possível por uma relação dialéctica com a plástica.105

101
BONNEFOI, Christian, “L’architecture intérieure dans l’Entre-deux-Guerres: Mallet-Stevens”,
in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch
et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de
l’espace, Corda, 1979, p.123
102
Idem, p.121
103
Idem, ibidem
104
Idem, p.123
105
Idem, p.126
O próprio Mallet-Stevens aponta para um horizonte crítico, teórico no qual
as conquistas realizadas no diálogo construtivo entre arte e arquitetura se vêem
confirmadas e legitimadas quando sugere em 1925, nos Cahiers du mois cine-
ma, que a arquitetura moderna é “essencialmente fotogênica” e que deveria ser
possível “chegar a uma unidade de concepção entre arquitetura-cinema e arqui-
tetura realmente habitada.”106 Como entender isto, sobretudo quando sabemos
que a fotogenia da arquitetura pode, hoje, ser usada como argumento contra sua
promoção midiática? A resposta passa pela idéia de transformação da arquitetu-
ra em suporte e instância de manifestação de sua boa resolução técnica, icônica,
estética e ambiental, isto é, a manifestação de sua capacidade de ser, para reto-
marmos a terminologia de El Lissitzky, uma forma de geo-metria da materialidade
e, mais sinteticamente, da espacialidade, no seu impacto, no seu toque, na sua
definição, na sua de-limitação, na sua e-videnciação, na sua configuração plena.
É tudo o que leva Mallet-Stevens a instituir uma relação surpreendente entre ar-
quitetura-cinema e arquitetura realmente habitada. A primeira categoria garante
a completude da segunda. A habitação real comprova uma habitabilidade forjada
na capacidade de elaborar na totalidade de sua espacialidade um conjunto vivo,
móvel, dinâmico, que seja, para usarmos palavras um pouco solenes, o recep-
táculo do corpo, o temenos para uma apropriação qualificada e qualificante, a
que instaura a habitabilidade na sua duração. A arquitetura-cinema inventa os
ritmos e os intervalos plásticos, “volúmicos”, cromáticos etc., para condicionar
e construir imediatamente, no estofo corpóreo da experiência e da apropriação,
um espaço que Mallet-Stevens escolhe chamar de fotogênico. “Grandes planos,
oposições nítidas de sombras e luzes; que fundo melhor podemos sonhar para
as imagens em movimento, que melhor oposição para por a vida em relevo?
Num futuro próximo, o arquiteto será o colaborador do metteur en scène.”107
Aqui, mais uma vez, atravessemos o primeiro nível, literal, que subjaz a idéia
de colaboração entre arquitetura e encenação para ver que essa frase, se não
podia remeter no contexto de 1925 a experiências consagradas como aquelas
que existirão nos anos 1960, apresenta uma perspectiva teórica que C.Bonnefoi
sintetiza de uma maneira de extrema importância para nosso propósito. Ele mos-
tra que, na visão de Mallet-Stevens, a fotogenia é o nome que envolve todos os
aspectos de um fenômeno de revelação do espaço na sua dimensão de envol-
vimento ambiental:

ora, o que significa construir o fundo para as imagens em movimento? E


de que imagem se trata? Resposta de Mallet-Stevens no mesmo artigo: ‘o ara-
besco, o ornamento, é o personagem móvel que os cria’. Como para Léger, a

106
MALLET-STEVENS, Robert, “Le cinéma et les arts; l’architecture”, citado in: Idem, ibidem
107
Idem, ibidem
abstração, em termos plásticos, define-se de maneira radical e não reducionis-
ta. [...] Aqui, a abstração corresponde a um duplo movimento: de um lado uma
expulsão iconoclasta do homem do campo da representação, reenviado ao real
(julgando, como diz Léger, os efeitos cromáticos), de outro lado a ressurgência
arqueológica do fundo soterrado debaixo da história da representação: a parede,
o muro. Longe de ser uma posição ética, como em Loos e, em decorrência, nos
paises alemães (e, inclusive, em Le Corbusier), a nudez da parede e a ausência
de decoração são aqui efeitos teóricos ligados à interpenetração das práticas
arquiteturais e plásticas.108

A idéia de um ressurgimento, de uma volta do recalque plástico é uma tese


extremamente instigante. Também a tese de uma conaturalidade na arte moder-
na entre a ressurgência arqueológica do fundo soterrado debaixo da história da
representação, isto é, a parede, o muro, e a liberação da cor, constitui um esteio
sólido para construir a história da produção de superfícies murais concretizando
plasticamente o aporte experimental e a assimilação histórico-crítica das van-
guardas do pré-Segunda Guerra Mundial, na suas interrelações disciplinares.

108
BONNEFOI, Christian, “L’architecture intérieure dans l’Entre-deux-Guerres: Mallet-Stevens”,
in: Idem, p.127
Capítulo V
Coeficiência ambiental: a muralidade

Se, no texto de 1954 acima citado, Francastel tenta reconstituir uma certa
dinâmica artística na sua história, olhando assim para o meio século já corrido, é
natural que a referência a Léger apareça. Escreve:

um último ponto que orienta as especulações de toda a pintura contem-


porânea é o problema dos relevos e dos volumes. Alcança o problema do muro
[...] Essa última questão toca de muito perto a utilização geral e, por assim dizer,
prática, da cor, e ela constitui sem dúvida o elo positivo entre as livres especula-
ções dos artistas e a grande experiência humana do nosso tempo. F.Léger dizia
ontem: o muro, avanço-o ou recuo-o. O que mais conta para ele é o espaço, e o
espaço, ele o maneja pela cor.109

Essa prática e essa ambição definem um momento crucial da história da


arte e de sua relação com a arquitetura na primeira metade do século XX. Os
anos dez e vinte do século XX vêem muitos artistas e arquitetos, além de com-
bater o ornamento por motivos racionais e éticos, valorizarem sobretudo a plana-
ridade das superfícies e da parede, o que condiz com a análise que Francastel
faz posteriormente do surgimento na pintura cubista do “glacis óptico”. (Antes de
apronfundar a questão, ressaltemos já que a planaridade exponencial da pintura
implica uma operação de ruptura com a percepção meramente em-facial das su-
perfícies pintadas, com a primazia que dá à visibilidade frontal, geradora de um
certo tipo de contemplação tradicional, em prol dos valores da tatilidade, cujas
articulações são, veremos, múltiplas, por terem vinculos com as categorias de
espaço envolvente e ambiental.)
Aqui, devemos lembrar com Yves-Alain Bois e Jean Clay que coube à ar-
quitetura um papel determinante na elaboração de certas experiências espaciais
e estéticas do Entre-duas-Guerras. Após 1920, muitas vezes foram os arquite-
tos que levaram mais adiante os avanços realizados pelas artes plásticas na
década anterior, a arquitetura dando à pintura, disciplina pioneira nos avanços
formais e experimentais vanguardistas, a possibilidade de alcançar uma escala
que – sem ter por si só as condições para fazê-lo dentro de seus limites –, ela
desejava implicitamente atingir para realizar suas novas potencialidades. Estas
são determinadas por um conjunto de conquistas e desenclaves que constam do
feixe de experiências que as categorias analisadas anteriormente por Francastel
e Buchloh ressituam bem. A tese de Bois e Clay enuncia:

109
FRANCASTEL, Pierrre, “La couleur dans la peinture contemporaine”, L’image, la vision et
l’imagination, textes réunis et présentés par Galienne Francastel, Paris: Denoel/Gonthier, biblio-
thèque Médiations, 1983, p.240
é paradoxalmente na arquitetura que os dados especificamente pictóricos
virão se relançar, enquanto os próprios pintores parecem ter renunciado. É essa
tomada em conta pela arquitetura da problemática pictórica da modernidade que
permitirá, alguns anos mais tarde, uma nova partida para os pintores.110

As referências que apresentam o são através de quatro subdivisões que,


em si, focam processos práticos e aspectos teóricos plurais: a) a arquitetura
realiza a pintura (superdimensionando o quadro); b) a arquitetura antecipa a pin-
tura; c) a arquitetura precede a escultura; d) enfim, a tese proposta consistirá em
pensar “uma história da arquitetura como produtora de muralidade.”111 Em a), en-
contramos exemplos na arquitetura de um superdimensionamento de modelos
formais já enunciados na pintura. Bois e Clay escolhem de maneira pertinente a
transferência pelo arquiteto Robert Mallet-Stevens, num cenário tridimensional
para o filme de Marcel L’Herbier, L’inhumaine, 1924, da grade neo-plasticista de
Mondrian ou Van Doesburg, grade que reencontramos nas três altas janelas-
vitrais de um interior do mesmo Mallet-Stevens ou no teto vidráceo de Auguste
Perret para o Crédit National Hôtelier de Paris; nos Estados Unidos, remetem aos
arquitetos Holabird e Root que, através de um mecanismo de iluminação, utili-
zaram o modelo do contraste simultâneo de Delaunay na entrada do A.O. Smith
Corporation Building, em Milwaukee, Wisconsin, 1929. Esta escala arquitetural,
Delaunay a alcançará apenas em 1937 nos grandes ambientes que criará para
o Pavilhão da Electricidade na Exposição Universal em Paris.
Em b), a arquitetura chega a antecipar alguns dos mais importantes de-
senvolvimentos formais das artes plásticas do século XX. Bois e Clay tomam os
seguintes exemplos: a antecipação das pesquisas do pintor Joseph Albers em
arquiteturas de Portaluppi, J.J.P.Oud e Bruno Paul (do primeiro, o desenho do
projeto de fachada para um prédio de escritórios da S.T.T.S., em Milano, 1926; do
segundo, a Pequena Casa semi-transparente, 1923, e, do terceiro o saguão da
exposição Deutsche Kunst, em Dusseldorf, 1928, relacionados com um desenho
de Albers, Prefatio, 1942, com suas redes de meandros geométricos); a anteci-
pação das frontalizações monocromáticas de um Elsworth Kelly ou de um Robert
Rauschenberg (White Painting, 1953) na janela opaca de René Herbst num
apartamento; a prefiguração de três quadrados monocromos de Joe Baer (1964-
65) no grandes screen ou écrans brancos translúcidos instalados pelo arquiteto
Mallet-Stevens como contra-vitrine nos escritórios da empresa Alfa-Romeo em
Paris, as janelas dos arquitetos procedendo a uma verdadeira inversão do lema
tradicional da janela como abertura sobre o mundo, os painéis opacos trans-

110
BOIS, Yve-Alain; CLAY, Jean, “Séquences. Architecture/Arts plastiques. Relais/Relance”, in:
BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch
et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de
l’espace, Corda, 1979, p.26
111
Idem, p.27-32
formando a janela em superfície resistente não-atravessável; o pressentimento
arquitetural do all-over – que Bois e Clay definem como o “investimento de borda
a borda do painel; abolição da oposição figura/fundo”112– na sala de entrada
de Mallet-Stevens para a exposição da Union des Artistes Modernes (U.A.M.),
1930, (superposição de faixas horizontais pintadas separadas por linhas, posta
em relação com Stria, do pintor americano Kenneth Noland, 1967), a mesma ten-
dência proto-all-over caracterizando muitos trabalhos de decoradores franceses
dos anos 1920 visíveis no Répertoire du goût moderne publicado em 1928-29.
O diretor da revista L’Architecture Vivante, Jean Badovici, escrevia no número
do inverno 1929 que, na arquitetura, a função pictórica devia depender e ser
determinada pelas superfícies parietais, “todo quadro aparece[ndo] não só inútil
como também nocivo à harmonia do conjunto.”113 Em c), encontramos experiên-
cias arquiteturais que precedem futuras experiências no âmbito da escultura. Por
estas serem bastante ligadas aos momentos nos quais algo é explorado que, re-
trospectivamente, anuncia em parte operações e realizações artísticas dos anos
1960, notadamente no minimalismo, no neoconcretismo e nas práticas situacio-
nais etc., nos reservamos voltar a este ponte c) mais tarde. Podemos somente
citar a lista sintética que Bois e Clay estabelecem das noções que eles retiraram
do “exame empírico das convergências entre práticas do espaço”114 nos itens
que denominamos a), b) e c): a planaridade, o all-over, a minimalidade, a volu-
metria, a serialidade. Avançemos, portanto, na proposta de uma história crítica
da arquitetura que ressalte sua dimensão de “produtora de muralidade.”115
Esta, dizem Bois e Clay, implica que se rompa com uma certa valorização
da arquitetura moderna demasiadamente centrada na “cronologia das inovações
técnicas” ou no estabelecimento da “tipologia tectônica”116 para tal ou tal ele-
mento preponderante, por exemplo, a ossatura-estrutura, o pilotis, o teto-terraço
etc. A proposta de ressaltar na arquitetura moderna sua dimensão de produtora
de muralidade implica, portanto, o redirecionamento do olhar crítico a partir do
conjunto das categorias retiradas do exame feito nos itens a), b) e c). O partido
metodológico consiste em ver como

esses indícios – passados ao crivo do aparato conceitual formado na prá-


tica da arte plástica contemporânea –, nos levam a uma releitura da história da
arquitetura que tenderia a por em relevo a questão determinante da muralidade,
da produção de muralidade, como finalidade da arquitetura do século [XX], vetor

112
Idem, p.28
113
Citado in: Idem, p.29
114
BOIS, Yve-Alain; CLAY, Jean, “Séquences. Architecture/Arts plastiques. Relais/Relance”, in:
Idem, p.32
115
Idem, ibidem
116
Idem, ibidem
determinante do movimento moderno.117

Nessa base, o crítico e historiador disporia de uma possibilidade de se


desfazer do apego à história da arquitetura como história da ossatura, do es-
queleto, garantia ou caução ao mesmo tempo estrutural e simbólica da transpa-
rência funcionalista. Nessa ordem de consideração, seria também possivel – e
exigido – evitar o recife da supervalorização crítica do geometrismo composicio-
nal. Opondo composição e construção, os autores definem a composição como
equilíbrio e neutralização recíprocas das tensões formais numa dada superfície,
a resolução final que supera essas tensões sendo motivada pela “submissão a
uma ordem imutável, refletindo ela mesma uma concepção estável, intemporal,
infra-histórica da ordem do mundo.”118 Reconhecemos aqui, por exemplo, a filo-
sofia purista da criação e da obra de arte de Le Corbusier e Ozenfant em volta
de 1920, com seu universalismo cientista, seu positivismo psico-fisiológico que
crê existirem possiveis respostas e reações estéticas iguais em todas as partes
do mundo e da humanidade, conquanto certas regras básicas de solicitação
sensori-motor sejam garantidas dentro do artefato proposto, por excelência, o
fenômeno artístico, capaz de forjar uma gramática formal e visual universal e de
por em ação a partir dela um teclado de sensações gerando recepções idênticas
em todos os receptores. A esse composicionismo deshistoricizado, opunham-
se nos mesmos anos aqueles que valorizavam o construcionismo, que afirma
a singularidade de cada enunciação artística como promoção e manifestação
de seus princípios de organização ad hoc, sem relação com qualquer neces-
sidade de caução transcendental e universal para sustentar suas proposições.
Na construção, a circunstância reinvindica a plena autonomia de seu espaço de
enunciação, a plena legitimidade de seus princípios internos. Formalmente, é a
condição da audácia na elaboração de propostas e realizações experimentais
não consensuais a priori. Trata-se, nesses anos 1920-30, de investir a superfície
com um traçado unitário, deshierarquizado, com uma rede regular de unidades
similares, a retícula aniquilando o idealismo ingênuo da composição. (O risco da
composição ficava evidente nessa época e Van Doesburg, artista neo-plasticista,
sublinhava como sua “disciplina pictórica” era finalmente “clássica”, transforman-

117
Idem, ibidem
118
Idem, p.33
do as pinturas em alguns Ingres ou Poussin abstratos...)119

Assim, escrevem Bois e Clay, “uma vez descartados os dois obstáculos


teóricos – mito da ossatura; denegação geométrica –, que são as formas moder-
nas de anulação da muralidade, resta pôr a trabalho esta última noção acerca da
produção arquitetural”120 Sinteticamente, Bois e Clay apresentam uma série de
referências que, na arquitetura, dizem respeito à produção de muralidade, atra-
vés do efeito de frontão (Casa Tzara, por Adolf Loos; Casa Guiette, Antwerpen,
1925 ou Villa em La Chaux-de-Fonds, de Le Corbusier; exterior do Pavilhão da
Electricidade, por Mallet-Stevens, na Exposição Universal de 1937), como tam-
bém do efeito de flanco (Meisterhaus, por Walter Gropius, Dessau, 1926).121 A fa-
chada convexa do Pavilhão da Electricidade é exemplar da maneira de misturar
os dois efetos, frontão e flanco. Mallet-Stevens representa perfeitamente esse
arquiteto cuja concepção global do espaço como um todo, pensa a integração do
mínimo detalhe como uma exigência. As experiências “muralógicas” realizadas
na arquitetura do Entre-duas-Guerras acabarão intimando os artistas – ou me-
lhor dito, as artes – a integrá-las. Isto, já dissemos, levará ao mais interessante
da arte dos anos 1960-70.
Essa maturidade significa a realização e a assimilação prévias de alguns
passos que vamos relembrar. Trata-se da questão de um espaço homogêneo,
unitário mas articulado, que envolve e exige a problematização e a exploração
da questão do estatuto do muro reencontrado pelos arquitetos debaixo da da-
nosa prolixidade decorativa, e a dedução da função da planaridade que vai se
tornar, precisamente, um conceito fundamental da pintura. A originalidade da
tese de Bois, Bonnefoi, Troy, Clay consiste em validar de certa maneira – sua
adesão a – o dogma greenberguiano da planaridade como essência da pintura
moderna, processo em andamento desde Manet, isto é, de uma pintura que con-
fessa as superfícies sobre as quais trabalha. A invenção pela pintura moderna
de uma resistência da superfície, de repente não-atravessável, gera mudanças
de percepcão e uma crise do Sujeito que, antes, dominava a representação, um
Sujeito que o domínio do visível, ao permitir-lhe proceder a recortes, instituia e

119
Van Doesburg citado no último número da revista De Stijl, 1932, homenagem póstumo ao
artista, in: Idem, p.34. Isso nos permite notar a relevância dessas categorias para criar, na arte
moderna e contemporânea, divisórias entre arte de experimentação e arte mais apega a um
certo classicismo implícito. O polo “construção” agiria do lado da elaboração de um construct
repousando menos sobre recursos já testados e/ou confirmados, o polo composição, ele, ampa-
rando-se mais facilmente num teclado de possibilidades e operações menos arriscadas, tendo a
ver com o arranjo. Reencontraremos essa relativa oposição no balanço que Allan Kaprow fazia
em 1991 do devir da instalação com relação ao environment, essa reinstituindo na arte contem-
porânea uma certa composição que o leva a qualificá-la de “tradicional”.
120
BOIS, Yve-Alain; CLAY, Jean, “Séquences. Architecture/Arts plastiques. Relais/Relance”, in:
Idem, ibidem
121
Idem, p.35-36
confirmava como detentor de um poder sobre o real. Esse ponto, que é relacio-
nado ao contexto da perda da focalidade óptica e da abertura da arte a experi-
ências estesiológicas mais complexas, é importante por assinalar como a perda
de soberania do observador frente a, dentro, ao lado ou nos interstícios de etc.,
– uma chave, aliás, para entendermos porque a arte moderna e contemporânea
aparece a muitos como uma operação de perturbação e deslocamento do públi-
co –, propicia um sentimento de deriva perceptiva e interpretativa. Essa é rela-
cionada com a volta manifesta de um recalque, isto é, o carácter bruto, inteiro,
sem concessão e de-diferenciado do muro — objeto de um certo choque frontal
—, e à liberação grandiosa da cor, agente de diluição ou de fascínio. Além disso,
a complementariedade da planaridade ampla e da cor hiperpotencializada cria
condições de fortalecimento da experiência oceânica...
Para tratar essa questão, mais uma vez dois pólos se apresentam, que
levam do lado da arquitetura e do lado da pintura, sem poder, aliás, separar o
que está em jogo, em cada pólo, de sua interação com o outro... Como lembra
Clay, “planaridade/muralidade/parietalidade – é no deslocamento/na coincidên-
cia dessas noções que a arte moderna trabalha.”122 Aqui, muralidade ou parie-
talidade implicam em superfícies opacas, de maciço arquitetônico. Contrasta
aparentemente com a valorização, na Alemanha do início do século XX, do vidro
como material purificante e utópico mas, após a Primeira Guerra Mundial, sua
significação mais higiênica de sobriedade, clareza e funcionalidade fez com que
a superfície pura do vidro representou também na arquitetura um fator impor-
tante de avaliação e produção parietal singular. Pode ter perdido nos anos 1950
seu estatuto de material utópico e suas associações naturalistas, entretanto, o
fato de as superfícies puras – e vemos aparecer aqui a monocromia pictórica
– serem doravante associadas de maneira predominante à perfeição industrial
mostra – apesar de Duchamp e Brancusi terem antecipado tal valorização pelo
uso ou a escolha de materiais similares na sua época –, que tal superfície é um
paradigma histórico. Mais: basta olhar para a produção significativa de pintura
de carácter monocromático nos anos 1950 e 1960 para entendermos como a su-
perfície “pura” minimalista de feição industrial deve tanto à valorização do vidro
na arquitetura quanto à valorização das superfícies “puras” monocromáticas em
pintura.

122
CLAY, Jean, “Contre-épreuve”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec
la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire
interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.140
Capítulo VI
Dinâmica espacial, Mondrian

A tensão interna da pintura na direção do espaço atual é uma questão


complexa. Ela não pode ser dissociada de um contexto teórico mais amplo.
Robert Migayrou escreve: “o deslocamento perpétuo do espaço tal como acon-
tece nas vanguardas corresponde mais à realização de uma compreensão do
espaço como forma, como quadro vazio para uma inscrição, do que a uma von-
tade purista de afirmar o domínio de uma nova extensão.”123 No entanto, se,
como diz Migayrou, na época que nos interessa aqui, o início do século XX, “o
abstracionismo [foi] mais a descoberta de uma determinação local do espaço,
de um espaço relacional rente à matéria, ao traço, à cor, do que a afirmação de
um espaço universal”124, pensamos que o vazio da inscrição e o espaço local de
experimentação aos quais ele faz alusão podem justamente ser vistos retrospec-
tivamente como intuições de uma nova extensão por vir e de um espaço que não
se reduz aos componentes de sua afirmação local. A questão da proporção ou
da escala das experiências plásticas não pode barrar o fato de que uma vertente
considerável da arte dessa época é o de um “espaço deslocado [que] se torna o
alvo de [...] uma arte relacional, uma arte concreta, um arte do real”125, escreve
o crítico. Os exemplos propostos por ele são os construtivistas russos. Marco
histórico por excelência: nada menos que Donald Judd, num texto de 1987, para
fazer o elogio retrospectivo dessa geração:

penso que a tentativa de coerência (entre os diversos domínios artísticos)


e de ampliação que o movimento De Stijl, a Bauhaus e os construtivistas ope-
raram é uma coisa viva, normal, que não tem nada de autoritária. [...] Estes três
movimentos artísticos fizeram um trabalho fantástico.126

Ao ler o que Mondrian escrevia nos anos 1920, entendemos porque


Donald Judd dá tanta importância ao grupo ao qual o artista holandês pertencia,
o grupo De Stijl. A reivindicação “proto-minimalista” de desubjetivação da produ-
ção, da manifestação e da recepção da obra de arte, a insistência sobre o uso
e a apresentação de materiais industriais, um certo arcabouço de idéias e cate-

123
MIGAYROU, Frédéric, “Art, architecture: principe de la collection sans objets”, in: Artistes
Architectes, Les Cahiers - Mémoires d’expo, nº1, Villeurbanne: Nouveau Musée/Institut d’art
contemporain, 1997, p.19 (exposição que foi também apresentada em München, no Kunstverein;
Belém, no Centro Cultural; Lisboa, na Galeria das Descobertas; Wien, na Kunsthalle, em 1996
e 1997)
124
Idem, ibidem
125
Idem, ibidem
126
JUDD, Donal, “Art et Architecture, 1987”, Écrits 1963-1990, Paris: daniel lelong éditeur, 1990,
p.193 (trad. do americano por Annie Pérez)
gorias que costumamos associar ao minimalismo, constam do artigo intitulado
“Le Home, la Rue, la Cité”, que acompanhava na revista Vouloir três desenhos
de um ambiente projetado por Mondrian para o Salão da Senhora Bienert, em
Dresden, em 1927 (Fig. 24 e 25). Este projeto
permitiu ao artista definir o que lhe parecia ser
as tarefas de uma produção de ambiente para
a época moderna. Primeiro ponto: a desubje-
tivação do ambiente (ponto que nos parece
convergir, e inclusive antecipar, a proclamação
por Donald Judd de uma necessária desubjeti- 24

vação da arte):

para que nossa ambiência material seja


pura beleza, portanto, sã e prática, é necessário
que não seja mais o reflexo dos sentimentos ego-
ístas de nossa pequena personalidade, é propria-
mente preciso que não cumpra expressão lírica al-
guma, mas, sim, puramente plástica.127 25

Aqui, a plasticidade pura limpa e depura as relíquias de subjetividade que


a arte pode veicular, solicitar e safisfazer através da função identificatória. Agora,
para tal desubjetivação acontecer, é preciso recorrer a certas operações formais
e materiais. É o que formula a citação a seguir em um contexto que vale como
modelo para toda concepção material de um ambiente:

na arquitetura, a materia se desnaturaliza de várias maneiras [...] A rugo-


sidade, a aparência rústica (tipo mesmo da materia natural), deve ser retirada.
Portanto: 1) a superfície da matéria será lisa e brilhante, o que, além de tudo,
diminui o peso da matéria. Nos encontramos aqui ainda na presença de um da-
queles exemplos nos quais vemos a arte neo-plasticista em acordo com o higiene
que exige também superfícies lisas perfeitamente limpáveis. 2) A cor natural da
matéria deve, ela também, desaparecer, o tanto que for possível, debaixo de uma
camada de cor pura ou de não-cor. 3) Não só a matéria como meio plástico (ele-
mento construtivo) será desnaturalizada, mas a composição arquitetural também.
Através de uma oposição naturalizante e aniquilante, a estrutura natural será eli-
minada.128

Mondrian apresenta aqui uma série de condições que nos interessam so-
bretudo por anteciparem pontos cruciais do minimalismo: a denaturalização, o
higene da percepção, a eliminação da materialidade e da cor naturais, a afirma-

127
MONDRIAN, Piet, “Le Home, la Rue, la Cité”, Vouloir, nº25, 1927, sem paginação
128
Idem, ibidem
ção da cor pura ou da não-cor, (a complementaridade entre higiene, superfície
lisa, cor pura ou não-cor evocando muito as superfícies translúcidas que come-
çamos a encontrar na pintura monocromática norte-americana do pós-guerra).
Isso explica porque Mondrian representa um marco fundamental na questão.
A relação de Piet Mondrian com seu ateliê de trabalho e ao mesmo tempo
residência, em Paris, é exemplar da complexidade inerente à idéia e à prática de
um espaço de vida transformado em espaço experimental e espaço modelo de
um ambiente estético total. Ao mesmo tempo, trata da virtual transformação do
espaço “privado” em espaço público, conquanto alguns visitantes, obviamente
raros, possam adentrar o lugar organizado pelo artista. Nesse sentide, o atelié de
Mondrian tem valor de paradigma experimental. Seu valor de laboratório é confir-
mado quando vemos que ele põe em questão a transformação de um espaço de
apresentação – mesmo que de âmbito e de escala “privados” – em obra de arte
por inteira. Não podemos nos esquecer da escolha de Mondrian de publicar foto-
grafias de seu ateliê, o que constituia um partido de “exposição” particularmente
adequado com as vertentes dominantes da comunicação pela reprodução e an-
tecipava um tipo de existência da obra de arte através do registro documental e
da relação complexa que esta poderá manter, trinta anos mais tarde, com o pro-
cesso artístico. Uma fotografia publicada em De Stijl mostra Mondrian em 1925
no seu ateliê da Rue du Départ, em Paris, onde vivia desde 1922 (até 1936). Em
1926 e 1927, parecem três outras fotografias. Em outra fotografia do ano 1931,
o cavalete vazio posto frente à parede lateral da sala — que funcionava como
parede de fundo da fotografia —, sugere “que nenhuma obra em particular, salvo
o próprio ambiente enquanto ‘espaço de demonstração’, era dada a ver.”129 Num
livro publicado durante a Exposition Internationale d’Art Moderne de la Société
Anonyme, em 1926, uma fotografia de um losango com uma ponta abaixo e
outra acima avizinha uma fotografia do ateliê. Numa entrevista publicada num
jornal holandês no 12 de setembro de 1926, Mondrian fazia participar um qua-
dro-losango e o conjunto da sala na qual este se encontrava exposto à mesma
dinâmica espacial: “assim como meu quadro é um substituto abstrato do todo, a
parede plástico-abstrata faz parte do conteúdo profundo implícito da sala intei-
ra.”130 O quadro, apesar de ser prometido a desaparecer, funciona como espaço
metonímico de preparação para um futuro transporte de suas relações ao todo
do ambiente de vida. Trabalha a divisão, a repartição, o equilíbrio do espaço. Os
planos delimitados e as linhas pretas são os futoros planos do espaço arquite-
tural (privado e público) e urbano. As linhas virarão arestas e ângulos mas é à

129
TROY, Nancy, “L’atelier de Mondrian”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean;
avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une
histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.101
130
MONDRIAN, Piet, “Bij Piet Mondrian”, De Telegraaf, 12 set. 1926
cor que caberá a maior função de estruturação formal, espacial e ambiental da
vida. Cedo, Mondrian acreditava que a Nova-Plástica-enquanto-Quadro cederia
o lugar à Chromo-Plástica na arquitetura. Na revista Vouloir acima citada – con-
sagrada ao ambiente –, o artigo de Mondrian propõe um verdadeiro manifesto
acerca da ampliação da estética neo-plasticista ao conjunto do espaço social de
vida, as elaborações micro-artísticas tendo obviamente antecipado e preparado
essa amplição e mudança de escala, assim como o investimento de um contexto
urbano global por uma máquina de produção formal e estética que leva dos qua-
dros à cidade, passando pelo ateliê da Rue du Départ. Mondrian escrevia:

o Home não saberia mais estar enclausurado, fechado, separado.


Tampouco a Rua. Apesar de terem uma função diferente, esses dois elementos
devem formar uma unidade. Para alcançá-la, não saberiamos mais olhar o Home
como uma caixa ou um espaço vazio. A idéia de Home – Home, sweet Home, mo-
radia, doce moradia –, deve desaparecer, assim, aliás, como a de Rua. É preciso
considerar o Home e a Rua como a Cidade, uma unidade formada por planos
compostos em uma oposição neutralizante que aniquila toda exclusividade. O
mesmo princípio deve reger o interior do Home. Não pode mais ser uma super-
posição de peças formadas por quatro paredes, com suas portas e janelas, mas
como uma construção de uma infinitude de planos de cores e objetos que não
serão nada em si mas que agirão como elementos construtivos do todo.131

Na verdade, em 1927, Mondrian exprime aqui o espaço máximo de irra-


diação da arte que ele sonha ver acontecer na escala urbana. No entanto, maior
importância é dada por ele ao espaço intermediário da habitação:

não seria a unidade tri-dimensional das várias superfícies murais um ex-


celente meio de nos deslocarmos internamente, isto é, de nos fazerem sentir mais
profundamente de maneira pluri-dimensional? Penso que o fator individual que,
por assim dizer, gruda toda plástica, pode justamente ser melhor evitado graças
à organização plástica do quarto substituindo o quadro.132

Mondrian sonha com pessoas bem intencionadas que inaugurariam um


tipo de relação com o ambiente capaz de levá-las a estruturarem seus espaços
de habitação a partir destes princípios, para encarnar pouco a pouco essa visão
e levar ao desaparecimento do formato tradicional do quadro, isto é, de uma
forma de produção prometida à caducidade uma vez que os princípios da nova
plástica da cor estiverem entendidos e assimilados. Este horizonte de diluição
levará Le Corbusier a declarar em 1948:

131
MONDRIAN, Piet, “Le Home, la Rue, la Cité”, Vouloir, nº25, 1927, sem paginação
MONDRIAN, Piet, “Réalité naturelle, réalité abstraite”, De Stijl, 1919-1920, traduzido in:
132

SEUPHOR, Michel, Piet Mondrian, Paris: Flammarion, 1956, p.338


no dilema que a arte figurativa e não-figurativa hoje coloca, os espíritos
dos arquitetos ficam desempregados, difusos, suspensos. Não conseguem se
materializar. A arquitetura ainda é demasiadamente miserável, idiota, privada de
sua própria essência que consiste em nos tocar por sua distinção e irradiar a luz.
Piet Mondrian, peregrino heróico, encarnou esse destino trágico. Vindo depois
dele, muitos jovens encontram-se mergulhados no mesmo dilema. Cessaram de
ser pintores. Já são arquitetos. Aparecerão como arquitetos quando os tempos
forem maduros. A arquitetura os aguarda.133

Trata-se de questões de equilíbrio, de câmbio entre pintura e arquitetura.


A geração de Mondrian e Malevitch tinha a consciência declarada de preparar
um estado futuro da cultura humana no qual a arte teria encontrado como reali-
zar, concretizar, cumprir e levar às suas últimas consequências aquilo que uma
fase anterior e incompleta da pintura tinha preparado. Mondrian: “hoje, a Nova
Plástica realiza na pintura o que, mais tarde, veremos ao nosso redor na escul-
tura e na arquitetura. […] É necessário que a construção arquitetônica mude
totalmente; a arquitetura deve, ela também, ser uma plástica pura.”134

133
LE CORBUSIER, excerto do catálogo de exposição Mondrian, Paris, 1969. Citado por CLAY,
Jean, “Contre-épreuve”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collabo-
ration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdis-
ciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.145
MONDRIAN, Piet, “Réalité naturelle, réalité abstraite”, De Stijl, 1919-1920, traduzido in:
134

SEUPHOR, Michel, Piet Mondrian, Paris: Flammarion, 1956, p.325


Capítulo VII
Novas arquitetônicas do agenciamento

El Lissitzky, ainda, nos fornece argumentos importantes para medirmos e


não nos esquecermos dos passos decisivos que foram dados algumas décadas
antes dos anos 1960. O fato de ele ter concebido em 1923 um dos espaços de
demonstração mais determinantes da época, dá a seu pensamento crítico uma
grande importância. Isso é claro quando vemos o que ele escrevia em 1930 a
respeito da relação entre as artes. No livro publicado em 1930 sobre A reconstru-
ção da arquitetura na União Soviética, El Lissitzky já mostrava uma alta consci-
ência do valor e da força das experimentações e conquistas artísticas realizadas
na década passada, levando-o a formular a idéia – justa –, de que “será neces-
sário o trabalho de várias gerações para explorar as possibilidades abertas”135
pelas invenções radicais dos artistas russos. El Lissitzky remete à pintura o pri-
mor das conquistas. Para ele, motivada por uma busca de análise científica de
seus componentes, ela descubriu seus “elementos plástico-formais” (plastischen
Gestaltungselemente)136 essenciais. As dimensões analíticas inerentes a essas
novas e radicais experiências plásticas do início do século XX levaram a arte a
afirmar a existência de duas maneiras de exprimir o mundo: a óptica-cromática
e a tátil-matérica. El Lissitzky precisa que, para ele, essas duas abordagens e
doações do mundo – no sentido fenomenológico da doação de sentido –, partici-
pam contudo de uma concepcão do mundo como “ordem geométrica.”137 Segue
uma avaliação da primeira visão — a óptica-cromática —, que nos faz passar
pelas categorias da “pura cor espectral”, a “abstração, uma planimetria de cores
entendida na ordem racional dos elementos geométricos”138 – aqui, referência
poderia ser feita ao espectro diversificado das experiências vanguardistas do
início do século XX, talvez o pós-impressionismo, o cubo-futurismo, o futurismo,
mas trata-se claramente do suprematismo:

chegou-se, inclusive, à renúncia total ao espectro cromático: sobrou ape-


nas o único esquema figural planimétrico (branco/preto). [...] Chegou-se a um
puro agenciamento de volumes. Abarcou-se imediatamente a natureza arquite-
tônica desse agenciamento estereométrico e a pintura tornou-se, portanto, uma

135
EL LISSITZKY, “Relation entre les arts”, Russland, die Rekonstruktion der Architektur in der
Sowjet-Union, Wien: Verlag Anton Schroll, 1930, traduzido in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI,
Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts
plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.382-
383
136
Idem, ibidem
137
Idem, ibidem
138
Idem, ibidem
alavanca para a arquitetura.139

Se parássemos a leitura do texto aqui, poderíamos dizer que El Lissitzky


não formula claramente se o que ele analisa acontece no plano bi-dimensional
ou se o agenciamento de volumes em questão já significa jogo tri-dimensional –
o que, no caso, poderia remeter aos Proun Raümen. Na verdade, o que interes-
sa aqui é a possibilidade de ler no texto a formulação de um processo, de intuir
sua pertinência independentemente da bi- ou da tri-dimensionalidade. Melhor
dito, trata-se de entender uma formulação explícita da conaturalidade, isto é, da
“natureza arquitetônica”140 que caracteriza todo agenciamento de volumes, seja
no plano seja na profundidade concreta do real, como se ambas as experiências
trouxessem algo decisivo para a exploração espacial.
A seqüência da frase mostra que El Lissitzky analisa a linha da visuali-
dade cromática, citando quase Malevitch, que falou tanto, como sabemos, de
tensões assimétricas para explicitar as superfícies pictóricas suprematistas. El
Lissitzky escreve: “pudemos, portanto, construir um novo equilibrio assimétrico;
as tensões dos corpos constituiram uma nova expressão dinâmica e uma nova
ritmica implantou-se.”141 El Lissitzky lamenta de certa maneira o fato de o pintor
que liderou essa vertente, isto é, Malevitch, ter ficado numa forma de apreensão
meramente visual e a-objetiva (“gegenstandlos”, o que para Malevitch, sabemos,
significava muito mais do que a simples evicção da figuração...) da nova arquite-
tônica espacial. Coube, portanto, aos “arquitetos”, dentre os quais El Lissitzky diz
se situar, levarem às suas últimas conseqüências o que ficou apenas prometido
e antecipado no plano geométrico e cromático do suprematismo. Levar a suas
derradeiras conseqüências, na medida em que a planimetria das cores já encar-
nava “um mundo orgânico e cristalino.”142
No entanto, “a segunda maneira de ver”143 — a tátil-matérica —, vai levar
os “arquitetos” – que não se restringem aos profissionais da área, mas integram
os responsáveis de uma prática experimental ampliada do espaço –, a sairem
do sem-objeto malevitchiano para elaborar uma outra geometria, da ordem da
materialidade e do toque. El Lissitzky fala do Monumento à Terceira Internacional
(1920), de Wladimir Tatlin, para falar de um exemplo paradigmático de “domínio
intuitivo e artístico do material”144, a partir de uma reflexão – independente “dos
métodos racionais e científicos da técnica – sobre “as qualidades específicas

139
Idem, ibidem
140
Idem, ibidem
141
Idem, ibidem
142
Idem, ibidem
143
Idem, ibidem
144
Idem, ibidem
de cada material levado em consideração.”145 Não podemos aprofundar aqui a
questão própria da cultura dos materiais na vanguarda construtivista russa – já
dissemos algo a respeito, rapidamente –, mas não podemos nos esquecer de
que Tatlin já justificava suas experiências escultóricas, os Contra-Relevos, pela
idéia de trabalhar “materiais reais no espaço real”. Real, isto é, correlato de uma
tomada em consideração da repercussão concreta, física, tangível e mesmo
existencial dos materiais, de seu uso, de sua manipulação, de sua elaboração,
de sua análise, de sua projeção, de sua manifestação. Assim, as dimensões da
materialidade e do toque apontam para mais implicações do que o faria a restri-
ção à simples questão dos materiais stricto sensu.
A introdução por nós do termo “toque” visa ampliar a abrangência da ca-
tegoria da matéria e material. Assim, por se tratar, na visão material, de levar a
a-objetividade suprematista a encontrar modos de existência concretros, reais,
físicos, isto é, minimamente tri-dimensionais, pode-se concluir que, por exten-
são, a cor – categoria da primeira visão e doação do mundo segundo El Lissitzky
–, também materializa e cria as condições particulares de um contato material
e ambiental: a cor possibilita uma modalidade do toque. Esse toque das coisas
– fórmula-chave para entendermos uma parte considerável da arte do século
XX –, o reanalisaremos mais tarde, mas devemos contudo anunciar que ele nos
interessará no contexto das reflexões de Walter Benjamin sobre a arquitetura e
o ambiente e, em outro contexto, na questão da elaboração de produções de
carácter notadamente “tátil” na arte dos anos 1960-70. Uma fórmula apresenta-
da como que de passagem por El Lissitzky acerca do impacto da Torre de Tatlin
na arquitetura soviética dos anos 1920 constitui assim um lema antecipatório
de práticas sistematizadas trinta anos depois, notadamente na arte brasileira de
Clark e Oiticica: “o esforço de toda a arquitetura nova almejando uma flexibiliza-
ção dos volumes e uma interpenetração do interior e do exterior encontra aqui
sua expressão.”146
Historicamente, se cada uma a seu modo, tanto a vertente mais cons-
trutivista quanto a vertente mais pictórica, trabalham para uma valorização da
dimensão ambiental, certas experiências ou propostas espaciais, presentes no
âmbito da arquitetura, mostram que a espacialidade concreta tridimensional, – a
natureza arquitetônica do agenciamento, como diz El Lissitzky na fórmula feliz
que nos doou –, é a instância privilegiada de um processo no qual enuncia-se
nada menos do que a possibilidade de pensar o espaço real como objeto, su-
porte e mediação (propiciadores de condições) para a experimentação, o teste e
a afirmação da dimensão tátil do espaço: em uma palavra, a possibilidade de o
espaço afetar os corpos. Para isso “funcionar”, pode-se investir tanto na vertente

145
Idem, ibidem
146
Idem, ibidem
que El Lissitzky caracterizava como a da visão e da doação óptica e cromática
do mundo – opção primeira –, quanto na segunda vertente, a da visão e da do-
ação material e sensorial.
Uma vez atingido este nível de consideração, vemos que, a partir da se-
gunda metade do século XX, a pintura desempenhou um papel fundamental que
podemos apresentar assim: ela não tem mais um valor apenas óptico e ela ma-
nifesta ser capaz — os grandes formatos monocromáticos são tantas maneiras
de consolidar esse dado — de contribuir à afirmação de valências táteis mais
globais. A questão da em-facialidade é deslocada para a idéia de que é possí-
vel a um painel com dominante monocromática envolver o observador em uma
relação que vai além da simples solicitação do olho. Trata-se exatamente de
trans-bordar o plano através de sua articulação com a profundidade fenomenoló-
gica, uma vez que, como diz Clement Greenberg a respeito das telas de Barnett
Newman, ela produz campos, “fields”. Talvez seja ainda necessário voltar sobre a
faculdade espacial da pintura moderna com o exemplo de Robert Delaunay cujos
Contrastes Simultanés (Fig. 26), já bem
no início do século XX, são analisados
por Pierre Francastel como verdadeiros
demonstrações estéticas dessa faculda-
de. Assim, fecharemos provisoriamente
esse capítulo da arte moderna. O que
é revelador nas análises de Francastel
sobre Delaunay é a terminologia usada
para mostrar que seus Contrastes apon-
tam para um investimento quase real do
espaço fenomenológico. Delaunay, pre-
26
cisa Francastel,

dizia que era a pintura, a exploração e a utilização direta da cor que cons-
tituiam a introdução do movimento na plástica e não o cinema. […] Para apreen-
der o movimento que é uma qualidade fundamental da natureza do universo, só
existe um meio, é a cor. Ao depositar cores sobre a tela […] conseguimos dar a
impressão absoluta do movimento, da mobilidade e da profundidade. […] tal é o
papel da pintura pura, ela é vibração, ela é mobilidade, e só ela dá a sensação
física, direta, de todas as profundidades e do espaço tal como ele se apresenta a
nós na realidade […] Só a cor propicia diretamente a representação e a sensação
do todo, do universo, da totalidade e da mobilidade do movimento.147

147
FRANCASTEL, Pierre, “Les mécanismes de l’illusion filmique”, L’image, la vision et
l’imagination, textes réunis et présentés par Galienne Francastel, Paris: Denoel/Gonthier, biblio-
thèque Médiations, 1983, p.196-97
O elogio à pintura quer ressaltar-lhe a capacidade de ir mais longe do
que o cinema na possibilidade de exprimir a complexidade do movimento real.
Algumas décadas depois, isto é, hoje, nos anos 2000, a tentativa de dar mais
importância à pintura do que ao cinema no trabalho da sensação espacial cinéti-
ca — tomando Delaunay como referência —, pode parecer bastante anacrônica.
No entanto, não é inútil nos projetar em meados do século XX, para ver que se
tratava sobretudo de fazer uma forma de balanço hermenêutico do papel históri-
co da pintura no que diz respeito à sua ambição antiga de exprimir o movimento.
Mesmo que Francastel use palavras que mantêm o distanciamento empírico-crí-
tico que os termos “representação” e “impressão” implicam, vemos que, na ver-
dade, elas são perpassadas pela categoria que mais nos interessa, a de sensa-
ção. Um Contraste Simultané de Delaunay é bem imagem, artifício, painel bi-di-
mensional proposto à nossa visão em-facial; ainda é, como confessa Francastel,
pintura como “intermediário […] à disposição do espectador”148, portanto, ainda
algum objeto. Porém, acontece nele um fenômeno que já contém tudo o que os
dispositivos tri-dimensionais que começarão a surgir na mesma década de 1910
com as colagens e as montagens porão no espaço físico conforme modalidades
inéditas sem, contudo — é importante ressaltá-lo —, deixar de constituir artifí-
cios e obras de arte. Lembrando isso, queremos apenas sugerir — um pouco na
mesma lógica de Francastel em meados do século XX —, que a pintura não foi
superada pelos dispositivos tridimensionais ou pelos ambientes. Ela procedeu
a uma mutação profunda, o domínio da sensação sendo o horizonte desejado
— mas não necessariamente atingível nas condições das linguagens artística
do início do século XX; ainda que as duas primeiras décadas já tenham de certa
forma antecipado e enunciado tudo da arte por vir — da vanguarda dessa épo-
ca. Por efeito de retroperspectiva histórica, a arte posterior pôde bem olhar para
as experiências ainda disciplinares da arte dos anos 1905-1925, como sua “ori-
gem”149. A nosso ver, esse ponto é fundamental para entendermos por exemplo
a insistência de um minimalista como Donald Judd em rejeitar da arte todas as
valências picturais “tradicionais” e, na mesma época, de um Hélio Oiticica em
fazer da pintura o mutante da arte contemporânea. Na verdade, ir além do plano
não justifica hermeneuticamente dizer que só os dispositivos tri-dimensionais
têm o monopólio de manifestar o espaço real. Talvez a relação entre esses dis-
positivos e o plano bi-dimensional da pintura parece com a da coisa e da palavra.
Faz uma diferença grandiosa, mas essa diferença não significa que a ordem da
coisa ou da objetividade espacial e que a ordem da palavra ou da síntese planar
não tenham-se determinado sempre a partir do – e com relação ao – espaço da
sensação, para retomar a categoria escolhida por Francastel. Transgredir ou sair

148
Idem, p.197
149
Idem, p.196
do plano não é abandonar as premissas que esse plano já continha nas formas
que lhe eram próprias. É evidente que a grande e bela aventura da arte moder-
na foi notadamente de fazer explodir o campo de exploração da sensação. No
entanto, desde bem antes de El Lissitzky ou Rodchenko, essa sensação consti-
tuía já mais do que virtualmente o objeto de uma conquista no plano da imagem
pictórica. Mas ela ficava indubitavelmente comprimida neste plano. É um pouco
uma história da arte como história da liberação da sensação que almejamos
construir aqui, de modo decerto fragmentário…
Assim, terá sido necessário à pintura conquistar a capacidade de se afir-
mar como field em expansão formal — em expansão de suas capacidades de
se trans-bordar numa tensão rumo ao espaço — para que o envolvimento tátil
de que falamos seja possível de ser associado à pintura, exatamente na época
em que ela começa a cohabitar com práticas artísticas que assimilaram as lições
do plano para ir além. O repetimos propositadamente: transgredir ou sair do pla-
no não é abandonar as premissas que esse plano já continha nas formas que
lhe eram próprias. Isso é claro na dimensão mural ou parietal da pintura. Hélio
Oiticica o confirmará. Como escreve Clay com grande pertinência:

tudo se passa como se a assunção na pintura dos valores hors-cadre


[fora-da-moldura], como se fala de hors-champ no cinema, acréscimo nosso] se
pagasse com uma deflação dos efeitos de superfície, como se a integração do
fora no processo pictórico exigisse a simplificação de seu dentro. Deslocamento
da mimesis: não opera mais na ordem da imagem mas na ordem da camada, o
quadro produzindo-se no limite como redobramento e afloramento da parede,
como reboque.150

Trata-se aqui dessas zonas peliculares sensíveis de que falamos acima


e da formulação de um conceito capaz de determinar uma leitura pertinente da
relação entre grandes formatos pictóricos dos anos 1950 e 1960 e seu “suporte”
parietal.
Mas em 1923, nos locais da Unovis em Petrogrado, Malevitch já tinha
concebida uma situação bem singular para duas telas brancas que pendurou
paralelas ao plano horizontal do teto da sala, instaurando assim o princípio do
afloramento epidérmico. O grande crítico Nicolaï Punin analisou-o como sendo
a afirmação de um grau zero da pintura (suprematista), e menos uma “tela sim-
ples assumindo a primazia [do que] um sistema que transforma-a em evento
pictórico.”151 Na proposta de Malevich, tratava-se de afirmar o conceito de um

150
CLAY, Jean, “Contre-épreuve”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec
la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire
interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.142
151
Citado in: Idem, p.150
continuum sem limites nem fim para uma pintura submetida a uma operação de
deflação de seus componentes internos – os traços e figuras da superfície, os
contrastes de textura etc. – em prol de uma extensão potencial na superfície do
espaço circundante. As telas, escreve Clay, “no momento de seu apagamento,
funcionam como alavancas espaciais encarregadas de relançar e fazer traba-
lhar o dado arquitetural.”152 Vinte e cinco anos mais tarde, é finalmente à mes-
ma questão que, a seu modo, os pintores americanos vão responder (Pollock,
Newman), que vimos ampliar suas superfícies até empurrar as bordas do quadro
à periferia da visão. Volta à parede, volta da parede? Sobretudo, afirmação do
valor de “écran”, “screen” e telão envolvente através do campo (field) cromático
de grande formato que faz o homem andar na cor.
Vemos muito bem que, do ponto de vista da série histórica que estudamos
aqui, o que acontecerá nos anos 1960 é uma forma de convergência e de cris-
talização artística das duas linhas pioneiras que encontramos na primeira parte
do século XX, a pictórica e a arquitetural, cujos diálogos e intercâmbios, sabe-
mos, foram intensos e muito produtivos, a ponto de diluir as fronteiras. Com os
anos 1960, temos a possiblidade retroperspectiva de fazer dessas duas frentes
pioneiras um componente genealógico único para compor uma matriz histórica
experimental e teórica de fundamental importância para a análise da década do
minimalismo, do neoconcretismo e outras práticas situacionais. Estas, para se-
rem entendidas na sua amplidão, precisam, portanto, ser recontextualizadas na
série de antecipações que acontecem no domínio da escultura ou da criação de
dispositivos espaciais tri-dimensionais que dissemos convergir com as novas va-
lências pictóricas no momento de “fundação” da plasticidade genêrica dos anos
1960.
Precisa-se, portanto, insistir sobre o fato de que a visão e a doação ma-
terial e sensorial que caracterizará a arte da década de Sessenta já conheceu
precedentes, notadamente na arquitetura moderna dos anos 1920, marco in-
contornável. Esta, segundo Christian Bonnefoi, Yve-Alain Bois ou Jean Clay,
trabalha a questão, antecipando, inclusive, a escultura. Este ponto é o ponto
c) que deixamos em suspenso acima, quando listamos os quatro processos de
interrelação assinalados pelos autores entre artes e arquitetura (antecipações,
realizações etc.). Para Christian Bonnefoi, por exemplo, é possível condensar na
questão da arquitetura interior153 uma longa seqüência histórica de relações de
antecipação-assimilação. Bonnefoi escreve: “tratar-se-á de ver como, em volta

152
CLAY, Jean, “Contre-épreuve”, in: Idem
153
Preferimos chamá-la assim para suprimir a distância que a fórmula “arquitetura de interiores”
institui ao traduzir de maneira fraca a dimensão que nos parece ser a única interessante e digna
de questionamenteo crítico, a de “interior-da-arquitetura” ou de “arquitetura-como-seu-interior”
de 1920, a questão de manejar o espaço interior se põe de maneira nova”154,
transpondo o debate para o nível do ambiente (“environnement”). Isso vai no
sentido de uma “homogeneização do espaço, sobre a base, poder-se-ia dizer, de
uma concepção ‘all over’ do espaço, pela supressão do cenário superficial, pela
integração do mínimo detalhe [...] ao conjunto.”155 Assim,

a arquitetura moderna, ao mesmo tempo que persegue sua própria ela-


boração, faz surgir, como suplementos, efeitos inesperados que a pintura ou a
escultura [...] são intimados a integrarem (mesmo se essa integração fica lenta e
laboriosa, já que só se completará nos anos 1950, nos Estados Unidos, na obra
de Newman, por exemplo, e depois na obra dos minimalistas).156

No caso da França, por exemplo, escrevem Bois e Clay, assistimos nos


anos 1920 a

uma afirmação ostensiva das propriedades esculturais e plásticas dos


componentes arquiteturais, superpresença volumétrica que se consolida com a
nitidez das arestas, a legibilidade e o esquematismo das massas [...] A título de
um pré-minimalismo arquitetural, devemos também inscrever o estatuto da colu-
na, [...] que se afirma com uma ênfase menos tectônica do que escultural.157

Dão o exemplo de alguns espaços. São, antes, de ordem teórica. Os ar-


quitetos dessa época, dizem, tomaram consciência de que o espaço devia ser
revelado através da “organização de volumes francos”158, nas modalidades da
série, por exemplo. Os autores assinalam que se trata de um verdadeiro pré-
minimalismo arquitetural, emblematizado por vários exemplos como o Hôtel de
Patout, no qual, frente a uma chaminê muito rebaixada e horizontal, quatro co-
lunas formam um bloco singular no espaço da sala, repetidas, encenando um
espaço-intervalo vazio… Lisas na parte superior e com caneluras na parte infe-
rior, as colunas parecem ter com as mesmas caneluras da parede uma relação
de integração estética, como se enrolasse a parede transformando-a em cilin-
dro: a coluna concentra circularmente a parede. Outro exemplo da década de
1920 mostra como as analogias formais com o minimalismo podem ser vistas

154
BONNEFOI, Christian, “L’architecture intérieure dans l’Entre-deux-Guerres: Mallet-Stevens”,
in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch
et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de
l’espace, Corda, 1979, p.118
155
Idem, ibidem
156
Idem, p.119
BOIS, Yve-Alain; CLAY, Jean, “Séquences”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY,
157

Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour
une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.29-30
158
Idem, p.30
como contribuição a uma história estético-tectônica da simplificação estrutural,
do superdimensionamento que torna dificilmente abarcável na sua totalidade os
componentes e vetores plásticos de um espaço, um trabalho sobre a gravidade,
através de elementos pesados suspensos ou paradoxais. Bois e Clay propõem
assim olharmos para tantos exemplos de uso da coluna em sistemas repetitivos
nos quais sua multiplicação gera seriação, interstícios, como na pintura e na
escultura dos anos 1950-60. Relacionam muitas saliências cúbicas ou outras ge-
ometrias da arquitetura moderna com os volumes geométricos minimalistas, tal
escadaria em X de Patout com o X de Ronald Bladen (1967), tal plano-escadaria
diagonal de F.P.J. Peutz com uma estrutura retangular vazada de aço inclinada
de Robert Morris (1967), tais Casas em série de J.J.P. Oud com Donal Judd ou
o mesmo com o teto de uma escadaria de Mallet-Stevens, o Pavilhão G.M.B.H.
de Bruno Taut com uma instalação de aindaimes dos anos 1960 etc. Essas ana-
logias servem a apontar a existência de uma consciência plástica que perpassa,
em circunstâncias e contextos diversos, o trabalho pioneiro de arquitetos e de
artistas no que diz respeito ao jogo dos volumes e das massas geométricas, às
relações entre solo, parede, teto etc., à estruturação da luz e de seus efeitos ca-
pazes de ritmar o espaço e sua percepção, todas as modalidades bem domina-
das e construidas da intersticialidade, da série e da inversão antecipando, desde
os anos 1920, alguns aspectos da pesquisa plástica contemporânea na qual não
é possível separar arquitetura e escultura.
Desde os anos 1920, o espaço arquitetônico encontrou como se tornar
o lugar privilegiado de uma integração real e complexa de valências plásticas
que já representam ao mesmo tempo um estado de realização extremo da pin-
tura e da escultura, o superamento de suas limitações tradicionais e convencio-
nais, como também uma certa desespecificação ou maneira de existir através
da criação de ambientes nos quais uma aufhebung artística generalizada das
disciplinas está em jogo. SImultaneamente, o encontro integrador da cor, do vo-
lume, das superfícies tanto bi-dimensionais quanto tri-dimensionais dos suportes
opera uma revolução global, a da plasticidade generalizada. Ela condiciona a
possibilidade de entender a arte como troca de competências, trocas e recipro-
cidades estéticas. Suas formas, sabemos, se cristalizam, plurais, na passagem
dos anos 1950 para os anos 1960, nas práticas situacionais (happenings, ações,
environments, ambientes etc.). A introdução do estudo de Bois, Clay e Bonnefoi
resume muito bem a situação:

a experiência moderna da a-focalidade, da perda de domínio visual – que


corresponde à deconstrução da função diegética nas artes literárias e no cinema
ou ao abandono do sistema tonal na música – também caracteriza a escultura
que conheceu uma certa decalagem com relação à pintura. É só com o minimalis-
mo americano, em volta de 1965, que a experiência da acomodação que pintores
e arquitetos tinham ressaltado há mais de um século, iria receber, em escultura,
sua melhor atualização. A arquitetura que, nos anos 1930, tinha revezado a pin-
tura, prefigura aqui com clareza a escultura. Além disso, ela evita certos recifes
próprios à prática escultórica e descobre antes dela a fraqueza de algumas de
suas soluções.159

O marco principal que as histórias da arte ressaltam a esse respeito é,


portanto, sempre o já muito estudado minimalismo norte-americano. Lembremos
contudo alguns de seus componentes críticos com Donald Judd.

D.J.
No seu famoso texto publicado em Art Yearbook, em 1965, intitulado
“Specific Objects”, Donald Judd dá à pintura uma lugar preponderante para ana-
lisar o surgimento, nos anos anteriores, de obras que são “nem pintura nem es-
cutura.”160 É preciso nos determos um pouco neste texto que é um dos mais im-
portantes do pensamento artístico contemporâneo. Primeiro ponto: Judd pensa
que a pintura e a escultura se encontram suficientemente bem definidas nessa
época para serem objeto de distanciamento e motivar produções contrárias ao
conforto que elas geram e ao risco de repetir, enfraquecendo-o, o melhor das
pinturas radicais feitas no momento. Crítica da totalidade autônoma que uma
“superfície retangular posta, chata, contra uma parede”161, é. Em Pollock, Rothko,
Still, Newman, Reinhardt, Noland, trata-se da conquista da unicidade formal por
uma superfície retangular consolidada. O plano também é acentuado e isolado,
ao mesmo tempo que institui com a parede contra a qual se destaca um pouco
uma relação “específica [...] uma forma em si.”162 Na verdade, já que a pintura, ao
propor sempre “um outro espaço” que ela mesma, não tem mais vocação a ser
a única modalidade disciplinar encarregada de trabalhar, criar, exprimir o senti-
mento de unicidade, é fora do campo da pintura que este sentimento pode ser,
de agora em diante, gerido. A leitura desse texto de Judd sempre nos pareceu
das mais complexas. O lema “objetos específicos” serve muitas vezes a evacuar
o teor ambíguo da discussão de Judd com a pintura. Por exemplo, quando lemos
que “uma cor unida [...] recobrindo uma grande parte ou a totalidade de uma su-
perfície, é sempre simultaneamente plana e de uma espacialidade ilimitada”163,

159
BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch
et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de
l’espace, Corda, 1979, p.15
JUDD, Donal, “Specific Objects” (Contemporary Sculpture, Arts Yearbook VIII, 1965), in: Écrits
160

1963-1990, Paris: daniel lelong éditeur, 1990, p.9 (trad.do americano por Annie Pérez)
161
Idem, p.10
162
Idem, ibidem
163
Idem, p.12
essa espacialidade ilimitada no plano nos aparece exatamente como sendo a
fórmula que convém à idéia de espacialização generalizada do ambiente plás-
tico pelo campo (mono)cromático. Judd põe em um lugar de exceção a pintura
que consiste em “um campo completa e uniformemente recoberto de cores ou
marcos”, isto é, uma pintura que se diferencia daquelas que manteriam uma rela-
ção de integração heterogênea a “um contexto mais vasto e indefinido”164, como
Rothko ou Noland fazem, pensa Judd, com seus planos “que sugerem pedaços
recortados no seio de algo infinitamente maior.”165 Falta às pinturas recentes, diz
ele – e aqui, são os Noland e Olitski defendidos por Greenberg na época que
podemos adivinhar –, serem “totalmente unificadas.”166 Judd critica o sistema
formal que faz a pintura parecer ainda como “uma coisa no seu ambiente, lem-
brando um objeto ou uma figura em um espaço que lhe é próprio, que reenvia
ele mesmo a um exemplo existindo em um mundo similar.”167 Isso sugere que
os “objetos específicos” serão legítimos por transgredirem esse círculo sistêmi-
co, já que “este é o alvo principal da pintura.”168 Vemos um argumento contra a
pintura como chave de um sistema de circulação en boucle que Judd sonha ver
superado. Joseph Kosuth também começará a lutar contra a pintura como para-
digma do sistema conservador da arte no mesmo momento. Já que, repetimos,
na pintura de sua época, “os campos coloridos [...] geralmente não são limitados
e sugerem pedaços recortados no seio de algo infinitamente maior”169, vemos
que para Judd a pintura não tem condição de sustentar mais esse meio termo

164
Idem, ibidem
165
Idem, ibidem
166
Idem, ibidem
167
Idem, ibidem. No entanto, o raciocínio de Judd revela sua ambiguidade quando lemos aten-
tamente a descrição que ele faz da pintura que, pelo fato de “por em espaço” seus elementos
dentro de um retângulo ou sobre um plano, não consegueria romper com seu estatuto de “coisa”
dependente do seu ambiente de inserção ou contexto espacial. A descrição de algumas carac-
terísticas que precisariam ser evacuadas da arte, evacuação que os dispositivos “específicos”
de Judd almejariam concretizar, parece retrospectiva e paradoxalemente corresponder perfeita-
mente àquilo que suas instalações desses anos apresentam no espaço arquitetural da exposi-
ção. Repetimos: se o vício da pintura é notadamente de que “todo elemento, posto em espaço no
interior de um retângulo ou sobre um plano, sugere uma coisa sobre ou no interior da outra coisa,
uma coisa no seu ambiente, e [que] isso lembra uma figura em um espaço que lhé próprio […]”
(p.12), não vemos como negar que os dispositivos de Judd sofrem do mesmo vício… Judd teria
de certa maneira tridimensionalizado a pintura. Isso sugere como, em 1965, era difícil introduzir
valências novas a partir de um vocabulário tão marcado, marcante, determinado e determinante
como aquele que a pintura carrega consigo. Digamos que, se a pintura reenviava tradicionalmen-
te, como diz Judd, a “um exemplo existindo em um mundo similar” fora dela – é uma definição
da re-presentação –, os dispositivos de Judd deveriam ser vistos como desprovidos de todo re-
lacionamento com alguma exterioridade? Mas se a pintura é problemática para Judd porque os
elementos dispostos na tela são inseridos em “uma superfície que os circunda”, não poderíamos
dizer que os volumes repetitivos dos dispositivos espaciais de Judd não são também inseridos
em “uma superfície que os circunda”, a do solo e das paredes da sala de exposição?
168
Idem, ibidem
169
Idem, ibidem
espacial e plástico. Tampouco a escultura. Judd nota que as esculturas de sua
época – as de Di Suvero, sobretudo –, parecem com a pintura anterior a seus
conterrâneos expressionistas abstratos. Assim, Di Suvero “utiliza vigas como fa-
ria pinceladas, imitando o movimento, como fazia Kline. [...] Uma peça de metal
segue um gesto; junto, formam uma imagem naturalista e antropomórfica.”170
Pictorialização da escultura, tal é o diagnóstico. Judd passa depois a produzir de
maneira um pouco informal uma avaliação de muitos trabalhos recentes e atuais,
a tônica “da instalação aberta e expandida que ressai mais ou menos ao ambien-
te”, sendo enunciada como um dos horizontes das “novas obras em três dimen-
sões.”171 Ele cita como predecessores Arp, Duchamp, Johns, Rauschenberg, e
alista quarenta e três artistas, quase todos americanos, que participam desta
tendência. É à pintura de Frank Stella que é reservada um papel determinante,
aquele que a história da arte diz ter servido de embreagem ao minimalismo. A
análise que Judd faz diz tudo:

os shaped paintings de Stella apresentam várias características essen-


ciais da obras em três dimensões. Os contornos da obra e as linhas que se lhe
vêem estão em acordo. Em lugar nenhum, as ranhuras são elementos distintos.
A superfície, apesar de se manter paralela ao plano da parede, distancia-se dela
mais do que de costume. Na medida em que a superfície é excepcionalmente uni-
ficada, e implica pouco ou nenhum espaço, o plano paralelo torna-se inhabitual-
mente distinto. A ordem [..] é somente ordenamento, continuidade, cada elemento
vindo depois do outro. Uma pintura não é uma imagem. As formas, a unidade, a
projeção, a ordem e a cor são específicas, agressivas, potentes.172

Essa análise contem tudo o que é preciso para entendermos a passagem


ao minimalismo ou àquilo que Judd chama de obras em três dimensões que são
nem pintura nem escultura. Aqui, vemos que a referência – e a reverência – prin-
cipal é feita a Stella, a uma pintura que muda e passa no/ao espaço real, que
já transforma o quadro em volume autônomo, apesar da tenuíssima derradeira
aderência de seu plano à parede, aderência que mantém o que é preciso manter
para dar a ver e entender o passo que está em jogo no processo de criação de
Judd ou Carl Andre, por exemplo:a produção de volumes autônomos, os objetos
específicos, que levaram as potencialidades dos Shaped Canvas de Stella a
suas últimas conseqüências.
No entanto, a leitura histórica não pode esconder o fato de que, em 1965,
Judd não se beneficiava da possibilidade da retrospecção. O vemos afirmar que
“até agora, considerando as coisas da maneira mais aberta, as três dimensões

170
Idem, p.13
171
Idem, ibidem
172
Idem, p.15
são, sobretudo, um espaço no qual é possível se mover.”173 Para serem concebi-
das com uma margem de incerteza favorável à liberdade experimental, as obras
tri-dimensionais se beneficiarão nos anos 1960 de um estado ainda muito inci-
piente da reflexão e da competência artística em exercer a tridimensionalidade
na totalidade de suas especificidades. Assim, Judd precisa:

por esse domínio ser tão vasto, as obras em três dimensões tomarão pro-
vavelmente inúmeras formas. [...] Na medida em que a própria natureza da tri-
dimensionalidade não é fixada, nem dada por confirmada, poder-se-á fazer [...]
praticamente qualquer coisa.174

Agora, é muito interessante ver que o diálogo com a pintura não é fechado
por Judd (“decerto, pode-se criar algo no interior de uma forma dada, tal como
a pintura, mas de maneira um pouco estreita, sem as mesmas potência e va-
riedade”175), enquanto a escultura é definitivamente relegada por ele ao museu:
“toda mudança conseqüente mudará-a em outro coisa; é por essa razão que
ela está acabada.”176 A escultura pode sobreviver, mas ela “provavelmente não
pode ser nada senão o que ela é hoje.”177 Uma vez a escultura evacuada, resta
a Judd apresentar o que entende por “as três dimensões”. Essa aproximação
enuncia de maneira pragmática e simples alguns elementos essenciais do pro-
cesso espacial da instalação, um conceito que Judd, pragmático e sempre muito
equilibrado nos seus juizos, define como ligado a uma questão de apresentação
nas instituições:

as três dimensões são o espaço real. Isto elimina o problema do ilusio-


nismo e do espaço literal, do espaço que envolve ou é contido nos signos e nas
cores – o que significa que estamos livres de um dos vestígios mais marcantes e
mais criticáveis legados pela arte européia. As numerosas limitações da pintura
não existem mais. Uma obra pode ser tão potente quanto queremos que seja. O
espaço real é intrinsecamente mais potente, mais específico do que pigmento
sobre uma superfície plana. Evidente é que qualquer objeto em três dimensões
pode tomar qualquer forma, regular ou irregular, e pode ser disposto de qualquer
modo com relação à parede, ao chão, ao teto, à sala ou às salas, ou ainda ao
espaço exterior - ou pode com eles manter nenhuma relação. Qualquer material
pode ser utilizado enquanto tal ou pintado.
Basta que a obra seja interessante.178

173
Idem, ibidem
174
Idem, p.16
175
Idem, ibidem
176
Idem, ibidem
177
Idem, ibidem
178
Idem, ibidem
Essa última frase é famosa, e esclarecedora. A lista dos “qualquer” que
atravessa esse parágrafo é impressionante por revelar ao mesmo tempo a li-
berdade nova e a dificuldade de definir exatamente as obras tridimensionais
nas suas elementa plásticos. Resta propor a descrição pragmática de obras que
– através de opções formais apresentando-as nas suas modalidades legitimado-
ras – se aproximem ou possam preencher o conceito aberto dessa tridimensio-
nalidade em gestação. Judd continua:

o que é interessante, é a obra na sua totalidade, sua qualidade global.


[...] Nas obras novas, a forma, a imagem, a cor e a superfície são unificadas, não
são nem parciais nem dissociadas. Nessas obras, não há zonas neutras ou mais
fracas, nem ‘passagens’ nem zonas de transição.179

Através das longas citações do Donal Judd em 1965, somos confrontados


a uma questão que é a da relação que institui com a categoria de instalação. Judd
enfatiza muito mais a compacidade autárcica do dispositivo, um pouco como se
as relações de incerteza que as obras tridimensionais no espaço real criam fos-
sem redirecionadas para um eixo seguro de natureza ainda bastante formalista:
questões de disciplina formal, que o levarão ainda a apresentar a instalação
como uma relação de acerto total entre certas obras e o lugar onde deveriam
ser apresentadas na sua essência formal e espacial intocável. Impressiona ver
como Judd, no final das contas, é um puritano do material. Sua valorização do
trabalho de Dan Flavin – “os materiais são variados e conservam sua qualidade
de materiais […] Têm uma especificidade. Que se encontra acentuada se forem
utilizados enquanto tal. Possuem também, em geral, uma certa agressividade”180
– revela uma visão neo-construtivista que lembra Tatlin reivindicando “materiais
reais no espaço real”. O texto de Judd, na verdade, é mais do que surpreenden-
te, culminando numa teoria da imagem bem singular. A historiografia, de toda
evidência, escolheu o que nele apontava para os acontecimentos do futuro.
Agora, as observações sobre Oldenburg, a quem o texto dá de certa maneira a
palavra final, mostra que Judd intui a relação que as obras tridimensionais espe-
cíficas – mas também de uma especificade finalmente duvidosa quando fala da
imageria de Bontecou ou Oldenburg na sua relação com a emoção! –, têm com
o público. Escreve:

é evidente que as obras novas são mais complexas, como testemuham as


técnicas e os materiais de Oldenburg. Oldenburg deve utilizar as três dimensões
para simular e ampliar um objeto real e equacioná-lo com forma carregada de
emoção. [...] George Brecht e Robert Morris utilizam objetos reais e devem levar

179
Idem, p.17
180
Idem, p.17-18
em conta o conhecimento que o observador pode ter dele.181

Trata-se bem de medir as maneiras de esses artistas criarem uma rela-


ção com o público. O que vincula Judd à questão da instalação como disciplina
da exposição é exatamente o fato de ele, nos meandros de uma discussão da
situação da arte em 1965, pensar as obras tridimensionais específicas como
sucetíveis de oferecer um grau maior de legibilidade, credibilidade e generalida-
de, uma plasticidade convincente e perfeitamente resolvida. “Um dos aspectos
importantes de toda forma de arte é seu nível de generalização e especificidade;
outro aspecto importante é a maneira que o artista tem de alcançar essas quali-
dades. A condição de sua aparição e sua repercussão devem ser críveis.”182 Em
conseqüência, como se trata das condições de apresentação, a preocupação
se estende ao museu, que deve assemalhar-se formal e plasticamente com as
obras tridimensionais específicas. “Museu” é, para Judd, o nome de uma exigen-
cia espacial, estética e ambiental total.

181
Idem, p.20
182
Idem, p.21
PARTE II

Agrimensores e espaçólogos

(situations to be lived)
Capítulo VIII
Americamerica…

Geometria relacional, Morris


Pouco, no texto de Judd, leva do lado da dinâmica relacional que caracte-
riza a formulação por Robert Morris da exigência de seus dispositivos artísticos
criarem relações com o público. Nas suas também famosas Notes on Sculpture,
do ano 1966, Morris reafirma as diferenças que existem numa arte que, por ou-
tro lado, pode testemunhar “uma sensibilidade comum.”183 Morris faz uma longa
análise das diferenças entre pintura e escultura – que não podemos reproduzir
aqui –, aprofunda as características formais tradicionais e modernas da escultu-
ra – uma verdadeira reflexão sobre sua relação com o chão, a parede, o espaço
em geral –, aborda as questões de percepção gestáltica dos poliedros: os regu-
lares simples, cubos e pirâmides; os regulares complexos; os irregulares sim-
ples, vigas, planos inclinados e pirâmides troncadas; os irregulares complexos,
formações cristalinas, constituindo uma gama de maior a menor efeito gestáltico,
os últimos sendo mais favoráveis ao jogo relacional de partes dentro da forma...
Os poliedros que mais interessam Morris são os simples, regulares ou irregula-
res, que, diz,

oferecem o máximo de resistência à sua apreensão por um observador


[...]. Parecem desprovidos de linhas de fratura a partir das quais poderiam se
dividir e permitir estabelecer facilmente relações de parte a parte. Chamo esses
poliedros de simples formas ‘unitárias’.184

Morris acrescenta o que é essencial na questão da dinâmica da instala-


ção: “a simplicidade da forma não se traduz necessariamente por uma igual sim-
plicidade na experiência. As formas unitárias não reduzem as relações. Elas as
ordenam.”185 Essas citações pertencem à primeira parte do texto, publicada em
fevereiro de 1966. Em outubro, a segunda parte das Notas traz novas análises
dando ênfase à importância das categorias de dimensão, proporção, escala, teor
público e teor íntimo dos objetos escultóricos, recepção e apropriação estética,
jogo das distâncias, espacialidades diferenciadas etc. As questões levantadas
são decisivas para entender o projeto de Morris acerca da instauração de um
espaço relacional entre dispositivo artístico e público. Morris escreve que é a

183
MORRIS, Robert, “Notes on sculpture”, Artforum, fev.1966 (Part I), oct.1966 (Part II), in:
Regards sur l’art américain des années soixante, (anthologie critique, trad. e introd. de Claude
Gintz), Éditions Territoires, 1979, p.84
184
Idem, p.88
185
Idem, ibidem
distância maior do objeto em relação ao nosso corpo, necessária para
que o primeiro possa ser visto, que determina o modo não-pessoal (público).
Precisamente, é essa distância entre objeto e sujeito que cria uma situação mais
rica, porque a participação física deste último torna-se necessária.186

Morris combate os
valores da intimidade na es-
cultura por repousarem so-
bre um tipo de demanda e
satisfação demasiadamente
ancorada na psicologia. “A
valência intimidade cresce
à medida que sua dimensão
diminui em relação a nosso
próprio tamanho.”187 Além
da necessidade de trabalhar
27 numa dimensão que supere
a supervalorização da superfície, dos materiais e da cor – três componentes
cuja articulação nas obras de pequena dimensão e tamanho menor que o do
corpo humano sustenta “relações que favorecem o modo íntimo”188 –, a superfí-
cie pequena favorece a produção e a percepção do detalhe, a fragmentação e
a criação de relações internas que enfraquecem a unidade; a cor, enfim, ao se
destacar, cria um efeito de detalhamento suplementar enquanto os materiais,
se forem demasiadamente refinados e trabalhados, chamam atenção por si só.
Essa insistência no objeto em si – um composicionismo pós-cubista que é preci-
so evacuar, a organização plástica cubista e pós-cubista tendo servido de antite-
se para as vanguardas norte-americanas dos anos 1940 e 1950 –, é combatida
por Morris. Morris recusa as novas aplicações “da estética cubista que faz apelo
à racionalidade ou à lógica para ligar as partes”189, porque, na busca das “condi-
ções necessárias para evitar o modo íntimo”190, é preciso romper com tudo o que
divide a atenção entre várias valências plásticas e formais, e conseguir superar
a atitude que focaliza a percepção na relação íntima com a obra, para promover
valores públicos. Aqui, “público” implica uma relação com as grandes dimensões
de um objeto que “não é nada, senão um dos termos na nova estética.”191 Nessa
nova estética relacional,

186
Idem, p.89
187
Idem, p.88
188
Idem, p.89
189
Idem, ibidem
190
Idem, ibidem
191
Idem, ibidem
as relações são-lhe extraídas para se tornar uma função do espaço, da luz
e do campo visual do observador. [...] Temos consciência de existirmos no mesmo
espaço da obra [...] Melhor nos damos conta de que estamos estabelecendo nós-
mesmos relações, enquanto abordamos o objeto a partir de posições diferentes e
em condições variáveis de luz e espaço.192

Morris reconhece que as “características estéticas [...] das obras perten-


cendo ao modo íntimo” se beneficiam de maior consolidação do que aquelas que
dizem respeito às obras participando à criação de uma arte “no modo público.”193
Nas primeiras, existe tudo o que captura a atenção perceptiva do observador
no não-espaço pequeno do objeto autônomo e isolado. No segundo, “existem
dois termos distintos: a constante conhecida e a variável experimentada”194, isto
é, “uma entidade que contém em si a formação da gestalt – o todo indivisível e
indissolúvel.”195 A variável é o elemento novo trazido pelos novos dispositivos de
formas unitárias:

os termos estéticos maiores não residem no objeto autônomo mas depen-


dem dele, existem como variáveis indeterminadas que encontram sua definição
própria em um espaço específico e uma luz particular segundo o ponto de vista
do observador.196

Entretanto, a forma, constante do lado da informação gestáltica, depende


do “observador que muda-a continuamente ao mudar sua posição com relação
à obra.”197 Os dispositivos de formas unitárias repousam sobre a geometria ges-
táltica – a constante – das formas mas, como “só um aspecto da obra é dado
imediatamente: a apreensão da gestalt”198, a obra existe e funciona plenamente
graças às variáveis estéticas da percepção móvel do observador. É isso que ins-
taura uma situação relacional. Para esta ser garantida, as obras novas “enfatiza-
ram as próprias condições nas quais certas categorias de objetos são vistas”199
(grifo nosso). Essa frase estabelece claramente o projeto de Morris na questão
da instalação de um dispositivo como prática disciplinar da apresentação e da
exposição artística. Foi preciso passar por todas as análises feitas anteriormente
para entendermos sobre quais bases “o objeto cuidadosamente colocado nessas

192
Idem, ibidem
193
Idem, p.90
194
Idem, ibidem
195
Idem, ibidem
196
Idem, ibidem
197
Idem, ibidem
198
Idem, ibidem
199
Idem, ibidem
novas condições [e não sendo] nada mais do que um dos termos da relação”200,
só podia agir na nova situação espacial graças a um processo de mudança, reno-
vação, reorientação formal do elemento unitário, pensado doravante como peça
em um dispositivo espacial e relacional de maior escópo. Morris não podia desa-
guar de imediato na clareira de tal “situação ampliada”201. Era preciso reformar
a forma como elemento essencial de um novo frasear plástico. Agora, em posse
dessas formas unitárias, podemos entender que elas não são mais um fim em si,
mas condições para chegar “a um controle maior da situação inteira e/ou a uma
mellhor coordenação. Este controle é necessário, se quisermos que as variáveis
objeto, luz, espaço e corpo humano possam funcionar.”202 A conclusão do artigo
de Morris é clara. A invenção de formas unitárias não se separa do projeto de
criar uma nova dinâmica estética, na qual o ajuste formal representa o passo e
a condição de possibilidade de uma colocação, de uma disposição, de uma ins-
talação e de uma apresentação motivadas seguindo os princípios incipientes de
um método disciplinar da exposição. Toda a concepção formal-unitária funciona
como conquista quase científica – geometria do acerto – de um domínio gerando
a capacidade de um “controle da situação”, como diz Morris. Assim, não se trata
de reduzir a importância do objeto, já que toda obra é objeto, mas de entender
que “a influência crucial” que “a forma, as proporções, as dimensões e as super-
fícies específicas de um objeto dado”203 podem ter sobre as qualidades particu-
lares da obra, respondem a “decisões” que não são mais separáveis, inclusive,
das decisões “exteriores à sua presença física.”204 De agora em diante, as formas
unitárias representam somente uma variável dentro de um jogo global: “assim,
para muitas obras novas cujas formas são unitárias, a dis-posição adquiriu uma
importância que nunca tinha tido anteriormente na determinação das qualidades
particulares das obras.”205 Essa frase de Morris, que pomos propositadamente
en itálicos, retirada da reflexão sobre o controle da situação, é emblemática da
nova agenda da arte no que diz respeito à responsabilidade do artista em pensar
seus dispositivos como totalidade espacial. Seria um equívoco, portanto, julgar
os dispositivos de formas unitárias como elaborações formais dizendo apenas
respeito aos “critérios formados em uma estética cubista, segundo a qual tudo o
que se pode esperar de uma obra encontra-se estritamente contenido no obje-
to.”206 Na verdade, Morris reconhece implicitamente que esse equívoco pode ter

200
Idem, ibidem
201
Idem, ibidem
202
Idem, ibidem
203
Idem, ibidem
204
Idem, ibidem
205
Idem, ibidem
206
Idem, p.91
a ver com a tamanha inovação e o desafio crítico representado pelo “fato de dar
às formas uma presença” cujos aspectos promissores “restam a formular”207...

“Lumen d’espaço definido”, Oiticica


Desde o início de sua produção, Hélio Oiticica exprimiu sua consciência
do espaço, passando em três anos, de 1957 a 1960, dos Metaesquemas aos
Núcleos, passando pelos Relevos Espaciais e Bilaterais. Apesar do que o artis-
ta escreve em 1972 no catálogo Metaesquemas 57/58, não devemos segui-lo
plenamente quando diz que “não há porque levar a sério minha produção pré-
59”208, a não ser que tomemos os juizos lapidares que apontam a incompletude
dos Metaesquemas para ressaltar como a argumentação de Oiticica mostra uma
consciência evidente do que está em jogo. Aliás, no avesso da gouache sobre
papel intitulado Sêco 27, de fev. de 1957, Oiticica escreveu onze anos depois as
seguintes palavras:

considero este trabalho importante hoje, e para mim, na época, foi discon-
certante pelo sentido de “diluição estrutural” além do espaço meramente pictórico
- é que eu ainda queria a renovação deste espaço, mas ainda não estava prepa-
rado para o salto, ou a transformação - mas hoje vejo que este trabalho estava
bem à frente, no conflito entre espaço pictórico e extra-espaço, e prenuncia dire-
tamente o aparecimento dos Bilaterais, Núcleos e Penetráveis.209

Tudo é importante na terminologia de Oiticica: renovação do espaço,


transformação, salto, conflito entre espaço pictórico e extra-espaço... No catálo-
go de 1972, Oiticica consegue – graças a sua escritura tão peculiar e impactante,
de carácter aforístico, gerando sintéticos enunciados-relâmpagos, e marcada,
sem dúvida, pela poesia concretista –, condensar as questões de relação entre
a radicalidade pictórica, a cor e a passagem ao espaço em fórmulas que enco-
brem perfeitamente as modalidades que analisamos anteriormente. Escreve por
exemplo:

METAESQUEMAS: obsessiva dissecação do espaço [...] Cheguei à pin-


tura quando pra mim a representação se havia secado nesses metaesquemas e

207
Idem, p.90
208
OITICICA, Hélio, “Metaesquemas 57/58”, catálogo Metaesquemas 57/58, Galeria Ralph
Camargo, São Paulo, 1972, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center
for contemporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni
Tàpies, Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker
Art Center, Minneapolis, 1992-1994, p.27
209
OITICICA, Hélio, “nota no verso de Sêco 27”, escrita no dia 13/nov./68, in: Hélio Oiticica, catá-
logo de exposição, Witte de With, Center for contemporary art, Rotterdam; Galerie nationale du
Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies, Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação
Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art Center, Minneapolis, 1992-1994, p.30
logo a pintura também chegava a seu fim: descoberta do fim da pintura no qua-
drado de cor: invenções porque comportam total carga-pintura: porque prevêem
possibilidades paralém da pintura.210

A saturação pictórica é suprema e final ao mesmo tempo, liberando a


passagem para fora... É o que a frase seguinte enuncia. “METAESQUEMAS
da não-gratuidade do espaço: espaço-bagaço caderno de aula do espaço não-
desperdício.”211 Essa frase potente sintetiza na sua totalidade a idéia que nos
retém nesse ensaio de que o espaço, para os artistas dessa época, mas também
anteriormente, é um imperativo quase ético: não é gratuito, não é desperdiçável,
demanda atenção total e, para existir, consistir e insistir, é tarefa prolongada tra-
balhar à invenção de suas modalidades de existência e modos de se manifestar
plastica e esteticamente. Isto, Oiticica o chama de “conjecturar esquemas de
possibilidades lumen d’espaço definido [...] não funda(r) novarte: molda(r) trans-
formações.”212
O artigo publicado por Oiticica no Jornal do Brasil do 26 de novembro de
1960, “Cor, tempo e estrutura”, é um manifesto da relação entre as categorias
que compõem o título. A introdução por si só, é exemplar da vertente sistemática
que caracteriza o pensamento artístico dos anos 1960. Vimos como, cinco e seis
anos depois, Donald Judd e Robert Morris – sobretudo este –, proporão uma
lógica categorial nova para amparar criticamente os novos esquemas espaciais
postos em circulação pela arte moderna, notadamente minimalista. Oiticica, an-
tes deles, antecipa de certa maneira esse viés organizacional e a necessária am-
bição de fazer repousar o lumen d’espaço definido sobre bases categorial e con-
ceitualmente estruturadas. Em Oiticica como no Morris das Notes on Sculpture,
trata-se da busca de conjuntos (quase científicos) de categorias que, sem romper
com o passado, porque sempre foram determinantes na arte, possam ser reorga-
nizadas nas suas finalidades e nos seus processos ativos. Em Morris, tínhamos
por exemplo a “fusão” da luz, do material, da forma e do espaço para determinar
a identidade perceptiva e os componentes do ôrganon plástico endereçado ao
público. Em Oiticica, a reflexão sobre a estrutura-tempo, (não sem relação com a
dinâmica temporal do ambiente morrisiano), também reclama verdadeiros clus-
ters categoriais capazes de se fundir para fundar uma organicidade conceitual
inseparável da organicidade plástica do novo espaço. Do mesmo jeito que Morris

210
OITICICA, Hélio, “Metaesquemas 57/58”, catálogo Metaesquemas 57/58, Galeria Ralph
Camargo, São Paulo, 1972, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center
for contemporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni
Tàpies, Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker
Art Center, Minneapolis, 1992-1994, p.27
211
Idem, ibidem
212
Idem, ibidem
lutava contra a separação das categorias plásticas que o cubismo legou à pintura
da primeira parte do século XX, vemos Oiticica pensar, como Judd, que a pintura
foi sujeita à ditadura do retângulo – formato que organiza a pintura de tal maneira
que, ao se manter separado do resto do espaço, ele criava no interior do plano
simples jogos composicionais entre recursos formais eles mesmos autônomos
–, e que é preciso, portanto, romper com o formato-paradigma desta autonomia
da pintura, ela mesma redobrada pela autonomia de seus componentes internos
– Oiticica qualifica a superfície pictórica de plano de “justaposição” implicando
“uma desagregação de elementos, profundamente analítica.”213 Em nota do 5
de outubro de 1960, Oiticica escrevia que a cor, uma vez que não é mais sub-
metida ao retângulo, “tende a se ‘corporificar’; torna-se temporal, cria sua pró-
pria estrutura, [..e] a obra passa a ser então ‘o corpo da cor’.”214 Nessa época,
Oiticica já realizou seus Relevos Espaciais
(Fig. 28) e Bilaterais, que são uma maneira
de fazer a pintura girar no espaço e, graças à
fusão orgânica dos elementos cor, estrutura,
espaço e tempo, fazer da obra um fenôme-
no único, total, pleno. No texto do Jornal do
Brasil mencionado, Oiticica apresenta a cor
pura, – categoria que, no contexto da mono-
cromia norte-americana, vimos caracterizar
a possibilidade de gerar efeitos oceânicos e
ambientais ao mesmo tempo –, como capaz
de determinar uma plástica unitária. Uma vez
redobrada no desdobramento dos planos dos
Relevos neoconcretos, Relevos Espaciais e
Bilaterais, graças ao encontro de seu tempo
próprio, a cor-tempo obriga a transformar a
estrutura da obra, no caso, a pintura. Frase
forte: “o desenvolvimento da estrutura se dá
na medida em que a cor transformada em
cor-luz e encontrado seu tempo próprio, para 28

OITICICA, Hélio, “Cor, tempo, espaço”, Jornal do Brasil, suplemento dominical, Rio de Janeiro,
213

26 de novembro de 1960, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for con-
temporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies,
Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art
Center, Minneapolis, 1992-1994, p.34
214
Citado in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for contemporary art,
Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies, Barcelona; Centro
de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art Center, Minneapolis,
1992-1994, p.33
revelar seu interior, deixando-a despida.”215 A cor-luz é a cor que se espacializa
absolutamente, revelando seu interior – e não mais sustentando a aparição de
formas heterogêneas à sua ordem. É porque a cor revela seu próprio tempo que
convém criar uma estrutura da obra também temporal cujo modo de apresentação
são o relevo bi-face, bilateral, ser suspenso longe da parede. Se compararmos
isto com o que Frank Stella fazia nos mesmos anos com suas Shaped Paintings,
vemos que Oiticica já tem rompido com a parede com relação à qual Stella ain-
da mantinha um vinculo mesmo se se tratava de fazer o plano do quadro se
distanciar potencialmente dele. Em Oiticica, “a obra está fechada em si mesmo
como um todo orgânico, e não deslizando sobre a parede ou superpondo-se a
ela.”216 Judd não reclamará nada mais do que isto, cinco anos mais tarde. Como
escreve Oiticica, “desde que o plano da tela passou a funcionar ativamente”217,
a revolução da estrutura foi possível. Esse ponto é o ponto de partida de todo o
processo de ampliação espacial a partir das experiências cromáticas que vimos
anteriormente e que Oiticica condensa de maneira potente.
Se insistimos tanto em nos ater a uma discussão tão categorial é porque,
repitamo-lo, está em jogo no pensamento de Oiticica aquilo que fá-lo passar
com alguns de seus colegas artistas contemporâneos, do “espaço sem tempo”218
ao espaço temporalizado, “elemento ativo, duração.”219 Isso o aproxima já, em
1960, do Robert Morris “minimalista” e ainda mais do Robert Morris das ações e
dos happenings. O que Oiticica escreve no parágrafo intitulado “Tempo” nos pa-
rece particularmente consoar com experiências performáticas dos mesmos anos
e com a estética relacional de Robert Morris em 1966. Duas coisas acontecem:
o trabalho da consistência conceitual e categorial e o trabalho de elaboração de
uma consistência plástica proto-ambiental. O fim do parágrafo sobre a “estrutura”
enuncia que “daí em diante, a evolução se dá no sentido da valorização de todas
as posições de visão e da pesquisa das dimensões da obra: cor, estrutura, espa-

OITICICA, Hélio, “Cor, tempo, espaço”, Jornal do Brasil, suplemento dominical, Rio de Janeiro,
215

26 de novembro de 1960, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for con-
temporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies,
Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art
Center, Minneapolis, 1992-1994, p.35
216
Idem, ibidem
217
Idem, ibidem
218
OITICICA, Hélio, “Metaesquemas 57/58”, catálogo Metaesquemas 57/58, Galeria Ralph
Camargo, São Paulo, 1972, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center
for contemporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni
Tàpies, Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker
Art Center, Minneapolis, 1992-1994, p.27
OITICICA, Hélio, “Cor, tempo, espaço”, Jornal do Brasil, suplemento dominical, Rio de Janeiro,
219

26 de novembro de 1960, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for con-
temporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies,
Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art
Center, Minneapolis, 1992-1994, p.35
ço e tempo.”220 Mas vemos que estas não existem e nem agem sem cada uma se
sustentar da fusão com as três outras. Há a cor-pela-estrutura+espaço+tempo,
há estrutura-pela-cor+espaço+tempo, há espaço-pela-cor+estrutura+tempo, há
tempo-pela-estrutura+espaço+tempo e essas equações definem-se como cor-
estrutura-tempo do espaço, cor-estrutura-espaço do tempo, estrutura-espaço-
tempo da cor e cor-espaço-tempo da estrutura... Essas equações, na verdade,
formam uma mega-estrutura englobante, “pluridimensional”221. Estrutura, aqui,
significa tudo menos a soma de categorias separadas mas, ao contrário, um
organon, um corpus de valências – palavra melhor do que categoria, que é um
termo mais filosófico – que vive e se sustenta, como toda estrutura, das trocas,
dos intercâmbios e das partilhas de seus elementos enquanto estes são postos
em circulação e se deslocam no tabuleiro das forças produtivas. A força, ao mes-
mo tempo compacta e irradiante dessa nova estrutura, leva à instauração de um
espaço-tempo relacional, bem próximo do teor morrisiano:

o tempo, porém, toma na obra de arte um sentido especial, diferente dos


sentidos que possui em outros campos do conhecimento; está mais próximo da
filosofia e das leis da percepção, mas o seu sentido simbólico, da relação interior
do homem com o mundo, relação existencial, é que caracteriza o tempo na obra
de arte. Diante dela o homem [...] acha o seu tempo vital à medida que se envol-
ve, numa relação unívoca, com o tempo da obra.222

Ler o Oiticica do início dos anos 1960, o Oiticica anterior a Tropicália, an-
terior a um grau de cumprimento supremo das premissas problematizadas nos
textos que citamos, é de primeira importância. É o Oiticica de uma passagem
que as obras citadas anteriormente, todas situadas na virada dos anos 1950
para os anos 1960 representam. Essa passagem precisa sempre ser entendida
como exemplo de elaboração e experimentação ao mesmo tempo intuitiva e
metódica dos possíveis caminhos e rumos que podem levar a arte a inaugurar o
que, em outro texto curto mas essencial datado 16 de fevereiro de 1961, Oiticica
problematiza como a expansão da pintura no espaço, conquanto a pintura seja
definitivamente entendida como categoria liberada do quadro e, portanto, livre de
sempre proceder a sua liberação pela repetição da já consagrada “destruição da
figura.”223 Não é por acaso que Oiticica, nesse texto, como no último parágrafo

220
Idem, ibidem
221
Idem, ibidem
222
Idem, p.36
223
Citado in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for contemporary art,
Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies, Barcelona; Centro
de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art Center, Minneapolis,
1992-1994, p.42
intitulado “espaço”, do artigo do Jornal do Brasil, faz referência a artistas que lhe
parecem fundamentais nessa emprenteira. São quase sempre pintores, o que
não devemos deixar de pensar como mais uma ilustração do impacto determi-
nante das experimentações pictóricas modernas para o agenciamento do uma
nova estrutura espacial da obra artística. Quando, no contexto que reencontrare-
mos mais tarde, de obras de carácter arquitetônico, Oiticica diz que “pelo fato de
a idéia realizar-se no espaço em 3 dimensões, é tentadora a aproximação com
a escultura”224, ele acrescenta imediatamente que “essa aproximação é, anali-
sando-se mais, superficial, e só poderia trivializar a experiência.”225 Trivializar a
experiência. Fazer a análise e a interpretação dos Grandes Núcleos depende-
rem da categoria “escultura” não faz jus. Portanto, “seria mais lícito, apesar de
ainda superficial, falar de uma pintura no espaço.”226 A fórmula nem satisfaz. Mas
constitui o ponto de partida para entender que a grande parte da espacialização
da arte deve mais à pintura do que à escultura.
Em data do 15 de janeiro de 1961, Oiticica escreveu a frase célebre: “as-
piro ao grande labirinto”. Enunciado enigmático, que nos parece dar o teor da
grande passagem, o teor do grande núcleo da passagem de uma plasticidade
restrita a uma plasticidade ampliada que caracteriza o início dos anos 1960.
Precisamente, ao que Oiticica aspira em 1960-61? A resposta passa por um
termo que reservamos até agora: o de não-objeto. Nesse sentido, discípulo de
Malevitch, Oiticica busca intuitivamente como objetivar o não-objetivo. Ele con-
corda com Ferreira Gullar para julgar que os artistas “concretos” defendiam
uma concepção do espaço que era “uma concepção da inteligência desse espa-
ço, analítica, e que não chega a tomar vitalidade temporal.”227 Como, portanto,
alançar essa vitalidade? Trata-se de pensar as condições “do começo de algo
novo”. Oiticica lembra que tudo deve partir dos “grandes construtores do iní-
cio do século (Kandinsky, Malevitch, Tatlin, Mondrian), construtores do fim da
figura e do quadro, e do começo de algo novo [...] porque atingem com maior
objetividade o problema da não-objetividade.”228 Como Oiticica entende esta?
Ainda: decorrerá necessariamente de uma “conscientização do problema e (d)o

OITICICA, Hélio, “Cor, tempo, espaço”, Jornal do Brasil, suplemento dominical, Rio de Janeiro,
224

26 de novembro de 1960, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for con-
temporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies,
Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art
Center, Minneapolis, 1992-1994, p.37
225
Idem, ibidem
226
Idem, ibidem
227
Idem, p.36
228
Citado in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for contemporary art,
Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies, Barcelona; Centro
de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art Center, Minneapolis,
1992-1994, p.42
lançamento concreto e firme das novas bases desse desenvolvimento da pintu-
ra”229, mas inscrever-se-á na linha conceitual aberta por Mondrian que Oiticica
cita, lembrando como encontrou em notas do artista “palavras que profetizavam
a missão do artista não-objetivo. Dizia ele que [...] a solução não seria nem o
mural nem a arte aplicada mas, algo expressivo, que seria como a ‘beleza da
vida’, algo que não podia definir, pois ainda não existia.”230 Oiticica recria rapida-
mente uma genealogia dos artistas à procura dessa não-objetividade, propondo
alguns conceitos afins: Wols e o “informal”; Dubuffet e suas texturologias (uma
referência importante porque inclui a dimensão da textura e da tatilidade, que já
dissemos ser fundamental na nova ambientação plástica desejada nessas dé-
cadas), tratando-se nele de microilimitado231; Pollock, cuja pintura “já se realiza
virtualmente no espaço [...] ‘campo de ação’ do movimento gráfico”232; Fontana,
cujos entalhes, nas telas, são vistos por Oiticica como parecidos com as fen-
das de seus “não-objetos pendurados”233 e, naturalmente, Lygia Clark. Nessa
hora, 1961, Oiticica ainda põe “a necessidade cósmica” desse “novo tipo de
expressão, que [...] ainda flutua na indeterminação, mas que mais cedo ou mais
tarde terá de se consolidar”234, na dependência da pintura. Mas já que não se
trata mais de quadro, pintura significa um modelo teórico novo, refundado pela
evicção de suas relíquias tradicionais – representação, quadro, plano inerte etc.
– e sua ressemantização: sua missão é “sua incorporação no espaço e no tem-
po”235, para criar “uma expressão que se realiza no espaço e no tempo: a idéia
se desfia, mantendo um diálogo paralelo entre a realização e a expressão.”236 A
idéia se desfia... Excelente fórmula para antecipar o que tantos artistas, a par-
tir dessa época, vão realizar através das práticas performáticas e situacionais.
Visionário, Oiticica sabia poder afirmar: “creio que nenhum artista que queira
algo novo, autêntico, nessa época, não aspire a tal coisa”237, acrescentando que
essa aspiração, “cabe ao artista torná-la clara e palpável”238, já que se trata de
algo cósmico, do “sentimento da vida.”239 O não-objeto, antes, é a clarificação e
declaração tangível do conceito-matriz que levará ao Crelazer.

229
Idem, ibidem
230
Idem, ibidem
231
Idem, ibidem
232
Idem, ibidem
233
Idem, ibidem
234
Idem, p.43
235
Idem, ibidem
236
Idem, ibidem
237
Idem, ibidem
238
Idem, ibidem
239
Idem, ibidem
Essa crítica o leva a reiterar as quatro dimensões já encontradas de cor,
tempo, estrutura e espaço, para propor acrescentar-lhes uma, mais vaga, mas
impactante para quem a põe em relação como as categorias unitárias e relacio-
nais de Judd ou Morris alguns anos depois: trata-se de uma “dimensão infinita,
não no sentido de que a obra poderia se dissolver ao infinito, mas sim pelo sen-
tido ilimitado, de não-particularidade que há na relação entre vazio e cheio, des-
nível de cor, direção espacial, duração temporal etc.”240 Nesses anos 1961-62,
Oiticica está conquistando de maneira rápida e potente os termos que o fazem
avançar na questão espaço-ambiental. Em nota do 3 de junho de 1962, ele se
mostra altamente consciente de sua responsabilidade no que tange às moda-
lidades de instalação de seus Penetráveis. Deve ser uma das primeiras vezes
que, na arte da segunda metade do século XX, no momento em que, como ele
escrevia quase um ano antes a respeito de Lygia Clark, existe “um contexto his-
tórico [...] junto a outros artistas”241, tal perspectiva se vê enunciada com tanta
lucidez! Já tivemos ocasião, em outra publicação, de dizer como a década de
1960 viu surgir, sobretudo no minimalismo e com Daniel Buren, uma preocupa-
ção sistemática de muitos artistas acerca da instalação de suas obras e de seus
dispositivos. Oiticica, em 1962, os antecipa todos. Primeiro Penetrável, 1960 PN
1: “o espaço ambiental o penetra e involve ao mesmo tempo”242 esse volume
de carácter já arquitetônico. Isso corresponde às conquistas que já analisamos.
Agora, a frase seguinte fala imediatamente de uma questão menos genêrica – a
da invenção de uma arte tridimensional, que perpassa os textos de 1960-61 –,
para abrir a questão do método de apresentação dos Penetráveis: “mas fora daí
onde situar o Penetrável?”243 Oiticica vai imediatamente relacionar a pergunta
com a necessidade de criar espaços de dinamização estrutural favoráveis à sua
manifestação: “talvez nasça daí a necessidade de criar o que chamo de ‘proje-
tos’”244, sucetíveis de criar o que, em uma formula excelente, Oiticica chama de
“prelúdios à sua compreensão.”245 Trata-se de pensar os prolegomenos estéti-
cos para a apropriação e compreensão de um dispositivo artístico nos melhores

OITICICA, Hélio, “Cor, tempo, espaço”, Jornal do Brasil, suplemento dominical, Rio de Janeiro,
240

26 de novembro de 1960, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for con-
temporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies,
Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art
Center, Minneapolis, 1992-1994, p.36
241
13 de agosto de 1961, citado in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center
for contemporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni
Tàpies, Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker
Art Center, Minneapolis, 1992-1994, p.56
242
3 de junho de 1962, citado in: Idem, p.60
243
Idem, ibidem
244
Idem, ibidem
245
Idem, ibidem
termos possíveis. De repente, o objeto, o volume, a pequena estrutura arquite-
tônica não podem mais produzir todos seus efeitos sem seguir um trabalho de
concepção do lugar de apresentação, concepção da apresentação que corres-
ponde ao lema oiticiquiano de fundação estrutural do objeto, antecipando de dois
anos a idéia do Parangolé como estrutura-ação. O Penetrável precisa, para agir,
ver suas modalidades de ação serem bem pensadas e garantidas, o que implica
acertar a apresentação na sua dimensão de integração ao lugar. Com efeito,
escreve Oiticica em uma formulação que sintetiza a priori os desafios do in situ
vindouro, “que sentido teria atirar um Penetrável num lugar qualquer, mesmo
numa praça pública, sem procurar qualquer espécie de integração e prepara-
ção para contrapor ao seu sentido unitário?”246 Vimos há pouco Robert Morris
refletir em 1966 sobre a mesma questão, tornando o objeto unitário uma simples
variável em uma totalidade espacial. No caso de Oiticica, podemos quase dizer
que as coisas andaram de maneira mais acelerada do que no caso de Robert
Morris, o rigor sistêmico característico da trajetória do artista carioca entre 1958
e 1962 tendo mostrado a força produtiva ligada ao fato de trabalhar dentro da
questão da pintura e de sua ampliação. Oiticica aprofundou analiticamente cada
um dos componentes tradicionais de uma disciplina à qual ele se manteve fiel,
a face analítica do processo tendo sido a cada momento geradora de propostas
de reestruturação global dos elementos analisados. Na simples frase de Oiticica,
o artista é apresentado como responsável das modalidades de aproximação de
seu trabalho do público destinatário:

que adiantaria possuir a obra ‘unidade’ se essa unidade fosse largada à mercê
de um local onde não só não coubesse como idéia, assim como não houvesse a possi-
bilidade de sua plena vivência e compreensão?247

Vivência e compreensão são os dois pólos que sustentam todo o trabalho


de Oiticica, das origens até o fim.
Que tipo de cenários ou roteiros arquitetônicos Oiticica cria para garantir
a exequibilidade entre um dispositivo “unitário” e seu lugar de apresentação?
Mais de um ano antes de escrever essas notas decisivas sobre a questão da
instalação pertinente da obra, Oiticica realizou a maquete Projeto cães de caça
(Fig. 29). Nesta, cinco Penetráveis são dispostos sobre uma larga plataforma
e o conjunto dá uma impressão templária e labirintica ao mesmo tempo, com
suas salas dispostas ao redor de um centro espacial nuclear que distribui os
espaços à sua volta. Oiticica diz “partir da cor no espaço e no tempo. [... Esta] se
desenvolve numa estrutura polimorfa de placas que se sucedem no espaço e o

246
Idem, ibidem
247
Idem, ibidem
tempo formando labirintos.”248 De três dos
Penetráveis, Oiticica diz que não formam
labirintos no sentido físico e concreto do
termo, mas porque suas “placas rodantes”
agem de tal maneira que elas transformam
os espaços em um labirinto móvel não
mais definido apenas pelo desenho espa-
cial. Mais uma vez, a cor tem uma função
não-arquitetônica e não-decorativa, mas é
“puramente estética, vivenciada.”249 Aqui,
Oiticica afirma algo de grande importância 29

na questão ambiental. Destacamos:

são como se fossem afrescos móveis, na escala humana, mas, o mais


importante, penetráveis.250

Afrescos móveis e penetráveis... Oiticica sintetiza dimensão física e vi-


vencial e dimensão disciplinar – a cor arquiteturizada - e simbólica. É pintura que
age, pintura móvel.251

Alguma nova natureza da arte atesta-se em fase de surgimento e confir-


mação. Ela nos faz desaguar numa instituição simbólica singular: a da “reintegra-
ção do espaço e das vivências cotidianas n[um]a outra ordem espácio-temporal
e estética”252 que Oiticica define como “sublimação humana”. Reencontramos
aqui a não-objetividade em gestação. Toda estrutura artística lhe é testemunho,
a desperta. Essa não-objetividade é, em outros termos, o que Oiticica chama de
fundação estrutural do objeto, gênese objetiva da obra etc. É muito importante
medirmos até que ponto de complexidade Oiticica levou essa idéia, porque ela
é determinante na questão das “’totalidades ambientais’ que seriam criadas e
exploradas em todas suas ordens, desde o infinitamente pequeno até o espaço

248
28 de agosto de 1961, citado in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center
for contemporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni
Tàpies, Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker
Art Center, Minneapolis, 1992-1994, p.57
249
Idem, ibidem
250
Idem, ibidem
251
Vimos no capítulo VII como Mallet-Stevens intuiu isso quando falava de arquitetura-cinema.
252
28 de agosto de 1961, citado in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center
for contemporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni
Tàpies, Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker
Art Center, Minneapolis, 1992-1994, p.58
arquitetônico, urbano etc.”253 Quando Oiticica reinvindica isso, ele faz questão,
como seus colegas artistas americanos, de situar a diferença de seu projeto com
relação à matriz cubista e, no seu próprio caso, de remeter a Mondrian como
sendo o verdadeiro ponto de partida para avaliar os avanços artísticos de Lygia
Clark ou dele mesmo. Assim, na argumentação acerca do Parangolé, somos
sensíveis – além da dimensão de “participação ambiental”, sempre ressaltada
pelos pesquisadores –, ao fato de que as capas são pensadas por ele como “pro-
cura (d)a estrutura do objeto, (d)os princípios constitutivos dessa estrutura.”254
Essas frases, sempre citadas e recitadas, precisam ser interrogadas atentamen-
te para evitar a simples parafrase. Oiticica precisa que essa busca metódica e
analitica se inscreve na série hierárquica de “ordens na plasmação experimental
de Núcleos, Penetráveis e Bólides [...] dirigid(o)s para essa criação de um mun-
do ambiental onde essa estrutura da obra se desenvolv(e) e tec(e) sua trama ori-
ginal.”255 Impressiona, nas Bases fundamentais para uma definição do Parangolé
e nas Notas sobre o Parangolé, ver como se trata de condensar a dimensão
ambiental com a dimensão performática, numa motivação que consegue unir o
que os happenings ou os environments minimalistas ou norte-americanos man-
tinham separado. A temática e a argumentação acerca do Pararangolé repousa
sobre a idéia de que “toda a unidade estrutural dessas obras é baseada na ‘es-
trutura-ação’ [...] o ato do espectador [...] revela a totalidade expressiva da mes-
ma na sua estrutura: a estrutura atinge aí o máximo de ação própria no sentido
do ‘ato expressivo’”256
Repitamo-lo: a leitura do Parangolé costuma ressaltar sua dimensão diga-
mos dionisíaca, participativa. O Parangolé também é apoliniano, mesmo porque
se trata nele de fazer participar o usuário de um dupla dimensão: a de desper-
tar-a-consciência-espáço-corporal, e a de sua sua imediata transformação em
participante à fundação e ao desdobramento estrutural-ativo. Queremos dizer
que isto é — em uma proposição que não deve mais nada às coordenadas geo-
métricas da arquitetura na qual os environments ou as instalações minimalistas
serão apresentados a partir do mesmo ano 1964 —, a invenção de uma plasti-
cidade dinâmica que se condensa em uma materialidade oposta à rigidez norte-

253
OITICICA, Hélio, “Bases fundamentais para uma definição do Parangolé”, novembro de 1964,
in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for contemporary art, Rotterdam;
Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies, Barcelona; Centro de Arte
Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art Center, Minneapolis, 1992-1994,
p.87
254
Idem, p.86
255
Idem, ibidem
256
OITICICA, Hélio, “Anotações sobre o Parangolé”, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição,
Witte de With, Center for contemporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris;
Fundació Antoni Tàpies, Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa; Walker Art Center, Minneapolis, 1992-1994, p.93
americana: o mole, o informe, o tecido, a dobra cinética, perpétua, a impossibili-
dade de fechar uma configuração. Alguns vão dizer: o mole, já temos em Claes
Oldenburg, mas será ele “vivencial”?. O teremos, dois, três anos depois, com a
virada “pós-minimalista”, com os feltros, tecidos e outras instalações de mate-
rias moles aleatoriamente derramados no solo, de Richard Serra, Robert Morris,
Barry Le Va, mas tratar-se-á de reflexões artísticas apontando para aspectos
mais restritos e localizados da questão plástica, notadamente pós-escultural.
Com Oiticica, também é uma questão plástica, mas as elaborações são tantas
maneiras de balizar o caminho para a criação das “totalidades ambientais”. A
palavra usada para falar do projeto de Parangolé é reveladora: dele como espa-
ço inter-corporal, “há como que a ‘instituição’”257, escreve Oiticica. O Parangolé,
instituição !? Sim…
Há criação ritualizada de um lugar, de uma instância ativa encarregada de
levar certas ações à existência. Depois, Oiticica enuncia o que nos parece ser,
além do Parangolé, uma abordagem totalmente pertinente para entender o pro-
jeto de tantos artistas dos anos 1960 nas suas práticas situacionais e ambientais.
Escreve a propósito da obra: “ao desdobrá-la tendo como núcleo central o seu
próprio corpo, o espectador como que já vivencia a transmutação espacial que
aí se dá: percebe ele na sua condição de núcleo estrutural da obra.”258 Aqui, tudo
deve ser transposto do Parangolé para todo tipo de ambiente, environment ou
instalação. A diferença é que Oiticica pensa isso rente-ao-corpo incorporado, es-
paço tornado corpo e corpo tornado espaço, segundo uma motivação que deve
muito à fenomenologia da articulação do corpo perceptivo no horizonte sensível
em Merleau-Ponty. Essa instituição é ativa, dinâmica, proposição, apresentação,
encenação e manifestação de um espaço-espacializante, espaço gerúndio.
É essa estruturação do espaço pelo corpo móvel que diferencia o que
Oiticica chama de “espaço-tempo ambiental”259 – que é para nós a realidade dos
environments e instalações minimalistas do momento – da “totalidade ‘obra-
ambiente’”260, cuja completude só o Parangolé alcança – e todas as práticas
situacionais-ambientais dessa época sonharão implicitamente fazer de seus dis-
positivos instalados espécies de instâncias transformadoras do corpo em núcleo
estrutural da obra, sem, contudo, nunca superar a dimensão irredutivel de sepa-
ração que, nelas, a tríade corpo-obra-lugar implica. Na verdade, só o Parangolé,
conseguiu isso na arte moderna e contemporânea. Ao reduzir a experiência à
escala do corpo, 1/1, Oiticica conseguiu superar o que as outras modalidades si-
tuacionais e ambientais dessa época não superavam: o que ele chama de “estar”

257
Idem, ibidem
258
Idem, ibidem
259
Idem, ibidem
260
Idem, ibidem
como “indivíduo no mundo”261, esse estar que implicava a manutenção de uma
mínima não-fusão entre espaço e corpo.
A partir das análises de Judd, Morris e Oiticica, vimos que se tratava de
partir da questão da situação do objeto moderno originado no espaço para ver
como os três tomavam precisamente como ponto de partida a definição de suas
determinações espaciais e temporais, como também formais e plásticas. Mais
uma vez, é necessário insistir sobre a importância de tal definição do objeto, já
que ela constituirá uma base para pensarmos – e tocamos aqui à questão crucial
da instalação –, as condições ambientais necessárias à sua eclosão. Se o objeto
contém um aspecto virtual, se é “inacabado” na sua “construção” plenária, é por-
que ele só completa essa “construção” através de seu endereçamento a alguém
a quem é destinado. Este endereçar-se-a-alguém é sua chave: de relacionado
consigo mesmo, ele se torna relacionador e parte intrínseca da relação. Relação
não é necessariamente participação, sobretudo se tomarmos como referência os
critérios do Parangolé. Precisamente, Oiticica tem consciência de ter realizado
através do Parangolé “uma violação” da simples dimensão relacional que ca-
racteriza outras instalações e estruturas espacializantes da época e de épocas
posteriores: nelas, o redirecionamento da atividade perceptiva em um conjunto
estesiológico pretensamente mais amplo não consegue diminuir drasticamente
o papel preponderante da opticidade. Com o Parangolé, instância plástica total,
o corpo consegue precisamente essa coisa revolucionária: condensar na escala
1/1 o espectro das dimensões que Robert Morris considerava quase intransponí-
vel, o maior e o menor, o objeto de tamanho maior ou menor que o corpo, recon-
ciliar o íntimo e o público. Mais de um ano antes de Morris publicar suas Notes
on Sculpture, Oiticica neutraliza as diferenças no continuum que leva do íntimo
ao público, graças à invenção de um ponto nodal cuja lógica apresenta assim:
falando da experiência e do conceito de “participador”, ele escreve que “há como
que uma violação de seu estar como ‘indivíduo’ no mundo, diferenciado e ao
mesmo tempo ‘coletivo’”262 – nesse diferenciado e ao mesmo tempo ‘coletivo’, re-
encontramos os pólos fenomenológicos e sociais de Morris, o íntimo e o público
–, “para o de ‘participador’ como centro motor, núcleo, mas não só ‘motor’, como
principalmente ‘simbólico’, dentro da estrutura-obra.”263 Núcleo corporal e motor
simbólico, pares que Oiticica não separa e jamais separará, porque o Parangolé
– paradigma perfeito e modelo epistemológico de e para todas as tentativas de
criação de totalidades ambientais – é a instituição simbólica do corpo espaciali-
zante. Em uma escala geral, todas as categorias que mantêm uma diferenciação
entre seus dois termos se vêem fundidas no que Oiticica chama de obra-estru-

261
Idem, ibidem
262
Idem, ibidem
263
Idem, ibidem
tura: o Parangolé – e, mais uma vez, trata-se aqui por extensão da formulação
do horizonte implícito de todas as práticas ambientais da época –, é obra-ação
(“muito mais ‘obra-ação’ do que a antiga action-painting, puramente plasmação
visual da ação e não a ação mesma transformada em elemento da obra como
aqui”264), o participador vira obra: “esses núcleos participador-obra ao se rela-
cionarem num ambiente determinado [...] criam um ‘sistema ambiental’.”265 Ao
mesmo tempo, tocamos aqui o limiar que leva depois Oiticica, desde 1965, a
almejar “uma vivência-total Parangolé” e a enunciar seu programa ambiental, em
que a expansão da arte no real urbano, social, político, é declarado. Assim faz,
de modo programático e voluntarista, o primeiro parágrafo do “Esquema geral da
Nova Objetividade”, a partir do qual Oiticica procede a uma recoleção histórica e
crítica da arte brasileira, propondo-se relançar sua produção dentro de um pro-
jeto cultural global. Por essa razão, não entraremos nessa questão. É claro que,
a partir de 1967, com Tropicália, com Éden e outros Tropicália projects (1971),
estamos frente a tantas proposições de “situations to be lived”266, mas os termos
da instalação oiticiquiana conhecem evoluções que este livro, neste momento
de seu andamento, não tem ainda vocação analisar. As reflexões de Oiticica em
1967-68 sobre o “Supra-sensorial”, o “Crelazer” etc., mostram um superamento
generalizado das noções artísticas e críticas que seus colegas não-brasileiros
trabalhando na vertente da instalação mantinham como elementos dialécticos de
construção-deconstrução, isto é, elementos de condicionamento da experiência.
Oiticica sonha chegar “a uma superação do objeto como fim da expressão esté-
tica.”267 Acreditamos, pelo contrário, que fora os artistas performáticos, que não
são objetos deste livro, os da Body Art, por exemplo, os artistas das instalações
não almejavam a derrubada de todo condicionamento e que eles buscavam, in-
clusive, um “novo condicionamento estético”… (Na luta travada contra esse con-
dicionamento, só um Joseph Kosuth chegou, nos Estados-Unidos, a sistematizar
uma insistente reflexão conceitual acerca do descondicionamento estético…)
Assim, as modalidades da apresentação artística mudaram evidentemen-
te com as experiências analisadas acima. Isso nos leva a pensar se, dentro da

264
Idem, p.96
265
Idem, ibidem
266
OITICICA, Hélio, “subterranean TROPICÁLIA PROJECTS”, New York, september 1971, in:
Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for contemporary art, Rotterdam;
Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies, Barcelona; Centro de Arte
Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art Center, Minneapolis, 1992-1994,
p.143
267
OITICICA, Hélio, “O aparecimento do Suprasensorial na arte brasileira”, GAM, Rio de Janeiro,
nº13, 1968, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center for contemporary art,
Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni Tàpies, Barcelona; Centro
de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker Art Center, Minneapolis,
1992-1994, p.127
questão da relação paradigmática entre plano pictórico e plano parietal, apre-
sentada anteriormente, a produção de Oiticica não estaria trazendo também, à
sua maneira, uma contribuição fundamental. Com efeito, nada impede de ver
nos panos monocromáticos dos Relevos, Bilaterais e Penetráveis uma maneira
de movimentação e tridimensionalização da parede. Assim, poderíamos afirmar
que, na retomada da idéia malevitchiana e mondrianiana de propor um new deal
espacial a partir de uma operação pictórica, não tratar-se-ia de uma falsa volta
da pintura a seu suporte originário, o muro, mas, sim, da criação de micro-pa-
redes desdobradas segundo vetores espaciais condensados e abertos ao mes-
mo tempo à experiência estesiológica. Tratar-se-ia de ainda trabalhar dentro de
uma dimensão que lembra a mise-en-abîme da parede nos grandes formatos
do expressionismo abstrato americano, mas, dessa vez, através da especifici-
dade das superfícies moduladas. Oiticica polifaceta a parede, fragmenta-a em
pedaços parietais, em micro-“écrans” e micro-“screens”. Nesse sentido, a velha
tensão harmônica entre a pintura e a parede, constitutiva de sua essência tra-
dicional, seria resolvida através de uma operação excepcional que poder-se-ia
comparar com a sutilização, integração e o sumiço do pedestal no corpo escul-
tural, em Brancusi. Se, no caso dos grandes formatos ou grandes monocromos
expressionista-abstratos, a tendência ao transbordamento da superfície pictórica
para a parede não conseguia realizar mais do que sua sinalização virtual, nos
Penetráveis de Oiticica, a parede e a pintura fazem um, fundidas juntas.
Se a escritura da história da arte fosse mais justa nos seus condiciona-
mentos geo-políticos, esse ponto apareceria como fundamental na questão que
nos interessa aqui e que interessava ainda, bem depois, um outro artista incon-
tornável nessa questão, Daniel Buren, quando este produziu obras que anali-
sam os mecanismos da apresentação, sistematizando na sua obra a reflexão
sobre os problemas de inserção e integração de um dispositivo em um site. Em
1982, analisando as condições de exposição de pinturas de Pollock em uma re-
trospectiva, Buren critica os partidos dos conservadores que reinstituiram aquilo
contra que Pollock tinha trabalhado: a instância diferenciadora e hierarquizante
do muro. Na frente de quatro quadros que os conservadores avaliaram mais im-
portantes e, portanto, puseram em evidência em quatro painéis bem destacados
das paredes sobre as quais o resto das telas de Pollock eram penduradas, Buren
lamenta:

podemos, portanto, instalar uma exposição de pintura – a fortiori


sem seu autor – sem alterar-lhe irremediavelmente o sentido? Parece que não e
a razão principal desprende-se da própria pintura que, toda vez que é instalada,
encontra-se sempre mais em contradição com ela mesma. Ao querer dizer tudo
dentro de uma superfície delimitada sem levar em conta a superfície (ou o volu-
me) que, por sua vez, vai delimitá-la, a pintura, em particular e o objeto de arte
em geral abrem a porta a todas as espécies de manipulações visuais tão somente
importantes quanto a brincadeira de alguém que transformaria a própria pintura
ou o objeto acrescentando-lhe aqui um traço preto, lá uma mancha de cor, cá
uma paisagem ou retirando-lhe acolá uma cabeça. […] Com o desaparecimento
da moldura – e Pollock não é por pouco nesse desaparecimento –, é o próprio
ambiente no qual a obra é colocada que vai intervir diretamente na leitura da obra,
esta nem possuindo mais a proteção de sua moldura para isolar-se um pouco. Ao
querer ser sempre mais autônoma, a pintura tornou-se sempre mais dependente.
Dependente de seu lugar de apresentação, dependente de quem a pendura. Daí
a tarefa quase impossível legado aos conservadores.268

A solução para superar essas aporias consistiu bem, para a maioria dos
artistas da segunda parte do século XX, na ampliação do campo visual até seus
confins. Os grandes formatos monocromáticos trabalham nessa direção. Os
dispositivos minimalistas também. Os labirintos de Oiticica, também, que criam
uma arquitetura da fusão entre cor e parede. Ao mesmo tempo, as formas uni-
tárias e especifícas que tantos artistas inventam nessa época devem ser vistas
todas além da questão disciplinar. Decerto, um Penetrável funde campo mono-
cromático e campo parietal. Mas, ao instituir uma dinâmica arquitetural e espa-
cial — uma arquitetura-cor, uma micro-arquitetura-cor, uma cor-arquitetura, uma
micro-cor-arquitetura, o espaço, o micro-espaço de sua integração —, ele nos
obriga a passar de uma percepção da obra como veículo de convenções ou
supra-convenções para a percepção de um agenciamento post-medium, como
diz Rosalind Krauss. Exatamente como Giovani Careri pergunta se frente aos
Pollock da retrospectiva criticada por Buren, devemos olhar as telas como veicu-
lando questões sobre as convenções da pintura e a necessidade de ela manter
um mínimo dessas convenções para aparecer aos olhos do público como pintura
e não como objeto, ou se devemos olhar para elas como já sendo ou tendo pas-
sado ao estatuto de objeto, de instância rítmica, de intervalo espacial marcante
numa grande frase espacial, numa síntaxe espacial global que essas pinturas
dinamizariam e fariam pulsar, como os dois monócromos de Malevitch vistos
acima.

268
BUREN, Daniel, “La peinture et son exposition”, in: Cahiers du Musée National d’Art Moderne,
nº17-18, 1986, p.175
Capítulo IX
Campos de força in loco

A desespecificação da pintura, não podemos dizer que Oiticica a realizou,


já que para ele, a pintura é o nome e o conceito renovado daquilo que conse-
guiu se separar das limitações convencionais do quadro autônomo ao serviço
do qual a pintura se encontrava tradicionalmente. Agora, é inegável que, dentro
da questão da relação entre plano parietal e plano pictórico, ponto chave da arte
e da arquitetura moderna, a operação de fusão entre micro-parede e cor e sua
arquitetur-ação nos Penetáveis, deve ser vista como a produção de um objeto-
agenciamento, de um agenciamento-bloco, a versão oiticiquiana da forma unitá-
ria pensada como peça de um agenciamento espacial of greater scope. É o que,
no contexto minimalista, Bonnefoi enuncia da seguinte maneira:

é evidente que a arquitetura ocupa um lugar privilegiado relativamente


à questão do objeto moderno no que diz respeito à sua originação no espaço.
Também é claro que o desenvolvimento desse ponto, sua precisão, necessita
do deslocamento da questão em outros campos que autorizem uma abordagem
sempre mais abstrata, eliminando as contigências: a escultura e a pintura assu-
mem esse deslocamento, abrindo a questão a outros conteúdos que visam prin-
cipalmente, […] a localizá-la no próprio objeto enquanto obra de arte; um objeto
que, como quadro, teria conseguido, de um lado, integrar no seu plano […] a
experiência do espaço real englobando o sujeito; e, de outro lado, graças à sua
natureza intrínseca de plano, eliminar as variáveis e as contingências próprias a
uma experimentação no real.269

Essa análise é excelente se substituimos ao termo “quadro” o termo “pin-


tura” na acepção oiticiquiana da arquiteturação da cor, no sentido dos agen-
ciamentos que ressaltamos agora mesmo a propósito de Oiticica. Lida à luz do
Penetrável, a citação de Bonnefoi mostra que a produção daquilo que Oiticica
chamava em 1972 de “lumen d’espaço definido”270 obriga a realizar obras ou dis-
positivos capazes de construir, estruturar e fazer consistir o objeto na sua exis-
tência e situação espacial-real. O fazem através da dinâmica de expansão de

269
BONNEFOI, Christian, “Louis Kahn et le minimalisme”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI,
Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts
plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.211-
212
270
OITICICA, Hélio, “Metaesquemas 57/58”, catálogo Metaesquemas 57/58, Galeria Ralph
Camargo, São Paulo, 1972, in: Hélio Oiticica, catálogo de exposição, Witte de With, Center
for contemporary art, Rotterdam; Galerie nationale du Jeu de Paume, Paris; Fundació Antoni
Tàpies, Barcelona; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Walker
Art Center, Minneapolis, 1992-1994, p.27
dentro para fora, mas também de transformação do interior em crivo dos vetores
espaciais externos que perpassam a obra. Isso é um passo decisivo na medita-
ção moderna sobre a invenção de espaços propositivos e experimentais novos.
Isso explica como, em 1978, é nessa mesma direção que Robert Morris reflete
num importante texto que publica na revista Art in America.271 Ele representa
uma contribuição quase hermenêutica à questão da dinâmica espacial desde o
Renascimento, perspectiva histórica que Morris evidencia como constituida pe-
los elementos formais e criticos específicos à história do espaço. Para Morris, a
forma unitária é um objeto que faz aparecer tanto as polaridades da arquitetura
– os espaços coexistentes, que nos colocam na situação de sermos cercados ou
envolvidos –, quanto as polaridades da escultura – os espaços separados, que
nos colocam na situação de cercar e envolver. A vitalidade da escultura assim
entendida e posta em situação consiste em ter uma relação com a arquitetura
de tal forma que ela libere um campo de forças capaz de tramar o ambiente ao
mesmo tempo que este participa à forma e realidade daquele.
Bonnefoi lembra um dado fundamental, que a produção de Oiticica, com
suas implicações plásticas e teóricas, comprova: “essas diferentes experiências
de um campo para o outro têm o mérito […] de partir de uma mesma dimensão
básica: a parede.”272 Agora, já que os dispositivos espaciais são dispositivos físi-
cos e concretos num espaço real, as intenções estéticas que almejam realizar o
ultrapassamento das limitações próprias aos modos tradicionais das disciplinas
artísticas suscitam operações plásticas cujo carácter situacional e ambiental exi-
ge as modalidades estruturais que lhe são necessárias para serem obras de arte.
O minimalismo, por exemplo, ao instituir uma afirmação do volume no espaço,
tem uma intencionalidade arquitetural própria: ressalta as circunstâncias intra-
ou para-tectônicas próprias às exposições. O Penetrável e o Grande Núcleo po-
dem ser uma transmutação da pintura, apresentam, todavia, uma tectonicidade
própria, na mesma linha que leva Morris a declinar os componentes arquiteturais
do espaço sem poder renunciar à sua função de suporte de apresentação. O
muro origina obrigatoriamente – ao mesmo tempo que é desconstruido por ela
– a polaridade escultura-arquitetura. Aliás, as análises de Morris revelam-se por
extensão muito esclarecedoras a respeito daquilo que acontece nos Penetráveis
(que ele, com certeza, desconhecia). Seu ponto de partida no texto publicado em
Art in America é a questão da relação entre o objeto e seu entorno.

271
MORRIS, Robert, “The Present Tense of Space”, Art in America, New York, jan.-fev. 1978, 66,
nº1, p.70-81. Trad. in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration
de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire
des pratiques de l’espace, Corda, 1979
272
BONNEFOI, Christian, “Louis Kahn et le minimalisme”, in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI,
Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts
plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.212
Na história, o objeto escultural era geralmente disposto em um nicho que
era ao mesmo tempo um intervalo, um ritmo, uma transição da/na parede e uma
separação enquadrando a figura. Este duplo aspecto de inclusão, integração
rítmica, de separação e diferenciação espacial, se reencontra precisamente, a
nosso ver, nos Penetráveis. No ponto de contacto original que é a parede, o
Penetrável, dispositivo que ao mesmo tempo integra e diferencia, tem por voca-
ção abranger as operações mais gerais implicadas por sua percepção e apro-
priação. Abre a questão da exposição arquitetural na sua relação com a figura
do habitante, figura encapsulada em um nicho, desvinculada do espaço a seu
entorno. Coloca também a questão da exposição da escultura: sabemos que o
observador, na escultura clássica, ficava separado daquilo que olhava. Oiticica
e Morris criaram, portanto, acontecimentos plásticos nos quais a oposição entre
arquitetura e escultura é superada, sublinhando a possibilidade de um desencla-
ve e de uma abertura do escultural para o espaço arquitetural ou ambiental. A
análise que Christian Bonnefoi faz do minimalismo de Morris também é pertinen-
te para os Grande Núcleo ou Penetráveis de Oiticica: trata-se de “operar uma di-
visão no objeto entre seus limites e seu núcleo, os limites sendo projetados fora
do núcleo na direção dos limites espaciais.”273 Ao existir rumo a sua periferia, o
objeto tem a qualidade de anexar à sua esfera aquilo que é do espaço, a escul-
tura, na sua relação complexa com a arquitetura, passando de um problema de
colocação no espaço a um problema de ocupação do espaço.
Para Morris, em 1978, a questão dessa relação é antiga. Parte de
Michelangelo, cujas quatro figuras da Capela Medici, em San Lorenzo, Florença
(1521-34) (Fig. 30), apesar de serem fixadas à parede, formam saliências com
seus volumes e criam as condições de uma integração
ao conjunto arquitetural. Esses corpos contorsionados
e tensos, postos em um “equilíbrio instável”, introdu-
zem “uma relação nova entre as figuras e o espaço.”274
Michelangelo não as faz se beneficiarem da segurança
do nicho nem da independência formal que um pedestal
lhes forneceria, funcionando, portanto – e a fórmula em-
pregada por Morris é decisiva –, como “massas carrega-
das de energia cinética potencial, pedindo para bascular
no espaço […] Estabelecem um campo de força que se
opõe ao espaço enclausurado da capela […], participan- 30

273
Idem, p.213
274
MORRIS, Robert, “The Present Tense of Space”, Art in America, New York, jan.-fev. 1978, 66,
nº1, p.70-81. Trad. in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration
de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire
des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.385
do à articulação de um conjunto espacial.”275 Depois, Morris analisa rapidamente
a Biblioteca Laurentiana, em San Lorenzo, Florença (1523-34) (Fig. 31) do mes-
mo Michelangelo, para sublinhar-lhe a ca-
pacidade de a arquitetura, pelo jogo formal
singular de seus elementos tectônicos acen-
tuados e tratados de maneira plástica, tornar
o espaço “escultural”, o artista-arquiteto ten-
do “forçado as estruturas arquiteturais […]
a estabelecerem um campo de forças.”276 A
seqüência do texto de Morris apresenta re-
ferências históricas e categorias espaciais 31

importantes de serem olhadas de perto porque constituem, a nosso ver, marcos


incontornáveis. Evocando o que chama de espaço como representação, Morris
analisa o sistema formal da Porta do Inferno, de Auguste Rodin (1880-1917) (Fig.
32), para concluir que se trata da representa-
ção do espaço mental, saido diretamente de
fontes literárias, no qual as figuras imaginadas
e sonhadas vêem povoar o écran, o screen,
a tela de nosso espaço mental: na sua mo-
vimentação perpétua e irrefragável, o espaço
sem traços nem profundidade da Porta, pare-
ce com o espaço mental, espaço sem volume
nem lugar assinaláveis, pura energia daquilo
que Freud, e depois, na história da arte, Hubert
Damish e Georges Didi-Huberman, chamam
de figurabilidade, a faculdade imageante. Para
Morris, essa superfície escultórica, cercada,
ressaltada, posta em relevo por um enquadra-
32 mento arquitetural, afirma “o mundo interior da
imageria da consciência e o carácter indefinido do espaço interior imaginário”, e
representa um “não-lugar”277, o screen de um processo de projeção psíquica com
relação ao qual a escultura minimalista se posiciona criticamente, para recusá-
lo. No entanto, é o Balzac (1897) que mais interessa a Morris, porque sua massa
compacta garante a ilegibilidade do corpo que ela encerra, figura “que se dá a
ver, antes, contra o céu, e não assentada em um lugar particular.”278 Isso lhe dá a
força de não poder ser registrada, memorizada como objeto de traços definidos

275
Idem, ibidem
276
Idem, p.386
277
Idem, p.387
278
Idem, ibidem
e fielmente memorizáveis. Morris pensa que não é possível fazer existir o Balzac
na memória voluntária, já que nem existe em “um lugar real.”279 Aproxima-se, nos
parece, de uma aparição; testemunha um modo de aparição singular de algo que
só existe ao ser visto. As análises dessa escultura de Rodin é fascinante porque,
em um parágrafo, Morris ressalta-lhe a força de disrupção de certas categorias
estéticas e a torna um marco genealógico na questão da consistência do espaço
“no presente”. Ao eclipsar “a tradicional imagem estática e memorizável do obje-
to autônomo”280, o Balzac é potente por mesclar, digamos, forma quase unitária
e necessidade, para ser apreendida, de se girar em torno dela, de fazê-la existir
pelas variações de perfis que ela oferece e pelo deslocamento sucessivo que
exige do observador. É um objeto que institui uma relação móvel com o público,
algo que se reencontrará posteriormente no minimalismo.
Este, sem dúvida, para ser entendido além das asserções da década de
1960, deve ser ressituado na sua relação com o que Morris chama de “domínio
nominal da arquitetura.”281 As referências às arquiteturas medievais, orientais e
pré-colombianas lhe servem a transitar, ressaltando sua capacidade de instau-
rar uma percepção temporal. Ao ser bastante labirínticas, essas arquiteturas se
diferenciam daquelas que oferecem uma plena visão gestáltica por serem uma
imagem abarcável como “conjunto estático.”282 Arquétipo espacial originário da
arquitetura, o labirinto suscita um conhecimento comportamental, kinestésico,
que é “função da duração.”283 O fator “tempo” é evidentemente fundamental na
questão da apropriação dos dispositivos espacializados. A esse respeito, parece
que, retrospectivamente, Morris olha de maneira negativa os “happenings” – uma
forma de ação que ele usou no início dos anos 1960 –, e as formas incipientes
do minimalismo. Sem citar ninguém, vemos bem, ao lê-lo, que os dispositivos de
Carl Andre no solo ocupam seu espírito quando escreve:

a partir dos anos 1960, começou-se a usar a extensão lateral do chão e


elementos em geral pequenos e fragmentados. A elevação – o domínio dos obje-
tos –, era evitada. Tratava-se de organizar um tipo de relevo não mais na parede
mas no solo, e de desenvolver um espaço ‘baixo’, pouco profundo e quase bidi-
mensional.284

Isso leva Morris a concluir que o rebaixamento da camada plástica não


rompia com a percepção tradicional dos objetos: “os pés do espectador estão

279
Idem, ibidem
280
Idem, p.388
281
Idem, ibidem
282
Idem, p.389
283
Idem, ibidem
284
Idem, ibidem
no espaço da arte mas sua visão funciona segundo o modelo da percepção dos
objetos.”285 Vemos o que essa análise contem de crítica acerca do minimalismo:
este teria mudado certos dados formais e espaciais sem conseguir romper com
uma percepção comum. Os dispositivos minimalistas teriam afetado as condi-
ções de apresentação da obra, mas deixado intocada a mediação estética, as
paredes, diz Morris, funcionando como emolduramento das peças dispostas no
chão. Esse desequilíbrio entre pretensa renovação da situação espacial da obra
e manutenção final dos modos de percepção também será denunciada por Allan
Kaprow na sua avaliação da evolução da instalação com relação a seu protóti-
po, o environment. Agora, Morris propõe uma análise interessante para enten-
dermos esse desequilíbrio ou essa impossibilidade de se desfazer dos modos
tradicionais de percepção. Quando, no fim de seu artigo, ele escreve que, nos
dispositivos minimalistas, com suas formas unitárias, “a reivindicação do objeto
independente era, na realidade, a reivindicação de uma relação escondida: a do
objeto com a moldura retilínea e tridimensional da sala”286, essa conclusão desi-
ludida encerra uma reflexão sobre a ambiguidade do espaço, a difícil solubilida-
de do objeto nele e a inelutável preponderância da gestalt. Segundo Morris, só a
disposição no chão de objetos miniaturizados é capaz de suscitar uma sensação
de encolhimento e sucção do espaço: essa, ao mesmo tempo que fá-lo retrecir,
nos deixa “viver nosso próprio espaço.”287 Morris chama isso de “espaço fictí-
cio.”288 Faz os objetos pequenos absorverem o espaço. Aqui, nosso espaço, o da
nossa posição de observadores, ao mesmo tempo que perdura, desapareceria
no “espaço muito vasto comprimido sob os joelhos do espectador”289, a relação
de proporção entre espaço e observador sendo desequilibrada. Na verdade, um
real espacial fictício se subtrai ao nosso tempo e espaço real.
No caso da preponderância da gestalt, da forma unificante, das formas
minimalistas que Morris qualifica como sendo “de maior generalidade”, a relação
de equilíbrio proporcional entre espaço e observador é mantida. As formas da
generalidade marcam e limitam, ritmam e constróem o espaço sem que este ja-
mais seja absorvido pelos objetos. “A potência dessa gestalt generalizada, dessa
forma de conjunto, parece claro quando nos deparamos com o fato de que ela
[…] fornec(e) uma unidade estrutural antes aos objetos e em seguida aos es-
paços.”290 Mas ela tem o defeito de ser vinculada a espaços de apresentação e

285
Idem, ibidem
Idem, p.391-392. As ambiguidades críticas de Donal Judd com relação àquilo que Morris cha-
286

ma de “moldura retilínea e tridimensional da sala” foram ressaltadas em nota do capítulo VII.


287
Idem, p.390
288
Idem, ibidem
289
Idem, ibidem
290
Idem, p.391
instalação que repousam sobre, e que consolidam a condição gestáltica daquilo
que é apresentado: as galerias. Para Morris, as galerias ou outros espaços ar-
quitetônicos impedem satisfazer um projeto de “experiência aprofundada do es-
paço”291, contrariam a visada de uma experiência espacial de “carácter temporal
e ‘reativa’”292; são definidos, portanto, como “lugares anti-espaciais ou não-espa-
ciais”293, como inaptos a serem qualificados de espaciais, porque, diz Morris - su-
blinhamos -, “são tão ‘unitários’ e percebidos tão rapidamente quanto os objetos
que abrigam.”294 Asserção fundamental. A conclusão é radical:

a relação desses objetos com o espaço arquitetural quase sempre se


constrói em função de seus eixos de alinhamento com os limites das paredes.
Assim, o objeto ‘unitário’ é uma forma positiva no interior do espaço negativo, mas
também ‘unitário’, da sala. Um lembra a forma da outra: uma solução bem ajusta-
da, mas bastante fechada. […] Podemos dizer que este tipo de espaço precedeu
e engendrou o objeto chamado de autônomo.295

Isso leva Morris a dizer que, “em termos muito gerais, uma obra fundada
sobre a integralidade da gestalt é uma obra que repousa ainda sobre os postula-
dos da arte clássica do Renascimento.”296 Morris nos diz aqui que muito do mini-
malismo não passou de arte clássica, mesmo que remanejada, como treze anos
depois, Kaprow nos dirá que a instalação na passa de uma reinstauração da arte
tradicional. O diagnóstico sobre o minimalismo é pouco favorável: “imediateza e
inteligibilidade a partir de um só ponto de vista, estrutura racional, limites nitidos,
proporções harmoniosas – em breve, todas as características que o objeto inde-
pendente dos anos 1960 redefiniu.”297

O diagnóstico de Morris em 1978 pode contribuir à compreensão das moti-


vações que levaram tantos artistas do fim dos anos 1960 a querer sair da galeria,
como é convencional dizer. É nesse contexto que as noções de site, com suas
categorias conexas, começaram a se impor na paisagem crítica das artes. Um
trabalho de Dennis Oppenheim, por exemplo, Bleacher System (Fig. 33)(maque-
te de um estrado para olhar uma galeria de dentro, 30,4 x 60,9 x 60,9 cm, 1/12,
1967) sintetiza bem como um dispositivo piramidal — com degraus escalonados

291
Idem, ibidem
292
Idem, ibidem
293
Idem, ibidem
294
Idem, ibidem
295
Idem, p.392
296
Idem, p.392
297
Idem, ibidem
sobre cada das quatre faces para o púbico
sentar —, transforma a galeria em um site
singular: o continente tradicional da exposi-
ção torna-se enquanto tal objeto de obser-
vação a partir do dispositivo que ele abriga.
O continente é ao mesmo tempo ressaltado
através da objetivação que resulta do fato de
que só há o espaço receptor a se observar,
33 e desconstruído, porque a função “normal”
que uma galeria tem de receber obras e outros dispositivos é subvertida, tornan-
do-se em si a meta da percepção espacial… Bleacher System, além de também
ressaltar a dimensão aristotélica do lugar como “lugar próprio e envelope dos
corpos que ele limita e que identifica”298, contempla perfeitamente a dimensão
“posição” que a categoria de site veicula na língua inglesa através do verbo to sit,
sentar-se em um site para ter um sight: “ponto cego do dispositivo, que não pode
ver a si mesmo, ele torna perceptível aquilo que o cerca.”299 Reencontraremos
mais tarde uma definição quase igual com Carl Andre, bem próxima daquilo que
diz Anne Cauquelin quando lembra que, com os artistas da Land art, o site “é
um non-site no espaço de um território tornado obra.”300 Robert Smithson tem
nisso um papel deterninante, suas famosas reflexões sobre a relação entre site
e non-site sendo um marco da época. O que fascina na produção de Smithson e
de seus colegas da Land art, é o alto grau analítico de conceitos fomais, estéti-
cos, topológicos e a dimensão bastante épica de suas intervenções nos grandes
espaços naturais ou urbanos Essa presença do site no pensamento artístico vai
determinar, no contexto da vanguarda minimalista e pós-minimalista norte-ame-
ricana, contribuições teóricas muito interessantes que poderìamos chamar de
espaçologia estética e crítica.
Em trabalhos de Michael Heizer ou Robert Smithson, é inegável que os
desafios da percepção e da interpretação levam do lado do encontro tangencial
entre a arquitetura e a “escultura” no seu campo ampliado. Displaced Replaced
Mass 1, 2 e 3 (Deserto do Nevada, 1969) de Heizer, trata do peso sobre o solo,
do caráter inerte da massa quando ela não tem que sustentar nada e apenas
repousar enquanto tal; Buried Wood Shed (Kent State University, Ohio, janeiro
de 1970) de Robert Smithson, faz a massa tomar o ascendente já que o soterra-
mento progressivo da cabana de madeira debaixo da terra que é derramada so-
bre ela de cima desde um caminhão faz com que a escultura é exatamente arqui-
tetura soterrada… Double Negative (Mormon Mesa, Overton, Nevada, 1969-70)

298
CAUQUELIN, Anne, Le site et le paysage, Paris: PUF, Quadrige, 2002, p.15
299
Idem, p.27
300
Idem, p.16
(Fig. 34), do mesmo Heizer, também in-
veste nos paradoxos: a “escultura” – com-
primento total de 500m.; largura de cada
trincheira: 10m.; profundidade máxima:
17m.; remoção de 240 000 toneladas de
terra e rocha… – é seu vazio ou suas bor-
das, paredes arquitetônicas ou fachadas
com uma altura de prédio de cada lado da
trincheira(-rua). Com efeito, tanto Robert
Morris quanto Heizer ou Smithson trazem
à nossa temática elementos indispensá-
veis de serem apresentados e assimila-
dos. As reflexões de Heizer e Smithson 34
sobre as categorias de tamanho e escala constituem extensões de uma arqui-
teturologia que deveria estar mais atenta ao que os artistas têm a dizer sobre o
espaço e sua dinâmica perceptiva e plástica. Respondendo a Julia Brown que
lhe pergunta se o fato de Double Negative acontecer nas dimensões da arquite-
tura significava trabalhar “em uma escala diferente daquilo que é habitual em es-
cultura”301, Heizer é muito preciso: “não a escala, o tamanho. O tamanho é real,
a escala é um tamanho imaginário. Poderìamos considerar a escala como uma
medida estética, enquanto o tamanho é uma medidade efetiva.”302 Smithson, em
1972, usa também desse argumento tamanho/escala para dizer que

o tamanho determina um objeto, mas a escala determina a arte. Podemos


dizer de uma fissura em uma parede que é o Grand Canyon se é percebida do
ponto de vista da escala e não do tamanho. […] A escala depende da capacidade
de cada um tomar consciência das realidades perceptivas. Quando nos recusa-
mos a desvincular a escala do tamanho, ficamos com um objeto ou uma lingua-
gem que aparece como certo. Para mim, a escala age graças à incerteza.303

Entre Heizer e Smithson, estamos entre o todo escala (Smithson) e o


todo tamanho (Heizer). Remetendo a Complex I (Garden Valley, Nevada, con-
creto armado e terra compacta, 7 x 43 x 34 m., 1972-74) (Fig. 35) e às cons-
truções ainda em curso durante os anos 1990, Gilles Tiberghien precisa que o
espectador, situado a sete metros mais baixo que o nível do solo, não podendo

301
Interview, Julia Brown and Michael Heizer”, Sculpture in Reverse, (Julia Brown ed), Los
Angeles: The Museum of Contemporary Art, 1984, citado in: TIBERGHIEN, Gilles, Land Art,
Paris: Carré, 1993, p.70
302
Idem, ibidem
SMITHSON, Robert, “The Spiral Jetty”, (1972), in: The Writings of Robert Smithson, (Nancy
303

Holt, ed.), New York: New York University Press, 1979, p.112
ver nenhuma parte da paisagem,
perde seus marcos e só vê o céu.
Trata-se, neste caso, de uma ver-
dadeira perda oceânica em um
espaço sem distâncias claras ou
escala definida. Entre Smithson
e Heizer, a dialéctica seria a do
tamanho sem preocupação da 35

escala - a coisa ou a presença enquanto tal, isto é, não relacional e inenarrável


-, e o deslanche da imaginação graças à incerteza das relações de escala cuja
prolongação mental geraria uma narrativa ficcional. É evidente que essas pola-
ridades mais extremas — o todo tamanho e o todo escala — contrastam com a
idéia mais tradicional que faz Morris pensar que o corpo é a unidade constante
de medição sobre uma escala que é apenas uma variável no contínuo das di-
mensões. A escala de grandeza de coisas (não-utilitárias) em três dimensões
forma um continuum entre o monumento e o objeto ornemental. Seguindo as
sugestões de Heizer e Smithson, poderìamos dizer que seus trabalhos lidam
com dimensões perceptivas e receptivas onde o objeto em si, com ou sem coor-
denadas espaciais mensuráveis, contém um fator de desorientação (categoria,
notemo-lo, que tem relações estreitas com a do sublime).
Capítulo X
Site, Sight, Serra

A obra de Serra é exemplar do método rigoroso de reflexão e concepção


do trabalho “escultural” e plástico na hora de fazer passar a escultura do âm-
bito do espaço tradicional da galeria para o espaço urbano. Se as análises de
Rosalind Krauss no livro – muito lido – Caminhos da escultura moderna, repre-
sentam a melhor reflexão sistemática e lógica acerca da escultura do século XX, e
notadamente a dos artistas norte-americanos dos anos 1960 e 1970, nos parece
contudo necessário, no caso de Richard Serra, retormarmos alguns dados. Vale
lembrar que como escultor, Serra partiu de uma reflexão sobre o peso, o apoio, a
gravidade, o equilíbrio, como One Ton
Prop (House of Cards) (chumbo, 122
x 122 x 140 cm, 1969) ou Circuit (Fig.
36) (aço laminado, quatro placas de
3,05 x 6,10 m. convergindo dos quan-
tro ângulos da sala para o centro,
1972) testemunham. Nessas obras
célebres, o equilíbrio e o contra-peso
36
se revelam ser mais fortes do que os
princípios da gravidade e do desmantelamento. Ao mesmo tempo, a fase “pro-
cessual” de Splashing (chumbo, 1968) Casting (chumbo, 0,10 x 7,62 x 4,57 m.,
1969) (Fig. 37) etc., representa uma ampliação do “escultórico” para questões de
dinâmica espacial. Nas suas entre-
vistas, Serra reafirma sempre que
“o que conta, é olharmos o espaço
desde o lugar onde [as obras] es-
tão, ou desde um elemento, olhar
onde está o outro.”304 E Serra de
elogiar a visão in situ da arquitetu-
ra ínca porque “nos ângulos, utili-
zavam pedras com doze faces que
37
lhes permitiam obter ângulos retos
em doze direções […] As pedras eram talhadas para a adaptabilidade in situ.”305
Essa análise aponta para a existência, na arquitetura ínca, de uma capacidade
de fazer acontecer o que, a respeito de One Ton Prop, Serra apresenta como
vontade de espaço… Mas é de uma espacialidade estruturada que Serra fala:

304
“Entretien avec Friedrich Teja Bach”, 14 de março de 1975, in: SERRA, Richard, Écrits et en-
tretiens 1970-1989, Paris: daniel lelong éditeur, 1990, p.46 (trad. de Gilles Courtois)
305
Idem, p.47
“o que me interessa é revelar a estrutura, o conteúdo e o carácter próprio de um
espaço e de um lugar, definindo uma estrutura física por meio dos elementos que
eu utilizo.”306
A escultura de Serra é capaz de
criar um movimento que conjuga exterior e
interior. Ponto importante, que coloca um
desafio imenso, é o fato de que esse jogo
formal constitui o motor plástico e tectôni-
co de uma espacialização que ele resume
da seguinte maneira: “em Delineator307 e
Sight Point308, o volume interior é compre-
endido desde o exterior, o volume exterior
desde o interior, e vice-versa.”309 A respei-
to de Terminal310, Serra escreve que essa
escultura “é contínua e definida, redonda
e quadrada, plana e com volume.”311 A
capacidade de criar, como em Terminal,
uma estrutura que ajunta e articula alguns
incompossíveis é notável porque mostra
como a concepção rigorosa de uma es-
38 cultura como esta pode criar uma dinâmi-
ca espacial paradoxal, notadamente no
jogo entre plano e volume, isto é, tudo o que outros artistas como Oiticica, os
minimalistas etc., trabalharam tanto na década de 1960. Ainda é a respeito de
Sight Point (Fig. 38) que Serra lembra como gosta “da ambiguidade daquilo que
é exterior e interior.”312 Assim, o trabalho de Serra tem finalidades perceptivas e,
como também pensava Morris, a tarefa de criar um “campo de força”. A respeito
de Delineator, Serra escreve:
quando estamos fora das placas, a de cima parece crescer rumo ao alto,
contra o teto. A situação se inverte quando andamos debaixo. Não há caminho

306
“Sight/Point 1971-75 / Delineator 1974-76”, entretien radiodiffusé avec Liza Bear, 23 de fev.
de 1976, in: idem, p.52
307
Aço, 2 placas de 7,93 x 3,05 m., uma no chão, outra paralela ao teto (2 toneladas) e perpen-
dicular à do solo, 1974-76
308
Aço corten, três placas de 12,2 x 3,05 m., espessura 63,5 mm., 55 toneladas, 1971-75
309
“Propos sur le dessin”, entretien avec Lizzie Borden, Amsterdam, Stedelijk Museum, 1977, in:
Idem, p.80
Aço corten, quatro placas de 12,5 x 3,66 x 2,75 m., espessura 6,35 m., Bochum, Alemanha,
310

1977
311
“Levage et montage”, Cover, jan.1980, in: Idem, p.138
“Entretien avec Alfred Pacquement”, New York, 17 de junho de 1983, in: Richard Serra, Paris:
312

Centre Goerges Pompidou, Musée National d’Art Moderne, 1983. Citado in: Idem, p.207
para adentrá-la. Quando caminhamos para seu centro, a escultura funciona de
maneira centrífuga ou centripeta. Somos obrigados a reconhecer o espaço acima,
abaixo, à direita, à esquerda, ao norte, ao sul, ao oeste, em cima, embaixo. As
coordenadas psicofísicas, o sentido da orientação de cada um são questionados
[…] a realidade é mais inabarcável.313

Serra afirma que o volume da “escultura”, na qual o espectador, com seu


corpo, reconstitui o eixo vertical de ligação entre a placa horizontal no solo e a
outra placa no teto, é tanto interior quanto exterior… Mas talvez é no meio de
algumas Notas sobre o desenho que encontramos a melhor concentração crítica
da maneira que Serra tem, desde o fim dos anos 1960, de pensar a dinâmica
espacial de suas obras na sua interrelação com o site. Essas notas valem como
síntese de sua concepção do trabalho in situ. Para Serra – como para Robert
Morris e Dan Flavin, por exemplo –, o continente arquitetural deve ser “entendido
como um site no qual eu possa constituir e estruturar espaços disjuntivos e con-
traditórios.”314 O desenho é para Serra um recurso para “sustentar um certo peso
nos limites de um espaço dado”315, mas, para exercer sua função de pondera-
ção, é preciso “definir a forma do
desenho em relação direta com
o solo, a parede, os ângulos e
o teto do espaço.”316 Falando
da exposição Delineator, (Fig.
39)– lembramos, duas grandes
chapas retangulares de aço,
uma posta no solo no sentido
longitudinal, outra pendurada
ao teto, no sentido transversal
–, Serra afirma que se trata de
conseguir honrar um dos desa-
39
fios da relação entre a arquite-
tura e o plano: “as instalações de telas pretas são bem sucedidas quando elas
operam o deslocamento da arquitetura sobre a superfície plana. (grifo nosso)”317
Reencontramos aqui, sintetizada, a dinâmica analisada a propósito das relações
entre pintura, tela e suporte arquitetural nos anos 1915-30, notadamente com
Malevitch.

“Sight/Point 1971-75 / Delineator 1974-76”, entretien radiodiffusé avec Liza Bear, 23 de fev. de
313

1976, in: Idem, p.55-56


314
“Notes sur le dessin” (1987), in: Idem, p.240
315
Idem, ibidem
316
Idem, ibidem
317
Idem, ibidem
A justa ponderação, isto é, o encontro do ponto justo de equilíbrio entre
valências formais – desenho – e valências arquiteturais – espaço de demons-
tração –, é fruto, para Serra, de um trabalho rigoroso. Todo site de uma futura
instalação deve ser rigorosamente experimentado antes de começar a operar.
Serra pergunta:

qual é a superfície realmente necessária para sustentar as formas, como


se fossem pesos, em relação à dimensão do espaço dado? Quais cortes é ne-
cessário fazer operar para desestabilizar a experiência do espaço (grifo nosso)?
[…] As decisões de recorte devem se fundar sobre a experiência real do site da
instalação. […] Ao se trabalhar continuamente durante muitos dias em um espa-
ço, toma-se consciência da maneira de as pessoas atravessarem-no, de como a
luz nele aparece, de como as entradas e as saídas são utilizadas, se é um lugar
de passagem ou de agrupamento.318

E Serra de reiterar um credo das práticas espaciais minimalistas e pós-


minimalistas da época: “ao criar uma disjunção na entidade arquitetural, os de-
senhos chamam a atenção crítica do espectador sobre as características formais
e funcionais da arquitetura.”319
A partir dos anos 1970, Serra procede
a uma mudança de escala. As esculturas na
cidade ou na natureza têm exigências novas.
Elas implicam o corpo na relação de percepção
deambulatória e repousam sobre a categoria
de site em um jogo de revelação e redefinição.
Já com Shift, uma intervenção particularmente
importante num terreno acidentado (King City,
Ontario, Canada, 1970-72) (Fig. 40), a dimen-
são temporal que toda experiência de lugar
implica é ressaltada. Serra justifica a instala-
ção através de uma frase que constitui hoje,
retrospectivamente, um lema incontornável
para explicitar as intenções desse tipo de tra-
balho: “a dialética da caminhada e do olhar na
paisagem constitui a experiência da escultu-
40
ra.”320 A respeito de Shift, Serra dizia:

318
Idem, p.241
319
Idem, p.243
320
“Shift”, Arts Magazine, abril de 1973, in: Idem, p.20-21
queria estabelecer uma dialéctica entre a percepção global do lugar por
um indivíduo e sua relação com o terreno no qual ele se desloca andando. Resulta
uma certa maneira de medir a si mesmo se deparando com a indeterminação do
terreno. […] A intenção da obra é a tomada de consciência física do tempo, do
espaço e do movimento.321

A descrição que Serra faz dos modos de apropriaçõa e experiência tem-


poral e cinética de Shift é um verdadeiro conjunto de complexas coordenadas
geométricas, topográficos e físicas. Amostra:

o próprio plano não obstaculiza a percepção. Quando continuamos a se-


guir a obra no terreno, somos obrigados a nos deslocar, girar com ela e olhar para
trás para ver os escalões da descida. Na medida em que os escalões funcionam
como linhas de horizonte que dividem o horizonte real e tendem a se juntar a ele,
eles funcionam como linhas ortogonais em um sistema de perspectiva. O sistema
espacial do Renascimento depende de medidas fixas e imutáveis. Aqui, os esca-
lões são ligados a um horizonte em contínuo movimento, e, como as medidas,
inteiramente transitivos: eles alçam-se, abaixam-se, estendem-se, reduzem-se,
contratam-se, comprimem-se e transformam-se. A linha como elemento visual
torna-se gradativamente um verbo transitivo. […] Do alto da colina, quando olha-
mos para trás para olhar o vale, as imagens e os pensamentos provocados pela
consciência da experiência que acabamos de viver voltam. É a diferença entre
pensamento abstrato e pensamento da experiência. O tempo dessa experiência
é cumulativo e de evolução lenta. Fazemos a experiência de um gênero novo de
condensação.322

Essa análise de Serra sobre uma de suas intervenções mais importantes


sintetiza perfeitamente o teor da espaçologia problematizada nessa época. O
lugar como verbo. Trata-se, afinal, de site e ainda de site. Serra é preciso a seu
respeito. A leitura dos textos de Serra é muito instrutiva. Se a reflexão sobre o
site é compartilhada por muitos artistas dessa época (Smithson, Buren etc.), a
de Serra tem o mérito de partir de considerações pragmáticas. Relacionar um
trabalho com um site é aprender, antes, a olhar o lugar. Ao mesmo tempo, a re-
flexão sobre o espaço não depende inteiramente dessa relação com os lugares,
a escultura tendo a possibilidade de gerar sua própria espacialidade. No entan-
to, suas tentativas de “estender até o absurdo as possibilidades e a prática da
construção”323, levaram-no, a partir de 1970, a ressaltar a importância de anteci-
par no ateliê um “método de construção [que] repousa sobre uma manipulação

321
Idem, ibidem
322
Idem, p.21-22
323
“Notes depuis Sight Point Road”, Perspecta, The Yale Architecture Journal, Cambridge: The
Mit Press, 1982, citado in: Idem, p.194
efetiva”324 dos elementos da escultura. Assim, na bacia de areia, Serra “simula
um solo plano ou uma elevação de terreno”325, reproduz um terreno a ser inves-
tido ou, inclusive, imagina outro sem relação com qualquer lugar existente. São
exercicios propedêuticos que não podem ser ignorados quando analisamos as
intervenções de Serra na escala superdimensionada dos sites paisagísticos ou
urbanos. Na verdade, confessa Serra, “os dados contextuais de uma obra espe-
cífica a um site ficam problemáticas. O pertencimento específico a um site não
é um valor em si.”326 Isso cerne a dificuldade que toda instalação in situ enfrenta
quando se trata de evitar produzir qualquer tipo de consolidação site specific
da ideologia veiculada pelo lugar. Cair nessa armadilha ou nessa complacência
significa tornar a obra ideology specific: “obras construidas no contexto das em-
presas, das instituições governamentais, educativas ou religiosas, encorrem o
risco de serem lidas como signos dessas instituições.”327 Não existe lugar neutro.
Ao não existir lugar neutro, grande é o risco de a recepção de uma instalação ur-
bana de Serra ser equivocada sobretudo quando, é interpretada como tendo um
carácter de monumento. Suas esculturas não são monumentos porque “não se
referem à história dos monumentos nem pela forma nem pelo conteúdo. Não ce-
lebram a lembrança de ninguém, lugar ou evento algum. Só se relacionam com
a escultura.”328 Serra inverte a situação comum, aquela “cooptação ideológica”
que põe a escultura “a serviço”329 da instituição ao lado da qual ela é instalada.
Se, escreve Serra,

uma obra é substancial com relação a seu contexto, ela não embeleza, não
decora ou chama atenção sobre um prédio particular. Ela tampouco acrescenta a
uma síntaxe pré-existente. No meu trabalho, analiso o site e decido redefini-lo em
função da escultura, e não em função da configuração existente do espaço. Não
tenho motivos para desenvolver as linguagens contextuais pré-existentes.330 […]
O site é redefinido e não re-presentado.331

Essa concepção crítica obriga a proceder a uma análise complexa do


lugar – é a questão da relação com o contexto –, para melhor inventar o “contra-
ambiente” como disjunção, uma noção que já encontramos acima quando se
tratava da relação de peso entre volume exposto e continente arquitetural.

324
Idem, ibidem
325
Idem, ibidem
326
Idem, p.197
327
Idem, ibidem
328
Idem, ibidem
329
Idem, ibidem
330
Idem, p.199-200
331
Idem, p.201
Assim, em Nova York, Saint John’s Rotary Arc, ampla curva de aço corten
de 61 metros de comprimento e 3,66 metros de altura (New York, entre 1980
e 1987) ou Titled Arc (Fig. 41), curva
de aço corten de 36,58 m. de compri-
mento e 3,66 m. de altura, 63,5 mm
de espessura, (New York, 1981, des-
truído em 1989) constituem barreiras
fisicas que, ao determinar uma reconfi-
guração da percepção do lugar, agem
como tantas traduções das injunções
verbais contidas na famosa lista de
verbos que Serra redigiu em 1967 para
ampliar consideravelmente a prática
e o conceito da escultura. São verda-
deiros processos heterotópicos que as
esculturas urbanas de Serra realizam.
Elas trazem uma forma de disjunção
no espaço de sua instalação, mas uma
disjunção paradoxal porque ela não
41
significa separação ou discriminação
entre o dispositivo plástico e o ambiente de sua instalação e do público. Com
efeito, a plena consagração da rejeição do pedestal já realizada na obra de
Brancusi, no minimalismo de Judd e Morris etc., significa que, ao ser instalada
no solo mesmo, em contato com o nível do deslocamento pedestre, a escultura
não cumpre mais sua velha função de “separação do espaço comportamental do
espectador”332, pondo assim o corpo inteiro à prova do ambiente total. Esse co-
locar o corpo à prova do ambiente implica uma dimensão de resistência e inten-
sidade singulares do dispositivo instalado por Serra, seja em âmbito arquitetural,
seja em âmbito urbano (praças, giratórias, passagens etc.). Disjunção, portanto,
significa criação de “anti-ambientes”333, isto é, instalações em geral monumentais
que escapem à categoria do design urbano, que não satisfaçam a necessidade
de “reforçar o statu quo da estética existente”334, que escape ao “risco de ser(em)
cooptada(s)”335 pelo prédio vizinho. Como diz Serra, “se a escultura tem qualquer
potência, é a de criar seu lugar e espaço próprios e, por assim dizer, de por-se

332
“Propos sur le dessin”, entretien avec Lizzie Borden, Amsterdam, Stedelijk Museum, 1977, in:
Idem, p.80
333
“Levage et montage”, Cover, jan.1980, in: Idem, p.137
334
Idem, ibidem
335
Idem, p.138
opondo-se.”336
A relação é complexa mas ela responde bem à definição do in situ: de-
codificar o site através da obra, “apesar de a escultura em nada descrever ou
depintar o site”337, o que corresponde à diferença que Jean-Marc Poinsot faz
entre in situ e site specificity, esta não levando a relação dialética — ou disjun-
tiva, como diz Serra — tão longe quanto o faz o in situ, com Daniel Buren, por
exemplo. Conforme a dinâmica de e-vide-nciação ou de colocação em vista do
núcleo crítico e semiológico próprio ao trabalho in situ, essa decodificação signi-
fica a passagem e a apropriação das relações que as esculturas de Serra “man-
têm com os significantes urbanos”338, em termos de “relações de dimensão, de
escala, de posição e de estrutura.”339 Poderìamos dizer com Douglas Crimp que
as esculturas de Serra o levaram de “situações” plásticas a questões de site e
ambientes já contidas virtualmente nas primeiras. Ao mesmo tempo, se a pas-
sagem das primeiras para as outras tem a ver, como diz Serra, com o trabalho
de Casting sobre o ângulo e com a extensão dessa experiência na exploração
da capacidade estruturante do ângulo em Circuit, por exemplo, fica claro que as
convergências com a arquitetura existem. Mesmo que Serra insiste, por razões
profissionais, críticas, políticas e polêmicas em dizer que a escultura é não-utili-
dade e que a arquitetura sempre obedece a finalidades funcionais, ele reconhe-
ce que “o resultado de [s]eu trabalho sobre diversos problemas da escultura”340
depende em parte do fato de que “certas de [suas] preocupações podem ser
vinculadas a princípios arquitetônicos – a geometria, a engenharia, a utilização
da luz para determinar um volume”341 —, as obras propriamente ditas não tendo,
contudo, “valor utilitário ou pragmático algum.”342
A relação de submissão ao contexto, que Serra condena, é resumida por
ele na sua conversa com Peter Eisenman, onde diz que aquilo que os arquite-
tos
chamam de contextualismo, chamo-o de afirmação em forma de justifica-
ção social. Para os ‘contextualistas’, construir especificamente para o site signi-
fica analisar o contexto e o conteúdo da situação cultural local, e concluir que é
preciso manter o statu quo. É assim que eles procuram o sentido. […] Não me
interessa a afirmação.343

336
Idem, p.137
337
Entretien avec Douglas Crimp, Arts Magazine, nov.1980, citado in: Idem, p.176
338
Idem, p.175
339
Idem, ibidem
340
Entretien avec Liza Bear, New York, 30 de março de 1976, in: Idem, p.69
341
Idem, ibidem
342
Idem, ibidem
343
Entretien avec Peter Eisenmann”, Skyline, The Architecture and Design Review, New York,
april 1983, citado in: Idem, p.223
À pergunta de Eisenman se existiria uma “noção específica de escala,
inerente aos conceitos da escultura”, Serra responde que ela é “ligada ao site e
ao contexto.”344 Encontramos aqui a versão serrana da reflexão dos artistas nor-
te-americanos dessa época sobre essa categoria. Serra pensa que

a noção de escala não diz respeito apena às interrelações entre as partes


de uma escultura, mas também às relações da escultura com seu contexto, o que
é o mais importante. O contexto tem seus limites, e é com relação a esses limites
que a questão da escala se coloca.345

Essa relação de escala com o contexto faz Serra afirmar que não é pos-
sível deslocar sem conseqüências negativas uma escultura de um site para ou-
tro:

não se pode construir uma obra em um contexto, colocá-la sem discrimi-


nação em outro, e esperar que a relação de escala se conserve. A escala depen-
de do contexto. É por essa razão que deslocar objetos transportáveis de um lugar
para outro leva na maioria dos casos a um fracasso.346

Esse diagnóstico leva Serra a criticar o processo do projeto em arquitetu-


ra, quando acrescenta imediatamente depois:

os arquitetos sofrem do mesmo síndrome do atelier. Saem de seu escri-


tório, aterram a paisagem e colocam suas construções no site que eles cavaram.
O resultado é que os prédios desenhados no atelier e ajustados ao site parecem
com modelos de papelão que ter-se-ia podido inflar como balões.347

Isso justifica a necessidade de o artista que critica a atuação dos arquitetos


ser exigente consigo mesmo. Existe potencialmente um conflito entre arquitetura e
arte. Ele obriga o artista a assumir uma posição responsável. Qual é a situação?
Quando a escultura entra no reino da não-instituição, quando ela deixa
a galeria ou o museu para ocupar o mesmo espaço e o mesmo lugar que a ar-
quitetura, quando ela redefine o espaço e o lugar em função de necessidades
esculturais, os arquitetos ficam zangados. Não só seu conceito de espaço sofre
mudanças, mas é na maioria das vezes criticado. 348

344
Idem, p.221
345
Idem, ibidem
346
Idem, p.221-222
347
Idem, p.222
348
Idem, ibidem
A crítica, diz Serra, obriga o artista a ocupar não só o mesmo terreno urba-
no que os arquitetos, mas sobretudo, o mesmo terreno processual e conceitual:
“a crítica pode ser efetiva só se são utilizados a escala, os métodos, os procedi-
mentos e os materiais arquiteturais (grifo nosso). Isso provoca comparações.”349
Serra afirma a necessidade de passar pela linguagem criticada para acertar a crí-
tica que uma disciplina, com suas propriedades, endereça à primeira. É preciso
um certo devir-arquiteto do artista, ou mais exatamente, um devir-arquitetônico
da arte plástica, aqui a escultura, para que a critica seja conseqüênte. Já lemos
em epitáfio desse livro a frase-chave, do ponto de vista epistemológico: “cada
linguagem tem uma estrutura própria que não é criticável de dentro. Para criticar
uma linguagem, é preciso uma segunda que seja em relação com a estrutura da
primeira, mas que possua uma estrutura nova.“350 É exatamente o que, analisan-
do as conquistas formais do cubismo, Malevitch já ressaltava em 1919… Para
Malevitch, o empréstimo a fontes outras permitia abrir a pintura tanto a seu fora
quanto à sua autonomia. No caso de Serra, essa afirmação é feita no contexto
de uma tomada de posição frente à arquitetura da cidade, a resposta feita por ele
a Eisenman retomando de maneira quase idêntica os termos de um texto publi-
cado um ano antes no Yale Architecture Journal, onde dizia mais sucintamente:
“é preciso outra linguagem, que trata da estrutura da primeira e que possua uma
estrutura nova para criticar a primeira.”351
Essa frase é fundamental. Ela delineia o espaço de trabalho de muitos ar-
tistas dos anos 1960 e das décadas posteriores que, através de um uso estratégi-
co de recursos formais e analíticos compartilhados com a arquitetura, toma(ra)m
como objeto de reflexão e produção a arquitetura, a cidade. Esse procedimento
era a única possibilidade de a arte poder criticar seriamente a arquitetura. Além
de trazer inúmeros ganhos para a crítica arquitetural, tal procedimento permite
reverter a situação de uma arquitetura que, muitas vezes, só pensa a arte como
fonte de esteticização do contexto arquitetural, o que Serra critica. É na mesma
lógica que Dan Graham ou Oiticica trabalham.

349
Idem, ibidem
350
Idem, ibidem
351
“Notes depuis Sight Point Road”, Perspecta, The Yale Architecture Journal, Cambridge: The
Mit Press, 1982, citado in: Idem, p.201
Capítulo XI
“Ex-situ”, And-re/ar

As questões assim levantadas levam naturalmente à problemática do lu-


gar e à tese que Thierry de Duve defende quando toma como hipótese que
a escultura desde o fim dos anos 1960 seria “uma tentativa de reconstituição
da noção de site dentro da constatação de seu desaparecimento.”352 A cultura
moderna teria concretizado o desaparecimento da “harmonia” entre “o lugar, o
espaço e a escala”353, harmonia que só pode garantir a existência de verdadeiros
sites ontológica, simbólica e efetivamente completos. Lugar, espaço e escala
são definidos respectivamente por de Duve como “a ancoragem cultural no solo,
no território, na identidade […], o consensus cultural acerca da grade perceptiva
de referência […e] o corpo humano como medida de todas as coisas.”354 Frente
a uma situação de impossibilidade para essas três categorias de se mesclarem
para propiciar as condições de possibilidade de qualquer site total e sem res-
to, de Duve propõe como hipótese de trabalho demonstrar como só é possível
estabelecer a soledariedade entre dois desses termos através do sacrifício do
terceiro, ex situ significando, portanto, a instância crítica de reconhecimento da
impossibilidade de manter unidos o lugar, o espaço e a escala, e, portanto, uma
gestão de três soledariedades dependendo do elemento que for sacrificado.
De Duve parte da idéia de que a arquitetura e o urbanismo moderno, o de
Le Corbusier e da Carta de Atenas, representaram uma forma de sacrifício do
lugar, de rejeição do vernacular, do enraizamento local, e a ilustração de uma
vontade manifesta de de-localização e des-territorialização, soluções ditas uni-
versais devendo e podendo valer em qualquer lugar. São esses postulados que
um artista como Dan Graham, por exemplo, toma como objeto de reflexão e crí-
tica artística muito mais tarde, nos anos 1970-80, quando se “ataca” aos reflexos
norte-americanos do Estilo Internacional e aos fracassos do urbanismo moderno.
A constatação do fracasso modernista no que diz respeito ao lugar e sua identi-
dade constitui uma condição de possibilidade e de entendimento do trabalho de
Dan Graham, situado que é na interface escultura/arquitetura. Os dispositivos
em forma de simili-objetos em Estilo Internacional trazem ao público estruturas
especulares ambíguas. Dan Graham tomou “emprestado” o caminho da arqui-
tetura para melhor estruturar suas intervenções críticas. Começou com uma crí-
tica do desvio da arquitetura moderna pela sociedade capitalista publicando no
Artsmagazine em 1966, “Homes for America”, onde, ao tratar da moradia em

DE DUVE, Thierry, “Ex situ”, Cahiers du Musée National d’Art Moderne, nº27, Paris: Centre
352

Georges Pompidou, 1989, p.39


353
Idem, ibidem
354
Idem, ibidem
série dos pavilhões de periferia todos iguais, ele acabava, através do suporte jor-
nal, por antecipar as estratégias da arte conceitual que iria nascer nesse mesmo
momento, propondo uma outra noção de espaço e arquitetura que fosse justa-
mente a da construção da informação na mídia. Do ponto de vista intra-artístico,
seus Pavilhões (Fig. 42) são uma forma de escultura à escala arquitetural como
também reenvios ao Pavilhão de
Escultura de Rietveld no Museu
Kröller Müller em Otterlo ou ao
cinema de Johannes Duiker em
Amsterdam. São também um ex-
celente exemplo de reenvio ao mo-
biliário urbano dos centros comer-
ciais, paradas de ônibus, abrigos
municipais etc., a contextos urba-
nos como os parques paisagísti-
cos e de diversão. Estratégicos, 42

seus Pavilhões encenam mecanismos mixtos de espelhamento meio-transpa-


rentes meio-refletores, instaurando uma interface vidente/visto. As superfícies
vidráceas meio-reflexivas meio-transparentes dos Pavilhões são um fator de
objetivação do sujeito ao mesmo tempo que instituem uma situação mais cole-
tiva e intersubjetiva. Geradas pelo espelho, as situações cinemáticas instalam
armadilhas para a percepção e a auto-percepção, espaços de capacitação local,
aproveitando a denúncia da falsa transparência ideológica. Dan Graham diz a
seu respeito:

este tipo de espelho transparente, simples e dupla-face, tornou-se familiar


quando, na linha da Bauhaus, sua utilização foi sistematizada para os prédios de
escritórios e nos centros das cidades, a título de elementos significantes de uma
arquitetura tornada depois um estilo internacional. Se uso os espelhos em relação
com a transparência do vidro, é porque me interessei muito na ‘paisagem’, nas ja-
nelas de exposição, na noção de vitrine. Desde meus primeiros filmes e trabalhos
com o vídeo, minha intenção foi de fazer da percepção do espectador, quando
estiver ele mesmo em relação com outros espectadores, o objeto principal da
minha obra. Pôr o espectador em posição de objeto, de tal maneira que ele tome
consciência de seu estatuto de sujeito perceptivo – criar assim uma relação inter-
subjetiva, por exemplo, entre dois públicos observando-se um o outro de maneira
conjunta.355

“Dan Graham, a modern archeology perception”, interview by Paul Ardenne, Art Press, nº178,
355

march 1993, p.12-13 e E3.


A maneira de Dan Graham recriar uma dinâmica local depende precisa-
mente da capacidade de esses espelhos paradoxais refletirem tanto as pessoas
de cada lado deles como também o ambiente próximo. Assim, diz o artista, “você
reintroduz no espaço derivado do Renascimento que o espeho é, um fluxo tem-
poral e uma relação visual diferente no interior e no exterior.”356 A temporalidade
entra como fator de duração para um lugar que só dessa maneira pode reinstituir
uma localidade…, um site. Na verdade, é o espectador que faz o site, o especta-
dor sendo para ele um corpo em movimento, portador de sua geometria própria,
objeto e sujeito perceptivo do espaço mais vasto do ambiente onde está situado.
Em 1976, Public Space/Two Audiences, conforme a escolha de o público se
aproximar mais da parede branca ou da parede espelho, ambas refletidas por
uma parede de vidro que divide o espaço em duas partes simétricas de cada lado
dela, leva o espectador a ser observador ou observado e a tomar consciência
dos efeitos psicológicos e relacionais que o dispositivo induz. Cinema, de 1981,
é outro exemplo notável do trabalho de Graham sobre a dinâmica espacial dos
olhares subjetivos e de suas trocas incertas mas inelutáveis, condição de anima-
ção e reafirmação da complexidade de certos fenômenos locais suscitados pela
operação artística. Ainda é a identificação do espectador que Graham procura.

O outro artista escolhido por Thierry de Duve é Gordon Matta-Clark artista


que, ao desconstruir edifícios, exhuma-lhe o passado e retira seus tumores pos-
teriores. Trata-se em ambos os casos de apontar para os fracassos do projeto
moderno a partir da constatação da perda do lugar. Assemelha tais gestos à
heterotopia contra-utópica segundo Foucault. A síntese que Thierry de Duve faz
da obra de Graham e Matta-Clark merece longa menção:

com Dan Graham, o espaço e a escala não são mais dados naturais ou a
priori evidentes e que fundam uma harnonia. Pelo contrário, essas noções são
fortemente refletidas e como que citadas pela função histórica que elas desem-
penharam e a promessa que elas não podem mais cumprir. O espaço urbano de
Dan Graham não é mais o espaço utópico do Plan Voisin, é sua degenerescência
em periferia americana. […] A obra tem sentido crítico só se for feita para não ser
construída. […] A escala adquire importância nova: é a escala da maquete que
— Dan Graham insiste — deve ser posta à altura dos olhos como se a habitásse-
mos. Quanto ao lugar, ele é ao mesmo tempo inexistente, projetado em um futuro
que esperamos ser irrealizável […] As obras de Gordon Matta-Clark acabam tam-
bém por aterrizar na galeria na forma de fotografias. Mas o lugar concreto de cujo
elas são o rastro indicial existiu (e) não existe mais. […] Enfim, o espaço urbano
de Matta-Clark é o espaço que a anarquia imobiliária destrói a cada dia e de que

356
Idem, p.13 e E3
o artista mal consegue retardar a destruição.357

Após a análise de Graham e Matta-Clark, Thierry de Duve passa à tríade


conceitual que cria uma conexão entre lugar e escala, mas sacrifica o espaço.
Escolhendo seus exemplos em Barnett Newman e Tony Smith, ele começa ana-
lisando Here I (1962-71, bronze, 2,67 x 0,70 x 0.67 m.) e Here II (1965, aço, 2,80
x 1,97 x 1,27 m.) de Newman. Here I, inspirada em um site bem particular, alguns
túmulos de índios do estado do Ohio, procura suscitar uma impressão análoga à
do site em questâo, isto é, oferecer uma presença tão forte que leva a “esquecer”
a paisagem e o espaço em torno. Here II , diz de Duve, acerta melhor o trabalho
de substração ou de retirada da própria obra do espaço ambiental, afim de mag-
nificar o Aqui da presença. Parecendo levitar graças ao fato de as três colunas,
com seus pedestais tronco-piramidais, serem postos acima de uma placa de aço
cortada de maneira irregular cuja face inferior contem rodinhas permitindo-lhe
estar acima do solo, Here II é apresentada por de Duve como uma escultura que
pode transportar seu lugar consigo mesmo, lugar completo e total que não depen-
de de sua relação com um site específico, já que como lugar ela se institui como
site por inteiro. Recriar algum site através da força de afirmação e presença de
um Aqui independente do resto espacial seria também um gesto característico
da escultura de Tony Smith. Como Newman em Here II, Smith retiraria ao homem
seu espaço e seu ambiente para confrontá-lo à transcendência. As análises que
Georges Didi-Huberman fez em O que vemos o que nos olha sobre o minimalis-
mo e notadamente Die (1962,
aço, 1,83 x 1,83 x 1,83 m.) e
The Black Box (1961, madeira
pintada, 57 x 84 x 84 cm.) de
Tony Smith não podem ser re-
petidas.358 De Duve, escreven-
do seu artigo antes dele, afir-
ma que a relação de proporção
entre o tamanho do cubo (Die)
(Fig. 43) e a do corpo humano,
focaliza este em uma instância
onde Smith tentaria articular a
necessidade de algo que tives-
se a dignidade de um site, sem
43 contudo fazer nenhum tipo de

357
DE DUVE, Thierry, “Ex situ”, Cahiers du Musée National d’Art Moderne, nº27, Paris: Centre
Georges Pompidou, 1989, p.44
358
DIDI-HUBERMAN, Georges, O que vemos, o que nos olha, São Paulo: ed. 34, 1998. (trad. do
francês de Paulo Neves)
concessão à demanda de instituir uma relação entre o dispositivo artístico e seu
entorno ou espaço de inserção e interação, como o exigiria a realização de um
site verdadeiramente motivado por uma visada espacial mais global e ambiental.
Em Smith, é de dentro de suas coordenadas que o espaço se ergue. Não é o es-
paço que, em qualidade de circundante, traria desde as margens do dispositivo
algo que este precisaria para estruturar sua pulsação interna. É precisamente a
pulsação interna, já total em si, do dispositivo, que condiciona o jogo de dimen-
sionamento situacional, sujeito a um trabalho de concentração dentro do dispo-
sitivo, essa concentração amparando, do ponto de vista conceitual, a colocação
do espectador frente à questão de sua situação e a seu estatuto de existente.
Ao descrever les For Pieces de Smith, datadas de 1969-71, Jean-Pierre
Criqui escreve que elas ajudam a entender “a maneira de definir esculturalmente
ou articular um lugar.”359 Os pontos que Smith levanta quando fala da instalação
das For Pieces (Fig. 44)
— argumentos que valem
também plenamente para
os Ten Elements dos anos
1975-79 (madeira pinta-
da, dimensões variáveis,
cerca de 1,22 m. de altu-
ra) — interessam mesmo
para entrar na lógica do lu-
gar que o artista trabalha.
Contrariando a idéia de
dispersão, vemos Smith 44

falar de disposição do conjunto das peças sobre uma grade diagramática prévia,
de seu desejo de elas serem “paralelas ou perpendiculares a qualquer esque-
ma arquitetural pré-existente”360, de ele, como artista, “sempre arranjá-las”361,
de o espaço entre elas ser percebido ao mesmo tempo que sua participação a
um espaço contínuo… Como dissemos, esses princípios organizacionais valem
totalmente para Ten Elements, que adota a tipologia do labirinto, paradigma ar-
quetipal da categoria de lugar, num sentido ativo e dinâmico. Com o labirinto,
configuração privilegiada na obra de Smith, o lugar faz espaço. É lugar no ato
de constituir sua singularidade espacial. O labirinto é condição de possibilidade
de determinar e (des)orientar uma experiência física e mental do espaço. Ele é
o espaço se constituindo em ato. Ele é distribuição, repartição e estruturação

359
CRIQUI, Jean-Pierre, “Dédale, architecte et sculpteur”, in: Architecture et art, (dossiê),
L’architecture d’aujourd’hui, n°286, abr. de 1993, p.43
360
Idem, ibidem
361
Idem, ibidem
de suas forças. Nesse sentido, reencontramos aqui categorias conceituais que
Oiticica trabalhava, num modo que nos pareceu mais completo e orgânico, no
seu Parangolé.
O que levava Tony Smith, arquiteto e escultor, a eleger o labirinto como
matriz da experiência do espaço é sua qualidade de poder ser penetrado, de
delimitar um lugar — lugar, faculdade de situação e singularização do espaço
—, de oferecer potencialidades de deslocamento. Smith escrevia: “a busca do
centro do labirinto, ou a da solução para dele sair, sempre me pareceram despro-
vidas de interresse. Minha experiência com tais figuras se situa no nível intuitivo
e emocional, sem análise racional, até sem análise alguma.”362 Smith acrescenta
inclusive que o labirinto é a figura do desmoronamento dos esquemas inteletu-
ais:

em termos formais como simbólicos, os labirintos reenviam a um desaba-


mento do inteleto e da vontade. As imagens ou as lembranças mais antigas que
se relacionam com ele para mim não têm fundamento conceitual algum.363

A terminologia adota por Smith é interessante porque ela faz da experiên-


cia labiríntica uma situação que gera uma perda dos esquemas cognitivos forja-
dos pela inteligência racional, para devolver o seu habitante à sua condição de
corpo esthesiológico. Ela poderia nos reenviar à diferença derridiana entre ergon
e energeia, quando vemos Smith dizer que “apesar de sua geometria, minhas
peças flertam com o inconsciente. Por um lado, minha obra é clareza, por outro,
ela é caos, imaginação.”364 Na prática de Smith, estamos dentro de uma arte que
sutiliza de certa maneira o que constitui seu entorno físico e que tenta condensar
na sua realidade plástica o real que a cerca. Isso representa um dos aspectos
da relação que a arte dos anos 1960 tem estabelecido com o real ambiental ou
environment.

Para orientar seu trabalho na constituição de dispositivos “escultóricos”


sobre grades espaciais, Smith devia sem dúvida saber o que ameaçava a dilui-
ção da performance estética. Fazemos aqui alusão à sua famosa experiência de
um espaço em plena deriva, como conta o caso seguinte:

era uma noite sombria, e os lados da estrada não tinham nem iluminação
nem sinalização, nem linhas brancas nem barreiras de segurança, nem nada que
seja, nada senão o asfalto que atravessava uma paisagem de planicies cercadas
por um cenário de colinas, mas puntuada de chaminés de fábricas, de pilones,

362
SMITH, Tony, citado in: Idem, p.45
363
Idem, ibidem
364
Idem, p.44
de fumaças e de luzes coloridas. Este percurso foi uma experiência reveladora. A
estrada e a maior parte da paisagem eram artificiais, e no entanto, não se podia
chamar isso de obra de arte. Por outro lado, eu sentia algo que a arte nunca me
tinha dado a (possibilidade de) sentir. Nao soube o que era, mas isso me liberou
da maioria das opiniões que eu tinha a respeito da arte. Havia lá, parece, uma
realidade que não recebia na arte nenhuma expressão. Certo, a experiência da
estrada constituia algo indefinido, mas que não era socialmente reconhecido. Eu
pensava em mi mesmo: claro que é o fim da arte.365

Do ponto de vista das categorias estéticas em jogo, essa citação é fas-


cinante. Ela aponta para a perda dos parâmetros morfológicos — o espaço do
deslocamento, a estrada, sendo desprovido de qualquer marcador — e o impac-
to dessa diluição na percepção. A beleza da situação, por assim dizer, consiste
também no fato de que os artifícios industriais que ladeam a estrada solicitam no
espírito de Smith a memória das categorias fundadoras que seguram a solidez e
a manutenção do conceito de arte — os artíficios da produtividade humana que
constituem o domínio da arte. Mas, ao surgir como paradigmas a partir e através
dos quais seria possível receber, se apropriar e enquadrar os elementos encon-
trados, esses elementos permitem revelar que sua evocação significa ao mesmo
tempo sua obsolescência e morte instantâneas. Na conflagração gerada pela
situação inusitada, as categorias artísticas se vêem imediatamente superadas
porque a tonalidade da realidade intuida, por jamais ter sido exprimida pela arte,
prova simultaneamente sua impossibilidade atual de afrontar o desafio encon-
trado, ao mesmo tempo que faz surgir dos escombros da arte um possível, mas
totalmente indeterminado, programa de ampliação e exploração estética.
O horizonte dessa experiência é o de uma des-articização favorável a uma
reesteticização em um campo de maior abrangência. Para este surgir no espírito
de Smith, era preciso uma experiência estética que pudesse “liberar” da arte e
superá-la, passar por uma situação estética na qual as categorais artísticas não
pudessem mais sustentar a tradicional operação de atribuição dessas categorias
à experiência em questão. Era preciso ver essa operação impossibilitada para
que a dimensão estética além-da-arte pudesse ser relançada no novo espaço
dos sentidos e do sentido. Portanto, por que não imaginar que o trabalho artístico
poderia tomar como meta a exploração das possíveis modalidades de se apro-
ximar do núcleo crítico em jogo? Pensamos que certos trabalhos de Carl Andre
– evocado por Thierry de Duve no seu artigo como exemplificação do sacrificio
da escala na impossível reconstituição ex-situ de um site perfeito –, represen-
tam uma ilustração dessa tentativa de pensar uma expansão da arte para seus

365
SMITH, Tony, in: S.Wagstaff Jr., “Talking with Tony Smith”, Artforum, vol.5, nº4, dec.1966, ci-
tado in: FRIED, Michael, “Arte e Objetidade” (“Art and Objecthood”, Artforum, june 1967), in: a &
e.Arte & Ensaios, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA - UFRJ, ano IX,
nº9, 2002, p.138 (trad. do inglês por Milton Machado)
confins. A lição que se depreende de Andre é
a de um artista que, ao levar às suas últimas
conseqüências as acquisições da escultura
de Brancusi acerca do pedestal, abandona do
mesmo gesto a “escultura” em certas de suas
obras. As duas obras escolhidas por de Duve
representam perfeitamente a assimilação por
Andre da lição brancusiana. Se os soclos su-
perpostos da Coluna sem fim de Brancusi (em
Tirgu Jiu, na Romênia, 1937) representam o
derradeiro refúgio da autonomia da escultura,
Andre vai renunciar a ela. Ele deita literalmen-
te a Coluna, em Log Piece (Fig. 45) (Aspen,
Colorado, 30,5m, 1968) ou Secant (Roslyn,
New York, 100 seções de vigas de madeira de 45

pinheiro Douglas, 30,4 x 30,4 x 91,4cm cada viga, 30,4 x 30,4 x 91,4m o conjun-
to, 1977). Richard Serra ressitua bem o trabalho de Andre quando escreve:

uma unidade modular que se desenvolve acima do nível do olhar amassa-


se ao alçar-se, quando a unidade modular horizontal supõe um ponto de vista ao
infinito. É tão simples quanto a diferença entre Mantegna e Uccello.366

Se, como diz Serra, o trabalho modular no eixo vertical ou no eixo hori-
zontal remetem a “concepções de nossa vida”367, a concepção que Andre tem
do lugar não está muito distante do núcleo de questões levantado pela experi-
ência noturna de Tony Smith. Em Log Piece ou Secant (Fig. 46), espaço e lugar
perderam sua verticalidade, isto é, a referência à estatura transcendente do ho-
mem. O homem pisa, anda, preso e fadado à horizontalidade do mundo. Aqui,
como comenta de Duve em uma frase que pode remeter tanto à experiência de
Smith quanto às peças de Andre aqui mencionadas, “o espaço planimétrico do
urbanismo […] se reduz à linearidade de uma estrada ao mesmo tempo que o
lugar se abstrai e se generaliza na indiferença nômade de uma autoestrada.”368
Na definição que Andre dá do lugar — “um lugar é uma área em um ambiente,
que foi alterada de maneira a tornar o ambiente geral mais perceptível“369, defi-

366
“Entreteien avec Friedrich Teja Bach”, 14 de março de 1975, in: SERRA, Richard, Écrits et
entretiens 1970-1989, Paris: daniel lelong éditeur, 1990, p.45 (trad. de Gilles Courtois)
367
Idem, ibidem
DE DUVE, Thierry, “Ex situ”, Cahiers du Musée National d’Art Moderne, nº27, Paris: Centre
368

Georges Pompidou, 1989, p.53


ANDRE, Carl, citado in: LIPPARD, Lucy, Six Years: the Dematerialization of the Art Object,
369

New York: Praeger, 1973, p.47


nição básica, que as especulações de Serra, por exemplo, enriqueciam muito,
e que converge na mesma direção daquela ressaltada por Anne Cauquelin na
sua definição do site, no capítulo IX —, podemos entender como a estrada é,
de certa maneira, análoga ao Riss heideggeria-
no, o traço inaugural e diferenciador (no âmbito
mais pragmático de suas intervenções urbanas,
Serra fala em “encetar uma topografia dada”). A
reflexão sobre a perceptibilidade do espaço leva
Andre a afirmar logicamente que a “escultura ide-
al é uma estrada”370… Espaço é a linearidade de
uma estrada, lugar cuja generalização significa
que perdeu seu caráter local e sedentário. Carl
Andre propõe: “a posição do artista engajado é
de correr ao longo do solo.”371 Definição incrível,
que transforma a escultura em puro motor per-
formático de deslocamento horizontal e vetorial.
A escultura como cinetismo, eis uma concepção
que transforma-a em puro tempo. Sem dúvida,
a concepção que Andre tem desse espaço-lugar
no qual a relação de escala é sacrificada, é pa-
radoxal: se os percursos a pé de Richard Long
46 ou Hamish Fulton desde os anos 1970, marcam
o território através dos dispositivos matéricos de atestação das longas caminha-
das geométricas que ele realizam em grandes espaços inóspitos do planeta,
territorializando também as ações através de um complexo e rico sistema de
documentação (foto-)gráfica, os fluxos segundo Andre, emblematizados por Log
Piece ou Secant, nos levam do lado de uma pura desterritorialização virtual.
Nesse sentido, é importante ressaltar que, a partir de 1968, eles revelam uma
diferença com os dispositivos “minimalistas” do mesmo artista em volta de 1966:
estes trabalhavam a desorientação receptiva e interpretativa do espectador fren-
te a “esculturas” reduzidas à soma geométrica de fimas placas de metal no chão
para configurar um xadrez enigmático, mantendo contudo os condicionantes
dessa desorientação dentro de um território bem delineado. Assim como pode-
mos dizer com Lacan que a manifestação da linguagem é que ça parle (id fala),
podemos dizer que a escultura ideal segundo Andre é que ça flue, id flui, flui…
A escultura não filtra mais os vetores do espaço, ela é movimento contínuo, em
potência de forma. Movimento é este em-potência-de-forma, mas na afirmação

ANDRE, Carl, citado in: WALDMAN, Diane, Carl Andre, catálogo de exposição, New York, The
370

S.R.Guggenheim Foundation, 1970, p.19


371
Idem, ibidem
de uma impossível situ-ação ou melhor dito, o lugar como pura virtualidade, grau
zero da perceptibilidade. Nasce dessa situação um ambiente, um environment.
Para finalizar, poderíamos nos perguntar se o trabalho de Richard Serra
seria sucetível de se encaixar na grade construída por Thierry de Duve. A nosso
ver, não. É bem na relação in situ com um site propiciando a totalidade de seus
componentes, isto é na relação entre um site no qual as categorias de lugar,
espaço e escala são sempre-já dadas e incontornavelmente reunidas, que o tra-
balho de Serra se situa. É exatamente da necessidade de entender, através da
dinâmica disjuntiva, tal ou tal lugar na sua relação com seu “environment” espa-
cial, que tratam as intervenções e situações esculturais e tectônicas de Serra. É
claro que o fazem através da disjunção, mas a tensão aqui não leva ao sacrifício
de uma das categorias cuja ligação orgânica constitui o site verdadeiro e pleno
segundo Thierry de Duve. Só um levantamento analítico de todas as coorde-
nadas espaciais e categoriais propostas por um lugar de intervenção poderá
transformá-lo num site de-clarado – no sentido da di-chiara-zione em Vasari, o
devir-claro da situação imagética ou artística –, isto é, um site tornado perceptí-
vel, posto em relevo, salientado, através da força da disjunção e da crítica. Mas,
de certa maneira, vemos que as práticas que são habitualmente chamadas de in
situ, site specific ou aquelas que De Duve reinterpreta com a categoria instigante
de ex-situ, acabam convergindo na produção reflexiva de formas diversas de
heterotopia, onde a integração do dispositivo artístico e do corpo que o percebe
e que dele conhece, sempre accareta uma experiência problematizante e dis-
juntiva com o site em questão. É tudo, menos a segurança que a confirmação do
statu quo traria para o receptor.
Capítulo XII
Caixas-de-sentir, corpo-volume

A arte que bate no seu corpo - eis a arte.


O seu ambiente - eis a arte.
Os ritmos psicofísicos - eis a arte.
A vida intra-uterina - eis a arte.
A supra-sensorialidade - eis a arte.
Imaginar - eis a arte.
O pneuma - eis a arte.
A apropriação de objetos e de áreas - eis a arte.
O puro gesto apropriativo de situações humanas ou vivências poéticas - eis a arte. 372

Frederico Morais, excertos do Manifesto do Corpo à Terra, 1970

Em um artigo do Correio da manhã do 7 de maio de 1967, Mário Pedrosa


sublinha que a arte brasileira da década de 1960 se mostra grande produtora
de “caixas”, um fenômeno que lhe faz dizer que “já se tornou moda no Brasil, ou
melhor, atestado de vanguardismo produzi-las.”373 Ele escreve:

tais reflexões [a tendência de todos nós andarmos a procurar pre-


cedentes e antecedentes às manifestações artísticas] me vinham a propósito de
certa ciumeira que anda por aí concernente à ‘descoberta’ ou uso de ‘caixas’ ou
de ‘continentes’ em substituição do quadro na pintura. (Cronologicamente, creio
que Ferreira Gullar foi o primeiro a conceber um invólucro, um cubo para a pala-
vra, poesia, quando criou a teoria do ‘não-objeto’) […] Não se pode reduzir a dé-
marche essencial dos artistas que acabaram descobrindo o continente sob forma
de caixa para suas lucubrações plásticas e uma predileção externa pela forma em
ângulo reto das caixas.374

É no mesmo jornal, duas semanas depois, que Pedrosa volta a falar de


caixas, finalizando seu artigo por uma evocação política das Caixas de Morar de
Rubens Gerchman. É precisamente nessa estética do artista carioca, e notada-
mente em trabalhos apresentados na IX Bienal de São Paulo, como Casa Corpo

MORAIS, Frederico, “Do corpo à terra”, in: catálogo Neovanguardas, Museu da Pampulha, 23
372

de dezembro de 2007 a 16 de março de 2008, Belo Horizonte, 2008, p.31 e 33


PEDROSA, Mário, “Um passeio pelas caixas no passado”, in: Mundo, homem, arte em crise,
373

São Paulo: Perspectiva, 2a edição, 1986, p.154


374
Idem, p.153-55
(Fig. 47) (1967), que encontramos uma
exemplificação das várias manifesta-
ções artísticas que, com Lygia Clark e
Oiticica – lucidamente analisados pelo
crítico - constituem uma parte significati-
va da estética vanguardista do Brasil na
47 hora da (re)definição de seu programa
estético e cultural em volta de 1967. Rubens Gerchman fez propostas de Caixas
de Morar (Fig. 48) bastante simples para, sem dúvida, reenriquecê-las em vi-
vência sensorial. Na Bienal de 1967, as tendas vo-
lumétricas vestidas pelo público propunham uma
“participação” estética – Pedrosa problematiza com
insistência no mesmo ano a mudança de conceito
de obra e de público – e uma experiência plasmáti-
ca. Eram estruturas ovoídes ambulantes nas quais
o espectador ou um casal penetrava, encontrando-
se sem visão clara do exterior, mas devolvido à sua
consciência sensorial. 48

Antes de apresentar outros exemplos que se situam nessa linha, formu-


lamos a questão, um pouco solene, que essas estéticas da caixa nos parecem
justificar: “em arte, até onde vai a encarnação?” Tal é a questão, retirada de um
capitulo consagrado às caixas (“boîtes”) ou aos “continentes”, como diz Pedrosa,
no ensaio sobre Os Cinco Sentidos do filósofo Michel Serres. Quando falamos
de “caixa”, usamos um termo pouco epistemológico para tratar do privilégio dado
nas artes plásticas contemporâneas ao cubo e a seu volume simbólico. Veremos,
inclusive, muitos artistas brasileiros dos anos 1970 chamar seus trabalhos e suas
instalações de “caixa”.
Não há existencia sem boîtes, sem caixas e contenedores. O reparamos?
Podemos já nascer em caixas (mesmo que sejam de vidro transparente e asép-
tico). Acabamos todos em caixas de madeira. Quanto à nossa vida, ela se passa
em boa parte dentro da moradia que o modernismo concebeu em termos de
máquina de morar. Propomos que a caixa seja entendida como um objeto im-
pensado de ritualização da vida cotidiana, um de seus símbolos essenciais. A
caixa, objeto irredutível do nosso horizonte e suporte de experiência, ultrapassa
a mera dimensão das coordenadas geométricas e implica immediatamente o
corpo. Cabe às mãos mexerem uma caixa; a caixa abriga, protege, viaja. Ela
pode ser submetida a ampliações metafóricas, como o é uma galeria de arte.
E muitos acontecimentos vanguardistas nas galerias de arte mostraram que à
caixa é ligada uma função ritual. Como escreve Georges Didi-Huberman,


a espessura, a profundidade, a brecha, o limiar e o habitáculo – tudo isso
obsidia a imagem, tudo isso exige que olhemos a questão do volume como uma
questão essencial. Sabemos que as crianças gostam de incluir sem fim bonecas
em outras bonecas – ainda que para as ver desaparecer sem fim, como que ine-
lutavelmente – ou então brincar com cubos. O que é um cubo? Um objeto quase
mágico, com efeito.375

A estética e o uso artístico contemporâneo da caixa (cubo ou volume)


nos interessam, porque, além de representar uma vertente pouco questionada
nas histórias da arte contemporânea — Georges Didi-Huberman lhe consagra,
contudo, uma grande reflexão decisiva em O que vemos, o que nos olha, onde a
simples consulta das reproduções fotagráficas oferece uma seleção significativa
na arte norte-americana —, elas nos põem em contato com rumos instigantes.
Se as saidas fora dos lugares convencionais de exposição, como as encontra-
mos com a Land Art, por exemplo, ampliaram o horizonte artistico num sentido
extraordinário, cabe também levar em contra a existência de uma outra vertente
da arte contemporânea que, já nos anos 1960, propôs um contra-movimento,
centrípeto, uma espiral experimental por dentro, a do corpo atuante através da
redução do espaço às dimensões simbólicas da caixa (pouco importando seu
tamanho). A caixa ou o corpo atuante, isto é, uma espiral interior que explora
a matriz da percepção. Essa espiral interior inaugura uma estética plasmática,
onde os fatores mais sensoriais e os fatores mais transcendentais se mesclam
para se tornar as matrizes experimentais e simbólicas de um corpo que recebe
da sensação seu volume.
Que concepção do corpo queremos apontar aqui? No homem, a sensa-
ção tece o conhecimento e a experiência do mundo, um mundo que é exterior
apenas pelo fato de o sujeito se distanciar dele na “re”presentação. Mas “re”,
significa aqui cavar o espaço e entrar numa presença que permite que a re-
presentação não seja apenas inteletual, mas presença ao mundo. A sensação
não fecha o sujeito sobre ele mesmo, ela o faz nascer ao mundo. A sensação
informa o sujeito pelo toque do mundo. Eis o lugar rente ao chão, rente ao solo
da percepção, que nunca se arrancará completamente ao solo que o suporta.
O corpo inteiro está engajado e solicitado no funcionamento de cada sentido.
Trata-se de um aquém da diferenciação eu/mundo, ou fenômeno/representação,
sensação/saber objetivo. Assim, a aisthèsis é a modulação da totalidade que
constitui a simbióse entre eu e mundo. Os trabalhos mais radicais com as caixas,
muitas vezes, buscam uma dediferenciação dos sentidos, uma desfocalização,
no tocante àquilo que se entende por focus quando se diz que o olho é apenas
o órgão privilegiado da percepção, em prol de uma sensação que engaja todo o

375
DIDI-HUBERMAN, Georges, O que vemos, o que nos olha, São Paulo: ed.34, 1998, p.87
(trad. Paulo Neves)
corpo, dediferenciação e desfocalização que garantem o toque mútuo do corpo e
do mundo. Aquilo que é sentido não é uma qualidade vista, mas uma intimidade.
A palavra “estética” remete a essa matriz da sensação. Michel Serres escreve: “a
sensação, caixa preta, instala as duas paredes de sua variedade entre as altas
e baixas energias, mansa e dura, dura e mansa.”376 A caixa preta da sensação e
da percepção investe esses dois pólos da plenitude e da agudeza.
A elaboração de caixas hipersignificantes gerou a partir dos anos 1960
práticas sistemáticas, séries formais e séries simbólicas tanto na paisagem global
da arte internacional quanto em muitas trajetó-
rias artísticas individuais. É o caso por exem-
plo com o trabalho de exploração sistemática
e obsessiva do desenho da caixa pela artista
Gérard Titus-Carmel. Em meados dos anos
1970, ele fez uma série de cento e vinte e sete
desenhos de caixinhas, “coffrets”, “coffins”377,
(Fig. 49) que exemplificam uma maneira singu-
lar de triturar um modelo tão formalizado como
a caixa para desvendar-lhe os segredos. Titus-
Carmel procedeu a uma forma de entame (en-
cetar) da caixa/corpo. Encetar, é iniciar, cavar,
incisar, retirar algo do corpo, ao mesmo tempo
trabalhado e inaugurado. O começo é condi-
cionado pelo abarcamento quase fisico do ob-
jeto em questão. Quando eu enceto, submeto
49
algo a um traço inicial, e é esse traço inicial que
inaugura e dilacera a matéria. Titus-Carmel enceta e encontra assim os perfis, as
siluetas, a carne e o vivo da substância dessas caixas. Um extraordinário texto
que Jacques Derrida lhe consagrou mostra como esses ataques sucessivos do
corpo da caixa suscitam um verdadeiro enloquecimento dos conceitos.378
Desde os anos 1960, a arte contemporanea fez, portanto, da caixa uma
instância singular de tratamento da sensação, dos sentidos — e do sentido, in-
tegralmente. Nesse sentido, o adjetivo “fenomenológico” é bem o mais apropria-
do para dar conta da estética (minimalista e pós-minimalista, pensemos aqui
em Eva Hesse) da caixa. Fenomenológico, no sentido de a percepção trabalhar
sobre e com o que se dá de imediato e ainda não mediatizado no volume ou

376
SERRES, Michel, Les cinq sens, Paris: Grasset, 1985, p.137
The Pocket Size Tlingit Coffin, (1975-76), exposição Musée National d’Art Moderne, Centre
377

Georges Pompidou, Paris, 1 de março - 18 de abril de 1978


DERRIDA, Jacques, “Cartouches”, in: La vérité en peinture, Paris: Flammarion, col. “Champs”,
378

1978, p.211-290
no objeto artístico exposto e proposto ao espectador. Todas as Notas sobre a
escultura de Robert Morris remetem justamente a esse poder de estimulação
fenomenológico do espectador pelos volumes unitários. Já dissemos através de
Mário Pedrosa como a produção brasileira de caixas foi significativa. Sem citar
de novo os Penetráveis e outras estruturas habitáveis ligadas ao futuro “crelazer”
de Oiticica, podemos reenviar aos ambientes de Wesley Duke Lee, em 1967 ou,
como fizemos, ao menos lembrado Rubens Gerchman. O trabalho de Gerchman
na Bienal de 1967 não está muito afastado das caixas de Lygia Pape nos ano
1967-68: os Ovos, expostos em Apocalipopótese ou Arte no Aterro, em 1968, ou
as Caixas de formigas (1967). A seu respeito, Lygia Pape escrevia que ela ten-
tava passar as suas “idéias através da epiderme, de ume forma essencialmente
sensorial. […] Tem a coisa de eu sair do plano para o espaço.”379 Na sua lingua-
gem sem comparação, Hélio Oiticica dizia dos Ovos (Fig. 50):

50

o que é surpreendente é o modo com q esses ovos se podem


expandir em tantos paradoxos internos, significações aberta-abertas, como ja-
nela uma às outras, e desse modo são sementes de significações, cresementes.
noturna: E ali, dentro do ovo encolhido, me sentia mais ovo q o próprio ovo, pois
sem vê-lo me sabia dentro. Mas num leve sopro já sou ovo for a, sob negra ova
d’estrelas.380

379
PAPE, Lygia, in: Lygia Pape, textos de Luís Otávio Pimentel, Lygia Pape, Mário Pedrosa, Rio
de Janeiro, FUNARTE, 1983, p.45
380
OITICICA, Hélio, in: Idem, p.40
Em proporções diferentes, pode-
mos identificar na arte brasileira dessa
época outras contribuições importantes,
notadamente a Caixa de fazer amor, de
Teresinha Soares (1967)381 (Fig. 51), as
Caixas Olfativas de José Ronaldo Lima (ex-
posição Objeto e Participação, Palácio das
Artes, Belo Horizonte, abril de 1970)382 ou
o Poema-objeto de Marcio Sampaio (1968)
(Fig. 52), também uma variação sobre a cai-
xa, a palavra fragmentável permitindo uma
leitura em “floresta”, “flor esta” (esta flor),
“f(-)esta”, “f(r)esta”, a função de janela da 51
imagem na pintura sendo precisamente re-
duzida à mensagem lábil e diferencial que
a indaga na legenda. A forma corresponde
morfologicamente à palavra legivel, quando
a maleta está aberta: é bem uma f(lor)esta,
quando entre-aberta, e quando lemos ape-
nas o r interrior, a caixa é uma verdadeira
f(r)esta. Mas é sem dúvida os Territórios
Encaixotados (1969), de Luciano Gusmão,
52
Lótus Lobo e Dilton Araújo, apresentados
no museu da Pampulha, durante o 1º Salão Nacional de Arte Contemporânea,
que concentram na produção da época valências bastante próximas, no caso, de
realizações norte-americanas pouco anteriores, de Sol LeWitt ou Robert Morris,
como veremos. No caso dos Territórios Encaixotados, trata-se da combinação
de uma matriz virtual de distribuição dos elementos espalhados no entorno do
museu para documentar-lhe o devir – uma semiótica do nativo –, e de um con-
tinente que se fecha após a duração de vida externa dos materiais dispostos
nos arredores do museu entre o dia 12 de dezembro de 1969 e o 8 de fevereiro
de 1970 – uma semiótica do selo, do enterro -, mas que, como “caixote lacrado
[…] passa a ser virtualidade: tôda vez que fôr mostrada terá que ser imagina-
da, do invólucro que é um segrêdo às imagens que são metáforas”383, precisam
Lobo, Gusmão e Araújo. Trabalhar no horizonte da desmaterialização com um

381
Reprodução, in: catálogo Neovanguardas, Museu da Pampulha, 23 de dezembro de 2007 a
16 de março de 2008, Belo Horizonte, 2008, p.90
382
Reprodução in: Idem, p.68
383
Carta de Lotus Lobo, Luciano Gusmão e Dilton Araújo para o diretor do Museu de Arte da
Prefeitura de Belo Horizonte, fev. de 1970, in: catálogo Neovanguardas, Museu da Pampulha, 23
de dezembro de 2007 a 16 de março de 2008, Belo Horizonte, 2008, p.29
apetrecho tão compacto e rudimentar que uma caixa de madeira oferece um
paradigma quasi impensado na teoria da arte. Trata-se da materia como suporte
da desmaterialização e da desmaterialisação como o exprimido da proposição
matérica ou material. Oriundas de várias concepções, as caixas propõem ao es-
pectador que ele “entre” virtualmente nelas, se choque contra elas quando elas
são hermeticamente fechadas, que ele se defronte com seu enigma.
A caixa preta, câmara preta, é o espaço de uma potencialidade “incolor”,
incialmente sem cores, a-cromática, dentro do qual as cores vão se desvelar e
explodir. Surda e maciça é a ressonância matricial da caixa. Como se o corpo
fosse descobrir suas proprias cores. É um pouco isso que está em jogo nos
Bólides de Hélio Oiticica: além de sua destinação social, trata-se de uma estru-
tura de cromatização virtual do gesto e da manipulação, de uma filtragem das
velocidades que torna-se a verdadeira criação, de uma alegoria das potenciali-
dades contidas nas dobras do corpo atuante, as mesmas velocidades, lentas ou
demoradas ou suspensas, que ritmam a manipulação dos Parangolés. Nestes,
a experimentação se repercute no interior, e é sem dúvida necessário indagar a
matriz da sensação, mergulhar nela sempre mais, com toda a abertura do corpo,
para encetar o movimento centrífugo. O centrípeto condiciona o centrífugo.
Burried cube containing an object of importance but little value (aço, 25,4 x
25,4 x 25,4cm, soterrado na casa Visser, Bergeyk, Holanda, 1 de julho de 1968),
de Sol LeWitt, representa perfeitamente essa ritualização de uma totalidade her-
mética. Esse enterro sendo como a condição de possibilidade de uma explosão
do imagético, o zero-de-imagem garantindo o máximo de estímulo conceitual.
É preciso intuir nos volumes de cunho minimalista ou pós-minimalista uma vida
celada. O filósofo de tradição cartesiana Alain dizia que o inconsciente é o corpo.
Toda a topo-grafia conceitual da psicanálise tende também a fazer do corpo o
efeito da viagem incessante das pulsões sobre a superfície do corpo. Daí a pos-
sibilidade de enxergar a caixa como empacotamento ou encaixotamento. Se a
lição básica da arte moderna consistiu em dizer, com Paul Klee, que a obra é sua
historia, a caixa é seu encaixotamento, mas um encaixotamento que se revela…
A obra é seu devir, e não uma coisa acabada e inerte. Deveríamos enxergar toda
caixa como seu devir, seu processo empacotado. É por essa razão que Georges
Didi-Huberman agrega à reflexão sobre o cubo uma dimensão existencial e an-
tropológica latente, como faz com certas esculturas de Giacometti e outros vo-
lumes de Tony Smith. Isso caracteriza também um trabalho como Cubocor (Fig.
53), de Aloísio Carvão (1960), de cujo Mário Pedrosa escrevia que “sua estética
neo-concreta […] é presa na eterna ambiguidade das células originais”, e, acres-
centava o grande crítico, que se tratava nele tanto de “uma ascese” quanto de
“uma orgia”384. Essa terminologia existencialista não é sem lembrar as polarida-

PEDROSA, Mário, citado in: Modernidade, art brésilien du 20è siècle, catálogo de exposição,
384

Paris: Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 10 de dez. de 1987 a 14 de fev. de 1988, p.230
des que Tony Smith estabelece entre controle e
desordem na sua escultura.

Seria preciso fazer uma genealogia e uma
arquelogia do compacto ou da compacidade na
arte. A compacidade é sempre apresentada, sob
a égide da pintura monocromática, por exemplo,
ou dos volumes minimalistas, como portadora de
53 mais do que ela. Quando um Frank Stella dizia
a respeito de suas Shaped Paintings: “What you see is what you see”, ele não
podia impedir que sua afirmação semioticamente radical fosse imediatamente
levada para além, um além que não lhe adviria de fora, mas que sairia das pró-
prias pinturas como sua emanação conceitual. Emanação conceitual, exatamen-
te como a que o Buried cube de Sol LeWitt pro-
move. Robert Morris, sobretudo, soube enxergar
desde o origem de seu percurso artístico que o
volume (ainda não chamado de “minimal”,) podia
ter uma dimensão antropomórfico. I-Box, de 1962,
jogava precisamente da caixa fechada e do prono-
me pessoal “Eu”, I, (Fig. 54) como representação
indicial do próprio corpo. Mas é do impessoal que
sai o pessoal enquanto situado, delimitado, con-
ceituado, ób-vio. Aliás, aqui, a dimensão mimética
54
do antropomorfismo e antropomórfica da mimesis
são iguais: a forma é o homem, a estatura da forma análoga à forma do homem.
Aqui a persona latina é exemplificada pelo fato de a obra mascarar semioti-
camente, mas sem nenhuma fantasia sensorial, sua própria diferenciação em
dois para dizer ou voltar ao mesmo: o anthropos.
É a próposito de Pine Portal (Fig. 55) (madeira de
pinho, 2,45 x 1,29 x 0,32m., 1961) e de Untitled.
(Box for Standing) (carvalho, 1,68 x 0,63 x 0,27m.
1961) que Georges Didi-Huberman propõe uma
análise que, notemo-lo, caberia também perfei-
tamente na questão antropomórfica relacionada
com Here e Die no capítulo anterior:

quando Robert Morris produz a imagem dialé-


tica de um pórtico em madeira de pinho, ou seja, em
madeira de ataúde, ele faz de toda porta a porta de
um túmulo, e de toda forma de tumba uma coisa que
deve ser precisamente “erguida”, erigida, reverticaliza- 55
da numa relação de face a face, de estátua a dormir eternamente em pé, como o
fazem as mais intensas figuras da idéia fixa […]385

Também de grande importãncia é Column (Living Theater, 1961) perfor-


mance na qual Morris concebe uma coluna que fica ereta 3 minutos, pois cai,
fica 3 minutos caída, antes do fechamento da cortina. A estatura antropomórfica
da coluna jaz. É possível ver nessa performance uma maneira de fazer ressair
minimal, silenciosa e radicalmente o que poderíamos chamar de volume da per-
sona, isto é, a encenação do ciclo vida e morte ou de um genêrico devir-persona.
Box with de sound of its own making (1961) exemplifica a implicação do cor-
po no volume minimalista, cubo de madeira do qual escapa a gravação sonora
das três horas consgradas à sua fabricação. No Brasil, em 1970, os Territórios
Encaixotados acima citados explorarão também o recurso do enclausuramento
de um conjunto de peças e elementos plásticos deixados ao ar livre durante
algumas semanas e cujo conhecimento só acontecerá através do bloco-de-me-
mória constituído pelo “caixote lacrado e assinado” de 2,70 x 0.80 x 0,30m, no
acervo do Museu de Arte da Pampulha.386

Para entendermos melhor a configuração desenhada por algumas dessas


situações artísticas, poderiamos jogar com as palavras inglesas “Whole” (intei-
ro) e “Hole” (buraco). O coeficiente máximo de coisidade é ou se sustenta de
seu maior coeficiente de a-coisidade, de nadificação (inventemos a palavra…).
Sabemos que é na manifestação do nada que os fenomenólogos situaram o lu-
gar privilegiado de revelação do existente (Heidegger, Emmanuel Lévinas, Sartre
etc.). A estética da caixa e do volume minimalista se encaixa perfeitamente no
espírito da fenomenologia. Como escrevia Heidegger em O que é a metafísica?,
“é unicamente em razão da manifestação original do Nada que a realidade-huma-
na do homem pode ir rumo ao existente e penetrar nele.”387 Uma caixa, talvez é
nada, o nada, o vazio, a vacuidade. Mas é preciso entender que o zero é também
completude e que aquilo que a fórmula “x = zero” significa tem múltiplas vias para
encontrar como se manifestar. Esse antropomorfismo participa de uma gestão
sofisticada do vazio ou daquilo que poderiamos chamar de manque-à-voir, para
parafrasear Lacan. Todos os devires-corpôreos dos cubos ou das caixas teste-
munham esse empenho carnal: é Hans Haacke e a condensação térmica dentro

385
DIDI-HUBERMAN, Georges, O que vemos, o que nos olha, São Paulo: ed. 34, 1998, p.254
(trad. do francês de Paulo Neves)
386
Carta de Lotus Lobo, Luciano Gusmão e Dilton Araújo para o diretor do Museu de Arte da
Prefeitura de Belo Horizonte, fev. de 1970, in: catálogo Neovanguardas, Museu da Pampulha, 23
de dezembro de 2007 a 16 de março de 2008, Belo Horizonte, 2008, p.29
387
HEIDEGGER, Martin, “Qu’est-ce que la métaphysique?” (1929), in: Questions I, Paris:
Gallimard, nrf, 1974, p.62
de um cubo de plexiglas, em Condensation Cube (plástico, água, temperatura
ambiental, 30 x 30 x 30cm, 1963-65), Eva Hesse e os tubos intestinais (canos de
plástico ou de borracha nos cubos abertos da na série Accession (1967-68) (Fig.
56), etc. Mas já podíamos sentir algo
semelhante em Boxes for meaningles-
swork (1961), de Walter de Maria, que
já parecem ironizar, num pragmatismo
corroído de melancolia, sobre os apu-
ros do minimalismo em gestação.
Cildo Meireles também se des-
taca no campo que nos interessa
aqui. Os Espaços Virtuais, os Cantos
(1967-68), são também um exemplo
notável de animação das coordena-
das espaciais articuladas pelo ângu-
56
lo. Meireles disse em depoimento a
Antônio Manuel:

são trabalhos que tratam de efeitos virtuais da ortogonalidade, a partir dos


planos de projeção não ortogonais. Seria uma análise do fenômeno da virtualida-
de através do módulo euclidiano do espaço (três planos de projeção), transposto
para a imagem do canto interno de uma casa. Estes trabalhos pressupõem a
movimentação do eventual observador para que se obtenha esta situação de
ortogonalidade. Na verdade, eles foram concebidos como teoremas. São uma
demonstração, não só especificamente ao nível do olho mas ao nível da posição
dele – observador – em relação ao trabalho; o que, em última análise, é uma coi-
sa ligada ao olho. Mas pressupõe esse deslocamento, o encontro dessa posição.
Uma das características desse trabalho seria, exatamente, o seu próprio tamanho,
e este tamanho definindo uma das relações que ele teria com o observador.388

Através de um olhar já retrospectivo, a terminologia utilizada pelo artista


brasileiro formula e articula os componentes essenciais das estéticas espaciais,
situacionais e corpôreas características dos anos 1960, sintetizando fenomeno-
logia da percepção, reflexão sobre o olhar, analítica do movimento, geometria
tátil etc, categorias trabalhadas pelas vanguardas internacionais da época e que
reencontraremos mais tarde no campo dos paradigmas da geometria com as
análises consagradas à relação entre logos e lugar por Vittorio Ugo, no capítulo
a seguir. Uma obra como Wall-Floor Positions (vídeo com duração de 60mn,
1968), de Bruce Nauman (Fig. 57), condensa-as perfeitamente. Uma parte subs-

MEIRELES, Cildo, depoimento citado in: Cildo Meireles, textos de Ronaldo Brito e Eudoro
388

Augusto Macieira de Sousa, Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981, p.13


tancial da argumentação apresentada por Cildo
Meireles acerca dos Cantos se aplica bem a
alguns trabalhos que Nauman realizou na mes-
ma época. Através do movimento do corpo no
ângulo entre solo e parede, Wall-Floor Positions
mostra como é possível transformar um espaço
tectônico e geométrico em espaço movediço e
encorporar as coordenadas do espaço. Frente
a um trabalho como este, é importante ressaltar
a libertação que realiza com relação a certos
padrões construtivos da geometria que tinham
reinado com tanta força na pintura abstrata ou
no próprio minimalismo. Face ao reinado me-
tafísico do ângulo reto, dos cruzamentos mui-
to mondrianescos da horizontal e da vertical,
o movimento de Naumann funciona como um
enloquecimento da diagonal, da oblíqua, cujo
recalcamento foi programático, sabemos, na
luta de Mondrian contra a dimensão “ trágica” 57
da experiência humana. Enloquecimento, ou volta do trágico, isto é, do huma-
no, demasiadamente humano. O “trágico” segundo Mondrian, emblematizado
na arte pela diagonal, mixto impuro das duas coordenadas universais do mundo,
consiste na submissão não depurada, não filtrada, não dominada, não curada do
homem à natureza. Naumann, é obvio, reata com esse “trágico” pelo enloqueci-
mento da diagonal cuja recusa veemente por Mondrian contrastava com a visão
positiva que seu colega e amigo Van Doesburg tinha dela. Essa avaliação de
Wall-Floor Positions resulta de uma colocação em diálogo de duas expressões
estéticas radicalmente diferentes por seus contextos, mas os encontros intem-
pestivos são múltiplos e recorrentes na geologia da arte, como bem mostrou
Georges Didi-Huberman na sua teoria da arte como história estratificada de câ-
madas temporais heterogêneas e conflitantes dentro de um mesmo precipitado
artístico.
Exatamente como uma multiplicidade simultânea de tempos age no te-
cido da história e da criação das obras de arte, tornando toda epistemè uma
configuração singular de formações simbólicas intempestivas em estado de co-
habitação, o que Nauman quer manifestar nessa sucessão de posições entre
parede e chão é a energeia corpôrea capaz de superar as limitações impostas
ao corpo pelo enquadramento da geometria disciplinar: uma geo-metria tátil e
cinética, sucintamente, mas eficazmente assinalada e encenada, embaralhan-
do as certezas e coordenadas tradicionais do ergon. A partir do que dissemos
no capítulo consagrado em parte a Jackson Pollock, medimos até que ponto a
estética de Nauman tangencia dimensões práticas e simbólicas presentes na
action painting do mestre nova-iorkino, quinze anos antes. Ao mesmo tempo,
o que tanto Meireles quanto Nauman fazem nesse ano 1968 jamais é da or-
dem da deriva incontrolada ou anárquica. Os Cantos, claramente, e Wall-Floor
Positions, mais secretamente, tem relações intempestivas profundas com uma
sentença fundadora da modernidade, a do poeta francês Arthur Rimbaud, que
se propunha em 1870 proceder à “desregulação raisonné de todos os sentidos”
– “le dérèglement raisonné de tous les sens”. Esse lema é muito menos comen-
tado do que a definição baudelairiana da modernidade como metade eternidade,
metade moda. No entanto, inúmeras obras das vanguardas artísticas dos anos
1960 — dos Happenings à Body Art, por exemplo — lhe devolvem uma pertinên-
cia e uma atualidade como programa estético da modernidade. Mas é preciso
insistir no fato de que o desregramento é construído através de um coeficiente
sistemático ao qual a palavra “raisonné” remete. Contem um coeficiente racio-
nal, racionalizante, isto é, critérios e eixos de ação que norteiam o processo de
desregulação. Este não é an-árquico. É um empreendimento no qual a dimensão
analítica prevalece, no qual uma trilha experimental é traçada, hipóteses, testes
e avaliação de resultados realizados e formulados, como na economia prática e
simbólica dos laboratórios científicos. Poderíamo falar de um experimentalismo
exacerbado, mas estruturado. Reencontramos aqui a questão já formulada da
necessidade – para fazê-la consistir e ter um mínimo de duração –, de estruturar
a sensação, isto é, de completar a dimensão quase dionisíaca da experiência
corpôrea por uma dimensão apoliniana. No fundo, estamos frente a situações
estéticas nas quais o acontecimento experimental toca em instituições simbóli-
cas como a geometria. Aqui, Meireles e Nauman, finos agrimensores, mostram
a indissociabilidade, em todo projeto estético, das várias polaridades da geo-
metria e a necessidade de fazer com que elas possam colaborar, se completar,
articular suas virtudes próprias, para, em uma palavra, estruturar a experiência e
a sensação, constituir e tecer para os crivos geométricos – mathesis universalis
– um estofo sensorial que faça-as encontrar sua ressonância no corpo estesioló-
gico. O todo-sensação versus a autoridade seca da pura geometria cognitiva, tal
a alternativa dualista que Meireles, Nauman — mas também Oiticica, Eva Hesse,
o Morris dos feltros e outros dispositivos etc. — nos convidam a recusar…
Ainda em 1968, Performance Corridor ou Walk with Contraposto em (video
com duração de 60 mn, duas paredes de madeira de 2,24m de altura e 6m de
comprimento, com uma separação de apenas meio metro) formam um corredor
estreito no qual o visitante anda de maneira desconfortável. Nauman apresenta
um espaço hóstil, a colocação no alto da camera vídeo trazendo uma impressão
de policiamento. Green-light Corridor (1970) ou Yellow room (Triangular) (um
habitáculo de 5,48 x 3,04m cada
parede, 1973) (Fig. 58) tratam de
provocar uma imersão quase vio-
lenta em um espaço cromático
de grande intensidade luminosa.
Nauman dizia a respeito: “acredito
que os espaços triangulares são
verdadeiramente incómodos, de-
sorientadores. Não ha lugar ade-
quado para te colocar dentro ou
fora deles. Não é como o círculo
ou o quadrado que te dão segu-
rança.”389 É assim que Nauman
desenvolve uma fenomenologia
58
do espaço que é simultaneamente
uma fenomenologia do corpo em situação. É preciso convocar aqui o paradigma
teatral. A representação teatral foi muito privilegiada como lugar de exploração
da experiência corpôrea. Justamente, uma certa dimensão dramática trabalha
as proposições de encenação da percepção por Nauman: ao reduzir drastica-
mente o teatral a seu grau zero, elas procuram trazer à tona os harmônicos cor-
pôreos que essa encenação suscita. Podemos intuir no trabalho de um Nauman
— e isso valerá também depois para o dos Abramovic —, uma reconciliação da
instância do sujeito (pessoal e singular) e da instância do evento (impessoal e
universal), isto é, duas instâncias que o trabalho de Morris, na sua conjugação
do impessoal e do pessoal, cruzava. Esses dois eixos entrecruzam suas coor-
denadas e desembocam na idéia de que todo sujeito pode ser ressituado e reer-
guido através dos efeitos inerentes a muitos dispositivos artisticos e discursivos.
A representação, sim, e a encenação, desempenhariam especialmente esse pa-
pel.
No prefácio que escreveu para a edição francesa do livro de Anton
Ehrenzweig, The Hidden Order of Art, Jean-François Lyotard analisava “o lugar
teatral a partir da economia das pulsões”390, para responder às questões se-
guintes: como a superfície libidinal varrada por Éros e pelas pulsões de morte
dá forma ao lugar voluminoso, tendo em vista responder à divisão sala/palco
(ou cena) ou realidade/ilusão […isto é,] à ilusao tridimensional.”391 No sujeito ou

“Breaking the Silence: an interview with Bruce Nauman”, entrevista com Joan Simon, Art in
389

America, 76, nº9, set. 1988, p.143


LYOTARD, Jean-François, “Par-delà la représentation”, prefácio a EHRENZWEIG, Anton, The
390

Hidden Order of Art (1966), Paris: Gallimard, col. Tel, 1982, p.13
391
Idem, ibidem
no ser, haveria uma espécie de pelicula monoface sobre a qual as pulsões se
deslocariam sem parar e, nela, invaginar-se-ia um espaço de disjunção unindo
um interior e um exterior, isto é, um espaço ao mesmo tempo conceitual e re-
presentativo... Podemos bem enxergar as realizações de Nauman como dobras
— ao mesmo tempo representativas e conceituais da profundidade perceptiva e,
em termos voltados para a psicanálise —, da pelicula superficial sobre a qual as
pulsões correm e se deslocam, uma das características predominantes da arte
dos anos 1960 e 1970 sendo a complexa articulação de uma teatralidade, de um
afeto de corpo e de uma expressão libidinal esquematizada.

Uma expressão libidinal já bem assumida encontra-se na Body Art. Mas
ela manifestou-se muitas vezes através de comportamentos néo-expressionis-
tas, sobre tudo no caso dos artistas eurepéus que puderam oficiar rituais de
auto-agressão corporal para denunciar uma forma de alienação cultural, politica
e simbólica do corpo (Günter Brus, Rudolf Schwarzkogler e, na Itália, Gina Pane).
No âmbito mais apoliniano da Performance, o controle, a insistência geométrica
e quase construtivista na maneira de encenar uma ação, fazem do trabalho de
artistas como Franz Erhard Walther e Ulay e Marina Abramovic exemplos exce-
lentes da conquista de um afeto de encarnação através de formas de expressão
quasi minimais, esquemáticas, hieráticas, sintéticas.
Tomemos três performances dos Abramovic: Interruption in Space, de ja-
neiro de 1977, com duração de 46mn, no curso de Klaus Rinke em Düsseldorf,
(Fig. 59) cujo roteiro
enuncia: “eu ando na
direção do muro, tocan-
do-o com meu corpo - eu
corro na direção do muro
chocando-o com meu
corpo.”392 Nada mais
do que uma discrição.
Imponderabilia, com du-
ração de 90 mn, junho
59 de 1977 (Fig. 60 e 61),
é descrito pelos artistas:
“estamos de pé, nus, na entrada principal do Museu, face a face. O público
que entra deve passar através do espaço pequeno entre nós. Cada pessoa, ao
passar, deve escolher quem de nós vai olhar.”393 A ação renvia à margem de

MARINA ABRAMOVIC/ULAY ULAY/MARINA ABRAMOVIC, Relation Work and Detour, Ulay/


392

Marina Abramovic 1980, p.34


393
Idem, p.44
escolha do olhar dentro de coordenadas muito reduzidas; a passagem estreita
entre os dois corpos nus, uma ação que interpela comportamentos humanos
imponderáveis determinados pela sensibilidade, pela sensorialidade, pelo cons-
trangimento, pela timidez, pelo pudor, pelo desejo, pela indiferença, solicitados

60 61

por um esquema espacial e uma encenação eficazes. O desenho na parede de


fundo da galeria, uma alegoria sintética da divisão em dois, parece lembrar al-
guns esquemas construtivistas de Oscar Schlemmer na Bauhaus. Mas trata-se
sobretudo de entender que a polarização obrigatória do visitante entre Ulay ou
Marina, entre as duas colunas humanas de entrada, cria uma forma de mime-
sis simbólica da diferença sexual como a conta Platão no Phedro, divisão da
entidade andrógina em dois. A passagem à idéia, ao supra-sensorial é evidente
nessa parede que funciona como sua alegoria: esquema programático (andrógi-
no e divisão sexual), dois monitores mostrando a ação ao vivo, isto é, a conduto
humana determinada pelo imponderável, tal como está formulada na sentença
acima citada.
Ainda é Pine Portal, acima mencionado, de Robert Morris, que motiva
Rosalind Krauss a fazer um comentário onde certas implicações presentes na
performance dos Abramovic também constam:

trata-se de uma obra para cumprir uma tarefa: atravessar a porta andando.
Na segunda versão, Morris coloca espelhos. Passar pela porta significa que, do-
ravante, um “rastro” é registrado a cada passagem, ainda que de maneira efême-
ra; na visão perifêrica de cada indivíduo, terá uma deixada partindo do corpo até
em uma espécie de dobra espacial impossível a localizar, aparecendo como uma
misteriosa imagem residual: a memória de uma progressão, arrancada ao corpo e
estranhamente defasada com relação a ele. Que efeito faz ser um corpo?394

Também é Morris quem participou entre o dia 3 e o dia 7 de juhno de 1961
a uma performance, Passageway, na qual o público era convidado a entrar em
um corredor incurvado até seu fim afunilado e sem saída, com ambiente sonoro,
o ruído de um relógio e de batimentos de coração…
Através da questão antropomórfica, a relação corpo/espaço é forte na
terceira performance dos Abramovic, Expansion in Space, 32 mn, realizada na
Documenta 6 de Kassel, em 1977
(Fig. 62). Duas colunas móveis
instaladas entre colunas fixas, am-
bas idênticas, pesam duas vezes o
peso do corpo de Ulay e de Marina.
Dizem: “nos movemos simultane-
amente rumo às colunas móveis,
batendo-as repetitivamente com
nossos corpos e deslocando-as na 62
direção das colunas fixas.”395 Aqui,
a simetria enquadra um exercício
da potência e da força, oposição/
articulação do corpo, de seu peso,
com seu duplo fabricado, compac-
to. Algo como um choque dialéc-
tico entre a pulsão dionisíaca e a
depuração formal apoliniana, en-
tre dois comportamentos verticali-
zados, a da viga sustentadora e a 63

da estação de pé, isso tudo para encenar a referência a uma cortina de palco
ou de cinema, por um movimento que varre a frente. Esse movimento acaba
desembocando na questão da presença do público, como se os artistas, ao se
chocarem contra os limites topográficos, colocassem seus corpos ao serviço
de um desvelamento do espaço, o espaço do olhar e o espaço da tela (l’écran
cinématrographique). A gravação da performance em video não pode escapar à
intenção de dar à presença do público um papel sempre maior à medida que o
exercício corpo-a-corpo de Ulay e Marina contra as colunas/artifex abrem sobre
ele. Por esse deslocamento das verticais no qual o corpo e a força se empenham,

KRAUSS, Rosalind, “La problématique corps/esprit: Robert Morris en séries”, in: Robert Morris
394

1961-1994, catálogo de exposição, Musée National d’Art Moderne, Centre Georges Pompidou,
Paris, 5 de juho - 23 de outobro de 1995, p.64-65
MARINA ABRAMOVIC/ULAY ULAY/MARINA ABRAMOVIC, Relation Work and Detour, Ulay/
395

Marina Abramovic 1980, p.54


a energia vem, do lado das coordenadas espaciais, lembrar o encontro cruzado
e perpendicular da vertical, deslocada, e da horizontal que desloca: a horizontal
é o eixo de deslocamento dos corpos e das colunas, ela é também tela ou écran
de projeção e o eixo de articulação do público e do olho da câmera. De certa ma-
neira, esse eixo da projeção põe o público diante do olhar da câmera. Ao mesmo
tempo que ele grava o espetáculo, esse olho esta também disposto a projetá-lo.
O público é a projeção virtual do vídeo do outro lado da tela (Fig. 63).
Apesar do aspecto às vezes saturado dessas ações no cubo espacial,
elas são parte integrante de uma estética do vazio. O cubo seria, potencial e uto-
picamente, uma arquitetônica do entre, aquilo que há entre, que agrupa, que ar-
ticula. Tratar-se-ia, em verdadeiros programas espaciais que encenam um corpo
atuante em coordenadas mínimas, de moldurar, formar e construir o vazio, seus
liames invisiveis. Se toda proposição espacial é necessariamente uma estrutu-
ração dos intervalos distribuidos no vacuum, alguns trabalhos artísticos fazem
da moldagem literal do vazio um ato que revela-lhe sua dimensão estruturante.
Assim, algumas obras de Bruce Nauman são feitas da moldagem do vazio de-
baixo de uma cadeira. Famosa é também o trabalho de Rachel Whiteread. Ela
moldou o interior de uma casa, na Inglaterra, uma deslumbrante monumentaliza-
ção do vazio. Voltaremos a essa artista mais adiante.
Arquiteturar o vazio: é uma formula possível para entender a insistência
dos artistas em tratar a forma minimal do cubo, em encaixotar ou empacotar
obras. Dessa maneira, o cubo e a caixa seriam como o elemento básico de uma
performance involuida, inchoativa, isto é, um verdadeiro teatro agonal, dentro
do espaço e do tempo, para reencontrar e propor ao corpo (do) público a expe-
riência de esculpir o volume desde seu interior. Giacometti parece tê-lo expri-
mido com seu desenho Mãos segurando o vazio (águaforte, 1934-35) (Fig. 64),
que responde à escultura Objeto Invisivel
(1934). A ausência e o vazio que essas
mãos enquadram e emolduram são o su-
jeito mesmo de desenho. As mãos são
ao mesmo tempo elas mesmas e o signo
gráfico e semiótico de linhas de composi-
ção cristalinas ou em gaiola. Essas mãos
são poliédricas. Lembram um cristal de
ausência cujos raios metálicos teriam
sido forçados. A respeito desse desenho
e dessa escultura, Didi-Huberman fala de
64 um “estatuto que seria exatamente entre
o objeto e o vazio”396, fórmula emblemática quando a questão é precisamente a
de interpretar o sentido da atuação corpôreo no lugar encaixotado, este sentido
encontrando seu espaço conceitual entre entre objeto e vazio.
O vazio não escapa ao domínio do corpo. O vazio é apenas o diagrama
de sua atuação imponderável, corpo perceptivo, corpo sensorial. Lembremos
como, nesses mesmos anos, Deleuze empreendeu uma releitura de Lucrécio
que o levou a reivindicar de certa maneira a descriçao da queda dos átomos para
propor uma lógica de sentido que seja também uma física do sentido. O evento
na caixa-de-sentir é muito próxima da articulação do vazio segundo Lucrécio.
Mais recentemente, o filósofo Jean-Luc Nancy, consagrou em 1992 um livro ao
conceito de corpus no qual ele declina uma reflexão sobre o sentido do corpo. Dá
uma forma de conclusão lapidar. Falando do corpo significante, Nancy escreve:

Nós, conhecemos e concebemos, e inclusive imaginamos apenas algum


corpo significante […] algum corpo de cujo não importa que ele esteja aqui, que
ele esteja o aqui ou o ai de um lugar, mas de cujo importa, antes, que ele opere
como o tenente/substituto (lieu-tenant) e o vicário de um sentido. […] A convul-
são da significação arranca todo corpo ao corpo – e deixa o cadáver na caverna.
Ou este “corpo” é ele mesmo o “dentro” no qual a representação se forma ou se
projeta (sensação, percepção, imagem, memória, idéia, consciência) — e neste
caso, o “dentro” aparece (...) como estrangeiro ao corpo e como “espirito”. Ou
o corpo é o “fora” significante (“ponto zero” da orientação e da visada, origem e
receptor das relações, inconsciente) e, neste caso, o “fora” aparece como uma
interioridade espessa, uma caverna […] recheada de intencionalidade. Assim, o
corpo significante não cessa de trocar o dentro e o fora, de abolir a extensão num
único organon do signo: aquilo onde se forma e de onde o sentido toma forma.
(...) Sempre o corpo é estruturado como reenvio ao sentido. A encarnação é es-
truturada como decorporação.397

Considerações fundamentais, de extrema complexidade, como a filosofia


mais exigente deve produzi-las, mas pensamos que todas as obras que encon-
tramos aqui pertencem ao âmbito desse corpo-significante, da troca do dentro e
do fora. Se a encarnação está estruturada como uma decorporificação, é porque
ela nunca para de fundar o incorporal do sentido, que se exhala sem que nada
possa impedi-la de emanar, nuvem de sentido que se exhala em conceito. Como
diz Jean-Louis Schefer do sentido como corpus, “corpo significante que ilumina;
que já é, no meio da massa opaca dos fatos, luz analisada.”398 A câmara preta

396
DIDI-HUBERMAN, Georges, “Face de l’impossible dimension”, Le cube et le visage.Autour
d’une sculpture d’Alberto Giocometti, Paris: Macula, 1993, p.64
397
NANCY, Jean-Luc, Corpus, Paris: Métailié, 1992, p.60-61
398
SCHEFER, Jean-Louis, l’espéce de chose mélancolie, Paris: Gallimard, col. Digraphe, 1978,
p.84
da caixa que é a representação é como uma
noite na qual as luzes do mundo acabam se
revelando.
Poderíamos vincular a isso as insta-
lações de Louise Bourgeois, interiores-me-
mória, interiores-matrizes, como Precious
Liquids (1992) (Fig. 65), que mostram reci-
pientes de vidro de química pendurados nos
quatro pilares de uma cama, simbolizando os
humores emitidos pelo corpo, notadamente
65 de noite, ou sob o efeito das emoções ou
outros estímulos…; os Red Room (Fig. 66 e
67), dos pais, com sua cama, e seus acessó-
rios e objetos ligados à atividade da costura,
de um longo trabalho paciente e demorado…
São ambientes, sempre dentro de paliçadas
de madeira, que reenviam à cena primitiva,
à memória da prima infância, um interior or-
gânico. Em Louise Bourgeois, a ordem da(s)
geometria(s) fala do desejo humano de loca-
lização espacial e a ordem monumental da
arqueologia de nosso desejo de memória.
São dimensões que encontraremos no pró-
ximo capítulo.
Nos contentamos aqui de assinalar
66
como a dimensão idiosincrática que tais am-
bientes, com sua parafernália de recipientes,
camas, carroçeis, fios, objetos e espelhos,
esculturas de membros cortados, facas etc,
manifestam com tanto força, levam neces-
sariamente à possibilidade de a análise dos
espaços imaginados pelos artistas se deter
em complexas considerações psicanalíticas
e existenciais. Não as faremos aqui, mas de-
vemos sublinhá-lo. Mas sem mergulharmos
nas águas freudianas e lacanianas, já basta-
ria citar as categorias que Gaston Bachelard
trabalha na sua Poética do espaço, para sa-
67 ber que todas as caixas-de-sentir são tantas
maneiras de remeter aos invariantes bache-
lardianos: a casa e o universo, a gaveta, os cofres e armários, o ninho, a casca,
os cantos, a miniatura, a imensidão íntima, a dialética do fora e do dentro, a
fenomenologia do redondo, o espírito da análise não se separando de um viés
sensível que nortearia o projeto: “já seria muito se pudéssemos dar imagens va-
lorizadas do refúgio, mostrando que, ao entender suas imagens, as vivemos um
pouco”399, diz o filósofo.

Assim, podemos dar de novo a palavra a Hélio Oiticica tratando dos “ovos
da terra/ovos do vento” de Lygia Pape:

a partir de um adentramento na ciência pneumática verificamos q o senso


de imantação manifestasse a olhos vistos durante o circular em torno de um sintoma
q denominarei ‘pré-nada’, ou seja algo q não se sente quando se faz sentir400…

Caixas… Instâncias de uma das mais profundas manifestações da vira-


da antropológica da arte contemporânea, de que fala Hal Foster. Retomemos
propositadamente o ambiente singular de Joseph Beuys, Plight, portal desse
livro, de cujo alguns aspectos experimentais e antropológicos são analisados por
Fabrice Hergott:

as pessoas que penetram [em Plight] encontram-se como que debaixo de


uma tenda: a modificação da qualidade luminosa permite ao mesmo tempo uma
certa intimidade física e um relativo afastamento […] Se uma solidariedade se
cria também no interior de Plight – uma sorte de fratria das cavernas, meio pré-
histórica, meio-uterina –, ela aparece forçada e levemente irritante. Com efeito, a
intensidade quase deslumbrante da luz fria dos neons suspensos ao teto acentua
os contrastes. […] Os olhares dos visitantes que não se conhecem dirigem-se
na maioria das vezes para o solo, o teto ou o feltro, como que para fugir dessa
promiscuidade obrigatória. A ‘barreira suspensa’ de feltro, na passagem entre as
duas salas, é institivamente utilizada para se esconder.401

Por sua vez, o galerista londrino Anthony d’Offay, que expôs Plight na
sua galeria, antes dela ser deslocada para o Centre Georges Pompidou pouco
depois, dois meses antes da morte de Beuys, sintetiza bem o teor do ambiente
quando escreve que

399
BACHELARD, Gaston, Poétique de l’espace (1957), Paris: PUF, 12è éd., 1984, p.93
400
OITICICA, Hélio, in: Lygia Pape, textos de Luís Otávio Pimentel, Lygia Pape, Mário Pedrosa,
Rio de Janeiro, FUNARTE, 1983, p.40
401 HERGOTT, Fabrice, “Plight”, in: Joseph Beuys, catálogo de exposição, Musée National
d’Art Moderne, Centre Georges Pompidou, 30 de junho - 03 outubro de 1994, p.236
a dedicação com a qual Beuys se consagrava à escultura social aparece
nitidamente na violência física de Plight. Encontrar-se no centro da obra ressai ao
mesmo tempo de uma viagem em um útero, uma tumba ou uma floresta antes do
dilúvio. É manifesto que se trata de um lugar de crescimento e de energia criativa,
mas é também um lugar de memória e reflexão […].402

Vemos com essa análise de uma parte das implicações de experimen-


tação, recepção e uso do ambiente de Beuys que tipo de responsabilidade um
lugar projetado pode representar na relação que estabelece com os corpos e o
feixe de sensações do visitante. A capacidade qualificante do que chamamos de
Caixas-de-sentir mostra como as situações plásticas e espaciais encontradas
determinam a consistência simbólica do que chamamos: lugar. Algum lugar.
Mas o que é um lugar?

402
D’OFFAY, Anthony, “Souvenirs de Joseph Beuys”, in: Idem, p.368
Capítulo XIII
O logos e o lugar

Ao falar de site, Anne Cauquelin precisa como, na sua acepção geográfi-


ca, o site não é o espaço abstrato da geometria grega e tampouco o lugar con-
creto que, em termos aristotélicos, envolve os corpos. Para ela, o site remete a
uma terceira lógica, entre espaço e lugar. A arte, diz, é o “modelo” privilegiado
para entender as categorias ligadas ao conceito de site, que, sabemos, vincula
tanto o mundo virtual quanto o mundo atual. A lógica desses mundos remete à
história da invenção do espaço:

encontramos três sortes de espaços: o espaço abstrato, oriundo da geo-


metria, o espaço concreto, da memória e dos rastros, isto é, o lugar e, finalmente,
um espaço híbrido que ressai aos dois precedentes e que nomeamos “site”.403

No primeiro, temos a definição de uma posição, enquanto no segundo,


encontramos uma singularidade, lugar próprio que articula um tempo, um meio
e um espaço. Se o espaço geométrico implica uma superioridade da extensão
espacial, uma abstração que torna tudo mais facilmente explorável, graças à
isonomia e ao cálculo, a “estreiteza” do lugar contempla as ordens da raiz, do
sagrado, da memória. É mais importante, porque fundador. Espaço geométrico
contra lugar próprio… Anne Cauquelin vai, depois, analisar o site como “terceiro
espaço, […] nascido da dialética do espaço e do lugar […] que se alimenta das
duas espacialidades que ele nega.”404 Anne Cauquelin propôe uma excelente
definição e articulação dos conceitos de espaço, lugar e site:

O site está, portanto, em relação com o lugar, esse lugar feito de memória […]
mas também com o espaço partilhável e mensurável da física. Situado, posicionado,
ele ocupa um pedaço de território; memorável, ele escapa às medidas calculadas e ter-
restres. Ele consegue portanto preencher […] o hiatus que existe entre espaço e lugar.
[…] Seus traços pertencem tanto às propriedades do espaço quanto às do lugar. Do
espaço, ele resguarda o posicionamento, a situação, o estabelecimento pontual e repa-
rável sobre um mapa do território. […] A gente constrói e se estabelece sobre um site.
Essa versão do site é propositadamente voluntarista, arquitetural, desenhada, decidida.
Do lugar, o site resguarda o traço principal, que é de memorização, de envolvimento,
de ambientação, quer se trate de meio físico ou de meio contextual, comportamental e
transmissível pelos usuários, ou de arquivamento. Esse site contem o tempo, na forma
de memórias acumuladas, e ele é contido em e pela temporalidade, de cuja oferece uma

403
CAUQUELIN, Anne, Le site et le paysage, Paris: PUF, Quadrige, 2002, p.72
404
Idem, p.85
imagem expressiva. É assim que se faz uma distinção em favor do site-lugar contra o
site-espaço.405

A terminologia aqui é bastante próxima da que os arquitetos e teóricos


da arquitetura adotam. Vemos bem como as análises de Anne Cauquelin fazem
convergir valências espaciais e topológicas numa matriz crítica onde a separa-
ção entre artes plásticas e arquitetura não se sustenta mais. Ambas trabalham
precisamente um núcleo situacional complexo que exige ser ainda aprofundado,
notadamente no que tange à relação entre experiência e conceito do espaço.
Através das múltiplas tangências da arquitetura com as artes plásticas po-
demos perguntar: o quê a arquitetura agencia? Modelos ou experiências espa-
ciais e topológicas? Será o modelo mental e a experiência, sensorial? Pirâmide
ou Labirinto? O arquiteto francês Bernard Tschumi coloca todo tipo de experi-
mentação performática do espaço dentre essas duas categoria e insiste sobre o
fato de que performers e outros artistas que instalam dispositivos espaciais que
reenviam o espectador a seu próprio ser e à sua própria experiência perceptiva,
nunca deixam de inventar “maneiras de fazer espaços distintos (de definir o es-
paço em particular) […,] para que nos voltemos para a interpretação da própria
‘natureza do espaço’.”406 O que Tschumi formula aqui como espaço distinto tan-
gencia a noção de lugar próprio em Anne Cauquelin. Isso implica que a experiên-
cia labiríntica é privilegiada, já que consegue defrontar qualquer indivíduo com a
natureza, a espessura e a resistência do espaço, sem possibilitar que ele aviste
de cima o dispositivo. O labirinto, por essência, propicia uma estrutura espacial
indomável e inabarcável de uma só vez. A idéia de o labirinto oferecer um dis-
positivo propício à experiência e à sensação do espaço (Raumempfindung) não
deve ser esquecida. Vimos sua importância em Tony Smith. A materialidade do
espaço solicita a experiência corpórea. Quando Tschumi reenvia sobretudo às
experimentações realizadas nas artes plásticas e quando, mais tarde, declara
que o labirinto aspira à pirâmide, ele nada mais faz que nos sugerir que as artes
plásticas puderam antecipar aspectos desejáveis para a arquitetura e que a ex-
periência espaço-corpórea (Labirinto) aspira ao estatuto de modelo disciplinar e
metodológico (Pirâmide do saber formalizado). Entretanto, para entender melhor
a tensão e complementariedade entre Pirâmide e Labirinto, entre conceito do es-
paço e experiência do espaço, entre discurso e corpo, é preciso voltar à questão
da geometria e de seu estatuto epistemológico nas artes.
O crítico Vittorio Ugo escreveu um artigo particularmente interessante em
que questiona a possibilidade da existência de “’um discurso-sobre-a-arquitetu-

405
Idem, ibidem
TSCHUMI, Bernard, ‘The Architectural Paradox”. In: Architecture and Disjunction, Cambridge:
406

MIT Press, 1994. Aqui, reproduzido in: HAYS, Michael. Architecture/Theory/since 1968. London:
MIT Press, 1998, p.224
ra’ que teria a ambição de dizer a verdade sobre essa disciplina e de definir seu
estatuto no interior do universo do pensamento e da cultura.”407 Este discurso
testaria seu grau de analogia , ou de afastamento com relação ao “universo
físico do ‘construir’ e (à) realidade do ‘habitar’.”408 A questão, posta por Ugo, da
isomorfia entre discurso e prática relança o terreno encontrado com Tschumi.
Para fazer isso, Ugo propõe apresentar os desafios contidos nessa analogia. Ele
escreve:

a ‘ verdade’ do discurso teórico residiria portanto em um espaço […] cuja


estrutura exige ser análoga à das obras contruídas, assim como o espaço destas
é análogo ao de seu projeto e de sua representação. A forma dessas múltiplas
analogias e as estruturas desses diversos espaços têm de ser definidos […] por-
que não existe apenas um espaço ou o ‘espaço’; não nos esqueçamos da lição
de Heidegger.409

Ugo lembra, no vocabulário “estético” de Heidegger, a importância do ter-


mo Raümen. Seria traduzível por: criar espaço, manejar espaço, fazer espaço,
espaçar, no sentido do espaçamento. Se, como diz em longas e complexas pá-
ginas o ensaio de Heidegger sobre “A origem da obra de arte” (1936), a obra de
arte, emblematizada pelo templo, é a colocação em obra da verdade (ins Werk
setzen der Warheit), o texto de 1964 sobre “A arte e o espaço” parte do raümen
para pensar a condição para que a verdade apareça como identidade da obra e
do lugar. O fazer-espaço (raümen) origina essa identidade. Há mais: é porque
a verdade aparece a partir dessa identidade da Obra e do Lugar que o suporte
“geo-” adquire tanta importância. Também, aquilo que se ergue sobre ele - ao
mesmo tempo que lhe é consubstancial - torna esse fazer-espaço um fenôme-
no originário, radical, fundador, elementar: Urphänomen. Como escreve Ugo,
“trata-se, de um lado, de espaço (de espaços, de lugares) e, de outro lado, de
origem, de começo, de gênesis, de proveniência. Em outras palavras, trata-se
de geometria e de arqueologia.”410 Isso leva Vittorio Ugo a pensar as dimensões
originárias do espaço arquitetural. A ordem da(s) geometria(s) falaria do dese-
jo humano de localização espacial e a ordem da arqueologia falaria de nosso
desejo de memória e produziria sua manifestação na ordem do monumento.
Respectivamente, localização, geometria e espaço constituiriam um eixo combi-
nado ao eixo constituído pela memoria, a arqueologia e o monumento. A tal tipo
de geometria, de localização e de espaço correspondem uma certa memória

407
UGO, Vittorio, “Une Hutte, une Clairière (ou le lieu d’une architecture théorique”, in: L’objet
architecture. Paris: éditions de Minuit. Revue Critique, nº475-477, jan.fev. 1987, p.100
408
Idem, ibidem
409
Idem, p.101
410
Idem, ibidem
arqueológica monumental. Ugo distingue três estruturas resultando de três com-
binações de três momentos distribuidos nos dois eixos paralelos.
A geometria euclidiana, a primeira, corresponde à choupana primitiva.
Essa geometria, que reenvia ao momento grego, é a geometria mental que pen-
sa a composição de elementos tendo por fim de conformar um conjunto unitário.
Essa geometria é a geometria do paradigmático sistema trilítico, sugerido, mas
não fomulado enquanto tal, por Ugo. Produziu um emblema que sabemos ser
mas mítico do que histórico, o da cabana rústica, cuja origem ocupou tanto os
escritores de tratados, de Vitrúvio a Laugier. A articulação de ambas desenha
o espaço da permanência, da perenidade, da memória mitificada, ritualizada,
fixada pelo monumento de carácter “apolíneo”. Ela poderia ser relacionada com
a Pirâmide de Tschumi.
O segundo momento, segunda geometria, segunda produção é o da ge-
ometria projetiva e visual. Trata-se da geometria do “espaço flexível da repre-
sentação, centrado sobre o sujeito, que permite uma espécie de ‘modulação’ e
de elaboração infinitas do projeto arquitetural.”411 Essa geometria, pensa Ugo,
coloca a arquitetura sob o signo ou a tutela da divindade chamada Morpheus,
que preside ao trabalho meta-mórfico. Poderia ser vista como um espaço onde
o imaginário prevalece levemente sobre a realidade, ao mesmo tempo que a de-
termina; onde a extensão prevalece sobre o uso, ao mesmo tempo que o condi-
ciona; o projeto, sobre a percepção, ao mesmo tempo que a prevê. “O arquétipo
correspondendo a essa geometria não é um objeto mas uma ‘forma’ ou, melhor,
a própria morfologia, cuja estrutura ana-lógica é regulada pelos códigos da re-
presentação.”412 Para Ugo, a “forma” encarna a representação e a morfologia
resulta da combinação da geometria projetiva e do desenho.
Terceiras estrutura e combinação: a geometria tátil, o espaço autônomo
da topologia, isto é, do lugar; uma geometria preocupada pela idéia de que as
coisas são produtoras de qualidades perceptivas. O espaço pensado a partir
dessa geometria “resulta de um ‘projeto arquitetural’ onde reconhecemos a pre-
sença de uma ‘memória crítica’ e a possibilidade da heterotopia, da diferença
poética e problemática.”413 O espaço da geometria tátil encontra seu emblema
no labirinto, que é o modelo do lugar, ou espaço singularizado, por excelência. O
labirinto é um espaço “que não precisa da imagem e do olhar”, porque não existe
fechamento icônico possível nem domínio visual que possa abarcar a inteiridade
de uma estrutura que só existe através de seus “carácteres de continuidade e
contiguidade, no interior de seu sistema de fronteiras […S]ó podem ser abarca-

411
Idem, p.102
412
Idem, p.104
413
Idem, p.103
dos pelo meio do toque, pela participação ativa e dinâmica do corpo.”414
Se Ugo resume a estrutura da qual dois arquétipos de base se descatam
- a cabana rústica e o labirinto -, é para que possamos entender a força de per-
manência histórica de ambos. A permanência da presença do modelo da cabana
rústica originária no decorrer da história do pensamento arquitetural não precisa
ser sublinhada. A do labirinto conheceu caminhos que seria fascinante seguirmos
de perto, de Dédalo, do Minotauro e de Ariadne, o chão do coro de Chartres, os
jardins e teatros encantados dos séculos clássicos etc., até, nos anos 1960-70,
artistas como Robert Morris, Tony Smith ou Hélio Oiticica terem-lhe dado uma
nova atualidade crítica. Sem dúvida, se Tschumi, no contexto do cinismo e da
ironia pós-modernos, instala suas análises entre a bem euclidiana pirâmide do
saber conceitual e o labirinto da experiência espacial, é porque esses modelos,
como diz Ugo, funcionam como um marco universal e quase inato na arquitetu-
ra, apesar de representarem, ou talvez por isto, uma construção mitológica. Sua
potência provem de sua capacidade de vincular a origem cronológica, isto é, a
história, com o fundamento estrutural, isto é, a tipologia. Depois de ter analisado
longamente os arquétipos da natureza sucetíveis de serem tornados homogê-
neos aos da arquitetura - a silva, o jardim e a clareira -, Ugo declara que a confi-
guração ideal é a cabana na clareira porque implica a colocação do monumento
apolíneo dentro de um espaço natural racionalmente concebido e trabalhado.
Entretanto, se a cabana na clareira, segundo Ugo, mostra “com um poder de
síntese notável, o jogo recíproco do ‘logos’ sobre o ‘lugar’, [graças ao qual] o
sentido nasce e com relação ao qual a crítica pode se exercer”415, a impossibi-
lidade de reinstaurarmos hoje os modelos carregados de memória não retira à
idéia de um jogo entre Logos e Lugar sua consistencia. Trata-se, portanto, de um
fato histórico. Não podemos ignorar que, atrás de tantos dispositivos e de tantas
instalações artísticas que tomam o espaço como objeto de produção e reflexão,
jaz, subterrâneo, um desses arquétipos que Vittorio Ugo e que Tschumi nos mos-
traram constituir uma parte irredutivel de nossa bagagem.

Assim, a arte moderna e contemporânea, com suas inúmeras maneiras


de tratar a questão espacial, mostrou-se capaz de propiciar um cenário de am-
pla complexidade. Agora, a capacidade de a arte contemporânea manter rela-
ções insuspeitas com referenciais críticos e históricos que representam para
ela — como ressaltou Georges Didi-Huberman —, elementos aparentemente
anacrônicos, pode justificar que olhemos para concepções do lugar também in-
tempestivas. Pensamos pessoalmente que a arte contemporânea gera forças e
manifestações que não carecem em relações subterrâneas com certas concep-

414
Idem, p.104
415
Idem, ibidem
ções pré-modernas, notadamente medievais, da imagem. Na verdade, para nós,
a noção de lugar tornou-se o alvo de necessárias reelaborações que as múltiplas
pesquisas espaciais e espacializantes que conhecemos nos obrigam a fazer.
Podemos relacionar seu conceito tanto com a problematização que um Michael
Fried faz no seu ensaio do ano 1967 sobre o núcleo “teatral” do minimalismo e
a concepção da situação que caracterizaria-o – “Art and Objecthood” –, quanto
com o conceito filosófico de lugar proposto por um grande teólogo do século XIII,
Alberto o Grande. Sim.
Como lembra Georges Didi-Huberman no seu livro sobre Fra Angelico – e
a citação vale ser extensa, por sua importância fundamental para nosso propó-
sito –,

a partir da célebre fórmula de Aristóteles, segundo a qual ‘o lugar é algu-


ma coisa, mas tem também uma certa potência” (dynamis), Alberto o Grande de-
senvolveu, no século XIII, uma verdadeira teoria da gênese das formas (inchoatio
formarum), na qual o lugar está bem longe de desempenhar o simples papel de
um ‘contenedor’ das figuras mais ou menos neutro e indeterminado. Ao contrário,
Alberto o Grande critica veementemente aqueles que defendem a idéia de que o
lugar não ‘traz’ nada às figuras, ou que ele é-lhes ‘extrínseco’. As figuras, as for-
mas, não se contentam em habitar um lugar: elas são produzidas por ele. Assim,
Alberto o Grande nomeia o lugar um ‘princípio ativo de engendramento’: locus est
generationis principium activum; é muito mais do que um simples espaço enten-
dido no sentido usual, topográfico; trata-se de um poder de morfogênese, uma
‘virtude’ capaz de fabricar, de ser eficaz, estruturante: a noção de lugar deve ser
entendida, escreve Alberto o Grande, como uma virtus factiva et operativa. […]
Assim, o lugar, o fundo, aquilo em que e pelo que formar-se-ão as formas, e des-
tacar-se-ão as figuras – o lugar é um trabalho potencial do divino.416

Vemos como a leitura por Didi-Huberman do conceito de lugar em Alberto


o Grande — que não nos permite decidir se é virtude da contemporaneidade po-
der contemporaneizar o medioevo ou se é virtude da filosofia medieval bater com
força à porta do pensamento contemporâneo (optamos pela segunda propos-
ta)… —, já converge com a leitura que um Michael Fried consagra às mais deci-
sivas experimentações plásticas da segunda metade do século XX. Na verdade,
a virtude factiva e operativa do lugar, para citar o teólogo dominicano do século
XIII, interessa totalmente a exploração contemporânea da situação do espaço na
arte — e além dela, também. A questão posta é a que Didi-Huberman relaciona
com a virada platoniana de Alberto o Grande, a partir do que Platão escreve em
O Timeu. Para tratar da essência do lugar dos objetos, Platão — comentado por
Didi-Huberman — parece dizer que só é possível “extrair a coisa para pensar-

DIDI-HUBERMAN, Georges, Fra Angelico. Dissemblance et figuration, Paris: Flammarion, col.


416

“Champs”, 1990, p.34


lhe o lugar” através de “raciocínios híbridos”, semelhantes ao sonho, “além das
sensações da realidade, contudo sensíveis.”417 Rumo a que metafísica estarí-
amos caminhando? Enquanto receptáculo matricial que enforma as figuras que
ele produz, o lugar é capaz, através de sua função de receptáculo das determi-
nações formais que o imprimem, de — sem ter forma própria — reverter a im-
pressão e, como uma luva revertida, gerar o positivo das formas. É preciso essa
impressão para que o impresso vire e gere uma força de ex-ternalização, en-for-
mação e ex-pressão. Alberto o Grande faz do lugar um princípio de geração. Não
defendemos um anacronismo a priori, mas para pensar o modo de enformar a
personalidade singular de um lugar, a idéia de fazer atravessar as várias ordens
de realidade desse conceito, por fluxos e influxos que exhibem “a força de uma
intuição translativa”418 é particularmente interessante. A leitura de Platão deveria
nos encaminhar no lugar tópico da situação vazia formulada por Michael Fried a
propósito da famosa experiência de Tony Smith na autoestrada do New Jersey.
Nos lembramos de que aquilo que surge aos olhos de Smith não se enquadra
nas categorias estéticas e artísticas usuais, como se tivesse sido necessário que
o lugar “porta-impressão”, como Platão diz, carecesse de configuração e con-
formação próprias. Como diz Platão: “aquilo em que a impressão se forma mal
seria próprio a recebê-la, se não fosse absolutamente isento de todas as figuras
que deve receber de algum lugar outro.”419 Aqui, vemos como o lugar precisa de
isenção formal e de ausência completa de identidade morfológica para poder
ser a condição de possibilidade do recebimento e do acolhimento de impressões
cuja determinação própria se reverterá imediatamente em surgimento (matricial)
de um perfil perceptivo particularizado, em en-formação perceptiva. Sem essa
isenção, a potência germinativa do lugar — situação vazia — não existe. Vemos
que esse conceito de lugar exige que não haja equilíbrio ou equiparação morfo-
semiótica entre o lugar onde a experiência acontece e qualquer presença objeti-
va que, ao remeter a algo conhecido e já balizado e filtrado pelos códigos estéti-
cos em vigor, criaria uma relação de proporcionalidade entre ambos. E podemos
pensar que é exatamente essa insenção formal, essa ausência de equiparação
morfo-semiótica entre lugar e obra que o in situ não pode realizar, a não ser que
renuncie àquilo que pretende ser…
Platão continua: “com efeito, se esse receptáculo fosse semelhante a
qualquer uma das figuras que nele entram”420 — e na experiência de Smith, não
é o caso —, “e se, porventura, lhe chegasse figuras contrárias àquela ou de

417
Idem, p.292
418
Idem, p.297
419
PLATÃO, Timeu, 50-c, citado in: Idem, p.294
420
Idem, ibidem
natureza absolutamente heterogênea”421 — e é isso mesmo que acontece na
mesma experiência —, “mal tomar-lhe-ia a semelhança”422 — e também ocorre
que Smith experimenta o cume da dessemelhança entre códigos artísticos e
dado contextual encontrado —, “porque ofuscaria-a por seu aspecto”423 — e é
exatamente o que acontece naquela noite: o lugar, situação vazia, ofusca toda
semelhança.

Lugar e situação
O artigo de Fried sobre o minimalismo merece ser rapidamente lembrado
por várias razões, já que é no meio dele que a experiência de Smith é lembrada
e interpretada, mas sobretudo por ele ser uma contribuição notória à questão crí-
tica do lugar (da arte e em arte) e das práticas situacionais. Perguntando porque
a visão modernista rejeita a “objetidade” da arte que ele chama de “literalista” por
ela projetar sua objetidade “enquanto tal” em um efeito de presença forte, Fried
apresenta o famoso núcleo de sua resposta: trata-se na arte literalista de “um
apelo a um novo gênero de teatro; e o teatro é hoje a negação da arte.”424 Como
teatro, a arte literalista gera uma “situação” que “pertence ao espectador — é sua
situação.”425 A situação é balizada pelos objetos dispostos e cria uma dinâmica
de integração e participação que já foi ressaltada inúmeras vezes nos textos
consagrados ao minimalismo, cujo caráter deve muito ao fato de que os objetos,
de tamanho proporcional ao dos homens, instalam o que Fried chama em Smith
de “pessoa postiça— a saber, uma espécie de estátua.”426 É por essa razão que
Fried lembra como, para Greenberg, esse “registro teatral” era de certa maneira
“uma presença cênica” que cria as condições de uma “especial cumplicidade
que o trabalho quer extorquir do observador.”427 Como Fried especifica, não é o
antropomorfismo da arte literalista que faz problema, mas o fato de que “o signi-
ficado e, igualmente, o ocultismo de seu antropomorfismo sejam incuravelmente
teatrais.”428
Essa teatralidade definitiva, Fried parece situar sua premonição quase
fundadora no contato crítico de muitos artistas como Tony Smith — mas pen-

421
Idem, ibidem
422
Idem, ibidem
423
Idem, ibidem
FRIED, Michael, “Arte e Objetidade” (“Art and Objecthood”, Artforum, june 1967), in: a & e.Arte
424

& Ensaios, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA - UFRJ, ano IX, nº9,
2002, p.134 (trad. do inglês por Milton Machado)
425
Idem, p.135
426
Idem, p.137
427
Idem, p.136
428
Idem, p.137
semos também em Robert Smithson e outros land artists no mesmo momento
— com a autoestrada, as pistas de aterrissagem e os terrenos militares desa-
fectados, lugares que fazem surgir a experiência do fim da arte, um fim que as
matrizes abandonadas e baldias que o dão a sentir e a intuir tornam manifesto
como situação vazia…, isto é, o espaço como possibilidade não-determinada,
mas determinante, de lugar. É o lugar como espaço “porta-impressão” de Platão.
É importante ressaltar que esse lugar “porta-impressão” é exatamente o lugar
absoluto, por ele ter a potência de moldar, configurar e en-formar uma percepção
e uma intuição particularizadas: na ausência da “arte” no lugar em questão, a si-
tuação gerada é minha: o que aparece como a ausência do objeto permite fazer
do espectador “um sujeito”, isto é, fazer da situação oca uma situação de plena
subjetivação. Subjetivação mais plena, completude, porque o lugar aqui não é
mais o lugar como aquilo que contem, abrange, cerca, circunscreve e delinea, a
localização dos objetos — o objeto no espaço fechado —, mas a objetivação da
capacidade operativa e factiva de esse lugar ser o grau zero da en-formação e
da subjetivação. Como escreve Fried,

aquilo que toma o lugar do objeto – aquilo que desempenha o mesmo pa-
pel de distanciar ou isolar o observador, de fazer dele um sujeito, o que o objeto
fazia na sala fechada – é sobretudo a infinitude, ou a ausência de um caráter de
objeto, da aproximação, curso ou perspectiva.429

Parece que Fried, que reenvia a Smith, remete aos trabalhos de Carl
Andre do ano 1968, em especial, Log Piece, do qual falamos acima quando
abordamos a questão aqui central da estrada como escultura ideal e do puro
fluxo da de-localização como processo capaz de diluir a escultura na afirma-
ção de um movimento potencialmente “interminável”. O conceito friediano de
situação interessa totalmente a problemática que levantamos nessas páginas.
Basta lembrar que as categorias situacionais chamadas site specificity, in situ,
estão para nascer na hora em que Fried publica seu ensaio. Esse momento
artístico e crítico é historicamente fundamental, sobretudo por colocar em jogo
muitas categorias habituais da arte, como Fried lembra quando relaciona sempre
a pretensa corrupção das artes plásticas com a afirmação no minimalismo de
uma sensibilidade teatral. O diagnóstico que ele avança leva-o a formular três
postulados polêmicos a respeito da “guerra” travada entre arte modernista pura
e teatralidade impura. O segundo postulado afirma peremptoriamente que “a
arte entra em degeneração à medida que se aproxima da condição de teatro”430,
essa teatralização significando que as várias expressões artísticas que vêem

429
Idem, p.139
430
Idem, p.142
suas barreiras desmoronarem convergem para uma danosa “espécie de síntese
final, implosiva.”431 Daí a enunciação do primeiro postulado, que afirma que “o
sucesso, até mesmo a sobrevivência das artes, tem passado crescentemente a
depender de sua habilidade em eliminar o teatro.”432 É preciso que a arte se pro-
teja. No comentário do segundo postulado, Fried apresenta uma argumentação
de ordem estética que a enunciação do terceiro resume bem: “os conceitos de
qualidade e valor — e, na medida em que eles são centrais para a arte, o próprio
conceito de arte — só são significativos, ou totalmente significativos no interior
das artes individuais. Aquilo que se encontra entre as artes é o teatro.”433
Célebre denúncia da perda da especificidade. Não entraremos na ques-
tão estética aqui levantada por Fried, mas ele nos ajuda a entender que a arte
literalista inaugura uma gestão artística do lugar que “se recusa a parar de se
confrontar com o observador”434, este sendo levado a “tomar consciência da in-
terminabilidade e inesgotabilidade, senão do próprio objeto, de qualquer modo
de sua experiência do objeto.”435 Infinitude, inesgotablidade da experiência são
valências temporais que Fried vê muito bem surgirem na arte contemporânea,
em 1967. Escreve — e isso nos parece fundamental, porque a inauguração de-
cisiva de práticas artísticas espacializantes e situacionais nos anos 1960 deveria
também sempre levar a uma valoração da dimensão temporal contida nelas:

aqui, quero finalmente enfatizar algo que já pode ter ficado evidente: a
experiência em questão persiste no tempo, e a apresentação da interminabilida-
de que, como venho afirmando, é central para a arte e para a teoria literalistas é
essencialmente a apresentação de uma interminável, ou indefinida duração. […]
A preocupação literalista com o tempo — mais precisamente, com a duração da
experiência — é, eu sugeriria, paradigmaticamente teatral: como se o teatro con-
frontasse o espectador e, desse modo, o isolasse, com a interminabilidade não
apenas da objetitade mas também do tempo.436

Fried lamenta que a teatralidade da arte literalista invista na duração e


não, como a pintura ou a escultura modernista, no efeito de presença instantâ-
neo. Este pode convencer por sua “presentidade e instantaneidade”437, enquanto
os dispositivos espaciais que ele critica são para ele apenas capazes de suscitar

431
Idem, ibidem
432
Idem, 141
433
Idem, p.142
434
Idem, ibidem
435
Idem, p.144
436
Idem, ibidem
437
Idem, ibidem
o interesse, isto é, de gerar “uma atenção continuamente dirigida ao objeto”438 ou
como Fried afirma — citando Smith falando de sua noite no New Jersey —, que
só podemos nos relacionar com o lugar tentando “decifrá-lo” (Smith). Aqui, na
ordem das considerações estéticas determinadas pela análise dos dispositivos
literalistas — paradigma histórico dos dispositivos espaciais, instalações, envi-
ronments e outros ambientes situacionais… —, o que deixa Fried contra a nova
arte é o processo interminável da percepção e da interpretação: o vimos bem
dizer que para consistir, ser evidente e significar, o conceito de arte precisava
que as disciplinas artísticas se mantivessem fiéis a suas especificidades. Na ver-
dade, Fried enxerga os dispositivos literalistas como atropelamento e probabili-
zação da percepção e da interpretação, um jogo perigoso que faz as categorias
modernistas entrarem em crise. Que a arte seja a instituição de uma dinâmica
relacional, na qual o espectador é ao mesmo tempo provocado e isolado o deixa
inconformado, porque a obra, vimos, recusa-se de maneira obstinada em deixar
o espectador tranquilo, impossibilitando que seu isolamento seja uma verdadeira
solidão existencial e que o confronto se transforme em comunião. A arte literalis-
ta institui dispositivos nos quais o tempo persiste em não se solucionar e não sin-
tetizar seus intervalos. Fried, no fundo, identifica o que começa precisamente a
interessar os artistas nessa época: a capacidade de conceber lugares que, pela
conjugação de uma dinâmica espaço-temporal singular, nunca deixam mesmo o
espectador se apropriar deles sem que ambos — o dispositivo e seu apropriador
—, existam e signifiquem um em função do outro.
Todas as estéticas situacionais, a partir dos anos 1960, almejaram um
desenvolvimento sustentável de suas propostas. Os espaços tornam-se mesmo
peças em um tabuleiro quadri-dimensional, esses dispositivos dos quais Fried
disse tão bem que eles nunca deixam de “grudar” o espectador que, uma vez
neles, não pode mais se desfazer de sua empresa, que neles as coisas não
“coloca(m)-se apenas no espaço do observador, mas também em seu cami-
nho”439, para concluir que “a situação como um todo significa exatamente o se-
guinte: toda ela, e inclusive, ao que parece, o corpo do observador.”440 Fried
observou e entendeu muito bem. É exatamente disso que se trata nas práticas
situacionais: instituir um dispositivo total relativo ao corpo perceptivo implicado
em um tempo duradouro.
Isso, à luz da arte que seguiu, não significa necessariamente espaços
abertos. Se, na arte brasileira por exemplo, uma instalação como Desvio para
o vermelho de Cildo Meireles nos parece representar um dispositivo com uma
temporalidade singular, não é inútil, antes de analisá-la, lembrar as tipologias

438
Idem, ibidem
439
Idem, p.134
440
Idem, p.17
dos espaços-dispositivos que Morris formulou em 1978, levando em conta todas
as experiências realizadas nos anos que o separam da data do ensaio de Fried
e de seus próprios ensaios sobre a escultura do ano 1966.
Capítulo XIV
Desvios na domus

Isso me ajudaria, já que devo também atribuir a mim-mesmo um começo, se pudesse


situá-lo com relação ao da minha morada. Aguardei alhures que esse lugar fosse pron-
to a me receber? Ou é ele que esperou que eu viesse povoá-lo? […] Direi, portanto,
que nossos começos coincidem, que esse lugar foi feito para mim, e eu para ele, no
mesmo instante. 441
Samuel Beckett.

Das análise que Morris faz em 1978 da justaposição, na escultura pós-mi-


nimalista, de “estruturas contidas” e de “campos abertos”442, podemos fazer um
ponto de partida para abordar certas manifestações da arte contemporânea no
que tange ao espaço interior. Desde os “primeiros trabalhos nitidamente centra-
dos sobre o espaço”443, uma série sem fim de obras “espaçosas” ocupa o cenário
das artes plásticas. Morris repara aquelas que “apresentam em geral uma forma
exterior forte como também um volume interior”444, estes podendo ser de grande
ou pequeno formato, fisica ou apenas visualmente acessíveis, não passando
de “resultado formal da casca exterior.”445 No entanto, esses “volumes eventual-
mente ocos”446 são para ele menos interessantes do que aqueles que tentam “di-
vidir e fabricar espaços.”447 Estes devem muito ao minimalismo, mas souberam
aproveitar sua capacidade de usar “a ‘generalidade’ da forma para integrar o es-
paço”448, para prosseguir a experimentação espacial da arte em direções como
aquelas que ressaltam o material bruto, o formato, o peso, o sistema ou a cons-
trução, chegando a “uma sorte de monumento bastante aberto.”449 Poderíamos
reconhecer aqui Serra, mesmo sabendo da rejeição por ele de qualquer carácter

441
BECKETT, Samuel, L’innommable (O Inomável), (1949), Paris: les éditions de Minuit, 2004,
p.16
442
MORRIS, Robert, “The Present Tense of Space”, Art in America, New York, jan.-fev. 1978, 66,
nº1, p.70-81. Trad. in: BOIS, Yve-Alain; BONNEFOI, Christian; CLAY, Jean; avec la collaboration
de Hubert Damisch et Nancy Troy, Architecture arts plastiques. Pour une histoire interdisciplinaire
des pratiques de l’espace, Corda, 1979, p.390
443
Idem, ibidem
444
Idem, ibidem
445
Idem, ibidem
446
Idem, ibidem
447
Idem, ibidem
448
Idem, p.391
449
Idem, ibidem
monumental na sua obra. Outros, diz Morris, “limitanto a importância dos aspec-
tos tangíveis, abordaram diretamente o problema do espaço.”450 Essa ressalva,
que parece opor esses “outros” àqueles que privilegiariam ainda certas espe-
cificidades da escultura, não nos convence de que os “escultores”, na figura
de um Serra, por exemplo, teriam abordado de maneira indireta o problema do
espaço… Outros, acrescenta Morris, “apresentando interiores articulados, se
aproximaram de uma certa imageria arquitetural. Outros, enfim, abrem o campo
espacial usando as distâncias em vez dos espaços contidos.”451 Difícil seria o
exercício que consistiria em identificar quem são os artistas que trabalham “os
aspectos tangíveis”, os que abordam “diretamente” o “problema” do espaço, os
que se aproximam da arquitetura e os que investem nas distâncias e não nas es-
truturas fixas. Essas categorias reenviam a tipologias muito variadas caracterís-
ticas da paisagem artística internacional dos anos 1968-78, onde tantos cabem,
de Oiticica a Buren, passando por Smithson e Serra, Serra que, como vimos, pa-
rece ser um artista que soube realizar a articulação de todas essas polaridades
nas suas intervenções paisagísticas ou urbanas.
No entanto, o que gostaríamos de abordar agora é um espectro mais am-
plo de obras nas quais as várias práticas reparadas por Morris atestam sua forte
presença. Comecemos com Daniel Buren.

Entre, contra, com Buren


No meio dos anos 1960, Buren já se
mostra insatisfeito com a ausência de re-
flexão crítica sobre a relação do objeto de
arte e de seu lugar de apresentação (Fig.
68). Começou, assim, a questionar a pare-
de. “Questionar a parede já era questionar
o lugar, questionar uma convenção implíci-
ta.”452 Buren acrescenta: “queria ver como
68 incorporar a parede e o lugar em alguma
coisa que fosse ainda do domínio do visível, da visualidade.”453 A desnaturaliza-
ção da evidência de que toda pintura, por exemplo, repousa sobre uma parede,
leva Buren a proceder a uma investigação onde as condições da percepção e da
visão são levadas em conta. “Não posso ver um quadro sem ao mesmo tempo

450
Idem, ibidem
451
Idem, ibidem
452
BUREN, Daniel, “Sortir des murs”, entretien avec L’Architecture d’Aujourd’hui, in: Architecture
et art, (dossiê), L’architecture d’aujourd’hui, n°286, abr. de 1993, p.63
453
Idem, ibidem
ver o que o envolve”454, diz Buren. É lógico que o envelope espacial das obras
se revelerá rapidamente determinante para Buren: “daí o passo feito sobre o en-
velope do lugar, a arquitetura. Dai o diálogo, o conflito, ou a osmose com ela.”455
Aqui, Buren sintetiza os desafios do trabalho in situ, assim que o apresentou
resumidamente na ocasião da Bienal de São Paulo, em 1985, cuja sala francesa
era curada por Michel Nuridsany. Buren apresentava ao público da Bienal a lógi-
ca de seu trabalho desde 1970 da seguinte maneira:

empregada para acompanhar meu trabalho há cerca de quinze anos, esta


expressão significa que o trabalho não está meramente situado ou em situação,
mas sobretudo, que sua relação com o local é tão constrangedora quanto o que
implica a si mesmo no local onde se encontra. […] A expressão ‘trabalho in situ’,
no sentido que considero o mais próximo, pode ser traduzido por ‘transformação
do local de recepção’. Transformação […] graças a diferentes operações, entre
outras, do uso de minha ferramenta visual (cf. Da ferramenta). Esta transforma-
ção pode ser feita para este local, contra este local ou em osmose com este local
[…]. Há sempre, por conseguinte, dois transformadores em obra, a ferramenta
sobre o local e o local sobre a ferramenta, que exercem, segundo o caso, uma
influência maior ou menor de um para outro.456

Diálogo, conflito ou osmose…, três possibilidades de relação com o lugar.


No começo de sua trajetória, nos anos 1966-68, vemos um Buren trabalhando
numa escala ainda discreta, mas claramente no contexto urbano. Seu logotipo já
funciona como “ferramenta visual”, marcador rapidamente identificável, ritmando
as paliçadas, constituindo, na forma de cartazes carregados por homens-san-
dwiches, por exemplo, estranhos ícones. Dessa ferramenta, Buren diz que sua
indiferença não impede que ela desempenhe sua função de marcador visual e
semiótico. Ele foi concebido em 1966 como um signo capaz, “uma vez colocado
e utilizado especificamente em um espaço e dentro de um conjunto de dezenas
de outros signos diferentes, […de] tomar sentido, fosse apenas o de, ao se mos-
trar, mostrar, designar ou sublinhar.”457
No âmbito internacional, é sem dúvida sua participação intitulada Peinture/
Sculpture no poço central do Museu Guggenheim, em New York, em 1971 (Fig.
69), que marca o départ fracassant de Buren na questão do in situ. A não-neu-
tralidade da arquitetura é a condição para que a grande lona pendurada no

454
Idem, ibidem
455
Idem, ibidem
BUREN, Daniel, “Do trabalho ‘in situ’”, trecho de “Du volume et de la couleur”, Cadillac: FRAC
456

Aquitaine, 1985, papel avulso, trad. de Martina G.B. Ognibena


457
BUREN, Daniel, em entrevista com Béatrice Salmon, 7 de maio de 1997, in: Daniel Buren,
Implosion ou La Cabane aux Quatre Piliers. Travail in situ, Nancy: musée des beaux-arts, 1997,
p.8-9
poço central do Museu possa exercer
sua função crítica. Buren deve ser citado
extensamente a respeito deste trabalho:
“o prédio de Wright é uma sorte de mani-
festo bastante claro que parece dizer que
as obras de arte que lhes são destinadas
nunca serão capazes de lutar com ele.”458
Acerca dessa intencionalidade do edifício
de Wright, Buren lembra que ela ressai a
uma concepção da arquitetura como mãe
das artes. Na época, diz Buren,

afrontei os problemas frontalmente.


Todas as obras nesse prédio flutuam, no sen-
69
tido próprio do termo, já que, de um lado, elas
não se apoiam contra nenhuma parede e que, de outro lado, não há horizontal
alguma. Se as olha sempre na vertical, mas com um pé mais alto que o outro.459

Para Buren, a aposta de Wright em obras prescindindo da parede era


ideológica, deixando

pensar que cada [quadro] não somente carrega um universo impermeável


ao outro, mas além disso, forçar o olho a fazer uma cesura que ele não é mais ca-
paz de fazer quando a obra flutua no espaço (como é o caso aqui) do que quando
pendura-se tradicionalmente a obra sobre uma parede.460

Vemos como o partido estético que sustenta um projeto arqutetural que


condiciona uma museografia específica determinando por sua vez uma certa
museologia, leva a fazer da questão da apresentação uma questão crucial. Diz
respeito às “implicações formal, estética e cultural que ele [o lugar] pode ter
sobre aquilo que (s)e propunha mostrar.”461 Buren prossegue sua análise. Ela é
exemplar do trabalho in situ:

ao instalar meu trabalho no centro do ‘vazio’ deixado pela arquite-


tura, eu acentuava a exclusão das outras obras, exclusão já efetuada pela arqui-
tetura que, após ter relegado rumo ao exterior tudo o que lhe era estrangeiro gra-
ças à força centrífuga que ela induz naturalmente, é feita para ser contemplada,

458
BUREN, Daniel, “Sortir des murs”, entretien avec L’Architecture d’Aujourd’hui, in: Architecture
et art, (dossiê), L’architecture d’aujourd’hui, n°286, abr. de 1993, p.63
459
Idem, ibidem
460
Idem, ibidem
461
Idem, ibidem
inteiramente voltada que é para seu próprio centro, aqui figurado por um pequeno
poço de água em forma de olho […] Acelerando este estado de fato pela coloca-
ção do meu trabalho no centro mesmo de convergência de todos os olhares, con-
vergência já desejada pelo arquiteto, se me as apropriava de repente e revelava a
contrário o quanto todas as obras expostas habitualmente sobre os exteriores das
rampas se encontravam, em um movimento centrífuga, relegadas nos confins do
museu, isto é, do envelope arquitetural, isto é, no lugar o mais afastado possível
do único verdadeiro, central, ele, apresentando a única obra possível e digna de
ser vista, sempre e em todo lugar, sob todos seus ângulos, a saber, a obra de
Wright.462

Múltiplos são os exemplos. Falando de sua instalação no Museu de Nancy,


em 1997, Buren diz:

estando na série do que nomeiei as “Cabanas Estilhaçadas”, essa é origi-


nal em pelo menos dois pontos. O primeiro é que ela é inamovível, específica a
um só lugar, ao contrário de todas as outras “Cabanas Estilhaçadas” que são mó-
veis […] O segundo é que, em vez de partir de um núcleo central que explode no
espaço dado, parto aqui de uma arquitetura envolvente que implode literalmente
para vir reconstituir um núcleo central.463

70 71

As Cabanes Éclatées (Fig. 70 e 71) são muito interessantes porque elas


conjugam o princípio do desposamento quase cameleônico do lugar pelo dispo-
sitivo e a idéia da mutabilidade virtual da estrutura ideada em função do lugar. A
dinâmica espacial das Cabanes é patente através, também, das operações que
elas são destinadas a realizar potencialmente em seus agenciamentos: difun-
dir-concentrar, refletir-espelhar, etc. Ocupando Buren desde 1985, as Cabanes
Éclatées são o exemplo de um trabalho in situ. Excelente definição: trata-se da

462
Idem, p.64
463
BUREN, Daniel, em entrevista com Béatrice Salmon, 7 de maio de 1997, in: Daniel Buren,
Implosion ou La Cabane aux Quatre Piliers. Travail in situ, Nancy: musée des beaux-arts, 1997,
p.6
“pesquisa de objetos que teriam ao mesmo tempo a qualidade de ser e de só
existir em relação ao lugar onde se encontram”464 e que poderiam também mu-
dar de lugar. Têm por características “desposar até o extremo o lugar escolhido
e, finalmente, depender dele”465, o dispositivo e o lugar “transformando” um ao
outro. Assim, “instaura-se uma respiração cujos elementos móveis, estilhaçados,
seriam os pulmões.”466 Vemos como aqui a definição dada por Buren em 1997 é
mais acomodada do que a que consta da apresentação de seu trabalho na Bienal
de São Paulo de 1985.467 Talvez uma obra como a que foi instalada em 1991 no
Capc, em Bordeaux, na França – Dominant-Dominé (Fig. 72)– é emblemática:
espelha, duplica o espaço, mas diferenciando-o através da direção oblícua do es-
pelho, o eixo vertical do espaço horizontal
refletido sendo submetido a uma diago-
nalização e lateralização conjuntas. É o
conjunto dessas implicaçõe que Charles-
Arthur Boyer resume assim: “não se trata
mais, portanto, de um trabalho simples-
mente situado em um lugar, inscrito den-
tro de um espaço, mas de um trabalho
para um site, em função de seu espaço
(sua natureza, sua estrutura, sua história,
seu uso, seu público…).”468 Temos aqui o
espectro das correlações estabelecidas
pelo dispositivo in situ com outras cate-
gorias de interlocução. Continuando a pri-
72 vilegiar os itálicos, Boyer escreve:

não se trata de criar uma construção por ela mesma, mas, com a ajuda de
uma construção especificamente pensada (aqui, a cabana), de reencontrar ou de
produzir algum sentido para (ou uma nova estrutura para, um novo olhar sobre,
um novo deslocamento através de…) um lugar ou um espaço dado. E isso para
que, através desse dispositivo de visão que a ‘Cabana Estilhaçada’ é, vinculem-
se o próximo e o longínquo (do olho, do espaço, da arquitetura, da história, do
saber); o volume da cabana e o espaço arquitetural que o acolhe e sobre o qual
ela se reflete; os diferentes planos desse site in situ e o deslocamento do olho, do
corpo e do pensamento do espectador; esse site no seu site e o contexto geral no

464
Idem, p.7
465
Idem, ibidem
466
Idem, ibidem
Inclusive, mostra como a ponderação que fizemos no capítulo anterior sobre a vocação de
467

equiparação do in situ se sustenta mesmo.


468
BOYER, Charles-Arthur, “Daniel Buren: une simple indication”, in: Idem, p.14
qual se inscreve.469

Tal apresentação do trabalho de Buren para uma exposição em uma ci-


dade do interior da França trinta anos depois do início de sua carreira sugere
como ainda era preciso tomar as coisas por suas bases para tornar acessível ao
público as implicações de um trabalho que foi contudo o do artista mais “oficial”
da França do Presidente François Mitterrand, nos anos 1980-90. A pedagogia
do texto acompanhando a exposição Implosão mostra como a escolha da ter-
minologia é fundamental para adentrar o núcleo crítico de trabalhos como todos
aqueles que apresentamos aqui. Mesmo em 1997 ou 2007, a terminologia em
uso pode sofrer de incertezas, desgastes, deslizamentos, redutivismos.
Sabemos que Buren começou a instalar suas faixas listradas acima das
paredes, dos muros, das paliçadas etc, das cidades em volta de 1966. O “esplen-
dor” da grande tela listrada no Guggenheim, em 1971, permite lembrar que sua
refutação por Donald Judd ou Joseph Kosuth passava por uma forma pertinente
de assimilação da instalação a um gesto pictórico, Judd qualificando Buren na
ocasião de produtor de papeis pintados... Julie Pellegrin, crítica atenta ao tra-
balho de Buren, nota que recentemente, Buren se mostra muito atento ao tipo
de relação que a obra e o espaço podem travar através do “registro decorativo.”
470
Remarcável é o fato de a cor desempenhar nisso um papel determinante.
Já em 1997, Buren afirmava que a cor “é
um dos raros elementos totalmente incon-
tornáveis e indizíveis”471 de seu trabalho.
Acrescentava: “dentre os pintores, aqueles,
aliás, que mais respeito, são aqueles que
fazem do problema da cor uma das bases
essenciais de suas pinturas, quando não
é a pintura ela mesma. A meus olhos, tem
poucos, muito poucos.”472 Para Buren, de
Matisse a Pollock, para ficarmos na arte
moderna, a relação da pintura com a de-
coração parece caracterizar a vocação da
pintura e um ponto de partida para seu tra-
balho. Assim, em 2001, ele instala na gale-
ria Marian Goodman em Paris (Fig. 73) um 73

469
Idem, ibidem
470
PELLEGRIN, Julie, “Decoration as Critique”, Art Press, nº280, june 2002, p.19
471
BUREN, Daniel, em entrevista com Béatrice Salmon, 7 de maio de 1997, in: Daniel Buren,
Implosion ou La Cabane aux Quatre Piliers. Travail in situ, Nancy: musée des beaux-arts, 1997,
p.9
472
Idem, ibidem
dispositivo no qual os filtros de cor postos na cobertura vidrácea da galeria se
refletem em espelhos levantados no chão da galeria e no próprio solo. Se o
trabalho lembra o repertório formal do minimalismo, suas formas puras e seus
materiais industriais, esse vê-se “corrigida pela fragmentação e pelo disparo das
formas no espaço, a saturação da cor e um tratamento sútil da luz, que contri-
buem à criação de um ambiente global.”473 Para Buren, desde o fim dos anos
1960, quando a pintura se torna uma “ferramenta visual” que não é mais a obra
a ver, mas o que permite ver, “o decorativo é um meio para proceder à análise do
contexto.”474 Esse ponto é importante. Ele rompe com a idéia fraca, supérflua, es-
tetizante do decorativo. A partir do que Julie Pellegrin chama “o poder de indexa-
ção – e, em conseqüência, de transformação - da ferramenta visual, o decorativa
aparenta-se a uma mudança acontecida no espaço ambiental.”475 As Cabanas
Estilhaçadas, nesse sentido, desde 1975, submeteram o cubo branco a uma
implosão. São paralelepípedos nas paredes das
quais os recortes são projetados sobre as pare-
des da sala de exposição, o uso de espelhos, a
partir dos anos 1990, acelerando a “dissolução
das fronteiras do espaço fechado”476, isto é, do
cubo branco neutro moderno. Uma instalação
como Dominant/Dominé (1991), por exemplo,
propunha um gigantesco espelho inclinado em
toda a largura e extensão do Capc de Bordaux,
o espaço interno do museu vendo-se assim des-
dobrado através de um espelhamento diagona-
lizante que fazia-o começar a girar sobre seus
eixos e bases normais. Em um espetáculo do
ano 1996, Moving Target (Fig. 74), montado em
parceria com o famoso par de arquitetos Diller + 74
Scofidio, o coreógrafo Frédéric Flamand escre-
ve:

desejoso de abordar o tema da esquizofrenia, e o esquartejamento que


ela supõe entre realidade e ilusão, encontrei neles os parceiros capazes de con-
ceber uma cenografia permitindo desdobrar o olhar do espectador. Um espelho
inclinado a 45º refletia o espaço cênico, propondo uma outra leitura daquilo que
acontecia no solo. […] Utilizado como tela de projeção, o espelho permitia tam-

473
PELLEGRIN, Julie, “Decoration as Critique”, Art Press, nº280, june 2002, p.19
474
Idem, p.21
475
Idem, ibidem
476
Idem, p.19
bém que, no seio de um mesmo espaço híbrido – a saber, constituído da super-
posição do espaço definido na imagem projetada e daquele refletido do palco –,
dançarinos reais e virtuais se confrontassem.477
É interessanta ver como, na arte contemporânea, as práticas in situ que
privilegiam o espelho são frequentes. Elas, sem dúvida, constituem formas de
reflexão plásticas, ambientais e situacionais sobre os possíveis princípios de
dinamização do espaço de apresentação e relacionamento de um dispositivo
com seu continente. No Brasil, encontra-
mos por exemplo na prática de Carlos
Fajardo um recurso ao espelho (Fig. 75):
uma mesa de espelhos se encontra na ex-
posição da ArteCidadeZonaLeste (2002),
outra, combinada com paliçadas verticais
de espelhos na Pinacoteca de São Paulo
(Fig. 76), no Museu de Arte do Rio Grande
do Sul Ado Malagali, em Porto Alegre, no
MAM Aloísio Magalhães, em Recife ou no
MAM do Rio, em 2003, etc478, a reinstala-
ção do dispositivo horizontal e dos painéis
75 verticais procedendo a “reiteirações”, um
conceito que Jean-Marc Poinsot problematiza no contexto da possibilidade ou
não de um núcleo formal ser deslocado e reapresentado em outras circunstân-
cias espaciais in situ. A exposição Poética da Distância era interessante porque
propunha uma dupla reflexão indissociável: como instalar um conjunto de obras
datadas de épocas diferentes, concebidas em conjunturas espaciais diversas,
confrontadas ao desafio de estruturar uma proposta espacial e ambiental in situ,
sabendo que nenhum esquema prévio de compossibilidade entre elas tinha orien-
tado sua criação para uma eventual cohabitação futura. O desafio próprio ao in
situ tendo, de certa maneira, obrigado Carlos Fajardo – de repente posto frente
à responsabilidade de organizar uma forma singular de retrospectiva histórica e
formal com alguns componentes de sua obra –, a inventar do mesmo gesto o
sistema variável de co-presença e integração de suas obras como corpus espa-
cial. Este devia motivar a cada ocorrência o arranjo certo e o ajuste válido para
que o desafio da instalação in situ seja superado. A exposição de Fajardo em
2003 apresentava um espaço de integração das obras entre elas e destas com
os espaços, o desafio sendo de produzir uma coesão plástica interna e a coesão
entre essa coesão interna e o espaço de apresentação. Tratava-se de gerar uma

477
FLAMAND, Frédéric, “Un chorégraphe, des architectes”, in: Art Press, L’architecture contre-
attaque, Hors-série, mai 2005, p.60.
478
FAJARDO, Carlos, Projeto Poética da Distância, catálogo, São Paulo, 2003.
espacialidade autônoma, sem contudo que esta
pudesse ser alcançada fora do diálogo com o
continente, diálogo cujo éxito podia só garantir a
completude da proposta in situ. Não podemos di-
zer aqui se os desafios foram superados, mas o
que nos interessa são as questões postas. Elas
têm a ver, de novo, com o que Buren trabalha
desde muito tempo: o decorum, que o historia-
dor da arte Roland Recht define como conceito
antigo de uma “tradição monumental na qual o
espaço é transformado através de procedimen-
tos plásticos, pintados ou esculpidos, o resultado 76
sendo um conjunto coerente.” O “decorativo”,
479

portanto, no seu valor positivo e estruturante, é


“fundado tanto sobre acordes cromáticos quanto
sobre relações de escala perfeitamente domina-
dos”, o que o leva a “exercer uma influência de-
cisiva sobre a arquitetura.”480 (Fig. 77).
Nesse sentido, o “decorativo” em Buren
nos mostra como as aberturas ressaltadas por
Morris convergem para questões que interes-
sam a arquitetura como propiciadora de espa-
ços-decorum a serem experimentados. Falando
das Cabanas, Julie Pellegrin diz que elas põem o 77
ambiente à prova, expondo e explodindo os lugares nos quais elas são situadas,
construindo um ambiente novo. Um ponto muito importante é que a aproximação
com a arquitetura acontece a partir da instalação de estruturas que funcionam
como momentos de exploração de situações espaciais, com suas implicações na
recepção social, ao mesmo tempo individual e coletiva, o que é próprio à espa-
cialidade dos espaços habitados. Os dispositivos instalados amiúde contribuem
a solicitar uma qualidade de atenção reforçada, uma necessária desaceleração,
tendo uma escala 1/1 que facilita a relação de apropriação e percepção, sem ser
contudo arquitetura no sentido estrito do termo. (Quem diria, por exemplo, que
Yellow Room, de Bruce Nauman, é exatamente arquitetura?) Buren ressitua bem
essa relação quando escreve: “o espírito do lugar implica o lado vivo, as pessoas
que o habitam, que fazem-no funcionar e esse aspecto funcional e humano não

479
RECHT, Roland, Penser le patrimoine. Mise en scène et ordre de l’art, Paris: Hazan, 1998,
p.44
480
Idem, p.45
está sem conseqüências.”481 O ambiente concebido no registro decorativo como
Buren o entende permite por o público no interior de uma dimensão também
coletiva, a categoria em questão tendo relações estreitas com a noção de pro-
grama de decorum que existiu em tantas instituições representativas de vários
tipos de poderes, político, religioso, jurídico, militar etc.
Nesse contexto, podemos nos perguntar se uma instalação como Desvio
para o vermelho (1967-1984), de Cildo Meireles, não seria uma das das manifes-
tações contemporâneas mais claras de reflexão sobre o decorum total, na suas
dimensões indissociavelmente individual e coletiva. Como escreve Dan Cameron
a seu respeito, “a observação prolongada leva invariavelmente à vertigem, suge-
rindo que o impacto visual da cor está tão intimamente ligado a memórias primor-
diais da experiência humana como a percepções mnemônicas como tato e sa-
bor.”482 Como veremos a seguir nesse capítulo, essa análise aponta para vários
horizontes na questão da domus e da criação, na arte contemporânea, de domi
(plural de domus) singulares e de relações com questões estesiológicas das
mais diversas, notadamente as do tato. Tato, ambiência, corpo, espaço cons-
truído mantêm uma relação de integração complexa que nos obriga a ampliar
nossa reflexão com a questão do ambiente construído, da domus. Para fazê-lo,
partiremos de novo de algumas considerações vindas do campo “-tectural”.

-Tectura/tati-lidade
O dia em que a produção do ambiente construído começar a proclamar
que o ponto nevrálgico é o corpo, o impacto sobre os corpos, teremos avançado
muito. Não se trata de sonhar mas, como o veremos mais tarde, de rememorar-
se, urgência crítica, de uma certa tradição do pensamento que levou a arquitetu-
ra a propor paradigmas de análise e de inteligência de seu objeto que remetes-
sem a outros valores que os valores meramente tecnológicos. Assim, em volta
de 1860, o arquiteto austríaco Gottfried Semper fez do Bekleidungkunst – a arte
do revestimento – a arte originária (Urkunst) e a origem da arquitetura.483 A tese
é concisa: do téxtil deriva a arquitetura. O recinto em forma de tapete, a parede
textil que parte o espaço e que, ao mesmo tempo, é a afirmação deste, privilegia
a plenitude corpórea do edifício. Em 1860, a eleição do paradigma téxtil tem um
efeito histórico retrospectivamente estratégico: combate a predominância daqui-
lo que podemos chamar, remetendo à época — mas a ditadura da concepção
engenherística da arquitetura que conhecemos hoje segue a mesma linha…—,

481
BUREN, Daniel, “Au sujet de…”, entretien avec Jérôme Sans, Paris: Flammarion, 1998, citado
in: PELLEGRIN, Julie, “Decoration as Critique”, Art Press, nº280, june 2002, p.22
CAMERON, Dan, “Em Foco. Desvio para o vermelho”, in: HERKENHOOF, Paul; MOSQUERA,
482

Geraldo, CAMERON, Dan, Cildo Meireles, São Paulo: Coisa & Naify, 1999, p.84
483
Sobre Semper, ver GARGIANI, Roberto, “G.Semper’s ‘Style’: towards the incorporeal cons-
truction”, in: eav, Versailles Architecture School’s journal, issue 3, 4th quarter 1997, p.72-81
de construtivismo das estruturas metálicas. Eleger a Bekleidungkunst como pa-
radigma fundador da arquitetura era uma maneira de ressaltar-lhe fundamentos
antropológicos sucetíveis de superar as limitações intrínsecas aos modelos esti-
lísticos e estéticos ecléticos e à ideologia industrial e tecnófila da época. Semper
procurava afirmar a urgência de pensar aspectos arquitetônicos e dimensões
culturais se situando além das meras necessidades construtivas como a solidez
e a sustentação viável, garantidas pelo material tradicional como o tijolo, a pedra
ou o ferro. Queria afirmar a importância da qualidade sensível do material que
constitui o estofo de um edifício. Na época de Semper, a sublimação da matéria
e da construção tinha recebido uma de suas mais interessantes formulações em
Quatremère de Quincy. Em Jupiter Olympien (1814), Quatremère articulava o
pensamento construtivo vitruviano com claras preocupações acerca da materia-
lidade do corpo arquitetetônico. No entanto, em oposição a um Quatremère que
afirmava que a policromia natural dos materiais devia ser determinada pela natu-
reza dos elementos construtivos – já se opondo, aliás, a todo tipo de intervenção
ou de aplicação posterior de uma decoração heterogênea – Semper reivindica
o revestimento como princípio determinante da forma. Entre a estética industrial
e os revivals neo-góticos de sua época, o arquiteto austríaco procurava salvar
um pólo simbólico positivo, desprovido das várias contaminações historicistas
de sua época. Esse ponto é importante quando se trata de avaliar as referências
que um artista veicula para construir sua visão crítica.
Sua visão leva-o a ressaltar a dimensão antropológica contida na dis-
posição dos elementos arquitetônicos, com suas significações originárias, em
detrimento do aspecto circunstancial caracterizado pelo sistema construtivo e
suas justificativas “funcionais”. Com o Crystal Palace de Paxton, na Exposição
Internacional de 1851, em Londres, temos o exemplo histórico da possibilidade
de decidir valorizar ou a estrutura portante, os esteios e as nervuras de ferro,
ou a pele vidrácea que envolve o edifício. Semper será mais sensível à segun-
da (considerando contudo que a estrutura metálica equilibra perfeitamente suas
funções com a função do vidro). Semper, para reequilibrar a predominância de
uma ideologia proto-funcionalista na arquitetura tecnófila do século XIX por valo-
res outros, atenta para a corporeidade orgânica da arquitetura. Se tivéssemos de
resumir em poucas palavras a tese hermenêutica de Semper, diríamos que seria
a oposição crítica entre valores materiais e valores construtivos, isto é, entre as
duas vertentes que constituem indissociavelmente a questão estrutural da arqui-
tetura. A força da visão semperiana reside em uma valorização do corpo arqui-
tetônico como instância sensível. A arquitetura, para ele, age pela sensação que
induz ao usuário. Sem jamais remeter a um filósofo como Leibniz, Semper, fora
de qualquer tipo de uso terminológico do vocabulário do autor da Theodicéia,
acredita também no papel determinante da percepção e, mais precisamente,
daquilo que Leibniz chamava de “pequenas percepções”, cuja acumulação gera
uma percepção global. Semper, seguido por Adolf Loos poucas décadas mais
tarde, instaurou uma valorização da materialidade sensível dos elementos da ar-
quitetura que manifesta até que ponto a pesquisa e a concepção a seu respeito
são essenciais para a qualidade do ambiente construído. Semper e Loos são os
fundadores modernos da questão tanto interior quanto ambiental – mas o am-
biente é sempre-já interior, para nos opormos àqueles que defendem uma visão
tecnocrática e externa do ambiente. Daí a tese defendida no segundo volume
de Der Stil in den technischen und tektonischen Künsten (1860-63), consagrado
à cerâmica – o primeiro versava sobre a arte téxtil – onde Semper retoma seus
Quatro elementos da arquitetura (1851) que são o lar, a plataforma, o recinto e
o teto. Semper classifica as “matérias primas” que remetem a um simbolismo
não-construtivo derivado desses quatro elementos paradigmáticos, sendo que
o lar encarna a dimensão total questionada. Eles atentam para a experiência
qualitativa do espaço, num nível de lucidez e num gesto de priorização cultural
que representa, a nosso ver, o outro dialéctico da tradição construcionista e en-
genheirística. Muitos trabalhos, na arte contemporânea, aproximam-se do desa-
fio crítico que a visão semperiana dos espaços construídos coloca. Poderíamos
reenviar a exemplos contidos nesse livro, e produzir uma lista imensa de obras
nas quais, desde os anos 1960, a materialização do espaço qualificado e qualifi-
cante funciona. Essa lista levaria a centenas de possíveis e pertinentes estudos
de caso. Nos manteremos em alguns exemplos, nos propondo analisar neles as
relações complexas com o paradigma ambiental de cujo Semper é um dos mais
importantes e decisivos pensadores na história moderna dos campos plástico e
-tectural.
Existe na magnífica obra de Cildo Meireles um trabalho que se relaciona
de maneira impactante com nossa temática: Através (1983-89) (Fig. 78), que
ocupa, com sua dezena de materiais diversos, uma área de aproximadamen-
te 225m2. Nessa instalação, o âmbito
epidermico funciona como a neces-
sária trama de um devir-dramático da
experiência plástica. As divisórias e os
anteparos, todos caracterizados por
uma materialidade na qual o vidro e o
metal (as finas treliças) predominam,
leva a instalação a ser um manifesto
78 plástico da capacidade que um artis-
ta tem, ao usar uma materialidade tão
fortemente crítica — e crítica por sua capacidade de lançar e jogar o risco à face
e ao pé do usuário —, de sustentar e estruturar uma metáfora que, no caso, é
política: a solidão carceral, as barreiras da censura e da ausência de liberda-
de de expressão, a ex-pressão sendo aqui o que melhor encontra modalidades
concretas, materiais, matéricas e físicas para se manifestar como aquilo que é
barrado, frustrado e tornado sofrido pela imposição de uma rede de crivos físi-
cos dilaceradores… Através de Através, o ambiente oiticiquiano mudou para um
dispositivo do constrangimento, o Éden tendo-se transformado em princípio de
profunda inquietação espacial e sensorial. Para isso, é preciso lembrar mais
uma vez que a percepção do ambiente é construída pelo acúmulo das pequenas
percepções desapercabidas que, ao se sucederem, combinarem e acumularem,
criam a singularidade da percepção que cada um de nos tem de seu ambiente.
Múltiplas são as possíveis maneiras de por um dispositivo artístico em re-
lação com seu ambiente. Assim, em Através ou Desvio, Meireles procede a uma
operação que conhecemos bem: aquela que remete ao conceito de unheimlich
em Freud e que os tradutores brasileiros
traduzem por estranhamento. Ela implica
uma operação de desfamiliarização dentro
do familiar. Não seria isso que, no final das
contas, tantos artistas fariam? Tomemos o
exemplo de Robert Artschwager, com seus
trabalho sobre o mobiliário. Ele projeta nas
paredes ou nos cantos de uma sala silhue-
tas bidimensionais que resultam do acha-
tamento ou do esmagamento virtual do
móveis. Uma cadeira, Splatter Chair (for-
mica, Documenta IX,1992) (Fig. 79), vê-se
desmembrada ou, melhor dito, aplainada,
revelando sua estrutura tridimensional an-
terior em toda a superfície da chapa bidi-
mensional de formica. Os móveis parecem
transformados em monstros, em manchas, 79
como a de uma mosca ou de uma abelha esmagada. Assim, os móveis, habitu-
almente empenhados no uso cotidiano – uma cadeira é para sentar e ser usada,
sem que interroguemos sua função e sua destinação, senão deixaria de servir
–, são submetidos à sempre feliz operação fenomenológica da epochè, a “co-
locação entre parênteses” ou suspensão da função natural do objeto permitindo
que ele apareça enquanto tal, adquirindo uma presença consistente e resistente
à nossa apropriação, deixando de desaparecer no seu uso, isto é na transpa-
rência de sua função. Quando um objeto torna-se sua própria imagem…É isso
que Artschwager faz, projetando violentamente a imagem da cadeira nas coor-
denadas da arquitetura, isto é, criando-lhe novas condições de visibilidade e de
percepção. Para isso, ele procede a verdadeiras anamorfoses do objeto usual,
superdimensionado. Vira um monstro, isto, um monstro que de-monstra o teor
insuspeito dos objetos a nosso redor.
No Brasil, Regina Silveira também realizou e ainda produz obras de ca-
rácter anamorfótico de grande significação na questão que nos interessa aqui.
Uma de suas exposições importantes do ano 2007, Compêndio,484 (Fig. 80) como
todas suas exposições recentes, projeta-se
na escala da arquitetura ou da cidade. No
museu da Pampulha, a “sessão” consagrada
na exposição aos projetos de instalações e
intervenções em arquiteturas pré-existentes
ou em espaços urbanos, pode ser observada
com olhos até mais “profissionais”, por exem-
plo, de arquiteto, que identifica imediatamen-
te a contribuição desses trabalhos à questão
da arquitetura como antecipação, esboço e
projeto de espaços. No entanto, os jogos de
linguagem não compõem apenas arquivos
testemunhando um processo de maturação
das ações concretas. Não se contentam em
80 tomar emprestado à arquitetura um caminho
que é-lhe própria. Não apresentam apenas os passos e compassos de uma
encenação artística seguindo os rumos da intervenção in situ, para ajustar a in-
serção de um dispositivo espacial num dado lugar, tentando fazer com que a in-
tervenção condissesse com ele. Não. Cor Cordis, Mais pesado que o Ar, Vortex,
Monudentro etc., são sobretudo modalidades de proliferação visual, de desenca-
deamento da gramática ponto-linha-plano, uma forma de submissão dos modos
tradicionais de configurar o espaço na sua previsibilidade a uma pulsão explo-
siva. Em arquitetura, o desenho pode ter desempenhado historicamente uma
função de liberação de energia formal e estrutural. Assim, muitos trabalhos de
arquitetos, hoje, vão na direção da afirmação da “energeia” de uma arquitetura
chamada a escapar à restrição de sua ação à simples construção de objetos só-
lidos e permanentes. Pensamos nos cenários arquitetônicos e urbanos do grupo
Archigrarm, com suas arquiteturas prometidas a andar. Em todo caso, trata-se
de uma tentativa de afirmar a capacidade de a arquitetura participar da criação
de uma plasticidade viva e livre que, para retomarmos a definição que André
Breton dava da fotografia, evoca a idéia de “explosante fixe”, explosiva fixa...
Nesse sentido, é difícil não intuir debaixo da razão figural dos projetos de Regina
Silveira uma forma de contra-tipo metodológico. A geometria de Regina Silveira

484
SILVEIRA, Regina, Compêndio, Museu da Pampulha, Belo Horizonte, maio-julho de 2007
– que parece em certos momentos bem comportada, bem sensata, já que se tra-
ta de pensar a relação real e física de um lugar urbano com um dispositivo que o
habitará certo tempo –, é um recurso ideal para, rente à pretensão utilitária, en-
loquecer discretamente o princípio de regulação social que a arquitetura sempre
teve na sua tradição, inclusive moderna. A realização das intervenções e ações
visuais em edifícios ou cenários urbanos mostra claramente que se trata nesses
trabalhos da mesma proliferação do incontrolável, que caracteriza o barulho vi-
sual dos insetos: os suportes escolhidos criam condições de (des-)dobramentos,
de multiplicação, de angulação, de reflexividade e refrações visuais cuja relação
com os conhecidos jogos barrocos de mise-en-abîme de uma imagem por dis-
positivos de espelhos é patente. Trata-se de tudo, menos conformar, harmoni-
zar, apaziguar. Trata-se de criar anti-monumentos efêmeros. Começam a existir
virtualmente nos moldes da representação/antecipação (maquetes, desenhos
feitos e refeitos) e existem atual e finalmente nos espaços de sua destinação
como inserções deflagradoras. Regina Silveira testemunha:

outras possibilidades exploradas em obras dos anos 90 foram as tensões


que os espaços virtuais construídos geometricamente mantêm com os espa-
ços reais onde estão inseridos. Quando as dimensões espaciais permitiam que
o observador caminhasse, o fundamental era evidenciar as diferenças entre os
espaços em perspectiva e os espectaços mais fluidos da percepção, para que
experimentasse os efeitos vertiginosos de perspectivas “em abismo” […] Estou
pensando, por exemplo, nas peças que ponho a funcionar como ‘enxertos’ de ar-
quiteturas fortemente geometrizadas e vertiginosas nos espaços experimentados
como ‘normalidade’ perceptiva.485

Esse enloquecimento, sutil mas eficaz, não segue uma motivação anár-
quica. O trabalho é meticuloso, imensamente, incontrolável controlado. Nele, a
monstruosidade é objeto de manipulações finas e preparadas, a ampliação da
escala é realizada para montar na frente do observador o território surpreen-
dente de uma proposta artística singular. Quando vemos tantos trabalhos nos

81 82

SILVEIRA, Regina, “Entrevista com Kevin Power), in: Compêndio, Catálogo de exposição,
485

Museu da Pampulha, Belo Horizonte, maio-julho de 2007, p.13-14


quais um grid, uma grade – em filigrana ou superexposta – se mostra presa nas
coordenadas do espaço arquitetônico (Fig. 81 e 82), assistimos à condensação
da aranha e de sua teia, a “casa” do bicho parecendo com seus esteios orgâ-
nicos, os fios. Tantas escadas e sombras filtram atualmente um caos pairando
na vizinhança e, virtualmente, são este caos. Em muitos trabalhos anteriores de
Regina Silveira, existe uma margem de indecidabilidade: a arquitetura é suporte
ou halucinação? Em Intro (re:fresh widow, r.s.) 1997, as pegadas são engolidas
pela janela-malha ou é esta que libera-as? Nunca o verbo “frisar” foi tão bem
justificado que nos Graphos e na Escada Inexplicável que afirmam e negam
simultaneamente a arquitetura. Frente à maioria das obras de Regina Silveira,
falariamos bem – sobretudo por se tratar de trabalhos remetendo a processos de
estruturação formal sólidos, insistentes, inclusive repetitivos e, digamos, quase
obsessionais –, de Friso do Inconsciente. Porque tantas sombras e deforma-
ções, porque tantas protuberâncias? A dimensão arquitetural salta de imediato
em uma dimensão ontológica. Regina Silveira não estaria, há anos, à procura de
uma linguagem que possa projetar as sombras do humano no plano da apresen-
tação artística. Com efeito, a multiplicação formal e numerosa das sombras – em
forma de manchas pretas deposando o plano de seu suporte –, grudadas e como
que não-descoláveis –, institui um universo polimórfico e polissêmico inquietan-
te, cheio de harmônicos enigmáticos.
Com Rachel Whiteread, é de outra
domus que se trata, de outra materialida-
de. Suas réplicas do interior são famosas.
Debaixos de cadeiras em uma instalação
ampla, Untitled. One Hundred Spaces, (re-
sina, cem unidades, 1995) (Fig. 83); espaço
contido entre o perfil de um livro e o fundo
das estantes para as quatro paredes ex-
ternas do Judenplatz Holocaust Memorial,
monumento inaugurado em novembro de
1996, em Viena, o interior completo de um
quarto exposto em uma galeria, Ghost,
(gesso sobre estrutura de aço, 2,69 x 3,55
83
x 2,09m., 1990), e House (1993, destruído
em 1994) (Fig. 84), a moldagem do interior de uma casa em um só bloco, antes
de sua demolição. Nesse monumento impressionante, trata-se, além da promo-
ção do interior, da experiência domestica e da experiência urbana, do privado
revelado nas dimensões do público. Esse trabalho, tão singular, grava e registra
a invisibilidade da arquitetura, sua escultura tomando emprestado desta seus
residuos intangíveis. A imagem insuspeita da casa, através da revelação de seu
antigo vazio, surge da moldagem do espa-
ço que os objetos e habitantes antes ocu-
pavam. Assim, é a mais uma epifania do
objeto que assistimos, todos os trabalhos
de Rachel Whiteread sendo, como sugere
Rosalind Krauss486, as máscaras mortuá-
rias dos referentes, estes sendo submeti-
dos a uma revelação análoga ao processo 84

fotográfico, o negativo tornando-se positivo. Procederia, inclusive, a uma mime-


sis ou exercício ritual da morte, através de um substituto estético-expressivo do
carácter sagrado da morada. Carácter sagrado e, ao mesmo tempo, derrisório,
efêmero, extremamente frágil, de duração variável.
Menos conhecido, o artista francês Jean-Pierre Raynaud também tem
uma relação particularmente interessante com a domus. Desde 1970, ele cons-
trói, reconstrói, remaneja sua casa (Fig. 85). Usa da cerâmica industrial, cha-
mada na França de “carrelage” ou “faïence”, porque esse material ressai e diz
respeito tanto à arquitetura quanto
à natureza. Raynaud faz repousar
seu projeto sobre uma motivação de
carácter assumidamente néo-plasti-
cista, desejando instituir uma ordem
para equilibrar o lugar, a dimensão
verdadeiramente arquitetural de
sua empreiteira tendo relação com
a inteligência do homem construtor
(“bâtisseur”), sua casa, conforme as
épocas, sendo blockhaus487 ou hos- 85
pital ou cripta ou catacumba ou espaço-zero… Para Raynaud, em uma clara ins-
piração antropológica arquetipal, essa arquitetura-domus é tanto segunda pele
e refúgio quanto túmulo. Antropológico e psico-existencial. A domus de Raynaud
é atravessada por complexos vetores. A entrevista que o artista deu em 1993
mereceria menção inteira. Diz ele:

486
KRAUSS, Rosalind, “X Marks the Spot”, in: Rachel Whiteread, Shedding Life, catálogo de
exposição, Tate Gallery Liverpool, 13 sept. 1996 - 5 jan. 1997, p.74-81
487
Nome alemão dado às fortificações militares do Muro do Atlântico contruídas pelo exército
alemão durante a Segunda Guerra Mundial para impedir um possível ataque dos Aliados na
Costa Francesa.
eu precisava implicar o corpo. Queria entrar em um espaço no qual me en-
gajar completamente […], um espaço vivido […] Queria criar um todo… Que não
tivesse mais diferença entre minha vida e minha obra… Uma aventura total.488

Esse continente da casa é transformado de maneira permanente, a arte


sendo vivida como um processo de auto-análise. Se, sob a égide da construção
da casa, a arte torna-se o novo englobante da experiência espacial, Raynaud
nos sugere que não é mais a arquitetura que é a mãe das artes mas que é o
espaço que se tornou o pai da arte e da arquitetura. Esse ponto de suma im-
portância crítica. Poderia ser o lema desse livro. Na casa de Raynaud, temos,
portanto, uma concentração de elementos que representam uma condensação
impressionante de implicações críticas. Uma delas é uma abordagem da idéia de
interior total, isto é, não um interior que se diferencia do exterior, mas um interior
que seja em si a totalidade das relações que institui com seu próprio núcleo e
com seu fora. Raynaud é explícito a esse respeito. Diz ele: “meu modelo ideal te-
ria consistido em escavar um buraco debaixo da terra e em criar nele um espaço
interior, sem nenhuma aparência exterior.”489 Interior total, isto é, a manifestação
arquitetural de uma não-cisão entre interior e exterior, uma versão singular do
sonho funcionalista, versão singular que Raynaud, também autor de um projeto
urbano no bairro dos Minguettes em Lyon (Fig. 86), relaciona com a capacida-
de de a arquitetura de Mies Van der Rohe afirmar a estatura antropomórfica da
arquitetura, a casa segundo Raynaud sig-
nificando a busca de uma ordem que filtre
o desperdício emocional e oferece condi-
ções para, ao “ordenar meu espaço, ao
arquiteturá-lo, ao geometrizá-lo […] cons-
tituir um guia para meu ser mental e meu
corpo.”490 Raynaud insiste sobre o fato de
sua casa ser um verdadeiro organigrama
espacial, capaz de servir de compensação
à desordem psíquica. A terminologia que
ele usa é clara: fala de espaço “mais har-
monioso, menos imperfeito”, de evitar “o
aproximativo”491 etc. Essa motivação que,
para alguns, pode parecer obsessional e
patológica, reflete apenas a busca de um 86

488
RAYNAUD, Jean-Pierre, “L’espace vécu”, entretien avec L’Architecture d’Aujourd’hui,
Architecture et art, (dossiê), L’architecture d’aujourd’hui, n°286, abr. de 1993, p.55
489
Idem, ibidem
490
Idem, p.58
491
Idem, ibidem
artista que concebe sua domus como um espaço que seja sua segunda pele,
uma forma de justiça estética e ética na qual vigoram as dimensões do tempo, o
imperativo de viver uma experiência “que trata do berço e do túmulo”492… (E no-
tamos aqui como a fórmula “do berço ao túmulo” entra em correspondência com
o horizonte simbólico de tantas experiências artísticas, por exemplo brasileiras,
da época de Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Rubens Gerchman etc., só que
em Raynaud, as mediações formais reenviam a outra sensibilidade e tradição
material…). Seria interessante ver como isso pode constituir um eco peculiar à
idéia de Adolf Loos de que se a arquitetura é a exposição dos valores estéticos e
morais próprios à cultura material de tal ou tal época, só existe arte no âmbito da
arquitetura na realidade dos túmulos, isto é, da arquitetura funerária. Para Loos,
só a manifestação formal e simbólica da morte pode gerar o espaço propriamen-
te artístico da arquitetura. A única arte possível na arquitetura é a que representa
a morte. Só a morte permite que haja arte na arquitetura. É a célebre e fasci-
nante tese de Loos, no início do século XX. Três quartos de século mais tarde,
Raynaud parece repensá-la. Mas é evidente que o trabalho de Raynaud inclui
a dimensão do corpo, o que reintroduz aqui o que analisamos no capítulo sobre
os corpos-em-volume, isto é, o fato de que o corpo é considerado como matriz
orgânica daquilo que está para ser construído. Segundo Marc Perelman, o corpo
e a arquitetura têm uma estrutura simbólica comum: a de projetar, simbolizar e
representar, espécie de pulsão inicial que faz com que a arquitetura e o espaço
construído seriam antropomórficos, compartilhando uma forma de similitude com
o corpo.493
“O encolhimento da faculdade de habitar”494, que poderíamos também
relacionar com The Destroyed Room, de Jeff Wall (Fig. 87) — o faremos de-

87

492
Idem, ibidem
PERELMAN, Marc, “Du corps à l’architecture. Processus, figures, catégories”, in: L’architecture
493

au corps, YOUNÈS, Chris; NYS, Philippe, MANGEMANTIN, Michel, (org.), Bruxelles: Ousia,
1997, p.234
494
Idem, p.237
pois —, parece ser uma das bases transcendentais da casa de Raynaud. A re-
constituição proposta por Perelman do encolhimento do habitar na modernidade
é reveladora. Os corpos têm integrado as divisões das funções que a própria
arquitetura e que o urbanismo moderno criaram. Curiosamente, a verdadeira
janela das moradias modernas, sugere ele, é a tela da televisão, capaz que foi
de desenvolver um “autismo generalizado que tem participado à degradação
do espaço vivencial, o conjunto sendo combinado com uma perda da dimensão
da profundidade vivida.”495 “Espaços-células”, “espaços carcerais” encontram-se
determinados pela forte capacidade dessa tela-janela instituir a “predominância
característica de uma vida interior entregue às produções fantasmáticas (au-
tismo).”496 A domus vira o que é para Raynaud: refúgio, reentrância, forma por
excelência da sublimação concentrada da gestual humana, uma espacialização
da sublimação dos sentidos. Citemos longamente M.Perelman:

o alojamento favorece, acelera o narcissismo, a saber, o retorno-bloqueio


das principais pulsões para o próprio lugar. Isso leva a formas de identificação
entre o corpo reduzido nesse espaço e o próprio espaço. […] O alojamento tor-
nou-se simbolicamente um lugar de uso pobre e consagra apenas o desejo de
ser passivo. A morada moderna não produz nada que supere, inclusive na ordem
da fantasia, a ordem pesada do corpo enclausurado por um espaço cristalizado
e frio.497

Para nós, é difícil esquecer da Casa de Jean-Pierre Raynaud quando le-


mos ainda, numa clara ordem de consideração psicanalítica:

assistimos a uma verdadeira materialização corpôrea do superego onde


a moradia desempenha o papel de lugar com forte carga dominadora, de pólo
espacial de atividade repressiva sobre o próprio corpo do indivíduo. O lugar de
habitação revela também essa parte de antropomorfismo degenerando em ‘antro-
pomaximologia’ (segundo o delírio conceitual dos ex-soviéticos), aquela vontade
de fabricar gestos com normas dimensionais necessárias. […] trata-se, a partir
desse tipo de neurose, de uma identificação arcaica com a moradia. O que indica
a evidenciação, através da moradia, de uma fraqueza do projeto arquitetural no
seu conjunto, ligada a uma arcaicização do corpo.498

Na sua época e em outro contexto crítico, Walter Benjamin, falou da ex-


periência moderna como de “uma atualidade omnilateral e integral que não deixa

495
Idem, ibidem
496
Idem, p.238
497
Idem, p.239
498
Idem, p.240
lugar a nenhum ‘abrigo seguro’.”499 Benjamin pensava politicamente. A experi-
ência politicamente — isto é, também urbanisticamente — crítica do homem
moderno passa pela experiência de um “espaço (...) onde o materialismo político
e a criação física compartilham-se o homem interior, a psiqué, conforme uma
justiça dialética de tal maneira que nenhum membro escapa (...).”500 São bem es-
sas dimensões ressaltadas com tanta urgência conceitual por Benjamin e Marc
Perelman que certos trabalhos de Absalon emblematizam, como Propositions
d’habitations (madeira, papelão, giz, acrílico, dispositivos de extensão variável,
1990) (Fig. 88), blocos brancos,
compactos, herméticos, frios, cujo
tamanho é desproporcionado com
relação ao do homem. Parecem ser
o manifesto plástico da crítica feita
acima por Perelman sobre a relação
entre corpo e habitação quando se
trata de afirmar seu carácter regres-
sivo, o devir-visível da indiferencia-
ção arquitetural, o devir-tangível da 88
alienação do corpo, de sua singulari-
dade virtual, na mesmice e na ausência de identidade, o encolhimento simbólico
da habitação como diferença, mônadas sem portas nem janelas que “aspectam”
um mundo anônimo e insensibilizado. Nesse sentido, outros trabalhos sobre a
domus e o espaço de habitação contrastam. Assim, a fotografia de Jeff Wall, em
1978, The Destroyed Room (1,59 x 2,34m.), merece ser recontextualizada atra-
vés daquilo que o próprio artista diz a seu respeito:

quando fiz The Destroyed Room, me inspirei do estilo dos vitrines das
lojas de roupa e de móveis. São para mim como tableaux morts, em oposição
aos tableaux vivants. Nessa época, elas eram muito violentas, sobretudo sob a
influência do fenômeno punk que tinha rapidamente infiltrado toda a economia
cultural. Ao mesmo tempo, o tema da foto tinha algo a ver com a agressão, a
violência e a vingança na vida domestica. Me interessava muito por A Morte de
Sardanapalo de Delacroix […]. Penso que Sardanapalo é uma quadro muito im-
portante, histórico e psicologicamente, porque mostra como a erotização do ideal
de glória militar, que caracterizava o período napoleoniano, é redirecionado para
o interior, para a vida domestica do fim dessa época, no início da vida privada
moderna, burguesa, neurótica. Esse quadro me interessava como uma espécie

BENJAMIN, Walter, “Le surréalisme. Le dernier instantané de l’intelligence européenne”, in:


499

Mythe et violence, Paris: Ed. Denoel, 1971, p.313


500
Idem, ibidem
de cristal.501

Como não ver em The Destroyed Room, mais de quinze anos depois, uma
resposta icônica a outros vitrines, os de Claes Oldenburg, por exemplo em The
Store ou Bedroom Ensemble, ambos do início dos anos 1960, onde Oldenburg
procede à instalação de um ambiente que expõe a imagem do sonho domestico
americano: um interior confortável, no gosto médio, através de artigos de massa…
Ordem (pequeno)burguês do consumo e da autosatisfação, quase o signo da elei-
ção divina. A resposta de Wall, contudo, não deveria ser desvinculada da grande
ironia que Oldenburg já demonstrou através de suas esculturas moles na mesma
década de 1960, verdadeiras crônicas — bem no espírito que animará a crítica
walliana do encolhimento do sonho eroico burguês na ordem interior da domus —,
da derrota anunciada do modelo de sociedade vinculado ao consumo desenfrea-
dao e à cultura do objeto. Humores punk, punk sardanapalesco, memória anti-do-
mestica dos humores ligados à moradia burguesa. Nessa ordem de consideração,
como não pensar o contraste marcante que essa representação da domus bur-
guesa realiza com relação ao paradigma do abrigo que o Igloo de Giap, de Mario
Merz, propõe em 1968 (gaiola de ferro, sacos de terra, néons, baterias, acumula-
dores, 1,20 x 2,00 m.) (Fig. 89)? O igloo elege um misto de esfera, espiral e cone
para, de um lado, sair do espaço de
escafendro que a pintura é, e, de ou-
tro lado, trabalhar com uma forma
absoluta e autônoma, simbolizando
o terreno de implantação provisória
do abrigo e o espaço terrestre da
desterritorialização nômade na pró-
pria forma hemisférica. Homenagem
à capacidade de implantação de uma
tática veloz e imprevisível de guerri-
89 lha através de um perpétuo processo
de deslocamento territorial pelos pequenos grupos de vietnamitas que lutavam
contra os americanos durante a guerra do Vietnã, o Igloo de Giap reenvia à ca-
pacidade de integração e abertura, a forças centrípetas e centrífugas, da ação.
O hemisféro do igloo é análogo ao hemisféro do cérebro, emblema racional do
habitar nômade. Igloo.

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E depois? Desvio… Domus política…Um símbolo da habitação nômade ar-

WALL, Jeff, “Typologie, luminescence, liberté. Extraits d’une conversation avec El Barents”, in:
501

Essais et entretiens, 1984-2001, édition établie et présentée par Jean-François Chevrier, Paris:
École nationale des Beaux-Arts, 2001, p.55
quetipal, politicamente escolhido. Um ambiente monocromático prolixo, sonho de
interior de um colecionador, com seus bastidores políticos. Além do contexto histó-
rico no qual Desvio para o vermelho se situa, gostaríamos de ressaltar o aspecto
também político do sonho do colecionador que esse ambiente aponta, citando o
que Walter Benjamin escrevia a respeito do interior do século XIX. A dimensão
política do interior, que se impôs tanto a Meireles quanto a Jeff Wall entre 1967 e
1978, é notavelmente sintetizada pelo autor do Livro das Passagens. Leiamos a
citação a seguir – retirada das considerações sobre “Louis-Philippe e o interior”
– como análise premonitória de Desvio! Falando do interior do homem privado,
Benjamin escrevia em 1935 que ele

representa o universo. Ajunta nele o longínquo e o passado. Seu salão é


um camarim no teatro do mundo. […] O interior é o refúgio da arte. O colecionador
é o verdadeiro ocupante do interior. Ele transfigura os objetos para transformá-los
em sua coisa. Sua tarefa é a de Sísifo: ao possuir as coisas, ele deve despojá-las
de seu carácter de mercadoria. Mas, em vez do valor de uso, somente lhes-em-
presta o valor de amor.502

A análise que Benjamin faz encontra em Desvio algumas transgressões,


sobretudo no que diz respeito ao fato de o colecionador se refugiar na aura do
longínquo e do passado para sonhar com um mundo melhor, inclusive o horizon-
te de liberação da função servil que os objetos encontrariam na coleção. Desvio,
nesse sentido, é crucial. Pela tragédia cujo encontro a primeira sala difere, pre-
cedendo espacialmente o derramamento de sangue e a súbita escuridão, trata-
se também do “estojo do homem privado”, e dos “rastros” que “habitar significa
deixar”503 perto e atrás de si (Fig. 90). No entanto, a hegemonia do vermelho, cor

90
impactante e de imediata associação emocional, faz com que algo acontece com
ela que é da ordem do coletivo, de uma experiência numerosa, repetida, que

BENJAMIN, Walter, “Paris, capitale du XIXème siècle” (1935), in: Essais 2, 1953-1940, Paris:
502

Denoël/Gonthier, 1983, p.47


503
Idem, ibidem
vem tingir de maneira irresistível a dimensão privada da coleção. Rastros: no in-
terior, diz Benjamin, “acento é posto sobre eles.”504 Justamente, esse interior que
leva à cena escondida do sangue derramado vê-se atravessado, tingido, impri-
mido pelo sopro e o fluxo cromático que não deixa nenhum objeto ileso e isento,
todos forçados que são a receber o estigma. É o espaço privado do colecionador
fadado a receber os estigmas, a cor e a atmosfera da experiência coletiva. Esses
rastros da fantasia individual podem, como diz Benjamin, se depositar sobre os
objetos, e imprimir-se sobre seu interior, o carácter monocromático da impres-
são, de origem coletiva, tinge o espaço privado: ambos, diz Benjamin, despertam
o interesse policial, o romance policial sendo “à espreita desses rastros.”505 E ain-
da é através do que ele escreve em 1935 que podemos pensar que em Desvio,
temos uma correspondência contemporânea da “filosofia do mobiliário” e das
novelas policiais que já revelaram em Edgar Allan Poe “o primeiro fisionomista
do interior.”506 Desvio é o ambiente da implosão do interior burguês, a marca de
sua incapacidade a negar e denegar a ordem coletiva da história. O vento ver-
melho da história que o atravessa, toca tudo e não deixa nada sem rastros. Leva
à sala do sangue derramado. Desvio é o interior impotente a abrigar o sonho.
É precisamente nessa ordem de consideração que essa instalação é tão fasci-
nante: sim, cria tensões com nossas expectativas, perturba-as, recobrindo de
vermelho os objetos normais, assim submetidos a uma norma cromática como
que inelutável, justapondo o incongruo, aquilo que, “normalmente”, encontra-se
distribuido nos espaços funcionais previstos para isso. Mas, justamente, Desvio
concentra e condensa os elementos de um sonho, como no processo onírico for-
malizado por Freud. e esse sonho é pesado, ele remete a processos autoritários,
aqueles que, em outros contextos políticos, Marc Perelman analisava a respeito
da alienação da capacidade de habitar, crise política por excelência, quando o
abrigo que parece seguro não pára os ventos violentos da história: repressão
(Meireles), recalcamento, indiferença e não-identidade (Absalon, Graham etc.)
que são exatamente os pontos de âncora crítica de tantos trabalhos que encon-
tramos e que almejam reconstruir uma forma de habitação semântica e simbó-
lica lúcida e crítica através de configurações artísticas das mais diversas, mas
todas decisivas à sua maneira.
Prolonguemos um pouco nossa “leitura” de Desvio a partir daquilo que
Walter Benjamin diz dos modos de percepção no seu famoso texto de 1936
sobre a reprodutibilidade técnica. Nele, o filósofo afirma que não há como dis-
pensar a arquitetura quando se trata de pensar a recepção e apropriação tátil de
um fenômeno, já que a arquitetura foi sempre uma modalidade privilegiada do

504
Idem, ibidem
505
Idem, ibidem
506
Idem, ibidem
contato tátil. O contato tátil, para Benjamin, não permite desviar o olhar, como
pode acontecer no modo de percepção instituido pela pintura, por exemplo, a
“objetividade” da massa arquitetural penetrando de maneira desapercebida e
inconsciente no habitante da cidade. Se, conforme Benjamin, existem dois tipos
de recepção, uma, óptica, que gera atenção e contemplação, exigindo do es-
pectador um momento de suspensão de seu percurso e outra, na qual, comenta
Daniel Payot, “a obra se impõe através de uma difusão que fica na maioria das
vezes inconsciente, [que] se insinua na trama mais habitual da existência”507,
isto é, a modalidade tátil, o grande mérito de Desvio consiste em ajuntar e tor-
nar indissociáveis as duas modalidades, articulando-as paradoxalmente. Se, de
novo, o tátil remete a um nível de experiência geral, comum e compartilhado
coletivamente, que gera esquecimento de si-mesmo, parece que é precisamente
aquilo que vem reforçar propedeuticamente a capacidade de cada espectador
se sentir mobilizado por aquilo que vê. Isso corresponde ao modo de percepção
atento, que remete o espectador a si-mesmo. O que dilui e difunde seria, em
Desvio, uma condição daquilo que concentra e individualiza… Mas acabamos
de dizer que essa modalidade óptica, visual, mais lenta, contemplativa, contem
uma dimensão suspensiva. Em toda instalação, o risco da percepção distraída
é grande. Em Desvio, a distração é de certa maneira reequilibrada pelo impacto
da repetição da cor, o reforço cromático pesando finalmente mais do que a dis-
persão da atenção ligada à multiplicidade dos objetos… Nesse sentido, Desvio
propõe uma experiência espacial singular. Para dispor espaço-temporalmente
seu efeito suprasensorial, o ambiente de Meireles institui uma dinâmica que cor-
responde perfeitamente àquilo que Daniel Payot comenta quando ele analisa
como Benjamin concebia a possibilidade de existir ainda uma experiência com-
binando passividade e produtividade. A questão é posta por Walter Benjamin no
outro famoso texto sobre “O Narrador”, onde problematiza a necessidade de as
narrativas disporem de tempo de enunciação e recepção para criarem as con-
dições de uma experiência duradoura com elas. A frase do conto “O lenço”, que
diz: “se não existem mais boas histórias a serem escutadas, também é porque
as coisas não duram mais da boa maneira”508, poderíamos transformá-la em
“se não existem mais bons dispositivos a serem vistos, também é porque seus
elementos não duram mais da boa maneira”, o que nós permitiria ressituar o
desafio de tantos ambientes contemporâneos e ver como Desvio, por exemplo,
consegue propicar uma experiência temporal, a mesma que só pode acontecer
quando provamos seu curso infinito, “imersos nele e ignorantes de seus contor-

507
PAYOT, Daniel, “ L’accueil tactile. Walter Benjamin, l’architecture et le temps du commun”,
in: L’architecture au corps, YOUNÈS, Chris; NYS, Philippe, MANGEMANTIN, Michel, (org.),
Bruxelles: Ousia, 1997, p.73
508
BENJAMIN, Walter, “Le Mouchoir”, in: Rastelli raconte et autres récits, Paris: Seuil, 1987, p.61
(trad. Philippe Jaccottet)
nos e de suas determinações.”509 Falando desse “resto não elucidável” que é
como um avesso ainda impresentado em toda apresentação (grifo nosso), Payot
escreve:

nesse contexto, a tatilidade, o ser-tocado ou a passibilidade cons-


tituem as condições de uma experiência espacial na qual contiguidade e distân-
cia podem ser provadas simultaneamente; de uma experiência temporal, na qual
efetividade e postergamento são afirmados em um mesmo lugar; e da experiência
política de uma partilha do sentido de que ninguém se apropria, em um espaço
e um tempo que ninguém ‘privatiza’. Mas o declínio da experiência altera essen-
cialmente a significação do acolhimento tátil e da passibilidade comum, doravante
determinados que são pela proximidade brutal, pela eficâcia do choque e pela
violência de uma dominação não procedendo de outra maneira senão pelo cons-
trangimento, isto é, tendo destruído as condições de uma verdadeira autoridade.
A ameaça do mito reaparece, que a narrativa tinha contido, desarmando seus
sortilégios e resistindo a suas seduções imediatas pelo exercício da paciência.510

Tal é a lição de Desvio, de sua geometria tátil, uma geometria preocupada


pela idéia de que as coisas são produtoras de qualidades perceptivas. Como
dizia Vittorio Ugo, o espaço pensado a partir dessa geometria “resulta de um
‘projeto arquitetural’ onde reconhecemos a presença de uma ‘memória crítica’ e
a possibilidade da heterotopia, da diferença poética e problemática.”511 Sabemos
que o espaço da geometria tátil encontra seu emblema no labirinto, o modelo
do lugar por excelência. Ele só age e afeta os corpos “pelo meio do toque, pela
participação ativa e dinâmica do corpo.”512 (Fig. 91).

91

509
PAYOT, Daniel, “ L’accueil tactile. Walter Benjamin, l’architecture et le temps du commun”, in:
op.cit., p.82
510
Idem, p.82-83
511
UGO, Vittorio, “Une Hutte, une Clairière (ou le lieu d’une architecture théorique”, in: L’objet
architecture. Paris: éditions de Minuit. Revue Critique, nº475-477, jan.fev. 1987, p.103
512
Idem, p.104
Enfim, no momento de finalizar provisoriamente essa análise de Desvio,
um ambiente tão rico em harmônicos críticos e simbólicos, vale ressaltar
como, na sua concepção e no seu layout, ele faz convergir sobremaneira as
valências murais que vimos surgir na primeira parte desse livro como um dos
mais significativos coeficientes de ampliação exponencial da pintura na primeira
metade do século XX. Desvio é algum all-over labirintico, all-over da cor que
se expande em e sobre tudo; é uma tripla parede háptica, que suga a cor e
que a devolve para que, presa nos objetos e ao mesmo tempo em excedente
e excesso, ela transpire de todas as partes e nos afete… All-over, labirinto e
ambiencia total mesclam suas valências para tornar Desvio um dos mais ricos
manifestos artísticos da capacidade de a arte propor ao público uma arquitetura
e uma plástica convergindo na produção de situations to be lived… Talvez Cildo
Meireles encontrou a voz impossível com que Motherwell sonhava, voz all-over
the site à qual o dramaturgo e escritor Samuel Beckett alude quando faz seu
“Inomável” falar da sua nos seguintes termos: “ela sai de mim, ela me enche, ela
clama contra as paredes, ela não é minha, não posso pará-la, não posso impedi-
la de me dilacerar, de me sacudir, de me assediar.”513…

513
BECKETT, Samuel, L’innommable (O Inomável), (1949), Paris: les éditions de Minuit, 2004,
p.34
O corpo é a casa

Na hora de concluir seu artigo sobre as operações ex-situ, Thierry de Duve


faz alusão à necessidade que os artistas trabalhando a questão do site sentiriam
de pensar as condições de reinstaurar algum site na hora em que sua atestação
se mostra irreversivelmente impossível. O artista situacional seria aquele que
elabora uma proposta espacial cuja condição de possibilidade repousa na cons-
ciência de que site total não existiria mais. Após ter mapeado várias maneiras de
se relacionar com esse desafio, após ter lembrado como, frente à perda da es-
cala em Andre, Richard Long e Hamish Fulton reconstituem-lhe a noção e como,
na própria obra de Andre nos anos 1960, os dispositivos repetitivos “se ajustam
à dimensão do lugar [e que] a escala é de certa maneira reencontrada […] como
repetição modular”514 - os artefatos que sua indústria criou dando “ao homem
sua medida”515 -, de Duve afirma: “sempre foi assim, com efeito, mas aquilo que
chamavam um site e que eu fiz a hipótese de definir como a harmonia do lugar,
do espaço e da escala, é amarrado a uma sociedade agrária, artesanal, religiosa
e aristocrática.”516 De Duve acrescenta: doravante,

estamos em uma sociedade laíca […] Não estamos mais em uma


sociedade artesanal, e já nos predizem a sociedade pós-industrial. Os artefatos
que nos dão nossa medida são tão indiferentes ao ‘site’ de sua produção quan-
to ao de seu consumo. Enfim, não estamos mais em uma sociedade agrária, e
estamos tão afastados dela que até os países emergentes […] conhecem dos
distúrbios das megápoles.517

De Duve pergunta por que, portanto, os artistas fariam arte in situ? O de-
safio, para ele, é grande, quando sabemos que o diagnóstico crítico já foi enun-
ciado e estruturado por Robert Smithson, no fim dos anos 1960 e no início dos
anos 1970:

um site, hoje, é um não-site. Todas as rotas que recapitulei levam a


Smithson. A questão do site, tal como foi evidenciada por Dan Graham e Gordon
Matta-Clark, e interpretada através de Smithson, é a da entropia urbana. […] Tal
como foi evidenciada por Tony Smith […] a questão do site, ainda interpretada
através de Smithson, é a do museu do vazio e do vazio do museu […] Tal como
foi evidenciada por Carl Andre e Richard Long, a mesma questão do site, de novo
interpretada através de Smithson, é a do viajante linear que viaja no tempo, mas

DE DUVE, Thierry, “Ex situ”, Cahiers du Musée National d’Art Moderne, nº27, Paris: Centre
514

Georges Pompidou, 1989, p.53


515
Idem, ibidem
516
Idem, p.54
517
Idem, ibidem
que transporta seu espaço-lugar consigo.518

É bem no contexto dessa fragilidade simbó-
lica indissociável de uma urgência crítica de cará-
ter político que muitos trabalhos artísticos voltados
para a questão do site atuam. Nos anos 1960, po-
deríamos remeter à concepções do grupo de arqui-
tetos ingleses Archigram: os Living Pod (1966) (Fig. 92
92) que David Greene apresenta como “um apa-
relho a transportar consigo”519, o Cushicle (1966)
(Fig. 93) que Michael Webb apresenta como “uma
invenção que permite a um homem transportar um
ambiente completo nas suas costas, […] unidade
nômade completa”520, o Suitaloon (1968) que o
mesmo apresenta como “vestidos a serem habita-
dos”521 (o “Suit” e o “Cushicle” sendo interpretados 93
por Greene como análogos à
tenda e ao camelo), ou o Air
Hab de Ron Herron (1967)
(Fig. 94 e 95), pensado como
extensão inflável do carro
para estacionamentos do- 94 e 95
mésticos, etc. Poderíamos remeter a outras máquinas portátis, infláveis, nôma-
des, dobráveis, deslocáveis, autárcicas, para cada usuário transportar consigo
seu espaço-lugar, preso no fluxo de uma espacialidade em perpétuo movimento
de deriva e desenraigamento. As estruturas móveis do Archigram são incrivel-
mente leves e delocalizadas, se as comparamos com certas tentativas de reins-
tauração do site a partir da consciência de seu carácter doravante desistente.
O que são as cabanas de madeira de Takayura, senão, a tentativa de realizar
alguma implantação arquitetônica primária sucetível de acarretar a formação de
um aglomerado populacional? Os sites de Takayura simbolizam a entropia da
integração, a cruel necessidade de sempre reconstruir seu lugar de existência,
devido ao vazio do projeto social; eles atestam a extrema dificuldade para muitos
de ter condições dignas de habitação-no-mundo, etc. Curiosamente, os proce-
dimentos são dos mais rudimentares, mas a proposta crítica precisa dessa con-
densação crítica para garantir seu impacto.

518
Idem, ibidem
519
GREENE, David, in: Archigram, catálogo de exposição, Centre Georges Pompidou, 29 juin
- 29 août 1994, Paris: ed. Centre Georges Pompidou, 1994, p.114
520
WEBB, Michael, in: Idem, p.116
521
Idem, p.117
As tentativas brasileiras de (re)criação de sites são inúmeras: por exem-
plo, o trabalho de Ana Tavares ou de Ricardo Basbaum sobre as coordenadas
espaciais da experiência estética. Desde os anos 1990, Ana Tavares inscreve
seu trabalho numa lógica de produção de “armadilhas para os sentidos.”522 As
noções, que são verdadeiras palavras de ordem, de “escultura como estrutura
de suporte para um corpo em trânsito”523, motivo das obras dos anos 1995-96
– Rotatórias, Corrimão, Guarda-Corpo, Cabine, Escorredor etc.–, levam-na a
trabalhar a percepção e o uso distraídos, anestesiados, indiferentes. As noções
de “escultura como Aparelho para o campo do corpo”524, explorando a idéia de
prótese, as noções, enfim, de site-specific deslocado, são tantas ocorrências
artísticas nas quais a questão da relação do sujeito-navegador com o espaço, o
ambiente etc., é trabalhada através do uso de obras cujos agupamento e redis-
posição leva Ana Tavares a proceder à difícil arte da reiteiração à qual fizemos
alusão acima quando falamos de Carlos Fajardo. As instalações de Ana Tavares
questionam – através de uma mimesis morfológica clara – a prática dos ambien-
tes cotidianos, no sentido de a prática ser uma maneira de estar-ao-mundo, de
ocupá-lo, de manipulá-lo através dos instrumentos aos quais nele recorremos
para estruturar nossos percursos no espaço. Mas, mais do que uma reconcilia-
ção ou reharmonização com aquilo cuja reunião Thierry de Duve dizia constituir
um verdadeiro site, isto é, o espaço, o lugar e a escala, as instalações de Ana
Tavares são pensadas na perspectiva do estranhamento, do espelhamento he-
toro-tópico. Michel Foucault conceituou o conceito de heterotopia em 1967, no
conhecido texto intitulado Des espaces autres. A heteroropia é capaz de se situ-
ar frente a seu objeto como contra-site, espelho de uma situação que ela inverte,
reverte, revelando seus aspectos escondidos, impensados e nevrálgicos, sem,
porém, propor um contra-modelo positivo ou uma utopia promissora. Talvez este
conceito seja o mais adequado para abarcar o estatuto crítico de muitos traba-
lhos artísticos apresentados nesse livro.
Ricardo Basbaum, cria estruturas e dispositivos que têm por objeto o
comportamento do público. Colocada sob o signo-sigla da NBP, Novas Bases
para a Personalidade, sua obra articula os vocábulos necessários a uma feno-
menologia da recepção. Esta, no entanto, só pode existir através de proposições
– termo propositadamente retirado do vocabulário dos artistas conceituais norte-
americanos – plásticas e multi-mídia. Para saber o que é “receber”, precisa-se
de um correlato que antecipa o fenômeno. Basbaum, nos anos 1990, tem conce-
bido um volume oco em forma de pequena piscina que as pessoas podiam tomar

522
TAVARES, Ana Maria, Armadilhas para os sentidos. Uma experiência no espaço-tempo da
arte, Tese de Doutorado, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2000
523
Idem, p.26 sqq
524
Idem, p.37 sqq
emprestado para, com ele, cohabitar e documentar a experiência. O objeto era
submetido a uma função não-funcional, por escapar à manipulação utilitária e
para se tornar objeto de apropriação, de improviso e de relato por parte de seus
“proprietários” provisórios. Essa tipologia de objetos situa-se na herança da arte
de Hélio Oiticica e das categorias abertas e experimentais do Crelazer e da esté-
tica participativa que este trabalhou nos anos 1960. Nos dispositivos de Ricardo
Basbaum, o público deita, repousa, pensa, prova a obra… O paradoxo reside na
presença de gaiolas para instalar
os colchões e outros objetos su-
cetíveis de incentivar a apropria-
ção corpórea dos usuários (Fig.
96). A terminologia usada por
Basbaum é sintomática de uma
forma singular de concepção e
96 produção de espaços relacionais,
sustentados e estruturados que são através do recurso ao diagrama. Diz ele que
seus diagramas, compostos de linhas e palavras, criam “territórios atravessados
pelo ritmo fluido de relações, inter-relações e relacionamentos - incluindo as for-
ças de atração, repulsão, vizinhança, fragmentação, encadeamento, agrupamen-
to, deslocamento, localização, etc.”525 Essa terminologia é fundamental, porque
ressalta como Basbaum pensa a maneira que um dispositivo espacial tem de
afetar os corpos através da recepção que se tem dele, através de sua faculdade
de solicitar pela singularidade de suas determinações sensíveis um leque aberto
de reações epidérmicas e cognitivas indissociáveis. Numa pura contaminação
das valências conceituais tanto neo-concretistas quanto norte-americanas pela
lógica deleuziana das intensidades, da sensação e do sentido – tão evidenciada
por Bausbaum no livro que publicou em 2007 –, sua obra é uma investigação
plástica sobre as condições espaciais, ambientais, semióticas e discursivas para
contaminar o espectador

a partir de um jogo perceptivo que envolve palavra e sensação em mú-


tua reverberação – e essa estratégia de contaminação, acrescenta Basbaum, se
passa tanto considerando a invasão intercorpórea de uma partícula de sentido
diferenciado […] que passa a articular metabolicamente pelo corpo, quanto orien-
tando-se no sentido já referido de uma totalidade perceptiva que tem o desenho
(plasticamente mutável) do corpo como unidade sobre a qual se atua.526

525
BASBAUM, Ricardo, Além da pureza visual, Porto Alegre, ed. ZOUK, 2007, p.77
526
Idem, p.78
A arte contemporânea não se pode conceber sem suas palavras de or-
dem. Ricardo Basbaum é um artista cuja estratégia produtiva precisa da tota-
lidade complexa do espaço para existir, consistir e insistir. Tudo o que ele diz
da economia de seus dispositivos diagramáticos leva, dentro de uma terminolo-
gia de cunho mais “matemático”, às noções que motivavam o in situ de Buren.
Escreve:

não se trata da ação de se ‘perceber’ as circunstâncias genéricas


para garantir uma fórmula de atuação universalizante, mas sim de estar atento
ao particular que caracteriza cada situação (ou seja: singularizar-se) e cuidado-
samente estudar as possibilidades de acoplamento e conexão junto ao ambiente
em que se busca inserir, atuar, tornar visível.527 (Fig. 97).

97

Os desafios da reiteração encontram-se perfeitamente apresentados por


Basbaum:

ainda que possam ser vistos como um dispositivo sem escala a


priori, estes diagramas possuem uma importante efetividade ambiental. […] Um
diagrama deve ser redimensionado cada vez que for montado […] Essa ambien-
talidade se dá a partir da combinação entre a superfície monocromática e a escala
específica do espaço particular onde ocorre a inserção diagrama. […] Entretanto,
ao se considerar o evidente funcionamento conjunto e simultâneo do todos os
seus elementos, a ambientalidade do diagrama se efetiva a partir da combinação
de arquitetura, intensidade cromática, campo discursivo e presença do especta-
dor: diagramas funcionando ativamente, irradiando-se pelo espaço em torno.528

527
Idem, ibidem
528
Idem, ibidem
Essa auto-análise é notável por conter todos os elementos que o in situ
articula. No entanto, podemos dizer que com Basbaum, é de um in situ após (af-
ter) Hélio Oiticica e Lygia Clark que se trata. Os diagramas, singulares mapas do
afeto e do percepto existencial, corpóreo e simbólico, valorizam uma dimensão
dinâmica que os vocábulos legíveis — por exemplo no diagrama reproduzido na
página oitenta do livro —, enunciam através de alguns verbos como: “atravessar,
recuar, avançar, hesitar, parar, bloquar, escapar, evitar, amarrar, deslizar, isolar,
caminhar, pular, virar, rodar, desviar…”529. Trata-se de uma terminologia dos atos
de constituição de uma consistência real, física e simbólica ao mesmo tempo,
para um lugar que, enquanto matriz das reações cinéticas acima listadas por
Basbaum, configuram um espaço experimental que produz imanentemente seus
diagramas ou sua geometria de recepção e apropriação. A lista de Basbaum não
remete à psicologia, mas aos momentos nos quais algo como uma situação e
um site trocam suas valências na paciência e no estofo temporal da experiência.
Para entendermos, no imenso leque das propostas de uma arquitetura e de uma
geometria tátil do sentido, a insistência da arte brasileira em trabalhar as condi-
ções de possibilidade de uma arquitetura da experiência córporea, como não de-
veríamos também remeter, menos a obras justamente tão analisadas, como por
exemplo o Projeto Eden, de Hélio Oticica, do que a obras e eventos relativamente
esquecidos? Pensamos aqui às três camas instaladas por Teresinha Soares, Ela
me deu a bola, no Palácio das
Artes de Belo Horizonte, duran-
te o evento Do Corpo à Terra,
em abril de 1970 ou ainda à
sua instalação chamada Corpo
a Corpo in Cor-pus Meus (ins-
talação de madeira recortada e
pintada, 24m2, II Salão Nacional
de Arte Contemporânea, Museu
da Pampulha, 1970)530 (Fig.
98), que é o suporte físico de 98

uma performance acompanhada pelo proferimento de um texto da artista e de


Jota d’Ângelo onde as valências orgânicas, sexuais, intestinas, carnais e anais
do corpo são ressaltadas de uma maneira incrivelmente crua e impactante?531
Como não lembrar que, sem dúvida na esteira da estética tropicalista, é o crítico

529
Idem, p.80
530
Ver in: catálogo Neovanguardas, Museu da Pampulha, 23 de dezembro de 2007 a 16 de mar-
ço de 2008, Belo Horizonte, 2008, p.92-93
531
Áudio originalmente apresentado na performance em 1970. Para a publicação do texto no
catálogo a artista Teresinha Soares e o escritor Jota D’Ângelo fizeram uma revisão que contou
com pequenas alterações. In: Idem, p.99-101
Frederico Morais que reafirmava claramente que a arte tinha-se ancorado na
problemática do corpo como “motor da obra”532, conclamando no Manifesto do
Corpo à Terra que “a arte de hoje reflete uma nostalgia do corpo”533, ressaltando
— sem dúvida a partir do programa artístico e estético de Lygia Clark em 1966,
Nostalgia do Corpo… — a existência e a exigência de novas estéticas: “código
tátil-olfativo. Gramática gustativa. Linguagem acústica” etc.534 Hoje, quando se
fala tanto disso tudo, pode ser sã lembrar que esse programa estético já data de
quarenta anos…, e que a terminologia usada em volta de 1967-70 não é desatu-
alizada, bem pelo contrário: ela nos precede.
Isso nos leva a ressaltar o seguinte: a arte contemporânea explora desde
várias décadas a invenção possível de uma corporeidade expressiva em busca
de seu território e de seus princípios. Aqui, bem além da encenação do corpo, é
esse território expressivo que é corpo, que faz corpus. O corpo encenado dentro
e pelo corpus expressivo que a arte contemporâneo é, cria uma espécie de gran-
de território onde o local e o global das situações humanas transitam. Vemos
nisso uma forma de estruturação simbólica que leva a ressaltar mais uma vez
como Oiticica era premonitório quando, para criar esse território e a possibilidade
de “usar” os múltiplos recursos existentes na arte, os veículos mais tradicionais
como os mais inovadores, em vez de “multimídia”, ele falava de proposições
multipatternizadas, remetendo aos aspectos mais profundos da percepção, con-
forme a idéia de que o inconsciente é o corpo…
Mas é preciso lembrar que a densidade do campo magnético que a obra
é, também é campo de passagem de forças que a transcendem, que pode captar
e espelhar conforme a essência politécnica da mimesis.535 Hoje, o que chama-
mos de essência idiossincrática e monâdica da arte contemporânea vê prolifera-
rem os espelhamentos da realidade, espelhamentos que não obedecem a uma
perspectiva visual mas que projetam as vias de manifestação mais ou menos
claras do entendimento que cada artista tem do mundo. Gera um perspectivis-
mo generalizado, que nos leva muitas vezes a encontrar as obras como tantas
encarnações de outrem, um certo absoluto da diferença que nos é proposto.
A obra que “nos olha” pode nos intimidar, nos rechaçar, nos cansar, nos atrair,
nos provocar etc. A variação das atitudes receptivas tem o mérito de demons-
trar que a obra é corpo que se dá a nós, ou esse “bloco de sensação” que cria
uma rede de sensação com seu receptor. Isso é muito importante. Muitas vezes,
nossa atitude frente a uma obra de arte desvia em declarações de opinião ou

532
MORAIS, Frederico, “Do corpo à terra”, in: Idem, p.31
533
MORAIS, Frederico, “Manifesto Do Corpo à Terra”, 18 de abril de 1970, in: Idem, p.51
534
Idem, ibidem
535
Ler LACOUE-LABARTHE, Philippe. A imitação dos modernos. Ensaios sobre arte e filosofia.
(FIGUEIREDO, Virginia de Araújo; PENNA, João Camillo, orgs.), São Paulo: Paz e Terra, 2000.
em declaração de juizos mas essas declarações são traduções de uma recep-
ção que é corpórea, sempre uma forma de participação. Aquilo que dissemos
a respeito é algum corpo que fala. Este leque receptivo é particularmente inte-
ressante porque reenvia ao leque performativo. Muitas práticas do Happening,
da Performance etc., ambicionam abrir, quase de maneira cirurgical, o tecido
de nossa recepção participativa. Se as artes visuais e plásticas do século XX
transformaram sobretudo nossa consciência óptico-visual ou privilegiaram-na
para abrir nossa consciência em geral, porque não entenderiamos que o espaco
performático nas artes prepara, longe de todo tipo de gramática pré-existente,
uma exploração de uma consciência sensível mais geral? A da existência? Este
termo nós leva mais uma vez perto da questão do fenômeno mas, neles, como
sua matéria prima, se trata de signos polivalentes, que vão do frio ao quente, do
abrupto ao manso, signos que tecem o Êros complexo da proposição artística,
plástica, espacial, ambiental e de sua recepção. Tudo isso reenvia mais uma vez
a uma das instalações importantes da arte contemporânea, Plight, de Joseph
Beuys. Como lembra o artista,

uma associação possível para meu espaço em Plight é a do isolamento.


Outra, a do calor do material. Sem dúvida, esse desengajamento-de-si-da-socie-
dade é um elemento de não comunicação; um elemento negativo, um sentimento
de desespero como se o encontra nas peças de Samuel Beckett. O feltro contudo
apresenta uma outra qualidade: ele protege das más influências em proveniência
de fora. Ele é portanto um isolante num sentido positivo. Pode se fazer dele um
vestido ou uma tenda, como fazem os Mongóis. Ele protege do frio e do quente,
do mundo exterior, porque retem uma quantidade considerável de calor. Ele é
orgânico. Esse lado positivo – proteger os homens do perigo – é um outro polo da
significação da peça. É assim que aparece a idéia de uma sala de concerto sem
ressonância, portanto totalmente negativa, concebida como a demonstração da
existência de uma fronteira onde tudo se articula em volta de um ponto crítico. Se
esse ponto se deslocar, tudo muda, inclusive a significação da arte apega, como
sabemos, à mudança radical e completa do homem, começando pela consciência
que tem dele mesmo.536

As valências de Plight são das mais amplas, do ponto de vista antropo-


lógico e estético. Elas ressituam bem o que o artista alemão entendia por uma
arte que desempenhasse a função de escultura social. De certa maneira, esse
conceito beuysiano poderia ter sido o de Lygia Clark.

HERGOTT, Fabrice, “Plight”, in: Jospeh Beuys, catálogo de exposição, Musée National d’Art
536

Moderne, Centre Georges Pompidou, 30 de junho - 03 outubro de 1994, p.235-236


É precisamente à “leitura” da artista brasileira que David Sperling pode
propor seu teorema: “Arte + Corpo = Arquitetura.”537 Mas, para ele, trata-se de
usar o termo “arquitetural”, e de descartar o de “arquitectônico”.538 Sperling ressal-
ta o ponto a nosso ver mais importante das estéticas situacionais que tentamos
entender nesse livro. Falando das tão programáticas e instigantes Arquiteturas
Biológicas (Fig. 99), Estruturas Vivas e Rede de Elásticos concebidas por Lygia

99 100

Clark nos anos 1970, ele diz que todas elas representam “o núcleo de uma ar-
quitetura celular.”539 (Fig. 100). Essa arquitetura celular é a única que permite que
passemos da categoria de espaço arquitetônico à categoria de espaço arquite-
tural. Sperling lembra com razão que o primeiro é a “cristalização de uma forma
geométrica”540, mas que o segundo trabalho “o homeomorfismo de um sistema
de relações espaciais.”541 Isso substitui a “um espaço continente permanente”,
um “espaço-estrutura” sempre “transformado pela experiência livro do corpo.”542
Vale a pena reproduzir a citação feita por Sperling do texto do ano 1969, famoso,
intitulado “O Corpo é a Casa”. Nele, Lygia Clark fornece mais uma vez todos os
argumentos para pensar como o ambiente começa celularmente no e pelo inte-
rior. Escreve:

assim se desenvolve uma arquitetura viva em que o homem, através de


sua expressão gesticular, constrói um sistema biológico que é um verdadeiro te-
cido celular. […] Através de cada um desses gestos, nasce uma arquitetura viva,
biológica, que, terminada a experiência, se dissolve. […] Neste momento, o ho-
mem é um organismo vivo. Ele incorpora a idéia de ação através de sua expres-
são gesticular. […] Ele inverte os conceitos casa e corpo. Agora, o corpo é a casa.

SPERLING, David. “Corpo + Arte = Arquitetura”, in: fios soltos: a arte de hélio oiticica, São
537

Paulo: Perspectiva, 2008


538
Idem, p.130
539
Idem, p,131
540
Idem, ibidem
541
Idem, ibidem
542
Idem, ibidem
É uma experiência comunitária.543

É o que Paulo Herkenkoff resume, sintetizando toda a trajetória dessa


artista emblemática entre os anos 1950 e os anos 1970:

Lygia Clark procurou o tempo todo a experiência do espaço. Mas o es-


paço como processo vivo, no qual entram um devir e topologias extraordinárias,
onde agem deslocamentos lógicos. Pelo homem, o espaço natural vira o espaço
construído na pintura ou na arquitetura, a escultura transforma-se em espaço da
interioridade e essa interioridade agora não tem mais fronteira, ela confunde-se
com o Outro.544

Climática do espaço
Trata-se sempre de imagem e experiência do corpo, indissociavelmente.
Trata-se de desafios fenomenológicos. Em uma época na qual o corpo conti-
nua insistindo na arte, notadamente através da idéia de seu “desaparecimento”
com as tecnologias do contato cibernético, vale adotar e reivindicar uma posi-
ção crítica que começa por enunciar que a arte é precisamente um espaço de
trabalho no qual o corpo é sempre-já comprometido, engajado. Isso nos leva
a transformar o fim desse livro infindável em ilustração e defesa – como se di-
zia no século XVI…– da fenomenologia, como filosofia inerente ao pensamento
do espaço e da espacialidade. Filósofo menos conhecido que outros astros da
fenomenologia, Henri Maldiney sintetiza perfeitamente o que está em jogo em
uma entrevista realizada em 1996, durante a qual ele teve a oportunidade de
lembrar rapidamente algumas de suas idéias. Esse testemunho revela sua força
à medida que vemos Maldiney refletir sobre as relações que o tilulo da coletâ-
nea questiona: a arquitetura ao corpo, isto é, um espaço de reflexão sobre uma
dimensão crucial da produção de espaços habitados.545 Maldiney lembra como o
corpo próprio transporta consigo mesmo um espaço próprio, em um mundo que
se abre a ele enquanto umwelt (mundo da vida). A distinção, em alemão, entre
Körper e Leib para dizer “corpo” reflete a inexistência de um espaço homogêneo
de tipo geométrico. Existe o Leib como esse corpo do qual tenho a sensação in-
terna, que se diferencia do Körper, o corpo tal como é percebido pelos outros e,
de certa maneira, objetivado. O Leib, como existente, coincide com a mundanei-
dade do mundo. Mas, precisa Henri Maldiney, minha co-incidência com o mundo

543
CLARK, Lygia, “1969: O Corpo é a Casa”, in: Lygia Clark, Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980,
citado in: Idem, p.131-132.
544
HERKENHOFF, Paulo, “Diagrama de vida”, entrevista de Suely Rolnik com Paulo Herkenhoff,
1 de maio de 2005, in: Lygia Clark de l’oeuvre à l’événement, Musée des Beaux-Arts de Nantes,
2005, p.83.
545
MALDINEY, Henri, “Rencontre avec…”, in: L’architecture au corps, YOUNÈS, Chris; NYS,
Philippe, MANGEMANTIN, Michel, (org.), Bruxelles: Ousia, 1997, p.9-23
gera modalidades tanto centrífugas quanto de recolhimento… Ele compara a
maneira de habitar e existir no espaço ao ritmo da respiração, citando o verso
do poeta Rainer Maria Rilke que define esse respirar espacial e ontológico como
“o contrapeso no qual a mim mesmo, ritmicamente, advenho”546… A situação de
habitação do Leib é, portanto, um jogo do próximo e do longínquo, a partir de
um Aqui – instância espaço-temporal fundamental na fenomenologia – de que
tomo consciência quando me afasto dele, o Aqui pondo em jogo todo o espaço,
e não somente uma localidade ou uma localização. “’Ex-stare’: estar a partir de
si e fora de si.”547 É só a partir dessa situação do estar-Aqui que podem se reve-
lar “as dimensões próprias à minha espacialidade que eu introduço no espaço
homogêneo, na medida em que o habito. […] Essas dimensões são, antes, o
desdobramento da extensão e da verticalidade”548 etc. É importante frisar o fato
de que a fenomenologia se impõe como filosofia do espaço porque ela sempre
mostra como tudo o que vem recortar, enformar, enquadrar, diagramatizar, filtrar,
construir, estruturar o vivo – e que as dimensões da geo-metria, isto é, tudo o
que produz uma medição objetiva do espaço, emblematizam –, acontece após,
sobre e acima de um substrato, de um estofo vivencial, experimental, isto é,
algum sensível previamente não-enformado, o espaço da sensação, que os fe-
nomenológos chamam de “anté-predivativo”, “anté-teorético”. Essa experiência
carnal, o crivo cognitivo da ciência e do saber formalizador vem posteriormente
submetê-la a um trabalho de apropriação, reelaboração e transformação em ob-
jeto formalizado, seu enquadramento lógico. Seria suficiente reler a magnífica
introdução de Merleau-Ponty à sua Fenomenologia da percepção para escutar-
mos de novo as vozes da sensibilidade fenomenológica – a única que cabe aos
arquitetos e aos artistas –, capaz que é de ressaltar a singularidade da experi-
ência anté-predicativa, quando a vida e a vivência não são ainda submetidas à
lógica formal dos gradientes… Entretanto, a arte, para criar algo que chamamos
de sensação, precisa criar as condições que estruturam sua tangibilidade e sua
difusão. Tem a ver com o que Henri Maldiney, em uma fórmula muito feliz, chama
de climático do espaço549… É a nosso ver uma tarefa infindável das artes produ-
toras de ambientes trabalhar na ordem dessa climática. Maldiney a define como
“o espaço sentido sob o modo páthico. Quer dizer que não há espaço que não
seja percebido sem uma tonalidade afetiva existencial específica […] anterior a
toda objetivação, ante-objetiva.”550

546
RILKE, Rainer Maria, “Atmen” (Respirar), in Sonetos a Orfeu, (1º da segunda seção), citado
in: Idem, p.10
547
MALDINEY, Henri, “Rencontre avec…”, in: Idem, p.12
548
Idem, ibidem
549
Idem, p.19
550
Idem, p.17
Nesse sentido, a arte contemporânea poderia bem parecer com a ciência
clássica que, lembra Merleau-Ponty, ‘”conservava o sentimento da opacidade do
mundo”551, seus métodos científicos construindo apenas modelos possíveis para
se aproximar desses núcleos-cegos do saber - a experiença -, sem contudo ne-
gar sua opacidade. Hoje, a arte fez dessa opacidade seu estofo e sua substância,
o que torna insuportáveis as pretensões pragmáticas e positivistas de reduzir a
produção dos espaços de vida a meros objetos. Merleau-Ponty relacionava isso
com uma certa filosofia equivocada da ciência que leva a “operar, transformar,
sob reserva de um controle experimental […os] fenômenos altamente ‘traba-
lhados’’”, confirmando e consolidando assim a visão pré-fabricada do espaço
e dos ambientes.552 Muito daquilo que testemunhamos no nosso entorno mais
próximo mostra como, em toda sua arrogância tectônica, sua cegueira cultural e
seu cinismo social, muito da produção arquitetônico virou o que O olho e o espí-
rito denunciava: um ofício sem olhos e sem espírito. Essa situação justifica que
transformemos a contribuição dos agentes produtores de espaços interessados
na reealaboração epistemológica da questão dos ambientes construídos, em
referências críticas dignas de serem incorporadas ao novo arcabouço conceitual
de que a arquitetura precisa, urgentemente.
Não quisemos aqui dizer outra coisa senão, com Jean Nouvel, que, mo-
mentaneamente, “o porvir da arquitetura não é mais arquitetural”.553 A meditar…

551
MERLEAU-PONTY, Maurice, L’oeil et l’esprit, (1964), Paris: Gallimard, 1985, p.9-10
552
Idem, p.10
553
LE GAC, Christophe, “Quand (et où) y a-t-il architecture?”, in: Art Press, L’architecture contre-
attaque, Hors-série, mai 2005, p.15

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