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Crítica | Zona de Interesse


(2023) - Plano Crítico
Gabriel Zupiroli

6–8 minutos

No livro Imagens Apesar de Tudo, o teórico francês


Georges Didi-Huberman resgata fotografias retiradas
dentro do campo de concentração de Auschwitz para
realizar uma defesa da sobrevivência dessas imagens. Na
contramão de outros pensadores, que defendiam que os
lapsos do horror deveriam ser esquecidos, Didi-
Huberman advoga justamente pela exposição destas
imagens, argumentando que é justamente pela sua
visualização através do mundo que poderia se construir
uma memória de tal violência. Zona de Interesse, novo
filme do diretor inglês Jonathan Glazer, volta seu olhar
justamente para este local: acompanhamos as vivências
cotidianas da família do oficial nazista Rudolf Höss,
comandante responsável por administrar Auschwitz,
cuja residência faz fronteira muro a muro com o
ambiente da barbárie.

Ao contrário do que poderíamos, a princípio, esperar em


uma produção similar, Zona de Interesse se debruça
menos sobre juízos acerca das consequências e
naturezas morais decorrentes da contraditória vida de
seus personagens – cujo cotidiano parece, muitas vezes,
quase esquecer do cenário ao lado -, e mais sobre
justamente uma investigação desta ideia de rotina em si.
Dessa forma, o que Glazer procura focar ao longo do
filme é como os sujeitos que compõem a família Höss
experienciam seu dia-a-dia: os filhos e suas experiências
de infância e adolescência, a mãe e seu apego fixo a uma
ideia de lar construído arduamente, o pai e suas
responsabilidades familiares e conjugais. O que se torna,
de certa forma, algo atrativo ao espectador, no sentido
de que se quebra um pouco a corrente de pensamento
esperada para, em uma tentativa subversiva, fazer o
banal explodir na face através, precisamente, da sombra
oculta não mostrada.

Isso porque Glazer opta, na contramão da filosofia de


Didi-Huberman, por nunca mostrar a violência em si.
Os campos nunca são de fato, mostrados, apenas seus
muros. A violência nunca é explicitada ao espectador,
apenas ouvidos as constantes modulações sonoras que
servem de pano de fundo àquela narrativa cotidiana
através dos ruídos de tiros, gritos e lamentos. Assim, o
oculto ressoa nestes detalhes circundando aquele
cotidiano quase inocentemente representado, existindo
invisível nos pormenores visíveis. Essa opção de Glazer
serve, de certa forma, para reforçar a perspectiva de que
seu interesse reside sobretudo na contradição: no não-
sentido criado entre aquele cotidiano e o peso que ele
carrega ao fundo. Uma tentativa de criar dialeticamente
um silêncio ensurdecedor.

Diferentemente também de Didi-Huberman, para quem


o anacronismo é uma maneira possível de se ler a
história, para Glazer ele se torna um problema, pois no
filme, de certa forma, tudo está em seu devido lugar.
Todas as peças representam um teatro formado para
conduzir ao comentário do horror através do oculto
ressonante, fazendo com que a intervenção de um
presente, representado pelo museu, torne-se uma
espécie de ótica que categoriza a visão do passado,
alocando-o em um lugar específico: a memória, mas
através de um filtro. Dessa forma, Höss, uma espécie de
proto-Eichmann que apenas procura “cumprir seu
dever” (quando se reúne com os outros oficiais nazistas,
o comandante não pensa em nada a não ser seu
trabalho: imagina formas de se aniquilar todos eles para
melhorar o trabalho dos campos), é o representante
máximo desta crítica invisível. Seu objetivo reside
justamente no processo: quase um personagem
kafkiano, para quem a moralidade existe de forma
lateral aos objetivos, assim como a sua própria vida,
como quando declara seu amor ao cavalo, a
representação da máquina potente, ao invés de sua
família. Höss encarna este aspecto procedural em sua
estrutura, tornando-se máquina executora por
excelência – o que, de certa forma, aliado à opção de não
mostrar o horror, cria uma espécie de higienização que
seria, para Glazer, algo ainda mais gritante.

É neste processo constante, com o foco nos sujeitos do


lado higienizado do muro, que Zona de Interesse
estabelece, enfim, seu jugo moral. Os planos sempre
distanciados da face de seus personagens, com enfoque
no espaço, fazem com que esta concepção asséptica do
horror se torne, para Glazer, sua grande arma. É
justamente nesta tentativa opositora que a moralidade é
despedaçada e entregue ao espectador – o que gera, de
certa forma, um interessante efeito de contraditoriedade
constante. No entanto, é nela, também, que o horror é
transformado em museu. Em museu limpo, também
higienizado. Em um lapso futurista, o proto-Eichmann
enxerga a conclusão de seu trabalho e pode, assim, ir
para casa. Talvez se apostasse em demonstrar esse
horror, como defende o filósofo francês, o caminho de
Höss seria perturbado. Pois seu grande inimigo, não
deixa de ser, enfim, a memória, como Glazer tenta e
consegue parcialmente demonstrar.

Zona de Interesse (The Zone of Interest) – EUA,


Polônia, Reino Unido, 2023
Direção: Jonathan Glazer
Roteiro: Jonathan Glazer
Elenco: Christian Friedel, Freya Kreutzkam, Ralph
Herforth, Sandra Hüller, Johann Karthaus, Marie Rosa
Tietjen, Maximilian Beck, Sascha Maaz
Duração: 105 min.

Gabriel Zupiroli

Estudante de literatura em Campinas, São Paulo,


escrevo sobre cinema há dois anos, dividindo meu
tempo entre livros e filmes, respectivamente minha
relação matrimonial e extraconjugal. Um admirador do
gênero ensaístico, procuro transmitir, através dos
textos, impressões e interpretações das obras que
busquem criar um diálogo com a experiência artística.
No tempo livre, publico contos em livros por aí.

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