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A VILA

M. Night Shyamalan, The Village, EUA, 2004


Luiz Carlos Oliveira Jr.

O que ninguém esperava do novo filme de M. Night Shyamalan é que ele fosse
o que é: uma obra-prima das mais perturbadoras e esquisitas dos últimos anos.
Não se trata de uma fábula política sobre a América da era Bush – até porque,
muito por força da circunstância, o filme literalmente pós-11/9 de Shyamalan já
tinha sido o maravilhoso Sinais, cuja produção começou dia 12 de setembro de
2001. Tampouco se trata de um ensaio sociológico sobre o medo. Sem dúvida
alguma, A Vila traz um dos maiores estudos sobre visibilidade que o cinema
contemporâneo tem para oferecer. E é também (no que podemos pensar em
Dez e Elefante) um elogio do dispositivo. Como vem fazendo de filme em filme,
Shyamalan se lança à reinvenção de formas. Num certo sentido, A Vila ocupa
uma posição semelhante àquela que Através das Oliveiras ocupou na obra de
Abbas Kiarostami: um filme auto-reflexivo (não por acaso Shyamalan faz uma
ponta, quase no final, de costas para a câmera, aparecendo refletido no vidro da
portinha do armário de remédios), mas que, enquanto olha no retrovisor, anda
para frente. A comparação vai além, pois o diretor de O Sexto Sentido é alguém
que, assim como Kiarostami, explora a capacidade do cinema de nos revelar o
indizível no visível – e nos arrebatar.
Shyamalan já havia chegado a um grau de consistência admirável nos trabalhos
anteriores, mas A Vila é um filme que transborda o seu cinema. Desenvolvendo-
se justamente na encruzilhada em que as instâncias narrativas, as marcas
autorais e a natureza complexa do material humano em jogo se interceptam e
se despistam, A Vila pode ser o filme definidor com relação ao futuro da carreira
de Shyamalan, conceitualmente e comercialmente. A própria campanha
publicitária parece ter resultado da detecção de um problema: o filme, no fundo,
não tem característica de grande público. Os distribuidores encontraram talvez
a única forma de vender o filme, anunciando um desfecho surpreendente e
garantindo ao menos sua primeira semana. Mas, na verdade, não existe
surpresa final, e sim um todo narrativo/temático que é liberado aos poucos. É um
filme de montagem bastante original, praticamente sem unidades narrativas que
possam se definir como sequências. Salvo uma ou outra parte que realmente
compõe uma seqüência, o filme é todo construído segundo um tempo narrativo
particular, pouco convencional, como se procurasse o regime de temporalidade
inerente à vila. A substância nuclear do filme corre subterraneamente, mas
fazendo aflorar, aqui e ali, poços que se somam na construção de uma obra
muito superior ao que um olhar desatento pode pressupor. Em A Vila tudo é
questão, necessária e primordialmente, de mise en scène. O filme começa a se
mostrar claro desde o primeiro plano, durante o enterro de uma criança, em que
um discurso em off do Prof. Walker (Willian Hurt) questiona a vida na vila (e no
mundo de uma forma geral) enquanto o zoom dilui a questão da distância na
tomada de vista reinscrevendo-a na não-distância de uma operação manual (o
movimento ótico feito na câmera). Existe não só uma relação com o espaço e
com o tempo, mas também uma relação entre os sujeitos (que olham e que são
olhados) que o filme buscará problematizar de modo denso e criativo.
A Vila não exclui a religiosidade da obra de Shyamalan, muito pelo contrário: não
bastasse o nome de Deus, acompanhado de toda uma iconografia religiosa,
perpassar os dilemas éticos do filme, a cidade-dispositivo de Covington ainda
evoca um clima de parábola bíblica à Gênese. Só que o filme não adere a um
discurso teologizante, o que é bem diferente. A metodologia está expressa nas
aulas dadas por Walker no início, quando ele reforça para as crianças as
doutrinas que regem a cidade. Ali o filme se assume iniciático, telúrico, primário.
Covington se sustenta num mito: o das criaturas com as quais existe um pacto
de não-agressão e respeito ao espaço alheio – pacto que parece estar sendo
quebrado. Mas a farsa, tornada explícita na metade do filme, vai sendo sugerida
desde os primeiros minutos, seja através da dramaturgia propositalmente
carregada (criando um distanciamento), seja através de falas e atitudes que
apontam para a existência de um segredo. É em H.P. Lovecraft, o "mestre do
indizível", autor de clássicos da literatura de horror, que pensamos
imediatamente na primeira parte do filme, quando se fala nas inenarráveis
criaturas da floresta ("Those-we-don’t-speak-of"). O filme evolui então como uma
avalanche de sentidos, abrindo-se para a beleza das cenas de amor (Lucius
pegando a mão de Ivy e pondo o filme em câmera lenta, transformando
subitamente o que era suspense em romance, é peça de antologia), mas
mantendo-se soturno na maior parte do tempo. A Vila termina com uma tela preta
e o som de batida seca que acompanhara suas cenas de susto, depois de um
plano-seqüência praticamente fixo (salvo um re-enquadramento no final, a
câmera permanece imóvel e usa a profundidade de campo). Um final tão
aterrador quanto o de A Salvo, de Todd Haynes, em que uma espécie de spa
new age faz as vezes da cidadela de A Vila. Se há uma paranóia social
perpassando esses dois filmes, ela é menos consequência política do que
agorafobia, ou algo simplesmente indefinível. A Vila não esgota seu objeto em
patologia social. Os dirigentes do vilarejo se isolaram da sociedade (leia-se a
cidade grande contemporânea), mas não sabemos disso quando o filme
começa, pois ele nos arremessa no interior dessa vivência e nos faz compartilhar
dela sem conhecer as suas bordas.
Embora lembremos de Dogville vez ou outra durante o filme, o que surge como
constatação é a postura diametralmente oposta adotada por Shyamalan. A Vila
não faz um mergulho numa pretensa América profunda, com uma estética bem
particular e evocando aspectos de mito de fundação, para mostrar uma
experiência grotesca e manipular nosso sentimento em relação às pessoas que
a protagonizam. Interessa a Shyamalan uma monstruosidade de gestos, e não
de intenções. Não interessa a ele queimar ratinhos dentro de uma estufa de
laboratório. O que preocupa o diretor, mais do que as consequências políticas
das atitudes tomadas, é uma ação interior que se manifesta em cada um dos
personagens não como psicologia ou tipologia folhetinesca, mas como uma
gestão seletiva dos afetos. O tom over da declaração de amor feita a Lucius
(Joaquin Phoenix) no início do filme – o que rende uma piada de montagem,
quando corta para a menina chorando, nos dando a entender a recusa – é menos
um artifício dramatúrgico do que uma entrega, literalmente, do que está em jogo
naquela micro-sociedade. Os habitantes de Covington, conscientemente ou não,
ficcionalizam suas vidas como fuga de um espaço-fora, que no passado se
mostrou hostil aos "dirigentes" (os fundadores da cidade). Mas é esse espaço-
fora (da vila, da tela, do campo de visão) que, uma vez furada a membrana,
oferece os meios que garantem a sobrevivência da ficção, ameaçada por
elementos que não são senão endógenos. Essa contaminação benéfica, que
contradiz as premissas dos moradores da vila, é a contrapartida que expõe a
complexidade da relação entre o conceito de vida posto em prática naquele lugar
e todo o entorno. Daquele modo de vida pacato e ingênuo, brota a flor vermelha,
a de cor proibida, sem que ninguém possa impedir – restando enterrá-la,
escondê-la. O mesmo ocorrerá a Noah (Adrien Brody), o desviante. Ele terá o
mesmo destino da flor que aparece no início. Cairá num buraco, vestido com a
fantasia vermelha, e ao final Walker anunciará um enterro com todas as
honrarias, pois Noah justamente possibilitou a manutenção do mito, e, por
conseguinte, a continuidade de Covington (o sacrifício humano novamente
povoa a tela de Shyamalan). O que os "dirigentes" de Convington não
conseguem admitir é o compromisso, existente desde que o mundo é mundo (e
desde que o mundo é cinema e vice-versa), entre a inocência e a violência. É
impossível manter a humanidade dentro de uma célula mínima e garantir seu
crescimento pacífico. Afinal de contas, em que tipo de inocência repousa a
violência desse gesto fundador e sustentador da vila? Talvez pela sofisticação
estética e pelos enredos inteligentes de seus filmes, acaba que volta e meia
esquecemos da grande primariedade do cinema de Shyamalan. Quando ele
coloca os pingos nos is, tudo se revela muito básico, muito feijão com arroz.
Amor, morte, religião, família, medo: a mente e o coração se manifestam de
forma arcaica em Shyamalan. O mistério é o simples, e em nenhum momento
os filmes mentem a respeito disso. Simplicidade que não impede uma
ambiguidade latente durante toda a projeção de A Vila: o filme não induz
nenhuma linha de resposta, aprovadora ou reprovadora, aos seus personagens
– a cena em que os dirigentes discutem o estatuto do vilarejo frente à situação
de saúde crítica de Lucius e a possível ida de Ivy à cidade é filmada em tom
documental.
A primeira aparição da criatura se dá depois de uma cena em que o personagem
de Brody se esconde no armário de Ivy (Bryce Dallas Howard, em atuação que
mereceria um texto à parte). A cena é filmada da janela, como uma autêntica
cena de suspense, mas ela não leva susto quando abre o armário, pois não pode
vê-lo (numa posição que parece de ataque). Esse plano é um dos centros
nervosos do filme: nele se coloca o espelhamento entre os inimigos de fora (as
criaturas) e a ameaça de dentro (não exatamente Noah, mas o sistema de
confinamento e terror que em algum momento afetará a mente, nem que seja a
do mais suscetível), faz-se um questionamento fundamental sobre a origem do
temor local (o que é o medo para alguém que não consegue ver a face do mal?),
fica estabelecido entre quais personagens se dará o confronto central do filme
(a cena da perseguição na floresta). O mais espetacular do mecanismo ficcional
de A Vila é que seu clímax de suspense se dá depois de sabermos que as
criaturas são uma farsa, uma fantasia. Entretanto, Shyamalan cria o clima da
perseguição na floresta, quando Ivy foge de uma criatura, como se nada tivesse
sido falado antes. E, o que é mais incrível, a cena funciona muito bem, em grande
medida por conta de um jogo de tensão e distensão que a montagem realiza
magistralmente (só que o medo no cinema é mais do que a articulação bem
sucedida dos seus elementos plásticos, donde o suspense de A Vila fica ainda
mais inexplicável). Outra cena crucial é o diálogo de Ivy e Lucius no alpendre da
casa dela. Filmada em quatro belíssimos planos, essa cena mostra os dois
únicos habitantes de Covington que não sentem medo declarando amor um ao
outro e revelando a força que integra afecção e visibilidade. A cegueira de Ivy, a
cor que ela enxerga em Lucius, a preocupação de Lucius com ela, o
temperamento destemido dos dois, a relação de intromissão que eles
estabelecem – diferentemente dos outros – com o espaço e com o imaginário
local: tudo isso tece uma rede de união. A cena termina com a câmera fazendo
um movimento pressagiador do destino trágico, abandonando o casal que se
beija e caminhando para a esquerda até enquadrar a cadeira de balanço igual
àquela em que Noah sentará com as mãos sujas do sangue de Lucius. É com
essa e outras cenas que alternam imagens icônicas a imagens bastante
inusitadas que Shyamalan atinge a perfeição plástica de A Vila, tendo como
braço direito o diretor de fotografia Roger Deakins, que possibilitou noturnas
praticamente à luz de tochas, no seu melhor trabalho em anos.
O som da sirene do jipe é o sinal que denuncia de vez a contemporaneidade no
filme. Que seja um som a fazê-lo, parece justo num filme em que a edição sonora
é absolutamente fundamental (o que se nota logo no início, com o barulho das
moscas que sobrevoam o animal morto sendo trazido para primeiro plano).
"Ouço gentileza na sua voz, não era isso o que eu esperava das cidades", diz
Ivy ao guarda florestal que a encontra na beira da estrada e se dispõe a ajudá-
la. O medo inculcado nas crianças de Covington através das histórias das
criaturas pode até causar asco, mas a resposta do filme a esse monstro fabulado
é o olhar confuso e enternecido do guarda florestal – aquele que protege os
limites e o conteúdo da floresta –, um personagem de suma importância, apesar
da curta participação. Ele, que desconhece a existência de Covington (e sequer
imagina o folclore que condena tudo o que extrapola os limites da vila), estranha
o anacronismo da situação, o modo dela falar, suas roupas, a descrição de sua
missão, o presente que lhe é oferecido (aparentemente um relógio antigo, que
depois estará pendurado no retrovisor do jipe do guarda). Terá sido por Ivy,
somente por ela, que o guarda se sensibilizou e aceitou pegar os remédios sem
falar nada ao seu chefe? Terá ele se sentido muito pequeno diante daquela
alteridade tão demarcada, tão difícil de ser compreendida somente no espaço,
digamos, de um filme? A sensibilidade e o estranhamento que aquele olhar
revela são a chave de toda a disposição do filme. O ímpeto do personagem não
foi abusar daquela inocência, daquela fragilidade indefesa e bela, mas sim
prolongá-la. E não coube a ele decidir o destino do que quer que existisse para
lá da floresta. Não por acaso estamos falando de um cinema tão diferente do de
Lars Von Trier: propositalmente ou não, A Vila é também a resposta de
Shyamalan a Dogville.
Existe uma relação de proximidade câmera-personagem muito cuidadosa – do
que o close no rosto agonizante de Noah e, antes, a cena dele esfaqueando
Lucius (atitude tão humana quanto o amor sublime entre os jovens do filme) são
os exemplos mais problemáticos, porém peças importantes e coerentes no filme.
O cineasta aqui não se elege o juiz das ações, não sobrepõe seus valores ao
que está do outro lado da câmera, ou do outro lado da cerca que delimita a
floresta. Até porque ele pode estar lá, em algum lugar refletido. O último plano
do filme é essa incapacidade de intervir, essa incapacidade de decupar e seguir
uma composição dramática; a câmera resolve se posicionar na cama do
debilitado Lucius e observar tudo passivamente – a própria câmera termina o
filme se afirmando também ela um paciente, também ela à espera da volta de
Ivy. O cinema ainda terá de esperar um pouco mais, contudo, até que surja uma
outra cena tão bonita quanto aquela do encontro entre dois personagens-mundo,
Ivy e o guarda florestal. A decisão dele de preservar o segredo corresponde ao
impulso, por parte do cineasta, de preservar o local do outro como única
condição para se continuar a filmar, ou mesmo para se ter começado a filmar
(por que razão além desta o período em que o filme se passa, no tempo fictício
de Covington, corresponde à época da gênese da sétima arte?). Deixar aquela
experiência radical existir sem querer impor um olhar de cima (sem aviões
sobrevoando o local), para Shyamalan, é a possibilidade de prosseguir fazendo
cinema. Com A Vila, ele nos inicia na difícil pedagogia de um novo olhar sobre
as coisas – ocultadas, indizíveis, desmascaradas, todas as coisas. De agora em
diante, o cinema carregará esse aprendizado como se nunca tivesse saído da
escola primária.

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