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Eduardo de Faria Carniel

Universidade de São Paulo

Fantasmas visíveis
O Iluminado de Stanley Kubrick entre estrutura e agência

Marcas do Presente: Neoliberalismo e Apocalipse


Profs. Alysson Tadeu de Oliveira e Fabiana Vilaço

São Paulo
2021
Um carro transitando por uma longa estrada, que serpenteia por entre
montanhas extensas, ao ponto de nós o perdermos de vista: essa é a cena inicial do
filme O Iluminado, lançado em 1980 por Stanley Kubrick. O filme nos apresenta uma
vastidão natural, se estendendo até onde o olho pode ver, até nos mostrar, de cima, o
cenário que abrigará quase a totalidade do enredo: o Overlook Hotel. A próxima cena
mostra o personagem central, Jack Torrance, se dirigindo a uma entrevista de
emprego dentro do próprio hotel, e a câmera que antes era expansiva e vasta, agora
se mantém presa em um plano bem mais fechado, seguindo Jack até a salinha onde
se dirige para encontrar seu futuro patrão. Mesmo que o enquadramento das duas
cenas seja diferente, o movimento da câmera se assemelha - nas duas, ela persegue o
mesmo personagem em travelling, acompanhando seu movimento ao mesmo tempo
que o coloca em contraposição ao seu plano de fundo.
As cenas iniciais d’O Iluminado estabelecem, assim, uma dualidade em torno
da qual pode ser lido o desenvolvimento da ação do filme: uma dualidade entre o
personagem, e as consequências das ações que o mesmo produz; e o ambiente, e as
determinações que este produz sobre o destino do personagem. Por um lado, o
movimento autônomo de Jack e de seu carro são o que induzem a câmera a se
movimentar como ela o faz, buscando enquadrá-lo. Por outro, esse mesmo
movimento não acontece arbitrariamente: vemos claramente o desenho ondulante da
estrada na qual o carro de Jack segue, e as formações de relevo que a restringem - e
dentro do hotel, Jack vai aonde é apontado pelos funcionários, e entra nas portas que
já estão abertas. O ambiente, mesmo que não seja o foco central, está presente como
condição de possibilidade para a ação, presente e futura, do personagem em cena,
caráter representado pela construção da imagem de Jack e seu carro contra o plano
de fundo, dando aos dois lados da tensão igual peso cênico.
Nota-se então que a dualidade proposta não é apenas uma oposição homem-
meio no sentido geral, mas uma maneira de ler as possibilidades de ação
(metaforizadas no caminho que o personagem anda) dentro de um espaço onde
escolhas já feitas no passado as influenciam, mesmo sem isso estar facilmente
aparente ao sujeito. A oposição sociológica entre agência e estrutura 1 nos parece útil
por iluminar esse dado específico entre os arranjos padronizados que influenciam as
escolhas disponíveis, e a capacidade dos indivíduos de agir de maneira independente.

1 CIMENT, Michel. Kubrick. New York City: Faber and Faber, 2001. Disponível em: http://genius.cat-
v.org/stanley-kubrick/interviews/ciment/the-shining
Em uma narrativa em que uma família vai progressivamente se rendendo a uma
dinâmica de violência, o argumento entre estrutura e agência pode nos ajudar a
examinar de que maneira essa violência aparece como resultado (possivelmente de
natureza sobrenatural) do Overlook Hotel, ou como ela já se desenhava como
tendência reprimida nos personagens, aguardando uma possibilidade de emergir.
Esse contraste não é, na verdade, estranho aos filmes de terror. Com
frequência, o drama central nas narrativas desse gênero envolve um sujeito feito de
vítima por uma força que impõe uma pressão inescapável sobre a sua maneira de
viver no mundo - seja essa pressão estabelecida por um elemento extramaterial, ou
realmente existente - e as tentativas desse sujeito de se libertar do constrangimento a
que está submetido. Com ou sem sucesso do personagem nessa tensão, é frequente
também que a síntese entre essas duas pressões seja apresentada por um
personagem mediador, que cumpre ao mesmo tempo o papel de encaminhá-la para o
desfecho possível, como também de “explicá-la”, enquadrar o conflito dentro de uma
narrativa que permita o seu deslocamento do absurdo e incompreensível para o
terreno do definido, e portanto, pretensamente domesticável. As motivações
grotescas do assassino de Psicose são conceitualmente enunciadas na última cena
por um psiquiatra que enxerga Norman Bates não como um monstro, mas como um
resultante das suas próprias dissociações. A ousadia pornográfica do demônio de O
Exorcista é confrontada pelos padres, que o derrotam colocando-o no seu lugar
dentro de uma organização divina na qual Deus é mais poderoso - colocando também
Regan e sua mãe nos seus lugares sociais apropriados no processo.
Não é coincidência que nestes e em outros exemplos esse personagem
mediador cumpre o papel de representante de uma instituição ideológica (o discurso
clínico e a Igreja). Se o conflito inicial entre personagem e força ameaçadora aparece
como sujeição irresistível daquele à lógica desta, uma saída narrativa possível é
projetar uma força ainda mais irrefreável em relação à qual a ameaça prévia não tem
saída a não ser se subjugar. Se a agência do personagem-vítima tinha sido absorvida
por uma estrutura inaceitável, esta cria a partir de si mesmo a possibilidade de ser
subsumida dentro de uma estrutura com maior potencial totalizante. O conteúdo
ideológico de filmes que se utilizam dessa construção expressam (mesmo que muitas
vezes de maneira mediada) que por mais insurreto o poder que busca se afirmar por
meio do terrível, existe força nas instituições já existentes na sociedade para fazer
frente às suas ameaças.
Buscando ler O Iluminado à luz dessa forma narrativa recorrente, o primeiro
problema é justamente encontrar esse personagem mediador. Ao refletir sobre as
instituições presentes na obra, a mais evidente é a família. Isso porque é o núcleo
dramático do filme, e também porque é o que Jack, Wendy e Danny têm como
praticamente o único eixo de sociabilidade: Jack alude a uma época passada, da qual
não sabemos nada sobre, na qual ele era um professor, e agora alterna entre o sonho
de ser um escritor (o trabalho solitário idealizado) e entre trabalhos sazonais na
informalidade (o trabalho solitário na prática). Na primeira cena de Danny, é
estabelecido que ele não tem amigos na sua escola, e socializa apenas consigo mesmo
(na forma do amigo imaginário Tony) e com a sua mãe. E Wendy encarna tão
profundamente seu papel de mantenedora da unidade familiar que, ao apresentar à
médica que examina Danny um episódio de violência doméstica contra seu filho, se
preocupa centralmente com justificar os atos de Jack e até retratar o ato como
positivo, pois teria feito o pai deixar a bebida. A família é praticamente a única
instituição visível, e como tal, deve ser protegida a qualquer custo.
Mas se só pode advir da família a personalidade que pode resistir e dominar
os abalos propostos pela força ameaçadora, o problema nasce quando constatamos
que o seu patriarca é, ao mesmo tempo, o personagem-vítima (pois é quem sofre a
possessão dos elementos malignos) e a própria força ameaçadora quando recai na
insanidade assassina. E o seu salto de uma posição para outra não acontece como um
choque. Para efeitos de comparação, o tropo do pai de família levado ao desvario de
destruição da própria família já tinha aparecido de maneira influente no filme de
1956 Delírio de Loucura. Porém, enquanto no filme de Nicholas Ray o bom pai se
converte em homicida pela influência puramente externa de uma pílula - e retorna
por conta da resiliência da unidade familiar - na obra de Kubrick o desprezo de Jack
para com Wendy e Danny e pelo seu próprio papel de pai é visível, como na cena em
que viajam para o Overlook e ele lida com as demandas de seu filho de maneira
displicente e sarcástica (para não falar do já mencionado episódio de violência).
Como o próprio diretor coloca:

Jack comes to the hotel psychologically prepared to do


its murderous bidding. He doesn’t have very much further to
go, for his anger and frustration to become completely
uncontrollable. He is bitter about his failure as a writer, he is
married to a woman for whom he has only contempt, he hates
his son. In the hotel, at the mercy of its powerful evil, he is
quickly ready to fulfil its dark role.2

Além de já trazer desde o início a predisposição ao desastre que seguiria, e


portanto tornar impossível o nível de diferenciação requerido para o controle da
força rebelde, Jack também carece da rigidez subjetiva necessária para que possa se
tornar por ele mesmo um prócer da instituição que vai domá-la. Todos os processos
de individuação que podem lhe afirmar não tem nenhum tipo de correspondência
com a realidade. O exemplo mais gritante é a sua perseguição do papel de escritor,
que remete ao ideal romântico do grande Artista que ascende pelo próprio gênio
sobre a mediocridade da vida real (de família nuclear e trabalhos braçais), mas que
nunca demonstra ser uma expectativa fundamentada em real talento ou vocação.
Mesmo uma possibilidade de realização de si através do trabalho concreto de
manutenção do hotel o escapa, já que nunca o vemos trabalhando - aliás, a cena
imediatamente após a mudança da família ao Overlook mostra Wendy acordando
Jack às onze e meia da manhã, com ele aparentemente sem nenhuma
responsabilidade além da sua pretensa escrita. E como se não bastasse, em
determinado momento vemos inclusive a esposa trabalhando nas caldeiras,
operando a função que teoricamente seria uma das poucas exigidas do marido pelo
seu empregador.
O próprio personagem parece perceber, mesmo que de maneira
subconsciente, a sua própria limitação. No início do auge da sua transformação
macabra, Jack busca justificar a sua agressão a Danny para o barman
fantasma/alucinação Lloyd lhe impondo ainda menos responsabilidade do que
Wendy o fez quando narrava a história à médica: o que pela boca da sua mulher era
“my husband just used too much strength” se transforma em “a momentary loss of
muscular coordination (...) a few extra foot-pounds of energy per second”, a
eliminação do sujeito gramatical na sentença servindo de análogo a sua própria
eliminação como sujeito da ação que cometeu. Dentro de uma compreensão de
agência como capacidade de agir de maneira independente e consciente, Jack tem
muito pouco a oferecer nesse sentido, e o ressentimento que o atravessa o abre de
maneira potente ao efeito da estrutura do Overlook Hotel.

2 JAMESON, Fredric. “Historicism in The Shining” In: Signatures of the visible. Londres: Routledge,
2016
Em grande parte da fortuna crítica sobre O Iluminado, o hotel é visto como
uma projeção externa da subjetividade fragmentada e enfraquecida de Jack, como na
leitura de Fredric Jameson:

The Overlook Hotel mirrors Jack’s bankruptcy. The


sterility of its vastness, the spaces that proliferate yet really
connect with each other in a continuum that encloses rather
than releases, frustrates rather than liberates – all this becomes
an extension of his own barrenness of mind and spirit. 3

Enquanto é verdade que o Overlook é caracterizado por vastos corredores e


salões vazios, que realçam o isolamento dos personagens dentro de si, ele também é
impregnado de História. A face manifesta dessa carga aparece no discurso do seu
dono no tour que ele oferece à família, quando ele diz que os hóspedes ilustres do
hotel incluem “jet setters (...) four presidents [and] lots of movie stars (...) all the
best people”. Mas a face latente da sua historicidade também escapa no mesmo
discurso, quando o mesmo revela que o local foi construído sobre um antigo
cemitério indígena - sendo a carga mística desse item menos importante do que o
fato bem objetivo de que o estabelecimento do prédio veio a custo de violência e
espoliação sobre populações nativas. O peso desse passado sangra por através da
arquitetura e decoração, construídas sobre motivos apaches e navajos, fazendo a
história de barbárie coagular sobre a construção do monumento, tornando-a ao
mesmo tempo invisível, e impossível de ignorar. O tenebroso caso da família Grady,
cujo pai alguns anos antes assassinou a esposa e as filhas no mesmo local, se torna
apenas uma materialização da mesma lógica que orienta o hotel desde a sua
construção.
É essa história de barbárie que se conecta aos impulsos de violência do
próprio Jack, e através da qual ele permite racionalizar o seu desejo de aniquilação
da família. No ápice da sua fantasia, quando ele encontra a festa de 4 de julho de 1921
repleta de membros da alta sociedade da época, ele também encontra o antigo
zelador Grady - porém na qualidade de garçom da festa, e plenamente adaptado ao
ambiente histórico que o circunda, inclusive nos maneirismos, trajes e sotaque. É da
boca de Grady que sai as afirmações do desejo de incorporação de Jack à lógica do
hotel, ao afirmar que “you’ve always been the caretaker”. E é nos valores vocalizados

3 JAMESON, Fredric. “Historicism in The Shining” In: Signatures of the visible. Londres: Routledge,
2016
por Grady (como um representante da violência como estrutura presente no
Overlook) onde Jack fundamenta seu ataque. É importante perceber que o garçom
não se utiliza de nenhuma argumentação metafísica ou sobrenatural, senão de
justificativas ligadas a um sistema de realidade marcadamente historicizado: Grady
convence Jack de hostilizar sua mulher e filho dizendo que eles precisam ser
“corrigidos”, um discurso mais do que corriqueiro para explicar a motivação para
atos de violência doméstica dentro de sociedades patriarcais; e a referência a
Hallorann, o cozinheiro que ruma ao hotel para resgatar as vítimas, é feita
chamando-o de “an outside party”, até alcançar a sua definição final como “a nigger
cook”, combinando práticas de misoginia e racismo que foram de plenamente visíveis
nos anos 20 até reprimidas (mas ainda presentes) nos anos 70. Jack submete sua
agência a essa estrutura ideológica sem questionamentos, e encontra nela a narrativa
necessária para sublimar a agressividade contida.
É justamente detalhando esse processo que nos deparamos com mais um
problema do choque de papéis (entre autoridade e assassino) em Jack. Na estrutura
do gênero terror que propusemos, o processo de contenção da força aterrorizadora
vinha também com um processo de narrativização da mesma, com a incorporação
dos seus efeitos dentro de uma lógica estrutural que a submetia a uma racionalidade
alheia, permitindo sua neutralização. Naturalmente, esse processo demanda um
narrador, uma figura com a autoridade de impor a sua versão dos fatos sobre o caos
do grotesco (nos exemplos entretidos, o psicanalista e o padre). A fragilidade da
instituição central d’O Iluminado, assim como a pobreza subjetiva do seu
personagem principal, nos fazem levantar a dúvida: afinal, quem conta a história do
filme? Quem explica os eventos aterrorizantes?
O ponto de vista do filme parece não se decidir, assumindo a perspectiva e
privilegiando a posição de diferentes personagens, às vezes sobre um mesmo evento.
Tomemos um momento do filme para análise, possivelmente um dos seus mais
importantes pontos de inflexão: a visita ao quarto 237. Inicialmente, Danny é quem
entra no quarto pela primeira vez, mas não vemos o que ocorreu com ele até que
aparece na frente dos pais com marcas no pescoço e em estado de choque. A primeira
versão que ouvimos é de Wendy, que, abalada pelo comportamento de Jack, conclui
assustada que o responsável foi o pai, que repetiu a agressão do passado ao filho.
Mais tarde, no quarto da família, vemos o rosto chocado de Danny intercalado com a
imagem da palavra REDRUM e do saguão banhado de sangue, em um processo de
montagem que debateremos mais à frente, mas que conota uma incorporação do seu
ponto de vista pelo da obra. E enquanto isso, Jack apresenta a Wendy a sua versão,
de que não havia nada do quarto, de que Danny estava alucinando e de que a
tentativa de sua esposa de levar o filho embora fazia parte da sua vontade de sabotar
as possibilidades de realização do pai, que estaria, na teoria, finalmente alcançando
seu sonho de escrita.
A versão de Jack é automaticamente a mais suspeita, inclusive porque
acabamos de ver a cena do próprio entrando no quarto 237 e se deparando com o
fantasma de uma mulher em decomposição. Porém, uma análise mais cuidadosa
dessa cena pode indicar o que à primeira vista não é tão claro. Imediatamente antes
de vermos por dentro o quarto 237, voltamos a ver Hallorann, deitado em um quarto
na Florida. O cozinheiro entra em um transe e a câmera se aproxima dele, e vemos
imagens de Danny convulsionando e da chave do quarto do Overlook, com o uso da
mesma montagem usada nas visões do garoto (sabemos, pelo relato do próprio
Hallorann, que ele e Danny compartilham a habilidade do “brilho”, a
hipersensibilidade em relação ao futuro e ao passado). É aí que a câmera assume
uma perspectiva de primeira pessoa por dentro do quarto 237, até a porta do
banheiro ser aberta e, em contraplano, nos revelar que estamos vendo a perspectiva
de Jack dentro do quarto. De dentro da banheira emerge uma mulher nua que o pai
abraça, até que ela se transforma no cadáver em questão que o persegue, até que
retornamos ao quarto de Hallorann onde ele irá tentar contato com o hotel por saber
que algo não está certo.
É possível interpretar a cena como Hallorann assumindo o ponto de vista
literal de Jack enquanto ele está no quarto, concluindo assim que o pai estaria
mentindo descaradamente a Wendy na cena seguinte. Porém, as semelhanças
formais das visões do cozinheiro e de Danny apontam para outras possibilidades de
equivalência. A recorrente visão do garoto da inundação de sangue no saguão do
hotel nunca se concretiza de fato, mas pode ser lida como um símbolo da violência
contida (passada e futura) que eventualmente é liberada sobre o espaço. Isso levanta
a hipótese de que a visão de Hallorann também seja simbólica, hipótese corroborada
pela única outra mulher nua no filme ser a modelo no pôster atrás da cama do
mesmo, que vemos segundos antes do corte para a sequência do quarto - uma
possível indicação de que ele estaria se usando de elementos à sua volta para formar
uma imagem representativa dos eventos do hotel. Sendo esse o caso, a visão de Jack
e do cadáver do banheiro poderia representar os impulsos libidinais do pai
confluindo com as ânsias mórbidas predispostas pela estrutura de violência do hotel,
levando à combinação de desejo e barbárie que Jack assumirá com plenitude após a
conversa com Grady.
Detalhes simbólicos à parte, o que interessa dessa sequência é que, em meio a
um choque de versões sobre um evento traumático ocorrido no hotel, a visão de um
personagem que não estava incluído no núcleo da ação dramática do filme - até então
restrita aos membros da família - é trazida para apreciação, e discutivelmente é a
versão privilegiada pelo ponto de vista do filme como a mais confiável. O processo de
afirmação de Jack como a força dominadora da família envolve uma batalha da sua
parte pelo controle da narrativa sobre os eventos do hotel; por isso ele faz questão de
afirmar, ao tentar convencer Wendy da sua versão, que “once you rule out [Danny’s]
version of what happened, there is no other explanation” como quem diz “a
narrativa dele vale menos do que a minha”. Porém, a polifonia de versões e a inclusão
da versão de Hallorann como uma das principais demonstra que Jack não tem a
força que imagina que tem, e é no vácuo da sua debilidade que outras narrativas se
afirmam - mesmo que não tenham, elas mesmas, a capacidade de afirmação
hegemônica para enquadrar na totalidade os acontecimentos do enredo.
Ao longo de todo o filme, muitos episódios aparecem como pontas soltas, sem
fundamentação clara na lógica aparente do enredo, um sintoma da falta de uma força
narrativa centrípeta que consiga envolvê-las na sua órbita. Esse é o contraponto da
submissão completa de Jack à estrutura da dinâmica do hotel: ao mesmo tempo que
é o que o energiza para realizar os seus impulsos, o torna apenas um componente
dentro da desordem que décadas de desenvolvimento histórico decantaram no
tecido, físico e espiritual, do Overlook. O pai se torna puro impulso, mas a maioria
das ações que busca realizar de fato são vencidas, como a tentativa de agressão de
Wendy que termina com Jack inconsciente dentro da despensa. A carga de barbárie
histórica a que Jack se rende libera seus desejos reprimidos, mas não repõe a agência
necessária para cumprí-los.
Ao que voltamos a atenção para Danny, o responsável final pela derrota do
pai, quando consegue despistar Jack dentro do labirinto do jardim. Desde antes da
mudança para o hotel, a sua experiência do sobrenatural opera em registros formais
diferentes da vivida por Jack e mesmo Wendy. Enquanto o pai vê as aparições como
presenças físicas, compartilhando o mesmo espaço e tempo que ele, Danny também
vê, nos momentos de “brilho”, as imagens do futuro e do passado em justaposição,
representadas pela montagem que mencionamos acima. Além do efeito de
incorporação mais direta do seu ponto de vista pelo do filme, isso também gera uma
possibilidade maior de distanciamento em relação às visões, e de uma maior
percepção (mesmo que não racional) dos seus significados - como se confirma na
vidência de Danny em relação à natureza violenta do hotel, ao alvoroço homicida do
pai, ao quarto 237, entre outros. Mesmo que de maneira contraditória - muitas vezes,
o que é vocalizado por Tony, seu alter ego, se assemelha muito ao que poderia ser
dito por Jack - é ele que tem lampejos de consciência que não são permitidos ao pai.
Quando ele tem a visão das gêmeas Grady mutiladas, é Tony quem o assegura que
“it’s just like pictures in a book, Danny, it isn’t real”.
Nesse momento, assim como muitos durante o filme, Danny está brincando,
andando de triciclo pelos corredores. Nos primeiros momentos da sua presença no
hotel, a visão do garoto e de sua mãe explorando e se divertindo são frequentes,
enquanto Jack se afunda mais e mais na sua própria dinâmica repetitiva - sua
“brincadeira” é jogar uma bola na parede, de novo e de novo, até ser mergulhado na
loucura. O motivo que Danny escapa de Jack no labirinto é porque o garoto já
conhecia as suas entradas e saídas, quando andou com a mãe dentro das suas
reentrâncias e, por meio de tentativa e erro, encontrou as passagens e esconderijos.
A única coisa que Jack consegue escrever, repetidas vezes, é a frase “all work
and no play makes Jack a dull boy”. O pai descobre uma verdade importante sobre
si nessa frase: Danny tem acesso a uma dimensão da experiência que ele mesmo não
tem. “Dull” aqui pode ter o sentido de “chato”, mas também de “fosco” ou de “cego”
(como uma faca é cega). A falta de brincadeira torna Jack menos preparado, menos
capaz, de transitar e de intervir sobre a irresistível estrutura que o envolve até a sua
tragédia final. Não é possível dizer também que Danny é um agente pleno, ou que ele
próprio consegue impor, sobre a violência do pai e do hotel, uma dinâmica que
neutralize as suas energias. A multiplicidade de focos narrativos e as disputas de
versões sobre os eventos do filme, sem o alcance de nenhuma síntese, talvez
comprovem que essa atividade não é possível nesse cenário. Mas porque ele tem uma
sensibilidade maior em relação às brechas e fraturas da constituição de onde estão, e
uma disposição maior de testá-las pelo meio da brincadeira, possíveis
desmistificações da estrutura são mais acessíveis. Wendy mesma é contaminada por
essas operações, quando vê, onde Jack antes via a vitalidade dos convidados da festa
dos anos 20, apenas esqueletos - onde o pai confundia passado com presente, ela vê
de fato como passado.
Jameson interpreta O Iluminado como uma dramatização da tensão entre
indivíduos que já abandonaram qualquer possibilidade de vivência em comunidade,
e que coexistem de maneira aleatória, representando nada além deles mesmos. Na
demanda pelo alcance de algum tipo de comunidade, algum tipo de sistema maior do
que si mesmos nos quais possam inscrever a sua existência - alguma estrutura - a
única direção para onde podem ir é o passado, com todas as suas contradições. 4 O
motivo dessa demanda não é porque a família do filme de Kubrick vive num espaço
histórico livre de estruturas, mas porque vivem no alvorecer de uma nova estrutura
que opera exatamente a partir da ideologia do indíviduo irredutível (“there is no such
thing as a society, there are only individuals and their families”), das forças
fantasmagóricas que moldam a vida cotidiana sem oposição (“it’s the economy,
stupid”) e da redução do horizonte de possibilidades para o rígido presente (“there is
no alternative”). O Iluminado é um pesadelo do neoliberalismo. A experiência da
primazia da estrutura sobre a agência histórica é aqui transformada em terror, e a
única disputa possível se torna a disputa de narrativa, onde qualquer leitura sobre a
realidade é posta em suspeita e conflito, e o mais racional parece encarar os dados
empíricos como representações de uma realidade que já se tornou apenas
representação5, “pictures from a book”.
E ainda assim… existe algo na reação de Danny, e do teste que ele se dispõe a
propor sobre essa realidade que insinua que o peso dessa visão de mundo pode não
ser homogeneamente impositivo. Evan Calder Williams, no seu texto sobre
narrativas do fim do mundo, nos apresenta a diferença entre crise, catástrofe e
apocalipse. Enquanto a crise é um evento cíclico do qual se postula um retorno à
normalidade, e a catástrofe é um “fim sem revelação”, um vazio após a destruição que
aponta apenas à negativa de futuro, o apocalipse implica, em meio ao desastre, um
levantar do véu:

This doesn’t mean total destruction but rather a


destruction of totalizing structures, of those universal notions
that do not just describe “how things are” but serve to prescribe
and insist that “this is how things must be.” What is revealed is
what has been hidden in plain sight all along, previously only

4 JAMESON, Fredric. “Periodizing the 60s” In: The ideologies of theory. Londres: Verso, 2008
5 WILLIAMS, Evan Calder. Combined and uneven apocalypse. Winchester: Zero, 2011
caught askance from the corner of our eye: the sudden exposure
of what was present but not visible, because it did not accord
with those real structuring forces of a totality. 6

É fato que a Danny é permitido um nível diferente de visão sobre o que é


“presente mas não visível” dentro das determinações irresistíveis da estrutura que
engolfa seu pai. Talvez o filme também aponte, na maneira desigual que cada
personagem reage à realidade a que são submetidos, diferentes possibilidades de
agência que podem confrontar as fissuras e contradições presentes na totalidade que
se impõe. Essa agência pode não ter força para propor uma nova totalidade - mas
pode apontar para uma possível saída para o labirinto.

6 BARKER, Chris, & JANE, Emma A. Cultural studies: theory and practice. Los Angeles: SAGE, 2016
Obras citadas

BARKER, Chris, & JANE, Emma A. Cultural studies: theory and practice. Los
Angeles: SAGE, 2016

CIMENT, Michel. Kubrick. New York City, Faber and Faber, 2001.

JAMESON, Fredric. “Historicism in The Shining” In: Signatures of the visible.


Londres: Routledge, 2016

JAMESON, Fredric. “Periodizing the 60s” In: The ideologies of theory. Londres:
Verso, 2008

WILLIAMS, Evan Calder. Combined and uneven apocalypse. Winchester: Zero, 2011

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